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UNIVERSIDADE FEDERAL DE GOIÁS

PRÓ-REITORIA DE PESQUISA E PÓS-GRADUAÇÃO


FACULDADE DE HISTÓRIA
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA

GISLANE CRISTIANE MACHADO TÔRRES

J. MIGUEL DE MATOS E A ACADEMIA PIAUIENSE DE LETRAS:


ESCRITA, MEMÓRIA E (RES)SENTIMENTOS

GOIÂNIA-GO
2022
GISLANE CRISTIANE MACHADO TÔRRES

J. MIGUEL DE MATOS E A ACADEMIA PIAUIENSE DE LETRAS:


ESCRITA, MEMÓRIA E (RES)SENTIMENTOS

Tese apresentada à Coordenação do Programa de Pós-


Graduação em História da Universidade Federal de Goiás
para obtenção do doutoramento em História.

Orientador: Prof. Dr. Marcos Antônio de Menezes.

Linha de Pesquisa 3: Ideias, Saberes e Escritas da (e na)


História.

GOIÂNIA-GO
2022
GISLANE CRISTIANE MACHADO TÔRRES

J. MIGUEL DE MATOS E A ACADEMIA PIAUIENSE DE LETRAS:


ESCRITA, MEMÓRIA E (RES)SENTIMENTOS

Tese apresentada à Coordenação do Programa de Pós-


Graduação em História da Universidade Federal de Goiás
para obtenção do doutoramento em História.

Orientador: Prof. Dr. Marcos Antônio de Menezes.

Linha de Pesquisa 3: Ideias, Saberes e Escritas da (e na)


História.

BANCA EXAMINADORA

__________________________________________________
Prof. Dr. Marcos Antônio de Menezes (Orientador)
Universidade Federal de Goiás

__________________________________________________
Prof. Dr. Matheus de Mesquita e Pontes (Examinador Externo)
Instituto Federal do Mato Grosso

__________________________________________________
Profa. Dra. Ana Cristina Meneses de Sousa (Examinadora Externa)
Universidade Estadual do Piauí

__________________________________________________
Prof. Dr. Pedro Pio Fontineles Filho (Examinador Externo)
Universidade Estadual do Piauí

__________________________________________________
Profa. Dra. Raquel Machado Gonçalves Campos (Examinadora Interna)
Universidade Federal de Goiás
AGRADECIMENTOS

Ao final de um trabalho de pesquisa, convém agradecer a todos aqueles que, de várias


maneiras e em momentos variados, contribuíram para sua construção. Em primeiro lugar,
agradeço a Deus, companheiro em todas as situações, por iluminar meus caminhos e dar-me
forças para enfrentar os diversos desafios da vida.
À minha família, em especial aos meus pais, Neves Tôrres e José Medeiros, pelo amor,
confiança e pelas oportunidades ofertadas para meu desenvolvimento profissional, e à minha
irmã Gislene Tôrres pelo carinho e pelo auxílio na pesquisa, desde a escuta das angústias e
descobertas ao auxílio nas transcrições das fontes.
Ao meu orientador, professor Dr. Marcos Antônio de Menezes pela confiança, paciência
e respeito ao longo deste processo. Agradeço também à professora Libertad Borges Bittencourt,
primeira orientadora desta pesquisa. Em nome destes professores agradeço ao Programa de Pós-
Graduação em História da Universidade Federal de Goiás, professores e servidores técnicos
pela dedicação, oportunidade e atenção.
Às minhas queridas amigas Regianny Monte, Mara Costa e Iara Guerra, que estiveram
presentes em todos os momentos desta trajetória, compartilhando as expectativas, angústias e
conquistas.
Aos funcionários das instituições em que pesquisei, em especial os servidores da Casa
Anísio Brito – Arquivo Público do Piauí, Academia Piauiense de Letras – Casa Lucídio Freitas
e Conselho Estadual de Cultura.
Agradeço também aos professores Dr. Ana Cristina Meneses de Sousa, Dr. Matheus de
Mesquita e Pontes, Dr. Pedro Pio Fontineles Filho e Dr. Raquel Machado Gonçalves Campos
pela disponibilidade e contribuições durante o Exame de Qualificação e a Defesa Pública deste
trabalho.
Por fim, agradeço ao Instituto Federal do Piauí, em especial ao campus Teresina Zona
Sul, por propiciar o investimento via licença-capacitação, fundamental para o desenvolvimento
desta pesquisa
RESUMO

Esta pesquisa apresenta o escritor piauiense J. Miguel de Matos (1923-2000) em suas atuações
no cenário cultural piauiense entre as décadas de 1960 a 2000. Conciliando sua atividade no
Exército Brasileiro com um esforço de erudição, este sujeito tornou-se escritor, editor e agente
cultural ao publicar um romance, inúmeros perfis biográficos e colaborar ativamente com a
imprensa local. Por meio de suas vivências, entendemos o que significa ser escritor e intelectual
no Piauí deste momento e como as ações dos intelectuais refletem disputas do meio social e
político. A inserção de J. Miguel de Matos no meio literário o levou a aspirar à imortalidade
acadêmica, empreendendo esforços para inserir-se na Academia Piauiense de Letras.
Analisamos como o poder simbólico desta instituição a constitui como um espaço de saber-
poder que, ao recrutar ou rejeitar escritores para os seus quadros, legitima textos, atuações e
comportamentos sociais. Articulando tradição e inovação, identificamos como a instituição
forja uma identidade para o Piauí, investindo na construção de uma memória literária e na busca
por distinção social. A pesquisa em fontes impressas (jornais, revistas e livros) nos aproximou
das potencialidades e limitações do cenário cultural piauiense, dos seus jogos de poder, de suas
estratégias de recrutamento pautados nas qualidades literárias e não-literárias e em como os
afetos, sobretudo os ressentimentos, interferem na escrita e nas ações dos sujeitos. As
discussões sobre memória e identidade, intelectuais e grupos literários, trocas simbólicas e
poder-saber nos ajudam a compreender como as disputas do meio cultural piauiense emergem
nos escritos de e sobre J. Miguel de Matos, forjando memórias sobre sujeitos, grupos e
instituições culturais.

Palavras-chave: História. Intelectual. Academia Piauiense de Letras. Literatura Piauiense.


Ressentimento.
ABSTRACT

This research presents J. Miguel de Matos (1923-2000), a writer from Piauí, and his activities
within the state cultural scene, in a time frame that starts in 1960 and reaches the year 2000.
Keeping a balance between his work for the Brazilian Army and his endeavor towards erudition,
this man became a writer, publisher, and cultural agent, after he published a novel, numerous
biographic profiles, and actively collaborated with the local press. Through his experience, it is
possible to understand what it takes to be a contemporary writer and scholar in Piauí and how
some of their initiatives echo the disputes involving social and political scenarios. J. Miguel de
Matos’ insertion into the literary milieu led him to aim for literary immortality, striving to be
admitted to the Academia Piauiense de Letras (Piaui’s Literature Academy). This analysis
centers around the way the Academy’s symbolic power is constituted as a power-knowledge
space that, while recruiting or rejecting writers for its board, legitimizes texts, performances,
and social behaviors. Articulation of tradition and innovation helped unveil how the institution
forges an identification for Piauí, as it invests in a literary narrative construct that seeks social
distinction. Printed sources such as newspapers, magazines, and books provided a closer
approach to Piaui’s cultural scene’s potentialities, limitations, power-plays, and recruiting
strategies grounded on literary and non-literary qualifications. It also sheds light on how
fondness and – most of all – resentment interfere with an individual’s writing and actions.
Discussion involving memory and identity, scholars and literary groups, symbolic exchanges,
and power-knowledge is crucial. They help understand how disputes in Piaui’s cultural scenario
emerge in both J. Miguel de Matos’ writing and what has been written about him, concocting
memories about individuals, groups, and cultural institutions.

Keywords: History. Scholar. Academy. Academia Piauiense de Letras. Resentment.


LISTA DE ILUSTRAÇÕES

Figura 1 – Liceu Piauiense: ano letivo 1939. ............................................................................. 55


Figura 2 – Espaços percorridos por J. Miguel de Matos .......................................................... 57
Figura 3 – Visita de D. Pedro de Orleans e Bragança ao Piauí, 1975 .................................... 142
Figura 4 – Arquivo UBE ........................................................................................................ 147
Figura 5 – Sede da Academia Piauiense de Letras ................................................................. 159
Figura 6 – Solenidade de entrega dos mantos acadêmicos ..................................................... 178
Figura 7 – Ata de Posse de J. Miguel de Matos ..................................................................... 202
Figura 8 – Tome Miguel o seu presente de Natal ................................................................... 203
Figura 9 – Cultura de luto com morte do escritor J. Miguel de Matos ................................... 312
Figura 10 – Lembranças de J. Miguel de Matos..................................................................... 314
Figura 11 – J. Miguel de Matos: um adeus............................................................................. 316
SUMÁRIO

1 INTRODUÇÃO ................................................................................................................................ 8

2 UMA IDENTIDADE EM CONSTRUÇÃO: J. Miguel de Matos migrante, militar e escritor 21


2.1 O menino da Rua do Molambo: a pobreza como um lugar de identificação ..................... 22
2.2 O menino da Rua das Pedras: a construção de um injustiçado .......................................... 37
2.3 De soldado-cidadão a militar-escritor: a construção de um jovem trabalhador ................. 64

3 DE ROMANCISTA A BIÓGRAFO: a construção de um intelectual .......................................80


3.1 O ficcionista J. Miguel de Matos ........................................................................................ 84
3.2 O jornalista J. Miguel de Matos........................................................................................ 100
3.3 O biógrafo J. Miguel de Matos ......................................................................................... 126
3.4 O confrade J. Miguel de Matos ........................................................................................ 137

4 ACADEMIA PIAUIENSE DE LETRAS: a instituição idealizada e vivenciada por J. Miguel de


Matos .................................................................................................................................................151
4.1 A Casa de Lucídio Freitas: um panorama de sua trajetória .............................................. 151
4.2 A Casa de Lucídio Freitas: os ritos da imortalidade ......................................................... 172
4.3 J. Miguel de Matos, candidato a imortal .......................................................................... 180
4.4 J. Miguel de Matos na Academia Piauiense de Letras ..................................................... 204

5 ESCRITA, MEMÓRIA E (RES)SENTIMENTOS: J. Miguel de Matos e a literatura piauiense


...........................................................................................................................................................217
5.1 J. Miguel de Matos: escritor piauiense ............................................................................. 220
5.2 J. Miguel de Matos e seus contemporâneos ..................................................................... 262
6 CONCLUSÃO ..............................................................................................................................289

REFERÊNCIAS ...............................................................................................................................294

ANEXO I - Repercussão do falecimento de J. Miguel de Matos na imprensa piauiense ..........312


ANEXO II – Discurso de posse do escritor Oton Lustosa na cadeira n° 05 da Academia Piauiense
de Letras ............................................................................................................................................320
8

1 INTRODUÇÃO

A noite de 18 de dezembro de 1973 representou para J. Miguel de Matos1 a


concretização de um sonho: o ingresso na Academia Piauiense de Letras. Militar aposentado
dedicado ao romance, ao jornalismo e à produção de antologias e perfis biográficos de escritores
e agentes culturais do Piauí, J. Miguel de Matos foi empossado na instituição cultural mais
antiga do Estado após amargar derrotas em campanhas realizadas nos anos de 1967 e 1971. As
campanhas amplamente divulgadas na imprensa, em livros e nas memórias de intelectuais
servem-nos de pretexto para a construção desta narrativa que investiga, por meio das produções
escritas de J. Miguel de Matos, os significados atribuídos ao pertencimento ao quadro de
imortais acadêmicos no Piauí.
A pesquisa se propõe a analisar na articulação entre biografia e prosopografia 2 a
trajetória intelectual deste escritor, procurando identificar através de seus textos como este
construiu-se como literato, pesquisador e como intelectual atuante nas questões de seu tempo.
Para além de uma investigação biográfica, procuramos identificar por meio de seus escritos as
motivações que o levaram a ambicionar o ingresso na Academia Piauiense de Letras 3 e os
significados de tornar-se um escritor imortal em uma sociedade com elevados índices de
analfabetismo. Na busca pela imortalidade acadêmica, este sujeito forjou comunidades
literárias e redes de sociabilidades que tornaram possíveis suas ambições.
Pesquisas que abordam as relações entre literatos e instituições culturais tornaram-se
possíveis na historiografia a partir da consolidação dos pressupostos teórico-metodológicos da

1
Literato, jornalista, antologista e biógrafo, José Miguel de Matos (de nome literário J. Miguel de Matos) nasceu
em Floriano em 1923 e faleceu em Teresina em 2000. Militar dedicado à prática literária e pesquisa biográfica foi
membro do Instituto Histórico e Geográfico do Piauí, da União Brasileira de Escritores – Secção Piauí e da
Academia Piauiense de Letras. Filiado ao Movimento de Renovação Cultural e fundador das revistas Mafrense e
Destaque. Sua produção bibliográfica é composta pela novela Brás da Santinha, do livro de memórias Pisando Os
Meus Caminhos e de obras dedicadas à análise da produção literária do Piauí, como Caminheiros da Sensibilidade,
Mosaico, Perfis e Antologia Poética Piauiense. Colaborou na imprensa piauiense escrevendo nos principais jornais
de Teresina como O Dia, O Estado, Folha da Manhã e Jornal do Piauí. Biógrafo, foi premiado em suas pesquisas
sobre Da Costa e Silva e Abdias Neves.
2
Durval Muniz apresenta as prosopografias como estudos que “[...] a partir do biográfico, se descreva o estrutural
e não o eventual [...]. Ao comparar vidas narradas, a prosopografia torna possível não apenas encontrar
regularidades culturais, sociais, econômicas, políticas, ideológicas atravessando e constituindo essas vidas, mas
encontrar as próprias regularidades no discurso que as informam e as transformam em biografias [...]”.
(ALBUQUERQUE JÚNIOR, Durval Muniz. O significado das coisas pequenas: história, prosopografia e
biografemas. In: AVELAR, Alexandre de Sá Avelar; SCHMIDT, Benito Bisso (org.). Grafia da vida: reflexões e
experiências com a escrita biográfica. São Paulo: Letra & Voz, 2012. p. 34.).
3
Fundada em 31 de dezembro de 1917, a Academia Piauiense de Letras (ou Casa de Lucídio Freitas) é referência
no cenário cultural piauiense por ser a instituição literária mais antiga ainda em atividade e por reunir em seus
quadros representantes de várias áreas de atuação cultural. Atualmente, a Academia Piauiense de Letras possui 40
sócios efetivos.
9

História Cultural. Ao dar visibilidade a novos sujeitos e ampliar a noção de fonte histórica, o
movimento tributário dos Annales forneceu novas perspectivas para o entendimento dos
posicionamentos e experiências dos sujeitos históricos. A interdisciplinaridade emerge como
prática que amplia o leque de atuação do historiador levando ao desenvolvimento de
metodologias de pesquisa que tornam possíveis a inclusão e (res)significação de temas como
poder, gênero, biografias etc.
Ao legitimar a construção de narrativas históricas que deslocam o centro das narrativas
do papel exercido por líderes políticos e da figura do Estado, a Nova História Cultural
possibilitou a emergência de análises que articulam cultura e política às disputas de memória e
jogos de poder daí resultantes. Compreendidas como espaço de disputa, as relações de poder
são dotadas de sentidos próprios construídos pelos sujeitos por meio de continuidades e
rupturas. Os jogos de poder que articulam disputas em torno de temáticas como memória,
identidade e legitimidade apresentam forte sentido social expresso em práticas, discursos e
sentimentos. Ao elegermos a trajetória de J. Miguel de Matos como objeto de pesquisa e escrita,
procuramos compreender, a partir das relações sociais vivenciadas por esse personagem, como
as disputas forjadas no interior do campo cultural se entrelaçam em seus escritos e forjam
memórias sobre sujeitos, grupos e instituições.
A fim de narrar as experiências de J. Miguel de Matos, de aspirante a acadêmico a
imortal reconhecido, o presente texto toma como referências as pesquisas desenvolvidas por
Sérgio Miceli4 e Renato Ortiz5 que analisam as motivações e, por conseguinte, as formas de
atuação dos intelectuais e instituições em sua relação com o poder público em busca de recursos
financeiros e legitimidade de suas práticas. Em projeto anterior desenvolvi pesquisa sobre como
as instituições culturais construíram um discurso em que se colocavam na dependência do poder
público.6 À época, analisei a aproximação da Academia Piauiense de Letras com o poder
público na gestão do governador Alberto Silva (1971-1975). O nome do escritor J. Miguel de
Matos emergia nas fontes a partir de duras críticas ao modelo adotado pelos acadêmicos.
Inicialmente, considerei seus discursos como de um antiacadêmico e, somente aos poucos,
percebi que suas críticas advinham de um lugar de fala específico: o de alguém que, frustrado
em virtude de tentativas de ingresso fracassadas na Casa de Lucídio Freitas, utilizava seus textos
como espaços de denúncias das práticas consideradas injustas e equivocadas dessa instituição.

4
MICELI, Sérgio. Intelectuais e classe dirigente no Brasil: 1920-1945. São Paulo: Difel, 1979.
5
ORTIZ, Renato. Cultura brasileira e identidade nacional. São Paulo: Brasiliense, 1985.
6
TORRES, Gislane Cristiane Machado. O poder e as letras: políticas culturais e disputas literárias em Teresina
nas décadas de 1960 e 1970. 2010. Dissertação (Mestrado em História do Brasil) – Universidade Federal do Piauí,
Teresina, 2010.
10

O fascínio causado pelas Academias de Letras junto aos intelectuais já se constitui como
objeto de estudo da historiografia brasileira. Em A Dança das Cadeiras: literatura e política na
Academia Brasileira de Letras7 (1896-1913), João Paulo Coelho de Souza Rodrigues analisa o
contexto de surgimento da Academia Brasileira de Letras, marcado pela existência de disputas
internas entre os sócios fundadores, bem como pelo patrocínio estatal, necessário para sua
implantação. Ao abordar o cotidiano da instituição, o autor destaca as rivalidades políticas
decorrentes de projetos literários diversos bem como os conflitos, negociações e compromissos
que envolviam a candidatura e escolha dos novos membros.
Alessandra El Far, em A Encenação da Imortalidade: uma análise da Academia
Brasileira de Letras nos primeiros anos da República (1897-1924)8, também explora o período
de fundação desta instituição centrando sua análise no impacto de seu surgimento junto aos
intelectuais da época. Destacando a ação de mecenas do Estado, Alessandra El Far aborda como
a Academia Brasileira de Letras ofereceu visibilidade social àqueles que se dedicavam às letras
por meio do reconhecimento das qualidades literárias e oportunidades de ascensão social. A
distinção social expressa no pertencimento à Academia Brasileira de Letras é explorada pela
autora como uma encenação marcada por simbologias que perpassam a escolha dos locais onde
sentar-se, o uso de trajes e acessórios para solenidades, bem como a escolha de quem profere
discursos de recepção.
As pesquisas de João Paulo Rodrigues e Alessandra El Far centradas nas tentativas de
compreender as sociabilidades e as relações de poder que permeiam o universo literário,
fornecem indícios sobre os jogos de representação e trocas simbólicas presentes no campo
cultural. Representações, trocas simbólicas e jogos de poder formam o pano de fundo de
pesquisas relacionadas à História Cultural. Ao entender a cultura como um espaço de
construção de práticas e discursos que forjam os comportamentos e aspirações sociais, esta
corrente historiográfica revisita temas como Cultura e Política estabelecendo entre eles relações
que extrapolam as simples disputas pelo poder, redimensionando-as ao buscar compreender o
que as motiva e quais as consequências dessas disputas.
Pesquisas como as de João Paulo Rodrigues e Alessandra El Far nos ajudam a entender,
por meio das experiências dos indivíduos, o significado de se pertencer a instituições culturais
e ampliam o debate sobre as funções sociais a elas atribuídas. Ao legitimar as práticas de seus

7
RODRIGUES, João Paulo Coelho de Souza. A dança das cadeiras: literatura e política na Academia Brasileira
de Letras (1896-1913). Campinas: Editora da Unicamp, 2001.
8
EL FAR, Alessandra. A encenação da imortalidade: uma análise da Academia Brasileira de Letras nos primeiros
anos da República (1897-1924). Rio de Janeiro: Editora FGV, 2000.
11

membros, instituições reconhecidas socialmente como a Academia Piauiense de Letras geram


nos indivíduos sentimentos de pertencimento ao constituírem um campo de produção definido
por Pierre Bourdieu como um sistema que

[...] tende a produzir ele mesmo suas normas de produção e os critérios de


avaliação de seus produtos, e obedece à lei fundamental da concorrência pelo
reconhecimento propriamente cultural concedido pelo grupo de pares que são,
ao mesmo tempo, clientes privilegiados e concorrentes.9

Sendo o campo uma instância que garante aos seus pares o reconhecimento e a
legitimidade de suas produções, Pierre Bourdieu afirma que o posicionamento frente às
normativas do grupo possibilita a distinção ou o anonimato cabendo àqueles que estão fora
deste adequar-se às suas normas e práticas a fim de tornar-se apto à participação.
Aspecto por vezes negligenciado nesse jogo de aspirações à imortalidade acadêmica são
as consequências oriundas das negativas de ingresso. Candidaturas vitoriosas são festejadas e
amplamente noticiadas. Mas o que acontece com aqueles que são derrotados? Nossa proposta
é redirecionar o olhar para as narrativas frustradas, as dificuldades e as rivalidades que marcam
o ingresso de sujeitos como J. Miguel de Matos. Mergulhar nas experiências deste escritor
possibilita-nos conhecer duas facetas dessa realidade: os posicionamentos e construções de
sentidos enunciadas pelo candidato inicialmente preterido nas eleições de 1967 e 1971 e que,
por meio de sua prática escriturística, deixa transparecer seus ressentimentos, além dos
posicionamentos do candidato vencedor que passará, a partir de 1973, a atribuir sentidos e
reconstruir versões sobre suas práticas.
J. Miguel de Matos acredita ser merecedor da distinção social proporcionada pela
imortalidade acadêmica. Filiado ao Movimento de Renovação Cultural estreia no mundo das
letras em 1958 com a obra Brás da Santinha, acolhida como inovadora pelos críticos da época.
As repercussões da obra, o gradativo reconhecimento conquistado com a participação na
imprensa local e a crença de que podia colaborar para retirar a Academia Piauiense de Letras
da função de simples executora de ações propostas pelo Estado forjam nele o desejo de
pertencer à Academia Piauiense de Letras. Oscilando entre o apoio e a rejeição de acadêmicos,
J. Miguel de Matos protagonizou entre os imortais da Academia Piauiense de Letras um dos
processos de ingresso mais tensos e demorados.
O que nos motiva para o estudo dessa trajetória não é o elogio das práticas desse sujeito
tampouco a análise de sua obra literária, mas sim, a tentativa de compreender por meio suas
práticas e posicionamentos o que motivou o sujeito J. Miguel de Matos a aspirar à imortalidade

9
BOURDIEU, Pierre. A economia das trocas simbólicas. São Paulo: Perspectiva, 2001. p. 105.
12

acadêmica. Para responder a essa inquietação, cumpre-nos conhecer e refletir sobre questões
como: Como a trajetória pessoal de J. Miguel de Matos impacta em suas escolhas literárias e
práticas intelectuais? Como J. Miguel de Matos inseriu-se no panorama literário piauiense entre
as décadas 1960 e 2000? Qual função social exercida pela Academia Piauiense de Letras no
meio intelectual e cultural do Piauí? Quais os critérios adotados pela Academia Piauiense de
Letras para recrutar ou rejeitar, distinguir com a imortalidade e legitimar os escritores que
participavam de seus quadros? Como a escrita de J. Miguel de Matos deixa entrever os desejos
por distinção, as disputas pela memória e os ressentimentos resultantes de suas práticas?
O delinear das especificidades da trajetória de J. Miguel de Matos articuladas às variadas
experiências sociais por ele vivenciadas, individualmente ou no diálogo com seus
contemporâneos, nos permitirão dar centralidade à sua trajetória. Entendemos que tal prática
justifica-se historicamente por oportunizar o acesso às experiências de um sujeito cuja memória
está obscurecida. Um sujeito astuto que utilizou a escrita de maneira habilidosa para construir
seu lugar social. Nesse sentido, o objetivo principal desta narrativa é compreender, por meio da
trajetória de J. Miguel de Matos, o lugar social distinto que a Academia Piauiense de Letras
ocupa e oferece aos seus sócios no campo literário piauiense, sobretudo entre as décadas de
1960 a 2000.
Para tanto nos propomos a traçar o perfil biográfico de J. Miguel de Matos e perceber
como este investiu em sua construção como homem de letras. Nos propomos também a
caracterizar a produção escrita deste sujeito tomando como ponto de referência suas produções
anteriores e posteriores ao seu ingresso na Casa de Lucídio Freitas. Para compreender o
significado simbólico e social da imortalidade acadêmica, delinearemos os posicionamentos e
as disputas entre imortais e não acadêmicos como formas de atribuir sentidos às suas práticas.
Nossa abordagem está centrada na investigação de textos escritos por este sujeito e por
seus contemporâneos no sentido de dar visibilidade a esta prática que podia, ou não, garantir a
seus formuladores o reconhecimento profissional e a conquista de distinção social. Como
instrumento de investigação histórica que possibilita produção de sentidos e circularidade de
ideias entre enunciadores e leitores, a escrita deve ser entendida em sua pluralidade posto que
é uma prática, uma representação da realidade e um mecanismo dotado de forte poder
simbólico. O conjunto dos textos escritos por J. Miguel de Matos pode ser entendido como uma
prática por meio da qual esse indivíduo constrói reflexões e posicionamentos a partir de
articulação entre o vivido e o compreendido, apropriando-se da realidade que o cerca a fim de
garantir um uso próprio.
Ao apontar as práticas como um dos elementos definidores da História Cultural, Roger
13

Chartier defende que estas

[...] tendem a impor uma autoridade à custa de outros, por elas menosprezadas,
a legitimar um projeto reformador ou a justificar, para os próprios indivíduos,
as suas escolhas e condutas. Por isso [a] investigação sobre as representações
supõe-nas como estando sempre colocadas num campo de concorrências e de
competições cujos desafios se enunciam em termos de poder e de
dominação.10

O conceito de prática ao ser utilizado para auxiliar o entendimento da produção de J.


Miguel de Matos nos permite compreender como o campo cultural piauiense está estruturado e
como este sujeito inseriu-se nas disputas de seu tempo. À medida que cada um desses
personagens elabora sentidos sobre suas atuações, estes passam a atuar como sujeitos
articulados em defesa de projetos comuns ou como sujeitos disputantes entre si.
As pesquisas de Roger Chartier dão suporte a esta narrativa pois este afirma que a
construção da História, tomando como pressuposto a Cultura e, no caso específico desta
narrativa, os sentidos atribuídos à produção literária, permite ao historiador o entendimento dos
jogos de representações que caracterizam as disputas entre as variadas práticas sejam elas
políticas, econômicas ou culturais. As representações que permeiam as visões de mundo que
construímos podem ser definidas como um “trabalho de classificação e de recorte que [estes]
produz[em e] as configurações intelectuais múltiplas pelas quais a realidade é
contraditoriamente construída por diferentes grupos que compõem uma sociedade”.11
As práticas e representações sociais conforme apresentadas por Roger Chartier não são
espontâneas, ou seja, estas partem de um lugar social e são historicamente datadas. As fontes
utilizadas para a construção deste texto nos permitem perceber, a priori, duas subdivisões na obra
de J. Miguel de Matos tomando como referência o ano se seu ingresso na Academia Piauiense de
Letras. Esta classificação proposta por nós é pautada na observação da forma, dos objetivos e das
temáticas presentes em obras de J. Miguel de Matos. Percebemos, por meio desta classificação
como o desejo de participação na Academia Piauiense de Letras afetou sua escrita.
Ao analisarmos essa prática, tomaremos como referência as reflexões de Michel de
Certeau em A Operação Historiográfica onde este afirma que os discursos e práticas dos
sujeitos estão marcados pelo lugar social exercido – ou desejado – por estes. Este lugar,
identificado entre outros como universidades, academias e igrejas se fazem presente na escrita
e nos comportamentos de seus membros impondo-lhes regras cujo seguimento é recompensado

10
CHARTIER, Roger. A História Cultural: entre práticas e representações. Lisboa: Difel, 1987. p. 18.
11
CHARTIER, Roger. À beira da falésia: a história entre certezas e inquietudes. Porto Alegre: Ed. UFRGS, 2002.
p. 73.
14

com espaço e legitimidade social. As instituições, ao apontar os caminhos que levam ao


reconhecimento social, fincam a posição social de seus membros relegando aos não-obedientes,
ou aos desejosos ainda inaptos, o não-lugar, a interdição.12
A aceitação das normas institucionais permite a inclusão dos sujeitos num conjunto de
práticas e comportamentos que, ao serem publicizados, dão a perceber o poder simbólico. Pierre
Bourdieu define esta habilidade como “poder de constituir o dado pela enunciação, de fazer ver
e fazer crer, de confirmar ou de transformar a visão do mundo e, deste modo, a ação sobre o
mundo, portanto o mundo”.13 Durante esta narrativa apresentaremos algumas formas através
das quais J. Miguel de Matos exerceu, na prática, o poder proporcionado pelo pertencimento à
Academia Piauiense de Letras. O que fica evidente, contudo é que o fato de ser acadêmico
imortal lhe garantirá um poder simbólico que o distingue de parcela significativa da população
piauiense semianalfabeta da época. Tal poder simbólico será manifesto quando este
compartilhará os espaços literários ocupados pela elite piauiense da qual esteve distante por
questões financeiras.
Os comportamentos assumidos posteriormente por J. Miguel de Matos possuem
semelhança aos apontados por Pierre Bourdieu em A Economia das Trocas Simbólicas.14 Os
conceitos apresentados pelo autor como característicos do contexto de disputas culturais são
úteis e norteiam nossa reflexão a fim de possibilitar o entendimento de como J. Miguel de Matos
inseriu sua escrita no campo de produção da Academia Piauiense de Letras e como, em função
do habitus, este traçou uma economia de práticas e trocas simbólicas por meio das quais exibiu
e exigiu de seus contemporâneos o reconhecimento de sua distinção social.
A busca por legitimação social para si e para seus textos é apontada na historiografia
como motivadora de práticas que mostram a variedade do processo histórico. Da cooptação de
homens de letras como as analisadas por Sérgio Miceli em Intelectuais e Classe Dirigente no
Brasil: 1920-1945 à construção de instituições e órgãos públicos visando ao atrelamento
político-ideológico da cultura, da construção de uma identidade nacional conforme estudado
por Renato Ortiz em Cultura Brasileira e Identidade Nacional, bem como nas obras de João
Paulo Rodrigues e Alessandra El Far, emergem ainda outras vias de entendimento da
articulação entre as instituições, os intelectuais e o poder público. Delineio aqui uma destas
práticas adotadas por J. Miguel de Matos que, por vontade própria, almejou a Academia
Piauiense de Letras por reconhecer nela um conjunto de práticas que se associavam às suas

12
CERTEAU, Michel de. A escrita da História. Rio de Janeiro: Editora Forense Universitária, 2007. p. 65-118.
13
BOURDIEU, Pierre. O poder simbólico. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2002. p. 14.
14
BOURDIEU, 2011.
15

definições de cultura e proporcionavam a atuação que este desejava para si. O fato de que esta
instituição se comportou historicamente como parceira do poder público parece ser somente um
dos motivadores das candidaturas de J. Miguel de Matos.
Tendo oscilado por algum tempo entre os papéis sociais de aspirante, candidato
preterido a candidato aceito, portanto acadêmico imortal, J. Miguel de Matos enunciou falas
distintas ao longo de sua trajetória. Michel de Certeau, ao formular o par conceitual estratégia-
tática, ajuda-nos a situar os posicionamentos do sujeito de nossa narrativa. Sendo uma prática
cujos sentidos podem ser compreendidos por meio de representações variadas, a escrita abarca
sentidos estratégicos e táticos dependendo das circunstâncias presentes no momento de sua
enunciação com a finalidade de manter posições ou propiciar mudanças sociais.15
O conceito de estratégia de Michel de Certeau refere-se a uma macropolítica nas
relações sociais e é apresentado como “o cálculo (ou a manipulação) das relações de forças que
se torna possível a partir do momento em que um sujeito de querer e poder (uma empresa, um
exército, uma cidade, uma instituição científica) pode ser isolado”.16 Em nossa pesquisa, os
sujeitos de poder foram identificados no interior da Academia Piauiense de Letras. Esses atuam
no âmbito cultural buscando definir um padrão de produção literária, pois detinham o poder de
nomeação dos códigos de sociabilidade e produção cultural. Convém destacar que, para Michel
de Certeau, o poder é relacional e está em disputa entre aqueles que desejam legitimar um
projeto e determinar homogeneidade nas práticas culturais.
Aqueles que desejam tornar-se sujeitos de poder possuem uma gama de opções para sua
atuação. A submissão às regras do campo de produção conforme apresentado anteriormente é
uma delas. Contudo, Michel de Certeau aponta como fundamental para a construção das
experiências históricas os movimentos de resistência entendidos como táticas que “segundo
critérios próprios, selecionam fragmentos tomados nos vastos conjuntos da produção para, a
partir deles compor histórias originais”.17 As táticas produzidas por aqueles que questionam a
existência de um modelo literário a ser valorizado, a atuação limitada de uma instituição e a
utilização de critérios alheios à qualidade literária como forma de consagração social são
utilizadas por diversos personagens e, embora não sendo homogêneas, são encaradas por seus
produtores como desviantes e astuciosas.
As táticas são definidas por Michel de Certeau como movimentos que buscam destruir ou
inserir-se no jogo de poder estabelecido formulando um novo mecanismo de poder, sendo então

15
CERTEAU, Michel de. A invenção do cotidiano: artes de fazer. Petrópolis: 1994.
16
CERTEAU, 1994, p. 99.
17
CERTEAU, 1994, p. 98.
16

uma “ação calculada que é determinada pela ausência de um próprio... tem que utilizar, vigilante,
as falhas que as conjunturas particulares vão abrindo na vigilância do poder proprietário... É
astúcia”.18 Os conceitos certeaurianos nos ajudam a perceber como em momentos distintos de sua
trajetória J. Miguel de Matos assumiu comportamentos estratégicos ou táticos. Sujeito
extremamente hábil na escrita, este a utilizará ora reivindicando para si o lugar social almejado
ora interessado em manter um discurso que o identifique como acadêmico imortal.
A dimensão da sensibilidade está presente na obra de J. Miguel de Matos. Considerando
que as fontes históricas dizem mais do que o aparente, pesquisas recentes têm apontado os
afetos e ressentimentos como importante campo de investigação para os historiadores. Na
produção escrita de J. Miguel de Matos, os ressentimentos afloram de forma tática, sendo
utilizado para adquirir visibilidade, angariar recursos e conseguir espaços para a veiculação de
suas produções. Compreender o papel desses sentimentos no interior das narrativas, torna-se
importante para compreender os posicionamentos dos indivíduos e as comunidades afetivas que
estes constroem.19
Os ressentimentos de J. Miguel de Matos afloram, ao se reconhecer como escritor
renovador e crítico coerente, especialmente no contexto das derrotas em virtude de tentativas
de ingresso na Academia Piauiense de Letras. Segundo Pierre Ansart, os sentimentos dos
homens devem ser observados em suas trajetórias, cabendo aos pesquisadores não se aterem
tão somente aos sentimentos ditos positivos, mas considerar também os medos, as angústias, as
frustrações, os desejos de vingança e as hostilidades ocultas que se revelam através de variadas
atitudes,20 pois essas emoções forjam práticas sociais, que procuram conquistar espaço, ao
serem reforçadas ou refutadas pelos indivíduos que as possuem, interferindo na construção da
identidade individual e dos grupos com os quais esses se relacionam.
Metodologicamente o conjunto da produção escrita de J. Miguel de Matos é
compreendido como um corpus documental heterogêneo em seu tempo e espaço de produção,
em relação às temáticas abordadas bem como a construção de sentidos e sensibilidades que
deixa entrever. Carregados de forte presença da afetividade do seu produtor, os textos não serão
tomados como a verdade sobre os acontecimentos e sim como uma possibilidade frente às
formas de representação da realidade. Ao analisarmos a produção de J. Miguel de Matos,
entendemos o ato de escrever como instrumento tático visando à valorização de suas práticas.

18
CERTEAU, 1994, p. 100-101.
19
ROSENWEIN, Bárbara H. História das emoções: problemas e métodos. São Paulo: Letra & Voz, 2011.
20
ANSART, Pierre. História e memória dos ressentimentos. In: BRESCIANI, Stella; NAXARA, Márcia (org.).
Memória e (res) sentimento. Campinas: UNICAMP, 2004. p. 15-36.
17

A necessidade de narrar suas fracassadas campanhas e valorizar seu esforço para adentrar a
Academia Piauiense de Letras pode ser apreendida, segundo Michel Pollack como algo capaz
de reforçar a construção de uma identidade.21 O conjunto de textos produzidos por J. Miguel de
Matos e seus contemporâneos são aqui tomados como fragmentos de memórias por meio dos
quais acessamos as variadas versões dos acontecimentos.
A valorização do indivíduo enquanto objeto de estudo da História possibilita aos
historiadores entender suas trajetórias de vida tomando por base relatos biográficos e
autobiográficos. Não sendo objetivo primordial dessa narrativa a construção da biografia do
sujeito pesquisado, acreditamos que, pelo teor de seus textos, a análise de suas produções
contribuirá para lançar luzes sobre seu protagonismo frente às disputas por cadeiras na
Academia Piauiense de Letras nas décadas de 1960 e 1970. A reflexão sobre a trajetória
biográfica de J. Miguel de Matos presente em seus textos será articulada ao momento de sua
produção pois acreditamos que, ao produzir escritas sobre si, este sujeito assume uma postura
reflexiva frente aos acontecimentos que o cercam, significando sua vivência. Nesse sentido,

[...] a construção do discurso que carrega a construção de si não pode ser


abstraída das formações históricas que regem a vida dos homens em sociedade
e, ao mesmo tempo, do modo como grupos constituem práticas de si, as quais
se traduzem nas representações do eu fixadas nos relatos.22

Nesta narrativa, a memória será entendida para além do ato de lembrarmas sim
articulada a uma função prática no sentido de construir identidades. Para Michel Pollack, “a
referência ao passado serve para manter a coesão dos grupos e das instituições que compõem
uma sociedade, para definir seu lugar respectivo, sua complementaridade, mas também as
oposições irredutíveis”.23 O ato de rememorar é compreendido como uma prática seletiva,
negociada e enquadrada utilizada com o objetivo de favorecer a identidade e a coesão social
dos narradores e das posições e posturas por eles vivenciadas.24
Os referenciais teórico-metodológicos aqui elencados, ao articular as noções de prática,
representação, estratégia, tática e poder simbólico, nos auxiliarão a entender como a escrita de
J. Miguel de Matos permite a compreensão do(s) significado(s) atribuído(s) à Academia
Piauiense de Letras. Sem esquecer que sua produção escrita é marcada pela construção de

21
POLLACK, Michel. Memória e identidade social. Estudos Históricos, Rio de Janeiro, v. 5, n. 10, p. 200-212,
1992.
22
MALATIAN, Teresa Maria. A biografia e a história. Cadernos Cedem, Marília (SP), v.3, n.1, p. 16-31, 2008.
p. 24.
23
POLLACK, 1992, p. 200-212.
24
POLLACK, Michel. Memória, esquecimento, silêncio. Estudos Históricos, Rio de Janeiro, v.2, n. 3, p. 3-15,
1989.
18

imagens positivas sobre si e suas ações, assumindo ressentimentos em momentos que lhe são
convenientes. Acreditamos que o debruçar-se sobre a produção de J. Miguel de Matos reforça
o entendimento de que são variadas as formas de representação, e estas encontram-se em
disputas constantes visando definir a dominação simbólica que um indivíduo sofre ou produz
no contexto em que vive. A forma como se opera a construção (ou não) de sua memória como
escritor na atualidade também perpassa o entendimento das disputas simbólicas vivenciadas no
presente pela instituição.
Ao refletir sobre o processo de construção do conhecimento histórico, Michel de
Certeau afirma que a operação historiográfica está articulada ao lugar social de seu produtor, a
uma prática tornada possível e compreensível pela mediação das técnicas resultando em uma
escrita em que é possível distinguir o lugar social e as práticas adotadas por aqueles que a
produziram e analisaram.25 Nesse sentido, eleger a fonte escrita como objeto de análise não
significa entendê-la como relato neutro por parte de seu produtor. A variedade de fontes
disponíveis ao pesquisador nos obriga a lançar sobre elas um olhar crítico pautado no
entendimento das motivações de seu produtor, do meio em que é veiculada e das relações de
poder e força que esta deixa transparecer.
A construção da trajetória de J. Miguel de Matos e de como seus escritos estão
marcados pelas disputas travadas no antes e depois de seu ingresso na Academia Piauiense de
Letras e passa obrigatoriamente pela análise de variado conjunto de textos produzidas por ele e
por indivíduos com os quais manteve relações. Entre estas fontes destacamos os livros
publicados por J. Miguel de Matos entre as décadas de 1960 e 1980 e as colunas e colaborações
nos periódicos locais ao longo de sua vida. O conjunto de textos que compõem sua atuação na
imprensa são importantes para delinear seus posicionamentos enquanto homem de letras que
atua num veículo de comunicação impresso. Convém destacar que dificuldades de conservação
no Arquivo Público do Piauí (Casa Anísio Brito) impossibilitaram o acesso a alguns momentos
da cronologia aqui proposta para análise.
Analisamos ainda seus relatos como editor, a partir de poucos exemplares da Revista
Mafrense disponíveis para consulta no Arquivo Público no Piauí. No que diz respeito à vida
institucional e as atividades de J. Miguel de Matos como acadêmico imortal analisamos as atas
de reuniões, a Revista da Academia Piauiense de Letras e o boletim informativo Notícias
Acadêmicas, textos que possuem exemplares disponíveis para consulta na sede da Academia
Piauiense de Letras e na Casa Anísio Brito.

25
CERTEAU, 2007.
19

Importantes meios de articulação com a produção de J. Miguel de Matos são os


comentários, críticas e elogios feitos a ele e às suas obras. Entre as décadas analisadas, os jornais
são a principal forma de atuação social dos intelectuais e, por meio deles, temos acesso ao
cotidiano da cidade, às disputas políticas e às atividades do meio literário local. Entre as fontes
hemerográficas analisadas, temos os jornais O Dia, O Estado, Jornal do Piauí, Folha da
Manhã, Estado do Piauí, Diário Oficial e O Liberal, espaços privilegiados para atuação de
literatos e demais escritores.
O jornal constitui-se como fonte útil para a História pois, além de apresentar o cotidiano
da cidade, abre espaço para atuação de colaboradores diversos. Contudo, o jornal não é uma
fonte neutra, imparcial e é necessário historicizá-la a fim de se compreender seus mecanismos
de produção, venda e distribuição, bem como os perfis políticos de seu proprietário, editor e
colaboradores. Os textos jornalísticos elencados para a construção desta narrativa, bem como
as revistas e boletins de notícias são entendidos como fragmentos de uma realidade, sendo
necessário seu entrecruzamento com outras fontes, somente assim teremos acesso às várias
visões sobre os acontecimentos.
Os periódicos Revista da Academia Piauiense de Letras e Notícias Acadêmicas bem
como os livros de atas da Academia Piauiense de Letras serão entendidos em sua dimensão de
fonte oficial cuja finalidade é a construção de uma imagem da instituição enquanto entidade
que fomenta a produção escrita no Piauí. Peter Burke chama atenção para os cuidados que o
historiador deve ter ao analisar documentos oficiais pois os “registros oficiais em geral
expressam o ponto de vista oficial. Para reconstruir as atitudes dos hereges e dos rebeldes, tais
registros necessitam ser suplementados por outros tipos de fontes”.26
Os livros de autoria de J. Miguel de Matos constituem-se como fontes privilegiadas de
análise pois são neles que o sujeito dessa pesquisa promove de maneira mais efetiva o processo
de construção de sua identidade enquanto homem de letras desejoso de participar da Academia
Piauiense de Letras, transformando o espaço de suas antologias em palco onde serão
explicitados seus afetos. Essa escrita que pode ser caracterizada pela falta de objetividade será
analisada como uma representação que atua no campo de disputa das economias simbólicas.
A fim de apresentar o escritor J. Miguel de Matos e Academia Piauiense de Letras para
em seguida compreender os significados de pertencimento a esta instituição e o lugar de deste
escritor no cânone literário piauiense, apresento as seguir como o texto está estruturado:
No capítulo 1 intitulado Uma Identidade em Construção: J. Miguel de Matos migrante,

26
BURKE, Peter (org.). A escrita da história: novas perspectivas. São Paulo: Unesp, 2011.
20

militar e escritor refletimos sobre a trajetória biográfica deste sujeito a partir de sua própria
narrativa memorialística e autobiográfica. Apresentamos o menino e o adolescente J. Miguel
de Matos em seu processo de escolarização e descoberta da cidade. Em seus relatos
identificamos atribuições de sentido praticados pelo narrador, já adulto, que deseja construir-se
como um predestinado às letras. As experiências profissionais, a construção de uma erudição,
em paralelo à sua atividade militar, constrói uma identidade na qual o escritor se inventa como
alguém que superou injustiças.
No capítulo 2 intitulado De Romancista a Biógrafo: a construção de um intelectual
acompanhamos seu processo de transformação de soldado-erudito para soldado-escritor.
Traçamos perfis de intelectualidade possíveis a fim de evidenciar o tipo de intelectualidade que
J. Miguel de Matos reivindicava. Neste capítulo caracterizamos sua produção em três vertentes:
ficcionista, jornalista e biógrafo, além de apresentarmos suas filiações institucionais.
Identificamos que seus esforços para construção de uma imagem de si como intelectual
unificam suas práticas.
No capítulo 3 intitulado Academia Piauiense de Letras: a instituição idealizada e
vivenciada por J. Miguel de Matos traçamos um panorama da Casa de Lucídio Freitas a fim de
compreender o seu lugar social e as estratégias utilizadas para seleção de seus sócios.
Refletimos sobre como esta exerce sua autointitulada missão de lugar de memória do
patrimônio literário piauiense. Neste capítulo acompanhamos o escritor J. Miguel de Matos em
suas expectativas e frustrações em relação ao ingresso na imortalidade acadêmica bem como a
instituição registrou sua prática como acadêmico imortal.
No capítulo 4 intitulado Escrita, Memória e (Res)Sentimentos: J. Miguel de Matos e a
Literatura Piauiense apresentamos como J. Miguel de Matos entende e insere-se no contexto
literário local. Apresentamos suas relações com seus contemporâneos a fim de compreender
como se processa, na atualidade, a construção de uma memória sobre este sujeito, suas obras e
suas práticas.
21

2 UMA IDENTIDADE EM CONSTRUÇÃO: J. Miguel de Matos migrante, militar e


escritor

Para o menino nascido em 29 de setembro de 1923 às margens do Rio Parnaíba na até


então denominada Rua do Molambo, em Floriano, sul do Piauí, a noite de 18 de dezembro de
1973 representou uma vitória. Alcançar a imortalidade acadêmica, depois de sete anos de
campanhas marcadas por apoios, construção e rompimentos de amizades e parcerias literárias,
além de inúmeras polêmicas que agitaram as páginas dos jornais do Estado significou, num
primeiro momento, a consagração definitiva para o escritor José Miguel de Matos. Esperava-se
que a cerimônia de posse pusesse fim aos questionamentos, rivalidades e ressentimentos que
floresceram ao longo dos anos entre o escritor e aqueles que resistiam em reconhecer sua
qualidade literária e suas habilidades sociais como escritor legítimo, distinto e agora, imortal.
Este texto não almeja ser um exercício laudatório da experiência de J. Miguel de Matos.
Deseja, contudo, acompanhar a trajetória desse sujeito e investigar seus escritos a fim de
compreender como estes nos ajudam a entender a configuração do cenário literário piauiense
entre as décadas de 1960 a 2000. Por meio desta personagem esperamos ser capazes de discutir
os valores, as práticas e os anseios de escritores (literatos e intelectuais) que, assim como J.
Miguel de Matos, tiveram dificuldades em ter suas escritas legitimadas e seu lugar social
reconhecido como representante distinto da literatura piauiense.
Por tratar-se de sujeito inserido em temporalidades e espaços distintos, esta narrativa
inicia-se recuando à infância dessa personagem posto que, em seus textos, é visível a tentativa
de apresentar esse período como o início de seus dilemas. Será na infância e, por conseguinte,
na adolescência, que o escritor identificará as injustiças e as superações que, segundo ele,
marcam sua trajetória. Investiremos nessa análise pois, tal como Nicolau Sevcenko acreditamos
que os temas e discussões propostas pelos escritores são um diálogo com seu tempo feito a
partir de suas memórias e expectativas.27
Para início desta discussão, nos aproximemos de J. Miguel de Matos, a partir de seus
textos autobiográficos, nos quais apresenta suas memórias. Por meio dessas narrativas

27
Ao discutir a relação entre literatos e a sociedade, Nicolau Sevcenko em Literatura como missão aponta que
“[...] o escritor tem a liberdade de criação, mas seus temas são sugeridos pela sua sociedade e pelo seu tempo, e é
destes que eles falam: a literatura é antes de mais nada um produto artístico destinado a agradar e comover, mas
como se pode imaginar uma árvore sem raízes [...]” (SEVCENKO, Nicolau. Literatura como missão: tensões
sociais e criação cultural na primeira república. São Paulo: Companhia das Letras, 1999. p. 20.).
22

identificamos acontecimentos que marcaram seus primeiros anos e como este registra o
momento em que se aproximou da literatura a ponto de, por meio de investimentos posteriores
em sua construção como homem letrado, ambicionar ocupar espaços e posições pouco comuns
para jovens de sua origem. Nestes textos, utilizando-se de sua habilidade com a escrita, J.
Miguel de Matos dá sentido às experiências por ele vivenciadas e exercita a construção de uma
imagem de si, em especial, quando reivindica um perfil intelectual capaz de fazê-lo figurar entre
os escritores distintos do Piauí.

2.1 O menino da Rua do Molambo: a pobreza como um lugar de identificação

José Miguel de Matos é o sétimo entre os onze filhos do casal Maria do Ó de Matos e
João Emídio de Matos. À época de seu nascimento, a cidade de Floriano figurava como um
importante entreposto comercial valendo-se da navegabilidade do rio Parnaíba para escoamento
de produtos como a maniçoba, cera de carnaúba, babaçu, algodão, etc.28 Com uma população
de 19.678 habitantes,29 a vida econômica da cidade baseava-se na agricultura e pecuária,
embora o incremento financeiro trazido com a exportação de produtos extrativistas tenha
modificado as atividades comerciais e a infraestrutura da cidade, sobretudo após a chegada de
imigrantes sírios e libaneses.
Os lucros obtidos com a produção e o escoamento da produção da borracha de maniçoba
propiciaram o início de um processo de modernização que alterou algumas estruturas de sua
sociedade. A interligação entre municípios por meio de novas estradas, o calçamento das
principais ruas da cidade e a inauguração da Usina Elétrica em 1924, modificaram o cotidiano de
grupos sociais ligados ao extrativismo e ao comércio. Contudo, na casa da Rua do Molambo em
que vivia J. Miguel de Matos a realidade era diferente. Filho de uma costureira e de um ourives,
herdeiros empobrecidos de famílias abastadas que, no passado, ocuparam funções públicas e
foram proprietários de terras, o lar dos Matos vivenciava dificuldades financeiras decorrentes, em
grande medida, do desregramento paterno que, segundo o filho escritor, levava vida boêmia,
muitas vezes distante de casa, apesar da pequena demanda por seus serviços de ourivesaria.
O menino Miguel cresce em meio a pobreza e, apesar das dificuldades financeiras, tem
uma infância marcada por interações e brincadeiras características de seu tempo. Em Pisando
Os Meus Caminhos: memórias da infância e da adolescência, J. Miguel de Matos relata

28
QUEIROZ, Teresinha de Jesus Mesquita de. A importância da borracha de maniçoba na economia do Piauí:
1900-1920. 1984. Dissertação (Mestrado em História do Brasil) – Universidade Federal do Paraná, Curitiba, 1984.
29
IBGE. INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA. Recenseamento do Brasil: realizado
em 1 de Setembro de 1920. Rio de Janeiro: IBGE, 1920.
23

acontecimentos que, segundo ele, são importantes para a compreensão de sua identidade. As
aventuras na beira do rio Parnaíba em momentos em que obedecia às ordens maternas de buscar
água para o consumo da família, as pescarias que motivaram mordidas de piranhas, o artesanato
com os frutos do pé de mulungu, o trepar no pé de umburana com o objetivo de esconder-se
das punições por pequenos furtos são registrados nesta obra escrita no contexto de sua primeira
derrota para Academia Piauiense de Letras.
Escrita pautada na memória com objetivo de construir uma imagem de si, a obra Pisando
Os Meus Caminhos está subdividida em 32 capítulos. Nela, J. Miguel de Matos rememora fatos
de sua vida até o ingresso no Exército em 1941 e narra episódios de sua infância vivida
inicialmente em Floriano e, posteriormente, Teresina, com destaque para descrições saudosistas
sobre as casas e ruas em que morou, evidenciando a pobreza e dificuldades financeiras da
família. Sobre sua infância, afirma J. Miguel de Matos:

Filho talvez do lar mais humilde da cidade de Floriano, nasci na madrugada


de 29 de setembro de 1923, na antiga Rua do Molambo, hoje de novo batismo
– ruazinha que seria palco, até os seis anos de idade, das traquinagens de um
menino irrequieto e estranhamente triste, que muita atribulação dava à sua
mãe, ora roubando os bolos de forno da Maria do Samuel, ora quebrando a
cabeça de um colega de vadiação, ora chegando em casa, alvoroçando o
coração de sua mãe, lavado de sangue, de cabeça quebrada, por ter recebido
vingança de um colega que já conhecera o peso de seu braço ou a violência de
sua dentada, compondo, muitos anos depois, transformado em poeta pelas
manobras do destino, para retratar aquela fase da infância sem freios.30

Tomada como fonte privilegiada para a escrita deste capítulo, a obra publicada em livro
em 1969, nos apresenta o menino Miguel idealizado pelo adulto J. Miguel de Matos e configura-
se como um exercício literário praticado com intuito de dotar de sentido suas práticas e
experiências. A escolha do que relatar e do modo como isto será posto em prática oferece aos
leitores informações sobre seus primeiros anos de vida, e, sobretudo, reflete as opções do autor
sobre qual imagem de si quer apresentar para seus contemporâneos e possíveis leitores. Ao
longo da obra, J. Miguel de Matos deixa claro que nem tudo que vivenciou pode ser narrado
por motivos que vão desde a fragilidade da memória em reter todas as experiências à opção
pessoal em registrar os fatos que mais lhe marcaram.
A estratégia adotada para a escrita deste capítulo pode ser encarada, sob o ponto de vista
da produção historiográfica, como um risco duplo. A proposta aqui é apresentar uma
personagem construída a partir de seu próprio texto, adotando, em muitos momentos, uma

30
MATOS, J. Miguel de. Pisando os meus caminhos: memórias da infância e da adolescência. Fortaleza: Ed.
Henriqueta Galeno, 1969. p. 32.
24

perspectiva cronológica. Contudo, as leituras dos textos de J. Miguel de Matos e o


entrecruzamento com outras fontes de pesquisa evidenciam um ponto pacífico entre os
estudiosos das ciências humanas: a inviabilidade da neutralidade narrativa. O sujeito que
emerge dessas narrativas é um sujeito que não revela exatamente a si, mas que apresenta
informações sobre si capazes de construir uma imagem coerente com seus objetivos. Tendo em
vista essas observações, acreditamos que nossas escolhas nos aproximam desse sujeito à medida
que nos familiarizamos com a imagem que J. Miguel de Matos deseja construir para si.
Em A Ilusão Biográfica,31 Pierre Bordieu apresenta ressalvas aos modelos biográficos
tradicionais, pautados na articulação vida e obra. O sociólogo francês critica as biografias e
autobiografias que apresentam as histórias de vida dos indivíduos como se elas formassem um
todo coerente e articulado, na qual os acontecimentos são encadeados de maneira lógica e
predefinida. Ao contrário disso, as experiências de vida são marcadas por encontros e
desencontros, sucessos e fracassos, expectativas e desencantos. As orientações de Pierre
Bourdieu balizam nossas reflexões sobre as histórias de infância e juventude que J. Miguel de
Matos apresenta aos seus leitores. No referido artigo, o autor propõe que as experiências dos
sujeitos e, por conseguinte as narrativas sobre estas, sejam retratadas para além da perspectiva
relato de uma vida, sendo entendida como uma trajetória, ou seja, que a vida dos indivíduos
seja entendida como reflexo das relações objetivas e subjetivas que este construiu com
indivíduos e instituições.
Metodologicamente, tomamos Pisando Os Meus Caminhos como fonte norteadora para
o início de nossas reflexões, por nos mostrar como o escritor adulto, distante da infância e
adolescência rememoradas, tenta construir uma imagem coerente e consistente de sua vida.
Todavia, é essa mesma estratégia que nos mostra um menino-adolescente incapaz de controlar
os acontecimentos ao seu redor, sobretudo incapaz de construir, por meio dessa narrativa, uma
imagem de si que o habilite aos espaços sociais almejados. Acompanhar cronologicamente as
etapas da vida desse indivíduo, a partir dos relatos que faz sobre suas dificuldades e conquistas
nos permite entender os esforços que empreendeu para apresentar-se e construir-se socialmente.
Acompanhar a cronologia infância-adolescência-vida adulta, embora remeta às práticas – e aos
riscos – das biografias tradicionais, é opção metodológica capaz de nos aproximar das imagens
que este escritor foi construindo sobre si ao longo de sua trajetória.
Apresentando-se como menino de aspecto triste, travesso e apegado a mãe, J. Miguel
de Matos apresenta-nos o cotidiano de um menino pobre em uma cidade do interior do Piauí.

31
BORDIEU, Pierre. A ilusão biográfica. In: AMADO, Janaína; FERREIRA, Marieta de Moraes (org.). Usos e
abusos da história oral. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2000.
25

Apesar de morar nas proximidades do rio Parnaíba, suas memórias registradas na fase adulta
de sua vida, não fazem menção à forte movimentação fluvial vivenciada nessa época. A
Floriano que aparece em seus relatos está distante daquela que começa a modernizar-se e,
embora seus textos remetam com carinho e saudosismo à Floriano da década de 1920, o escritor
optou por registrar a cidade que vivenciou de maneira afetiva e efetiva, tendo a rua como cenário
importante para suas ações, e isso pode nos remeter aos interesses do narrador em associar os
espaços e experiências vivenciadas à pobreza familiar. O distanciamento do pai, as travessuras
e a Rua do Molambo possuem lugar de destaque na construção de sua identidade, sobretudo
porque são instrumentos através dos quais este evidenciará seus ressentimentos, construir-se-á
como um sujeito que ao refletir sobre suas práticas, arrepende-se e justifica seus atos, bem como
evidenciará a pobreza que marcou sua infância e adolescência.
Seu pai João Emídio de Matos, o ourives João Machado, nasceu em 1868 sendo filho
do criador de gado conhecido como capitão Manuel Machado de Matos. Duas vezes viúvo, em
fins de 1906, o boêmio João Emídio une-se em matrimônio à Maria do Ó de Sousa, nascida em
1890 e filha do terceiro casamento de Honorato José de Sousa, capitão da Guarda Nacional,
falecido antes de seu primeiro mês de vida. Oriundos de famílias abastadas do sul do Piauí, a
realidade financeira de João e Maria do Ó diferia do prestígio conhecido por seus antepassados.
A diferença de idade entre os cônjuges não foi impedimento a união, realizada, a partir dos
relatos apresentados pelo autor por um encantamento entre os enamorados. Família constituída,
as dificuldades não tardaram a aparecer e a elas se refere J. Miguel de Matos a partir de
comentários, segundo ele feitos por sua genitora, sobre a origem dessa união:

[...] Esgalgado, fortemente amorenado pelo lado materno, cabeça miúda e


corpo vergado para frente como se andasse de pesado fardo às costas, olhos
castanhos e muito vivos, andar valseado, meu pai não tinha, para a exuberante
beleza de minha mãe, atrativos físicos que lhe pudessem apaixonar o coração.
Eis porque, um nosso parente por cognação, atirou à minha mãe esta pergunta
indiscreta: - Maria, por que você casou com o João Machado? ... Dando
resposta intencionalmente justificadora, não se fez de rogada, mesmo
sentindo, na indagação do parente, o acicate do mexerico: - O pai de João
Machado – Capitão Manuel Machado de Matos – fora muito rico, fazendeiro
de muitas posses... Morreu pobre, mas tinhas muitas cabeças de gado na
Manga... João andava sempre bem vestido em Floriano: terno de casimira
listrada, chapéu de palhinha, bengala de cabecete de metal amarelo girando
nos dedos bem tratados, parecia ocultar – só chegando eu muito tarde a esta
conclusão – na sua indumentária cerimoniosa, o triste ocaso de sua linhagem
o pai empobrecido pelo abuso do álcool ... E, dando à voz tom de amarga
censura: - Uni-me, pois, a um homem pobre, coisa muito do agrado, ainda
hoje, das suspirosas mocinhas [...].32

32
MATOS, 1969, p. 56-57.
26

O perfil traçado nas linhas acima apresenta o desencanto filial em relação à figura
paterna. Descrito ao mesmo tempo como homem carismático e de família distinta, João
Machado também é caracterizado como um boêmio empobrecido. A ênfase nesse último
aspecto é apresentada ao longo da obra como a origem dos problemas familiares. Ao registrar
as ausências da figura paterna, seja em viagens em busca de trabalho, seja em diversões que
muitas vezes levaram a constituição de novas famílias, o pai é visto como alguém incapaz de
garantir proteção e provisão do sustento familiar. A mágoa em relação ao seu genitor motiva
relatos que o descrevem ora como austero ora como relapso:

E cito essa obrigação para contar um fato que, se relembro agora, com meu
pai morto, sou tangido pela necessidade de mostrar a atitude de um chefe de
família e de um filho – meu genitor e eu – para exemplo daqueles que dele,
através destas memórias, vão travar conhecimento para não imitá-lo por
sensatez ou repeti-lo por imprudência, tal a repercussão negativa que ele pode
causar dentro dos lares. [...] Enquanto meu pai se mantinha fora, nas suas
longas ausências, tudo corria normal, pois minha mãe, sempre cândida,
perdoava as minhas diabruras e meus desleixos, coisas que meu pai, amigo da
disciplina e inimigo da responsabilidade, jamais deixaria sem punição.33

Ao afirmar que João Emídio era amigo da disciplina e inimigo da responsabilidade, J.


Miguel de Matos apresenta o pai como alguém que exigia respeito, sem entretanto, exercer as
funções historicamente atribuídas à figura paterna como provedor familiar34: tinha dificuldades
para com o sustento financeiro, não zelava pela segurança dos filhos e, em diversas passagens,
é retratado como exímio punidor de desobediências. Por outro lado, a mãe é apresentada em
uma aura de santidade, na função intermediadora entre o pai ausente e os filhos. Ao falar de sua
mãe, Maria do Ó, os ressentimentos em relação ao pai são substituídos por afeto e gratidão, em
relatos sobre como esta desdobrava-se para criar e educar os filhos e, sobretudo, pela relação
de cumplicidade estabelecida entre eles. Ao longo do texto, o autor faz questão de evidenciar o
papel desempenhado por sua mãe

E, na colcha de retalhos destas memórias de estranho colorido, minha mãe, no


perfil muito mal trabalhado pelo filho, vai aparecer constantemente, pois me
parece que a sua vida, mesmo simples como é, cheia de tanto sacrifício,
conforme vou expondo nesta narrativa, é um exemplo de amor de abnegação,
de heroísmo, de fé e de castidade, unindo-se a um homem – meu pai – que
talvez não tenha sabido ver [...] a santidade de sua alma [...] Por isso é que,
em capítulo especial, além de caminhar comigo em todas as linhas destas
relembranças.35

33
MATOS, 1969, p. 116-117.
34
PROST, Antoine. Fronteiras e espaços do privado. In: PROST, Antoine; VINCENT, Gérard (org.). História da
vida privada: da primeira guerra a nossos dias. São Paulo: Companhia de Bolso, 2009. P. 13-136.
35
MATOS, 1969, p. 50.
27

A relação entre mãe e filho tem centralidade em Pisando Os Meus Caminhos e o


narrador afirma que sua mãe é a validadora da veracidade de seus relatos. Construindo sua
imagem como bom filho, o autor relata como ajudava sua mãe em atividades diárias como
buscar água no rio, pescarias de última hora a fim de prover a alimentação, o zelo com a
reputação das irmãs virgens, etc. Maria do Ó, por sua vez, é apresentada como sua defensora
diante das injustiças e das travessuras por ele praticadas. E estas foram inúmeras ao longo de
sua infância e adolescência. É com certo orgulho que o autor relata suas peraltices, e afirma,
“nesta categoria, num conceito muito pessimista, devia ser, entre os moleques da Colônia, o
número um”36. As indisciplinas, atribuídas pelo adulto J. Miguel de Matos, à falta de orientação
paterna tiveram Maria do Samuel como uma de suas vítimas preferenciais.
Em diversas passagens da obra o autor refere-se ao velho Samuel, pequeno comerciante
da Rua do Molambo. Sua esposa, Maria, é apresentada como exímia cozinheira a quem os
meninos desocupados da região costumavam enganar em seus momentos de descanso. Um
desses momentos é relatado a seguir:

Maria, sua mulher, mostrando mais tino comercial e interesse pela venda,
fazia, todo o santo dia, para melhorar a renda, gostosos bolos de cariri, que
tiravam a paz das minhas narinas e matavam a fome da minha barriga. Mal
esfriava o forno bojudo de boca enorme, Maria do Samuel, como era batizada
pela negrada da Rua do Molambo, de látego na mão como um régulo de
senzala, assistia impassível, já acumulando ódio para explodir logo depois, o
assamento e a retirada dos bolos ainda quentes do interior do ovalado engenho.
Burlando sua vigilância através de uma estratégia sempre urdida por mim,
roubávamos com pedaços de talos de buriti, temerosos de um desastroso
flagrante, os bolos que por olvido ficavam metidos nas cinzas quentes, e
saíamos saltitantes e alegres pela Rua do Molambo, gozando o cochilo da
mulher do Samuel. Porém, muitas vezes, surpreendido no ofício que o diabo
me ensinava em aulas diárias e proveitosas da madrugada da minha vida,
recebi na pele jovem e queimada de sol chicotadas tão cruéis da dona dos
cariris, na sua fúria de carrasco insultado, que era forçado a passar muitos dias,
cheios de verecúndia, sem cuidar da profissão que, graças a Deus, ficara na
infância solerte e despreocupada.37

Os furtos praticados a Maria do Samuel são apresentados como motivo de vaidade para
o articulador de travessuras. Nesses momentos, o escritor rememora uma infância livre e
coloca-se em posição de liderança diante das brincadeiras e pequenos delitos. Contudo, na
perspectiva do adulto que volta o olhar sobre o seu passado a fim de relatar acontecimentos
considerados importantes, estes furtos ganham novos sentidos a ponto de o narrador pedir
perdão e mostrar as lições aprendidas. A violência decorrente de castigos por tais indisciplinas

36
MATOS, 1969, p. 65.
37
MATOS, 1969, p. 37.
28

é tomada como elemento formador de seu caráter pois, segundo J. Miguel de Matos, estas
práticas ficaram restritas à sua infância em Floriano. Percebe-se também uma autoindulgência
oriunda, possivelmente, do desejo de apresentar uma imagem positiva de si, que o leva a
justificar seus atos atribuindo-os a fome e a falta de orientação paterna.
Ao enunciar nas páginas iniciais da obra que “não guardo, por sovinice de memória,
muita coisa da minha infância que vai ficando cada vez mais longe e mais querida, a não ser
fatos que fenderam a minha sensibilidade ou a de meus familiares...”,38 o escritor informa-nos
que sua memória guardou acontecimentos potencialmente traumáticos e que, para os fins
estabelecidos em sua da narrativa, serão estas que, selecionadas voluntariamente, nos
apresentarão sua trajetória de vida. O autor demonstra perceber que os relatos pautados em
memórias não são um resgate do passado, mas lembranças voluntárias e involuntárias de
acontecimentos corriqueiros ou significativos. Ao discutir o papel da memória nos processos
de construção das identidades, Michel Pollak afirma que estas são o produto de uma narrativa
voluntária definida como “prática seletiva, negociada e enquadrada utilizada com o objetivo de
favorecer a identidade e a coesão social dos narradores e das posições e posturas por eles
vivenciadas”.39
As metodologias sobre os usos da memória apresentadas por Michel Pollak e autores
com Maurice Halbwachs, Pierre Nora, Jacques Le Goff redimensionaram o ofício dos
historiadores que, ao debruçarem-se sobre relatos que tomam a memória como ponto de partida,
não a encaram, apenas, como uma fonte parcial. Levando-se em consideração os investimentos
pessoais dos narradores em construir relatos sobre si, as escritas memorialísticas e
autobiográficas ganham potencialidade entre os historiadores à medida que se percebe que tais
fontes evidenciam os esforços de seus produtores em atribuir sentidos, positivos ou não, sobre
suas experiências e trajetórias.
Os estudos sobre as dimensões da memória e seus usos como fonte para as ciências
humanas chamam atenção para o caráter subjetivo do ato de lembrar. O ato de rememorar não
é entendido como algo involuntário e dotado de verdade inata, mas sim como uma
representação capaz de forjar discursos e práticas marcadas pelo lugar social dos sujeitos. Os
afetos, os ressentimentos, as disputas de poder, as tentativas de legitimar ou desqualificar
indivíduos e atitudes estão presentes nas narrativas autobiográficas. Os relatos construídos por
J. Miguel de Matos em Pisando Os Meus Caminhos, possibilitam que seus relatos sejam
entendidos como memória individual, voluntária, construída a partir de interesses e motivações

38
MATOS, 1969, p. 32.
39
POLLAK, 1989, p. 3-15.
29

do presente, mas também como espaço de representação e de construção de si, além de um lugar
social capaz de articular sujeitos, experiências e temporalidades. Os discursos que emergem a
partir dessas perspectivas fazem da escrita deste escritor um lugar de construções e disputas.
Em A Ordem do Discurso, Michel Foucault apresenta a escrita como possibilidade
material de construção discursiva. Em suas obras, este filósofo argumenta que a realidade vivida
é construída a partir dos discursos, e é na articulação e disputas entre eles que as relações sociais
estão estabelecidas. Michel Foucault defende que, por meio dos discursos, indivíduos e
instituições tentam dominar e dar sentido a acontecimentos que, por natureza são descontínuos,
desordenados e potencialmente perigosos. Por esta razão, os discursos que permeiam as
relações sociais e tornam-se visíveis por meio de narrativas são constantemente alvos de
procedimentos de exclusão, controle e delimitação. Para Foucault,

O discurso nada mais é do que a reverberação de uma verdade nascendo diante


de seus próprios olhos; e quando tudo pode, enfim, tomar a forma do discurso,
quando tudo pode ser dito e o discurso pode ser dito a propósito de tudo, isso
se dá porque todas as coisas, tendo manifestado e intercambiado seu sentido,
podem voltar à interioridade silenciosa da consciência de si.40

É na disputa entre o que e como algo pode ser dito e o que deve ser interdito, suprimido
ou limitado que as relações sociais são construídas e dadas a entender. Para Michel Foucault, a
realidade é um emaranhado de narrativas, nas quais as personagens disputam protagonismos.
A escrita, como uma das formas de manifestações dos discursos também deve ser entendida
como espaço de construção e disputa.
Em Discurso e Mudança Social, Norman Fairclough amplia as discussões sobre as
potencialidades do discurso no contexto das transformações sociais. O linguista apropria-se dos
pressupostos foucaultianos sobre as condições que possibilitam a emergência dos discursos e
amplia a análise defendendo que os discursos, escritos ou não, sejam entendidos em três
aspectos: como texto, como prática discursiva e como prática social. Articulando essas
dimensões, Fairclough defende que as análises dos discursos devem levar em conta suas
características linguísticas, os processos de produção e interpretação dos textos, bem como o
impacto destes no contexto social. O autor defende que as mudanças sociais processam-se no
interior dos discursos, por isso faz-se necessário analisá-los, sobretudo no potencial de
construção identitária que nele está contido.41

40
FOUCAULT, Michel. A ordem do discurso. São Paulo: Edições Loyola, 2014. p. 46.
41
Norman Fairclough distingue três aspectos constitutivos do discurso: o identitário, o relacional e o ideacional.
A função identitária diz respeito a como as identidades são estabelecidas no interior dos textos. A função relacional
considera conta como as relações sociais entre os participantes são representadas e negociadas no interior dos
discursos. Por fim, a função ideacional diz respeito a como os textos significam o mundo e seus processos,
30

Nesse sentido, os textos de J. Miguel de Matos são tomados como discursos, ou seja,
como instrumentos através do qual o escritor constrói a identidade que deseja difundir sobre si,
ao tempo que também por meio destes, deseja promover uma mudança social que o eleve aos
lugares sociais que, segundo ele, lhes são interditados. Ao nos debruçarmos sob a forma como
J. Miguel de Matos constrói relatos sobre sua infância e adolescência – prática retomada em
outras obras do autor – percebemos como ele articula narrativas sobre o passado e o presente
nos permitindo compreender as tramas através das quais ele construiu suas representações de
mundo e forjou sua identidade a partir dos lugares sociais por ele ocupados. O registro de
acontecimentos de seu passado, trazidos à luz através da rememoração é uma das estratégias
utilizadas por este escritor em sua construção discursiva.
Sobre as possibilidades do uso da memória como fonte histórica, Jacy Seixas nos chama
atenção para o fato de que

A memória age “tecendo” fios entre os seres, os lugares, os acontecimentos


(tornando alguns mais densos em relação aos outros), mais do que
recuperando-os, resgatando-os ou descrevendo-os como “realmente”
aconteceram. Atualizando os passados – reencontrando o vivido “ao mesmo
tempo no passado e no presente” – a memória recria o real; nesse sentido, é a
própria realidade que se forma na (e pela) memória.42

Ao tecer fios entre pessoas, lugares e acontecimentos, a memória e vista como algo
individual e afetivo. Em Pisando Os Meus Caminhos, J. Miguel de Matos deseja apresentar-se
como alguém que superou dificuldades e as lembranças de situações difíceis, de supostas
injustiças objetiva sensibilizar o leitor para a legitimidade das aspirações do escritor. O projeto
de atrair atenção para sua trajetória, para suas reivindicações e para a forma como estes são
acolhidos pelos diversos grupos pauta-se em relatos sobre sua singularidade, advinda de sua
capacidade de superação da pobreza e das injustiças. J. Miguel de Matos faz uso da escrita
memorialística e autobiográfica como se ela pudesse garantir, no presente e no futuro, as
reparações para os sofrimentos vividos e apresentados por meio da narrativa.
J. Miguel de Matos acredita que por meio de seus relatos memorialísticos nos
apresentará sua identidade, o seu eu verdadeiro. Essa crença parte da própria concepção de
verdade biográfica e autobiográfica vigente à época em que o texto foi escrito. Além disso, J.
Miguel de Matos considera-se um indivíduo com identidade acabada, portanto imutável. A

entidades e relações. É nessa articulação que apoia-se o título da obra, que defende o discurso como mecanismo
capaz de modificar, e ao mesmo tempo refletir, as estruturas sociais. Cf. FAIRCLOUGH, Norman. Discurso e
mudança social. Brasília: Editora UNB, 2015. p. 95-96.
42
SEIXAS, Jacy Alves. Percursos de memória em terras de História: problemáticas atuais. In: BRESCIANI, Stella;
NAXARA, Márcia (org.). Memória e (res)sentimentos: indagações sobre uma questão sensível. Campinas: Ed.
Unicamp, 2004. p. 51.
31

ilusão biográfica sobre o qual Pierre Bourdieu nos alerta permite enxergar em seus textos um J.
Miguel de Matos idealizado por seu escrito e analisar a potencialidade de suas narrativas como
fontes históricas buscando compreender suas motivações para a escrita e o que elas revelam
sobre as experiências e expectativas desse sujeito nesse momento específico de sua trajetória.
Pisando Os Meus Caminhos caracteriza-se por seu teor autobiográfico, regido por
aquilo que Phelippe Lejeune denomina de pacto, em que a validade do narrado advém do
reconhecimento por parte do leitor de uma identidade entre as figuras do autor, narrador e
personagem.43 A verdade do que é relatado só é perceptível e validada enquanto tentativa por
parte do autor de dotar de coerência a sua existência. Embora evidencie que a memória é algo
traiçoeiro, quando da apresentação das motivações para sua escrita, J. Miguel de Matos
compromete-se, logo nas páginas iniciais, com a verdade e afirma:

Ao escrever este trabalho de memorização, lutando desesperadamente contra


as emoções que me são muito fáceis, atendo não só a insistentes rogativas de
amigos mais chegados e de familiares mais íntimos, como ao desejo ardente
de contar, valendo-me da verdade, a trepidante história da minha vida pelos
caracteres das letras – ora balsâmicos, ora dolorosos; ora mansos como uma
prece, ora violentos como uma catadupa; ora sublimes como uma palavra de
perdão, ora cruéis como uma acusação injusta.44

Tal como os diários íntimos e correspondências, as autobiografias constituem um corpus


documental caracterizado como autorreferencial ou escritas de si. Registros de atos cotidianos
ou relatos pautados na memória, tais fontes constituem-se como um suporte onde indivíduos
interpretam, confessam, justificam, inventam e constroem sentidos sobre suas experiências.
Aos historiadores interessados em suas análises convém questionar não a veracidade do narrado
mas como esses relatos são um esforço de construção identitária por parte do seu produtor,
momento em que esses indivíduos empenham-se para obter uma finalidade prática para si
através de seus textos, ou seja, responder ao questionamento básico: como o que foi vivido até
o presente os transformou no sujeito no que ora são?
Sendo originalmente um exercício de si para si, embora posteriormente tenham se
convertido em objeto de consumo do grande público, as escritas de si (diários, autobiografias,
correspondências, etc) impõem uma nova relação entre verdade, saber e poder. Michel Foucault
ao discutir a construção de escritas de si ainda na Antiguidade aponta que tais textos tinham
entre suas finalidades o estabelecimento de vínculos identitários, buscando atenuar os perigos
da solidão mas também um uso disciplinador, pois ao serem pautados na verdade exigiriam de

43
LEJEUNE, Philippe. O pacto autobiográfico: de Rousseau à internet. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2014.
44
MATOS, 1969, p. 29.
32

seus formuladores condutas aceitáveis e relatos transparentes destinados ao autoconhecimento


ou autopunição.45 Contardo Caligaris, ao refletir sobre o estatuto da verdade presente em tais
textos, afirma que a escrita de autobiografias a partir do século XVIII coincide com a
emergência da modernidade ocidental na qual o sujeito organiza sua visão de mundo através de
suas narrativas. O advento da modernidade alterou o estatuto da verdade, sendo esta encontrada
não apenas em comprovações materiais, mas presente no indivíduo que autentica sua validade
em suas falas e comportamentos, posto que nesse contexto, “as condições de enunciação de
uma mensagem se tornam tão importante quanto, ou mais importantes que, a mensagem
mesma”.46
Ainda sobre os primeiros anos vividos por J. Miguel de Matos na cidade de Floriano,
Pisando Os Meus Caminhos nos apresenta a Rua do Molambo, atual Rua Sete de Setembro.
Rememorada de maneira afetuosa pelo narrador, este espaço é tido como território privilegiado
para as sociabilidades infantis e recordações do homem adulto. O investimento pessoal em
associar a sua origem familiar aos sentidos atribuídos a molambos, tecidos ora apreciados que
perderam utilidade e relevância, revelam a associação que o autor faz de sua família como
pessoas decadentes que perderam ao longo dos anos, sua posição social.
Nas memórias de J. Miguel de Matos, a Rua do Molambo significa a experiência de
mundo do menino que nela viveu até os seis anos de idade. Nessa rua, caminha ao levar os
recados de sua mãe, brinca, faz diabruras e encontra os amigos. Palco de suas traquinagens, a
Rua do Molambo da década de 1920 é apresentada como uma via periférica de Floriano,
habitada por famílias humildes, distantes do processo de urbanização e modernização que a
cidade começava a vivenciar. A rua é assim descrita por J. Miguel de Matos

No meio da rua, dividindo a artéria em duas partes iguais no sentido de sua


largura, um enorme pé de tamarindo, que um homem não abraçava, dava
sombra aos que precisavam de um ligeiro descanso, asilo aos passarinhos que
pousavam, para rápido repouso das asas, e fartava com seus frutos azedos os
moleques rueiros, de que era ponto de reunião a Rua do Molambo, além de
enfeitar com a sua imensa copa aquele pedaço do chão de Floriano, distante
poucos metros da lâmina líquida do Rio Parnaíba.47

Lugar de brincadeiras e reuniões de meninos desocupados, dos quais J. Miguel de Matos


se dizia mentor, esta rua marcou sua trajetória. Desde os primeiros textos publicados na
imprensa local, o autor fez questão de dizer de onde vinha e lamentar o processo de mudança

45
FOUCAULT, Michel. Ética, sexualidade e política. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2010.
46
CALIGARIS, Contardo. Verdades de autobiografias e diários íntimos. Estudos Históricos, Rio de Janeiro, v.
11, n. 21, p. 47, 1998.
47
MATOS, 1969, p. 61.
33

de sua nomenclatura. Antes mesmo de tornar-se livro, Pisando Os Meus Caminhos teve
algumas de suas partes publicadas em colunas assinadas pelo autor nos jornais de Teresina48 e
o investimento na identificação como “filho da Rua do Molambo” foi tornando-se constante e
reconhecido por seus contemporâneos. Para este lugar, J. Miguel de Matos dedica um dos
poucos versos que compôs49 constituindo-se como um lugar de memória e identificação para
seu narrador.50
Esta pequena parte de Floriano aparece como palco e como limite para o mundo por ele
conhecido. É o lugar das lembranças doces e amargas de sua infância, que assim aparecem em
suas memórias

Não me ocorre que eu tenha pervergado outras ruas de Floriano na infância –


seja para dilatar o raio de ação das minhas traquinagens, seja para recados
domésticos, parecendo mesmo que eu, de pernas curtas, permaneci insulado,
seis anos, na Rua do Molambo, dividindo o meu tempo com os frutinhos
vermelhos dos meus pés de mulungu, com os galhos retorcidos do meu
atrofiado pé de umbu, com o meu pé de tamarindo, cujo chão paterno foi
ensopado com o sangue de Maria da Cruz, com a minha lagoa inçada de
piranhas e também com uma ponte de madeira que rangia sob os meus pés e
que guardava com zelo de mãe, um fio d’água que caminhava, silencioso e
tardio na direção do Rio Parnaíba.51

Mais que uma via pública, um elemento da cidade, a Rua do Molambo é entendida como
um lugar de memória que guarda o mundo experimentado por um menino e seus amigos que,
imersos na pobreza e simplicidade das atividades cotidianas, ainda não conheciam o mundo para
além de suas esquinas. Pierre Nora, ao discutir sobre as nuances que perpassam a história, a escrita
historiográfica e a memória, apresenta-nos o conceito de lugar de memória, definindo-o como
espaço que “vive de sua aptidão para metamorfose, no incessante ressaltar de seus significados e
no silvado imprevisível de suas ramificações”52. De natureza múltipla, tais lugares são expressões
de trajetórias e experiências vivenciadas e, mesmo tendo ficado no passado, permanecem vivas

48
Coluna Pisando Os Meus Caminhos, assinada por J. Miguel de Matos circulou, de maneira espaçada, no jornal
O Dia entre março e maio de 1967.
49
Constantemente identificado como poeta, o corpus documental reunido para esta pesquisa é composto por apenas
três poesias atribuídas a J. Miguel de Matos: uma sobre a Rua do Molambo e a segunda intitulada “Natal
Apocalíptico” e “O Natal do Menino Jesus”. Eis a poesia sobre a Rua do Molambo: “A Rua do Molambo, a casa
antiga / Onde nasci para a liça da existência, / Meu pai, bondoso, separando a briga / Que eu arranjava com
penitência...”. Cf.: MATOS, 1969, p. 33.
50
Característico da paisagem piauiense o rio Parnaíba é presença marcante em obras (literárias ou não) de grande
parte dos escritores do Estado. Contudo, nos textos de J. Miguel de Matos, o rio Parnaíba não figura como fonte
de inspiração, mas adquire uma dimensão prática: é cenário de brincadeiras, via de locomoção, fonte de
alimentação. O investimento identitário narrativo privilegiado por este escritor dá-se com a rua e com os espaços
escolares, possivelmente resultantes de sua estratégia de construção de sujeito pobre mas predestinado às letras.
51
MATOS, 1969, p. 33-34.
52
NORA, Pierre. Entre memória e história: a problemática dos lugares. Projeto História, São Paulo, n. 10, p. 22,
dez. 1993.
34

no imaginário dos indivíduos. Sobre os lugares de memória, Nora diz

Os lugares de memória são primeiramente, lugares em uma tríplice acepção:


são lugares materiais onde a memória social se ancora e pode se apreendida
pelos sentidos; são funcionais porque têm ou adquiram a função de alicerçar
memórias coletivas e são lugares simbólicos onde essa memória coletiva, vale
dizer, essa identidade se expressa e se revela. São, portanto, lugares
carregados de uma vontade de memória. Longe de ser um produto espontâneo
e natural, os lugares de memória são uma construção histórica e o interesse
que despertam vem, exatamente, de seu valor como documentos e
monumentos reveladores dos processos sociais, dos conflitos, das paixões e
dos interesses que, conscientemente ou não, os revestem de uma função
icônica.53

Na topografia da cidade, a rua representa um lugar de movimento que articula pessoas


e serviços públicos. Em Pisando Os Meus Caminhos, a Rua do Molambo emerge para além de
sua funcionalidade, adquirindo materialidade ao interligar, de maneira simbólica o passado e o
presente de J. Miguel de Matos. Não é mais um lugar vivido, é um lugar rememorado para o
qual recorre o narrador a fim de construir sua identidade. O apego a nomenclatura reflete um
saudosismo, um território seguro para seus afetos e saudades. Contudo, as críticas feitas por J.
Miguel de Matos em relação à mudança do nome da via evidenciam que este escritor faz uso
político de suas memórias, no qual este apresenta-se como alguém que foi lesado em sua
identidade com a nova denominação.
Em meados dos anos 1930 a Rua do Molambo foi renomeada para Rua Sete de
Setembro. Substituir o termo “molambo” que remete a ideia de precariedade de um lugar de
passagem de tropas esfarrapadas que cruzavam o Parnaíba54 por uma nomenclatura associada a
uma data cívica nacional, pode ser entendido como um elemento do processo de modernização
e urbanização da cidade. O desejo dos gestores em ressignificar a cidade e seus espaços ao
inseri-los na história nacional são apontados como motivadores desta mudança. Segundo Eric
Hobsbawm e Terence Ranger, essa é uma das maneiras pelas quais o culto à nação, o ideário
cívico inserem-se no cotidiano popular. Por meio dessas representações e simbologias, temos
então personagens, acontecimentos e datas que legitimam um passado histórico e que se
inventam tradições nacionais.55 Embora seja um militar, J. Miguel de Matos não se furta à
crítica a este processo, apelando para a frieza afetiva da nova nomenclatura. Em textos
publicados no jornal O Dia, assim se posiciona

53
NORA, p. 21-22, 1993.
54
DIAS, Eisenhower. “Se essas ruas, se essas ruas fossem minhas...”. A rua do Mulambo. Disponível em
https://aruadomulambo.blogspot.com/2016/11/se-essas-ruas-se-essas-ruas-fossem.html?m=1. Acesso em: 28 jul.
2020.
55
HOBSBAWN, Eric; RANGER, Terence. A invenção das tradições. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1997.
35

Esta, a “Rua do Molambo” da minha infância sem Papai Noel, que os homens,
por ordem de uma toponímia que eles mesmos inventaram, mudaram-lhe o
nome para Rua Sete de Setembro, mas que o povo da minha terra, por preguiça
mental ou por revide, taxaram-na, apenas de “Rua Sete”, valendo dizer, em
nome do meu amor de filho e da minha razão de homem, que a emenda foi
pior do que o soneto. Para mim continua sendo “Rua do Molambo”, que
guarda, zelosamente, a casa em que nasci, deplorando a ausência do meu pé
de mulungu e do meu pé de tamarindo, que uns homens arrancaram dizendo
que era pra cidade ficar mais bonita... No seu grotesco conceito de beleza,
naturalmente...56

Tristeza por um passado perdido, ironia pelo desrespeito da população para com a nova
denominação e crítica ao mal gosto dos administradores públicos aparecem no trecho
destacado. Podemos inferir que há um certo temor por parte de J. Miguel de Matos de que tal
mudança refletisse na identidade que desejava construir para si. Assim como as mudanças
políticas e econômicas propiciaram novos investimentos urbanísticos para a cidade de Floriano,
a ponto de Rua do Molambo perder sua alcunha original e ser forçada a adotar uma nova
identidade no imaginário social, seria este também seu destino: aceitar as mudanças em sua
trajetória e investir em uma nova imagem de si apenas como militar, escritor e editor e não mais
como filho da Rua do Molambo? Aparentemente o processo não satisfaz os interesses do autor
e este encara como sua missão pessoal denunciar que o novo batismo da rua afeta a memória e
a identidade de seus antigos moradores.
Dois anos depois da publicação deste texto tramitou na Câmara Municipal de Floriano
um projeto que visava alterar o nome da Rua Sete de Setembro para Rua J. Miguel de Matos.
A proposta não chegou a ser votada, contudo, jornais da época apontam como o possível
homenageado reagiu à interrupção deste processo:

Em novo plano, surge a briga com o vereador Bruno dos Santos, de Floriano.
A Rua Miguel de Matos que deveria substituir a rua 7 de Setembro, não saiu.
O processo foi retirado da pauta, e a derrota foi total. Aí a bomba estourou. O
homem ficou enfurecido e atacou por trás, como é seu hábito fazer, o jovem
vereador.57

O fragmento aponta como a proposta de mudança do nome da rua supostamente afetou


as sensibilidades do escritor. Para J. Miguel de Matos não importa que tenha passado quarenta
anos sem visitar a cidade.58 O escritor mostrava-se contrário a um processo de redesignação da

56
MATOS, J. Miguel de. Pisando os meus caminhos: a Rua do Molambo. O Dia, Teresina, p. 7, 30 mar. 1967.
57
MAIS subsídios para J. Miguel de Matos. O Liberal, Teresina, p. 2, 5 maio 1969.
58
“[...] No ano de 1960, para matar quase quarenta anos de saudade, voltei a Floriano, bebendo na concha da mão
palmatoada pelo destino a água doce do Parnaíba; caminhando com um sorriso puro nos lábios impuros, como
uma criança feliz de seu brinquedo, pela Rua do Molambo; chorando a ausência dos meus pés de tamarindo e de
umbu, da minha lagoa piscosa, da minha peteca de vidro, do meu cavalo-de-pau, das minhas gaiolas de buriti, do
36

rua que a afastasse daquele espaço vivenciado e exaltado por ele. O importante para este escritor
é não perder a íntima relação que diz possuir com a denominação original da rua. Curioso
perceber como J. Miguel de Matos reage quando projeta-se batizar a rua com seu nome. As
críticas anteriores dão lugar à aceitação, possivelmente por acreditar que assim, a identificação
que ele pretende construir entre a rua e sua trajetória não seriam apagadas. A fria adjetivação
“Sete de Setembro” seria substituída pela homenagem a um filho da terra que esconde seu
desejo de distinguir-se socialmente sob o argumento de que o novo nome refletiria a
aproximação entre a rua e alguém que a vivenciou. Por outro lado, a homenagem não
concretizada gera fúria e frustração.
A Rua Sete de Setembro nunca teve seu nome alterado e tornou-se lugar de memória
nos textos de J. Miguel de Matos por meio da recorrência ao ressentimento em relação à
mudança da nomenclatura original. Em 1969, a região que continha parte da antiga casa do
escritor foi adquirida pelo desembargador Tirso Ribeiro Gonçalves. Frequentador de sessões
culturais e sabedor da íntima relação entre J. Miguel de Matos e este espaço, após reformas na
habitação mandou afixar no lado externo de sua nova residência uma placa indicativa de que
ali havia nascido o ilustre escritor. O cronista A. Tito Filho faz o registro deste ato em seu
“Caderno de Anotações”:

[...] Tirso Ribeiro Gonçalves, mandou indicar, em Floriano, com uma placa,
na rua do Molambo, a casa onde nasceu o poeta José Miguel de Matos. Houve
solenidade comemorativa do ato. Presenças de autoridades e líderes da
comunidade florianense. Muita gente. Palavra de João Carlos Ribeiro
Gonçalves, João Veloso, João Carlos Dias. Agradecimento do homenageado,
permanentemente emocionado [...].59

É essa Rua do Molambo que o menino J. Miguel de Matos abandonará em 1929 quando
sua família migra para Teresina, capital do Estado, em busca de melhores condições de vida.
Contudo, ao longo de sua trajetória, o menino migrante que se tornará escritor, nunca se afastará
das lembranças dos anos ali vividos e, de maneira recorrente, investe na construção deste espaço
como marca identitária, como lugar de saudade e sinônimo das dificuldades que teve que
enfrentar. Em diversos momentos, seus contemporâneos registram na imprensa como tal
associação se processou seja acolhendo os sentidos propostos60 por J. Miguel de Matos seja de

papagaio de papel, das minhas castanhas de caju e do meu anzol de linha zero, com que eu pegava o peixe para a
panela de ferro de minha mãe [...]”. Cf.: MATOS, 1969, p. 63.
59
TITO FILHO, A. Caderno de anotações. Jornal do Piauí, Teresina, p. 2, 31 ago. 1969.
60
Em Comentando e Analisando, o articulista Lamartine do Monte registra a trajetória de J. Miguel de Matos e
afirma: “[...] O Zé Miguel merecia e merece um lugar naquela casa. Ele não é nenhum escritor de segunda plana.
É um grande escritor. É um homem realizado como intelectual. J. Miguel de Matos tem o que dar em seus livros.
37

maneira negativa ao comparar seus escritos aos molambos que nomeiam a rua de sua infância.61

2.2 O menino da Rua das Pedras: a construção de um injustiçado

Em busca de oportunidades de trabalho, a família Matos decidiu migrar de Floriano, sul


do Piauí, para Teresina, capital do estado em 1929. Em seu livro de memórias, J. Miguel de
Matos registra as expectativas da família e as dificuldades da viagem.62 Seguindo o fluxo
econômico do Estado que utilizava o Rio Parnaíba como instrumento de comunicação e
escoamento da produção, a família de J. Miguel de Matos faz esta viagem em balsa de buriti
adquirida pelo pai a fim de transportar a família e os seus poucos bens materiais.
A capital do Estado, à época contava com 77 anos de fundação, haja vista em 1852 ter
sido realizada a transferência da sede administrativa de Oeiras para Teresina, centro-norte do
Estado, cidade construída e planejada para ser capital. A mudança da sede administrativa
objetivava dinamizar a economia à medida que centralizava a administração pública e a
aproximava dos entrepostos de comercialização do extrativismo local feito com o Maranhão.
As limitações infra estruturais da nova capital não impediam que o imaginário popular
acolhesse a ideia propagandeada pelo poder público de que a nova capital representaria a
modernidade, a eficiência administrativa e novas oportunidades de trabalho. Por esses motivos
desde sua fundação e, de maneira mais efetiva no início do século XX, Teresina configura-se
como lugar privilegiado para migrantes de cidades do interior do Piauí e de outros Estados,
sobretudo por localizar-se na rota daqueles que fugiam da seca no Ceará e desejavam alcançar
as zonas extrativistas da região Norte do Brasil. A presença árabe na capital também se fazia

E olhe, sair da Rua do Molambo para Casa de Lucídio Freitas é um longo caminhar [...]”. Cf.: MONTE, Lamartine
do. Comentando e analisando. O Estado, Teresina, p. 9, 28 jul. 1976.
61
Ao comentar o pedido feito pela escritora Lilizinha Castelo Branco ao jornalista Wilson Fernando para que este
prefaciasse seu próximo lançamento, a coluna “De Leve” apresenta de maneira irônica a suposta resposta dada
pelo jornalista: “[...] Wilson, delicadamente, excusou-se, por se considerar incapaz de fazê-lo, aconselhando que
a fecunda amante do beletrismo, procurasse o não menos notável e fecundo autor de “Molambos”, diga-se, da rua
do Molambo, J. Miguel de Matos [...]” (O ESTADO. Teresina, p. 3, 19 abr. 1977.
62
Em Pisando Os Meus Caminhos, J. Miguel de Matos relata incidentes ocorridos durante a viagem pelo Rio
Parnaíba. O narrador faz questão de informar que não lembra de todos os acontecimentos “[...] pela pouca idade
que eu tinha – seis anos – ao deixar mina terra natal – a cidade de Floriano – plantada à margem direita do Rio
Parnaíba – não guardo, nas traiçoeiras gavetas do cofre da memória, fatos que certamente tiveram sua importância
no dia que eu e os meus, numa balsa de buriti, à falta de um meio de transporte mais seguro e mais confortável,
deixamos a terra onde vivemos, pobremente, alguns anos [...]” e, segundo ele, registra apenas os três que mais o
marcaram: a quase colisão da balsa com barco gaiola que transportava madeira, a colisão da embarcação com
tronco de árvore e a discussão entre os pais devido à perda de um machado de boa qualidade utilizado pelo pai em
seu ofício. O detalhamento descritivo e um certo exagero, sobretudo no diz respeito às reações das personagens,
nos permite situar esses relatos entre lembranças herdadas e inventadas. Inseridas no conjunto de escritos de J.
Miguel de Matos, essas narrativas funcionam como mobilizadoras do público leitor ao remeter às dificuldades
pelas quais sua família teve que passar. Michel Pollak em Memória e Identidade Social apresenta essa forma de
lembrar como constituinte do processo de construção das identidades pois articula o indivíduo às memórias dos
acontecimentos vividos (ou não) por ele e por sua comunidade.
38

sentir, atraídos pelo fluxo comercial propiciado pelo extrativismo e pela navegabilidade do Rio
Parnaíba.
Parcamente habitada, no ano de 1920, a capital piauiense contava com população de
57.500 habitantes distribuídos em área territorial de 4.798km2. As atividades econômicas
pautavam-se no extrativismo, agricultura, comércio e serviços públicos. O incremento nas
receitas estaduais advindas da crescente demanda por cera de carnaúba e babaçu, além do látex
extraído da maniçoba, apenas aos poucos vai transformar a paisagem de Teresina. Embora
capital do Estado, a cidade é descrita por seus cronistas como dotada de casas modestas, de ruas
estreitas e sujas com presença constante de animais. Os signos representativos da
modernidade63 chegam no início do século XX, porém restritos a espaços centrais da cidade,
habitados pelos membros da elite política e econômica. Apenas na gestão do engenheiro Luís
Pires Chaves64, a cidade vivenciará um processo de transformação urbana mais intensa.
A Teresina de fins da década de 1920 aparece nas memórias de J. Miguel de Matos como
lugar acolhedor e palco para novas experiências. A primeira casa da família em Teresina situava-
se na Estrada Nova, atual Rua São Pedro, e é descrita por J. Miguel de Matos como “velha casa
da Estrada Nova, que parecia pela deformidade do terreno onde fora construída dependurada e
em iminência de queda”.65 O narrador afirma que, ao chegar na capital, a família pernoitou na
balsa e apenas na manhã seguinte o pai saiu à procura de lugar para abrigá-los, alugando-a de um
senhor conhecido como “seo Toinho”. Tal fato revela a falta de planejamento para essa viagem,
fruto da precariedade financeira da família aliada à impulsividade de João Emídio.
Como forma de deslegitimar as ações de seu pai ou reforçar a má gerência familiar, J.
Miguel de Matos relata o momento em que este, exultante, comunica a Maria do Ó que havia
arranjado casa que os coubesse para, em seguida, ironizar a situação

A casa da Rua São Pedro coube mesmo a gente, conforme obtemperou meu
pai, porém ensardinhada – uns dormindo sobre os outros, à cantilena

63
Segundo Marshall Berman, a modernidade emerge como consequência do capitalismo possibilitando entre
aqueles que vivenciam suas variadas faces um complexo de experiências nos campos econômico, político,
artístico, cultural e nas sensibilidades. Ao apresentar o conceito de modernidade a partir da dicotomia
modernização e modernismo, Marshall Berman associa esse fenômeno ao desenvolvimento técnico e científico da
contemporaneidade. A ruptura de tradições que emerge desse processo forja a emergência de novos saberes e
comportamentos provocando nos indivíduos a necessidade de elaborar novos posicionamentos diante de suas
potencialidades e imprevistos/contradições. Cf.: BERMAN, Marshall. Tudo que é sólido desmancha no ar. São
Paulo: Cia das Letras, 1986.
64
Engenheiro civil nascido em Barras em 1901. Político, foi prefeito de Teresina entre 1932-1935. Ao deixar o
cargo no executivo, atuou como Diretor de Obras Públicas, assumindo papel importante na construção de um plano
regulador para cidade o que culminou no Código de Posturas de 1939, promulgado pelo Decreto-lei nº 54 de 3 de
abril de 1939. Faleceu em Belo Horizonte em 1985.
65
MATOS, 1969, p. 57.
39

incômoda das carapanãs, levando-nos a passar as noites nas vigílias mais


cruéis, juntando a dor física das ferroadas a dor moral da miséria.66

Nesta casa pequena e deformada, sombreada por uma generosa mangueira, a família
Matos ficou por pouco tempo.67 As dificuldades financeiras vivenciadas em Floriano se repetiam
em Teresina e, em diversas passagens, J. Miguel de Matos afirma não saber, ao certo, como o pai
garantia o sustento familiar. Diante das dificuldades, o comportamento do pai é descrito como
preocupado, envergonhado e impaciente embora o narrador destaque que sua vida boêmia e a
constituição, pelo pai de novos relacionamentos, agravavam a situação financeira da família.
Sobre o tempo vivido na casa localizada na Estrada Nova, J. Miguel nos diz

Creio, por não me lembrar como o velho arranjava o sustento para a família
numerosa, que ele, passava fora de casa as tardes e as manhãs, vendia anéis
de ouro [...] Porém, viessem de onde viessem, saíssem de onde saíssem, na
nossa mesa pobre, talvez a mais pobre de Teresina, da minha infância infeliz,
nunca faltaram, pelo menos nessa casinha da Rua São Pedro, onde moramos
pouco tempo, os gêneros para a panela de ferro ou de barro, a lenha, o
querosene e a caixa de fósforo da marca “Olho” para acender o fogo na trempe
de pedra ou a lamparina de flandres que iluminava, com a chama dançando na
cabeça do pavio de algodão, os acanhados compartimentos da casa, tangendo
das sombras da noite, quando o sol, cansado e amortecido, se metia na boca
do horizonte.68

O trabalho como ourives garantia apenas a sobrevivência alimentar o que motivava, por
parte do locatário vexatórias cobranças. A solução encontrada foi alugar nova casa, desta vez
situada na Rua das Pedras, atual Rua João Cabral. Merece capítulo próprio nas memórias de J.
Miguel de Matos a mudança para uma nova casa e, ao enfatizar que a nova moradia “ficava,
como a minha Rua do Molambo de Floriano, a poucos metros da ribanceira do Rio Parnaíba”69
percebe-se a intencionalidade do autor em evidenciar a continuidade da situação de pobreza na
qual estava inserido. Ao descrever a mudança para a nova moradia, o escritor enfatiza a
precariedade material da família e reforça aspectos da personalidade dos pais ao descrever

A nossa muda, por palpite da minha mãe – que não queria mostrar à vizinhança
que ficava e à que ia conhecer e privar, os cacaréus, que chamávamos de
mobília para pompa da nossa pobreza, deu-se à noite [...] Meu pai, de mangas
arregaçadas, coisa que pouco fazia por não ter em que ocupar as mãos sem
calos, e com a nossa ajuda quase nula, meteu tudo numa velha carroça puxada
por um burro meditativo e lerdo [...] Recomendando ao velho carroceiro [...]
advertiu com gentileza: “Cuidado para os trens não cair!”, mostrando meu pai,

66
MATOS, 1969, p. 77
67
Além dos pais, J. Miguel dividia a casa com os irmãos Alice, Doralice, Pedro Emídio, Dulce, Raimundo Emídio,
Maria de Lourdes, Maria da Cruz, Maria do Carmo, Antônio e Maria José.
68
MATOS, 1969, p. 77-78.
69
MATOS, 1969, p. 80.
40

no seu zelo, o quanto nos era útil, no transe doloroso da nossa pobreza, o que
minha mãe, no seu pudor e vaidade de mulher, tinha vergonha de mostrar.70

O desejo por privacidade alegado por sua genitora escamoteia uma postura altiva e até
mesmo a vergonha em evidenciar a pobreza familiar. Por outro lado, embora reconheça a
importância do pai neste momento, a postura diligente de João Machado é tida como
exibicionismo perante os vizinhos. Na narrativa, a ausência de calos nas mãos revela o
comportamento habitual do pai. A nova residência ficava a poucos quarteirões da Estrada Nova
e é descrita pelo narrador como velha. A fachada possuía apenas uma porta e janela e aparentava
estar “fortemente prensada entre as outras para não cair em cima de nós”.71 O quintal da casa
abrigava um frondoso pé de tamarindo e abria-se em uma clareira que levava ao Rio Parnaíba.
Na Rua das Pedras, J. Miguel de Matos viveu os anos finais da infância e sua adolescência.
As ausências cada vez mais prolongadas do pai, as brincadeiras e disputas com os irmãos, as
aventuras e traquinagens pela cidade, os desdobramentos da mãe costureira para sustentar os
filhos, a prática de pequenos ofícios visando ajudar no orçamento familiar, a descoberta da leitura
e início da vida escolar têm a casa da Rua das Pedras como ponto de partida. Numa realidade
compartilhada com meninos pobres de sua época, J. Miguel de Matos vivenciou uma infância
com liberdade para brincar e se aventurar nos espaços da cidade. Em um contexto em que a
educação não era obrigatoriedade e conquista de difícil acesso para as famílias empobrecidas,
suas únicas responsabilidades eram levar recados para sua mãe e buscar água no rio para o
consumo doméstico, momento em que também aproveitava para explorar a cidade, brincar e
pescar no rio. A partir desses espaços situados nas áreas até então periféricas de Teresina, J.
Miguel de Matos cresce e testemunha as mudanças pelas quais a cidade vai passar.
O tempo era preenchido por brincadeiras como peteca, cavalo-de-pau, pinhão, cabra-
cega, empinar papagaio, atirar baladeira, preparar armadilhas para pássaros etc. Brincando com
irmãos ou com as crianças dos arredores da Rua das Pedras, nesses momentos, o menino Miguel
saboreia a liberdade que, aos poucos alimentou uma indisciplina causadora de muitos
problemas à sua mãe. As traquinagens e travessuras empreendidas na rua e nas escolas que
frequentara fizeram-no ser reconhecido no seu meio como vadio e brigão,72 embora contasse
com a cumplicidade de Maria do Ó para livrá-lo de apuros. Sua genitora fez várias tentativas
de discipliná-lo: quando as repreensões e surras não surtiram o efeito desejado este foi colocado

70
MATOS, 1969, p. 80.
71
MATOS, 1969, p. 83.
72
“[...] A Rua das Pedras, onde mandriei cerca de sete anos [...] foi o palco mais amplo das minhas vadiações de
menino peralta [...] Minha mãe, segundo eu ouvia dizer, enchia a rua, onde a curiosidade é o prato do dia, que
não podia mais comigo, por estar ficando taludo e valente [...]”. Cf.: MATOS, 1969, p. 96, grifos do autor.
41

sob a tutoria de mestres de ofícios que moravam nos arredores com a tripla finalidade de ocupar
seu tempo ocioso, proporcionar formação prática para o mundo do trabalho e fazer jus a
pequenos auxílios para as despesas da casa. Paralelo a esta iniciativa e, segundo o narrador,
após observar seu interesse pela cartilha de abc compartilhada com os irmãos, Maria do Ó
decidiu que já era o momento de seu filho iniciar seu processo de ensino formal.
O ingresso nos grupos escolares, contudo, apresentou uma dificuldade prática: a
exigência de documentos oficiais para a matrícula. Em Pisando Os Meus Caminhos, J. Miguel
de Matos afirma que tardiamente teve acesso ao registro de nascimento em virtude da condição
financeira da família. O problema foi contornado graças à mediação de um parente que exercia
a função de delegado de polícia na vizinha cidade de Timon e que, ao saber das dificuldades,
enviou bilhete à sua prima recomendando: “manda o Zezinho na primeira canoa, Maria ... Esse
nêgo vai virar maranhense por quebradeira”.73 Piauiense de Floriano e teresinense por
acolhida,74 o adolescente J. Miguel de Matos adquire naturalidade maranhense, fato que
posteriormente colocará em xeque sua identificação como literato piauiense.75
Sem perder de vista que a publicação de Pisando Os Meus Caminhos data de 1969
portanto, posterior à sua primeira tentativa de ingresso na Academia Piauiense de Letras,
percebemos, nesta obra, o esforço de J. Miguel de Matos em construir uma imagem de si como
sujeito empobrecido e que, por esta razão, foi alvo de muitas injustiças. Há um esforço em
construir-se como um batalhador, alguém que diante das dificuldades materiais e de seu
comportamento indisciplinado já percebia em si uma vocação para o universo das letras. Ao
rememorar o início de sua trajetória escolar, o narrador afirma que sua curiosidade e dedicação
às letras tiveram início antes do ingresso no ensino formal, aos oito anos, ao ser presenteado
pela mãe com uma cartilha de abc

Vou trazer agora a este canhenho o instante do meu encontro com as letras
pelo abecedário [...] recebo, surpreso, a visita de minha mãe, que trazia, a
ponta de um sorriso bondoso que as aperturas da vida dificilmente conseguiam
apagar de sua face. Tem nas mãos um livrinho encapado com papel de
embrulho: uma carta de abc. Recebi o livro já manuseado por meus irmãos,

73
MATOS, 1969, p. 67.
74
J. Miguel de Matos tornou-se cidadão teresinense em 13 de maio de 1977, por meio de proposta encaminhada
pelo vereador Miguel Silva.
75
O adulto J. Miguel de Matos, conhecedor da literatura e, à época da publicação de Pisando Os Meus Caminhos,
já derrotado em sua primeira campanha para a Academia Piauiense de Letras, é bastante cuidadoso na construção
de uma imagem de si e demonstra a preocupação com os possíveis impactos que sua naturalização como
maranhense trará para sua inserção no cânone literário local. Para equilibrar o impacto do registro de naturalidade
maranhense, o escritor diz que se sentiu órfão da associação com a terra de Da Costa e Silva, considerado o maior
poeta piauiense. Contudo, afirma que esse fato lhe garantiu afinidade com outro grande escritor, o maranhense
Coelho Neto. Como veremos adiante, a naturalidade deste escritor será um dos motivos de conflito entre eles e
seus contemporâneos.
42

conforme advertência de minha mãe, e matando ligeira vontade de curiosar,


abri-o no meio, caindo meus olhos sobre o abecedário impresso e cor preta,
com o qual, dali para diante, iria tecer, como a aranha que urde a sua teia, por
vontade de Deus, rindo e chorando, o labirinto em que eu mesmo viria a me
embaraçar e cair na sua estranha armadura. Não porque – e aí está minha mãe
para não deixar o filho mentir – nunca mais larguei o meu livrinho, passando
ele a ocupar o lugar que vinha pertencendo à baladeira, ao pinhão, ao cavalo-
de-pau, à bola de meia e ao papagaio de papel, como se dominado pela ânsia
de reconquistar o tempo perdido.76

Pela narrativa romanceada, percebe-se o esforço do autor em construir esse momento


como um divisor de águas em sua trajetória “graças ao repentino amor que elas despertaram em
mim, como se, em lugar ao abecedário, tivesse chegado diante dos meus olhos uma princesa
encantada”.77 Com indisfarçável orgulho, J. Miguel de Matos diz que não teve professor de
primeiras letras e que tudo aquilo que aprendeu antes de ingressar no ensino formal foi graças
ao seu esforço pessoal.78 Seu encanto e habilidade com as letras, segundo ele, surpreendia e
deixava orgulhosa sua mãe que exibia aos vizinhos as descobertas de seu irrequieto filho.79 No
fragmento percebemos mais uma vez a referência à situação financeira da família, quando o
escritor afirma que o abecedário já havia sido utilizado por seus outros irmãos.
J. Miguel de Matos inicia sua trajetória escolar no início da década de 1930. O cenário
educacional de Teresina contava com escolas públicas, particulares e confessionais e, ao longo
desta década passará por reformas e investimentos motivados pela concepção do Estado Novo
de que a educação seria fundamental para a construção de uma nova mentalidade e de um novo
homem. Para possibilitar a emergência de novos conhecimentos e comportamentos
fundamentais para o desenvolvimento e progresso nacional, foram feitos investimentos
públicos na construção de escolas, no aumento de matrículas e na formação de professores a
fim de minimizar o grande número de analfabetos que, de acordo com os dados de censos
demográficos de 1920 e 1940 representavam respectivamente 85.9% e 78% da população.80 Ao
tempo em que registra suas experiências pelas várias escolas que passou, J. Miguel de Matos
apresenta-nos as expectativas bem como as diferentes práticas e metodologias vigentes no

76
MATOS, 1969, p. 97
77
MATOS, 1969, p. 97-98, grifos do autor.
78
“[...] Não tive professor primário para as primeiras letras, e se logo as aprendi, agarrado dia e noite à minha
cartilha de abc, foi graças ao repentino amor que elas despertaram em mim [...]. Se alguém da minha família deu-
me alguma lição para o aprendizado das primeiras letras não tenho a mais vaga lembrança, mesmo implorando um
pronunciamento da memória [...]”. Cf.: MATOS, 1969, p. 97-98.
79
“[...] Assaltado de chofre por esse apego às letras, que eu, na infância, nunca cheguei a atender, o abecedário
para mim, dentro de pouco tempo, que chegou a assustar minha mãe, não tinha mais mistério, lembrando muito
bem do seu sorriso de orgulho quando chamava uma pessoa de sua intimidade para assistir o teste dos meus
conhecimentos. – Zezinho, como é que se escreve esta letra?... [...]”. Cf.: MATOS, 1969, p. 98, grifos do autor.
80
De acordo com o site do IBGE (memoria.ibge.gov.br), motivado por decisões políticas, não ocorreu o
recenseamento geral da população de 1930.
43

cenário educacional local.


A primeira escola frequentada por J. Miguel de Matos foi o Grupo Escolar Barão de
Gurguéia, localizado há poucas quadras da Rua das Pedras. Em Pisando Os Meus Caminhos
não há relatos sobre seu cotidiano nesta instituição, merecendo destaque por parte do narrador
apenas dois acontecimentos: a descrição de seu fardamento e a surra, descrita como brutal, que
levou de seu colega Eliziário. Com orgulho, J. Miguel de Matos descreve seu cotidiano e diz
que, após buscar água no Rio Parnaíba, dirigia-se a esta escola “metido numa calcinha azul e
numa camisinha de morim branco, onde oscilava uma gravatinha que ia até o meio da barriga,
com tirinhas indicando o ano escolar”.81 Embora o fardamento fosse comum aos alunos desta
instituição, J. Miguel de Matos diz que sua indumentária era alvo de brincadeiras feitas por seus
colegas, posto que “metido em calças curtas e calçando sapato de pano, que me valeram muita
chacota por ter as pernas compridas e o pé grande”.82
A personalidade agressiva, motivadora de preocupações por parte de sua mãe, puseram
fim à sua trajetória do Grupo Escolar Barão de Gurguéia. O escritor diz que, após estudar por
um ou dois anos nesta instituição, foi desligado da mesma após envolver-se em briga em que
furou a cabeça de um colega. Além deste episódio, J. Miguel de Matos envolveu-se em outros
conflitos como a surra de murro e pesada que levou de seu colega Eliziário após sua
“imprudência [...] por provocação de minha parte”.83
Deixando o Grupo Escolar Barão de Gurguéia, J. Miguel de Matos passou a estudar na
Escola Modelo Arthur Pedreira,84 fundada em 1909 como anexo da Escola Normal para prática
pedagógica das normalistas em formação. A Escola Modelo constituía-se como espaço
privilegiado para a aplicação de posturas pedagógicas emergentes tais como a Escola Nova.85
Importante instrumento de implementação das ideologias do Estado Novo em Teresina, a

81
MATOS, 1969, p. 98.
82
MATOS, 1969, p. 96.
83
MATOS, 1969, p. 67-68.
84
Fundada em 1864, a Escola Normal Livre foi regulamentada como Escola Normal Oficial em 1910, destinando-
se à formação do magistério feminino. Ao longo de sua trajetória esta instituição reverberou as políticas públicas
e os projetos educacionais instituídos pelo poder público a fim de dinamizar os processos de ensino-aprendizagem
e formação de professores. Em 1909, foram criadas a Escola Modelo e a Escola de Aplicação como anexos à
Escola Normal. Para mais informações sobre a trajetória da Escola Normal e seu impacto na formação de
professores, conferir as dissertações: SOARES, Norma Patrícya Lopes. Escola Normal em Teresina (1864-2003):
reconstruindo uma memória da formação de professores. 2004. Dissertação (Mestrado em Educação) –
Universidade Federal do Piauí, Teresina, 2004; FERREIRA, Lorenna Maria França. O Estado, as normalistas e a
infância em Teresina: 1900-1940. 2017. (Mestrado em História do Brasil) – Universidade Federal do Piauí,
Teresina, 2017.
85
Movimento forjado pela elite intelectual brasileira pautado na defesa de um modelo de escola pública, laica,
obrigatória e gratuita. Em manifesto publicado em 1932, os Pioneiros da Educação Nova defendiam a
democratização do ensino e a implementação de reformas educacionais como mecanismos capazes de intervir
positivamente na realidade social brasileira.
44

Escola Modelo contribuía para a formação do homem novo, dotado de saberes e práticas
diferenciadas. Para alcançar estes objetivos, esta instituição exigia de seus alunos, em sua
maioria oriundos de famílias da elite local, um comportamento exemplar. Contudo, o relato do
escritor sobre sua passagem por esta escola não registra seu cotidiano escolar atendo-se apenas
na menção à gravata azul com duas fitas na ponta, que indicavam sua mudança de série, e aos
episódios de indisciplina que culminaram em sua expulsão.
Dois episódios, decorrentes da indisciplina que caracterizaria o seu comportamento,
motivaram seu afastamento da Escola Modelo. Sem detalhar suas motivações, o narrador
relembra que, em determinado momento, machucou com seu lápis um colega chamado Hugo.
Este não prestou queixa aos professores e, segundo o autor, em outra passagem autoindulgente,
estes se reencontraram anos depois em Fortaleza e relembraram com irreverência seus tempos
de escola.86 Se deste fato o menino Miguel escapou ileso, o episódio envolvendo um membro
da tradicional família Ribeiro marcou sua trajetória escolar a longo prazo. O narrador afirma
que em uma aula de português, repreendeu alguns colegas e por isso tornou-se alvo de uma
emboscada nas imediações da escola.87 Para equilibrar a desvantagem numérica, atirou um
tijolo na cabeça de um deles. Segundo o adulto J. Miguel de Matos, a família do rapaz agredido
usou sua influência para garantir sua expulsão da Escola Modelo continuando a perseguição
nos anos seguintes, quando J. Miguel já era aluno do Liceu Piauiense.
Se o afastamento “informal” do Grupo Escolar Barão de Gurguéia não trouxe prejuízos
a J. Miguel de Matos, a expulsão documentada da Escola Modelo Arthur Pedreira impactou no
prosseguimento de sua escolarização formal. A fim de evidenciar suas dificuldades e, por
consequência sua capacidade de superação, em alguns momentos, a autor diz que tais fatos o
forçaram a um “autodidatismo deprimente”.88 Para não ter seus estudos interrompidos, sua mãe
o inscreveu em estabelecimentos administrados por mestres-escolas particulares que atuavam
por filantropia ou recebendo remuneração do poder público. O escritor afirma que fez rápida
passagem pela escola do Padre Moisés, sem detalhar sua localização, as práticas escolares e
nem os motivos de sua expulsão. Em seguida, passou para a escola do Professor Miguel
Lidiano, mais tarde denominado Colégio Demóstenes Avelino.

86
“[...] Hugo, que recebera a picada da minha pena não guardou nenhum rancor de mim e, ao ver-me, tantos anos
depois, na cidade de Fortaleza [...] rememorou sorridente a nossa briga infantil, mostrando que dentro do seu
coração não havia lugar para ressentimento e que a nossa contenda fora produto da natural imprudência de menino,
que nunca sabe o que está fazendo [...]” Cf.: MATOS, 1969, p. 68.
87
Afirmar que a repreensão aos colegas ocorreu justamente em uma aula de Língua Portuguesa pode ser entendido
como mais um recurso do escritor para mostrar-se, desde muito cedo, como interessado e zeloso pelo universo das
letras.
88
“[...] a pedrada, serviu para bifurcar os caminhos da minha vida, levando-me como homem de pensamento ao
autodidatismo deprimente [...]”. Cf.: MATOS, 1969, p. 68.
45

A passagem pela escola do Professor Lidiano marcou a memória de J. Miguel de Matos.


Lá ele conheceu Alberto Fonseca, com quem formou dupla que, segundo seus relatos, rompia
o sossego da instituição. Ao falar deste novo companheiro que o “levava para o mal, embora
fosse dois anos mais moço do que eu”.89 Nesse momento, o narrador declina de sua posição de
líder das traquinagens e coloca-se como um “atencioso aluno de diabruras”.90 Com Alberto, o
adolescente Miguel gazeteava aulas, brincava de Tarzan no pé de umbu que ficava nas
dependências da escola – o que lhe rendeu um braço fraturado – e, importunava os demais
frequentadores da escola, em especial os alunos que nela moravam e estudavam na modalidade
internato. Em suas memórias, há registros de brincadeiras, sustos, pregação de peças,
envolvendo sobretudo o roubo de lanches destes alunos, considerados abastados e glutões.
Destaque-se, nessas narrativas, as tentativas de J. Miguel de Matos em justificar tais atitudes
como resposta a um suposto egoísmo dos colegas que não dividiam seus lanches com os demais

Não me lembro, por mais que suplique à memória, do nome daquela figura de
gente, que veio do interior [...] Só vivia comendo, coisa que eu e Alberto pouco
fazíamos: eu, por não ter, por completa quebradeira, nada para levar à boca, e
Alberto por não gostar de merendar, como dizia e provava ao arrebatar, com
estrondosa gargalhada, de um colega o pitéu que trouxera de casa, atirando-o,
em seguida, como coisa desútil, à rua ou ao quintal do colégio.91

Obediente e sem questionar os comportamentos de Alberto Fonseca, J. Miguel de Matos


foi repreendido inúmeras vezes pelo Professor Lidiano. Em Pisando Os Meus Caminhos este
educador é descrito como mestre que tinha no diálogo uma importante ferramenta pedagógica.
Marcou a memória de J. Miguel de Matos a diferença entre as práticas do professor Lidiano em
relação aos outros professores que tivera, por este raramente punir fisicamente seus alunos.
Sobre Miguel Lidiano, o narrador nos diz

Professor Miguel Lidiano, que suportou com carinho paternal para que eu não
sofresse nova expulsão e trilhasse as sendas do bem, todas as minhas
traquinagens, salvando o meu futuro com os seus graves conselhos, que
substituíam as palmatórias, as beliscaduras e os puxões de orelha que eu
recebia dos mestres como castigo das minhas faltas. O Professor Miguel
Lidiano não, chamava-me discreta e mansamente, quando me surpreendia em
erro grave ou recebia queixa contra meu comportamento irregular. E, antes de
começar os seus sermões que me freavam os ímpetos, advertia-me, a mão
direita, branca e ossuda, tocando o cocuruto da minha cabeça: – Você não vai
apanhar...92

89
MATOS, 1969, p. 138.
90
MATOS, 1969, p. 138-139.
91
MATOS, 1969, p. 138.
92
MATOS, 1969, p. 136.
46

Apesar de suas indisciplinas, J. Miguel de Matos não foi punido com castigos físicos,
tampouco foi expulso da instituição o que pode justificar o carinho com que recorda e registra
suas interações com o Professor Lidiano. A ênfase no afeto, na paciência e nos sábios conselhos
que diz ter recebido deste professor evidenciam, dentro do esforço narrativo de construir uma
imagem positiva de si, que o narrador, já adulto, sabe reconhecer as figuras que marcaram
positivamente a sua trajetória. Extrapolando a temporalidade estabelecida para sua obra –
infância e adolescência, o autor afirma que, no presente, costuma visitar o antigo mestre, uma
demonstração de gratidão e afeto para aquele que o instruiu como um pai em momentos de
dificuldades.
Cumpre destacar que ao longo da obra, J. Miguel de Matos faz referências incorretas em
relação à escola do professor Miguel Lidiano. É correta sua afirmação de que este estabelecimento
passou à propriedade de Felismino Weser93 que, em 1942, inaugurou em Teresina o Colégio
Demóstenes Avelino. O prestígio do educador que a fundou e dirigiu, o corpo docente experiente
e reconhecido, a oferta de cursos variados como o primário, ginasial, colegial, preparatório para
exame de admissão além do curso técnico em comércio no período noturno fizeram desta
instituição particular um marco no ensino teresinense. Aparentemente fugindo do objetivo
proposto para suas memórias, J. Miguel de Matos dedica várias páginas ao histórico de
implantação desta nova escola e chama atenção para a mudança ocorrida em sua gestão.
A fim de evidenciar as distinções entre as escolas, mais uma vez o narrador ultrapassa
os marcos temporais propostos no subtítulo de seu livro de memórias. Contudo, se a localização
espacial é o único ponto de convergência entre as escolas dos professores Miguel Lidiano e
Felismino Weser, por quais motivos J. Miguel de Matos esforçou-se em construir uma narrativa
que, ao tempo que evidencia as diferenças, institui uma continuidade que ele mesmo reconhece
não existir? Se, em 1942, J. Miguel de Matos já havia ingressado no Exército e o adulto que
escreve no ano de 1969 demonstra ter domínio sobre estas mudanças, nos questionamos o que
pode ter motivado uma escrita que pode gerar confusão entre os leitores quanto à fidelidade das
informações pessoais e de fundo histórico apresentadas em seu relato?
O ato de rememorar é um processo biológico e uma ação histórico-social. A

93
Felismino Freitas Weser nasceu em 04 de março de 1895 em Piripiri e faleceu em 01 de dezembro de 1984. Foi
o primeiro homem a se formar na antiga Escola Normal de Teresina (atual Instituto de Educação Superior Antonino
Freire). Lecionou em escolas de Floriano, entre elas, o Liceu Municipal e Escola Normal de Floriano. Lecionou e
fundou escolas em várias cidades como o “Colégio Castelo”, em Piripiri, “Colégio Pedro II”, na cidade de mesmo
nome. Em Teresina, fundou em parceria com o também professor Moacir Madeira Campos as escolas “Ateneu
Piauiense” (posteriormente Ginásio Leão XIII) e a “Academia de Comércio do Piauí” (mais tarde denominada
Escola Técnica de Comércio do Piauí). De seu matrimônio com Cecília de Carvalho Mello Freitas nasceram José
Newton de Freitas, Paulo de Tarso Mello Freitas e Maria de Lourdes Freitas.
47

subjetividade se faz presente nos relatos pautados em memórias sejam elas originadas de
práticas voluntária ou involuntária.94 Confusões, associações divergentes, traumas e
esquecimentos permeiam o ato de lembrar e a ocorrência destes não inviabilizam seu potencial
enquanto fonte para a construção do conhecimento histórico. Longe de ser desprezada como
fonte parcial, as narrativas memorialísticas podem ser entendidas como esforços por parte do
seu produtor em atribuir sentidos às experiências díspares ou construir, de maneira deliberada,
uma imagem de si a partir de sua associação com espaços e pessoas.
No caso das memórias de infância e juventude de J. Miguel de Matos, entendemos que
as referências ao Colégio Demóstenes Avelino no contexto das narrativas sobre a escola
fundada e dirigida por Miguel Lidiano, quando o mesmo sabe tratar-se de instituições distintas,
não podem ser tomadas como uma confusão, um equívoco inerente ao ato de lembrar. Se
consideramos ainda que as informações sobre as escolas podiam ser facilmente refutadas por
seus contemporâneos e potenciais leitores, a afirmação de que foi “matriculado no Colégio
Demóstenes Avelino, para fazer os preparatórios ao Ginásio, sendo seu Diretor na época o velho
educador Miguel Lidiano”95 nos parece uma operação calculada, uma tática na perspectiva
adotada por Michel de Certeau como a arte do mais fraco, uma operação calculada que
“segundo critérios próprios, selecionam fragmentos tomados nos vastos conjuntos da produção
para, a partir deles compor histórias originais”.96
Ao contrário da rememoração que articula os fenômenos biológicos ao lugar social
ocupado pelos sujeitos, o ato de escrever é uma prática social, uma operação com objetivos
definidos.97 Associar sua trajetória com a de uma instituição reconhecida, demonstrar seu
conhecimento sobre a história das instituições locais, fazer um elogio deliberado à figura do
fundador da escola são respostas possíveis, ainda mais se considerarmos o prestígio social de
Felismino Weser, que, além de professor reconhecido, é pai e sogro de intelectuais atuantes no
cenário cultural local, em especial na Academia Piauiense de Letras. Ao forjar uma
aproximação entre si, a instituição escolar e seu fundador, J. Miguel de Matos elabora uma
narrativa em que tenta distinguir-se socialmente associando sua trajetória à de uma importante
escola particular e sugerir uma intimidade entre si e as figuras que compuseram a história desta
instituição.
A narrativa construída por J. Miguel de Matos em torno de sua passagem pelo colégio

94
POLLAK, 1989, p. 3-15.
95
MATOS, 1969, p. 69.
96
CERTEAU, 1994, p. 98.
97
GAGNEBIN, Jeanne Marie. Lembrar, escrever, esquecer. São Paulo: Editora 34, 2006.
48

do professor Lidiano evidencia a íntima relação entre história e ficção, objetividade e


subjetividade narrativa. Paul Ricoeur em Tempo e Narrativa dedica-se a entender como, por
meio de narrativas, emerge um tempo que articula o tempo vivido e o tempo cósmico
atravessado pela experiência histórica. Entre suas conclusões, Paul Ricoeur defende que, no
plano da narrativa, não há distinções entre relatos históricos e ficcionais, inclusive estes
complementam-se em narrativas nas quais a intencionalidade histórica é alcançada através de
recursos ficcionais e naquelas em que a intencionalidade da narrativa ficcional só produz efeitos
ao utilizar-se de recursos de historicização.98 Resultado da dialética entre tempo e ficção, a
identidade narrativa é algo dinâmico. Está articulada ao autor da narrativa e que, no caso de
relatos autobiográficos, confunde-se com o narrador-personagem, é denominada de ipseidade.
Pierre Bourdieu chamava atenção para os riscos da ilusão biográfica. Já Paul Ricoeur,
por meio da noção de identidade narrativa, defende que, nos textos, o que emerge são relatos
que evidenciam as subjetividades e as construções de imagens de si pelos sujeitos. Longe de
recriminar essa prática, o autor de Tempo e Narrativa vê na construção dessa identidade a
conclusão do círculo hermenêutico entre prática e narrativa. Nesse sentido, o que J. Miguel de
Matos produz ao sobrepor relatos sobre sua passagem pela escola do professor Miguel Lidiano
à fundação do colégio Demóstenes Avelino é uma identidade narrativa. Embora nosso narrador
não tenha vivenciado a realidade desta instituição, este sente-se ligado, identificado a esta
possibilidade histórica a ponto de reconfigurar elementos da conjuntura. Isto ocorre porque,
segundo Paul Ricoeur:

Diferente da identidade abstrata do mesmo, a identidade narrativa, constitutiva


da ipseidade, pode incluir a mudança, a mutabilidade, na coesão de uma vida.
O sujeito aparece então constituído como leitor e como scriptor de sua própria
vida [...] Como se comprova pela análise literária da autobiografia, a história
de uma vida não cessa de ser refigurada por todas as histórias verídicas ou
fictícias que um sujeito conta sobre si mesmo. Essa refiguração faz da própria
vida um tecido de histórias narradas.99

A construção de uma identidade narrativa extrapola o binarismo do que é verdadeiro ou


falseado. Contudo, aquilo que Paul Ricoeur aponta como limites ou fragilidades da discussão
sobre identidades narrativas, a saber, a noção de que esta identidade não é algo estável posto
que é incessantemente reconstruída no interior das narrativas e a ideia de que estas são
atravessadas por estratégias de persuasão de seu produtor, são consideradas por nós como
potencialidades para o entendimento dos investimentos identitários promovidos por J. Miguel

98
RICOEUR, Paul. Tempo e narrativa: o tempo narrado. Martins Fontes: São Paulo, 2010. v. 3. p. 173.
99
RICOEUR, 2010, p. 419.
49

de Matos. Ao longo das narrativas aqui analisadas, percebemos um escritor que se inventa a
partir da narrativa e, embora firme um pacto autobiográfico com seu leitor, este narrador,
quando lhe é conveniente, faz atribuições de sentido, pratica omissões, exagera determinados
aspectos a fim de persuadir o leitor sobre legitimidade da identidade narrativa apresentada.
De volta às experiências escolares de J. Miguel de Matos, o narrador nos afirma que ao
sair da escola do professor Miguel Lidiano, foi matriculado no Colégio Santo Antônio, escola
particular do professor Diniz, localizado na Rua da Palmeirinha. Antônio Araújo da Fonseca
Diniz é apresentado como um professor rígido, que não economizava nas repreensões orais e
físicas. O rigor e a disciplina exigidos na instituição garantiram que seu proprietário fosse
reconhecido como mestre da palmatória, instrumento pelo qual “consertou muito moleque
metido a besta”.100 Segundo J. Miguel de Matos, no momento da matrícula sua mãe intercedeu
por ele, apresentando-o ao novo professor como um menino esforçado e de bom comportamento

Minha mãe, que conhecia como ninguém o meu pavor ao castigo físico e a
minha repulsa às admoestações ferinas, tão do sabor dos mestres dantanho,
lendo na atitude do velho Professor a sua vontade de domar pela sevícia da
santa-luzia, antecipou-se a qualquer ameaça às minhas possíveis explosões de
indisciplina ou de molecagem: - Professor Diniz: o Zezinho quer estudar com
o senhor para entrar no Liceu... É um menino bom e comportado... Não é
preciso bater nele, não...101

A devoção à figura materna apresentada ao longo da obra decorre, entre outros motivos,
pela postura carinhosa e defensora adotada em relação a si. Embora Maria do Ó tivesse
consciência, e muitas vezes se queixasse sobre seu comportamento indisciplinado, esta não
hesitava em garantir que o filho tivesse mais uma oportunidade, mesmo diante da fama de
valente e brigão que começava a acompanhá-lo. Mesmo sabendo do rigor disciplinar do Colégio
Santo Antônio, J. Miguel de Matos não deixou de praticar suas infrações, contudo, sua narrativa
destaca apenas o episódio em que beliscou a perna de sua colega Aldenora que, segundo ele,
provocava não a sua fúria mas sim a sua lascívia em virtude de sua beleza. Ao falar do desejo
por sua colega de classe, nos deparamos com um indivíduo que, aos poucos abandona as
brincadeiras infantis e insere-se nas descobertas da adolescência.
Estudo, descobertas amorosas e primeiros passos no mundo do trabalho são as principais
experiências do adolescente que descobre a si e ao mundo que o rodeia. O relato construído
pelo adulto J. Miguel de Matos aponta que foi na adolescência que se aprofundou a consciência
da pobreza material de sua família decorrente, segundo ele, da constante ausência da figura

100
MATOS, 1969, p. 134.
101
MATOS, 1969, p. 146.
50

paterna. O narrador recorre a essa circunstância para justificar as indisciplinas do jovem Miguel
que, ainda segundo ele, eram provocadas pelas injustiças a que era submetido em virtude de
sua posição social. Longe de admitir sua parcela de responsabilidade pelas punições físicas e
frequentes expulsões, o adulto J. Miguel de Matos investe na construção de sua imagem como
injustiçado e incompreendido.
Neste ponto de sua trajetória, a figura do professor Antônio Diniz ganha significado
para o autor e transparece na narrativa, pois este aparentemente conseguiu entender os dilemas
de nosso narrador. O professor é descrito como alguém rigoroso, por vezes grosseiro, mas capaz
de estimular a curiosidade dos alunos. O escritor adulto que narra suas memórias em Pisando
Os Meus Caminhos diz que foi com este professor que teve os primeiros contatos com a
literatura piauiense e, atribuindo sentidos ao passado, afirma que, a partir dali, percebeu as
dificuldades de reconhecimento enfrentadas pelos escritores locais.102 A importância do
professor Diniz para o narrador é tanta que a este é dedicado um capítulo especial de suas
memórias, em que se diz

O modesto educandário particular do Professor Diniz de nome “Santo


Antônio”, ficava na esquina da Rua Palmeirinhas, hoje Clodoaldo Freitas,
numa casa sem caiação, parecendo um animal despelado e mostrando, pelo
lado de dentro, os buracos dos adobes desnudos. Nele, bebendo os conselhos
e as lições do velho Mestre, passei, apenas, seis meses de proveitoso
aprendizado que me garantira aprovação quase distinta nos exames rígidos do
Liceu Piauiense, hoje Colégio Estadual Zacarias de Góis. O Professor Diniz,
apesar de me receber com muita relutância por conhecer, através de
informações de puxa-sacos mirins, Padre Moisés e do Colégio Demóstenes
Avelino, tornou-se desde a minha entrada no Colégio Santo Antônio, meu
amigo, ao verificar que eu precisava era de carinho e não do rigor da
palmatória, para nortear minha vida de órfão de pai vivo.103

O professor Diniz é apresentado como fundamental para sua aprovação no Exame de


Admissão ao Liceu Piauiense. O voto de confiança e o afeto que afirma ter recebido são
retribuídos em narrativas que enaltecem a figura deste professor, alterando inclusive a imagem
que tinha da instituição. Se as primeiras impressões que teve desta escola apresentam-na como
uma edificação precária dirigida por um professor rigoroso, o passar dos anos e sua saída
vitoriosa rumo ao Liceu Piauiense forjarão uma nova imagem deste espaço como a “vetusta

102
“[...] O Professor Diniz [...] para um ligeiro teste de conhecimento [...] “Aonde nasceu Da Costa e Silva?”
Alguns lábios juvenis moveram-se, como se por eles fosse sair a resposta que o Mestre catava [...] Tomado de
súbita ira pela prova de ignorância que acabava de receber de seus discípulos, deixou cair sobre a cabeça da
meninada, paralisada pelo medo do castigo iminente, a Espada de Dâmocles: Analfabetos! Ignorantes! Demônios
em figura de gente! [...] Não conhecem nem as rosas de casa [...]”. Cf.: MATOS, 1969, p. 145.
103
MATOS, 1969, p. 147.
51

casa da Rua Palmeirinha”104 e do professor Antônio Diniz como alguém capaz de reconhecer
os esforços de seus alunos,105 como demonstrado na passagem em que o professor parabeniza
o futuro escritor por sua aprovação no Liceu Piauiense:

Findava o ano de 1939 [...] Professor Diniz despejou na sala [...] estas palavras
[...] – “Seu” Matos só não vai apanhar hoje ... e muito! ... por ter sido aprovado
no Liceu [...] Dirigindo a mais modesta escola de Teresina, sentiu o velho
professor, dentro da alma roída pelo tempo, que a aprovação do discípulo,
humilde como ele mesmo, em tão cobiçado exame, constituía imensa alegria
para o seu velho e cansado coração.106

O ingresso no Liceu Piauiense representou para J. Miguel de Matos o apogeu de sua


trajetória escolar. Fundado em 1845, na antiga capital Oeiras, ao ser transferido para a nova
capital, este educandário teve trajetória incerta chegando a ter suas atividades suspensas por
meio de decretos estaduais. Reativado em definitivo em 03 de maio de 1936, por ocasião do
primeiro aniversário da gestão do interventor Leônidas de Castro Melo, esta escola
caracterizou-se ao longo dos anos como a mais importante instituição de ensino administrada
pelo poder público piauiense, tendo suas vagas disputadas por pessoas humildes e por membros
da elite local. O rigor de seu processo seletivo, a excelência de seus professores, em sua maioria
reconhecidos por sua atuação no meio cultural local e a inserção pública de muitos de seus ex-
alunos ajudam a entender a importância histórica do hoje batizado Colégio Estadual Zacarias
de Góis.107
Ainda que sua passagem pelo Liceu Piauiense tenha sido rápida, as vivências nesta
escola se fazem presentes nas memórias de J. Miguel de Matos. O último capítulo de Pisando
Os Meus Caminhos dedica-se às narrativas sobre sua experiência nesta instituição alternando
reminiscências sobre seus colegas de classe, seus professores, suas indisciplinas e punições a
relatos sobre os diversos ofícios que exerceu ao longo de sua adolescência. Mais do que
reconhecer as oportunidades que o ingresso nesta instituição distinta lhe proporcionaria, o
narrador adulto comemora o fato de ter conseguido mostrar seu valor àqueles que não
acreditaram no seu potencial ou que lhe praticaram injustiças e violências. Para o menino pobre
da Rua do Molambo e da Rua das Pedras, o ingresso no Liceu Piauiense já significava uma
vitória em si, tendo em vista as dificuldades do seu presente e incertezas quanto ao futuro. No
capítulo final, J. Miguel de Matos confidencia suas reflexões

104
MATOS, 1969, p. 148.
105
LICEU Piauiense. Folha da Manhã, Teresina, p. 3, 6 out 1963.
106
LICEU Piauiense. Folha da Manhã, Teresina, p. 3, 6 out 1963.
107
Sobre a trajetória histórica do Liceu Piauiense, conferir: VASCONCELOS, Maria Inês Bandeira de. Liceu
Piauiense (1845-1970): desvendando aspectos de sua história e memória. 2007. Dissertação (Mestrado em
Educação) – Universidade Federal do Piauí, Teresina, 2017.
52

Para chegar ao Liceu Piauiense, flagelado por toda espécie de sofrimento,


caminhei, humilhado como um pedinte, castigado como uma criança faltosa e
sofrido como um novo Cristo, dezessete anos neste mundo [...] Rapazola sem
nenhum recurso financeiro, vivendo sob a completa custódia de minha mãe,
exercendo os empregos mais humildes, como trocador de ônibus, vendedor de
revista e faxineiro de escritório comercial, o Liceu Piauiense apareceu na
paisagem trágica dos meus dias, como um sol que muito cedo, antes da queda
da noite, perde o seu fulgor [...] Vindo da Escola Santo Antônio, do Professor
Diniz, fui matriculado no Liceu, depois de receber, dos que não acreditavam
na minha aprovação, os apupos mais deprimentes, como se o trajar e o calçar
representassem pobreza de inteligência.108

Assim como muitos jovens de camadas sociais empobrecidas, J. Miguel de Matos


conciliou estudos com trabalho e, de acordo com o narrador, este é um dos motivos para seu
desempenho mediano. A forma como o narrador encadeia os acontecimentos selecionados para
compor seu livro de memórias evidencia suas táticas no sentido de construir uma imagem de
sua infância e juventude a partir do triplo esforço de apresentar sua pobreza material, justificar
seus erros e atribuir sentido às suas experiências, colocando-se como predestinado para o
mundo das letras. Exemplo desta operação aparece no registro sobre seu período como aprendiz
na Imprensa Oficial,109 atividade desenvolvida no turno oposto ao seu horário escolar:

Era o despertar [...] do homem de letras, que iria oferecer aos homens, em
troca de suas ingratidões, as flores que brotariam, mesmo regadas no
desespero, do jardim de sua alma. E, acorrentado ao calabouço das letras,
entreguei-me, inteiramente, ao cultivo do espírito, lendo tudo que me vinha às
mãos, como quem, faminto e sedento, encontra, precisamente, o alimento mais
saboroso e a linfa mais fresca. Julgando que na Imprensa Oficial, onde todos
se entregavam ao trato das letras, conforme eu observava pelas largas janelas
enteladas do prédio da Rua das Pedras, eu teria mais ensejo de concretizar meu
destino de futuro escritor, pedi à minha mãe para ser aprendiz ali, pois “queria
aprender a fazer livro”. Minha mãe, que fazia tudo o que eu queria, como
fazem todas as mães com os filhos, levou-me logo, antes mesmo de sopesar
as vantagens ou desvantagens do meu desejo, ao Diretor da Imprensa Oficial,
e, na sua casta ingenuidade, com o pedido do filho zunindo aos ouvidos e a
bondade de seu coração à mostra, fazendo-lhe o pedido na linguagem mais
inocente do mundo: - Meu filho, doutor, quer fazer um livro. Ele podia
aprender isso aqui?... Com um sorriso no rosto, de crítica à infantilidade de
minha mãe, o Diretor da Imprensa Oficial aquiesceu prontamente, vencido
pela candura do pedido.110

No capítulo destinado ao Liceu Piauiense, os professores ganham destaque na narrativa.

108
MATOS, 1969, p. 149-150.
109
Fundada em 1910, a Imprensa Oficial tinha como responsabilidade a divulgação das notícias oficiais por meio
da produção, edição e distribuição do Diário Oficial. Em 1960 recebeu incremento em seu maquinário e passou a
atuar como gráfica e editora de livros encomendados pelo governo e por particulares. Em 1968, foi rebatizada
como Companhia Editora do Piauí (COMEPI) e transformada em sociedade de economia mista o que possibilitou
a atração de novos investimentos visando torná-la competitiva em relação à gráficas privadas.
110
MATOS, 1969, p. 150-151.
53

Merecem atenção especial os professores de francês Fernando Marques e Monsenhor Joaquim


Chaves, exaltados por sua erudição. O professor de ciências, Júlio Antônio Martins Vieira, é
apresentado como homem culto e, segundo o narrador “ainda no Liceu já o sabia eleito das
musas”.111 O professor de geografia Joca Sobral é lembrado por suas habilidades didáticas e
por ter aplicado em J. Miguel de Matos uma punição considerada imerecida112. Contudo o
episódio envolvendo o sargento Antônio Carlos, responsável pela prática da Educação Física
quase motivou sua expulsão desta escola, sendo necessária a interferência de sua mãe junto ao
professor João Pinheiro, diretor da instituição. O acontecimento é assim apresentado

O Diretor do Liceu Piauiense, quando fui aluno do 1º ano ginasial era o


Professor João Pinheiro, que me salvou de uma expulsão certa [...] Sem pesar
a gravidade do meu gesto e por razão que não consigo me lembrar, por mais
que implore à memória, incitei minha turma de Educação Física a não
obedecer ao comando do Sargento Antônio Carlos, do 25º Batalhão de
Caçadores, sem atinar, na minha santa ingenuidade, para as consequências que
deixaram minha mãe na rede. O fato é que a minha liderança junto aos colegas
era um fato, pois, depois de tudo combinado à boca miúda, o Sargento Antônio
Carlos não conseguiu dar a sua aula de educação física, pela completa
desobediência dos alunos aos seus comandos ou os obedecendo de modo
contrário: quando ele mandava correr, ficavam parados; quando mandava
levantar os braços, baixavam além do normal; quando mandava cantar,
assobiavam. Mas o sorriso de satisfação que dei ao colher os frutos da minha
indisciplina virou pranto, quando o Professor João Pinheiro, alisando com a
mão esquerda a barriga rotunda num gesto muito seu, advertiu-me, com
encenação de Professor: - Você Matos, vai ser expulso do Liceu... O Sargento
não pode ficar desmoralizado...113

Livrando-se da expulsão graças à interferência de sua mãe, J. Miguel de Matos ainda nos
relata outras indisciplinas, realizadas fora dos muros da escola. Ainda neste capítulo, o escritor
cita nomes de alguns de seus colegas de turma e pede desculpa por não lembrar, atribuindo seu

111
Alguns dos professores citados por J. Miguel de Matos pertenceram à Academia Piauiense de Letras. O diretor
João Pinheiro foi um de seus fundadores. Ms. Joaquim Chaves e Martins Vieira ingressaram na década de 1940.
A admiração e a lembrança afetiva a estes mestres contudo não parece ser recíproca. Se considerarmos o contexto
das candidaturas de J. Miguel de Matos à APL, identificamos pela ausência de suas assinaturas nos requerimentos
de inscrição e pelo teor dos posicionamentos divulgados na imprensa local que o ex-aluno não recebeu o apoio
esperado dos antigos mestres, à época, aptos ao voto. (MATOS, 1969, p. 155).
112
J. Miguel de Matos afirma ter sido acusado de emitir xingamentos quando o professor, de costas para a turma,
escrevia no quadro-negro. Ao questionar a turma sobre a autoria dos palavrões, o verdadeiro responsável atribuiu
a culpa ao jovem Miguel que, além de ouvir sermão do professor, foi retirado de sala de aula. Evidenciando seu
ressentimento para com o professor, J. Miguel de Matos diz que agrediu seu caluniador na saída da escola e, em
1969, informa ao professor: “[...] O Professor Joca, que ainda pisa os caminhos deste mundo, vai saber, somente
agora, se este livro chegar às suas mãos, que não ficou de graça a punição que ele me aplicou naquela aula da
geografia, mesmo estando certo de ter feito um ato de pura justiça. Meu braço, naquela tarde memorável, deu
também sua aula de moral, podendo até ter sido mais proveitosa que a do Professor Joca [...]” (MATOS, 1969, p.
156).
113
MATOS, 1969, p. 156-157.
54

esquecimento à falta de proximidade entre eles.114 A admiração por Lucimar Ferreira Lima,
descrito como aluno exemplar e dedicado, é um contraponto ao seu próprio desempenho.

114
Comparando-se a relação de seus colegas de turma com o boletim escolar publicado no Diário Oficial em 23
de janeiro de 1940, identificamos não somente os esquecimentos, mas também a inserção de nomes que não
aparecem na listagem divulgada pelo poder público, possivelmente por estes não terem logrado êxito na aprovação
ou terem abandonado a instituição ao longo do período letivo. Outro ponto a considerar diz respeito a idade em
que J. Miguel de Matos ingressou no curso ginasial: ele afirma ter cursado esta série aos dezessete anos, portanto,
em 1940, contudo seu nome aparece entre os alunos da turma de 1939.
55

Figura 1 – Liceu Piauiense: ano letivo 1939.

Fonte: Diário Oficial, Teresina, p. 5, 23 jan 1940.


56

O registro de notas anuais apresentando os alunos aprovados na primeira série do curso


ginasial aponta que Português, Francês, História, Geografia, Ciências e Desenho eram as
disciplinas ofertadas naquele momento. Ao final de seu único ano no Liceu Piauiense, J. Miguel
de Matos havia ficado em dependência nas disciplinas de Matemática e Ciências. Embora
reconheça que não foi aluno exemplar “nem nas notas, nem na conduta”,115 J. Miguel de Matos
atribui seu fraco desempenho à necessidade de trabalhar e ajudar no sustento familiar. Aprovado
com restrições para a série seguinte este abandona o Liceu Piauiense em virtude de seu ingresso
como voluntário no Exército Brasileiro e, mais uma vez, a responsabilidade pela não
continuidade dos estudos recai sobre terceiros. Como soldado, J. Miguel de Matos poderia
conciliar a vida militar à rotina do Liceu Piauiense, contudo este se diz vítima de vingança
praticada por um sargento do Exército ligado à família Ribeiro que, sabendo do episódio
ocorrido ainda na Escola Modelo, aproveitou sua influência para providenciar o trancamento
de sua matrícula junto ao Liceu Piauiense pondo fim à trajetória formal de escolarização deste
escritor.
O percurso pelas várias escolas possibilitou a J. Miguel de Matos uma vivência
diferenciada da cidade. À medida que se deslocava para escolas, cada vez mais distantes da Rua
das Pedras, o jovem Miguel visualizava as mudanças pelas quais Teresina passava e isto
aprofundava a percepção da situação de pobreza e marginalização em que sua família estava
inserida. Se a capital a que chegaram no início do século XX inseria-se timidamente no processo
de modernização impulsionado pelos lucros do extrativismo, sendo descrita como uma cidade
com muitas casas de palha, sem calçamento, água tratada, transporte público, luz elétrica,
esgoto e telefone,116 a cidade por ele percorrida ao longo da década de 1930 sofrerá mudanças
estruturais derivadas de melhorias nas receitas públicas e também dos investimentos
ideológicos do Estado Novo.
Ao relembrar a cidade que percorreu em sua infância e adolescência, J. Miguel de Matos
assim a apresenta

A cidade era, apenas o esboço desta Teresina de hoje, de tão pobre, de tão
simples, de tão humilde, de tão menina: não tinha água encanada, não tinha
luz elétrica, não tinha transporte coletivo, não tinha quase nada para depositar
na mão merecida do adventício faminto, nem paisagem que pudesse
deslumbrar o turista que viesse em busca de novas emoções. E, toda vez que
eu tinha de cruzar as suas ruas quase desertas, pisando a piçarra amolecida

115
MATOS, 1969, p. 158.
116
QUEIROZ, Teresinha. Os literatos e a República: Clodoaldo Freitas, Higino Cunha e as tiranias do tempo.
Teresina: EDUFPI, 2011. p. 23.
57

pelas chuvas ou endurecida pelos raios de fogo do sol, sentia uma vontade
estranha de dizer que Teresina tinha os pés descalços.117

A cidade humilde e acanhada terá sua realidade alterada a partir de 1930. A interventoria
de Leônidas de Castro Melo,118 responsável por implantar no Piauí as mudanças propostas pela
Era Vargas, ao investir na construção de espaços públicos, na interligação do Piauí a outras
regiões do país e na reformulação das práticas educacionais, apoiava-se na ideia de que o
progresso resulta da ruptura com os antigos modos de governar. À medida que autorizava a
construção de obras públicas, estimulava o surgimento de postos de trabalho, renomeava ruas,
investia no ensino, lazer, cuidados com a saúde e aliado a isto, comemorava-se cada realização
com intensas propagandas e cerimônias públicas, este interventor buscava cravar a diferença
entre as propostas do novo governo e seus antecessores.

Figura 2 – Espaços percorridos por J. Miguel de Matos

Fonte: Mapa elaborado a partir de seus relatos no livro de memórias Pisando Os Meus Caminhos.

117
MATOS, 1969, p. 78.
118
Nasceu em Barras (PI) em 15 de agosto de 1897 e faleceu em Teresina em 24 de maio de 1981. Bacharelou-se
na Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro exercendo a função de médico e gestor no Serviço de Profilaxia Rural
do Estado e no Serviço de Doenças Venéreas do Estado. Atuou como professor na Escola Normal Oficial, no
Ginásio Oficial do Piauí e no Colégio Estadual do Piauí. Sua carreira política envolve atuações como vereador,
interventor do Piauí entre os anos 1931-1935, deputado federal e senador. É um dos sujeitos que teve seu perfil
biográfico elaborado por J. Miguel de Matos.
58

As gestões dos prefeitos Luís Pires Chaves (1932-1935) e Lindolfo do Rêgo Monteiro119
(1936-1945) foram marcadas pelos esforços de construção de uma nova Teresina. O menino
Miguel de Matos experienciará uma cidade que cresce e se moderniza de modo lento e desigual.
À medida que se deslocava pela capital, este deve ter percebido as tentativas dos gestores em
solucionar os problemas urbanos do plano traçado originalmente pelo Conselheiro Saraiva.
Novas edificações, arborização da cidade, saneamento e pavimentação de ruas, investimentos
em novas formas de circulação e usufruto dos espaços urbanos dão origem a uma nova Teresina,
iniciando o lento processo de migração das decisões políticas e econômicas dos quadriláteros
originais projetados por Saraiva para a região da Avenida Frei Serafim, que, após receber
calçamento e arborização, foi rebatizada de Avenida Getúlio Vargas.
Os cronistas que se dedicam a registrar o cotidiano da cidade apontam as contradições
do processo de modernização pelo qual Teresina está passando. Entre encantamentos e
reivindicações diante projeto de modernização empreendido, observa-se que este não
contemplava as demandas reais da cidade, tornando-se um projeto que, ao satisfazer os desejos
reformistas da elite local, restringia os melhoramentos a algumas regiões da cidade, excluindo
os mais pobres dos investimentos possibilitados pelo êxito da economia extrativista.
Diferente da “cidade de pés descalços” rememorada por J. Miguel de Matos, no início
dos anos 1940 um cronista maranhense assim se refere capital do Piauí:

Ruas bem calçadas, largas e arborizadas. Praças públicas dignas de uma


capital, como as praças Deodoro, Rio Branco, Pedro II e João Luís [...] Está
prestes a ser terminada a avenida Presidente Vargas, medindo quarenta metros
de largura e dois quilômetros de comprimento.120

O cronista apresenta uma cidade que se moderniza e rompe com a imagem de


provincianismo e atraso.121 Em 1940, a população de Teresina totaliza 67.641 habitantes122
sendo a agricultura, a pecuária, o extrativismo as atividades econômicas que impulsionam o
crescimento do comércio e a demanda por serviços públicos. Comparado a outras capitais, o
crescimento populacional de Teresina é lento. Reformas infra estruturais propiciarão a
emergência da cidade descrita pelo cronista atraindo migrantes com possibilidade de emprego

119
Nasceu em Teresina em 1986 e faleceu na mesma cidade em 1974. Médico, foi prefeito de Teresina de 1936 a
1945.
120
DIÁRIO OFICIAL. Teresina, p. 3, 28 fev. 1941.
121
Em suas memórias autobiográficas, o acadêmico imortal Antônio Bugyja Brito assim descreve a Teresina da
década de 1910: “[...] Teresina era cidade tipicamente provinciana, de costumes pacatos e de pouca população [...]
de comércio rudimentar, sem indústria, muito quente e sem atrações ecológicas [...], dispunha de quatro unidades
escolares para ministrar o ensino primário, uma praça pública e três largos, nenhuma calçada [...]” (BRITO,
Bugyja. Narrativas autobiográficas. Rio de Janeiro: [s. n.], 1977. p. 156.
122
PREFEITURA MUNICIPAL DE TERESINA. Teresina: dinâmica populacional. Teresina: SEMPLAN, 2014.
59

e pela propaganda que, ao descrever a cidade como moderna e progressista, evidenciava a


diferença entre esta e as demais regiões do Estado. À medida em que se investe na arborização
e calçamento de vias públicas, na construção de prédios públicos, no incremento do sistema de
transportes a capital piauiense vai ganhando nova feição, sobretudo nas áreas centrais.123
Investimentos na construção de escolas públicas tais como o novo prédio do Liceu Piauiense e
a Escola de Aprendizes Artífices, na modernização do sistema de saúde com a edificação do
Hospital Getúlio Vargas, na reforma de praças tais como a Praça Marechal Deodoro, Praça
Pedro II e a Praça João Luís Ferreira inserem-se nas tentativas do Estado Novo em construir
obras que seriam utilizadas pela população em seu cotidiano seja nas atividades educacionais,
nos cuidados com a saúde e nas práticas de lazer forjando assim o surgimento do novo homem
idealizado por este governo.
O discurso construído em torno das noções de progresso e ruptura visa construir uma
nova realidade. Michel Foucault apresenta os discursos como espaços de poder, sendo ao
mesmo tempo manifestação e objeto de desejo do poder.124 A perspectiva de Norman
Fairclough articula os discursos aos processos de mudanças sociais, como espaço de articulação
e manifestação das disputas sociais. Se considerarmos os incrementos no equipamento urbano
que emergem sobretudo no período do Estado Novo e os articularmos com narrativas que
compararam a cidade atual com a cidade do início do século XX, veremos um discurso que,
apoiado em obras e serviços colocados à disposição, constroem uma imagem positiva do
governo. Porém, os debates que emergem em torno do alcance desses melhoramentos urbanos
evidenciam seus limites e contradições.
Considerando os discursos como espaços de poder articulados aos processos de
mudança social, encontramos em Roger Chartier uma nova possibilidade de entendimentos dos
discursos, a saber, o discurso sendo considerado uma prática capaz de produzir representações
acerca da realidade vivenciada. Longe de serem a verdade sobre os acontecimentos, os
discursos entendidos também como representação,

[...] tendem a impor uma autoridade à custa de outros, por elas menosprezadas,
a legitimar um projeto reformador ou a justificar, para os próprios indivíduos,
as suas escolhas e condutas. Por isso [a] investigação sobre as representações
supõe-nas como estando sempre colocadas num campo de concorrências e de

123
Em pesquisa fundante sobre o Estado Novo no Piauí, Francisco Alcides do Nascimento discutiu o processo de
modernização implementado em Teresina. Articulando fontes oficiais e hemerográficas às narrativas orais, o autor
apresenta discursos em torno da modernização da cidade, sobretudo o processo de segregação social que dele
resulta. Cf.: NASCIMENTO, Francisco Alcides. A cidade sob o fogo: modernização e violência policial em
Teresina (1937-1945). Teresina: Edufpi, 2015.
124
FOUCAULT, 2014, p. 10.
60

competições cujos desafios se enunciam em termos de poder e de


dominação.125

A discussão proposta por Roger Chartier nos convida a refletir sobre como discursos e
práticas constroem representações sobre o passado. Para o desenvolvimento dessa narrativa,
tomamos os discursos como reflexos dos jogos de poder que marcam as sociedades.
Considerando o conjunto de discursos favoráveis ao governo de Getúlio Vargas, percebemos
as intenções de seus apoiadores em marcar seu lugar no imaginário político e social brasileiro,
extrapolando as medidas político-econômicas ao impactar na forma como os sujeitos dialogam
com a cidade em que habitam.
Se o investimento em obras públicas altera a percepção dos moradores acerca dos usos
dos espaços urbanos, a alteração dos nomes dos logradouros, também colocada em prática pelo
Estado Novo, impactará na relação que os moradores têm com a cidade em que habitam. No
decorrer das décadas de 1930 e 1940, praças, escolas, edifícios públicos, ruas e avenidas tiveram
seus nomes originais, inspirados em elementos da paisagem local e em homenagens a figuras
políticas ligadas aos eventos anteriores a 1930, alterados à medida que o regime varguista
ganhava força. O batismo ou a renomeação dos espaços públicos, as cerimônias e
comemorações relativas a momentos considerados importantes pelo governo tinham como
objetivo construir uma memória positiva sobre esse momento bem como ressignificar a
memória social ao produzir discursos negativos sobre os governos anteriores.
Ruas, prédios, monumentos, cerimônias públicas e festas cívicas serão tomados como
instrumentos de propaganda. Inovações arquitetônicas como prédios de dois pavimentos
construídos em concreto armado, o uso de linhas retas e sóbrias provocam mudança na estética
da cidade. As inaugurações festivas, as celebrações cívicas grandiosas para onde acorriam
autoridades e populares tornaram-se símbolo de um novo modo de governar e comemorar as
conquistas do governo. Para além do uso cotidiano, as obras públicas e as celebrações políticas
podem ser entendidas como um símbolo do novo. Assim como Roger Chartier apontou a força
dos discursos na construção de representações sobre o passado, Pierre Bourdieu apresenta como
as simbologias forjam o imaginário social, isto porque

Os símbolos são os instrumentos por excelência da “integração social”:


enquanto instrumentos de conhecimento e de comunicação [...], eles tornam
possível o consensus acerca do sentido do mundo social que contribui
fundamentalmente para a reprodução da ordem social: a integração “lógica” é
a condição da integração “moral”.126

125
CHARTIER, 1987, p. 18.
126
BOURDIEU, 2002, p. 10.
61

Em Pisando Os Meus caminhos, J. Miguel de Matos questiona a mudança empreendida


nos nomes das ruas da cidade, em especial daqueles locais vivenciados diretamente por ele.
Assim como manifestou-se contrário à alteração da nomenclatura da Rua do Molambo, em
Floriano, este escritor questiona as motivações para o novo batismo da Rua das Pedras, que, em
fins da década de 1940 será renomeada para Rua João Cabral.127 Embora essa mudança,
aparentemente, não se relacione aos jogos de poder empreendidos por membros de regimes
políticos antagônicos, sendo uma homenagem ao juiz piauiense que integrou o Tribunal
Superior Eleitoral e participou da elaboração do anteprojeto do Código Eleitoral na década de
1930, J. Miguel de Matos critica as decisões dos gestores que “não respeitam o gosto do
povo”.128
Repetindo a tática argumentativa que rejeitava a nova denominação da Rua do
Molambo, J. Miguel de Matos alega que o distanciamento entre os administradores públicos e
a população promove alterações que descaracterizam a forma como os moradores interagem
com a cidade. Arrogando-se o poder de falar em nome de todos os moradores desta rua, o
escritor já adulto, afirma que é consciente da mudança na nomenclatura, contudo a rejeita

A Rua das Pedras, que mudou de nome por decisão dos homens sérios que
fumam charuto havana em lugar de cachimbo de umburana; que fumam
cigarro americano, em lugar de cigarro de palha, tem hoje, para tristeza do
meu coração, outra nominação: Rua João Cabral, mas que, para mim continua
simplesmente Rua das Pedras, batizada pelo povo que sabe beber inspiração
na alma das coisas, brotando dessa capacidade de nominar com justeza e
sabedoria, as verdades que não podem ser embotadas pelo buril da vaidade.129

Ao afirmar que o termo Rua da Pedras é o resultado da leitura atenta e afetiva que seus
habitantes fazem dessa região da cidade, o escritor recusa o novo nome pois este está distante da
realidade da população que efetivamente habitava esse lugar. Para além da impessoalidade da
nova designação, cumpre destacar o impacto desta nos esforços empreendidos por J. Miguel de
Matos no sentido de construir uma imagem de si como alguém cuja pobreza faz-se perceber em
detalhes como a designação dos lugares em que morou. No plano pessoal, soa mais interessante
a articulação de sua trajetória com uma nomenclatura que remete a cascalhos e detritos. O
investimento na associação de sua imagem às pedras que resistem às intempéries é mais sedutor

127
Não foi possível localizar o momento exato em que a Rua das Pedras passou a ser chamada de Rua João Cabral.
Fontes sobre a denominação das ruas e bairros da cidade disponibilizadas pela Secretaria Municipal de
Planejamento possuem uma lacuna sobre as alterações feitas entre os anos 1937-1947. O que pode ser afirmado é
que, em 1936, o logradouro aparece com a denominação Rua das Pedras e em 1948 com a denominação Rua João
Cabral. Possivelmente a alteração na nomenclatura foi feita em homenagem ao jurista piauiense e acadêmico
imortal João Crisóstomo da Rocha Cabral, falecido em 1946.
128
MATOS, 1969, p. 66.
129
MATOS, 1969, p. 99-100.
62

do que atrelá-la a um termo originado de uma homenagem que pode ser facilmente desfeita.
Diferente da cidade idealizada e propagandeada, a Teresina que J. Miguel de Matos
percorreu associava-se mais à rudeza das pedras do que ao esplendor que as autoridades
propagandeavam. No que diz respeito ao calçamento das ruas da cidade, este foi impulsionado
apenas na década de 1930, priorizando-se as áreas centrais. Com base em relatórios de governo,
Alcides Nascimento, afirma que, em 1927, Teresina contava com 1.100m2 de ruas calçadas
saltando para uma área de 72.152.55m2 em 1940.130 Mesmo correndo o risco de retaliações por
apresentar uma cidade diferente da propagandeada pelo poder público, um cronista escreve
sobre a precariedade do calçamento na cidade ao tempo que reivindica solução para o problema

É uma cena de arrepiar o observador a passagem de um automóvel em


disparada, por qualquer dos lados da Igreja de São Benedito: aí se levanta,
vermelha e espessa, uma onda de pó, qual, levada pelo vento, invade as casas
próximas, com flagrante perigo para os seus habitantes. Os transeuntes, nessas
ocasiões, precisam levar o lenço ao nariz, como recurso preventivo nesta
quadra de gripe aguda e pertinaz.131

A circulação de automóveis e a existência de poeira nas proximidades do Palácio de


Karnak, sede do governo do Piauí, evidencia as contradições do progresso vivenciado por
Teresina. À falta de calçamento das ruas somam-se problemas tais como as dificuldades de
circulação pela cidade, apesar dos investimentos em sistema de transporte urbano mantido pela
prefeitura.132 Os jornais da época apresentam reclamações sobre a constante falta de energia
elétrica e dificuldades para o abastecimento d’água na cidade. O governo se defendia afirmando
que, em virtude do estado de guerra, tinha dificuldade para substituir o maquinário obsoleto da
Usina Elétrica. Sem abastecimento elétrico, nas áreas centrais da cidade, habitadas pela elite,
recorre-se à compra de água transportada em lombo de animais. Contudo, as oscilações na
oferta de energia elétrica era um problema que quase não atingia as áreas habitadas pela
população pobre haja vista que as redes de abastecimento e distribuição dificilmente chegavam
a essas regiões seja porque eram insuficientes, seja porque os moradores não podiam arcar com
os custos. Quanto ao abastecimento d’água, a residência dos Matos repetia o que se passava em
outros lares da população pobre: a coleta diária de água no Rio Parnaíba era responsabilidade
dos meninos que ainda não trabalhavam.
Nas regiões periféricas, as moradias eram de palha, em geral, ou habitações prensadas
umas nas outras, sem acesso ao abastecimento de água e energia elétrica. Somente no início dos

130
NASCIMENTO, 2015, p. 151.
131
GAZETA. Teresina, p. 2, 10 set. 1939.
132
NASCIMENTO, Francisco Alcides do. Teresina: entre o “real e o desejo”. Cadernos de Teresina, Teresina,
ano 11, n. 29, p. 29-39, ago. 1998.
63

anos 1940, a região próxima ao Rio Parnaíba atrairá o olhar das autoridades. Incêndios
frequentes nos casebres de palha servirão como justificava para uma intervenção urbanística
pautada nos discursos de higienização e moralização das práticas cotidianas. As intervenções
que tinham como objetivo revitalizar esta área insalubre e sem infraestrutura promoveram a
retirada das famílias que habitavam esta região para áreas afastadas do centro da cidade. Tal
prática evidencia como a modernização implementada em Teresina processou-se de modo
seletivo e excludente, destinado ao usufruto da elite política e econômica da cidade.
Os ofícios mal remunerados forçavam parte da população para a prática de pequenos
delitos ou ingresso na prostituição. Em Teresina, a Rua Paissandu, nas proximidades do Rio
Parnaíba historicamente abriga espaços destinados à prática da prostituição. A Rua das Pedras
situava-se em suas adjacências e o temor de que as irmãs fossem atraídas para a zona do
meretrício aparece nas memórias de J. Miguel de Matos.
Para garantir o sustento familiar, na ausência da figura paterna, Maria do Ó trabalhava
como costureira e tinha como suas principais clientes as mulheres que viviam e trabalhavam na
Rua Paissandu. O adulto J. Miguel de Matos afirma que desde cedo lhe causava preocupação a
proximidade com a região meretrícia e o fato de que estas mulheres frequentavam sua casa

O quadro que era diário, naquele pequeno antro de libertinagem, passou a me


inquietar, num zelo à pureza de minhas irmãs – duas das quais – Maria da
Lourdes e Maria da Cruz – já estavam mocinhas, atravessando a fase da vida
em que a carne, na sua fogueira lúbrica, é perigosamente explosiva. Meu pai,
nesse momento crucial da minha vida, estava esquentando outros ninhos, lá
para o Sul do Piauí ou do Maranhão. [...] Assim [...] tive eu um dia, depois de
longa meditação, juntando as pequeninas forças, de dizer à minha mãe o que
vinha guardando, muito bem guardado, para dizer ao meu pai: - Precisamos
sair desta rua! As meninas estão ficando moças!133

O tom moralizante da narrativa articula-se com o desejo de construir uma imagem


virtuosa para si e sua família. Pelas conversas travadas com sua mãe, é possível que J. Miguel
de Matos apreendesse os receios desta quanto ao futuro dos filhos. Contudo, a narrativa deste
escritor que se orgulha de ser católico praticante a ponto de afirmar que muitas passagens de
vida são semelhantes aos sofrimentos de Jesus Cristo, quer nos convencer que este tomou para
si a função de protetor familiar. O tom moralizante em relação à realidade dos moradores da
Rua Paissandu e a retomada da crítica à figura paterna destacam-se nesse trecho. A resposta
dada por Maria do Ó articula seu reconhecimento da vulnerabilidade a que sua família estava
exposta e um posicionamento prático diante da pobreza em que estavam inseridos: “é dessas

133
MATOS, 1969, p. 100.
64

desgraçadas, meu filho, que tiro o sustento de vocês!”.134


A resposta que J. Miguel de Matos afirma ter recebido de sua genitora oferece um novo
olhar às suas tentativas de minimizar as travessuras de seu filho ou interceder por ele junto a
professores e possíveis empregadores. Sinal de carinho e de reconhecimento das adversidades
que cercavam o ambiente em que estavam inseridos, Maria do Ó tomou para si a função de
tentar proteger o filho aspirante a produtor de livros.

2.3 De soldado-cidadão a militar-escritor: a construção de um jovem trabalhador

“A adolescência é uma época de angústia que não deve ser lida”.135 Em Pisando Os
Meus Caminhos, o escritor J. Miguel de Matos assim registra suas impressões sobre eventos e
personagens que marcaram esta fase de sua vida. Menino pobre e indisciplinado, sua
adolescência representa o momento em que aguça a consciência sobre sua situação de pobreza
e, segundo o narrador que rememora e registra suas impressões sobre sua trajetória, é o
momento em que assume responsabilidades quanto à sobrevivência da família inserindo-se em
ambientes de trabalho.
O cotidiano do menino J. Miguel de Matos em Teresina conciliava a rotina escolar com
atividades ligadas à vida doméstica, intimamente ligadas ao Rio Parnaíba posto que este era o
espaço privilegiado em que famílias pobres garantiam água para o consumo diário, onde
pescarias de emergência garantiam as refeições e era também onde aconteciam os lazeres com
amigos e familiares. À medida que este crescia e seu comportamento agressivo passou a ser
questionado por vizinhos e professores, Maria do Ó tomou providências a fim de discipliná-lo
e afastá-lo de uma vida indolente. Conciliar escola e a aprendizagem de ofícios foi a solução
encontrada pela matriarca no primeiro momento. Além do disciplinamento, sua mãe acreditava
que tal investimento poderia ajudar em sua futura inserção no mundo do trabalho e, de maneira
mais imediata, garantir reforço ao orçamento doméstico.
Optar pela qualificação profissional, mesmo que informal, em detrimento do
investimento na educação formal dos filhos era uma prática frequente entre as famílias pobres
do Brasil na década de 1930. A quantidade insuficiente de escolas ou mesmo a dificuldade de
acesso a estas, a oferta de um ensino elitista, enciclopédico e punitivo distanciava-se dos anseios
imediatos das famílias, preocupadas com a sobrevivência financeira. O movimento de reforma
do cenário educacional articulado pelo Manifesto dos Pioneiros tinha como objetivo modificar

134
MATOS, 1969, p. 101.
135
MATOS, 1969, p. 124.
65

esta realidade e fazer emergir um modelo em que o ensino fosse integral, gratuito, obrigatório
e voltado às necessidades da população.
A força política do Manifesto dos Pioneiros fez-se sentir na Carta Constitucional de
1934 motivando alterações na legislação educacional brasileira com um maior investimento na
formação de professores, reformulação de currículos e do ponto de vista prático, impactando
no aumento de número de escolas e matrículas disponíveis. Contudo, a imposição de um novo
texto constitucional em 1937 desarticulou a efetivação dessa reforma ao minimizar os deveres
do Estado para com a educação de crianças e jovens136. Se, de um lado, a legislação determina
que o ensino primário é gratuito e obrigatório, em outro extremo o poder público não construiu
mecanismos que garantissem o acesso e a permanência na escola. Some-se a este cenário que
as dificuldades de crianças e jovens em assimilar o que era ofertado no espaço escolar,
motivavam reprovações e evasão contribuindo para que as famílias não se sentissem
estimuladas a enviar seus filhos para a escola.137
A trajetória escolar de J. Miguel de Matos é reflexo do distanciamento e da descrença
de boa parte da população brasileira diante do modelo educacional proposto. Mesmo que o
narrador de Pisando Os Meus Caminhos insista em afirmar que sua paixão pelas letras foi
instantânea e que injustiças o forçaram ao autodidatismo, as tentativas de construir-se como
alguém que superou obstáculos a fim de priorizar os estudos evidenciam que o ambiente escolar
não era uma opção fácil para jovens de sua classe social. Com isso, não queremos dizer que o
acesso a educação não era importante para a família Matos, mas sim que, tal qual muitas
famílias em situações econômicas semelhantes, o acesso e permanência no ensino formal não
era algo tão simples.
Não foi possível localizar o ano exato em que J. Miguel de Matos ingressou no ensino
formal. A datação dos eventos que escolheu registrar em suas memórias não faz parte de seu
estilo de escrita e, em muitos casos, os arquivos disponíveis para pesquisa não oferecem suporte
para estas afirmações. O que este escritor nos afirma é que ingressou no Liceu Piauiense aos
dezessete anos para cursar a primeira série do ensino fundamental secundário. Se o acesso ao

136
PALMA FILHO, João Cardoso. A educação brasileira no período de 1930 a 1960: a era Vargas. Disponível
em: https://acervodigital.unesp.br. Acesso em: 14 out. 2020.
137
Importante fonte sobre os dados censitários da população brasileira, a Revista Brasileira de Estatística,
disponível em meio digital no endereço http://www.rbes.ibge.gov.br, apresenta debates entre estatísticos, em
especial sobre as formas possíveis de análise dos dados referentes a escolaridade, alfabetização, evasão e
reprovação. Apesar das divergências metodológicas, os debatedores ao se debruçarem sobre números e gráficos
expõem um contexto em que a dispersão demográfica, a reprovação escolar e as limitações dos programas de
ensino primário e secundário contribuíam para as altas taxas de analfabetismo. Sobre essa discussão, destaco os
artigos FREITAS, M. A. Teixeira. Dispersão demográfica e escolaridade. Revista Brasileira de Estatística, Rio de
Janeiro, v. 1, n. 3, p. 497-527, jul.-set. 1940 e LOURENÇO FILHO. A evasão escolar no ensino primário brasileiro.
Revista Brasileira de Estatística, Rio de Janeiro, v. 2, n. 7, p. 539-552, jul-set. 1941.
66

ensino formal era feito a partir dos sete anos de idade, podemos presumir que a distorção idade-
série que marca sua trajetória foi motivada pelo ingresso tardio ou decorreu das punições e
expulsões que experenciou. Embora afirme que sua mãe satisfazia suas vontades e se envaidecia
diante de sua habilidade com a cartilha do abc, seu relato memorialístico também registra que
sua matrícula no ensino formal foi motivada pela necessidade de discipliná-lo.
Maria do Ó expressava sua preocupação com o futuro do filho nas tentativas que fazia
de distanciá-lo das traquinagens. Ao tempo em que não queria afastá-lo das atividades
escolares, a ponto de interceder por ele junto a diretores de escola, esta também solicitava a
chefes de repartições ou mestres de ofícios que ensinassem suas práticas ao menino Miguel
como forma de ocupar seu tempo ocioso e inseri-lo no mundo do trabalho. Por iniciativa de sua
mãe, J. Miguel de Matos tornou-se aprendiz de ferreiro em várias oficinas de Teresina. Em suas
memórias, o escritor faz referência aos mestres José Soares, Baumann e Jonas e destaca a
importância destes em sua trajetória.138
Em um primeiro momento, o narrador afirma que se tornar aprendiz de ferreiro era
considerado um castigo para os meninos vadios de Teresina.139 Logo, em seguida, esta
informação, que se articula com aquilo que afirmava ser uma das motivações de sua mãe, é
relativizada quando o escritor empenha-se em desconstruir a figura paterna a fim de construir
sua própria imagem como a de alguém que desde cedo aprendeu a zelar pela família. Ao
rememorar sua experiência como aprendiz de ferreiro, este registra

Eu, menino pensado [...] me limitava apenas, [...] a procurar por todos os
meios evitar que faltasse de todo o sustento da casa, vazia da figura do pai
desertor. E nessa tarefa diária, sem procurar a razão das fugas de meu pai,
entregava-me entusiasticamente à venda de objetos de uso caseiro que eu
mesmo fabricava nas oficinas de ferreiro por onde passei aprendendo o ofício:
tampas de panela, espeto, gancho e trempe de ferro. Essa prática comercial e
essa responsabilidade, se não sortiram a despensa de casa, ensinaram-me, em
aulas diárias que o Diabo servia de mestre, para disciplinar a personalidade de
futuro pai de família.140

Ao listar os objetos que produzia e vendia, J. Miguel de Matos nos mostra como esta
experiência foi proveitosa pois lhe garantiu um saber capaz de proporcionar o sustento familiar.
Afirma ainda que, como aprendiz do Mestre Jonas, teve passagem rápida pela Usina Elétrica

138
Anos mais tarde, J. Miguel de Matos afirma ter sido aprendiz do ferreiro Elias Torres, chefe da Oficina de
Ferreiro da Fábrica de Fiação. Contudo, os textos publicados no jornal O Estado e na Revista Fazendária não
dedicam-se ao registro dessa prática e sim ao elogio de João Claudino, empresário que fundou a primeira empresa
do Grupo Claudino no espaço onde antes funcionava a Fábrica de Fiação. Cf.: MATOS, J. Miguel de. J. Miguel
de Matos escreveu: o piauiense João Claudino. Revista Fazendária, Teresina, n. 44-45, p. 36-37, abr. 1985.
139
MATOS, 1969, p. 86.
140
MATOS, 1969, p. 130.
67

de Teresina onde atuou em sua “oficina mecânica, destinada ao reparo de suas velhas e cansadas
máquinas”.141 A referência ao maquinário antiquado desta usina insere o registro de J. Miguel
de Matos entre os relatos que denunciam a má qualidade do abastecimento de água e energia
elétrica na capital piauiense durante a década de 1930.
Por considerar o ofício de ferreiro pouco lucrativo, o escritor afirma que se dedicou a
ele por pouco tempo. Abandonando as oficinas passou a vender, de porta em porta, exemplares
da revista Vida Doméstica, distribuída em Teresina pela livraria M.A.Tote. Segundo o narrador,
o fascínio que a revista causava no público leitor feminino alimentava seu sonho de um dia ser
um literato consagrado.142 Afirma ainda que trabalhou como faxineiro de escritório comercial,
embora não aprofunde relatos sobre essa experiência.
Abandonando a venda de revistas, J. Miguel de Matos empregou-se como cobrador de
ônibus na empresa do Sr. Guimarães, apontado como um dos pioneiros no sistema de
transportes coletivos em Teresina. Na capital do Piauí, o sistema de transportes data da década
de 1910 com a introdução do bonde, que funcionava ora como meio facilitador do deslocamento
diário, ora como instrumento de lazer para os teresinenses.143 Na década de 1920, esse sistema
entrou em decadência, em virtude do preço das passagens, da falta de manutenção dos
equipamentos e do processo de segregação social resultantes de sua utilização. Ao longo da
década de 1930, algumas empresas privadas, subsidiadas pelo poder municipal, investiram no
sistema de transporte coletivo por meio de ônibus144 e, neste momento, J. Miguel de Matos
vivenciou a atividade de coletor de passagens.
Em suas memórias, o narrador afirma que a profissão era modesta e oferecia pouca
lucratividade, contudo aos olhos do adolescente era uma atividade fascinante, por lhe
proporcionar o contato com pessoas diferentes. O baixo ordenado e a rudeza de alguns
passageiros eram suavizados pelo contato com as jovens que, ao deslocarem-se pela cidade,
despertaram no jovem cobrador o interesse afetivo. O despertar para os flertes e namoros
juvenis foram assim apresentados

A ocupação, apesar de modestíssima, era muito atraente, pois, além de


possibilitar um convívio com toda espécie de gente, eu ainda arranjava, vez

141
MATOS, 1969, p. 152.
142
MATOS, 1969, p. 130.
143
NASCIMENTO, 1998, p. 29-39.
144
Apenas na década de 1940, a prefeitura implementou a Empresa Municipal de Transportes Urbanos com frota
de 3 ônibus que interligavam as regiões Praça Deodoro – Estrada S. Raimundo, Deodoro – Estação da Estrada de
Ferro, Cemitério São José – Vermelha. Em menos de cinco anos o sistema foi desativado sob alegação de não ser
autossustentável. Desta época até os dias atuai,s o sistema de transportes coletivos de Teresina está inteiramente
entregue à iniciativa privada. Cf.: NASCIMENTO, Francisco Alcides do. Teresina anos 40: o labirinto dos
incêndios. Cadernos de Teresina, Teresina, ano 10, n. 26, p. 51-61, maio-ago. 1997.
68

por outra, uma garota para namorar sem a intenção lúbrica da carne, ficando
tudo apenas numa conversa boba, num leve aperto de mão e quando muito
num discreto abraço de despedida. Dessa fase, que vai tão longe, conservei na
lembrança para nunca mais se apagar, o namoro inocente que tive com uma
mocinha de nome Maria de Lourdes, filha de um engenheiro da Estrada de
Ferro São Luís-Teresina, em cuja estaçãozinha eu, para me encontrar com
Lourdes, longe das vistas de seus pais que não iam permitir que ela – moça
rica e lindíssima – fosse manchar seu nome com um cobrador de ônibus –
passei longas horas, sem ter coragem de pegar, pelo menos, em suas mãos,
ficando nosso namoro reduzido a uma simples troca de olhares. Quase
diariamente Lourdes ia ao centro da cidade, usando na ida e na volta, andando
sempre sozinha, o ônibus em que eu trabalhava para ajudar no sustento de
casa. Os coices que costumar levar de alguns passageiros, eram compensados
com a presença quase diária de Maria de Lourdes, cuja beleza morena era
trajada mais comumente com vestiário feito de seda estampada e muito fina,
deixando ver, açulando a fome canina da carne, o contorno dos quadris, das
coxas e dos seios fartos e empinados [...].145

O platonismo de seu envolvimento com Maria de Lourdes é mais uma oportunidade


aproveitada por J. Miguel para construir-se como indivíduo menosprezado em virtude de sua
origem social. Para reforçar esta imagem, afirma compreender que um possível relacionamento
seria alvo de críticas e proibições. Descreve o flerte como bobo e discreto e, dessa maneira,
constrói-se também como jovem respeitoso, sobretudo quando se tratava de relações com
pessoas distintas socialmente.
No contexto desta narrativa memorialística, percebemos, por contraste, sua postura em
relação à moças de origem social semelhantes à sua: enquanto Maria de Lourdes é descrita
como moça formosa porém inalcançável, as formas como descreve os atributos físicos e registra
os sentimentos que Aldenora e Conceição despertaram em sua sexualidade revelam como o
adulto J. Miguel de Matos distingue os tratamentos destinados às mulheres advindas ou não de
famílias abastadas. Aldenora, sua colega de classe no Colégio Santo Antônio ganhou um
beliscão por, sem saber, ter despertado seu apetite sexual com sua beleza. Conceição, moça
negra que sua mãe criava desde Floriano, é descrita como aquela que era sua companhia
constante e que, pela primeira vez, despertou nele a ideia de sexo.
O enamoramento com Maria de Lourdes não durou muito tempo. O proprietário da
empresa de ônibus para o qual trabalhava envolveu-se em homicídio e após ser solto, encerrou
suas atividades em Teresina. O jovem Miguel retornou à ociosidade e em suas perambulações
pela Rua das Pedras, travou conhecimento com Michel Ommati, imigrante sírio que engrossava
a colônia árabe em Teresina e, assim como seus muitos de seus conterrâneos, dedicava-se ao
comércio. Michel Ommati era proprietário de estabelecimento localizado no cruzamento da

145
MATOS, 1969, p. 130-131.
69

Rua das Pedras com Rua Paissandu e tinha entre seus fregueses habituais os barqueiros que
atracavam no Rio Parnaíba e os frequentadores da região meretrícia. A proximidade entre o
sírio e o futuro escritor travou-se quando este passou a auxiliá-lo na limpeza, organização e até
mesmo no caixa do estabelecimento que era misto de quitanda e bodega.
A referência ao carcamano Ommati possui um objetivo prático no interior da narrativa
de J. Miguel de Matos. Representa mais uma oportunidade de apresentar-se como alguém
confiável e capaz de resistir às tentações do meio em que estava inserido. Embora dependesse
financeiramente daquilo que Michel Ommati lhe pagava, o narrador adulto condena o fato de
que, neste estabelecimento se vendesse bebidas alcoólicas, pois segundo ele, tal prática
alimentava vícios e degenerava os homens.146 A fim de evidenciar sua moralidade, o sujeito
que escreve suas memórias não esconde suas críticas àqueles que se entregam a prostituição e
ao alcoolismo.
A construção de uma imagem positiva de si aparece ainda em relatos sobre a confiança
que o sírio tinha em seu jovem ajudante a ponto de deixá-lo responsável pelo caixa em
momentos de sua ausência. Sobre a relação entre os dois, J. Miguel de Matos escreve:

Além de tudo, Michel Ommati, quando me confiava o balcão e a gaveta de


sua quitanda, não tencionava que eu me educasse no livro atraente do vício,
de que sua casa comercial, instalada no fulcro de um meretrício, era uma
página tentadora e aberta. Quando ia para suas compras ou para suas
cobranças, nunca esquecia de me dizer, assegurando a paga do meus trabalhos,
antes de transpor o batente alto da porta, mostrando um sorriso furtivo no rosto
sombreado pela barba fechada: “Quando eu voltar, dou qualquer coisa para
você levar para casa...”147

O fragmento nos apresenta como o adulto Miguel de Matos deseja inscrever essa
experiência em sua trajetória. O autor reconhece que era uma mão-de-obra barata para o
comerciante, contudo a lealdade era estimulada pela garantia de que o trabalho lhe permitiria
conquistar algo com o qual pudesse ajudar no sustento familiar. Diante do mundo hostil em que
ele e seus irmãos estavam inseridos, a figura do sírio Michel Ommati representa alguém que o
ajudou a sobreviver, afastando-o da libertinagem e de pequenos delitos.
Em 1969, momento em que publica Pisando Os Meus Caminhos, J. Miguel de Matos já
vivenciava sua primeira frustração por não ter conquistado vaga na Academia Piauiense de
Letras. Entre as tentativas de entender as motivações dos acadêmicos para rejeitar seu ingresso,

146
“[...] Foi nela, precisamente no encontro da Rua Paissandu com a Rua das Pedras, que Michel Ommati, que
viera de tão longe, se instalou como quitandeiro, para alimentar pelo pão e pelo ópio a fome do corpo e o apetite
do espírito, desviando para as labaredas do inferno, por força do seu meio de vida, algumas almas que talvez
sonhassem com as delícias do Éden [...]” (MATOS, 1969, p. 121).
147
MATOS, 1969, p. 122.
70

este atribui tal acontecimento ao fato de ter tido experiências sociais diferentes dos membros
daquele sodalício. Construía a Academia Piauiense de Letras como um lugar elitista,
distanciado da realidade do povo e que não sabia reconhecer os esforços de novos escritores. A
tentativa de manter a distinção desse sodalício teria motivado os acadêmicos a evitar que “as
suas mãos humildes, que venderam cachaça na bodega do Michel Ommati, não desonrassem os
punhos de ouro do espadim acadêmico”.148
Outra experiência profissional importante para o jovem Miguel de Matos foi o ingresso
como aprendiz na Imprensa Oficial. Conciliando esta atividade com os estudos no Liceu
Piauiense, este afirma que ingressou nesta repartição por intermédio de sua mãe e motivado
pela vontade de aprender a fazer livros. A atribuição de sentidos fica evidente na narrativa, com
o esforço do autor em construir-se, mais uma vez, como predestinado às letras. Contudo, em
seu livro de memórias e em artigos publicados em jornais no contexto da comemoração pelo
dia do gráfico, o escritor confidencia que sua passagem pela atual Companhia Editora do Piauí,
não teve utilidade em sua vida pois, ao invés de aprender a fazer livros, sua rotina envolvia a
compra de objetos, a entrega de recados e carregar montanhas de livros na cabeça.149
A prática profissional efetivamente vivenciada por J. Miguel de Matos iniciou-se com
seu ingresso no Exército Brasileiro. Uma nebulosa envolve as circunstâncias de sua admissão
e os vinte seis anos em que serviu a esta instituição. Os registros publicados no Diário Oficial
e em passagens de seus textos nos fornecem pistas esparsas sobre sua duradoura trajetória
militar. Diante da impossibilidade de datar o ano de seu ingresso nas Forças Armadas,
precisaremos confiar nos registros de J. Miguel de Matos quando este afirma que seu ingresso
coincidiu com a época em que era aluno do Liceu Piauiense e que teve sua matrícula escolar
cancelada por influência de antigos desafetos.150 O narrador afirma que ingressou no Exército

148
MATOS, 1969, p. 125.
149
MATOS, 1969, p. 152.
150
Com o objetivo de identificar o ano em que J. Miguel de Matos ingressou nas Forças Armadas, analisamos o
Diário Oficial, periódico estatal que à época divulgava os atos do poder público, entre eles as convocações e listas
de sorteios da Junta Militar, e trazia informações sobre o cotidiano social piauiense. O recorte de 1939 a 1945 foi
estabelecido com base nas informações fornecidas por J. Miguel de Matos que afirma ter ingressado na instituição
aos 17 anos e ter sido agraciado com Medalha de Guerra. Desse modo, analisamos os editais publicados durante
esse recorte a fim de localizar registros sobre sua participação na mobilização para a Segunda Guerra Mundial.
Apesar da periodicidade regular e do acervo deste periódico estar relativamente completo para pesquisas no
Arquivo Público do Piauí, não foi possível identificar o ano de seu ingresso. Todavia a edição do Diário Oficial
de 01 de julho de 1942 apresenta a relação de jovens da classe de 1921 que foram sorteados para o serviço militar
obrigatório. Entre os sorteados para primeira e segunda chamada chamou nossa atenção o fato do número 230 não
ter seu nome divulgado. Uma nota de rodapé traz a seguinte observação “[...] o número duzentos e trinta (230),
deixou de figurar na presente relação, por pertencer a classe de mil novecentos e vinte e três (1923) [...]”. Trata-
se, portanto, de alguém que foi alistado antes da data limite de 21 anos imposta pela legislação vigente.
Coincidentemente, no ano de 1942, deveria findar o voluntariado de J. Miguel de Matos e 1923 é seu ano de seu
nascimento. Mesmo com tais correspondências, não é possível afirmar se tratar do mesmo indivíduo.
71

aos dezessete anos, como voluntário, portanto o ano de 1940 é uma referência em nosso esforço
de compreender sua passagem por esta instituição.
A Constituição Federal de 10 de novembro de 1937 instituiu o Estado Novo, variante
ditatorial do governo de Getúlio Vargas, e motivou alterações nos estatutos e regimentos dos
setores públicos. Por meio do Decreto-lei 1187, de 04 de abril de 1939, foi apresentado a Lei
do Serviço Militar151 que define as exigências para o cumprimento do serviço militar
obrigatório e estabelece as formas através das quais se é possível ingressar na vida militar. Por
esta lei, o alistamento é obrigatório a partir dos 18 anos de idade, contudo o Capítulo XI deste
dispositivo contempla o ingresso de jovens voluntários entre 17 e 25 anos como especialistas
artífices e técnicos por um período mínimo de sete meses estendido por até dois anos desde que
haja anuência dos responsáveis legais. Os chamamentos para o alistamento militar eram
publicados no Diário Oficial e deveriam ser afixados em locais públicos e amplamente
divulgados nos meios de comunicação. Acreditamos que sua passagem pela Imprensa Oficial,
responsável pela montagem e distribuição do Diário Oficial, bem como os informativos
divulgados em escolas e programas de rádio puseram J. Miguel de Matos em contato com estas
informações e abriram em seu horizonte a perspectiva de tornar-se um militar, mesmo sem
garantias quanto à continuidade de sua permanência.
Na década de 1930, a posição social ocupada pelo Exército destoava do prestígio
adquirido pela instituição no período posterior ao golpe militar que instituiu a República no
Brasil. Embora seu papel seja relevante para a defesa interna e externa do país, a falta de
investimentos financeiros produzia uma realidade em que as tropas com baixo efetivo, técnicas
militares ultrapassadas e com equipamentos insuficientes ou obsoletos fossem desacreditadas
por parte da população gerando, inclusive revoltas internas.152 Por outro lado, o discurso
patriótico produzido por esta instituição bem como a função social desempenhada, sobretudo
com o recrutamento de jovens pobres e com poucas perspectivas profissionais, tornavam
atraentes o ingresso nesta instituição. Nesse sentido, o disciplinamento espartano da vida militar
e a oferta de um ordenado que o ajudasse nas despesas domésticas podem ter motivado a decisão
do narrador em ingressar de modo voluntário nesta instituição.
Os poucos comentários sobre sua vida militar são apresentados a partir de duas

151
BRASIL. Decreto-lei nº 1.187, de 4 de abril de 1939. Dispõe sobre o Serviço Militar. Rio de Janeiro: Câmara
dos Deputados: 1939. Disponível em: https://www2.camara.leg.br/legin/fed/declei/1930-1939/decreto-lei-1187-4-
abril-1939-349238-publicacaooriginal-72193-pe.html#:~:text=DO%20SERVI%C3%87O%20MILITAR-
,Art.,Par%C3%A1grafo%20%C3%BAnico. Acesso em: 19 out. 2020.
152
No Piauí, a Rebelião do Cabo Amador é um exemplo da insatisfação contra o autoritarismo e desvalorização
no interior da instituição. Cf.: NASCIMENTO, Francisco Alcides do. A Revolução de 1930 no Piauí: 1928-1934).
Teresina: Fundação Cultural Monsenhor Chaves, 1994.
72

perspectivas. Ao atribuir os resultados escolares insatisfatórios à necessidade de conciliar


estudo e trabalho, o autor deixa entrever um ressentimento por ter abandonado os estudos no
Liceu Piauiense em decorrência de seu ingresso no Exército. Por outro lado, em momentos em
que analisa sua trajetória em retrospectiva, afirma que

A disciplina que me chegou com a vida da caserna, onde plasmei durante vinte
e seis anos a minha personalidade, era coisa que eu não conhecia em
adolescente, fato que me fez amargar, mais no estágio que vai do fim do curso
primário ao começo do currículo ginasial, várias expulsões que não chegaram
a me prejudicar a vida escolar pela ação hábil e licenciosa de minha mãe, que
bebia o trago amargo da humilhação para salvar o filho rebelde.153

O trecho reflete um raro momento em que J. Miguel de Matos se responsabiliza por seus
atos. Ao invés de culpar o abandono paterno, a brandura excessiva da mãe, o julgamento
apressado de professores e colegas, J. Miguel de Matos admite que seu comportamento
indisciplinado motivou as punições a que foi submetido, mesmo que, no interior da narrativa
essa responsabilização funcione como forma de cravar a diferença entre o jovem indisciplinado
e o adulto consciente e responsável. Nesse sentido, o auxílio financeiro, a oportunidade de
qualificação profissional e a expectativa de um disciplinamento das práticas podem ter
influenciado seu ingresso e permanência no Exército.
O ingresso na vida militar pôs fim ao processo de escolarização formal de J. Miguel de
Matos, o que não significa que este tenha abandonado os estudos. Apesar de deficitária, o Exército
oferecia instrução aos soldados ingressantes, escolarizados ou não. Dependendo do grau de
escolarização estes eram encaminhados para a Escola Regimental ou para o Núcleo de Formação
de Oficiais da Reserva. Na Escola Regimental, os recrutados recebiam instrução geral, educação
moral, treinamento físico e para o uso de equipamentos de combate, e finalmente especializavam-
se nas atividades exigidas pelo grupamento em que foi alocado. Já o Núcleo de Formação de
Oficiais da Reserva destinava-se àqueles que, tendo concluído o ensino secundário ou já sendo
aluno de cursos superiores, pretendiam ingressar nos postos do oficialato.
Embora o narrador de Pisando Os Meus Caminhos, afirme ter ingressado no Exército
como voluntário, com permanência máxima de dois anos, acontecimentos externos parecem ter
garantido o prolongamento de sua trajetória militar. A Segunda Guerra Mundial iniciada em 1939
e que se desenrolava principalmente nos territórios europeus e asiáticos atingiu o continente
americano após o ataque japonês a base norte-americana de Pearl Harbor. Em decorrência deste
ataque, os Estados Unidos aderiram efetivamente ao conflito armado e, ao incitar seus aliados na

153
MATOS, 1969, p. 69.
73

América a se posicionarem, forjou um novo equilíbrio de forças que, no fim, mostrou-se decisivo
para o fim da contenda. Por meio do decreto-lei 4098, o governo brasileiro abandonou a posição
de neutralidade e iniciou o processo de mobilização da população visando a defesa nacional.154
Como retaliação, os alemães afundaram navios brasileiros atracados no litoral o que desencadeou
uma comoção nacional visando a defesa da soberania do país.
A preparação brasileira para o ingresso na Segunda Guerra envolveu medidas como
treinamento de defesa básico para a população, preparação da economia nacional, organização
e modernização das forças militares no sentido de melhor defender as fronteiras do país e a
formação de um corpo expedicionário, caso fosse necessário o envio de tropas para o teatro da
guerra. No Piauí, as campanhas de mobilização foram efetivadas por meio de editais oficiais,
atos cívicos, propagandas nos meios de comunicação, palestras e conferências em escolas e
espaços de sociabilidades. Os discursos patrióticos pautados no civismo e nacionalismo tinham
como objetivo sensibilizar a população para a importância desse momento e, em especial,
convencer e encorajar os jovens ao ingresso na vida militar que, por alteração do dispositivo
legal, deveriam ingressar no serviço militar obrigatório aos 16 anos de idade.
Discursos pautados no patriotismo e na necessidade de cada brasileiro fazer sua parte
eram enunciados em solenidades civis e atos militares. O trecho a seguir, proferido na
solenidade de compromisso dos recrutas de 1941, expressa o imaginário construído em torno
da adesão ao conflito mundial

Soldados! São todos: homens, mulheres, crianças, velhos e moços que sabem
amar o Brasil. Soldados são as crianças das escolas, que se preparam e se
encaminham para a luta da vida; são vocês, crianças, que desabrocham – como
flores mimosas – no jardim da Pátria, numa promessa radiante de felicidade.
Soldados são vocês, jovens ginasiais, que num exemplo digno de imitação
aprimorando os seus conhecimentos, se apegam decididamente ao sentimento
da Pátria que vive nos seus corações moços e cheios de esperança. Soldados
são vocês, moças do Brasil, que hão de ser mães brasileiras perpetuando a
geração brasileira que hoje somos. Soldados sois vós, professores e mestres,
que nas escolas e nos grupos, nas cidades e nos campos, apontais o verdadeiro
caminho às gerações que se sucedem. Soldados sois vós, mães carinhosas, que
dais o sangue e a própria vida, regando a Árvore frondosa da Pátria. Soldados
sois vós, pais trabalhadores, que alimentais a grande Árvore da Família
Brasileira. Soldados sois vós, sacerdotes, emissários divinos, conduzindo o
nosso espírito à Perfeição. Soldados sois vós, homens de ciência, descobrindo
um meio de minorar os sofrimentos da Humanidade, nos segredos dos
laboratórios. Soldados sois vós, homens da Justiça, que a todo custo procurais
dar à “Cesar o que é de Cesar”! Soldados sois vós, operários, força poderosa,
que impulsionais a grande máquina da nacionalidade. Soldados sois vós,

154
BRASIL. Decreto-lei nº 4.098, de 13 de maio de 1942. Define, como encargos necessários à defesa da Pátria,
os serviços de defesa passiva anti-aérea. Rio de Janeiro: Presidência da República, 1942. Disponível em:
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/1937-1946/del4098.htm. Acesso em: 20 out. 2020.
74

empregados e empregadores, que num trabalho continuo assegurais o


funcionamento dessa grande máquina. Soldados sois vós, abnegadas
religiosas, que nos campos de batalha ou nos hospitais, levais o vosso carinho,
o vosso conforto, o vosso coração aos heróis que lutam e aos heróis que
morrem... Soldados somos nós, os de farda e de coração, que, no trabalho
continue e anônimo das Casernas, encarnando todas essas forças, vamos
dizendo aos outros povos, o que somos e o que valemos!... Senhores! Eu creio
em todas essas forças... Mas, para que elas existam sempre, é preciso muito
trabalho – pensando no Brasil. E isto é tudo senhores! Nós os do Exército,
podeis ficar tranquilos, estamos bem convencidos da nossa missão: -
“Assegurar a ordem interna e manter a integridade da Pátria, na defesa contra
o inimigo externo”. O Exército marcha irmanado aos seus compatriotas civis,
instruindo e educando, saneando, cuidando, alfabetizando, orientando e
civilizando as massas de conscritos e voluntários que todos os anos encorpora,
transformando tudo em homens aptos para defender a Pátria! – Aí está o
exemplo!155

Discursos como o proferido pelo tenente Silva Neto induzem a população a acreditar na
necessidade do conflito armado e forjam uma unidade nacional. Civis transformados em
soldados sem armas, por intermédio de discursos como este passam a defender o envolvimento
brasileiro e o envio de jovens parcamente treinados por um Exército que somente aos poucos
se estruturava. A propaganda nacionalista construía a imagem do bom soldado atrelando-o à
figura do bom cidadão, leal a sua pátria e que, por ela, lutaria mesmo com treinamento e
armamento insuficientes.
Ao pesquisar sobre o contexto de mobilização da população piauiense para ingresso no
Exército visando a composição da Força Expedicionária Brasileira, Clarice Helena Lira afirma
que muitos jovens atenderam aos chamamentos das autoridades, seja por convocação oficial ou
por adesão voluntária.156 A autora pontua que muitos dos que manifestaram interesse nem
sequer constavam nas listas de sorteios, uma das etapas do processo de alistamento militar
obrigatório. Entretanto, nem todos foram incorporados à instituição. Fragilidades físicas,
deficiências educacionais e situação familiar influenciavam na não-aceitação de voluntários, de
sorteados e mesmo de militares da ativa e dos reservistas convocados.
Acreditamos que o discurso mobilizador da guerra articulado à necessidade de homens
para compor as tropas garantiram a permanência de J. Miguel de Matos no Exército. A fim de
reforçar as defesas do litoral brasileiro, este foi transferido em 1943 de Teresina para o 23º
Batalhão de Caçadores sediado em Fortaleza, cidade onde, segundo ele, cumpriu o serviço
militar por dezesseis anos.157 Seus últimos anos no Exército foram em Teresina para onde

155
MINISTÉRIO DA GUERRA. Diário Oficial, Teresina, p. 1, 26 maio 1941.
156
LIRA, Clarice Helena Santiago. O Piauí em tempos de Segunda Guerra: mobilização local e as experiências
do contingente piauiense da FEB. Jundiaí: Paco Editorial, 2017.
157
Clarice Lira aponta a existência de dados contraditórios em relação a quantidade de soldados que saíram do 25°
Batalhão de Caçadores durante as campanhas de mobilização para a guerra. As inconsistências dizem respeito
75

retornou em fins da década de 1950. Ao entrar para a reserva do Exército, J. Miguel de Matos
detinha Medalha de Guerra158 pelos esforços empreendidos durante este conflito e havia
galgado algumas posições na hierarquia militar passando de soldado a primeiro sargento, ainda
na ativa, e entrando para a reserva como primeiro tenente. Cumpre destacar que todas estas
gradações correspondem a postos de oficiais subalternos.
Na capital cearense, J. Miguel de Matos conseguiu articular suas atividades militares à
prática da literatura. Considerando-se um autodidata, investiu em leituras, produziu seus
próprios textos e conquistou espaço na imprensa piauiense e cearense ao construir uma rede de
sociabilidades através de correspondências frequentes com escritores e agentes culturais. A
estratégia de endereçar cartas nas quais comentava livros, posicionava-se diante de notícias
divulgadas e apresentava suas produções foi utilizada por este escritor para inserir-se no
universo jornalístico do Piauí e do Ceará, colocando-se muitas vezes na posição de divulgador
e comentador de acontecimentos culturais e históricos dos dois Estados. Em Fortaleza, J.
Miguel de Matos colaborou com o jornal O Povo, ajudou a fundar o Clube General Sampaio159
que reunia para atividades culturais e de lazer os militares de baixa patente e publicou seu
primeiro livro Brás da Santinha, em 1953 pela Editora Henriqueta Galeno, gráfica e editora
particular que, por muitos anos, publicou obras de escritores independentes. 160 Por meio de
correspondências com escritores piauienses nas quais divulgava elogios à publicação de suas

tanto ao número de piauienses que compuseram a Força Expedicionária Brasileira que lutou no território italiano
em 1945 e em relação aos soldados que foram transferidos para outras Regiões Militares. Cf.: LIRA, 2017, p. 152.
158
Por meio do Decreto-lei 16.821 de 13 de outubro de 1944, o governo brasileiro instituiu a concessão de
homenagens, em forma de medalhas, àqueles que participaram dos esforços de guerra dentro e fora do país. As
condecorações são: Medalha de Guerra, destinada aos oficiais da ativa, da reserva, reformados e civis que
prestaram serviços relevantes no contexto da guerra, Medalha de Campanha, destinada aos militares da ativa, da
reserva e assemelhados que participaram de operações de guerra, e Medalha Cruz de Combate, destinadas aos
militares que se distinguiram pela bravura, pelo sacrifício e por feitos excepcionais. Cf. BRASIL. Decreto-lei
16.821 de 13 de outubro de 1944. Aprova o Regulamento para a concessão das Medalhas criadas no Exército pelo
Decreto-lei nº 6.795, de 17 de agosto de 1944. Rio de Janeiro: Presidência da República, 1944. Disponível em:
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/1930-
1949/D16821.htm#:~:text=DECRETO%20N%C2%BA%2016.821%2C%20DE%2013,Art. Acesso em: 20 out.
2020.
159
GARCIA, Fátima. Os clubes suburbanos. Fortaleza em fotos, Fortaleza, 27 fev. 2011. Disponível em:
www.fortalezaemfotos.com.br. Acesso em: 30 jul. 2019.
160
Mesmo após seu retorno à Teresina, J. Miguel de Matos continuou a contratar os serviços da Editora Henriqueta
Galeno. Em correspondência ao também escritor A. Tito Filho, que será posteriormente publicada na coluna deste
no Jornal do Piauí, J. Miguel de Matos divulga as atividades culturais que realizará no Ceará: “[...] Meu caro prof.
Tito Filho. Sigo para Fortaleza às primeiras horas da manhã, pelo Expresso de Luxo, que é transporte de escritor
pobre. Vou buscar os mil primeiros exemplares de meu livro PISANDO OS MEUS CAMINHOS (memórias da
infância e da adolescência), que vem de ser editorado pela editora Henriqueta Galeno, dirigida pelo jornalista
Oscar Moreira e pela acadêmica Cândida Galeno Santiago, secretária da Academia Cearense de Letras. Devo dar
duas noites de autógrafos – uma na Casa de Juvenal Galeno e outra no Clube General Sampaio, entidade social
que reúne os subtenentes e sargentos da Guarnição Federal de Fortaleza, clube de que sou um dos fundadores,
quando cheguei ao Ceará, em 1943, levado pela II Grande Guerra Mundial, para servir no 23º Batalhão de
Caçadores. Regresso a Teresina no próximo domingo, ainda pelo Expresso de Luxo [...]”. Cf.: JORNAL DO
PIAUÍ. Teresina, p. 2, 25 jul. 1969.
76

obras, temos acesso a algumas de suas atividades e à forma como suas produções foram
acolhidas pelo público cearense.
Lotado no Serviço Regional de Material Bélico, o cotidiano de J. Miguel de Matos no
quartel lhe permitia conciliar suas obrigações militares com o exercício da literatura. Em texto
que homenageia a trajetória do tenente-coronel-capelão Joaquim de Jesus Dourado, o escritor
registra como se construiu sua relação afetiva e intelectual com este sacerdote

Humilde 3° Sargento do Exército, conheci-o em Fortaleza, quando o destino,


numa de suas raras atitudes de bondade, colocou-me ao seu lado no Quartel
General da 10ª Região Militar, ficando a minha repartição parede-meia da sua:
eu servindo à Pátria pelo fuzil, e ele a Deus, pela Cruz. Escritor, fecundo, o
Padre Dourado, sabendo que eu, nas minhas horas de folga, dedicava-me
inteiramente à literatura, no cumprimento da minha predestinação de homem
de letras, procurou-me, um dia que já vai longe, no Serviço Regional de
Material Bélico, vizinho à Capela de Nossa Senhora de Assunção, onde tinha
seu gabinete de trabalho ao lado da Santa. Pediu-me ele, depois de um alegre
cumprimento de mão-na-pala, coisa que lhe deixava muito encabulado que eu
lhe datilografasse um livro que havia escrito sobre a 2ª Guerra Mundial,
acrescentando, no envoltório de seu delicado pedido, que era péssimo
datilógrafo. Daí por diante, suando frio para entender a sua caligrafia que mais
parecia sinais hieróglifos, tornei-me, pelos liames das letras, seu melhor
amigo, chegando mesmo a inspirá-lo o nome de um de seus livros famosos:
“Homens que lutaram...” [...] Lembro-me bem de ter datilografado dois livros
de sua lavra: “Homem que lutaram...” e “Os Jangadeiros”.161

Ao colocar-se como humilde sargento, crava-se a diferença hierárquica entre si e o


padre-escritor, contudo a narrativa os aproxima e dilui as distinções ao apontar que, apesar das
diferenças de posição, ambos compartilham interesse pela escrita, leitura e divulgação cultural.
Nesse sentido, J. Miguel de Matos apresenta-se não só como um predestinado às letras, mas
como alguém disponível a ajudar aqueles que compartilham este interesse.
Em 1944, nasce em Teresina a primeira filha do jovem soldado, fruto de seu casamento
com Francisca Pereira de Souza. O casal e seus três filhos residiram em Fortaleza até seu
regresso ao Piauí.162 Ao retornar para Teresina, J. Miguel de Matos insere-se efetivamente no
meio cultural piauiense e ao entrar para reserva do Exército, amplia as atividades culturais às
quais se dedica. Em 1961 lança a segunda edição de Brás da Santinha, que lhe rendeu resenhas
e comentários elogiosos publicados nos jornais locais. A década de 1960 representa o período
de maior esforço deste escritor em participar e conquistar reconhecimento por sua prática

161
PADRE J. J. Dourado. O Estado, Teresina, p. 2, 19 jan. 1974.
162
A vida familiar não figura entre os temas aos quais J. Miguel de Matos dedica sua escrita. Informações sobre
registros de viagens, aniversários, estado de saúde de d. Francisca Matos e os filhos Marleide, José Miguel e José
de Ribamar aparecem em notas esparsas, sobretudo escritas por seus contemporâneos. Filhos e esposa aparecem
como parte de um cenário de suas narrativas, sem posição ativa diante daquilo que escrevia e vivenciava. Dentre
seus familiares, apenas sua mãe, Maria do Ó possui posição de relevo em seus textos.
77

escriturística. Em 1966 e 1968, lança os dois volumes de Caminheiros da sensibilidade, obras


que representam sua transição da seara literária para escrita de antologias e perfis biográficos.
Filiado a sindicatos e associações de jornalistas profissionais, numa época em que para
exercício desta profissão não se exigia a formação em curso superior, J. Miguel de Matos
assume diversos papéis na imprensa local. A edição da revista Mafrense da qual era diretor-
proprietário, atrelada às colaborações e colunas fixas em jornais da capital garantiram seu
reconhecimento como jornalista.163
Mobilizar leitores para aquisição de revistas e livros era um desafio para os produtores
culturais. De acordo com o censo de 1970, a taxa de analfabetismo da população piauiense estava
em 73,8%, uma sutil redução em relação aos 78% registrado em 1940. 164 Além disso, a quase
ausência de editoras e livrarias, a fragilidade econômica do Estado, em virtude da crise da
economia extrativista que o tornou dependente das transferências de recursos federais, a carestia
nos preços dos produtos e um contexto de censura prévia aos produtos culturais iniciado com o
Golpe Civil-Militar de 1964 limitam as ações de escritores e dificultam a formação de um público
consumidor de literatura e outras formas de arte produzidas no Piauí. Para romper com esse
cenário de isolamento, J. Miguel de Matos articula-se a associações culturais internacionais, como
o Instituto de Cultura Americana. Além disso, aproxima-se dos jovens que mais tarde fundariam
o Círculo Literário Piauiense (CLIP). Ao organizar saraus literários, divulgar a literatura
piauiense em escolas, fundar grêmios literários e promover edição e lançamento de obras estes
sujeitos desejavam retirar o cenário cultural piauiense da inércia e dirigiam suas críticas à falta de
apoio do poder público e à passividade da Academia Piauiense de Letras. Munido destas
credenciais, J. Miguel de Matos almeja conquistar a imortalidade acadêmica e, no ano de 1967,
empreende sua primeira campanha visando o ingresso na Casa de Lucídio Freitas.
As memórias de J. Miguel de Matos e daqueles que participaram destes movimentos
estão pautadas na expectativa compartilhada de dinamização da vida cultural do Estado. A partir
destas experiências, forjou-se entre esses indivíduos uma identidade articulada à ideia de
resistência e busca de visibilidade. Segundo Michel Pollak, as memórias são constituintes da
identidade social de indivíduos e grupos. A solidariedade e os interesses em comum são valores
que, ao serem materializados em discursos e práticas vivenciadas constroem aproximações

163
Em Fortaleza, J. Miguel de Matos foi colaborador do jornal O Povo, fundou as revistas Silhueta e Tuiuti e sócio
da Associação Cearense de Imprensa. Em Teresina, colaborou com os jornais Folha da Manhã, O Dia, O Estado,
fundou as revistas Carnaúba, Destaque e Mafrense e tornou-se membro da Associação dos Proprietários de
Jornais, Rádios e Revistas do Piauí.
164
As categorias de mensuração dos censos demográficos possuem historicidade próprias. Os dados citados
consideram a população de 5 anos ou mais que sabe ler e escrever.
78

entre os sujeitos.165 Em momento posterior, discutiremos como o engajamento deste escritor


nestes movimentos foi transformado em discursos por ele e por seus contemporâneos, sendo
esta articulação com grupos, movimentos e instituições um dos fatores que nos ajudam a situar
o lugar que este ocupa na literatura piauiense.
Ainda sobre seu período no Exército Brasileiro, é curioso observar como relatos sobre
essa época poucas vezes aparecem no conjunto de seus textos. Em Pisando Os Meus Caminhos,
o autor anuncia a pretensão de lançar um segundo volume de suas memórias, contemplando a
fase adulta de sua vida. Até onde sabemos, tal projeto não foi concretizado. Contudo, é inegável
que este escritor orgulha-se de pertencer às Forças Armadas, sobretudo num momento em que
esta domina a vida política nacional e empreende um discurso de soberania e
desenvolvimentismo.166 Entretanto, para um indivíduo que constrói sua identidade valorizando
os mínimos detalhes de sua trajetória, sobretudo aqueles que representam momentos de
dificuldades e superação, nos questionamos por que este não preocupou-se em deixar registros
significativos sobre sua longa vida militar.
Ensaiamos como possíveis respostas a este quase silenciamento o fato de que, no
imaginário social da época, o Exército era opção viável para jovens pobres e sem perspectiva.
Além disso, ao longo de seus vinte e seis anos de vida militar, J. Miguel de Matos não alcançou
postos significativos na hierarquia da instituição. Ademais, para um escritor que constrói sua
identidade pautado nas injustiças que julga ser alvo, possivelmente o Exército tenha sido o local
em que experenciou uma justiça da qual não podia reclamar, posto que lá, as valorizações e
promoções, se dão de acordo com seus esforços e merecimentos. A apresentação de si como
alguém que se dedicou a atividades manuais e, de certo modo, bastante técnicas, também pode
ser entendido como uma possível descaracterização de seu projeto de construir-se como homem
de letras sensível e criativo.
Práticas narrativas em que se procura enaltecer feitos e dificuldades e apresentar
experiências de vida sob a ótica da superação das dificuldades compõem o espectro
característico de textos autobiográficos. Pisando Os Meus Caminhos, representativo dessa

165
POLLAK, 1992.
166
Eis alguns posicionamentos de J. Miguel de Matos ao Golpe Civil-Militar de 1964: “[...] nação revolucionada
e salva pela disciplina e pelo nacionalismo das suas três Armas – Exército, Marinha e Aeronáutica [...]” (O
ESTADO. Teresina, p. 5, 18 jan. 1974); “[...] E, por isso mesmo, sem um planejamento global imprescindível,
como vinha o Brasil antes do advento da Revolução de 64, andávamos a passos de tartaruga, naquela deplorável
coreografia de casebres de favela, construídos de improviso, que a vontade imediata de sair do relento impõe, cujo
cenário só embriaga de lirismo o espírito já habituado a senti-lo [...]” (MATOS, J. Miguel de. Garimpagem.
Brasília: Centro Gráfico do Senado Federal, 1980, p. 42); “[...] Sem a pregação anarquista, na sua busca de ver o
país, agora tão perto de sua integral democracia, ao inteiro respeito dos direitos humanos, sem a necessidade de
um disparo de canhão ou de um fuzil, do desembainhar de uma espada e do derramamento de sangue do generoso
e heroico povo brasileiro [...]” (MATOS, 1980, p. 49).
79

modalidade de escrita de si, pode ser entendido como uma tentativa calculada por parte deste
escritor em evidenciar alguns pontos de sua trajetória em detrimento de outros. Percebemos que
sua identificação como militar parte muito mais de seus contemporâneos que constantemente,
e quase sempre como forma de inferiorizá-lo, o associam a figura de soldado-escritor. Nas
poucas vezes que fez menção à sua posição como militar o fez como simples elemento de seu
currículo ou em tentativas de coagir seus adversários.167 Nas apresentações de suas obras, este
escritor chama atenção para sua vida literária, para as obras que publicou e coloca-se como
membro de associações culturais nacionais e internacionais, participante ativo de movimentos
literários. Para J. Miguel de Matos o investimento na construção de si como autodidata, escritor,
jornalista e agente cultural deve ter pesado mais do que o investimento em sua imagem como
soldado raso que, com esforço, chegou a sargento sem abandonar a atividade de escritor com a
qual efetivamente se identificava.

167
“[...] O Sr. José Miguel de Matos em recente investida contra d. Anunciação se aproveitou, como é hábito seu
fazê-lo, da inexperiência de alguns companheiros da imprensa, por último da cronista Elvira Raulino, para dar
declarações tendenciosas envolvendo o nome da jornalista, diretora deste jornal e também, o que achamos pior, o
nome da Guarnição Federal de Teresina – comandada felizmente por militares briosos e homens de bem
realmente. Segundo informações prestadas pelo escritor, à cronista em tela, Elvira Raulino, e divulgadas no seu
programa social de sexta-feira, pela Rádio Difusora de Teresina, a colunista de “Notas e fatos” teria sido
chamada à Guarnição Federal para prestar esclarecimentos sobre o que escrevera contra o escritor J. Miguel de
Matos. A notícia não tem qualquer fundamento. Até esta data d’Anunciação, não obstante a campanha
difamatória que se lhe movem alguns penetras da profissão, não foi chamada, nem à Guarnição, nem à Justiça,
para falar deste ou de outro assunto. Se o fato ocorrer ela aceitará como ossos de sua profissão, da árdua
profissão que mais a mais lhe enaltece os méritos, mercê de sua linha inatacável, no desempenho da missão de
bem informar. A notícia ao ser divulgada teve como único objetivo confundir a opinião pública de nossa terra
que francamente, louvado seja Deus, acredita realmente na jornalista. O J. Miguel de Matos que escreve hoje
esses boatos é aquele mesmo profissional que já investiu inúmeras vezes contra tantos piauienses ilustres,
políticos e profissionais liberais, que muito tem dado de si ao Piauí. [...]” (MAIS subsídios para J. Miguel de
Matos. O Liberal, Teresina, p. 2, 5 maio 1969).
80

3 DE ROMANCISTA A BIÓGRAFO: a construção de um intelectual

Migrante, pobre, injustiçado, autodidata são referenciais narrativos e identitários através


dos quais J. Miguel de Matos apresenta aos seus potenciais leitores sua trajetória de vida e,
sobretudo, as dificuldades que precisou superar a fim de construir-se como escritor e intelectual.
Neste capítulo, vamos analisar sua produção escrita e sua participação em agremiações culturais
na tentativa de compreender os caminhos trilhados em sua construção como homem de letras.
Por meio destes investimentos, J. Miguel de Matos reivindicará para si a identidade de
intelectual conhecedor e atuante em seu meio social.
Acreditamos que a análise de seu corpus escriturístico composto por uma obra literária,
artigos em jornais, edição de revistas e livros de antologias focados nos perfis biográficos dos
selecionados para estas obras, torna possível compreender o valor que este indivíduo atribuía a
palavra escrita. Em J. Miguel de Matos, percebemos que a escrita é uma operação, entendida por
Michel de Certeau como uma prática que articula saberes acumulados e lugares alcançados e/ou
almejados por este escritor.168 Através da escrita, o escritor se constrói e reinventa, apresenta-se
para o público, insere-se em comunidades literárias, estabelece parcerias e cultiva desafetos.
Articulado à função histórica de registro sobre indivíduos e acontecimentos marcados por
interesses e parcialidades, o ato de escrever apresenta as distinções de seu produtor, o habilita (ou
não) para disputas no meio literário e torna-se assim um espaço de conquistas e realizações, bem
como um repositório de ressentimentos relativos aos insucessos dos escritores.
A formação e aceitação social da condição de intelectual possui trajetória semelhante,
embora sua historicidade não seja coincidente nos variados locais e espaços. No Brasil, as
particularidades do cenário educacional, editorial e profissional atravessam as tentativas de
definição da intelectualidade. Beletristas, professores, escritores e agentes culturais compõem
a diapasão daquilo que pode ser considerado um intelectual, sejam eles eruditos, produtores e
divulgadores de ideias ou aqueles indivíduos capazes de intervir no debate público.
Considerando a realidade brasileira, profundamente elitista, conservadora e desigual, marcada
até os anos finais do século XX por altos índices de analfabetismo, pelas dificuldades de acesso
à educação superior, pelo limitado espaço de atuação de letrados nos setores políticos e pela
quase inexistência de um mercado editorial, a construção e legitimação da figura do intelectual
assume caráter polissêmico.
Prática e saber restrito, o ler e escrever só muito lentamente foi universalizando-se nas

168
CERTEAU, 2007.
81

sociedades pelo mundo afora. Em De Amadores a Desapaixonados: eruditos e intelectuais


como figuras de sujeito do conhecimento no Ocidente contemporâneo, Durval Muniz delineia,
em perspectiva histórica, as transformações nas formas como os letrados foram entendidos e
incorporados socialmente. Em contextos em que letrados são exceções, aqueles que dominavam
a escrita, conseguiam produzir e divulgar seus textos eram vistos como sinônimos de sabedoria
e erudição. O erudito caracterizava-se como alguém que entendia a produção e o consumo do
saber como algo privado, que se dedicava a temas ligados à temporalidade passada, que
dependia do mecenato e que utilizava-se do conhecimento para manutenção de seu status quo.
Eram homens, em sua maioria, dotados de conhecimentos enciclopédicos, que liam sobre
variados assuntos e, por conhecer um pouco sobre cada tema premente no seu tempo, eram aceitos
em círculos diversos, bem como em ocupações profissionais ligadas ao ato de escrever. Neste
grupo, inseriam-se os letrados que exerciam ofícios liberais, tais como rábulas, amanuenses e
jornalistas, e aqueles que tinham na escrita e leitura um prazer, um hábito que os distinguia dos
demais, não estando necessariamente atrelado à sobrevivência financeira. Eram considerados
beletristas, amantes das letras tais como poetas e colaboradores ocasionais na imprensa.
No Brasil, nos momentos em que o acesso à educação, aos livros e demais bens culturais
restringia-se às áreas urbanas e às classes sociais privilegiadas, ser um intelectual significava
ser homem letrado e com formação superior em faculdades com forte tradição bacharelesca. O
adjetivo caracterizava aqueles que possuíam um saber humanístico amplo, que se
diferenciavam do restante da população por possuírem escolaridade superior à média e por sua
sobrevivência não estar vinculada a atividades manuais posto que, em grande parte, eram
destinados ao exercício de funções políticas e cargos públicos. Ao pesquisar sobre a atuação
dos intelectuais brasileiros ao longo dos séculos XIX e XX, Sérgio Miceli afirma que o mercado
de trabalho os acolhia, preferencialmente, em funções ligadas a partidos políticos e instituições
culturais oligárquicas, à indústria editorial ou ao serviço público.169
Apenas em meados do século XIX, com a difusão do cientificismo e com as
transformações na sociedade capitalista, a identificação do beletrista como um intelectual
passou a ser questionada. A postura adotada pelo escritor Anatole France, no contexto das
acusações feitas ao capitão Alfred Dreyfus repercutiu para além da França, apontando para
novas práticas e posicionamentos que, diante das demandas de seu tempo, seriam exigidos dos
amantes das letras, dos mecenas, dos divulgadores de ciência e dos bacharéis. A clivagem entre
eruditos e intelectuais estava em suas formas de atuação social, nos posicionamentos públicos

169
MICELI, Sérgio. Intelectuais à brasileira. São Paulo: Companhia das Letras, 2001. p. 372.
82

dos letrados. Sobre esta transição, assim afirma Durval Muniz:

O substantivo “intelectual” surge para nomear, portanto, o que seria uma nova
“classe” de pensadores e escritores, quase sempre em oposição à ordem
sociopolítica estabelecida – ou ao menos à margem dela – tendo, pois, o
sentido de alguém descontente, que mantem uma atitude crítica e
independente, frente ao governo e à sociedade de seu país [...] A emergência
do intelectual e o declínio da erudição parecem estar ligados à situação
particular em que se desenvolveu e se encontra cada área do conhecimento,
ao contexto social e ao estágio de desenvolvimento da sociedade capitalista e
burguesa [...] Esta nova sociedade exigia outro tipo de conhecimento e,
portanto, o emprego de novos métodos, novas teorias e novos procedimentos
que somente um novo sujeito era capaz de manejar [...] Já não se admitia mais
a produção de conhecimento ou o trabalho com a cultura por puro prazer ou
deleite pessoal, para a satisfação da vontade de saber de uma única pessoa,
para a ilustração e a construção de um status pessoal à frente dos demais.170

Ao longo do século XX, consolidou-se o entendimento do intelectual como aquele de


detêm o conhecimento das letras, desempenha funções ligadas ao ensino, à pesquisa e à
construção de saberes articulando tudo isso à sua atuação no debate público. Sendo críticos da
sociedade em que estão inseridos ou cooptados pelo poder público,171 a fim de legitimar
discursos e práticas de governantes, o intelectual é visto como alguém que posiciona-se, que
busca alternativas, que se responsabiliza diante da construção de uma nova sociedade.
Antônio Gramsci chama atenção para o fato de que nem todos os intelectuais conseguem
desempenhar esta função nas sociedades em que estão inseridos.172 Norberto Bobbio afirma
que a diferença entre letrados com formação superior e intelectuais reside na articulação que
estes fazem de seus papéis como criadores e transmissores de ideias e conhecimentos à sua
atividade política.173 Diante das mudanças no cenário político, social e acadêmico, o escritor
norte-americano Thomas Sowell apresenta caracterização do intelectual no mundo pós-
moderno. Para este pesquisador, intelectual é aquele indivíduo que, dotado ou não de formação
erudita, é capaz de interferir nos debates de seu tempo como produtores ou mediadores de ideias
e práticas174. Utilizando-se de um saber específico, construído a partir da sensibilidade com as
questões de seu tempo, estes são capazes de mobilizar seus contemporâneos sejam governantes,
empresários ou a opinião pública em torno de temas pungentes.
Pierre Bourdieu, ao discutir os processos de formação dos campos nos quais se

170
ALBUQUERQUE JÚNIOR, Durval Muniz. De amadores a desapaixonados: eruditos e intelectuais como
figuras de sujeito do conhecimento no Ocidente contemporâneo. Trajetos, Revista de História UFC, Fortaleza, v.
3, n. 6, p. 43-66, 2005. p. 45-46.
171
MICELI, 1979.
172
GRAMSCI, Antônio. Os intelectuais e a organização da cultura. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1982.
173
BOBBIO, Norberto. Os intelectuais e o poder: dúvidas e opções dos homens de cultura na sociedade
contemporânea. São Paulo: Edunesp, 1997. p. 72.
174
SOWELL, Thomas. Os intelectuais e a sociedade. São Paulo: É Realizações, 2009.
83

estruturam a produção e o consumo de bens simbólicos, afirma que os campos intelectual e


cultural caracterizam-se por serem delimitados, segmentados, interdependentes e pautados em
convenções estabelecidas entre seus membros, o que possibilita a construção de hierarquias
além de disputas por aceitação, prestígio e reconhecimento. Os investimentos pessoais na
construção de si como intelectual e a inserção nos redutos por eles dominados apontam para a
importância da identificação com práticas inerentes a estes grupos. O sentimento de
pertencimento que emerge deste reconhecimento é capaz de legitimar ou não práticas de seus
membros e assim forjar a emergência de um campo intelectual circunscrito que

[...] tende a produzir ele mesmo suas normas de produção e os critérios de


avaliação de seus produtos, e obedece à lei fundamental da concorrência pelo
reconhecimento propriamente cultural concedido pelo grupo de pares que são,
ao mesmo tempo, clientes privilegiados e concorrentes.175

Ainda segundo Pierre Bourdieu, à medida que artistas e intelectuais investem na


produção autônoma de seus textos e obras e em sua profissionalização, o campo no qual
produzem alcança autonomia diante de pressões e interesses políticos e religiosos. Sendo um
espaço que possui lógica própria e é pautado por práticas objetivas e subjetivas, o campo
intelectual consolida-se à medida que conquista público consumidor, que formam-se grupos de
indivíduos interessados em produzir e comercializar bens culturais e diversificam-se instâncias
de reconhecimento e consagração das práticas dos homens de letras, cada vez mais os
intelectuais são reconhecidos, cobrados e legitimados, pelas formas como escrevem,
posicionam-se e agem socialmente.176 Considerando o ambiente interno do campo como um
espaço compartilhado por indivíduos que possuem saberes, compartilham práticas e produzem
bens culturais, ao longo das décadas o reconhecimento da intelectualidade perpassa a posse de
saberes e a capacidade de articulá-los com as demandas de seu tempo.
Com base nas caracterizações de intelectualidade e campo intelectual aqui apresentadas,
nos questionamos: J. Miguel de Matos pode ser considerado um intelectual? É possível afirmar
que, no Piauí, entre os anos 1960 e 2000 formou-se um campo intelectual? J. Miguel de Matos,
na especificidade de sua trajetória, reivindica para si o papel de intelectual. Os investimentos
que fez para instruir-se, especializar-se, inserir-se nos grupos legitimadores da produção escrita
piauiense e engajar-se nas questões de seu tempo foram suficientes para que seus
contemporâneos reconhecessem nele um sujeito com saber singular e atuação social distinta?
Que tipo de intelectualidade J. Miguel de Matos construiu para si?

175
BOURDIEU, 2001, p. 105.
176
BOURDIEU, 2001, p. 100.
84

Seu itinerário evidencia que sua formação escolar o aproxima do autodidatismo. Pelas
citações em seus textos, muitas vezes repetidas, percebemos que seu repertório de leitura é
restrito. Em seus esforços, visando driblar a ausência de formação bacharelesca ou a posse de
curso superior, com a escrita de livros, participação em agremiações culturais, atuação na
imprensa, ele tenta aproximar-se da imagem de intelectual aceita na sociedade piauiense
daquele momento, a saber: indivíduos que movimentam o debate público a partir daquilo que
publicam nos jornais, participam de agremiações culturais, que ocupam cargos públicos ou
atuam na política.
As táticas utilizadas por J. Miguel de Matos para inserir-se nesses grupos não passam
despercebidas por seus contemporâneos. Entre estes, encontramos aqueles que reconhecem sua
erudição, pautando-se na repercussão de suas obras e nos lugares sociais por ele ocupados. Por
outro lado, existem aqueles o consideram um beletrista, que refutam sua identificação como
intelectual, por acreditar que lhe falta formação específica, erudição, polidez e posicionamento
político.
Analisando suas obras, percebemos que esta reflexão articula discussões sobre as
práticas culturais vigentes e os jogos de poder vivenciados por este escritor. Herdeira das
contribuições da História Cultural, o exercício de História Intelectual que aqui será
empreendido entende seus escritos na confluência dos acontecimentos pessoais vivenciados por
seu produtor, das necessidades e disputas de seu tempo e nas interrelações entre estas. Dentro
das possibilidades ofertadas pelas fontes, analisaremos as sociabilidades no interior do campo
intelectual possibilitadas por estas obras em seus contextos de produção, mediação e
apropriação.177 Para fins didáticos, o conjunto da produção de J. Miguel de Matos será analisado
em três vertentes, considerando sua atuação como ficcionista, jornalista e biógrafo. Por fim,
apresentaremos o J. Miguel de Matos que, reconhecido como escritor, participará de
agremiações culturais do Estado.

3.1 O ficcionista J. Miguel de Matos

Brás da Santinha, obra de estreia de J. Miguel de Matos, é sua única incursão no gênero
literário.178 Publicada em Fortaleza em 1953 e reeditada em Teresina nos anos de 1961 e 1998,
a obra tem Brás como protagonista que narra ao seu amigo Vicente os acontecimentos que
marcaram sua vida. Novela regionalista com viés psicológico, subdividida em capítulos curtos

177
CHARTIER, 2002, p. 23-60.
178
Os contemporâneos e analistas da obra de J. Miguel de Matos costumam caracterizá-lo como novelista, poeta,
ficcionista, antologista e biógrafo.
85

e permeada por personagens que vivem no sertão, descritos de maneira caricata, Brás da
Santinha nos apresenta um escritor preocupado em construir-se como literato e erudito.
A narrativa inicia com Brás, personagem central, fugindo da fome e da seca no Ceará.
Abandonando a família, este migra em busca de melhores condições de vida e chega na fictícia
cidade piauiense de Cantar dos Pássaros. Nesta cidade, à procura de água e alimento, bate à
porta de Mãe Santinha, senhora extremamente religiosa. O encontro entre eles é assim
apresentado:

Enquanto a velhinha, em gestos lentos, enchia o caneco, sentei-me numa velha


carnaubeira, que se estendia à frente da casa, à guisa de banco. Tudo era
sossego, calma aterradora. Somente meu espírito estava em agonia. A bondosa
velhinha desenterra-me sombrias recordações, que fizeram meu pensamento
pousar nos meus entes queridos. Vi, penalizado, as figuras, alquebradas pela
fome e pela dor, de minha mãe, meu pai e meus irmãos, naquele instante talvez
em sentidas queixas pela minha fuga. A casinha que lhes abrigava, era a da
velhinha em tudo. Vacilava apenas o todo paisagístico: a ausência de um
cajueiro esgalhado sobre o terreiro bem cuidado e mamoeiros no quintalejo.179

Mãe Santinha mora sozinha e convida Brás para morar com ela, garantindo-lhe abrigo,
comida e rede limpa. Brás aceita o convite e a fim de ajudar Mãe Santinha no sustento da casa,
sai todas as manhãs para vender cuscuz de arroz no comércio e casas abastadas. Nessa atividade,
conhece os recantos da cidade e aproxima-se dos proprietários da botica local, os baianos Dr.
Epílogo e D. Anunciação, bem como Dr. Elias, sogro do proprietário, Mundoca, amigo da
família e preta Benta, empregada da casa. À medida que estreita os laços com esta família, é
convidado por D. Anunciação para mudar-se para sua casa, na qual seria acolhido como um
filho. O convite, apresentado com toques de erotismo, é atribuído à maternidade frustrada e
coloca Brás em um dilema: entre a gratidão à Mãe Santinha versus o desejo por uma vida mais
confortável, o protagonista opta pela segunda alternativa e, após enganar aquela o acolheu
inicialmente, vai morar com a família Damasceno. Torna-se companhia frequente para o culto
farmacêutico e desfruta da fartura, luxo e do acesso aos círculos sociais privilegiados da cidade.
Com o passar do tempo, Brás começa a perceber algo estranho no interior da família.
As viagens constantes de Dr. Epílogo, a tristeza de D. Anunciação, visitas noturnas e fugidias
à residência culminam na descoberta de adultério da esposa pelo marido, num retorno
antecipado. Com a promessa de que, na manhã seguinte resolverão a situação familiar, Epílogo
passa a noite no quarto de Brás e travam diálogo em que Anunciação é descrita como mulher
fria e manipuladora. Novamente Brás encontra-se em conflito: apoiar seu amigo e protetor,

179
MATOS, J. Miguel de. Brás da Santinha. Teresina: EDUFPI, 1998. p. 12.
86

sempre afetuoso, ou àquela que de forma bondosa o acolheu. A decisão não precisou ser tomada
pela personagem posto que, nesta mesma noite, Dr. Epílogo é assassinado e Brás apontado
como autor do crime. Após ser preso, torturado, passar três anos sem julgamento e contando
apenas com a intercessão de Mãe Santinha, Brás é feito herdeiro do casal por meio de uma carta
em que D. Anunciação confessa o assassinato e as negociações feitas junto ao delegado para
acusá-lo do crime.
O casarão abandonado em frente ao qual todas as noites Brás narra a história para
Vicente é considerado uma herança maldita. O estado de conservação desta residência é
apresentado como um reflexo da personalidade do narrador que, após anos dos fatos narrados,
encontra-se esquecido, envelhecido e assombrado. Ao enunciar, que “em cada matuto havia um
drama, uma tragédia”,180 percebemos que J. Miguel de Matos esforça-se em garantir
dramaticidade às suas personagens e inserir em sua narrativa elementos do regionalismo no
cenário e nas temáticas, como no trecho apresentado a seguir

Quem conhece o sertão, Vicente, quem já viveu numa cidadezinha do interior,


sabe que a Lei é a chibata do Delegado, e a Justiça, a cólera do Juiz. O Tenente
Ludovico de Morais era o tipo mais representativo da ignorância, da
imbecilidade e do analfabetismo. Sua crônica na Polícia era a de muitos, que
começam simples praças e terminam oficiais, os ombros agaloados. Tudo à
custa do crime, da bajulação, da subserviência. O Delegado de Cantar Dos
Pássaros tinha todos os traços do cangaceiro, cabelo duro, bigode grosso e mal
tratado, testa larga e reluzente, nariz chamboqueiro, compleição rígida,
disforme. Nas mãos desse homem jogaram o meu destino, depositaram a
minha vida.181

Na literatura brasileira, o regionalismo diz respeito a um conjunto de obras nas quais o


cotidiano rural e os desafios da vida interiorana são o mote da narrativa. A partir da década de
1930, a região Nordeste destacou-se, literária e editorialmente, como reduto de obras que
tratam, em especial, da fome, da seca e da migração. O Quinze, da cearense Rachel de Queiroz
e Menino de Engenho, do paraibano José Lins do Rego são referências neste movimento
literário. Iniciando sua carreira literária no Ceará, certamente J. Miguel de Matos reconhecia o
valor literário do regionalismo.182 A seu modo, em Brás da Santinha este escritor apresentou a

180
MATOS, 1998, p. 84.
181
MATOS, 1998, p. 88.
182
Não nos foi possível acessar as colaborações de J. Miguel de Matos na imprensa alencarina. Nos jornais
piauienses, encontramos textos do autor sobre o regionalismo no contexto da literatura local. Sobre as influências
do regionalismo cearense, ou mesmo do regionalismo literário, arrisco afirmar que J. Miguel de Matos furtou-se a
essas discussões por sua inserção literária limitar-se a Brás da Santinha. Além disso, embora sua estreia literária
tenha sido em Fortaleza e a editora Henriqueta Galeno fosse a escolhida para confeccionar suas primeiras obras,
percebo ausência de laços efetivos do autor com a literatura daquela terra. O fato de que a eleição de Rachel de
Queiroz para a Academia Brasileira de Letras, ou mesmo a vinda desta para as comemorações do cinquentenário
da Academia Piauiense de Letras, ambos eventos ocorridos em 1977, não tenham merecido comentários deste
87

temática da seca, o contexto da migração, o cenário rural, a descrição dos hábitos cotidianos, a
religiosidade e afetividade do sertanejo extraindo reflexões sobre o espaço regional articulado
à psicologia dos homens.
A linguagem rebuscada dos membros da elite de Cantar dos Pássaros, a diferença entre
os modos de vida de ricos e pobres, as injustiças praticadas por aqueles que detêm o poder
econômico, a temática da traição e a desqualificação da mulher adúltera inserem esta obra no
conjunto de temas frequentes na literatura, dando-lhe feição universal e garantindo certa
erudição a seu produtor. Mais do que inserir J. Miguel de Matos no conjunto dos autores
regionalistas, Brás da Santinha apresenta um escritor que tenta, a partir de temas locais, inserir-
se em debates universais.
O fragmento acima apresentado evidencia ainda o engajamento social do escritor que
denuncia os vícios decorrentes da desigualdade social. A associação da imagem do sertanejo
com a figura bajuladora e disforme do delegado remete à desqualificação das relações de poder
viciadas que, segundo a personagem, destroem a vida de inocentes. Sem ser um relato
autobiográfico, percebemos interseções entre as trajetórias de Brás e a do escritor da obra:
ambos são migrantes e recorrem à metáfora de que, sob o julgo dos poderosos, os mais humildes
padecem sofrimentos que os fazem assemelhar-se à figura do nazareno.
O proscênio de Brás da Santinha adverte o leitor que esta é uma obra de estreia e já o
apresenta como alguém que, apesar da trajetória atribulada, considera-se predestinado ao
encantamento produzido pelas letras

[...] primeira gestação literária de um homem que teve, nos alvores de sua
vida, já agora pontilhada de inúmeras desditas, colhidas nas árduas e
cansativas liças do ganha pão, a predestinação de folhear, à luz débil e
suavemente inquieta de uma lamparina de querosene, no ventre da noite, a
prosa arrebatadora de Humberto de Campos e de Stefan Zweig, aprendendo
com eles a manejar, mesmo de forma imperfeita, as armas mais indicadas para
sublimar a Dor: o trato da Pena e a excelência da Prosa.183

A repercussão positiva da obra em jornais do Ceará garante a J. Miguel de Matos o título


de escritor do ano de 1956. O fato de ter sido escolhido como escritor revelação três anos após
o lançamento desta parece não incomodar seu autor que, em 1998, ano em que foi lançada a
terceira edição de Brás da Santinha, faz questão de anteceder a este texto a seguinte observação
“com esta obra, a primeira produção literária do autor, o mundo intelectual e a imprensa falada
e escrita de Fortaleza, onde foi publicada, [...] J. Miguel de Matos foi considerado, com justiça,

escritor na imprensa local ou que nenhum escritor cearense esteja entre suas citações recorrentes ajudam a construir
este posicionamento.
183
MATOS, 1998, p. 2.
88

a revelação cultural do ano de 1956”.184 O comentário acrescido em fins da década de 1990


pode ser lido como uma resposta tardia de J. Miguel de Matos às desqualificações que sua obra
sofreu no contexto da publicação de A Nova Literatura Piauiense, na qual o escritor Herculano
Moraes contesta o lugar Brás da Santinha no cânone literário piauiense, bem como o caráter
renovador que seu autor atribui a ela. Estas polêmicas com Herculano Moraes serão
contempladas em capítulo posterior.
Comentários sobre Brás da Santinha começam a aparecer na imprensa local no início
da década de 1960. Em julho de 1961, colaboradores do jornal O Dia registram o recebimento
da obra. Entre registros à repercussão positiva do texto, destaca-se o comprometimento de A.
Tito Filho185 em comentar detalhadamente a obra. À época, este já era um cronista respeitado,
com colunas nos maiores jornais da cidade, e tal como J. Miguel de Matos, também estava
empenhado em construir-se como intelectual e congregar em torno de si uma rede de afinidades
literárias que retroalimentasse as investidas políticas e culturais de seus membros 186.
Cumprindo sua promessa, assim A. Tito Filho se manifestou sobre Brás de Santinha:

NOTA – Expressamos nossa opinião a respeito do livro “Brás da Santinha”,


de J. Miguel de Matos. Não temos veleidade de crítico, mas afirmamos que a
obra tem conteúdo humano e social. Embora façamos algumas restrições à
forma e concebamos que o autor pudesse explorar certas situações
psicológicas das personagens, achamos que J. Miguel de Matos possui
qualidades de ficcionista neste livro que é o seu cartão de ingresso na literatura
regional. É bom que vá adiante, ciente de que a crítica honesta lhe temperará
energias para novos cometimentos. A parte conteudística merece aplausos.
Um drama simples como a vida. O estilo merece reparos. Nele há
preocupações com o vocabulário erudito, desprestigiando expressões singelas.
Gostamos da narrativa, muito real, e reafirmamos opinião de que o autor
poderá ir longe.187

Ao longo dos anos, os comentários elaborados por A. Tito Filho foram alvo de críticas
de seus contemporâneos, inclusive de J. Miguel de Matos, que apontavam a imprudência de

184
MATOS, 1998, p. 1.
185
Nome literário de José de Arimathéa Tito Filho. Nasceu em Barras (1924) e faleceu em Teresina (1992).
Bacharel em Direito pela Faculdade de Direito do Piauí. Professor de Língua Portuguesa do Colégio Estadual
(Liceu Piauiense) e Colégio das Irmãs. Manteve colunas em jornais da capital, em especial no jornal O Dia e
Jornal do Piauí. Exerceu funções públicas relacionadas ao cenário cultural onde foi Secretário de Educação e
Cultura, presidente do Conselho Estadual de Cultura, Secretário de Cultura e importante articulador do Plano
Editorial do Estado de 1972. Autor de numerosa obra, com destaque para Viagem ao Dicionário, Teresina Meu
Amor, Teresina: ruas, praças e avenidas, Praça Aquidabã, Sem Número. Sócio de instituições culturais espalhadas
pelo Brasil. Detentor da Medalha Machado de Assis concedida pela Academia Brasileira de Letras. Na Academia
Piauiense de Letras, ocupou a cadeira 29, vaga com o falecimento de seu pai, o desembargador Arimathéa Tito.
Foi presidente desta instituição de 1971 até o seu falecimento.
186
BRANDIM, Ana Cristina Meneses de Sousa. Escrita dos movimentos interiores: escrita de si e construção de
uma trajetória de intelectualidade e distinção em A. Tito Filho (1971-1992). 2012. Tese (Doutorado em História)
– Universidade Federal de Pernambuco, Recife, 2012.
187
TITO FILHO, A. Várias notícias. O Dia, Teresina, p. 1 e 3, 17 ago. 1961.
89

distribuir críticas elogiosas a escritores medíocres. Contudo, diante de Brás da Santinha, este
que se tornará o nome mais respeitado no meio literário local a partir da década de 1960,
dedicou uma crítica atenciosa. Apesar de algumas ressalvas ao estilo de J. Miguel de Matos, o
comentarista afirma que este irá longe. Nos anos seguintes, estes dois escritores forjarão uma
relação que, entre elogios mútuos e críticas recíprocas, movimentarão suas atividades
intelectuais bem como o cenário cultural local.
Em 1963, Sebastião Pinho escreve sobre J. Miguel de Matos e rebate críticas feitas a
este escritor. Não foi possível localizar a crítica contestada por este colunista, contudo o
comentário que faz a partir desta revela que Brás da Santinha, ou as colaborações posteriores
de seu autor na imprensa local, podem não ser unanimidade entre os intelectuais locais

[...] conheci, pessoalmente, o autor de “Brás de Santinha” [...] A meu ver, a


crítica em qualquer de suas tantísssimas expressões, é malsã. Aos novos,
quando não lhes impede o descortínio das falhas próprias, os exalta além dos
limites justificáveis, de modo que sempre lhes dar no excesso da apreciação
ambígua, valores e deméritos, uns e outros, ora inoportunos, ora inadequados.
O crítico é quase sempre um ensaísta frustrado [...] Para não citar os efeitos
nocivos que a censura ou o louvor provocam, desde que originam auto-
sugestão na pessoa visada, - a crítica dá lugar a círculos de animosidade, tanto
na parte elogiada quanto ao lado depreciado, sem falar na competição, cujo
espírito nunca imparcial, fomenta essas lutas, tantas vezes acompanhadas de
polêmicas acirradas, nunca presididas pelo justo critério. O amigo louva o
amigo, mas condena, sem julgamento prévio, o adversário [...] Que direi agora
desse prestimoso idealista J. Miguel de Matos?! Sei bem o que afirmo, que ele
não quer nem aprova que de si digam, ou de outro qualquer, coisas imerecidas.
Suas características pessoais, seus valores de espírito e inteligência, estão
prodigamente afirmados onde sua pena labore tocada pelo fogo do sentimento.
Por cada vitória de seu intelecto, recebamo-lo, qual lidador espartano, disposto
a coroá-lo de louros. Por suas líricas oferendas, a “Terra de Mafrense”, merece
parabéns. Mesmo por que, não raro, sob a armadura de cruzado, escondia-se
por vezes um coração de poeta, de bardo enamorado da Beleza eterna, como
acontecesse a esse Sargento-escritor, jornalista e poeta.188

Em fins da década de 1960, período no qual J. Miguel de Matos insere-se nas atividades
realizadas pelo Círculo Literário Piauiense (CLIP), um de seus idealizadores assim se manifesta
sobre o corpus escriturístico deste escritor. O texto destaca que J. Miguel de Matos já está se
afastando da seara literária e dedicando-se à escrita de antologias e, como forma de construir
identidade entre os membros do grupo, Francisco Miguel de Moura assim se manifesta sobre
este escritor e sua obra:

No livro de J. Miguel de Matos, “BRÁS DA SANTINHA”, é bem verdade


que não encontramos a serenidade de que fala J. Ingenieros, mas uma espécie

188
PINHO, Sebastião. Um Perfil da “Terra de Mafrense”, J. Miguel de Matos. Folha da Manhã, Teresina, p. 3, 22
set. 1963.
90

de serenidade pessimista. O autor nos conta uma história triste, trágica, de um


fugitivo cearense, acossado pela seca, a procura de melhores terras, parando
no Piauí, numa cidadezinha do interior, onde afinal encontra um amigo e
confidente. Bem que podia ser uma obra de cunho regional como diz na orelha
do volume que J. Miguel gentilmente me ofereceu. Agradeço a oferta, mas
não concordo como situá-la na chamada escola regionalista, o que
efetivamente não diminui a obra. J. Miguel de Matos, em “BRÁS DA
SANTINHA” tem sabor clássico à Humberto de Campos ou à Coelho Neto; é
um torturado, um poeta em prosa. Possivelmente “queimou as pestanas” não
somente com Humberto de Campos e Coelho Neto, mas também como José
de Alencar e Visconde de Taunay, Machado de Assis e Stefan Zweig, além de
outros artífices do pensamento literário. Creio que não sejam o romance e a
novela as formas literárias que mais se ajustam ao seu temperamento, mais
sentimental do que analista: A prova do que afirmamos está na sua recente
antologia “CAMINHEIROS DA SENSIBILIDADE” onde se encontra o
escritor entrosado com suas tendências.189

Entre comentários sobre o texto e tentativas de situar autor e obra nas correntes literárias,
Francisco Miguel de Moura ressalta que, assim como os grandes escritores, o escritor de Brás da
Santinha esforçou-se. Em nenhum dos comentários que localizamos, identificou-se uma crítica
contundente a esta obra, o que nos leva a crer que, apesar das ressalvas, esta foi bem aceita pelo
público leitor e pelos aspirantes a críticos. Em 1975, quando da publicação de A Nova Literatura
Piauiense, os questionamentos direcionam-se ao seu suposto caráter renovador no panorama
literário local, sem comprometer a obra em seus aspectos literários. A relevância de Brás da
Santinha na construção da imagem de J. Miguel de Matos como literato pode ser evidenciada em
comentários de seus contemporâneos que, por vezes, o chamavam de Zé da Santinha.190
O comentário de Miguel de Moura nos possibilita a discussão sobre dois pontos ligados
à produção literária de J. Miguel de Matos: o que seu escritor considera como literatura
regionalista piauiense e como Humberto de Campos191 influencia sua vida literária. Como
comentei anteriormente, a narrativa apresentada em Brás da Santinha remete temporalmente
ao regionalismo literário que ganhou força no Brasil a partir da década de 1930. Contudo, nas
oportunidades em que refletiu sobre a literatura produzida no Piauí, em nenhum momento, o
escritor colocou-se como escritor regionalista ou como representante do regionalismo literário
piauiense, sendo esta associação feita, possivelmente por seus comentadores, influenciados pelo
movimento editorial da época.

189
MOURA, 1968, p. 8.
190
“[...] Que se mexa o Zé... da Santinha [...]” (BOAVISTA, Tania. Carrossel da vida. Jornal do Piauí, Teresina,
p. 3, 18 jan. 1974).
191
Humberto de Campos nasceu em 1866 na cidade de Miritiba (Maranhão) e faleceu no Rio de Janeiro em 1934.
Jornalista, atuou em O Imparcial. Foi deputado federal pelo Maranhão. Como escritor, destacou como poeta,
crítico literário, contista e memorialista. Pertenceu à Academia Brasileira de Letras.
91

O que J. Miguel de Miguel de Matos considera como literatura regional está situado no
século XIX, nos primórdios da produção literária piauiense. Este posicionamento está manifesto
em textos nos quais se propõe a historicizar a literatura produzida no Piauí por meio dos
movimentos literários ou através de perfis biográficos. Em uma de suas correspondências com
A. Tito Filho nas quais discute a trajetória histórica da literatura piauiense, assim se posiciona:

Neste resumo jornalístico não há espaço para determiná-las. Mas apareceu a


literatura regional piauiense – aquela literatura regional definida por Stewart
localizada numa região e que retira substância real desse local: “essa
substância decorre, primeiramente do fundo natural – clima, topografia, flora,
fauna, etc. – como elementos que afetam a vida humana na região; e, em
segundo lugar, das maneiras peculiares da sociedade humana estabelecida
naquela região a que fizeram distinta de qualquer outra”. É este o sentido do
regionalismo autêntico, como quer Stewart. Este regionalismo piauiense
representado por Hermínio de Carvalho Castelo Branco (LIRA
SERTANEJA), [...] Clodoaldo Freitas, Abdias Neves, Amélia Beviláqua, João
Pinheiro.192

Considerando o contexto piauiense, J. Miguel de Matos entende o regionalismo a partir


de cenários e comportamentos que caracterizam o modo de vida do homem do sertão e atrela
essas características literárias ao estilo das obras produzidos por Hermínio Castelo Branco (1851-
1889), Clodoaldo Freitas (1855-1924), Abdias Neves (1876-1928), Amélia Beviláqua (1860-
1946) e João Pinheiro (1877-1946). Embora díspares em suas formações, influências e estilos
literários, J. Miguel de Matos identificava, nas obras destes escritores da transição do século XIX
para o século XX, os elementos característicos de um regionalismo literário piauiense.
A partir da caracterização apresentada, entendemos que J. Miguel de Matos situa o
regionalismo nas origens, no lugar da tradição literária piauiense. Embora Brás da Santinha
apresente o cenário interiorano, a linguagem pretensamente sertaneja e o cotidiano daqueles
que vivenciam a seca, as dificuldades, os vícios e as injustiças existentes na fictícia Cantar dos
Pássaros, estes são apenas pretextos para o desenrolar de dramas universais apresentados por
um escritor que se constrói enquanto intelectual e não apenas erudito.
Outro ponto a se destacar é a influência do poeta Humberto de Campos na produção
literária de J. Miguel de Matos. O escritor maranhense, órfão aos seis anos de idade, passou parte
de sua infância em Parnaíba, cidade do litoral piauiense antes de mudar-se para o Pará e
posteriormente, Rio de Janeiro, cidades em que fez carreira jornalística e projetou-se
literariamente. Entre as obras de Humberto de Campos estão Memórias (1886-1900), publicada
em 1933 e Memórias Inacabadas, publicada em 1935, textos de reminiscências nos quais o

192
TITO FILHO, A. Caderno de anotações. Jornal do Piauí, Teresina, p. 2, 4 jan. 1972.
92

escritor narra sua trajetória. A tônica destes relatos está no impacto do falecimento do pai do
escritor nos destinos da família. Para além da perda afetiva, houve dificuldades financeiras. Estas
trouxeram consigo a necessidade de migração, forçaram o futuro escritor ao trabalho precoce e
ao autodidatismo. A vida adulta deste escritor foi marcada pela atuação no jornalismo, pela não
formação em cursos superiores e pelo ingresso na vida política. Em 1919 foi eleito para a cadeira
número 20 da Academia Brasileira de Letras, instituição máxima da vida literária nacional.
Leitor das memórias de Humberto de Campos, J. Miguel de Matos imediatamente
construiu entre suas trajetórias pontos de identificação. Embora não seja correto dizer que a
decisão de relatar eventos de sua infância e juventude tenham sido motivados pelo gesto de
Humberto de Campos, é inevitável reconhecer que a estrutura da obra e a ênfase narrativa na
superação das dificuldades serviram como parâmetro para o escritor da Rua do Molambo. O
paralelismo, remetido à exaustão, inicia-se no prólogo, em que J. Miguel de Matos admite:

E corro esbaforido à fonte lírica da minha inspiração ou à página aberta do


meu adoremus: Humberto de Campos, para beber o néctar do que traz,
enfermo ou são, esperançoso ou desiludido, feliz ou infeliz, crente ou
incrédulo, sossegado ou intranquilo, à máquina de escrever ou ao cabo da
pena, para compor este trabalho de quase autocrítica – que é a confissão sem
adereço, como o grito angustiado de quem pede socorro ou oferece ajuda, de
quem tem a verdade por escopo, a fé por religião e a confiança nos homens
por dogma. No prefácio de suas “Memórias” diz Humberto, justificando a
decisão de escrever [...] “A vida de um homem não deve ser medida,
efetivamente, pela extensão, mas pela intensidade [...] E, como intensidade,
como trabalho, como sofrimento, a minha infância durou um século”. Poderia
eu omitir, juntando cuidadosamente os fatos da minha vida, a verdade
proclamada pelo escritor maranhense, quando a nossa infância e adolescência,
marcadas pelo infortúnio da mesma pobreza, estão irmanadas pelo cordão
umbilical dos mesmos fatos e dos mesmos sofrimentos?193

Logo no início de Pisando Os Meus Caminhos, J. Miguel de Matos preocupa-se em


mostrar sua fonte de inspiração. O questionamento que fica é: Humberto de Campos é
inspiração para a estruturação do texto, apenas porque ambos tiveram que superar dificuldades
ou por que, tendo as superado, o escritor maranhense foi eleito para a Casa de Machado de
Assis? Considerando a articulação entre as duas possibilidades, acreditamos que a escrita de
Pisando Os Meus Caminhos seja, uma forma de chamar atenção da Academia Piauiense de
Letras para as qualidades de sujeitos cujas trajetórias se assemelhem à de ambos. O fato é que
o soldado-escritor admira a trajetória do poeta maranhense e, ao longo desta obra e de seus
outros textos, investiu na semelhança entre suas trajetórias, mesmo quando estas não condiziam

193
MATOS, 1969, p. 28-29.
93

com as situações vivenciadas.194


J. Miguel de Matos aponta ainda que sua autobiografia é quase uma autocrítica, uma
quase reflexão sobre sua trajetória. Afirma que escrever é um pedido de socorro mas também
uma forma de ajuda. Mas que socorro e que ajuda são estes? A leitura do texto isolado não
permite perceber o desejo do escritor em ingressar na imortalidade acadêmica, todavia, deixa
claro que deseja que seu relato inspire jovens leitores que vivenciam situações de pobreza, e
para isto, investe mais uma vez no paralelismo entre sua trajetória e a do escritor reconhecido
nacionalmente:

Humberto de Campos teve, num plágio do destino, infância e adolescência


muito parecidas com as minhas: eu, perdendo o pai vivo aos seis anos; ele,
perdendo o pai morto na mesma idade; eu, amando o meu pé de umbu; ele,
também, venerando o seu pé de cajueiro; eu bodegueiro-mirim, vendendo
cachaça num balcão de quitanda em Teresina; ele, também, na cidade de
Parnaíba, vendendo cachaça num balcão de bodega; eu, tentando roubar, para
distrair minha infância triste, um brinquedo qualquer; ele, humilhado, vendo
lhe arrancar das mãos, depois de roubado, um brinquedo que lhe poderia dar
alguns instantes de alegria, escrevendo, muitos anos depois, como quem se
vinga de uma injustiça ou de uma maldade que lhe atassalhara o coração, esta
indagação de desafogo e de denúncia: “E que tem sido para mim, pelo resto
da vida, a felicidade, senão um brinquedo roubado, que eu escondo, que
dissimulo assustadoramente no coração, e que, no entanto, descobrem, e me
tomam, quando custaria tão pouco me deixarem com ele?”.195

Conforme afirmamos anteriormente, Brás da Santinha é a única incursão literária de J.


Miguel de Matos. Contudo, Pisando Os Meus Caminhos, texto produzido a partir de suas
memórias da infância e adolescência, também remete à ficcionalização de suas experiências.
Ficção é aqui entendida não como um falseamento da verdade, mas como uma reflexão que,
pautada em acontecimentos experenciados por este sujeito, produz um discurso que resulta em
interpretações que inventam, conectam e atribuem sentidos aos relatos apresentados 196. Escrita
de si, autobiografia e autoficção são termos com os quais podemos associar Pisando Os Meus
Caminhos. O relato em primeira pessoa, o uso da memória como articuladora da narrativa e

194
Em 1989, ao divulgar nos jornais locais a proposta de criação do Dia da Cultura Piauiense, o escritor é
apresentado como um agente cultural importante, sendo membro da Academia Piauiense de Letras e autor de
diversas obras. Na oportunidade, faz-se um resumo biográfico de sua trajetória e afirma-se que este estava prestes
a reeditar um de seus textos mais conhecidos. Apesar do lugar ocupado no cenário cultural piauiense, o texto
encerra-se assim “[...] Além da Antologia, o autor guarda outros cinco livros prontos para serem impressos, mas
se diz cansado e um tanto infeliz com toda a situação vivida no país. “Ser feliz é algo distante. A felicidade para
mim é, como diria Humberto de Campos, um brinquedo roubado que eu escondo assustadoramente no coração,
mas que tomam-no de mim quando custaria tão pouco me deixarem” [...]”. Tendo sido este texto escritor pelo
próprio J. Miguel de Matos ou o resultado de um trabalho jornalístico externo a ele, percebe-se como o
investimento na ideia de ser preterido é duradouro, mesmo quando são apontados seus êxitos literários.
195
MATOS, 1969, p. 120.
196
RICOUER, Paul. A ficção e as variações imaginativas sobre o tempo. In: RICOUER, Paul. Tempo e narrativa.
São Paulo: Martins Fontes, 2010. v. 3. p. 214-235.
94

uma escrita motivada por um esforço de transformação pessoal fazem desta obra um registro
autobiográfico. Se consideramos os esquecimentos, os usos táticos da memória, as atribuições
de sentido promovidas pelo narrador-protagonista-autor, podemos entendê-la também como um
exercício de ficcionalização de si, no qual os acontecimentos funcionam no interior da narrativa
como uma forma de construir uma imagem desejada por seu escritor.
O relato apresentado em Pisando Os Meus Caminhos é a trilha adotada por J. Miguel
de Matos para a construção de uma identidade. A credibilidade que almeja alcançar com o
narrado produz uma identidade que emerge e confunde-se com quem a escreve. Recorre-se à
memória de modo criativo e esta propicia o surgimento de uma identidade ficcionalizada ou
identidade narrativa, tal como apresentada por Paul Ricoeur, construída ao longo de seus textos.
No texto, J. Miguel de Matos assume que esqueceu ou não consegue explicar algumas
passagens de sua vida. O esquecimento, elemento constituinte das memórias associa-se ao
caráter seletivo e fragmentado destas posto que é produto de uma narrativa voluntária entendida
por Michel Pollak como fundamental para a construção de uma imagem coesa de si.197 Do ponto
de vista da ficcionalização de si, acreditamos que J. Miguel de Matos utiliza a memória como
um artifício narrativo que articula os acontecimentos com o objetivo de dar suporte a seu projeto
autobiográfico.
Phillippe Lejeune chama atenção para a existência de um pacto autobiográfico feito com
o leitor, pautado no princípio da identidade entre aquele que escreve, narra e vivencia os relatos
e no princípio da referencialidade, em que os acontecimentos apontados pelo narrador
correspondem à temporalidade e à plausibilidade históricas. 198 Se o narrador confunde-se,
esquece-se ou promove alterações no registro do foi vivido, o pacto autobiográfico pode ser
posto em suspeição e a narrativa dele decorrente pode deixar de apresentar o experenciado e ser
entendida apenas como uma representação possível dos acontecimentos. Se considerarmos as
tentativas do autor em preencher lacunas, construir relações entre si os demais personagens
apresentados, subverter a cronologia e priorizar o relato de determinados acontecimentos, tais
procedimentos podem ser entendidos como um processo de ficcionalização de si, utilizando-se
de modo tático as memórias, a escrita de si e o registro autobiográfico.
Contrariando a posição dos estruturalistas que defendem que a análise das obras,
literárias ou não, devem desconsiderar os interesses e subjetividades de seu produtor, 199 bem
como as condições que a tornaram possível, Pierre Bourdieu afirma que a força social das

197
POLLAK, 1989.
198
LEJEUNE, 2014.
199
ZILBERMAN, Regina. Estética da Recepção e História da Literatura. São Paulo: Ática, 1989.
95

construções simbólicas está no reconhecimento de que os discursos que delas emergem são
construídos no interior das relações sociais e expressam os desejos e ideologias de seu
produtor200. Nesse sentido, acreditamos que a escrita de Pisando Os Meus Caminhos possui
motivações claras, o que nos permite afirmar que, por meio dela, seu escritor promove uma
ficcionalização de suas experiências com o objetivo de construir uma identidade almejada.
Na narrativa, a ênfase nas injustiças que acredita ter sido vítima garante dramaticidade
ao texto e, ao atribuir à obra o papel de lição motivacional atribui-se sentido à narrativa que
será apresentada. Segundo J. Miguel de Matos, a escrita de Pisando Os Meus Caminhos foi
motivada por pedidos de amigos e familiares a fim de dar-se a conhecer para a atual geração e
mostrar “como um homem que ‘nasceu com tudo para não ser nada’ [...] vence as dificuldades
da província como obreiro do espírito e como missionário do amor e da bondade”.201 O caráter
pedagógico e motivacional permeia o texto com seu narrador-protagonista apresentando-se
como alguém cuja vida é pautada na superação de obstáculos e como isto pode servir de
inspiração para aqueles que encontram-se em posição semelhante a sua. O compromisso com a
veracidade dos relatos, quer sejam agradáveis ou não àquele que os rememora, é tido por J.
Miguel de Matos como elemento que expressa coragem e humildade do autobiógrafo. O autor
reconhece os perigos da exposição de sua intimidade, contudo, seu desejo de legitimar seus
relatos e angariar a identificação de seus leitores o levam a afirmar

Quando o homem se dispõe, por auto-decisão ou para atender pedidos ardentes


que lhe chegam aos ouvidos, a contar, desenrolando o novelo de sua infelicidade
ou de sua desventura, a história de sua vida, acho que ele, em respeito à verdade,
não deve deixar de revelar, num admirável gesto de coragem e independência,
todos os momentos vividos. Não deve também o autobiógrafo, por injustificável
egocentrismo, falar só de si – coisa que parece impossível o labirinto da vida
pela imposição de fatores mesológicos, merecendo justa pena a cromatização
intrínseca que pretenda usar a abusar. Daí porque o panorama da terra deve
andar paralelo com o panorama da vida.202

Nesse fragmento, ao afirmar que a história do indivíduo está ligada à de sua comunidade,
J. Miguel de Matos valoriza sua experiência social. Fazendo referência à pobreza que marcou
a etapa inicial de sua vida, ao tempo que a associa às injustiças e falta de oportunidades, o autor
rompe a relação causa-efeito-consequência ao não aceitar que a falta de recursos financeiros
seja critério justo para o reconhecimento das potencialidades dos indivíduos. O autor atribui a
Pisando Os Meus Caminhos um caráter didático para os jovens e afirma

200
BOURDIEU, 2001.
201
MATOS, 1969, p. 29.
202
MATOS, 1969, p. 76.
96

E, escrevendo a história da minha vida, como se querendo mostrar que nela,


apesar de humilde e pobre, possam haver fatos que sirvam de lição proveitosa
aos que, temerosos e aflitos, se vão fazer ao grande mar da vida, vou buscar
vez por outra no passado, por uma estranha vontade e por uma esquisita
inspiração, um personagem vivo ou morto, dinâmico ou estático, como uma
peça imprescindível ao funcionamento de uma máquina que se quer botar em
movimento.203

O biografar-se, considerado por J. Miguel de Matos como uma “tarefa de mestre”, é


perceptível em seus textos não-ficcionais, sendo apontado por seus contemporâneos como
marca característica de sua escrita. Dialogar com sua produção escrita tendo em vista seu
projeto de construção de uma imagem de si como escritor injustiçado nos permite compreender
esse indivíduo em suas singularidades e observar seu lugar de fala a fim de conhecer como este
representa e significa o mundo e os acontecimentos de seu cotidiano.
Tendo como referência suas campanhas para ingresso na Academia Piauiense de Letras,
a produção textual de J. Miguel de Matos assume características díspares pois será o espaço de
conciliação de experiências e discursos que oscilam entre estratégias e táticas. Entendemos a
narrativa apresentada em Pisando Os Meus Caminhos, como uma escrita elaborada a partir das
necessidades do tempo presente, sendo 1969 o ano da publicação de sua primeira obra após a
sua tentativa inicial de ingressar na Casa de Lucídio Freitas. Neste livro, ao apresentar a figura
da “Doida Ângela”, personagem errante que circulava entre a Rua das Pedras e Rua Paissandu,
o escritor insere episódios ligados à sua frustrada candidatura. “Doida Ângela” é descrita como
alucinada que vagava pelas ruas e afirmava serem suas as estrelas do céu e isso era motivo de
riso para os moradores da cidade, entre eles a mãe do narrador-personagem. Apresentando-se
como criança sensível, J. Miguel de Matos afirma que diante dos pedidos de Ângela, este
dirigia-se a sua mãe e “mostrando a angústia de quem quer ser atendido, este pedido: - Dá,
mamãe, as estrelas p’ra Ângela ... Dá, mamãe...”.204
O desenrolar do capítulo em que apresenta esta personagem é mais um exemplo de como
o escritor foge ao limite temporal estabelecido para sua obra. A “Doida Ângela” de sua infância
parece funcionar no interior da narrativa como instrumento através do qual o escritor comentará
acontecimentos relativos ao ano de 1967, no qual a escritora Lili Castelo Branco205 apresentou
seu nome como potencial candidato aos acadêmicos. Em tom de fingida conformação, J. Miguel

203
MATOS, 1969, p. 120.
204
MATOS, 1969, p. 128.
205
Nome literário de Emília Leite Castelo Branco, que nasceu em Fafe (Portugal) em 1896 e faleceu em Teresina,
em 1993. Romancista e cronista, é autora de Ermelinda, Os Amores de Tomás, Os Mistérios de Castelo, entre
outras obras literárias. Fez parte do Conselho Estadual de Cultura e na Academia Piauiense de Letras ocupou a
cadeira 37.
97

de Matos associa seu desejo de pertencimento a esta agremiação com a busca de algo
impossível, ao tempo em que questiona a decisão dos acadêmicos

Pedindo, num doce gesto de sua bondade, para que eu entrasse para a
Academia Piauiense de Letras, a escritora Emília Leite Castelo Branco, de
nome literário Lili Castelo Branco, jamais imaginou, pela virgindade de sua
pureza, estar preparando com a argila de seu amor, uma tempestade e trazendo
do fundo do meu passado a doida Ângela, que tanto me encantou com suas
alucinações inofensivas.206

Diante desse fragmento, nos questionamos o que motivou o autor a atrelar sua frustrada
candidatura aos relatos sobre os devaneios da Doida Ângela? Ser imortal na Casa de Lucídio
Freitas é apresentado como uma alucinação, sobretudo por tratar-se de um candidato nascido em
família pobre e com pouco acesso ao ensino formal. Percebemos nesse trecho como o autor
dramatiza o relato canalizando atenção para si, o que motivou à época reações de apoio e rejeição.
Fazendo uso dessa suposta marginalidade social, o escritor vitimiza-se, constrói sentidos sobre
sua derrota e ataca os critérios acadêmicos tidos como conservadores e excludentes.
Ainda ao referir-se à iniciativa de Lili Castelo Branco, o autor reforça suas mágoas,

E quando o homem, tomado de súbito e raro sentimento de bondade – raio de


luz que às vezes lume dentro de seu coração – sentido da minha dor, corre e
me oferece um bastão para o meu amparo, uma côdea de pão para a minha
barriga e um caneco d’água para os meus lábios, os coveiros da minha
felicidade que crocitam sobre minha cabeça, tiram das minhas mãos o bastão
e o caneco e da minha boca, que já ia se fartar, a côdea de pão, deixando o
peregrino, de repente tão feliz, no mais completo abandono: as mãos mais
vazias, a barriga mais faminta e a boca mais sedenta.207

Para além do reiterado desejo de que esta obra sirva de lição para os mais jovens, por
meio de fragmentos como este, Pisando Os Meus Caminhos pode ser entendido também como
um instrumento tático de seu autor que, ao atribuir sentido ao que denomina de injustiças a ele
atribuídas, acaba por chamar atenção para os interesses presentes nos momentos de eleição dos
novos imortais. Consideramos esse capítulo, em especial o trecho acima apresentado, como
central nessa narrativa memorialística e autobiográfica, sobretudo porque dele é retirado a
epígrafe da obra. A memória nele manifestada, que mais tarde servirá de base para seu discurso
de posse na Academia Piauiense de Letras em 1973, reflete os ressentimentos de seu produtor
e denuncia as reais intenções deste relato.
A ficcionalização de si apresenta-se nesta narrativa como uma prática seletiva que
articula discursos díspares no tempo, no espaço e nas suas motivações a fim de construir

206
MATOS, 1969, p. 125.
207
MATOS, 1969, p. 124.
98

representações sobre sua trajetória. Aquilo que inicialmente parece ser “deslize” da memória
pode ser tomado como manifestação das intenções do escritor, a partir de atribuição de sentidos
a posteriori. A utilização de uma memória para construir narrativas táticas, pautadas no
ressentimento e dramatização das experiências vividas, resulta em um texto em que sua
experiência de vida associa-se diretamente à superação de injustiças.
Segundo Pierre Ansart, os sentimentos dos homens devem ser observados em suas
trajetórias, cabendo aos pesquisadores não se aterem somente aos sentimentos ditos positivos,
mas considerar os medos, as angústias, as frustrações, os desejos de vingança e as hostilidades
ocultas que se revelam através de variadas atitudes.208 No território da escrita, estas emoções
podem forjar práticas que buscam conquistar espaço ao serem reforçadas ou refutadas pelos
indivíduos que as possuem, interferindo no processo de construção da identidade individual e
dos grupos com os quais este se relaciona. Neste sentido, o ressentimento diante das injustiças
que julga ter sofrido desencadeia atribuições de sentidos através das quais os escritores
ficcionalizam suas trajetórias e acabam por construir uma identidade pautada naquilo que Pierre
Bourdieu denuncia como ilusão biográfica, ou seja, a construção de uma narrativa que força os
acontecimentos de uma vida a obedecer a uma representação linear, sequencial e pautada em
relações de causa e efeitos entre as experiências.209
À medida que escreve suas reminiscências, J. Miguel de Matos constrói sua identidade
numa perspectiva tática, contudo, após 1973, este autor vê-se forçado a conciliar dois lugares
de fala: de candidato preterido a acadêmico recém-eleito. Sua escrita será espaço de conciliação
de experiências e discursos e, nessa perspectiva, devem ser analisadas, também, como ação
estratégica, definida por Michel de Certeau como uma macropolítica nas relações sociais, um
“cálculo (ou a manipulação) das relações de forças que se torna possível a partir do momento
em que um sujeito de querer e poder (uma empresa, um exército, uma cidade, uma instituição
científica) pode ser isolado”.210
J. Miguel de Matos operacionaliza o uso de sua memória a fim de construir uma
interpretação coerente de suas vivências. A construção da identidade como um instrumento
tático é apontado por Stuart Hall como produto da pós-modernidade, sendo algo dinâmico e
situado do tempo-espaço, uma celebração móvel inserida num sistema de representação
simbólico por meio do qual forma-se e transforma-se o vivido. Segundo o autor,

208
ANSART, 2004.
209
BOURDIEU, 2000.
210
CERTEAU, 1994, p. 99.
99

Assim, a identidade é realmente algo formado, ao longo do tempo, através de


processos inconscientes, e não algo inato, existentes na consciência no
momento do nascimento. Existe sempre algo “imaginário” ou fantasiado sobre
sua unidade ela permanece sempre incompleta, está sempre “em processo”,
sempre “sendo formada”. [...] Assim, em vez de falar da identidade como uma
coisa acabada, deveríamos falar de identificação, e vê-la como um processo
em andamento. A identidade surge não tanto da plenitude da identidade que
já está dentro de nós como indivíduos, mas de uma falta de inteireza que é
“preenchida” a partir de nosso exterior, pelas formas através das quais nós
imaginamos ser vistos por outros. Psicanaliticamente, nós continuamos
buscando a “identidade” e construindo biografias que tecem as diferentes
partes de nossos eus divididos numa unidade porque procuramos recapturar
esse prazer fantasiado da plenitude.211

A concepção pós-moderna aponta que, ao longo da trajetória de vida, os sujeitos


constroem incessantemente suas identificações, a partir dos estímulos e necessidades de seu
tempo. No entanto, J. Miguel de Matos entende a construção de sua identidade, por meio de seu
texto, como algo pronto e acabado. O escritor satisfaz-se com a imagem que construiu de si a
ponto de cristalizá-la no tempo e espaço. Contrariando o fluxo imprevisível da vida, força suas
experiências a sempre dialogar com a identidade que construiu para si. Esta identidade narrativa
é dinâmica, porém pouco criativa e transforma-se quase em lugar comum em seus textos, pois
independentemente de seus sucessos ou fracassos, o escritor insistirá em mostrar-se como
alguém que sofre e é injustiçado.
Embora a autobiografia seja uma escrita de si produzida a partir da ficcionalização das
experiências vividas e apesar do caráter fragmentado dos relatos memorialísticos, consideramos
a potencialidade narrativa de Pisando Os Meus Caminhos. Interessa-nos a partir deste texto
compreender as motivações para sua escrita e o que elas revelam sobre aquele que escreve num
momento específico de sua trajetória e o que nos diz sobre o sujeito que utilizará esses relatos
como sua matriz identitária. Sem nos preocupar se os relatos são verdadeiros ou falsos,
buscamos as motivações e os usos dessa escrita que ao longo do tempo será usada para ignorar
as transformações, que

[...] no lugar do caráter espontâneo e natural, ressaltam-se os


empreendimentos deliberados de reconstrução empreendidos pela memória,
que responde por via de regra a demandas e interesses políticos. Toda
memória é fundamentalmente “criação do passado”: uma reconstrução
engajada do passado (muitas vezes subversiva, resgatando a periferia e os
marginalizados) e que desempenha um papel fundamental na maneira como
os grupos sociais mais heterogêneos apreendem o mundo presente e

211
HALL, Stuart. A identidade cultural na Pós-Modernidade. Rio de Janeiro: DP&A, 2011. p. 38-39.
100

reconstroem sua identidade, inserindo-se assim nas estratégias de


reivindicação por um complexo direito ao reconhecimento.212

A construção de uma identidade narrativa, a ficcionalização de si produzida por meio


da atribuição de sentidos e ressignificação do passado, o uso da narrativa memorialística sob o
compromisso com a verdade, expressa o mecanismo utilizado por J. Miguel de Matos para
construir sua identidade como escritor-narrador. Esta operacionalização evidencia como o
escritor enxerga o mundo que o cerca, como insere-se nele e como busca transformá-lo a partir
de seus interesses. Dotada de força política, esta escrita é entendida como forma de resistência,
um contrapoder interessado em construir e atribuir novos sentidos aos acontecimentos. Nessa
perspectiva, o uso tático da memória e dos ressentimentos adotado por J. Miguel de Matos em
sua obra autobiográfica mostram como esses podem ser utilizados com uma finalidade
utilitária-política a fim de mobilizar atenção para aquilo que é narrado e ser instrumento de
construção e competição das diferentes versões dos acontecimentos.

3.2 O jornalista J. Miguel de Matos

A inserção de J. Miguel de Matos na imprensa piauiense se dá antes mesmo de seu


retorno definitivo a Teresina. Utilizando-se de táticas como envio de correspondências e
exemplares de textos publicados, convites para solenidades, agradecimentos nas obras
publicadas, transcrições e comentários de textos de escritores piauienses nos jornais cearenses
para o qual colaborava, este escritor conseguiu articular redes de sociabilidades literárias que
garantiam visibilidade aos seus membros à medida que os colocava em diálogo com outros
escritores e agentes culturais. Concomitante à sua atividade militar este não se furtava ao
posicionamento diante daquilo que lia e observava, aproveitando-se dos espaços disponíveis
para tecer elogios, críticas e comentar assuntos que lhe chamavam atenção.
Sua atuação na imprensa piauiense é vasta e múltipla. Contrastando com opinião por ele
emitida em correspondência publicada pelo cronista esportivo Carlos Said, na qual comenta a
natureza de suas colaborações,213 identificamos um corpus significativo que nos permite
enxergá-lo no exercício de atividades como editor das revistas Mafrense e Destaque,214 como

212
SEIXAS, 2004, p. 41-42.
213
“[...] Por não manter coluna diária muito menos assinar colaboração constante na imprensa local – escrita,
falada e televisada – mesmo que sempre encontre a minha disposição, por bondade dos colegas de profissão, a
porta larga das emissoras, das redações dos jornais e da TV, estou vez por outra, através de epístolas, dissecando
um assunto quente e geralmente de interesse da coletividade, de que sou, por formação sentimental, jornalística e
estética, um obediente soldado da pena [...]” (MATOS, J. Miguel de. J. Miguel escreve a C. Said. O Estado,
Teresina, p. 6, 30 jun. 1973).
214
A referência a esta publicação é constante nos perfis bibliográficos feitos sobre J. Miguel de Matos, contudo,
em nossas pesquisas em acervos públicos e privados, não foi possível localizar nenhum exemplar. As informações
101

colaborador nas revistas de agremiações culturais das quais era membro, tais como o Instituto
Histórico e Geográfico do Piauí215 e Academia Piauiense de Letras.216 Na imprensa diária, foi
colaborador dos jornais Folha da Manhã, O Estado e O Dia. Mesmo querendo aludir a certo
ostracismo em torno de sua atuação, o corpus documental desta pesquisa aponta para uma ampla
penetração deste escritor em diversos meios e veículos de comunicação. Versando em torno de
três eixos principais, sua atividade jornalística contempla a cidade e seus problemas, a
apresentação de perfis biográficos e a construção de uma imagem de si a partir de diálogos e
embates com apoiadores e críticos de seu trabalho. Refletindo sobre sua trajetória pessoal e
posicionando-se diante das demandas de seu tempo, estes textos ajudam a pavimentar, não sem
dificuldades, a realização de seu maior objetivo: o ingresso na Academia Piauiense de Letras.
A personalidade irascível fez de J. Miguel de Matos uma figura constante nos jornais de
sua época, seja como articulista ou como alvo de notícias e intrigas. Divulgações de suas
atividades culturais, os apoios e oposições às suas candidaturas, as críticas, nem sempre
elogiosas, a seus escritos e posturas aparecem na imprensa teresinense. Em um contexto no qual
os jornais procuravam diversificar seus conteúdos extrapolando o noticiário político, ceder
espaço para um indivíduo ansioso para construir-se como intelectual polêmico e bajulador,
fornecia material publicável, estimulava a participação de outros agentes culturais e garantia o
interesse do público leitor no desenrolar das polêmicas.
Acreditamos que os jornais e as revistas são fontes importantes, posto que apresentam
posicionamentos múltiplos sobre a cidade e seus sujeitos e, no que diz respeito ao objeto de
nossa investigação, esta fonte é potencializada por ser um espaço acessível para divulgação de
ideias e projetos culturais. A pesquisa nos jornais desse período possibilita que, no presente,

que apresentaremos aparecem nos jornais da cidade em textos alusivos aos proprietários e à circulação desta
revista.
215
Com o objetivo de estimular o estudo e a pesquisa da história, geografia e ciências afins, o Instituto Histórico
e Geográfico Piauiense previa em seu primeiro estatuto, datado de 1918, a publicação de uma revista anual. Com
publicação irregular, até o presente apenas sete edições de Revista do IHGP vieram a público. Registramos
referências e colaborações de J. Miguel de Matos em três números desta publicação: A edição de 1972 apresenta
J. Miguel de Matos como sócio efetivo desta entidade. A edição de 1974 informa que este faz parte da diretoria,
ocupando a função de segundo tesoureiro e traz também um texto de sua autoria intitulado “Rui Barbosa, Literato”.
A edição de 1975 apresenta o texto “O Estilo da Costa e Silva”. Os textos por ele publicados são perfis biográficos
elogiosos sobre os sujeitos elencados.
216
Prevista nos estatutos e regimentos da Casa de Lucídio Freitas como uma publicação semestral, o editorial do
primeiro número da Revista da Academia Piauiense de Letras apresenta as motivações para esta publicação que
até o presente tem setenta e oito edições lançadas: “[...] A fundação da Academia Piauiense de Letras e a publicação
desta Revista visam chamar a atenção dos entendidos para o estudo de quanto nos possa interessar, de seus homens,
de suas coisas, tanto quanto estiver ao alcance das nossas forças. Não nos impelem vaidades pessoais nem há
motivos para elas neste obscuro posto de trabalho em que nos reunimos, alentados unicamente pelo desejo de
prestar algum serviço à terra natal [...]” (REVISTA DA ACADEMIA PIAUIENSE DE LETRAS. Teresina, v. 1,
n. 1, junho 1918). O único texto de J. Miguel de Matos publicado nesta revista é seu discurso de posse, na edição
de 1983. Contudo, seu nome aparece nas edições que apresentam o quadro histórico da Academia Piauiense de
Letras, em registros de atividades às quais compareceu e sendo referido em textos de outros colaboradores.
102

nos aproximemos de registros sobre a dinâmica cultural piauiense e as redes de sociabilidades


capazes de forjar aproximações, distinções e disputas entre intelectuais, jornalistas e literatos.
Contudo compreendemos que tal fonte não é neutra e torna-se necessário historicizá-la a fim de
se conhecer seus mecanismos de produção, venda e distribuição, bem como os perfis políticos
e posicionamentos sociais de seu proprietário, editor e colaboradores.
Tania Regina de Luca aponta que o esforço de caracterizar e historicizar as fontes
hemerográficas deve estar no horizonte daqueles que se propõem a considerar a imprensa
escrita como fonte e objeto de análise. Nesse sentido, é necessário

[...] dar conta das motivações que levaram à decisão de dar publicidade a
alguma coisa. [...] em síntese, os discursos adquirem significados de muitas
formas, inclusive pelos procedimentos tipográficos e de ilustração que o
cercam. A ênfase em certos temas, a linguagem e a natureza do conteúdo
tampouco se dissociam do público que o jornal ou revista pretende atingir. [...]
Daí a importância de se identificar cuidadosamente o grupo responsável pela
linha editorial, estabelecer os colaboradores mais assíduos, atentar para a
escolha do título e para os textos programáticos, que dão conta de intenções e
expectativas, além de fornecer pistas a respeito da leitura de passado e de
futuro compartilhada por seus propugnadores.217

Os cuidados acima apresentados caracterizam um olhar historiográfico sobre a fonte


hemerográfica. Tania de Luca evidencia que os escritos jornalísticos não são a versão definitiva
sobre os acontecimentos, apenas nos oferecem fragmentos de realidades que somente serão
acessadas ao considerarmos questões internas a seus mecanismos de feitura, bem como
questões externas, a exemplo das condições de arquivamento e preservação que possibilitam
sua consulta nos dias atuais. Observar as formas através das quais jornais e revistas aparecem
como objetos a serem consumidos por leitores, a identificação das articulações políticas,
editoriais e/ou empresariais que tornam possíveis suas existências ao longo do tempo, o capital
cultural, ideológico e simbólico evidenciado nos escritos de seus articulistas, as relações que
estabelecem com os consumidores possibilitam o entendimento das representações e jogos de
poder presentes nas fontes impressas.
No Piauí, a imprensa escrita tem seu início na segunda metade do século XIX. Tiragens
pequenas, circulação circunscrita a alguns dias da semana, curto período de circulação e feitura
quase artesanal são as principais características dessa imprensa incipiente. Na transição entre
séculos XIX e XX, sobretudo nas décadas iniciais deste último, os jornais tornaram-se espaços
onde além do noticiário cotidiano e das discussões políticas, os letrados, homens e mulheres

217
DE LUCA, Tania Regina. História dos, nos e por meio dos periódicos. In: PINSKY, Carla Bassanez et. al.
Fontes históricas. São Paulo: Contexto, 2006. p. 140.
103

geralmente pertencentes à elite, divulgavam seus textos de cunho filosófico, jurídico e literários.
Patrocinados por partidos políticos ou apoiados pelo grupo que estava no poder, ligados à Igreja
Católica, a escolas ou grupos literários, os jornais e revistas produzidos no Piauí eram espaços
ocupados por eruditos e beletristas para divulgar suas ideias e construir sentidos em torno da
realidade social.
A partir da década de 1950, a imprensa nacional empreendeu esforços visando
modernizar-se, um processo de reformulação que, na prática, buscava desligar os jornais do
campo meramente político, inserindo-os no conjunto amplo das discussões sociais. Na esteira
dessas transformações, os colaboradores da imprensa buscaram uma autonomia do campo
jornalístico em relação ao literário, reivindicando uma profissionalização à medida que
construíam um discurso em torno da neutralidade e objetividade destes produtores. Entendendo
o jornalismo como espaço de luta simbólica em torno da construção e disputa de poder,
Marialva Barbosa, a partir de análise da imprensa carioca, tece as seguintes considerações sobre
a imprensa brasileira na década de 1950

O que os jornais pretendem é não apenas atuar no campo político, lugar onde
se geram problemas, programas, análises, comentários, conceitos e
acontecimentos, entre os quais os “consumidores” devem escolher, mas
sobretudo, conseguir mobilização cada vez maior do público. Quanto maior a
sua audiência, maior o seu poder de divulgação e a lógica da conquista do
próprio poder. E nada mais condizente com o momento social da década de
1950 do que se transformar mais do que em porta-vozes da modernização, mas
em seu próprio emblema, produzindo um jornalismo em padrões
completamente diversos do que fora feito até então, pelo menos no discurso
com que referendam esse processo. Nada melhor também para conseguir
audiência do que divulgar ao extremo que produzem um discurso que apenas
espelha o mundo. E conseguir audiência é sempre conseguir poder.218

No Piauí, os discursos em torno da modernização da imprensa são impulsionados no


início da década de 1970 e a fundação do jornal O Estado sintetizava este processo. Investindo
em nova feição gráfica, o jornal chegou para disputar público leitor com os periódicos já
existentes, a saber, O Estado do Piauí, O Dia e Jornal do Piauí. Em um período em que ainda
não havia formação acadêmica para jornalistas no Piauí,219 seu proprietário, Hélder Feitosa,

218
BARBOSA, Marialva. História Cultural da Imprensa: Brasil 1900-2000. Rio de Janeiro: Mauad X, 2007. p.
153.
219
O curso superior de Comunicação Social foi implementado pela Universidade Federal do Piauí em 1984. Antes
disso, a profissão era exercida por letrados registrados junto a sindicatos, associações e ao Ministério do Trabalho.
A reunião registrada pelo jornal O Estado em 1976, apresenta a realidade dos que fazem a imprensa local “[...] os
jornalistas piauienses que exercem a profissão e ainda não possuem o competente registro [...] terão sua situação
regularizada a curto prazo [...] A obtenção do registro profissional de jornalista pra mais de 30 profissionais que
atualmente fazem a imprensa nos jornais, no rádio e na televisão, tem sido uma aspiração da classe, pois a qualquer
momento, na falta da concessão, eles poderão ficar sem emprego e daí ser criado um problema social já que a lei
que regulamenta a matéria impede que exerçam cargos de redatores e repórteres os profissionais que não tenham
104

tentou arregimentar colaboradores que rompessem o círculo composto, em sua maioria, por
funcionários públicos e literatos.220 Na prática, o jornal foi mais um a receber subvenção pública
e a dar abrigo a comentaristas políticos e literatos. Em todos os jornais aqui citados, J. Miguel
de Matos colaborou.
As reflexões e análises empreendidas sobre os escritos de J. Miguel de Matos na
imprensa, alguns reunidos e publicados em forma de coletânea nas obras Mosaico e
Garimpagem, pautam-se nos pressupostos apontados por Tania Regina de Luca articulando a
esse processo à investigação sobre como tais textos constroem a imagem desse literato-
jornalista. Identificamos os meios através dos quais este escritor teve acesso à imprensa escrita,
ou seja, quais relações pessoais e profissionais que lhe permitiram, ao longo dos anos, ocupar
espaços nos impressos da cidade. Além disso, consideramos importante apontar as
características dessa escrita que foi capaz de arregimentar identificação por parte de um público
leitor e colaborou para permissão ou interdição de suas falas e aspirações.
Em nosso corpus documental, a primeira colaboração de J. Miguel de Matos na
imprensa local remete ao ano de 1963, no jornal Folha da Manhã. Neste periódico, o escritor
assinou a coluna Grandes Problemas da Cidade que, fazendo jus ao seu título, propunha-se a
apresentar os desafios da capital piauiense. Os textos iniciais são marcados por reivindicações.
O ditado popular “água mole em pedra dura” utilizado como subtítulo sintetiza suas intenções:
utilizar a escrita como forma de denúncia, como um instrumento por meio do qual os problemas
apontados pudessem ser resolvidos. Em sua primeira edição, assim seu articulista se apresenta

Inicio este trabalho com um imperativo pedido de perdão. É que este novelista,
romancista ou poeta, como queiram taxar ao humilde padeiro do espírito que
aqui está a lapidar estes caracteres, altamente preocupado com o destino de
sua terra natal – o Piauí – tem de fundir-se, por dever do ofício, apenas no
jornalista, no homem que tem a obrigação de orientar a opinião pública e
apontar, anseando solução imediata ou mesmo tardia, os graves problemas que
emperram o progresso do Estado, da cidade ou do município. [...] Nesta
coluna, que virá a lume duas vezes por semana – 4º feira e sábado – estarei
aqui a apontar os problemas que mais angustiam a cidade, pedindo as soluções
mais imediatas e mais viáveis, mostrando aos municípes onde a ferida está
sangrando e qual o remédio que possa pensá-la.221

se registrado junto ao Ministério do Trabalho até 1969 ou não possuam curso de comunicação. Justamente o
problema vai ser solucionado porque no Piauí, Paraíba, Alagoas e Mato Grosso ainda não existem Faculdades de
Comunicação [...]” (DECRETO vai beneficiar jornalistas piauienses. O Estado, Teresina, p. 4, 16 set. 1976).
220
A. Tito Filho personifica o modelo vigente na imprensa piauiense até então. Professor do Colégio Estadual e
de escolas privadas, algumas vezes secretário de Estado, este escritor possuía colunas nos principais jornais da
cidade, a saber: Caderno de Anotações, no Jornal do Piauí e Várias Notícias, no jornal O Dia.
221
MATOS, J. Miguel de. Grandes problemas da cidade: calçadas (I). Folha da Manhã, Teresina, p. 7, 11 dez.
1963.
105

Além de apresentar os objetivos da coluna, o fragmento quer apresentar um sujeito que


participa efetivamente dos assuntos de sua comunidade. À medida que Grandes Problemas da
Cidade ganha repercussão, o escritor conclama seus leitores a enviar correspondências ao jornal
com sugestões de temas a serem discutidos. Como resultado de sua interação com os leitores
ou como testemunho daquilo que ele vivencia enquanto morador dos arredores da área central
da cidade, surgem debates sobre a situação das calçadas, transportes coletivos, conservação da
ponte do rio Parnaíba, abastecimento d’água, fornecimento de energia elétrica, inundações,
situação dos mocambos, dos cinemas, além de uma preocupação pessoal e caricata sobre o que
ele denomina de macumba.
É a cidade que emerge nas páginas do jornal em seus problemas mais cotidianos,
sobretudo aqueles que afetam as camadas mais pobres. A Teresina que aparece em seus textos
é a cidade empobrecida após o declínio da economia extrativista, com uma população que
sobrevive das atividades comerciais ou como servidores públicos. A queda da renda econômica
gesta um Estado que, por muitos anos, sobreviveu por meio de transferências de recursos
públicos federais. A imagem de um Piauí pobre, seco e sem infraestrutura se fortalece à medida
que os poderes políticos e as elites econômicas resistem às mudanças e insistem num modelo
agrário-pastoril que é conservador, elitista e excludente.222 Sem recursos que viabilizem
investimentos estruturais, Teresina é apresentada como uma cidade em que “cada minuto que
se esvai, tem um problema clamando por solução”.223
Partindo de problemas vivenciados por ele ou por seus leitores, o soldado-escritor afirma
agir como um advogado do povo, e fazer do seu jornalismo uma prática imparcial, zelosa às
fontes e aos vários aspectos da temática abordada. Ao iniciar discussão sobre o transporte
coletivo, assim se manifesta

Iniciando este importante tema, que vem sendo infinda angústia para o
munícipe [...] vamos fazê-lo em sentido meramente subjetivista, para que o
leitor – o grande juiz! – possa receber, nos trabalhos subsequentes, que serão
publicados, doravante, com mais frequência, com mais entusiasmo e nosso
argumento, que deverá ser sentido e nunca refutado, por seu realismo e crueza,
por sua atualidade e gritante vergonha para os nossos foros de cidadania.224

O trecho reconhece que o leitor é o grande juiz de seus textos, posto que vivencia os
problemas apresentados. Ao falar do transporte coletivo, o escritor inclui-se entre aqueles que

222
DOMINGOS NETO, Manoel; BORGES, Geraldo Almeida. Seca Seculorum: flagelo e mito na economia rural
piauiense. Teresina: Fundação CEPRO, 1987.
223
MATOS, J. Miguel de. Grandes problemas da cidade: calçadas (I). Folha da Manhã, Teresina, p. 7, 11 dez.
1963.
224
MATOS, J. Miguel de. Grandes problemas da cidade: transportes coletivos (I). Folha da Manhã, Teresina, p.
6, 17 dez. 1963.
106

são prejudicados pela ineficiência do sistema e diz que sua escrita será potencialmente
subjetiva, portanto, apaixonada, em virtude do desejo de solucionar o problema. Entendendo
sua escrita como um testemunho, o escritor compromete-se a buscar soluções e não admite que
seus argumentos sejam refutados, por crer que seu trabalho é imparcial e está legitimado em
suas experiências diárias.
A discussão em torno das religiões de matrizes africanas na cidade nos permite conhecer
posicionamentos deste escritor. Diferente de outros temas apresentados, não há indicação de
que a denominada macumba é um problema que afetasse a vida da comunidade. O que emerge
do relato é uma curiosidade pessoal sobre as práticas descritas pelo escritor como cerimônias
fetichistas e rituais bárbaros. O texto preocupa-se em apresentar a metodologia de sua produção,
na qual afirma-se ter percorrido bibliotecas à procura de informações sobre o tema e diante da
ausência de relatos, dirigiu-se aos terreiros a fim de entender essas práticas. Sobre suas
motivações, assim se manifesta J. Miguel de Matos

Para penetrar, com acuidade, nas profundezas de sua incógnita, tive de


revolver com paciência beneditina, horas perdidas, meio assombrado com as
almas do outro mundo, a poeira das bibliotecas públicas ou das estantes
caseiras, na busca curiosa e cansativa de um compêndio que elucidasse, pelo
menos em parte, a complexidade do tema. Talvez por falta de sorte, foi quase
inútil o excêntrico mister. [...] Sem fonte segura aonde pudesse beber,
fartamente, as luzes da temática tão fascinante por sua originalidade e enigma,
fui obrigado a deixar, vez por outra, o pó dos arquivos, o bulício do asfalto, e
embrenhar-me, de camisa suada e pernas bambas de cansaço pelas andanças
persistentes, pelos bairros mais distantes e arredores mais humildes, para ver
de perto e sentir, em toda sua plenitude e esplendor extravagante, o espetáculo
pagão desse ajuntamentos de macumba, onde tresandam o álcool e o fumo. E
vou derramando, aqui, como cousa mal assombrada, a carga misteriosa e
excêntrica do meu farnel.225

O texto quer nos apresentar um sujeito diligente e responsável na produção de seus


escritos. Alusões à sua paciência, ao cansaço em busca por fontes seguras misturam-se à conceitos
prévios que possui sobre o tema. Referências a assombrações e ao lugar marginal destas práticas
no contexto da cidade perpassam o texto, impedindo os leitores de construir novos conhecimentos
sobre a temática. Nesse caso, o que se percebe é o aproveitamento do espaço do jornal para
difundir opiniões de um católico praticante sobre algo que é estranho às suas crenças. Ao concluir
o texto afirmando que “o homem que procura a macumba ou outra bruxaria qualquer está
dominado por um desespero e busca um alento na tempestade de seu viver” 226 o escritor põe em

225
MATOS, J. Miguel de. Grandes problemas da cidade: transportes coletivos (I). Folha da Manhã, Teresina, p.
6, 17 dez. 1963.
226
MATOS, J. Miguel de. Grandes problemas da cidade: macumba. Folha da Manhã, Teresina, p. 6, 28 jan. 1964.
107

dúvida seu próprio trabalho como jornalista e, por conseguinte, sua construção como intelectual
posto que nem mesmo as pesquisas e as experiências in loco foram capazes de oferecer-lhe visão
mais abrangente e menos preconceituosa sobre esta prática religiosa.
A Teresina da década de 1960, sobre a qual J. Miguel de Matos escreve em Grandes
Problemas da Cidade ainda convive com dificuldades no abastecimento de água e energia
elétrica. O moderno sistema de abastecimento de água inaugurado, inclusive com visita
presidencial, é questionado pelos teresinenses.227 Por sugestão dos leitores, J. Miguel de Matos
investiga os motivos pelos quais as notícias publicadas nos impressos não correspondem à
realidade das torneiras. No entanto, nas duas edições dedicadas a este tema, as respostas
apresentadas pelo articulista surpreendem e destoam do posicionamento crítico e
reivindicatório adotado até então. Embora reconheça que o abastecimento d’água é um
problema, ao procurar as autoridades responsáveis por solucioná-lo, o escritor assume o
discurso da gestão. A população é responsabilizada pelas dificuldades no abastecimento e o
jornalista afirma que, de nada adianta um serviço moderno se as residências têm problemas com
o encanamento, não possuem medidores e desperdiçam criminosamente o recurso natural.
Assim como na década de 1940, o serviço irregular de energia elétrica ainda é apontado
pelos cronistas como um dos principais obstáculos para o desenvolvimento do Piauí. O
problema, que será minimizado apenas em 1970 com a inauguração da Usina Hidrelétrica de
Boa Esperança, é apresentado pelo escritor A. Tito Filho de modo ironicamente resignado

Começo esta escritura às 23 horas, dia 11, 2° feira. Luz boa, no momento, o
que dá para desconfiança. Abasteci-me cedo: dois pacotes de vela. Cada vela
tem um palmo. Sei que daqui a pouco viro defunto vivo. Cr$ 40,00 o pacote,
cada pacote de 6 velas. Errei a profissão: poderia estar rico fabricando vela,
ou falido se fosse fabricante de vela. Rico porque o IAEE ajudaria com a
escuridão; falido porque o IAEE não permitiria que minha indústria fabricasse
... Sim, sou pobre porque não fabrico velas e pobre seria se velas fabricasse
eu.228

Tema rotineiro na imprensa local, a demora para inserção do Piauí no panorama de um


Brasil moderno perpassa a questão do abastecimento elétrico.229 O articulista de Grandes

227
“[...] O que foi que o Presidente veio fazer aqui com aquele “povão”? ... Esse desabafo, em tom de censura e
de inconformismo, deve ter caído de milhares de bocas teresinenses, quando foi dado como inaugurado o serviço
do ABASTECIMENTO D’ÁGUA DE TERESINA [...] De início, devemos esclarecer um ponto nevrálgico da
questão: a imprensa falada e escrita de Teresina anunciou como solucionado o angustiante problema da água entre
nós. Os Arquivos das Rádios estão aí para confirmar, e as páginas dos jornais também. [...] E face à dúvida que
pairou, logo após a inauguração, em quase todos os lares de Teresina [...]”. (MATOS, J. Miguel de. Grandes
problemas da cidade: abastecimento d’água: o que há de verdade (I). Folha da Manhã, Teresina, p. 4, 8 jan. 1964.
228
TITO FILHO, A. Prosa Enxuta. O Dia, Teresina, p. 1, 14 abr. 1960. Grifo do autor.
229
“[...] Enquanto tudo no mundo toma um ritmo novo e acelerado, e vai do bom para o melhor, nossa cidade-
verde não toma nenhum impulso rumo ao progresso, a uma vida nova. Pelo contrário. Permanece cada vez mais
atrasada. Estamos marchando... para trás. Para focalizar o atraso de Teresina, tomemos como exemplos os meios
108

Problemas da Cidade é consciente da recorrência destes problemas e afirma que a escuridão na


cidade colabora para a ocorrência de roubos e vadiagens nas ruas. Por considerar que vários
fatores interferem na solução desta demanda, J. Miguel de Matos propõe-se a investigar as
raízes do problema e apresentar conclusões a seus leitores

Vamos entrar no problema mais agudo da cidade: ENERGIA ELÉTRICA. O


consumidor, na sua natural gula de luz, de energia elétrica, para sermos mais
precisos no dizer, esquece, quase sempre, o influxo de vários fatores que
tramam, no escuro, contra o piscar das lâmpadas. Por que – e esse argumento
antecipado é nosso – se existe um órgão destinado a fornecer energia elétrica
à cidade, ele não vai deixar de cumprir sua finalidade, pois perderia a razão de
existir. Não podemos acreditar que uma repartição criada para tal fim, procure
pisar no seu próprio arcabouço administrativo, negando à cidade aquilo que
só pode sair de suas entranhas. Assim, [...] estaremos, amanhã, no Gabinete
do Diretor da CEPISA para colhermos, nos seus mínimos detalhes, a principal
razão desse contínuo RACIONAMENTO DE LUZ, que tanta inquietação vem
trazendo à cidade, atrelada – coitadinha! – à corrosão de tantos outros
problemas que, por essa ou aquela razão, não puderam ainda ser solucionados.
Não pretendemos, de modo algum, tecer comentários em torno de uma
problemática cuja raiz não conhecemos. O povo – tão cruel nas suas naturais
exigências – quando é devidamente informado, faz como o “leão da metro”:
torce apenas a cabeça para um lado... Mas, burlado por fomentadores de
mentiras e boatos, pode morder. É o que desejamos evitar.230

A afirmação de que a população pode ser cruel em suas exigências, consolida a mudança
no posicionamento do articulista. A denúncia e a construção de si como alguém envolvido na
resolução dos problemas da cidade, marca dos textos iniciais, são substituídos por uma postura
cautelosa de quem dedica-se a ouvir os gestores, enfatizando que o prefeito não mede esforços
para construir uma cidade melhor. Os sinais desta mudança podem ser observados a partir do
momento em que o escritor criticou a passividade do piauiense e passou a reclamar que suas
denúncias não surtiam o efeito por ele esperado. O trecho reproduzido a seguir revela um
escritor que deseja não indispor-se com as autoridades

Este colunista [...] deseja esclarecer, especialmente àqueles mais diretamente


ligados à solução, que o único objetivo seu, como filho desta terra que tanto
ama, é ver a capital de seu estado apresentando outra roupagem, exibindo
outra paisagem e oferecendo ao forasteiro e ao rebento nativo um conforto
mais compatível com a criatura humana. Longe estamos, mesmo por não ser
nosso temperamento e da nossa formação, com nosso trabalho jornalístico, de
querermos tripudiar sobre os homens que administram a coisa pública, que

de entretenimento. Tudo quanto possuímos é de medíocre para baixo. Nosso futebol é fraquinho. O rádio sobressai-
se um pouco... O teresinense, entretanto, é um povo pacato que aceita tudo sem fazer reclamações, conformando-
se até com as injustiças, abafando qualquer grito de protesto. Isto é uma virtude ou um erro, mas revela
benevolência. Um povo assim merece o melhor [...]” (WALTER, José. Bossa Velha. O Dia, Teresina, p. 6, 26 jun.
1960.
230
MATOS, J. Miguel de. Grandes problemas da cidade: energia elétrica (I). Folha da Manhã, Teresina, p. 3, 23
jan. 1964.
109

zelam pelo destino de nosso estado e da nossa capital, mesmo porque, muitas
vezes, rareando ou mesmo faltando os meios, eles mesmos não podem
resolver um problema ou sequer iniciar sua solução.231

O trecho acima, publicado originalmente em letras maiúsculas, escancara a necessidade


do articulista em posicionar-se diante da repercussão de seus textos, além de revelar o impacto
de sua escrita em seus contemporâneos. De jornalista combativo, o escritor transforma-se em
assessor de imprensa, atividade que exercerá por muitos anos, em diferentes órgãos. 232 À
medida que os dramas da população perdem o protagonismo diante das justificativas
apresentadas pelos gestores, a coluna perde espaço no Folha da Manhã. Coincidentemente,
nesta época, J. Miguel de Matos inicia os esforços para a publicação da revista Mafrense, que,
tendo como mote a apresentação dos potenciais do Estado, tornar-se-á um veículo de
propaganda de sujeitos e instituições.
Ao longo das décadas de 1970 a 1990, é no jornal O Estado que J. Miguel de Matos
mais encontra espaço para divulgar suas ideias. Valendo-se da amizade iniciada ainda em
Fortaleza com Hélder Feitosa, neste periódico, o escritor publicou textos com temáticas
literárias e perfis biográficos. Em quase todos eles, identificava suas filiações literárias, seja
como membro do Movimento de Renovação Cultural, do Instituto Histórico e Geográfico
Brasileiro ou da Academia Piauiense de Letras, no qual apresentava-se com a alcunha “J.
Miguel de Matos, da APL”. Em 1976, em O Estado, retomou a coluna Grandes Problemas da
Cidade e nela dispensou o termo “da APL”.
O inusitado abandono do termo distintivo provoca-nos alguns questionamentos e
considerações. Se o ingresso na Academia Piauiense de Letras significa sua maior ambição
literária, por que não fazer referência a este pertencimento? Se o pertencimento à Casa de
Lucídio Freitas legitima a escrita e a inserção social de seus membros, porque abandonar a
marca distintiva, se o uso desta pode angariar mais atenção para o problema apresentado? Seria
uma opção pessoal visando apresentar-se como alguém próximo das classes empobrecidas? A
Academia Piauiense de Letras de alguma maneira o instou a renunciar ao termo a fim de não
envolver-se em disputas políticas? Diante desta última possibilidade, cabe lembrar que a
Academia Piauiense de Letras, assim como o jornal O Estado e o próprio J. Miguel de Matos
são dependentes do mecenato estatal e, para não perder os investimentos públicos, evitavam
críticas contundentes aos poderes constituídos. Além disso, a posição política do escritor era

231
MATOS, J. Miguel de. Grandes problemas da cidade: mocambos da ponte do Poti (II). Folha da Manhã,
Teresina, p. 5, 4 jan. 1964.
232
J. Miguel de Matos foi assessor de A. Tito Filho quando este assumiu a Secretaria de Cultura do Estado e foi
assessor especial da reitoria da Fundação Universidade Federal do Piauí.
110

alvo constante de comentários e provocações de seus contemporâneos.


É fato que boa parte dos livros publicados por J. Miguel de Matos foi publicada graças
aos incentivos financeiros do poder público. Alguns foram obras encomendadas, 233 outras
foram o resultado de premiações literárias sendo assim publicados pela Companhia Editora do
Piauí (COMEPI) ou pela editora carioca Artenova. Há também aquelas que foram editadas pelo
Centro Gráfico do Senado Federal ou pela editora da Fundação Universidade Federal do
Piauí234. A gratidão do escritor é manifesta em todos eles por meio de extensas dedicatórias e
elogios aos que contribuíram para a publicação. Quando o auxílio não se destinava à publicação,
havia a possibilidade de exemplares da obra serem adquiridos pelo Conselho Estadual de
Cultura ou diretamente pelas secretarias de Educação e Cultura. Expediente semelhante
garantiu incentivos à publicação e aquisição de exemplares da revista Mafrense.
Ao longo das décadas de 1970 e 1980, J. Miguel de Matos empreendeu esforços visando
indicações para cargos públicos e ressentia-se quando era preterido.235 Aspirou ser membro do

233
Em maio de 1976, J. Miguel de Matos escreve ao jornal O Estado para desmentir informação de que estaria
usando a influência do presidente da Academia Piauiense de Letras para conseguir que governo lhe pagasse por
obra encomendada: “[...] para os julgamentos às vezes precipitados dos censores de emergência, não deformem a
imagem do governo e do seu secretário de Estado, nem coloquem a minha pessoa em situação de tanta penúria a
ponto de sensibilizar o presidente da Casa de Lucídio Freitas a transformar a mão imortal em mão pedinte.
Realmente, para preparar uma obra literária de interesse do governador do Estado, fiz um gasto de Cr$ 3.000,00
(três mil cruzeiros) e solicitei ao chefe do executivo, o pagamento dessa quantia, em carta que lhe dirigi através
do chefe do cerimonial [...]tentando sensibilizá-lo para a solução do problema, tudo ficando na mesma, por falta
de recursos. Fiz outras tentativas [...] junto ao Dr. José Lopes, para receber o dinheiro, mas sem nenhum proveito.
Há pouco dias, lembrei-me do Presidente da Casa de Lucídio Freitas a quem pedi que falasse com o Dr. José Lopes
dos Santos, para que mandasse pagar a conta [...] Na parte final do tópico de Carlos Dias, há a afirmação de que
eu, em duas cartas mandadas ao jornalista José Lopes dos Santos e uma ao próprio governador Dirceu Arcoverde,
declarei-me perseguido pelo governo. Não é verdade. [...]” (MATOS, J. Miguel de. Erro de informação. O Estado,
Teresina, p. 2, 21 maio 1976.
234
Foram publicados pela COMEPI ou Artenova: Antologia Poética Piauiense (1974), Perfis (1974), Mosaico
(1976) e Da Costa e Silva, o poeta da saudade (1977). O Centro Gráfico do Senado Federal editou Evocação de
Abdias Neves (1976) e Garimpagem (1980). Foram publicados pela EDUFPI: as segundas edições de Da Costa e
Silva, o poeta da saudade (1978) e Evocação de Abdias Neves (1984), além da terceira edição de Brás da Santinha
(1998). As demais obras do autor, aparentemente, foram publicadas com recursos próprios.
235
“[...] Quase diariamente às primeiras horas da manhã o escritor J. Miguel de Matos, calçando sapatilhas e
vestindo camisa de manga curta e carregando muitos quilos de banha, entra na sala de redação deste jornal,
cumprimenta todos, indistintamente, com um bom dia sonoroso e joga-se numa poltrona para ler os jornais da
manhã que se encontram sobre a mesinha de centro. Ao vê-lo, na sua simplicidade e na sua modéstia [...] Autor de
dez livros [...] Miguel de Matos alcançou a imortalidade acadêmica depois de uma luta de seis anos [...] Apesar
disso, seu nome, constantemente citado para ocupar este ou aquele cargo, fica tudo no final no mero terreno dos
palpites, e talvez das indicações subterrâneas [...]” (J. MIGUEL, um homem à margem dos caminhos, julga-se um
injustiçado. O Estado, Teresina, p. 5, 13 mar. 1975).
111

Conselho Estadual de Cultura,236 presidente da COMEPI,237 secretário de Cultura,238 diretor da


Casa Anísio Brito,239 conseguindo, por alguns momentos, ser cotado para chefias de gabinete240
e assessorias.241 Entre os cargos para os quais tentou-se emplacar seu nome, conseguiu
nomeação apenas para diretor do Patrimônio Histórico e Arqueológico do Estado do Piauí. 242
Mais do que o reconhecimento por suas qualidades como agente cultural, o acesso a estas
funções garantiria melhoria na renda familiar, impulsionaria sua inserção em novos círculos
sociais e poderia facilitar seu acesso aos recursos financeiros destinados ao setor cultural. Seus
detratores, além de enfatizar que J. Miguel de Matos não era qualificado para estes cargos,
sugeriam também que este faria gerência dos recursos públicos visando benefícios pessoais. 243
Em um dos momentos em que foi preterido em suas ambições, assim o escritor se manifesta

Do acadêmico J. MIGUEL DE MATOS: “De joelhos, peço aos meus amigos,


especialmente aos colegas de jornalismo, que deixem dessa mania crônica e
ingrata, de andarem dizendo eu vou ser nomeado para essa ou aquela função,
pois se dissessem e acontecesse, eu já teria sido nomeado para a presidência
da COMEPI e já estaria sentado, refesteladamente, na rica poltrona da
Secretaria de Cultura. O que dói mais, depois dessas adivinhações, com outros
nomes preferidos pelas autoridades nomeantes, é a última pá de cal: “J. Miguel
de Matos, mais uma vez, fica de fora...” Preferia que noticiassem que eu estou
prestes a ser apedrejado ou apunhalado pelas costas, pois são as únicas coisas

236
Embora a indicação não tenha se concretizado, os jornais registram: “[...] J. MIGUEL de Matos, depois que
entrou na Academia Piauiense de Letras, sendo indicado para o Conselho Estadual de Cultura. Segundo eu soube,
tomará posse nos próximos dias. [...]” (JÚNIOR, Mauro. O Estado, Teresina, p. 2, 10 jan. 1974).
237
“[...] Estão comentando que Lilizinha Castelo Branco vem trabalhando empenhadíssima, pela nomeação de
Miguel de Matos para diretor Presidente da Comepi, em substituição do jornalista Deoclécio Dantas. E para tanto
– segundo as notícias – já teria mesmo solicitado audiência junto ao governador Alberto Silva, para tratar do
importante assunto de sua pretensão [...]” (O ESTADO. Teresina, 18 jan. 1974. Coluna de Iracema, p. 2).
238
“[...] Diz o escritor J. Miguel que a simples inclusão de seu nome entre os candidatos à Secretaria de Cultura já
é uma honra, ‘para quem nasceu na rua do Molambo’ [...]” (DE LEVE. O Estado, Teresina, p. 3, 27-28 fev. 1977).
239
“[...] O escritor J. Miguel de Matos desmente rumores de que teria ido até o escritório do Governador Dirceu
Arcoverde reivindicar o cargo de diretor da casa Anísio Brito, para si. [...]” (DIAS, Carlos. O Estado, Teresina, p.
3, 20 fev. 1975).
240
“[...] Comenta-se que o Prof. Tito Filho poderá vir a ocupar a Pasta da Secretaria de Cultura, que acaba de ser
criada. J. Miguel de Matos, segundo os mesmos comentários, está cotado para ser o chefe do gabinete do mestre
Arimatéia [...]” (QUE É que há? O Estado, Teresina, p. 3, 22 nov. 1973).
241
“[...] Além do escritor J. Miguel de Matos, o professor A. Tito Filho, presidente da Academia Piauiense de
Letras, foi contratado para ser assessor especial do reitor Camillo Filho, da UFPI [...]”. (DE LEVE. O Estado,
Teresina, p. 3, 6-7 jan. 1980).
242
“[...] O escritor J. Miguel de Matos, diretor do Instituto do Patrimônio Histórico e Arqueológico do Estado do
Piauí, começará a organizar, segunda-feira, seu gabinete, que funcionará numa das dependências da Casa Anísio
Brito [...]” (MORAES, Herculano. O Estado, Teresina, p. 2, 25 ago. 1978).
243
“[...] Eu estou por dentro do assunto, pois fui cantada pra não dizer nada. É naquele “causo” já falado de que
estão fazendo uma força para o Zemiguel de Matos sair presidente da COMEPI tão logo o Déo deixe o cargo. Nem
de leve acredito em tal coisa... seria a falência do Governo, pois a COMEPI pede realmente um sucessor que seja
mesmo profissional da estirpe do Dantas... não qualquer só por doentia vaidade ou... quem sabe, o que está
havendo, dizem que a impressão de uns livros, dizem outras coisas... [...]” (BOAVISTA, Tânia. Carrossel de Vida.
Jornal do Piauí, Teresina, p. 3, 22 jan. 1974).
112

que me acontecem, sem que ninguém se aventure a adivinhá-las. Ficaria muito


grato pela atenção...244

A dificuldade para inserir-se nos quadros da administração pública é apontada como


mais uma das injustiças que sofre. Como reação, o escritor anunciava o desejo de candidatar-
se para cargos eletivos. Por vezes noticiou na imprensa suas aspirações como a que aparece no
trecho a seguir

[...] do acadêmico J. Miguel de Matos: “minhas tentativas de ingressar na vida


administrativa do Piauí – meu Estado natal – não tem obtido êxito, tirando-me
qualquer possibilidade de trabalhar melhor pela minha terra, ainda a mais
pobre do Brasil. Assim, se continuar marginalizado terei de ingressar quanto
antes na vida política para lutar bravamente por este povo que permanece
desgraçadamente distante de uma vida mais digna e mais possível de tolerar.
Ninguém desconhece que o meu partido, como não poderia de ser é o da
oposição em que poderei achar, pela tribuna, que é a praça do político, o
campo de luta capaz de levar para frente uma comunidade que continua para
trás. O tempo dirá se estou com conversa fiada.245

Seus interlocutores discutiam se este seria candidato pelo partido do governo, a Aliança
Renovadora Nacional (ARENA) ou pela oposição, reunida em torno do Movimento
Democrático Brasileiro (MDB):

Escutem esta: Miguel de Matos informou ontem que um grupo de amigos


pretende lançar a sua candidatura a deputado Estadual. Ele disse que não quer,
que prefere que esses amigos apoiem Arimathéa Tito Filho. Mas o grupo não
quer. – segundo ele e a sua candidatura deverá sair. Não revelou o nome do
partido, talvez pela oposição. Pela oposição? Mas o Miguel pode ser
oposição? – Deixa pra lá, Edmundo!246

O tom zombeteiro com o qual o texto é concluído decorre dos posicionamentos políticos
e das benesses públicas com as quais o escritor já havia sido contemplado. Alguém tão
beneficiado pelo governo vigente, pode ser oposição a este? Apesar da política nacional limitar-
se aos dois partidos citados, isto não minimizava as disputas entre as elites políticas piauienses.
Do contrário, as acirrava. Questionar se J. Miguel de Matos poderia ser opositor de um sistema
que o beneficiava é limitar a discussão aos aspectos ideológicos e desconsiderar que o que está
em disputa é a capacidade dos indivíduos de inserirem-se nas sociabilidades daqueles que
disputam o poder e, a partir daí, conquistar espaços nos jogos que movimentam a política
piauiense.
J. Miguel de Matos tentou candidatar-se a cargos públicos como evidenciado no trecho

244
MATOS, J. Miguel de. Pedido do J. Miguel. O Estado, Teresina, p. 3, 10 dez. 1974
245
MATOS, J. Miguel de. O Estado, Teresina, p. 7, 24 abr. 1975.
246
MORAES, Herculano. Posto de Escuta. Jornal do Piauí, Teresina, p. 8, 5 abr. 1970.
113

a seguir

O escritor J. Miguel de Matos confirmando que poderá ser candidato a


vereador de Teresina, concorrendo pela legenda do MDB. - Tenho vontade de
servir a minha terra, na vida pública. Já que os administradores não me querem
nessa luta, vou apelar para o povo, disputando eleição – disse.247

Apesar do interesse manifesto, J. Miguel de Matos nunca chegou a concorrer em pleitos


eleitorais. Filiado ao MDB, em 1975 o escritor protagonizou eventos que inseriram-no no
folclore político piauiense. Nas discussões visando a eleição para o legislativo municipal que
ocorreria no ano seguinte, sua participação foi estimulada por seus companheiros de imprensa
e este cogitou, de fato, participar da eleição. Em determinado momento, o comentarista político
Carlos Dias afirmou que, em virtude dos mais inusitados personagens que apareciam como
potenciais candidatos, esta seria “uma campanha eleitoral folclórica [...] Na televisão, muitos
candidatos deverão oferecer um festival inédito, que fará a população explodir em
gargalhadas”.248 Na sequência, cita, entre outros nomes, o de J. Miguel de Matos. Ofendido
pelo comentário, o escritor imortal solicitou desligamento do partido, numa tentativa de
canalizar apoio político contra a difamação que supostamente sofrera.
A edição do jornal O Estado de 22 de maio de 1975, traz entre suas matérias de capa
“Desligamento de J. Miguel de Matos Causa Cisão na Oposição”. O corpo do texto apontava
as motivações do escritor “em virtude de notas debochativas, que vem sendo publicadas pelo
colunista político Carlos Dias”249. A matéria completa situa o leitor nos acontecimentos que
levaram a esta decisão e reproduz a carta do escritor ao dirigente do partido no Piauí. Na missiva
transcrita a seguir, o escritor afirmava que o comentarista político, também filiado ao MDB,
atingia sua trajetória como homem de letras

Excelentíssimo Sr. Presidente do Movimento Democrático Brasileiro (MDB).


Secção do Estado do Piauí. Sr. Presidente: Em virtude de notas debochativas,
que vem sendo publicadas por um colunista político de um conhecido jornal
da terra, pertencente, segundo consta, aos quadros do MOVIMENTO
DEMOCRÁTICO BRASILEIRO (MDB), que atitude que considero
atentatória à minha posição de membro da Academia Piauiense de Letras, do
Oficial da Reserva do Exército Brasileiro, de jornalista, de membro do
Instituto Histórico e Geográfico do Piauí, de Escritor e de membro do Instituto
de Cultura Americana (ICA), na qualidade de Delegado no Estado do Piauí,
venho mui respeitosamente solicitar a V. Excia o cancelamento de minha
filiação a esse partido pelo motivo apontado, esperando ser atendido com a
maior urgência. Junto ao presente documento, em que peço desligamento do
MDB por motivos claramente circunstanciais, uma vez que, no momento,

247
DIAS, Carlos. Política. O Estado, Teresina, p. 3, 25 abr. 1975.
248
DIAS, Carlos. Política. O Estado, Teresina, p. 3, 20 maio 1975.
249
O ESTADO. Teresina, p. 1, 22 maio 1975.
114

pensava seriamente em disputar um cadeira na Câmara Municipal de Teresina,


e, possivelmente, uma na Assembléia Legislativa do Estado ou outro posto
dentro do partido, faço anexar, para conhecimento de V. Exa, o texto integral
da coluna política, publicada na edição do jornal da cidade que circulou na
manhã de ontem, dia 20 de maio corrente, achando-se sublinhada a parte que
diz respeito à minha pessoa. Considerando a política um assunto de relevância
e de seriedade na estrutura do País, jamais poderia aceitar o deboche dentro
da sua austeridade, nem permitir que o meu nome, feito com tanta luta, sirva
de repasto a certos apetites vandálicos e anarquistas. Cordial e Sinceramente:
J. Miguel de Matos. Identidade 10G/6546 (Ministério do Exército).250

Na sequência desta publicação, Carlos Dias e outros membros da imprensa mafrensina


fizeram uso desta petição para ironizar o poder da oposição no Estado e forçar novos
comentários do escritor, o que, por conseguinte, provocaria mais debates e atrairia mais leitores
para o jornal. Afirmavam que a desfiliação de J. Miguel de Matos era um “terrível golpe sofrido
às fileiras do partido”,251 que membros da cúpula nacional do MDB estariam a caminho do
Piauí para resolver diplomaticamente a situação.252 Em entrevista, o presidente do partido,
deputado estadual Francisco Figueiredo teria tentado minimizar a situação ao declarar

O deputado durante suas declarações e se reportando a respeito do fato que


culminou com um terrível golpe ao seu partido que possivelmente ficará sem
um dos nomes mais conhecidos e com grandes chances eleitorais no próximo
ano, revelou que o fato em si, não oferece motivos fundamentais para que o
escritor deixasse o partido, pois o colunista político Carlos Dias, do Jornal “O
ESTADO”, é um profissional que precisa movimentar sua coluna a fim de
motivar os leitores. Figueiredo mesmo dizendo não querer defender nenhuma
das partes, pois no caso da cisão em tela prefere permanecer neutro, disse
ainda que o caso envolve dois companheiros, J. Miguel de Matos, do MDB de
Teresina e Carlos Dias do MDB da cidade maranhense de Olho D’água das
Cunhãs. Quanto à nota, publicada na coluna do Jornalista anteontem, o
parlamentar emedebista afirmou ser um fato extra-partidário, pois confessou
ele mesmo tem sido criticado através da imprensa e relembrou que outro dia
disseram, até que ele ia freqüentar o MOBRAL, e nem por isso renunciou o
mandato e deixou o partido.253

Encerrando a curta, porém intensa, polêmica em torno da candidatura de J. Miguel de


Matos, o colunista Sebastião Sousa, do jornal O Dia, publicou o texto “Mediocridade Política”

Se todos os políticos brasileiros seguissem o exemplo de J. Miguel de Matos,


não haveria mais políticos e nem agremiações partidárias. Todos já teriam
refreados suas tendências políticas e cancelados os devidos registros de
filiação partidária. Realmente, como disse Miguel de Matos em sua carta de
desligamento do MDB, política é assunto sério e relevante. Acrescentamos: e
como tal não pode ser feita a toque de caixa ou muito menos baseada em
currículos literários. O fato de haver ou não folclore político na crônica da

250
J. MIGUEL diz porque saiu do MDB. O Estado, Teresina, p. 2, 22 maio 1975.
251
FIGUEIREDO fala sobre o desligamento de J. Miguel. O Estado, Teresina, p. 5, 22 maio 1975.
252
DIAS, Carlos. Política. O Estado, Teresina, p. 3, 23 maio 1975.
253
FIGUEIREDO fala sobre o desligamento de J. Miguel. O Estado, Teresina, p. 5, 22 maio 1975.
115

Carlos Dias, com respeito à pessoa do escritor, não vai diminuir sua condição
de político, se é que dispõe. De um modo geral, todas as personagens políticas,
vez por outras, apresentam-se em situações folclóricas. Mais folclórica,
contudo, foi a carta de J. Miguel de Matos: de uma simples carta-petição,
passou a ser uma apresentação de “curriculum vitae” do autor, onde não foi
sequer esquecido o número da carteira de identidade. Vocês já imaginaram se
os políticos mencionados na literatura folclórica de Sebastião Nery se
dispusessem a rebater as críticas através de currículos? É preciso que se saiba
que a crítica é fenômeno corrente na vida política de qualquer povo. Não se
concebe nenhum político que a ela seja refratário. São características dos
políticos saber receber as críticas com espírito esportivo, saber perder sem
ressentimentos, ganhar sem vaidade. Políticos não podem se magoar ou se
irritarem com grande facilidade. Devem possuir suscetibilidade, mas não uma
suscetibilidade doentia. Nenhum político é intocável. Todos são passíveis de
críticas. Não saber receber uma crítica é não saber ser político. E como Miguel
de Matos não teve argumentos políticos suficientes para rebater uma simples
crítica, fez muito bem em abandonar o Partido, voltando às suas origens. Nada
temos contra intelectuais que se metem em política. Nada temos contra o fato
de políticos pertencerem a esta ou aquela entidade cultural. Não desejamos,
porém, é que nos sejam apresentados como únicos depositários da Verdade,
imunes à quaisquer espécies de críticas. Ademais, gostamos de pessoas
simples, modestas, das que não andam abanando currículos culturais na cara
dos outros. Gostamos dos que tem a coragem de dizer que nada entendem.
Sócrates, por exemplo, afirmava não entender nada. E os que diziam tudo
saber o fizeram tomar cicuta. Tenho uma desconfiança, instintiva e imediata
de todos os que “sabem tudo”. Por último, não acreditamos, como escreveu
Wilson Fernando, que alguém da alta liderança do MDB se desloque do
Centro-Sul ao Piauí simplesmente para participar de questiúnculas entre
pessoas que não chegam a ter a mínima noção do que seja política.254

Ressentido e vaidoso são qualificações que perpassam o texto. J. Miguel de Matos saiu
deste episódio como um sujeito arrogante, que não sabia receber críticas e que se acreditava
dono da verdade. As designações não se restringem à sua atuação partidária e sim à sua
personalidade. Repetindo as disputas que movimentou visando o ingresso na Academia
Piauiense de Letras, às quais comentaremos adiante, J. Miguel de Matos foi inserindo-se no
imaginário de seus contemporâneos como um sujeito movido por desejos de reconhecimento,
que fazia uso pessoal de suas filiações literárias e institucionais, que não admitia críticas e reagia
a elas de maneira desproporcional às supostas ofensas de que teria sido alvo.
Mas, porque esta digressão sobre as ambições políticas de J. Miguel de Matos quando o
se comentava era a retomada da coluna Grandes Problemas da Cidade, no jornal O Estado, em
1976? O recuo nos ajuda a entender as possíveis motivações do escritor para a retirada do termo
distintivo “da APL” na assinatura da coluna. Havíamos comentado que a própria Academia
Piauiense de Letras, do qual este era membro desde 1973, era dependente do mecenato estatal
e, embora não tenhamos isso registrado em fontes, podemos supor que tenha influenciado esta

254
SOUSA, Sebastião. Mediocridade política. O Dia, Teresina, p. 9, 23 maio 1975.
116

decisão, já prevendo inclusive, as repercussões dos escritos do confrade. Os incentivos


editoriais que recebeu do poder público, bem como sua posição nos jogos de poder da época,
mostram que suas oportunidades políticas são restritas. Diante disso, acreditamos que retirar o
termo distintivo de sua assinatura, especificamente nesta coluna, é uma tática do escritor para
reinserir-se no debate político, afastando-se da posição de intelectual aspirante a político em
nome de uma aproximação com os grupos populares, potenciais leitores e principais afetados
pela realidade que descreveria em seus textos.
Curiosamente, os temas abordados são os mesmos de 1963 e 1964 acrescidos apenas
de debate sobre as piçarreiras e a questão da moradia o que evidencia as dificuldades políticas
e econômicas recorrentes da capital piauiense, além da repetição de temas por parte do jornalista
escritor. Na edição de estreia, o escritor inicia o texto elogiando o trabalho desenvolvido pela
imprensa teresinense que, sem deixar de apontar os erros dos gestores, reconhece as
dificuldades por eles enfrentadas, e afirma

A Câmara de vereadores de Teresina e a nossa imprensa (falada, escrita e


televisada), estão diariamente, no trato de suas obrigações principais que são
zelar pelo progresso da cidade e pelo bem estar de seus habitantes, pedindo
providências ao prefeito e criticando, com hábil moderação, o que está errado
e retardando, por consequência, o desenvolvimento do município e deixando
em deplorável inquietude os municípios, já atribulados na sua maioria por
problemas de toda ordem com a omissão e a incúria – convenhamos – dos que
tem sobre os ombros – largos de certo – a responsabilidade da difícil coisa
pública.255

Considerando-se o contexto de censura à imprensa vigente após o Golpe Civil-Militar


de 1964, o posicionamento de J. Miguel de Matos denuncia a postura de um segmento da
imprensa brasileira que, por convicção ideológica ou buscando a sobrevivência, aliou-se ao
poder político. Renunciando as críticas às autoridades e à defesa da democracia no país, esta
imprensa cooptada ajudou a construir uma imagem positiva do governo que, procurava
disfarçar a ausência de liberdades individuais com projetos econômicos supostamente
milagrosos. Assim como jornalistas, muitos escritores e agentes culturais optaram por não se
posicionar criticamente em relação ao governo, sendo atraídos pela possibilidade de conquistar
benefícios como indicação para cargos públicos e incentivos para edição ou aquisição de suas
obras. J. Miguel de Matos, militar, conservador nos costumes e defensor das tradições literárias
piauienses apoiava esse regime político também na expectativa de conquistar benefícios e
homenagens.

255
MATOS, J. Miguel de. Grandes problemas da cidade. O Estado, Teresina, p. 7, 11-12 abr. 1976.
117

Na sequência deste trecho, o escritor afirma ser necessário bom senso diante das críticas
feitas a gestores e legisladores. Ao longo das edições, o articulista mescla a denúncia ao
posicionamento das autoridades, contudo sua escrita possui algumas distinções em relação ao
empreendimento da década de 1960, sobretudo pela exclusividade no enfoque de problemas
vivenciados diretamente por este escritor. Mesmo sem explicitar essa escolha, fica evidente
que, quando denuncia o desgaste geológico provocado pelas construtoras na exploração da areia
na região norte da cidade, o que ele teme é a deformação do relevo da rua em que mora. Quando
denuncia o mal funcionamento dos transportes coletivos está se referindo à sua própria
dificuldade de locomoção pela cidade. A crítica à falta de calçamento refere-se ao temor de que
a região em que mora ganhe feições de favela. Ao discorrer sobre o problema das moradias na
cidade, denuncia a prioridade nos investimentos estruturais para os bairros da zona leste da
cidade, área habitada pela elite econômica e política, e, para o Parque Piauí, bairro em
construção originado de projeto-piloto do governo federal. Ao apresentar esta coluna, o escritor
assim afirma

Não se pode ignorar, de bom senso, a carência de recursos das autoridades


responsáveis pela solvência desses problemas, notadamente entre nós que
vivemos em uma área pobre e recebendo verbas irrisórias que não dando
mesmo para fazer nada pela terra e pelo povo. Mas, não podemos obscurecer
que existe, em contrapartida, uma atenção maior para os locais mais ricos da
cidade, como por exemplo os terrenos dos bairros São Cristovão e Jockey –
Club, onde se vê, sem grande esforço, extensas áreas asfaltadas dentro do mato
e inteiramente iluminadas com energia elétrica, enquanto outros bairros – os
chamados pobres – permanecem mergulhados na escuridão, aumentando a
angústia dos lares que neles vivem, sem que esta realidade, que aqui
apontamos constitua uma crítica contundente a quem quer que seja, mesmo
que não possa, de modo algum, ser contestada. Convivendo em uma dessas
áreas pobres onde o autor desta coluna construiu uma casa financiada, pôde
sentir o esquecimento a que se acham relegados os moradores vegetativos, e
imediata necessidade de uma vez que se levantassem em defesa de seus
interesses que, a bem da verdade, não são tão grandes, mas que são, sem
nenhuma dúvida, cruéis e de solução urgente. Com estas ligeiras explicações,
com que este jornal cria a coluna GRANDES PROBLEMAS DA CIDADE,
deseja o seu redator prestar à comunidade teresinense, em especial aos mais
necessitados, um serviço útil aos que morando nos bairros mais distantes e
carentes quase de tudo para uma vida menos infeliz, precisam de um advogado
de defesa para que a vida de cada um, tão dura e tão difícil, possa ser tolerada,
já que não pode ser realmente vivida.256

Apresentar problemas da cidade ao tempo em que afirma que sua crítica, embora
contundente não está direcionada a alguém especificamente, é tática do escritor que busca
aproximar-se das classes populares sem ousar romper com os poderes constituídos. O estilo

256
MATOS, J. Miguel de. Grandes problemas da cidade. O Estado, Teresina, p. 7, 11-12 abr. 1976.
118

adotado remete ao adotado quando denunciava as injustiças de que se julgava alvo. Embora não
se coloque na posição de vítima, este não deixa de identificar-se com a população empobrecida
que vive em área carente de investimentos públicos.
Michel de Certeau nos adverte que a escrita é uma prática e, como tal, conhecer os
lugares sociais ocupados e almejados por seu produtor propiciam a compreensão dos seus
significados. Nesse sentido, uma das características da escrita de J. Miguel de Matos fica
evidente no trecho acima: o fato de ser uma prática endereçada, interessada e, em certa medida,
interesseira, assumindo tom polêmico ou bajulador a depender dos interesses de seu emissor. É
por meio dela que o autor denuncia e reivindica aquilo que julga ser merecedor, utilizando-se
de um espaço e de uma suposta identificação com os interesses populares. Mais tarde, ainda em
1976, ao lhe ser concedido o título de cidadão teresinense pela Câmara Municipal, recorreu-se
à experiência de Grandes Problemas da Cidade como forma de legitimar a homenagem. Em
texto não-assinado, mas possivelmente escrito por ele mesmo,257 o autoelogio à sua figura faz-
se presente quando diz que “como jornalista militante e devotado aos grandes problemas da
cidade [...] desenvolveu, diária e incansavelmente, um trabalho que terminaria por lhe garantir
[...] a posse do título de “Cidadão Teresinense” [...]”.258
A natureza múltipla da atuação de J. Miguel de Matos o leva a transitar por vários
espaços dos jornais produzindo textos sobre política, cidades, literatura e esportes. De maneira
geral, pode-se caracterizar J. Miguel de Matos como biógrafo voltado para escrita de perfis e
antologias. Os textos possuem tom elogiosos e permeado de metáforas. Seus biografados, sejam
eles escritores, profissionais liberais, políticos, times de futebol e instituições são apresentados
sob a ótica da dedicação, honestidade e como indispensáveis no meio em que atuam, ainda que
ocasionalmente aponte equívocos em suas trajetórias e práticas.
A faceta de maior destaque em sua prática intelectual está na contribuição prestada à
divulgação de perfis biográficos de sujeitos considerados fundantes para a cultura literária local.
Nestes textos compila dados biográficos, comenta suas obras e insere os escritores na
cronologia literária piauiense. Apresenta também resenhas, comentários e corrige equívocos
identificados em suas pesquisas. Consumidor atento dos jornais locais, J. Miguel de Matos
posiciona-se diante daquilo que lê, sobretudo se o tema a ser discutido relaciona-se à literatura

257
A partir das fontes chego a esta conclusão observando as recorrências estilísticas e narrativas na obra de J.
Miguel de Matos: o autoelogio, a escrita prolixa, a fuga ao tema proposto, as metáforas utilizadas, as associações
com figura como Jesus Cristo e Napoleão Bonaparte, a alternância entre maiúsculas e minúsculas, os autores
citados, a referência às injustiças são elementos característicos de seus textos.
258
J. MIGUEL de Matos “Cidadão Teresinense”. O Estado, Teresina, p. 6, 22 set. 1976.
119

e a literatos piauienses. Exemplo disso é o texto dirigido ao jornalista Pompílio Santos259 a


despeito de comentário feito por este sobre Lucídio Freitas, fundador da Academia Piauiense
de Letras. Interessado em construir sua imagem como biógrafo e crítico literário, julgou
necessário contrapor comentário divulgado por aquele jornalista. Em texto longo, publicado nas
edições de O Estado dos dias 20 e 27 de fevereiro de 1972, assim dialoga com Pompílio Santos:

Há poucos dias li, nas suas “Dicas”, no jornal O ESTADO, que o poeta
Lucídio Freitas era conhecido, apenas, como fundador da Academia Piauiense
de Letras. MUITO conhecido e admirado na sua época, pelo fulgor do seu
talento e pela ação que desenvolveu, mesmo empunhando armas frágeis, em
favor das nossas letras, ainda hoje relegadas, Lucídio Freitas caiu,
inegavelmente, num condenável esquecimento, por culpa exclusiva da
geração que o sucedeu, cujo dote maior é o fraque, a cartola, o sapato de
verniz, a bengala de cabeçote de platina, a postura palaciana, o discurso de
posse ou a oração de paraninfo, tendo o imortal filho de Clodoaldo Freitas
julgado para trás os homens que soterraram, no fosso de suas vaidades, a
cultura do Piauí. [...] Se outros esqueceram Lucídio Freitas, por
insensibilidade literária, por desleixou ou por ignorância, de mim – o mais
humilde admirador de sua genialidade – relembrei-o, ressuscitando-o da “vala
comum do esquecimento”, no 3º volume de “Caminheiros da Sensibilidade”,
agora em estado de hibernação, numa gaveta da Secretaria de Educação e
Cultura do Piauí ou ao manuseio indiferente da Comissão de Plano Editorial
do Estado.260

Lucídio Freitas caro confrade POMPÍLIO SANTOS, talvez tenha sido, dentre
os intelectuais de sua geração, o mais comentado, recebendo louvação de
Celso Pinheiro, que você reconhece como o maior sonetista do Piauí em todos
os tempos [...] Vê agora, o ilustre confrade, que Lucídio Freitas não é
conhecido, apenas, como fundador da Academia Piauiense de Letras,
entendendo eu, que conheço a sua cultura e o seu amor ao Piauí, para onde
veio beber a água doce do Parnaíba e se extasiar com a concha azul do nosso
céu, que a sua afirmação tinha endereço certo: captar maiores e melhores
informes sobre o filho do grande Clodoaldo.261

Percebe-se, nos textos transcritos um esforço de erudição por parte do autor que
apresenta-se como biógrafo, memorialista e escritor de antologias. Sem ser agressivo com seu
interlocutor, aponta-lhe os equívocos e responsabiliza os membros da Academia Piauiense de
Letras por não zelar pela memória de seu fundador. Apresentando-se como pesquisador da
história da literatura piauiense, estes textos apontam uma postura crítica à instituição para o
qual já havia concorrido sem sucesso em 1967 e 1971.

259
Pompílio dos Santos Filho nasceu em Maranguape (CE) em 1930 e faleceu em Teresina em 2022. Bacharel em
Direito e jornalista. Além de atuar nos jornais piauienses O Dia e O Estado, compôs a imprensa carioca, cearense,
maranhense e goiana. Foi fundador e presidente da União Brasileira de Escritores – secção Piauí.
260
MATOS, J. Miguel de. Diálogo com o leitor: Lucídio Freitas (carta ao poeta Pompílio Santos). O Estado,
Teresina, p. 10, 20 fev. 1972.
261
MATOS, J. Miguel de. Diálogo com o leitor: Lucídio Freitas (carta ao poeta Pompílio Santos). O Estado.
Teresina, p. 8, 27 fev. 1972.
120

Em fragmentos como este, percebe-se as intencionalidades da escrita de J. Miguel de


Matos: apresentar-se como estudioso da produção literária piauiense e colocar-se como alguém
preocupado com os rumos da cultura local. Afirma estar vigilante e alertando as novas gerações
sobre os riscos de esquecimento dos nomes importantes da literatura produzida no Piauí. Além
de chamar atenção para si, o texto valoriza a importância histórica e cultural da Academia
Piauiense de Letras e ataca seus atuais membros, argumentando que estes não se interessavam
pela vitalidade da instituição. O texto de 1972, portanto posterior à sua segunda tentativa de
ingressar no sodalício é uma crítica, uma denúncia, um alerta e uma forma de mostrar que
conhece e tem mais interesse pela literatura local do que os membros da instituição. Segundo
J. Miguel de Matos, o fato de não terem sido eleitos por critérios estritamente literários e sim
atendendo interesses que privilegiam o ingresso de familiares, amigos ou companheiros de
profissão dos atuais sócios resultava na falta de interesse pela trajetória histórica da instituição.
Com uma escrita que não economiza elogios nem escolhe adversários J. Miguel de
Matos é constantemente recrutado a posicionar-se diante da situação cultural do Estado,
esclarecer mal-entendidos e a responder comentários, muitos deles jocosos, sobre suas supostas
candidaturas futuras. Possivelmente sua postura crítica diante da Academia Piauiense de Letras
seja o aspecto que lhe granjeia mais espaços na imprensa, ávida por leitores e colaboradores.
Em seus textos o escritor investe na construção de redes de sociabilidades capazes de forjar
parcerias, publicação de textos em que elogia e critica a instituição cultural mais antiga do Piauí.
Reivindica também direitos de resposta em momentos em que se julga agredido ou injustiçado.
Essas são algumas das táticas amplamente utilizadas por J. Miguel de Matos para adquirir
visibilidade nesse cenário cultural. À medida que se posiciona taticamente diante dos jogos de
poder este escritor evidencia que o poder é relacional e está em disputa entre aqueles que
desejam legitimar projetos e determinar a homogeneidade nas práticas culturais.
Como editor, a atividade jornalística de J. Miguel de Matos será analisada a partir de
alguns exemplares da Revista Mafrense.262 No que diz respeito à sua experiência como editor
da Revista Destaque, as informações disponíveis apontam que em 1967, esta é a única
publicação mensal do Estado e que tem Pompílio Santos e Deoclécio Dantas entre seus
colaboradores. Registros de viagens dos redatores a Floriano, “a convite de autoridades da
Princesa do Sul farão para a revista DESTAQUE reportagem sobre a passagem do 70º
aniversário do município” indicam que a revista cobria assuntos políticos e fazia uma espécie

262
No corpus documental arrolado para esta pesquisa, constam apenas cinco exemplares desta revista: números 2
(1968), 4 (outubro 1968), 5 (dezembro 1968), 23 (janeiro a junho 1979) e 24 (julho e agosto 1979).
121

de colunismo social ao registrar os eventos do Estado.


Não localizamos nenhum exemplar desta revista, contudo a imprensa local ao
referenciá-la deixa entrever que, por meio dela, o escritor conquistou reconhecimento social.
Além disso, a revista reflete as redes de sociabilidades construídas por seu editor e as disputas
em torno de sua primeira tentativa de ingressar na Academia Piauiense de Letras, com opiniões
de agentes culturais favoráveis ao seu ingresso. 263 Em suas tentativas de construir redes de
sociabilidades que facilitassem sua empreitada, o editor faz convite ao escritor A. Tito Filho, à
época secretário-geral da Casa de Lucídio Freitas e bastante ativo na imprensa local, que
costumava colaborar com a revista.264 A recusa deste em participar pode ter relações com os
pronunciamentos de J. Miguel de Matos quando, em 1967, percebeu que não ingressaria na
imortalidade acadêmica com a facilidade esperada.
Por meio da Revista Mafrense nos aproximamos de outro aspecto da prática intelectual
de J. Miguel de Matos. O conteúdo, a repercussão e as dificuldades enfrentadas por esta
publicação também nos ajudam a conhecer as possibilidades das práticas editoriais no Piauí. A
impossibilidade de acessar o número inicial da revista nos faz acreditar que a escolha de seu
título remeta ao interesse de seu editor-diretor-proprietário em produzir algo intimamente
ligado ao cotidiano piauiense, apresentando em especial, temáticas e sujeitos que, tal qual o
bandeirante Domingos Afonso Mafrense, estão relegados diante de uma tradição historiográfica
que privilegia as ações do mítico paulista Domingos Jorge Velho.
Nos editoriais intitulados Uma Conversinha, Antes de Tudo..., a revista que circulou de
maneira irregular entre as décadas de 1960 e 1970, enaltecia as potencialidades da terra e do
homem piauiense e, ao destacar as atividades econômicas, culturais, sociais, religiosas e
científicas aqui praticadas, edificava a imagem de um Estado que libertava-se do
subdesenvolvimento

Esta revista, que tem o nome do colonizador da terra, depois de um estágio


forçado pelas contingências do meio, ainda adverso ao cultivo da Imprensa,
volta a circular em edição dedicada a Oeiras, a velha e respeitável Capital do
Estado, no ensejo das grandes realizações do Prefeito João da Mata Barbosa
Nunes, para que se faça um paralelo entre o passado que está muito distante e
o presente, que quer mostrar, com dados concretos, que os filhos de Oeiras
não se alimentam de mofo, espanando o pó das glórias que não edificam. [...]
E esperamos, como redatores deste órgão da imprensa indígena, para que

263
“[...] O escritor J. Miguel de Matos (que tem obras publicadas e edita a revista Destaque – a única mensal do
Piauí) tem todas as qualidades exigidas para ingressar na Academia Piauiense de Letras. [...]” (RAULINO, Elvira.
O Dia em sociedade. O Dia, Teresina, p. 5, 28 out. 1967.
264
“[...] O confrade A. Tito Filho foi solicitado pelo jornalista J. Miguel de Matos para colaborar mais uma vez
para a Revista DESTAQUE – O Prof. Tito Filho, jornalista de nomeada, preferiu, entretanto, ficar de fora. [...]”
(O DIA. Teresina, 23 ago. 1967. Notas e fatos, p. 8).
122

possamos prosseguir, o perdão das nossas falhas e as palmas dos nossos


triunfos.265

Dirigida por J. Miguel de Matos, tendo José Carlos Dias266 como redator principal e
contando com colaboração de jornalistas, literatos, agentes culturais e cronistas sociais, tais
como A. Tito Filho, Deoclécio Dantas,267 Herculano Moraes, Tomás Campelo,268 Magalhães
da Costa,269 Josias Clarence Carneiro da Silva270 a revista continha entre 20 e 58 páginas e
possuía correspondentes dentro e fora do Estado constituindo-se assim como espaço
privilegiado de sociabilidades políticas e intelectuais. A revista contava com informes
publicitários variados, sendo o governo do Estado o principal anunciante.
Entre idas e vindas desta publicação,271 percebe-se o esforço de seu proprietário em
dotar o Piauí de um veículo cultural independente das publicações das instituições culturais,
articulando reportagens sobre os potenciais do Estado e os sujeitos que fazem sua história. O
editorial está entre as sessões recorrentes da revista. No primeiro momento era intitulado Uma
Conversinha, Antes de Tudo..., mas à medida que a publicação tornou-se irregular, passou a ser
chamado de Voltamos.... Neste espaço, o diretor-editor apresentava as temáticas abordadas no
exemplar e, a depender da regularidade da publicação neste momento específico, traçava um
panorama otimista ou pessimista do cenário cultural local.
Perfis biográficos de políticos, sacerdotes, oficiais, gerentes de empresas bem como
estudos sobre a história de instituições culturais, agremiações esportivas e edificações
satisfazem a vocação escriturística de seu proprietário. Nesses textos, o jornalista preocupa-se
em apresentar informações históricas sobre o que escreve, enaltecer sujeitos e instituições. A
farta distribuição de elogios, produz desconfianças sobre as intenções do escritor e sobre a

265
MATOS, J. Miguel de. Uma conversinha, antes de tudo... Mafrense, Teresina, n. 2, p. 1, 1968.
266
Comentarista político. A discussão em torno da suposta candidatura de J. Miguel de Matos em 1976 foi
motivada por seus textos.
267
Deoclécio Dantas Ferreira foi um jornalista teresinense atuante na imprensa escrita, no rádio e na televisão. Nasceu
em 1938 e faleceu em 2015. Primeiro presidente da Companhia Editora do Piauí (COMEPI). Foi vereador, vice-
prefeito de Teresina e deputado estadual. Tomou posse na Academia Piauiense de Letras em 2012.
268
Tomás Gomes Campelo nasceu em Pedro II em 1926 e faleceu em Teresina em 2014. Desembargador, escritor
e, por muitos anos, foi presidente da União Brasileira dos Escritores – secção Piauí (UBE-PI). Membro de
academias literárias regionais como Academia de Letras do Vale do Longá e Academia de Letras e Belas Artes de
Floriano e Vale do Parnaíba.
269
José Magalhães da Costa nasceu em Piracurura, 1937, e faleceu em Teresina em 2002. Desembargador, contista
e colunista literário. Pertenceu a União Brasileira de Escritores – secção Piauí e tomou posse na Academia
Piauiense de Letras em 1998. É autor de Casos Contados e Mentiras Grossas de Zé Rotinho.
270
Folclorista e genealogista, nasceu em Teresina em 1929 e faleceu nesta cidade em 1992. Professor universitário,
criou a Fundação Museu de Artes do Piauí. É autor da Genealogia de J. Miguel de Matos (1972).
271
No trecho “[...] argumento que como principal motivação o retorno desta revista à circulação, depois de um
silêncio de alguns anos [...] nossa volta traz o entusiasmo de todo começo de jornada [...]” percebe-se o
desapontamento de seu editor com a periodicidade irregular da publicação. Cf. MAFRENSE. Teresina, n. 23, p.
3, 1979.
123

própria origem dos textos. São textos encomendados? O que o escritor almeja ao biografar e
destacar os temas que aparecem ao longo das edições? Há ainda espaço destinado à publicação
de textos literários e à cobertura de atividades culturais, caracterizando-a também como veículo
de divulgação da produção literária piauiense.
O número quatro da revista traz uma reportagem que mostra o potencial desta
publicação. Interessada em discutir temas pungentes, há nesta edição um artigo, apontado como
exclusivo, intitulado Divórcio: entrave ou solução?. Os debates em torno da lei do divórcio, que
seria aprovada apenas em 1977, despertavam curiosidade. Mafrense em reportagem de cinco
páginas, publicou comentários dos estudiosos do tema como Celso Barros Coelho, José Vidal
de Freitas, Paulo Freitas, Luiz Gonzaga Viana e Gerardo Vasconcelos. Os posicionamentos
apresentados contrapunham-se entre si e pautavam-se em concepções de família cristã e
argumentos jurídicos contrários e favoráveis ao tema. Isto para atender aos objetivos do editor
apresentados nos parágrafos iniciais da reportagem

MAFRENSE, no propósito de colocar o problema em debate entre nós, onde


ele desperta igualmente o maior interesse, colheu a opinião de alguns homens
de destaque cultural e social – professores, advogados, magistrado e médico.
Os depoimentos que nos deram revelam as controvérsias suscitadas pelo tema,
embora os pontos de conflito não cheguem ao extremo de uma oposição
sistemática na solução do caso. Da leitura desses pronunciamentos [...]
conclui-se que o divórcio vai ganhando terreno, pois mesmo quem a ele se
opõe no presente vê a possibilidade de sua adoção no futuro, segundo as
condições do meio social que, naturalmente, vai se modificando. [...] Servirá,
porém, este debate como uma contribuição a mais para o esclarecimento do
problema. Os leitores saberão decidir com quem está a razão. E também
formarão a sua razão para aceitá-lo ou rejeitá-lo.272

Além de promover reflexões sobre a temática,273 reportagens como esta evidenciam a


credibilidade que a revista ia conquistando entre os letrados do Estado, haja vista nomes
reconhecidos terem aceitado contribuir para a feitura da reportagem e apresenta também a rede
de sociabilidades construídas pelo escritor. Entre os selecionados para esta discussão, temos
nomes que firmavam-se cenário cultural piauiense. Celso Barros, advogado, professor e recém-
empossado na Academia Piauiense de Letras. José Vidal de Freitas, desembargador, seria eleito
para Academia Piauiense de Letras em 1973. Paulo Freitas, filho de Felismino Wesser,

272
MAFRENSE. Teresina, n. 4, p. 45, 1968.
273
O tema apresentava-se tão controverso que em 1975, anos depois da publicação da reportagem, no intervalo de
um mês, dois posicionamentos de J. Miguel de Matos foram publicados na imprensa local: “[...] O acadêmico J.
Miguel de Matos é um dos mais exaltados partidários do Divórcio no Brasil. Chega a dizer aos amigos: “Só os
imbecis são contrários ao Divórcio”. [...]” (QUE é que há? O Estado, Teresina, p. 9, 20 fev. 1975); “[...] Do
acadêmico J. Miguel de Matos, sob os aplausos do coleguinha José Ramos: “Sou ao mesmo tempo contra o
divórcio e contra os divorcistas, que considero autênticos subversivos” [...]” (QUE É que há? O Estado, Teresina,
p. 9, 19 mar. 1975).
124

fundador do colégio Demóstenes Avelino, futuro desembargador e eleito para Academia


Piauiense de Letras em 1986. Luís Gonzaga Soares Viana, advogado e professor. Gerardo
Vasconcelos, médico contra quem J. Miguel de Matos supostamente concorreria, em 1973, pela
cadeira número cinco da Academia Piauiense de Letras. Destes, apenas Luís Gonzaga Viana
não aparece diretamente ligado às disputas culturais, embora tenha sido, posteriormente,
secretário de estado.
A repercussão da revista pode ser medida em comentários como “circulou mais uma
edição de ‘Mafrense’, já vitoriosa, sob a direção de J. Miguel de Matos. Boa reportagem sobre
o River Atlético Clube”274 e “Mafrense é revista da atualidade, de conteúdo educacional e tem
como objetivo difundir a cultura, sob todas as modalidades”.275 Embora saibamos que é praxe
entre colaboradores de jornais o agradecimento elogioso às publicações que lhes são enviadas,
os periódicos locais destacam os esforços de seu diretor-proprietário em, por meio desta revista,
constituir um grupo interessado em promover e divulgar a cultura local. As supostas realizações
de enquetes por meio das quais se elegiam as personalidades do ano e que, posteriormente
confraternizariam em evento social promovido pela publicação, ao tempo que dava espaço para
a crônica social, estabelecia relações entre colaboradores e os contemplados.
O discurso adotado por J. Miguel de Matos em torno de Mafrense, faz desta publicação
um meio através do qual este exibia socialmente a imagem que construía para si. Coerente,
independente, persistente e disposto a contribuir com o desenvolvimento do Estado, seu editor
a apresentava como publicação séria e imparcial. Contudo, pelos textos apresentados e pelas
edições temáticas da revista, percebemos que, acrescido ao uso político desta publicação, sua
montagem e circulação constituía-se também como um empreendimento comercial. Os
informes publicitários, as propagandas e as matérias principais sobre políticos e cidades
representavam uma escrita direcionada, por vezes encomendada, e com o objetivo de construir
imagens positivas sobre os sujeitos e lugares apresentados.
O escritor é consciente das suspeitas que pairam em torno de seus textos e dos objetivos
da revista. Em 1979 afirma

A REVISTA MAFRENSE, que volta ao paisagismo do jornalismo piauiense


depois de uma parada quase cardíaca, era tachada vez por outra, na pressão
julgadora dos censores de improviso ou de críticos de esquina, de faca de dois
gumes, quando conceituava em favor de uma autoridade constituída, a quem

274
TITO FILHO, A. Caderno de anotações. Jornal do Piauí, Teresina, p. 2, 16 jan. 1969.
275
TITO FILHO, A. Caderno de anotações. Jornal do Piauí, Teresina, p. 2, 8 mar. 1969.
125

antes criticara acidamente, dando-lhe por estrutura o crédito de confiança que


carecem, no início de qualquer travessia.276

Neste editorial, o escritor denuncia as dificuldades para publicar no Piauí e ataca os


críticos que consideram a revista um instrumento de bajulação visando interesses pessoais ou
lucros econômicos. Textos elogiosos sobre políticos como Petrônio Portela e João Clímaco
d’Almeida, aparecem disfarçados como perfis biográficos. Reportagens especiais sobre cidades
como Oeiras e Floriano retratadas como roteiros e potenciais turísticos encobrem negociações
comerciais empreendidas por seu editor-proprietário. A motivação econômica desta publicação
fica evidente em trechos como o publicado no jornal O Estado, em fevereiro de 1973. Após
uma edição em que a cidade de Floriano aparecia em destaque, a imprensa local repercutiu
cobranças feitas por J. Miguel de Matos à prefeitura daquele município 277. A desautorização
pública de corretagens publicitárias praticada em nome da revista revela que a escrita elogiosa,
bajulatória presente em muitos textos de Mafrense eram textos contratados e escritos com
finalidade específica.278
Tal como outras publicações que lhe são contemporâneas, Mafrense nos permite
conhecer os desafios e dificuldades que envolviam o processo de edição de livros e revistas no
Piauí. A efemeridade ou a irregularidade das publicações, a forte dependência do mecenato
estatal cujo auxílio revestia-se no auxílio à montagem na Companhia Editora do Piauí, no
patrocínio de reportagens e propagandas, na aquisição de exemplares não são exclusivas de
Mafrense, mas características das publicações culturais que vieram à tona neste momento. A
existência de um contexto de carestia nos gêneros alimentícios básicos, o reduzido público leitor
e consumidor de revistas também são dificuldades compartilhadas com outras publicações.
Contudo, ao constituir-se como um espaço privilegiado para atuação de letrados, entre os quais

276
MATOS, J. Miguel de. Voltamos. Mafrense, Teresina, n. 23, p. 3, 1979.
277
“[...] De Floriano, informa-se também que o escritor J. Miguel de Matos, através do advogado Antônio José de
Sousa, vem movendo processo executivo contra o Poder Municipal da cidade para obrigá-lo a pagar dois mil
cruzeiros devidos a sua revista MAFRENSE pelo ex-prefeito Bruno dos Santos [...]” (MIGUEL de Matos cobra
dívida a prefeitura de Floriano. O Estado, Teresina, p. 4, 24 fev. 1973).
278
“[...] O Diretor-Proprietário da REVISTA MAFRENSE, abaixo assinado, vem, a público declarar, para definir
responsabilidade que o senhor ROBERT PIRES DE CARVALHO não tem mais credencial para trabalhar na
função de Diretor-Comercial da citada revista, não se responsabilizando a Direção por qualquer ato que venha
praticar aquele Senhor em seu nome ou no nome do órgão [...]” (AVISO ao público. O Estado, Teresina, p. 7, 19
jan. 1972); “[...] A publicitária e cronista social Graciette Torres [...]vem de público informar que não realizou
qualquer transação comercial ilegal nem recebeu pagamento das publicidades feitas em nome da Revista Mafrense,
dirigida pelo jornalista e escritor J. Miguel de Matos. Graciette Torres está com as declarações fornecidas pelo Sr.
J. Miguel de Matos, autorizando-lhe a fazer qualquer transação em nome da Revista, e das empresas que lhe
autorizaram publicações, das quais recebeu pagamento somente do Armazém Paraíba. Por outro lado, Graciette
Torres informa que o Diretor da Revista Mafrense, não lhe pagou ainda as comissões a que tem direito das
publicações que corretou, por isso espera que seja feita a prestação de contas [...]” (NOTA ao público. O Estado,
Teresina, p. 4, 11 jul. 1979).
126

seu editor-diretor-proprietário incluía-se, esta revista torna-se mais um instrumento por meio
do qual J. Miguel de Matos construía uma imagem positiva de si, reivindicava o reconhecimento
de sua intelectualidade e forjava redes de sociabilidades com seus contemporâneos numa prática
em que os sujeitos que desejavam influenciar e participar da construção de um novo Piauí se
auto reforçam por meio de seus textos e práticas.

3.3 O biógrafo J. Miguel de Matos

“Todo aquele que se lança à aventura de escrever sobre sua vida ou sobre a vida dos
outros, está sempre imbuído de um forte propósito”,279 assim J. Miguel de Matos se manifesta
sobre a escrita biográfica, prática a qual dedicou grande parte de seus textos. Nos dois volumes
de Caminheiros da Sensibilidade, em Antologia Poética Piauiense, Perfis, Mosaico,
Garimpagem, Da Costa e Silva, o poeta da saudade, Evocação de Abdias Neves e Genealogia
da Família Moura Fé, bem como em seu discurso de posse na Academia Piauiense de Letras
este escritor exercitou esta faceta de sua atividade intelectual.
Publicadas em forma de antologias, coletâneas de colaborações nos jornais, homenagens
ou como premiação em concursos literários promovidos pelo poder público estas obras, a priori,
inserem-se nas tentativas do escritor de produzir um painel sobre a literatura no Piauí.
Acreditava que, ao biografar intelectuais, autoridades políticas e artistas reconhecidos
possibilitava visibilidade e reconhecimento a personagens importantes, contribuindo assim para
o desenvolvimento do cenário cultural piauiense. Por outro lado, a publicação destas coletâneas,
em geral, financiadas pelo poder público, legitima sua prática intelectual ao tempo em que o
insere nas redes de sociabilidades culturais do Estado. Para os objetivos desta pesquisa a análise
destas obras nos oferece pistas para, mais uma vez, compreender os usos e os sentidos da escrita
de J. Miguel de Matos, em especial, a forma como este significava o mundo ao seu redor e
como esforçou-se para participar do meio cultural e político do Piauí.
O estatuto do gênero biográfico enquanto fonte para a historiografia tem historicidade
própria. Inicialmente relegada pelo caráter elogioso e ficcional dos relatos, a biografia é
redimensionada no contexto da Escola dos Annales, sobretudo nos desdobramentos da História
Cultural e História Intelectual. À medida que a cientificidade da História se consolida, a partir
de metodologias que articulam novas concepções de fonte, tempo e relações sociais, os
questionamentos em torno da prática biográfica perpassam o polimorfismo de seus usos pela
historiografia, literatura e antropologia sendo ora valorizada em suas potencialidades, ora

279
MATOS, 1980, p. 115.
127

relegada em virtude de suas limitações.


Em paralelo à crescente individualização dos sujeitos, a reformulação da biografia a
partir dos Annales é assim apresentada por Durval Muniz, tomando como exemplo a obra de
Lucien Febvre:

Mas são justamente estas obras que permitem perceber a mudança nas regras
de produção do discurso historiográfico que esse grupo de historiadores
pretende realizar. [...] Em vez de um discurso de construção de dados
personagens individuais, que se pauta pelo modelo das narrativas biográficas,
o que temos agora é o que poderíamos chamar de um discurso que dissolve a
singularidade biográfica, um discurso de desconstrução da biografia [...]
Embora não deixe de reconhecer que, sob tais nomes, esteve uma pessoa que
se destacou por sua diferença em seu tempo, ele desloca essa diferença do
campo de uma particularidade individual para o campo das possibilidades
sociais. A démarche agora distinta, não se parte da sociedade para nela
encontrar e demarcar a trajetória individual diferenciada, mas pelo contrário,
parte-se desse nome individual, desse personagem para, à medida que o coloca
num contexto social que o explica e o possibilita, ir dissolvendo
paulatinamente sua dessemelhança, tornando-o uma possibilidade inscrita na
vida social.280

Pierre Bourdieu, ao referir-se às abordagens biográficas recorrentes no contexto da


Nova História, classifica-as no entrecruzamento de prosopografia ou história modal, biografia
e contexto, biografia e casos extremos, biografia e hermenêutica, destacando suas
potencialidades e limitações.281 A partir dessa classificação, podemos inferir algumas formas
de seus usos ao longo do tempo, tais como a biografia como reflexo da experiência social
(redutível ou não a esta), a narrativa biográfica como instrumento de acesso às estruturas sociais
e a existência de uma ilusão biográfica, modalidade na qual o texto produzido atribui falsa
objetividade e linearidade à experiência individual. Quando o historiador elege as biografias
como objeto de reflexão ou como opção metodológica, este deve considerar suas possibilidades,
sobretudo em suas relações com a escrita e a memória, suas motivações e o lugar social ocupado
por biógrafo e biografado, pois

Mais do que fazer “revelações bombásticas” ou trazer à tona facetas


desconhecidas do seu personagem, o biógrafo deve sugerir respostas para as
questões como o funcionamento concreto de determinados mecanismos
sociais e sistemas normativos, a pluralidade existente por detrás de grupos e
instituições tradicionalmente vistos como homogêneos, a construção

280
ALBUQUERQUE JÚNIOR, 2012, p. 23-24, grifos do autor.
281
BOURDIEU, 2000, p. 167-182.
128

discursiva e não discursiva dos indivíduos, as margens de liberdade


disponíveis às pessoas em diferentes épocas, entre outras.282

Estas reflexões sobre a prática biográfica se fazem necessárias posto que, ao analisarmos
os perfis biográficos produzidos por J. Miguel de Matos temos a clareza de que este estudo parte
do olhar de uma historiadora, sendo produzido no tempo presente sobre a construção de biografias
por um sujeito não-historiador, sobretudo entre as décadas de 1960 e 1980. Embora este escritor
defenda que os perfis biográficos por ele construídos são o resultado de pesquisa rigorosa,
erudição e afeto, o que nos interessa é compreender o que o motivou a elaborar esses textos, os
critérios de seleção dos indivíduos a serem biografados e o teor das informações apresentadas.
J. Miguel de Matos inicia sua atividade como biógrafo em 1966 com o livro
Caminheiros da Sensibilidade: antologia poética, na qual seleciona e apresenta informações
sobre poetas apontados como significativos, acompanhadas de algumas poesias e pequeno
comentário crítico sobre seu produtor.283 Por esta obra foi escolhido “escritor do ano”,284 o que
sem dúvida, o motivou a dar continuidade a esta modalidade de escrita em artigos de jornais e
livros posteriores. Nos jornais, publicava pequenos perfis a pretexto de homenagens a
aniversariantes, necrológicos, lançamentos de obras, indicações do biografado a cargos
públicos ou retribuição a elogios feitos a si. O esforço de erudição que emerge destas narrativas
revela os interesses do escritor em apresentar suas qualidades como pesquisador ao tempo que
forja em torno de si uma rede de correspondências na qual indivíduos com origens e interesses
distintos são agrupados em torno de práticas sociais que, segundo J. Miguel de Matos, os
transformam em uma comunidade unificada por suas ações no campo cultural.
A rede de diálogos que J. Miguel de Matos tenta construir materializa-se antes mesmo
do início do texto, através de dedicatórias e agradecimentos. As páginas finais são destinadas à
reprodução de comentários elogiosos à atuação de J. Miguel de Matos no cenário cultural
piauiense. Escrito por Martins Vieira, seu ex-professor no Liceu Piauiense, o prefácio de
Caminheiros da Sensibilidade também insere-se nesta rede de correspondências literárias
quando o prefaciador assim posiciona-se sobre a obra:

282
AVELAR, Alexandre de Sá. Escrita biográfica, escrita da História: das possibilidades de sentido. In: AVELAR,
Alexandre de Sá; SCHMIDT, Benito Bisso (org.). Grafia da vida: reflexões e experiências com a escrita
biográfica. São Paulo: Letra e Voz, 2012. p. 77.
283
Nesta obra são biografados: Antônio Francisco da Costa e Silva, Altevir Soares de Alencar, Antônio Veras de
Holanda, Adail Coelho Maia, Almir Fonseca, Benedito Martins Napoleão do Rego, Celso Pinheiro, Domingos
Fonseca, Gregório de Moraes, Hermínio dos Santos Conde, Humberto de Campos, Hermes Rodrigues Cardoso
Vieira, João Francisco Ferry, José Felix Alves Pacheco, Jonathas Batista, José Newton de Freitas, Luiz Lopes
Sobrinho, Manoel Alfredo Martins e Rocha, Olympio Vaz da Costa Neto, Raimundo Zito Batista e Rogaciano
Bezerra Leite.
284
Pela escrita de Caminheiros da Sensibilidade, J. Miguel de Matos foi escolhido como “Escritor do Ano de
1966” (HELVÍDIO Nunes Ajuda Cultura do Piauí: Balduíno na frente. O Dia, Teresina, p. 8, 11 fev. 1967).
129

CAMINHEIRO DA SENSIBILIDADE é obra de alto merecimento


intelectual, testemunhando, ao primeiro desejo crítico de quem a manuseia, o
amadurecimento de seu autor, com excelentes credenciais para ser acolhida
nas bibliotecas e nas escolas primárias, secundárias e superiores, em razão da
expressão biográfica, mesmo em síntese que servirá de bússola àqueles que
deitarem os olhos ávidos de beleza e sentimento sobre suas páginas, que são
sendas de luz.285

O tom elogioso, característico dos prefácios, enaltece o aspecto didático de Caminheiros


da Sensibilidade sem deixar de considerar seu caráter sintético. Ao tempo em que qualifica a
escrita de J. Miguel de Matos, o prefácio é indicativo das relações entre esses sujeitos, expressas
em suas escritas que reiteram, de maneira recíproca, suas qualidades literárias. A rede de
sociabilidade constituída por esses indivíduos através de seus textos pode ser observada no
comentário de J. Miguel de Matos por ocasião do lançamento de Canto da Terra Mártire de
autoria de Martins Vieira:

Nascendo e vivendo no Piauí, sem que o Brasil tomasse conhecimento da sua


existência e da sua poderosa obra poética, MARTINS VIEIRA, como outros
nomes potentes da literatura piauiense, não teve chance de participar, mesmo
distante, dos movimentos culturais do Brasil, como um sol que sucumbisse
anônimo apesar de tanta luz, antes de saltar da linha flexuosa do horizonte
para incendiar o mundo. Assim mesmo, publicando agora – tantos anos depois
de escrito – o seu “CANTO DA TERRA MÁRTIRE”- em que mostra
“profundo respeito à correção da linguagem e à propriedade estilística”,
nivela-se ombro a ombro com os que, renovando o romance brasileiro a partir
de 1928 com José Américo de Almeida (“A Bagaceira”), “reagiram contra a
literatura individualista e subjetiva”, na perseguição do “objetivismo realista,
o documentário humano” que o bardo piauiense, em versos que sangram
lágrimas e porejam sangue, é o primeiro e o maior representante do Piauí.286

A produção de inúmeras dedicatórias, precedidas por dedicatórias especiais ao


presidente da República, ao governador e vice-governador do Estado, à medida que apresenta
sujeitos que, em sua opinião, contribuem para o desenvolvimento cultural e econômico do Piauí,
evidencia certa bajulação àqueles a quem agradece por proporcionar a publicação de sua obra,
além de delinear seus posicionamentos políticos.
A escrita biográfica de J. Miguel de Matos também deixa transparecer elementos
importantes para a construção de uma imagem de si. Na obra Perfis,287 identificamos como o
escritor utiliza-se de sua escrita para retribuir favores e elogios, criticar seus opositores e
desculpar-se com quem havia se desentendido. Concluída em 1973, a obra tem sua escrita

285
VIEIRA, Martins. Como prólogo. In: MATOS, J. Miguel de. Caminheiros da Sensibilidade: antologia poética.
Teresina. Edições Fontes: 1966. p. 14.
286
MATOS, J. Miguel de. Martins Vieira, o cantor da terra martirizada. In: MATOS, J. Miguel de. Garimpagem.
Brasília: Centro Gráfico do Senado Federal, 1980. p. 29-30.
287
MATOS, J. Miguel de. Perfis. Teresina: COMEPI, 1974.
130

alimentada pela gratidão e pelos ressentimentos do escritor. Enquanto seus amigos


reverberavam na imprensa a conclusão de sua mais nova obra, outros se preocupavam com o
“acervo de insultos” que estaria prestes a ser publicado.288 O motivo da inquietação está no fato
de que J. Miguel de Matos não deixava de reconhecer o lugar social ocupado por seus
biografados, porém não se furtava a apontar as contradições de suas trajetórias e
comportamentos, sobretudo em relação à sua pessoa. Todavia, o ingresso do escritor na
Academia Piauiense de Letras, em fins de 1973, o forçou a construir um novo sentido para o
texto que viria a público em 1974. O novo imortal não autocensurou seus textos, mas
preocupou-se em cravar a diferença entre aquele que o escreveu e o sujeito que irá publicá-lo,
ao afirmar na epígrafe que “esta obra foi escrita antes da entrada do autor na Academia
Piauiense de Letras”. O alerta exorta o leitor a contextualizar as críticas e a entender que já é
um outro, um ser distinto pela conquista da imortalidade acadêmica.
Os biografados nesta obra variam do escritor Machado de Assis passando pelo
governador do Estado, Alberto Tavares Silva,289 por autoridades religiosas, por escritores
reconhecidos ou não, além de suas amizades no circuito cultural local. 290 As dedicatórias
acrescidas de pomposos elogios contemplam alguns daqueles que serão biografados na obra,
tais como Armando Madeira Basto, coordenador da Assessoria de Comunicação do Governo e
A. Tito Filho, presidente da Academia Piauiense de Letras. Aparecem ainda, Júlio Lopes Lima,
presidente do Banco do Estado do Piauí S.A, coronel Tupy Caldas, comandante geral da Polícia
Militar do Piauí, major Joel da Silva Ribeiro, prefeito de Teresina, Valter Alencar, diretor da
TV Rádio Clube, jornalista Helder Feitosa, diretor do jornal O Estado, Raimundo Barbosa
Marques, antigo colega de Liceu e Raimundo Wall Ferraz, Secretário de Educação e Cultura
do Piauí. Assim como as dedicatórias, o corpo do texto indica o reconhecimento das ações
desses indivíduos e expressa o desejo de associar sua imagem à deles.

288
O articulista de Sete Flechas afirma: “[...] Perfil seria o nome do novo acervo de insultos que alguns chamam
de livro, a ser editado em Teresina. O autor revoltado em sua miséria tenta investir contra a reputação de homens
de bem desta terra [...]” (O LIBERAL. Teresina, p. 3, 23 maio 1973).
289
Alberto Tavares Silva nasceu em Parnaíba, em 1918 e faleceu em Brasília, em 2009. Engenheiro, foi governador
do Piauí por dois mandatos: 1971-1975 e 1987-1991. Também exerceu mandatos como deputado federal e senador.
Em seu primeiro mandato no governo do Piauí, estimulou a cultura local com a reforma e reinauguração do Teatro
04 de Setembro, instituiu o concurso “O Piauí Nas Lutas Pela Independência”, inaugurou o monumento “Heróis
do Jenipapo”, implementou o Plano Editorial do Estado e colocou a Revista Presença em circulação.
290
Os biografados em Perfis são: Machado de Assis, Alberto Silva, Álvaro Ferreira, Artur Passos, D. Avelar
Brandão Vilela, Álvaro Pacheco, Armando Madeira Basto, Antônio Veras de Holanda, Antônio Bugyja de Sousa
Brito, Celso Barros Coelho, Cristina Leite, Cromwell Barbosa de Carvalho, Deoclécio Dantas Ferreira, Edison da
Paz Cunha, Francisco da Cunha e Silva, Fernando Lopes Sobrinho, Gerardo Majela Fortes Vasconcelos, Helvídio
Nunes de Barros, José Maria Barros Pinho, Josias Clarence Carneiro da Silva, José de Arimethéa Tito Filho, Pe.
Joaquim Chaves, Lilizinha Carvalho, Luiz Mendes Ribeiro Gonçalves, Mário Faustino, Odilon Nunes, Robert
Wall de Carvalho, Raimundo da Costa Machado e Raimundo Rodrigues dos Santos.
131

Pierre Bourdieu, ao analisar práticas de coesão entre indivíduos de um mesmo grupo ou


entre indivíduos com práticas e comportamentos em comum, elabora a noção de poder
simbólico, definido como a habilidade de “poder constituir o dado pela enunciação, de fazer
ver e fazer crer, de confirmar ou de transformar a visão de mundo e, deste modo, a ação sobre
o mundo, portanto o mundo”.291 Ao ser forjado e aceito por um grupo de indivíduos, o poder
simbólico dá visibilidade a um habitus que os integra, garante sentimentos de pertencimento e
distinção social.292 Nessa perspectiva, as redes de comunicação instituídas por J. Miguel de
Matos e seus contemporâneos ao passo que os diferenciam da população, em sua maioria
semialfabetizada, forja espaços literários e comportamentos recíprocos entre a intelectualidade,
os agentes culturais e o poder público piauiense.
Em passagens de Perfis, J. Miguel de Matos afirma que seu objetivo é propor uma
avaliação crítica dos indivíduos selecionados. Ao discorrer sobre a escrita de biografias,
apresenta o que considera ser a função das biografias:

O biógrafo, especialmente nos tempos atuais, exerce um papel relevante, na


tentativa de aproximar os valores para uma troca real de conceitos e revelar,
quebrando a “torre de marfim”, com a sua pena desbravadora, os que são
falsos e os que são autênticos, para que estes não sofram o desgaste da censura
pública ou privada, oriunda de deduções apressadamente erradas, e aqueles
que não ostentem, na cabeça vazia, a coroa da glória da consagração.293

De sua leitura de Biografias e Biógrafos, de Edgard Cavalheiro, J. Miguel de Matos


entende que as biografias representam a busca da verdade, uma tentativa de salvaguardar
valores e tradições personificadas no biografado. Compreende que os estudos biográficos
devem revelar os valores humanos, mas que apenas com a imersão profunda nas realidades
cultural e social vividas pelos biografados é que se pode obter uma análise crítica sobre estes.
A publicação de biografias ou perfis biográficos insere o biógrafo no universo das pesquisas,
na análise de contextos, no estudo comparativo de trajetórias e na construção de críticas e
resenhas. O exercício e aprimoramento destas práticas ajudam na construção da imagem de J.
Miguel de Matos como um intelectual, legitimando suas práticas e posturas e promovendo, por
meio da escrita, a identificação entre o biógrafo, os demais escritores e as instituições culturais.
O escritor aparenta ter clareza do poder de sua escrita e dos efeitos dos elogios enunciados,
sobretudo em um cenário cultural carente de incentivos e público leitor amplo.
Nestas obras, as informações biográficas são entremeadas por informações sobre o

291
BOURDIEU, 2002, p. 14.
292
BOURDIEU, 2011.
293
MATOS, 1974, p. 236, grifos do autor.
132

contexto cultural da época, apontando os posicionamentos do escritor diante de certas práticas.


Tomamos como exemplo o perfil biográfico de A. Tito Filho, presidente da Academia Piauiense
de Letras. O texto é significativo de como J. Miguel de Matos harmoniza elogios e críticas sutis
àquele que está à frente da instituição à qual deseja ingressar

[...] na literatura piauiense A. Tito Filho tem sido uma espécie de guia,
prefaciando uma quantidade incontável de obras, conduta que apresenta duas
faces positivas para os incipientes: encoraja-os a enfrentar o bicho-papão da
crítica especializada ou pública e incentiva-os, nos seus primeiros passos nos
meandros das Letras, cometendo apenas o pecado – segundo me parece – de
se exceder em louvores, com graves prejuízos para a maioria, que se envaidece
e, por isso mesmo, já pensando que está consagrado diante da valiosa opinião
de um Mestre como ele, reduzindo, por isso mesmo, a produção literária ou
encostando, de uma vez, a pena ou deixando empoeirar a máquina de escrever.
Esse comportamento que é nato da bondade nazarena de A. Tito Filho, às
vezes gera ingratidões, como uma que assistimos há pouco tempo, de um poeta
camoneano que, com alguns livros fracos publicados, com o mérito apenas do
sentimento poético que nele é seivoso, armou-se do direito de criticá-lo sem a
prudência de ver nele, antes de mais nada, o seu antigo pai espiritual ou, pelo
menos, para ser grato ao favor recebido, o generoso caminheiro que achou na
estrada, que lhe estirou a mão e lhe deu, sem cobrar ou esperar a fome de luz
que carregava na cabeça sonhadora. Há de se ressaltar, todavia, um outro
aspecto da personalidade de A. Tito Filho, muito similar com a conduta do
autor desta obra há muito reclamada pelo Piauí: a sua virulência na reação aos
que lhe atiram pedras, devolvendo às vezes dez em que lhe joga apenas uma
ou duas, jamais partindo de sua funda de David o primeiro petardo, ou o
primeiro disparo do seu arcabuz.294

Ao passo que aproxima sua personalidade combativa com a do presidente da Academia


Piauiense de Letras, J. Miguel de Matos investe em uma parceria literária que será efetivada
quando de sua eleição para o sodalício. Contudo, o biógrafo não deixa de apontar os efeitos
negativos das críticas literárias enunciadas por A. Tito Filho, que segundo o autor, enaltece os
que não possuem qualidades literárias e dificulta o reconhecimento de indivíduos com talento. J.
Miguel de Matos argumenta que a posição social ocupada por A. Tito Filho exige moderação e
senso de justiça. Entende que, quando A. Tito Filho elogia ou recomenda a leitura de algum texto,
não é possível diferenciar o articulista do presidente da instituição cultural mais antiga do Estado.
Para J. Miguel de Matos, quando A. Tito Filho se excede em louvores a quem não tem
talento, está atestando qualidade a medíocres e pavimentando sucessos imerecidos, porém
lastreados pela escrita benevolente do presidente da Academia Piauiense de Letras. 295 Além

294
MATOS, 1974, p. 193-194.
295
Em 1983, o escritor Cineas Santos instigou o presidente da Academia Piauiense de Letras a comentar as
recorrentes críticas feitas aos prefácios produzidos por ele. Transcrevo a seguir a pergunta e a resposta ofertada
pelo escritor: “[...] Cineas - Mas isso não deve ocorrer com o senhor que, pelo que tenho lido, costuma ser até
excessivamente generoso com os escritores que lhe pedem prefácio. O senhor não acha nocivo esse tipo de
incentivo, uma vez que alimenta a vaidade de escritores medíocres? A. Tito Filho – É verdade. O que acontece é
133

disso, acredita que estes posicionamentos interferem no processo de escolha dos novos
membros da agremiação mantendo um status quo em a tradição familiar e a posse de credencias
não-literárias, tais como formação em curso superior, atuação profissional e amizades
constituídas pesam mais que as qualidades literárias.
O fragmento mostra como a produção de perfis biográficos é um artifício tático adotado
por J. Miguel de Matos a fim de expor suas opiniões acerca da crítica literária, das dificuldades
de edição e circulação de produtos culturais. À medida que apresenta os perfis biográficos dos
sujeitos selecionados, Perfis apresenta ainda bastidores de suas campanhas para a Academia
Piauiense de Letras, com narrativas sobre as visitas feitas aos acadêmicos em busca de votos.
O retrato biográfico de D. Avelar Brandão Vilela, arcebispo de Teresina, destaca sua trajetória
familiar e elogia a formação acadêmica do biografado. Contudo, o texto não se limita à
apresentação do religioso. Ao narrar o encontro com a autoridade, o escritor nos apresenta
outras facetas de sua escrita biográfica:

A escritora Lilizinha Carvalho, minha madrinha na colheita dos votos, usando


da intimidade acadêmica, não teve rodeios, levando, de imediato, com um
amplo sorriso no rosto, o motivo de sua inesperada visita ao Pastor-acadêmico.
– Dom AVELAR, venho pedir seu voto para o escritor J. Miguel de Matos,
para a cadeira 17, da nossa Academia... Abrindo mais o seu sorriso, para
oferecer maior intimidade aos visitantes, e olhando fixamente dentro dos olhos
de sua interlocutora, o acadêmico AVELAR BRANDÃO VILELA, sem
nenhuma reflexão que pudesse modificar sua decisão, afirmou seu voto no
meu nome, embora lembrando, por uma hábil conveniência que esfriou
subitamente minhas esperanças, que minha oponente já havia passado por ali,
com a mesma finalidade, parecendo querer dividir comigo a responsabilidade
de sua preferência. Compreendendo minha repentina desilusão, por ter
chegado tarde ao Palácio Episcopal, a escritora Lilizinha Carvalho que
também se mostrava meio arrefecida, num rápido cruzamento de olhar, tentou
reacender, apoiada por um gesto de cabeça da poetisa Izabel Vilhena, a minha
esperança de repente ameaçada de falência, como quem tenta acender uma
vela, inesperadamente apagada, por um jato violento de vento: - Coragem,
Miguel! O homem vai votar em você... no dia da eleição (1º escrutínio),
omitiu-se habilmente de votar em qualquer um dos candidatos, preferindo,
prudente e sabiamente, que o Pastor decidisse em lugar do Acadêmico,
permitindo que os derrotados, com o mesmo respeito e a mesma admiração,
voltassem a beijar, reverentemente, a pedra do seu anel.296

o seguinte: isto é terra tão sem estímulos que nos sentimos desencorajados a desestimular quem se inicia. Um livro,
uma poesia, um pensamento que se escreve vale um filho espiritual muito terno. Então, qual o pai que gostaria de
ter um filho chamado de feio, de aleijado? Procuramos, pois, incentivar a quem escreve alguma coisa. Não fazemos
elogios derramados, tanto que acontece uma coisa que muitos não observam: quando não temos nada que dizer do
livro, falamos do autor, da pessoa, dos seus traços humanos, dos seus sentimentos, no final, alguma referência ao
livro, acentuando o esforço do autor, a sua simplicidade, sem que destruamos os seus desejos e pretensões.
Achamos que o melhor caminho para educar é o caminho do afeto, do querer bem [...]” (PRESENÇA: órgão oficial
da Secretaria de Cultura do Piauí. Teresina, ano 3, n. 6, p. 20, dez-fev. 1983).
296
MATOS, 1974, p. 73.
134

O relato do escritor, permeado de ironia, é uma crítica ao religioso. Ao estabelecer uma


aproximação entre si e o objeto de sua escrita, o escritor apresenta os círculos sociais que
conseguia acessar. O objetivo do texto não está na dissecação de fatos da vida de Dom Avelar,
mas sim na denúncia das práticas vacilantes de alguns acadêmicos. O texto é um pretexto para
agradecer os apoios recebidos e criticar os seus opositores.
Ainda sobre suas candidaturas, assim se refere encontro que teve com o historiador
Odilon Nunes:
[...] deixei a casa do acadêmico Odilon Nunes inteiramente desiludido do seu
apoio à minha candidatura, recebendo no dia da eleição a surpresa que estava
fora das minhas mais longínquas cogitações: ele votou no meu nome, num
gesto que me pareceu mais bondade do que de consciência. Para mim,
marinheiro de primeira viagem na acidentada viagem da imortalidade, foi
muita válida a conduta do acadêmico Odilon Nunes que, sem nada prometer,
dá o apoio no dia da decisão, inversamente a outros que garantem o voto e
dão-no, sem a menor sencerimônia, comprometendo a austeridade de
senescência, a outro pretendente, mesmo que isso, pela volúpia do espírito,
não possa ser tachado de traição ou injustiça, como vaticinam alguns,
inteiramente ignorantes de que, nas academias onde se supõe um ambiente
repousante para uma vida intelectual menos intensa, otium cum dignitate – aí
onde se imagina um lago azul sem névoas nem espumas, dormem, não raras
vezes, abismos dissimulados297

Apesar da candidatura frustrada, o fragmento expressa surpresa e gratidão ao voto


confiado. Percebe-se ainda como o texto extrapola a narrativa biográfica e como o escritor utiliza-
se dessa oportunidade para tecer comentários sobre as práticas acadêmicas. Ainda em Perfis, J.
Miguel de Matos, traça narrativas biográficas de dois escritores que foram fundamentais em suas
campanhas visando o ingresso na Academia Piauiense de Letras: Lilizinha Castelo Branco e
Josias Clarence Carneiro da Silva. Destacamos aqui o que o biógrafo diz sobre estes sujeitos

O autor desta obra, que já recebeu da escritora LILIZINHA CARVALHO dois


votos para ingressar na Casa de Lucídio Freitas, embora continue do lado de
fora, tinha por isso mesmo, forte razão para incluir a romancista nesta obra,
pelo nobre sentimento de gratidão. Mas o fez – ela sabe muito bem disso – foi
apenas por ver nela, no seu trabalho literário, a personalidade cultural acabada
para figurar no mural deste livro, premiando os seus suores, no teclado da
máquina de escrever ou no cabo da pena, na luta ingente de aculturar o Piauí,
de que, como muitos outros que se acham nessa obra, se fez filha adotiva.
[...].298

O gesto de JOSIAS CARNEIRO, escrevendo a minha genealogia, arrancou


de mim, pela súbita surpresa de sua iniciativa, esta confissão: “Surpreendeu-
me, sobremodo, Doutor JOSIAS, o seu trabalho intitulado GENEALOGIA
DE J. MIGUEL DE MATOS, cuja elaboração deve ter tomado boa parte do

297
MATOS, 1974, p. 232-233.
298
MATOS, 1974, p. 214.
135

seu precioso tempo, fato que certamente não compensa a tarefa em torno de
uma homem simples e pobre e que muito pouco representa para as letras do
Piauí, onde pontificam tantos luminares, aparecendo meu nome, na
comparação mais aceitável, apenas para completar a tela, como uma pincelada
que um artista atira no seu trabalho para ultimar um detalhe ou para terminar
a tinta do pincel. [...] TRAZENDO-O a esta obra, não podia fazê-lo por
gratidão apenas, mas por dever, como um pintor que, para valorizar seu
quadro, tem de colocar, forçosamente os detalhes mais importantes ou como
um padre que, para rezar sua missa, tem de vestir todos os paramentos e munir-
se no Livro Sagrado. Na paisagem da literatura e das Artes do Piauí, JOSIAS
CARNEIRO, é esse detalhe de pintor e esse apetrecho sagrado do sacerdote:
sem o detalhe não há quadro de valor; se o apetrecho sagrado não há missa
bem rezada!299

O tom elogioso e as informações selecionadas para constar nos textos deixam claro as
motivações de seu produtor. No caso do perfil biográfico Lilizinha Carvalho, J. Miguel de
Matos expressa sua gratidão a esta escritora que é tida como a primeira incentivadora de suas
candidaturas à Academia Piauiense de Letras, assumindo a função de “madrinha” do aspirante.
Já o fragmento sobre Josias Clarence revela a importância da obra Genealogia de J. Miguel de
Matos, lançada em 1972 no contexto de suas campanhas para a Casa de Lucídio Freitas. 300 A
obra lançada como “edição íntima”, ou seja, com poucos exemplares e circulação restrita, tem
função prática no contexto das tentativas de J. Miguel de Matos em ingressar na Casa de Lucídio
Freitas. Embora mais tarde, o genealogista tenha se arrependido de sua feitura,301 o livro
desconstrói, em benefício de J. Miguel de Matos, um dos supostos argumentos apresentados
por este, para explicar sua dificuldade em ingressar naquele sodalício: o não-pertencimento a
família ilustre e com tradição literária. Ao construir a genealogia de J. Miguel de Matos, Josias
Clarence mostrou que o aspirante a imortalidade possuía ramos familiares distintos e teceu suas
ligações biológicas com nomes reconhecidos da política e da cultura local possuindo, inclusive,
parentes próximos entre os membros da instituição.
O vocabulário pomposo, por vezes prolixo, permeado de metáforas reforçam os

299
MATOS, 1974, p. 189.
300
“[...] O professor JOSIAS CLARENCE CARNEIRO DA SILVA (Diretor do Museu de Arte do Piauí) estará
lançando, dentro de mais alguns dias, o seu livro – “GENEALOGIA DE J. MIGUEL DE MATOS”, em fase final
na COMEPI (Companhia Editora do Piauí S. A), de que é Presidente o jornalista Deoclécio Dantas. A obra, que
vai ter distribuição íntima, vai ser lançada na residência do ilustre casal Dr. Hermógenes Carvalho/escritora
Lilizinha Carvalho, devendo comparecer, por convite especial, alguns parentes do autor de “BRÁS DA
SANTINHA”, residentes dentro e fora do Piauí. No dia 8 de Julho p. vindouro, o livro de JOSIAS CLARENCE
CARNEIRO DA SILVA estará sendo lançado na cidade de Floriano, data que marcará as novas realizações do
prefeito JOSÉ BRUNO DOS SANTOS, que a escolheu por ter Floriano sido elevada à categoria de cidade, pela
Lei nº 144, de 1897. De Teresina seguirá para a Princesa do Sul, para assistir ao lançamento da obra, uma caravana
de amigos íntimos do filho da Rua do Molambo. [...]” (SILVA, Josias Clarence Carneiro da. Genealogia de J.
Miguel de Matos. Jornal do Piauí, Teresina, p. 6, 11-12 jun. 1972).
301
“[...] A “xaropada” por mim escrita com respeito a genealogia do Dr. Miguel de Matos fiz questão de não
colocá-la ao alcance do pública, sua edição é íntima, nada vale [...]” (SILVA, Josias Clarence Carneiro da. Capítulo
final. O Estado, Teresina, p. 2, 22 set. 1977).
136

agradecimentos àqueles que ajudaram na viabilização da impressão da obra. Tentando, sem


sucesso, camuflar a bajulação, evidencia-se que os biografados conheciam os motivos que os
levaram a ser selecionados para estas obras. Em defesa do modelo biográfico que pratica, J.
Miguel de Matos afirma que

[...] todo biógrafo tem um aspecto particular a ver e revelar, com a moldagem
de sua descrição, na personalidade do biografado, como um penitente que
venera mais, no seu genuflexório domiciliar ou no tempo religioso que
frequenta, o santo de sua maior devoção.302

Em comentários como este, J. Miguel de Matos apresenta seu processo de seleção e


escrita, afirmando que estes atendem a objetivos diversos. Por meio desta operação, J. Miguel
de Matos evidencia sua erudição, demonstra seu reconhecimento a personalidades importantes,
constrói redes de sociabilidades e apresenta posicionamentos em relação ao cenário cultural
piauiense. Contudo, é preciso destacar que J. Miguel de Matos escreve biografias em um
momento em que estas são acolhidas com desconfiança nos meios universitário e literário. À
época, no Brasil e fora deste, o debate em torno das escolhas narrativas dos biógrafos, suas
formas de acessar e coletar dados, os modos como utilizam suas fontes bem como as
interpretações possíveis sobre aquilo que escrevem interferem na credibilidade intelectual de
seu produtor. Nos termos de hoje, as biografias naquele momento eram consideradas textos
menores por substituírem a pesquisa rigorosa pela distribuição de elogios e por transformar as
experiências dos biografados naquilo que Pierre Bourdieu denominou de ilusão biográfica.
Afirmando ler sobre biografias e a crítica em torno destas, J. Miguel de Matos recorre,
mais de uma vez, uma frase de André Maurois, como a definição de seu método de trabalho. A
citação, no epílogo de Evocação de Abdias Neves, procura legitimar seu fazer biográfico ao
afirmar que:

Publicar uma BIOGRAFIA, anunciá-la como biografia e não como uma


novela, é anunciar fatos verídicos e um biógrafo deve ao seu leitor, em
primeiro lugar, a verdade. Não há direito para se constituir um herói segundo
os próprios desejos e necessidades. Não há direito de inventar conversas,
incidentes, nem para omitir fatos porque irão criar situações difíceis. Porém,
em certos casos – embora raros – se a eleição é feliz e bem adaptada a natureza
do autor, que esta possa expressar alguns dos seus sentimentos, sem deformar
os do herói.303

A partir do fragmento, percebe-se que este escritor deseja que sua escrita biográfica
articule o uso de fontes a uma relação de afeto entre quem escreve e o alvo da escrita.

302
MATOS, 1974, p. 46.
303
MATOS, J. Miguel de. Evocação de Abdias Neves. Teresina: EDUFPI, 1984. p. 9.
137

Defendendo – e acreditando praticar – uma escrita biográfica que articula pesquisa rigorosa,
erudição e afeto, J. Miguel de Matos produz perfis biográficos diferenciados. Em seus textos,
as informações sobre vida e atuação de seus biografados aparecem ao lado de elogios excessivos
ou críticas. Além disso, J Miguel de Matos destaca situações vivenciadas por seus biografados
e que, segundo ele, são pontso em comum com sua própria trajetória, um recurso narrativo
capaz de promover associações e afetos, sobretudo se evidenciarem a origem humilde e as
injustiças de que foram alvo, tal como ocorre quando se propõe a falar sobre Humberto de
Campos. Esta tática também é utilizada para tecer críticas a condutas que considera
equivocadas. Nesse sentido, a escrita biográfica de J. Miguel de Matos, mais do que apresentar
o biografado, revela um processo de construção de si, em que o “outro” é pretexto para revelar
a trajetória, as redes de convívio social e os afetos do biógrafo.
A análise das biografias produzidas por J. Miguel de Matos aproxima-nos do processo
de construção de si praticado por este indivíduo. Além de informações biográficas sobre os
sujeitos selecionados, o biógrafo J. Miguel de Matos deixa transparecer sua própria trajetória
em registros que apresentam seu nascimento, origem social, formação escolar, prática
profissional, manifestações públicas de reconhecimento, redes intelectuais, articulações
literárias e políticas. Sua escrita revela a trajetória de um indivíduo que interage com a
sociedade, a vivencia e é afetado pelos jogos de poder nela existentes. Os reflexos destas
disputas aparecem em seus textos, motivando e retroalimentando as sensibilidades do escritor.

3.4 O confrade J. Miguel de Matos

Este tópico apresenta J. Miguel de Matos em mais uma de suas tentativas de construir-
se como intelectual: a participação em agremiações literárias. À medida que sua atuação
literária e na imprensa se consolidava, o soldado-escritor aproximou-se de outros agentes
culturais, foi inserido ou com eles construiu espaços de discussão e divulgação literária visando
movimentar o cenário cultural piauiense. Antes da imortalidade acadêmica, este escritor
participou de agremiações como o Instituto de Cultura Americana (ICA), aproximou-se do
Círculo Literário Piauiense (CLIP) e tornou-se sócio do Instituto Histórico e Geográfico do
Piauí (IHGP). Concomitantemente ao seu ingresso na Casa de Lucídio Freitas, tornou-se
membro da União Brasileira de Escritores – secção Piauí (UBE-PI) e, mais tarde, sócio
correspondente do Instituto Histórico e Geográfico de Oeiras (IHGO).
O ingresso na Academia Piauiense de Letras, sua maior ambição, representa sua
consagração intelectual, e é o resultado de uma atuação ampla que envolvia a publicação de
livros, a participação nos debates de seu tempo e tentativas variadas de inserir-se e movimentar
138

o cenário cultural. Ainda no Ceará, servindo ao Exército Brasileiro, o escritor afirma ter
participado da fundação do Clube General Sampaio.304 Não se tratava de uma agremiação
literária, mas de um espaço de lazer utilizado por seus sócios para as mais variadas atividades
culturais. Neste clube, J. Miguel de Matos fez, em 1969, a primeira noite de autógrafos de
Pisando Os Meus Caminhos.305
Em março deste ano, os jornais O Liberal e Jornal do Piauí divulgaram que J. Miguel
de Matos foi nomeado como delegado, no Piauí, do Instituto de Cultura Americana (ICA),
entidade sediada em Montevidéu e filiada à UNESCO. Os periódicos repercutem a
nomeação,306 possivelmente a pedido do escritor. Contudo, em nossa pesquisa, não localizamos
menção a nenhuma atividade do escritor em nome desta instituição no Estado. O que sabemos
sobre esta entidade resume-se a notas esparsas, posto que não localizamos em livros e acervos
digitais outras referências aos seus objetivos e área de atuação. O Barão de Domit, que aparece
como representante do Instituto de Cultura Americana no Brasil, também é figura obscura. Não
obstante, J. Miguel de Matos inseriu esta delegação de modo permanente em seu currículo,
como forma de apresentar suas credenciais e arregimentar prestígio à sua figura. Seus
contemporâneos manifestavam, inclusive, descrença sobre a existência deste instituto e
mencionavam tal filiação nas brincadeiras que faziam com o escritor.307

304
“[...] Os militares de patentes baixas, suboficiais e sargentos, frequentavam suas próprias agremiações: o Clube
General Sampaio congregava o pessoal do exército. Tinha sede no Benfica, com bar e restaurantes organizados,
sempre com boa frequência [...]” (GARCIA, 2011).
305
Em correspondência a A. Tito Filho, publicizada na coluna “Caderno de Anotações”, J. Miguel de Matos informa
sobre sua viagem a Fortaleza: “[...] Meu caro prof. Tito Filho. Sigo para Fortaleza às primeiras horas da manhã, pelo
Expresso de Luxo, que é transporte de escritor pobre. Vou buscar os mil primeiros exemplares de meu livro
PISANDO OS MEUS CAMINHOS [...] Devo dar duas noites de autógrafos – uma na Casa de Juvenal Galeno e
outra no Clube General Sampaio, entidade social que reúne os subtenentes e sargentos da Guarnição Federal de
Fortaleza, clube de que sou um dos fundadores, quando cheguei ao Ceará, em 1943, levado pela II Grande Guerra
Mundial, para servir no 23º Batalhão de Caçadores (JORNAL DO PIAUÍ. Teresina, p. 2, 25 jul. 1969).
306
Em 13 de março de 1969, registra-se como J. Miguel de Matos comunicou a A. Tito Filho sua filiação: “[...]
Data de 5.3.69. recebi: ‘Professor Tito Filho. Com o presente documento, experimenta a grata satisfação de levar
ao conhecimento de V.S. que venho de ser nomeado, pelo Barão de Domit, Presidente Executivo do Instituto de
Cultura Americana (ICA), Delegado em todo o Estado do Piauí deste órgão, nos termos do ofício que aqui vai
transcrito: “Enero 21/69. Al escritor J. Miguel de Matos, em mi candad de Presidente Ejecutivo y de acuerdo com
el Estatuto, me es placentero designarle a Usted Nuestro Delegado de Honor, em el Estado de Piauí, con todos los
derechos de representación distinguida’. No ensejo, desejo dizer a V.S. da minha confiança no seu apoio a esta
Delegacia Regional, instalada, provisoriamente, na avenida Leônidas Melo, nº 52, nesta capital! Cordial e
sinceramente, J. Miguel de Matos” (JORNAL DO PIAUÍ. Teresina, p. 2, 13 mar. 1969). Em 20 de março de 1969,
O Liberal noticia que o escritor J. Miguel de Matos “[...] recebeu designação como delegado no Piauí do Instituto
de Cultura Americano, sediado em Montevidéu, no Uruguai [...]”. (O LIBERAL. Teresina, p. 2, 20 mar. 1969).
307
A descrença manifesta-se em variados contextos. Em uma de suas supostas tentativas de candidatar-se a
Academia Piauiense de Letras, constrói-se uma analogia entre o escritor e o Barão de Domit. “[...] O escritor J.
Miguel de Matos, ao que se sabe, já se diz candidato a vaga na Academia deixada pelo Dr. Elias Oliveira. Dizem
as candinhas que quando o discípulo do Barão de Domit ouviu a notícia do falecimento do mestre juris consulto,
deu um salto e ficou gritando: estou na academia, estou na academia...???... [...]” (O ESTADO. Teresina, p. 2, 23
jun. 1972). Já no contexto de sua desfiliação ao MDB, discutida anteriormente, afirma-se que o misterioso
presidente saiu em defesa do escritor: “[...] O famoso Barão de Domit [...], presidente do Instituto de Cultura
Americana, entidade que é representada no Piauí pelo acadêmico J. Miguel de Matos, enviou à direção do MDB
139

Entre os anos de 1965 e 1967, J. Miguel de Matos aproximou-se do grupo denominado


Círculo Literário Piauiense (CLIP). Este grupo não se constituiu como uma escola ou geração
literária, com objetivos artísticos definidos, referências ou temas em comum. Tratava-se de uma
articulação entre variados agentes culturais de Teresina com o intuito de movimentar a cultura
local que, segundo eles, estava envolta em um vazio.308 Criticavam a inércia da Academia
Piauiense de Letras e a falta de comprometimento dos escritores piauienses que se projetavam
fora do Estado. Para estimular as práticas culturais, os membros do Círculo Literário Piauiense
realizavam atividades diversas. Reuniões e debates nas residências, visitações a escolas,
realização de saraus e recitais em espaços públicos, publicação de livros em forma de coletâneas
e lançamento de jornal próprio foram algumas das atividades por ele promovidas.
Em 1965, em virtude de sua colaboração nos jornais, J. Miguel de Matos era um escritor
com certo reconhecimento social. Nas fontes pesquisadas para este texto, nesta época, este ainda
não manifestava o interesse em participar das instituições culturais existentes no Estado. Tal
como os clipianos, o soldado-escritor ressentia-se das dificuldades impostas aos agentes
culturais no Piauí no que diz respeito à edição, circulação e consumo de seus produtos. Aspirava
à construção de um público consumidor para os produtos culturais e desejava maior apoio do
poder público. Os interesses em comum, se não levaram a uma participação efetiva deste
escritor nas promoções do Círculo Literário Piauiense, certamente garantiam o reconhecimento
recíproco de seus esforços.309 Em 1967, dois anos após suas primeiras atividades, o grupo
organizou a cerimônia que oficializou suas práticas. Rememorando este momento, um de seus
idealizadores relatou

O CLIP (Círculo Literário Piauiense) foi constituído com os seguintes


escritores, poetas, romancistas, contistas, jornalistas, historiadores, cronistas
e teatrólogos: Herculano Moraes (presidente), Osvaldo Lemos (vice-
presidente), Hardi Filho (secretário), Francisco Miguel de Moura (tesoureiro)
e os demais membros: Geraldo Borges, Castro Aguiar, João Henrique Sousa,
Tarciso Prado, Benoni Alencar, Honorato Rocha, Raimundo Vilarinho,
Cacilda da Mata, Rosa Maria Castelo Branco, Joaquim Soares, Wagner Lemos

local nota de protesto por haver aceito o pedido de desligamento das fileiras do partido do novelista de “Brás da
Santinha”. O Barão, que reside em qualquer parte do Brasil, chegou a ameaçar o MDB [...]” (O ESTADO.
Teresina, p. 11, 23 maio 1975).
308
“[...] era urgente a presença de um ‘grupo’, ‘movimento’, ‘Círculo’ (qualquer que fosse a rotulagem) capaz de
abrir novas opções, propor modelos, oferecer enfim perspectivas para que a criação literária não ficasse estagnada,
não repetisse o imenso vazio do começo do século, nos anos 30. Vieram os recitais no Teatro de Arena único local
para apresentações artísticas existentes na época, os debates nas residências de intelectuais, os primeiros frutos de
um trabalho organizado começavam a sair nas páginas dos também incrédulos veículos de comunicação [...]”
(MORAES, Herculano. Onze anos depois. O Estado, Teresina, p. 8, 19-20 set. 1976).
309
“[...] dali partiram seus fundadores para a integração com os que vinham, mais novos ou mais velhos, até com
pessoas que aspiravam a Academia Piauiense de Letras, como J. Miguel de Matos, assunto sobre o qual os clipianos
nem pensavam para si, mas também não detestavam [...]” (MOURA, Francisco Miguel de. Literatura do Piauí.
Teresina: Academia Piauiense de Letras, 2001. p. 187).
140

e Francisco C. Viana. Ao todo, 16 fundadores. A diretoria foi empossada logo


em 9 de abril do mesmo ano de 1967, com festa no Teatro de Arena, na Praça
Mal. Deodoro, a cujos eventos compareceram as seguintes autoridades: J.
Miguel de Matos, Nerina Castelo Branco, Lucimar Ferreira Sobral, Pedro
Lemos e Jofre do Rego Castelo Branco, respectivamente, escritor, acadêmica
da APL, Gerente do Banco do Brasil, Delegado Regional do Trabalho e
Prefeito Municipal de Teresina. Muita gente, curiosos, estudantes,
professores, poetas iniciantes estiveram presentes, lotando o teatro recém-
construído. Na ocasião, além dos discursos de praxe, houve os seguintes
lançamentos: Nº 1 (que viria a ser o único) do “Jornal do CLIP” e o livro de
contos “Flagrantes da Vida”, de João Henrique Sousa, e a declamação de
poemas de Hardi Filho, Herculano Moraes, J. Miguel de Matos e por quem
mais quis fazê-lo. O acontecimento foi registrado pelo jornal “O Dia”, na sua
primeira edição.310

O lugar de destaque ocupado por J. Miguel de Matos nesta solenidade reflete sua
penetração no cenário cultural da época. Os estranhamentos que posteriormente ocorreram entre
o escritor e Herculano Moraes, Francisco Miguel de Moura311 e Hardi Filho,312 os três principais
nomes do Círculo Literário Piauiense, e sobre os quais falaremos adiante, não obscurecem os
momentos em que estes se apoiaram mutuamente, compartilhando aspirações e dificuldades.
Data de 1972 as primeiras referências sobre a participação de J. Miguel de Matos como
sócio efetivo do Instituto Histórico e Geográfico do Piauí (IHGP).313 Seja pela ausência de
fontes em intervalos pontuais desta pesquisa, seja pela escassa memória interna desta
instituição, não sabemos precisar quando se deu o ingresso. Em nível local, esta instituição atua
em consonância com o Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, criado sob os auspícios de
D. Pedro II em 1838.314 Os estatutos da derivação piauiense afirmam que sua finalidade é

310
MORAES, Herculano (org.). CLIP: 40 anos de resistência: memória histórica. Teresina: [s. l.], 2007. p. 48.
311
Francisco Miguel de Moura nasceu em Picos em 1933. Atuou profissionalmente como bancário. Na seara
cultural, destaca-se como poeta, ensaísta, jornalista e crítico literário. Um dos fundadores do Círculo Literário
Piauiense e da União Brasileira dos Escritores – secção Piauí. Foi eleito para cadeira número 8 da Academia
Piauiense de Letras em 1990. Editou a revista Cirandinha, organizou antologia Piauí: terra, história e literatura,
além de obras como Areias, Pedra em Sobressalto, Os Estigmas, Literatura do Piauí e Linguagem e Comunicação
em O.G. Rego de Carvalho.
312
Francisco Hardi Filho nasceu em Fortaleza em 1934 e faleceu em Teresina em 2015. Funcionário público,
jornalista e poeta. Premiado como Intelectual do Ano de 1986 pela União Brasileira dos Escritores – secção Piauí,
instituição que ajudou a criar e da qual foi presidente. Um dos fundadores do Círculo Literário Piauiense. Foi
secretário executivo do Projeto Petrônio Portela, chefe de gabinete da Fundação Cultural do Piauí. Em 1989, tomou
posse na cadeira 21 da Academia Piauiense de Letras. Escreveu Cinzas e Orvalhos, Gruta Iluminada, Suicídio do
Tempo, entre outras obras.
313
A nomenclatura da instituição reflete suas fases. Em texto publicado no número 5 da revista deste instituto,
afirma-se que sua história abrange três fases: “[...] a) fase de ouro – 1918-1922 (Instituto Histórico, Antropológico
e Geográfico Piauiense); b) decadência - 1928-1971 (Instituto Histórico, Antropológico e Geográfico Piauiense)
com duas sérias, mas infrutíferas, tentativas de soerguimento e c) ressurgimento – 1972-1974 (Instituto Histórico
e Geográfico Piauiense) e Instituto Histórico e Geográfico do Piauí [...]” (REVISTA DO INSTITUTO
HISTÓRICO E GEOGRÁFICO DO PIAUÍ. Teresina, n. 5, p. 3, dez. 1974).
314
“[...] No dia 23 findante, na praça da Camara Legislativa do Estado, reuniram-se diversos cavalheiros da
sociedade theresinense que ali foram a convite do snr. dr. Antônio Carlos Simoens da Silva, presidente do Instituto
Historico e Geographico Fluminense e vice-presidente do Instituto Histrocio e Geographico Brasileiro, sob
proposta do mesmo e com aceitação unanime e de todos os presente, foi criado e instalado, no Piauhy, o Instituto
141

“cultivar e incentivar o estudo e a pesquisa da história, geografia e ciências afins, em geral, e


especialmente com referência ao Estado do Piauí”.315 É uma instituição privada, fundada em
1918 por nomes como Abdias Neves, Clodoaldo Freitas, Anísio Brito e Benjamin Moura
Baptista, alguns dos quais contribuíram também para a criação da Academia Piauiense de
Letras. Em 1921, o instituto teve sua finalidade pública reconhecida.
Para colocar em prática sua missão, o Instituto Histórico e Geográfico do Piauí deveria
realizar reuniões mensais, manter comissões científicas permanentes para o estudo da história,
geografia e temas pertinentes à realidade piauiense, disponibilizar em sua sede uma biblioteca,
arquivo e museu e publicar uma revista, denominada Revista do Instituto Histórico e
Geográfico Piauiense. Ainda segundo os estatutos, o instituto seria composto por 50 sócios
efetivos com direito a voto, aceitando-se também sócios correspondentes, honorários,
colaboradores e beneméritos.316 O ingresso se daria por meio de proposta de um sócio efetivo
aprovada em reunião ordinária. Os sócios efetivos deveriam ser residentes no Piauí e, no ato de
sua posse, ofertariam uma joia à agremiação passando também a contribuir mensalmente para
sua manutenção. Aqueles que deixassem de colaborar por um período estipulado, seriam
eliminados do quadro do sodalício.
A coexistência de instituições com objetivos afins, a exemplo da Academia Piauiense
de Letras, o compartilhamento de sócios entre estas, e a determinação de pagamento de
mensalidades em cenário cultural restrito possivelmente contribuíram para a trajetória incerta
deste instituto. Tomando a Revista do Instituto Histórico e Geográfico do Piauí como indicativo
de suas atividades, identificamos que o número 1 de sua revista circulou em 1920, o número 2
veio a público em 1922, por ocasião do centenário da Independência do Brasil. O número 3
circulou apenas em 1972, fazendo alusão às comemorações do sesquicentenário da
Independência.317 Ainda durante a gestão do governador Alberto Silva, foram publicados mais

Histórico, Anthropologico e Geographico Piauhyense, tendo sido aclamada a seguinte directoria: Dr. Eurípedes de
Aguiar – Pres. honorario. Dr. Hygino Cunha – Presidente effectivo. Dr. Celestino Filho – Vice-Presidente. Dr.
Benjamim Baptista – Secretario Geral. Dr. Sotero Vaz da Silveira – 1º Secretario. Dr. Simplício Mendes –
Thesoureiro. Dr. Valdivino Tito – Orador. Dr. João Pinheiro – Bibliothecario. [...]” (REVISTA DO INSTITUTO
HISTÓRICO E GEOGRÁFICO DO PIAUÍ. Teresina, n. 5, p. 4, dez. 1974).
315
REVISTA DO INSTITUTO HISTÓRICO E GEOGRÁFICO DO PIAUÍ. Teresina, n. 3, p. 43, dez. 1972.
316
Os estatutos publicados no número 6 da Revista do Instituto Histórico do Piauí apresentam nova redação: “[...]
Art. 3º - O INSTITUTO será constituído de sócios efetivos, honorários, beneméritos, cooperadores,
correspondentes e vitalícios. I – Efetivos, em número de 40 (quarenta), os que, por proposta escrita da Comissão
de Admissão de Sócios forem aceitos pela Diretoria do Instituto, pagarem a jóia estipulada e cumprirem as demais
obrigações sociais [...]” (REVISTA DO INSTITUTO HISTÓRICO E GEOGRÁFICO DO PIAUÍ. Teresina, n. 6,
p. 8, jul. 1974).
317
As comemorações em torno dos 150 anos da Independência do Brasil contaram com atos cívicos e atividades
culturais em todo o país. No Piauí, além da programação estabelecida pelo governo federal, o governador Alberto
Silva instituiu o concurso literário O Piauí nas Lutas pela Independência, autorizou a construção do monumento
142

três números da Revista e o volume 7 foi publicado apenas em 2018. Por estas informações,
percebemos que a prática deste sodalício está circunscrita a momentos de celebrações de
efemérides ou quando há mecenato estatal para suas atividades. 318
Como membro do Instituto Histórico e Geográfico do Piauí, J. Miguel de Matos inseriu-
se no projeto de construção da memória piauiense. Após seu ingresso no sodalício, suas colunas
passaram a ser, quase sempre, assinadas com o distintivo “do Instituto Histórico e Geográfico”.
Publicou nas revistas 5 e 6, respectivamente, os perfis biográficos de Rui Barbosa e Da Costa
e Silva. Como sócio efetivo, protagonizou a indicação do jurista Thyrso Ribeiro Gonçalves para
a entidade. Participou da diretoria entre os anos de 1974 e 1978, período no qual Josias Clarence
Carneiro da Silva foi presidente da instituição.

Figura 3 – Visita de D. Pedro de Orleans e Bragança ao Piauí, 1975319

Fonte: REVISTA DO INSTITUTO HISTÓRICO E GEOGRÁFICO DO PIAUÍ. Teresina, n. 6, p. 7, jul. 1975.

Heróis do Jenipapo, incentivou peças publicitárias, além de apoiar a publicação de textos e revistas sobre o tema. A
edição do número 3 da Revista do Instituto Histórico e Geográfico do Piauí faz parte destes esforços.
318
Uma das estratégias adotadas pelas instituições culturais do período, em busca de visibilidade e aproximação
com o poder público era a cooptação de agentes políticos para seus quadros. Em 1972, o Instituto Histórico e
Geográfico do Piauí convidou Armando Madeira Basto, chefe de gabinete do Governo do Estado, para ingressar
na instituição. Em texto publicado na revista da agremiação, o convidado registra esse momento: “[...] Há poucos
meses recebi convite – para mim estranho e até insólito: o professor Josias Clarense desejava que eu ingressasse
no Instituto. Recusei – que historiador não sou – ai de mim! Parece, todavia, que houve mancomunação – de Josias,
Celso Pinheiro Filho e outros amigos e no Instituto me inseriram [...]” (REVISTA DO INSTITUTO HISTÓRICO
E GEOGRÁFICO DO PIAUÍ. Teresina, n. 3, p. 3, nov. 1972). Apesar do tom desinteressado de Armando Madeira
Basto, este foi empossado no Instituto Histórico e Geográfico do Piauí e, mais tarde, na Academia Piauiense de
Letras.
319
Da esquerda para direita, temos: Judith Santana, Mons. José Luís Barbosa, Hermógenes Carvalho, Alcides
Nunes, Delfina Boavista, Haroldo Amorim, Josias Clarence Carneiro da Silva, D. Pedro de Orleans e Bragança,
James Azevedo, Luís Lopes Sobrinho, J. Miguel de Matos, José Vidal de Freitas, Benjamim Carvalho, José Gayoso
Freitas e Vicente Ribeiro Gonçalves.
143

A relação entre J. Miguel de Matos e Josias Clarence merece comentários de nossa parte,
pois delineia traços de suas personalidades e são indicativas dos jogos de poder que permeiam
o cenário cultural do Piauí. Como dito anteriormente, Josias Clarence colaborou de maneira
decisiva nas campanhas de J. Miguel de Matos para a Academia Piauiense de Letras, chegando
inclusive, a publicar a genealogia do soldado-escritor.320 O primeiro estranhamento entre estes
ocorreu em 1974 quando competiram por indicação para a Secretaria de Cultura.321 Já em 1975,
Josias Clarence foi eleito para a cadeira 36 da Academia Piauiense de Letras contando com
voto de J. Miguel de Matos. Em 1976, J. Miguel de Matos foi premiado no concurso
comemorativo do centenário de Abdias Neves promovido pela Fundação Universidade Federal
do Piauí. Por este concurso, recebeu em 1977, o “Prêmio Abdias Neves” e sua monografia foi
publicada com o título Evocação de Abdias Neves. A obra é um perfil biográfico acrescido de
comentários sobre suas obras. Livro pronto, J. Miguel de Matos presenteou o presidente do
Instituto Histórico e Geográfico do Piauí com um exemplar. Dias depois, em entrevista ao jornal
O Dia, Josias Clarence teria criticado o livro de J. Miguel de Matos, afirmando que poucas
páginas haviam sido efetivamente escritas pelo premiado.
Evocação de Abdias Neves segue o estilo dos demais perfis publicados por J. Miguel de
Matos: nele misturam-se dados biográficos do homenageado, o registro de sua produção
intelectual seguidos por inúmeros comentários sobre sua vida e obra, produzidos pelo biógrafo,
solicitado a estudiosos ou coletados em fontes diversas. Contudo, J. Miguel de Matos
incomodou-se com a colocação, possivelmente por esperar que seus comentaristas ressaltassem
as qualidades da obra e a dedicação de seu escritor.322 Diante disso, J. Miguel de Matos publicou

320
“[...] O escritor Josias Carneiro da Silva acaba de publicar pela Companhia Editora do Piauí “A Genealogia de
J. Miguel de Matos”. Trata-se de uma obra de alta significação, não apenas por mostrar as raízes de um dos nossos
mais festejados escritores, mas sobretudo por ser a primeira obra, desta natureza, que se publica em terras
piauienses. Josias Carneiro da Silva faz um estudo sério dos ancestrais do autor de “Braz da Santinha” ao tempo
em que vai mostrando como surgiram algumas das importantes famílias piauienses. Referindo-se à luta que se
desenvolveu entre J. Miguel e Iracema Santos Rocha da Silva o escritor mostra que eles sequer sabiam que eram
parente próximo e talvez por isso entraram na luta por uma das cadeiras da Academia Piauiense de Letras [...]”
(GENEALOGIA de J. Miguel. Jornal do Piauí, Teresina, p. 1, 10-11 set. 1972).
321
“[...] Procurou-nos o professor Josias Carneiro da Silva, para dizer que ‘não tem nenhum fundamento a
informação veiculada que eu teria forte esquema político para garantir a nomeação de J. Miguel de Matos à
sucessão de Wilson Brandão na Secretaria de Cultura, nem Miguel de Matos tem condições para isso’. Disse mais
Josias, que ‘tal informação talvez tenha partido de Pompílio Santos, ou do próprio Miguel de Matos’ – que ele
considera ‘Judas’ – mas ele ‘não admite brincadeiras de mau gosto jogando seu nome contra a Secretaria de
Cultura’, onde é exemplar funcionário. [...]” (COLUNA de Iracema. O Estado, Teresina, p. 7, 10 abr. 1974).
322
“[...] Desde o instante que ofereci ao Dr. Josias Carneiros da Silva presidente sem eleição do Instituto Histórico
e Geográfico do Piauí, um exemplo do meu livro ‘Evocação de Abdias Neves (no 1° Centenário do seu
Nascimento)’, senti logo arder o pavio da sua inveja. E, ao saber na manhã de ontem, através do telefonema de um
acadêmico, que se mostrava muito irritado, que o Dr. Josias Carneiro da Silva havia declarado ao Jornal O DIA
que, no meu livro sobre Abdias Neves só havia dez páginas de minha autoria, compreendi que ele não pôde,
embora tentasse como é de seu costume, reter o veneno que carrega, abundantemente, na alma e no coração [...]
Ferido abruptamente no meu sentimento por aquele que vinha comendo fartamente, no meu prato, bebendo no
144

uma série de textos críticos a Josias Clarence. Afirmou que este era presidente do Instituto
Histórico e Geográfico do Piauí sem ter passado por eleição. Criticou a demora do professor
em assumir a cadeira na Academia Piauiense de Letras e iniciou movimento instigando a
realização de nova eleição para a cadeira 36.
Neste debate, é interessante observar os argumentos utilizados por J. Miguel de Matos.
A amizade, o pertencimento à diretoria do Instituto Histórico e Geográfico do Piauí ou mesmo
os benefícios conquistados durante a presidência de Josias Clarence até então eram aceitos sem
se questionar os modos como este havia sido alçado à condição de presidente. Como forma de
atacar seu crítico, o soldado-escritor afirma que ele desrespeita a Casa de Lucídio Freitas ao
não marcar a data de sua posse, com isso questionando o compromisso de Josias Clarence com
a cultura local. O não-empossado justificava-se dizendo estar ocupado em virtude de pós-
graduação em curso.323 A Academia Piauiense de Letras, tal como em outros momentos, tolerou
estes atrasos. Para chamar a atenção para seus objetivos, J. Miguel de Matos dizia colocar em
prática o compromisso travado consigo mesmo no dia de sua posse, a saber, atacar as velhas
práticas acadêmicas. Nesses momentos, este fingia esquecer-se que ao longo dos anos foi
incorporando estes comportamentos corroborando, inclusive, com o ingresso de indivíduos sem
produção intelectual efetiva.324
A campanha empreendida por J. Miguel de Matos para realização de nova eleição não

meu caneco e recebendo a minha benção, só tive um caminho a trilhar: denunciar, publicamente, com a minha
tolerância finda, a falência de cultura acadêmica do Dr. Josias Carneiro da Silva e o seu descanso em assumir a
cadeira n° 36, fundada por Darcy Fontenelle de Araújo, resolvendo solicitar, ao Presidente da Academia Piauiense
de Letras, a anulação de sua eleição, realizada há mais de um ano, com ele, mesmo sendo eleito paternalmente,
deixando de cumprir, por puro desrespeito ao Sodalício, a portaria que designou a data de sua posse, limitando-se
a dizer, sempre com gracejos, que ‘ainda não é a hora’, como se ele pudesse, na sua condição apenas de eleito,
abusar dos atos da Presidência e da lei regimental da Academia [...]” (MATOS, J. Miguel de. Em defesa da
Academia. O Estado, Teresina, p. 2, 11-12 set. 1977).
323
A coluna “De leve” registra: “[...] Que o historiador Josias Carneiro somente assumirá sua cadeira na Academia
Piauiense de Letras, daqui a dois anos, quando concluirá mais um mestrado que inicia amanhã na Universidade do
Maranhão”. (O ESTADO. Teresina, 7 out. 1977. De leve, p. 33).
324
Em seu primeiro discurso como acadêmico imortal, J. Miguel de Matos fez o elogio fúnebre de Armando
Madeira, falecido em 1973. Neste discurso, fez a memória do jurista destacando sua atividade intelectual.
Aproximando-se do fim da saudação, o escritor lança a campanha de Armando Madeira Basto, sobrinho do
falecido e chefe de gabinete do governador para a Academia Piauiense de Letras. O parentesco e a atuação política
deste falaram mais alto que as qualidades literárias defendidas pelo aspirante à imortalidade, J. Miguel de Matos:
“[...] Encerrando esta oração necrológica [...] expresso em nome da Academia Piauiense de Letras, os sentimentos
condolentes de todos os imortais, à nobre e ilustre família do insigne morto, na pessoa do Doutor Armando Madeira
Basto, membro do Instituto Histórico e Geográfico Piauiense, sobrinho do último e único ocupante da cadeira
número 27, em que ele bem que poderia ter assento, já pelos liames do parentesco, já pela invejável formação
cultural que possui pelo longo mister de jornalista, já – sobretudo – pelo acendrado amor à Casa de Lucídio Freitas,
que tem recebido dele, silenciosamente, as maiores demonstrações de apreço, de respeito, de admiração, de
acolhimento e de carinho [...]” (MATOS, 1980, p. 78, grifo no original). Interessante destacar também que quando
J. Miguel de Matos cobrava que Josias Clarence Carneiro da Silva tomasse posse na Academia Piauiense de Letras,
o próprio Armando Madeira Basto e José Camilo da Silveira, reitor da Fundação Universidade Federal do Piauí,
também ainda não haviam se oficializado sua posse na instituição.
145

representa um compromisso com a instituição, mas sim uma retaliação pelo comentário
indesejado à sua obra. Josias Clarence evitou alimentar esta discussão e em sua única
manifestação reafirmou os motivos para sua eleição para Academia Piauiense de Letras e
minimizou a importância da genealogia que escreveu sobre J. Miguel de Matos. Listou
personagens contrários aos escritos e aos comportamentos do soldado-escritor além de acusá-lo
de ingratidão, ao relembrar como comprometeu-se com sua eleição para a Casa de Lucídio
Freitas.325 Questionou o pertencimento deste ao Instituto Histórico e Geográfico do Piauí e
revelou constrangimentos em relação à atuação de J. Miguel de Matos na diretoria da instituição

Fui eleito para APL por minha atuação no campo das artes plásticas e da
historiografia. [...] O ingresso de intelectuais ou não para APL é feita através
de eleição para o Instituto o processo diversifica-se, convida-se os cidadãos
conforme sem mérito pessoal. Agora pergunto eu, o que entende J. Miguel de
Matos de história e geografia para pertencer a entidade? Ele nem sabe bem
onde nasceu se em Floriano ou em Timon? [...] Coloquei-o sem eleição no
quadro social de Instituto Histórico e Geográfico enfrentando uma oposição
de 98% dos membros de entidade, pois ninguém o quer junto de si, ninguém
o estima. Coloquei-o ainda mais na Diretoria, no cargo de 1° Tesoureiro e vi-
me forçado pelas circunstâncias, embora constrangido, a rebaixá-lo para 2°
Tesoureiro pelas razões que ele não ignora. Não mais voltarei ao assunto.326

O contra-ataque de Josias Clarence não finda as provocações de J. Miguel de Matos na


imprensa local, contudo o debate foi se arrefecendo.327 Da contenda entre esses dois agentes
culturais, destaca-se os usos particulares que elaboram em torno do pertencimento a
instituições. Revela-se o desrespeito a estatutos e as camaradagens existentes entre os sujeitos
que, quando beneficiados, relevam mutuamente suas más-práticas. Não nos cabe questionar a
legitimidade dos lugares sociais ocupados por estes indivíduos. Contudo, episódios como este
nos ajudam a perceber como no Piauí da década de 1970, as críticas a textos e ideias eram
traduzidas como ataques pessoais e como tal deveriam ser rebatidas. A suposta imagem
maculada escamoteia as discussões sobre a mediocridade dos intelectuais que compõem as
instituições culturais.

325
Josias Clarence lista o saldo de seu apoio a J. Miguel de Matos: “[...] uma campanha gigante da aproximação e
relacionamento entre intelectuais, centenas de litros de gasolina e o desgaste de meu carro e um impressionante
saldo humano de 9 desafetos [...]” (SILVA, 1977, p. 2).
326
SILVA, 1977.
327
J. Miguel de Matos ainda provoca Josias Clarence ao afirmar: “[...] A acusação do senhor Josias (Clarence)
Carneiro da Silva, assacada contra a minha pessoa, dizendo que me pôs na 2ª Tesouraria do Instituto Histórico e
Geográfico do Piauí, como se desconfiasse da minha honestidade, tirando-me a 1ª Tesouraria, faz-me lembrar
daquele diálogo do Diretor de um jornal com o seu Redator: - Olhe, quero que o senhor escreva uma nota
liquidando com aquele sujeito, uma de rachar... Redator: - Mas o homem não tem nada que se possa atacar. Já
andei de seca em meca, e não achei nada que pudesse macular a dignidade do homem... Diretor: - Pois então diga
que ele é ladrão... Só dessa maneira poderia o senhor Josias (Clarence) Carneiro da Silva, que não tem moral nem
valor cultural para ser empossado na Academia Piauiense de Letras, tentar macular a minha dignidade [...]” (O
ESTADO. Teresina, p. 3, 24 set. 1977).
146

A qualidade literária, a produção intelectual consistente, a atuação cultural efetiva


contam menos que o ego ferido e as sensibilidades. O meio cultural piauiense emerge como um
espaço em que a atuação intelectual e artística fica comprometida pela ação de sujeitos que,
participando de instituições culturais, priorizam seus interesses e os de seu grupo. Em A
Economia das Trocas Simbólicas, ao discutir as instâncias que produzem legitimidade e
consagração a sujeitos e instituições, Pierre Bourdieu afirma que estas práticas apontam para as
cooptações existentes no mercado de bens simbólicos. O pertencimento a academias de letras
ou sociedades eruditas revelam relações objetivas entre os produtores culturais e as instituições
às quais pertencem. A cooptação refletida na aceitação ou na sujeição a práticas, a priori
condenadas, reflete as relações de força entre os indivíduos, as instituições e os poderes
constituídos.328
Outra instituição cultural da qual J. Miguel de Matos fez parte foi a União Brasileira de
Escritores – secção Piauí (UBE-PI). A nível nacional, a União Brasileira de Escritores atua
desde 1958 em prol da defesa de direitos dos escritores, defesa da cultura e democratização do
acesso à informação. Em 21 de outubro de 1973, a seccional desta entidade foi fundada no Piauí
por agentes culturais remanescentes do Círculo Literário Piauiense, como Hardi Filho e
Francisco Miguel de Moura, e por escritores institucionalizados como Celso Barros Coelho e
J. Miguel de Matos. Apesar de sua trajetória incerta, a União Brasileira dos Escritores – secção
Piauí promoveu vários encontros de escritores no Estado, instituiu o prêmio Intelectual do Ano,
promoveu debate sobre inserção da literatura piauiense nos vestibulares locais e, na década de
1980, deu início às discussões que culminaram na obrigatoriedade do ensino da literatura
piauiense nas escolas públicas e privadas no Estado.329
J. Miguel de Matos participou desta entidade desde sua gênese. Compôs a primeira
diretoria, eleita em dezembro de 1973.330 Em 1978, após período de inatividade, tentou-se
reorganizar a instituição, e J. Miguel de Matos reafirmou seu pertencimento. 331 Após novo
período sem atividades, em 1980, J. Miguel de Matos foi cogitado para assumir a presidência
do órgão, porém declinou da oportunidade ao perceber que a União Brasileira dos Escritores –

328 BOURDIEU, 2011, p. 118-119.


329 PIAUÍ. Lei Ordinária 5.464, de 11 de julho de 2005. Dispõe sobre o ensino de literatura brasileira de expressão piauiense,
no ensino fundamental e médio, nas escolas das redes pública estadual e privada, no Estado do Piauí. Teresina: Palácio de
Karnac, 2005.
330 “[...] Foi eleita na última reunião da União Brasileira de Escritores do Piauí, a seguinte Chapa, para o biênio 74/75: Presidente

– José Magalhães da Costa, 1º Vice – A. Tito Filho, 2º Vice – José Vidal de Freitas, 1º Secretário – Hardi Filho, 2º Rivaldo
Dawsin, 1º Tesoureiro – Francisco Miguel de Moura, 2º - Aury Lessa. Diretores – Celso Barros Coelho, Josias Carneiro,
Herculano Morais, J. Miguel de Matos e Deoclécio Dantas. Conselho Fiscal – William Palha Dias, Balduino Barbosa de Deus,
Lili Castelo Branco e Iracema Santos Rocha da Silva [...]” (O ESTADO. Teresina, 4 dez. 1973. Coluna de Iracema, p. 6).
331 “[...] Está sendo formado o quadro social da União Brasileira de Escritores no Piauí. Os últimos que assinaram a proposta

de inscrição: José Patrício Franco, Celso Barros Coelho, e J. Miguel de Matos [...]” (SANTOS, Pompílio. Cultura hoje. O
Estado, Teresina, p. 9, 1 ago. 1978).
147

secção Piauí não possuía reservas financeiras, 332 o que, sem dúvida, impactaria no
desenvolvimento das atividades. Em 1982, Pompílio Santos, presidente da instituição
conclamou os sócios a participar de reunião para organizar Encontro de Escritores do
Norte/Nordeste a ser realizado no Piauí. Em 1988, a seccional piauiense iniciou campanha
visando o ensino de literatura piauiense nas escolas. 333

Figura 4 – Arquivo UBE334

Fonte: O ESTADO. Teresina, p. 10, 28 fev. 1984.

332
“[...] O acadêmico J. Miguel de Matos foi convidado a assumir a presidência da União Brasileira de escritores,
secção do Piauí. Jota antes foi à tesouraria da entidade (escritora Judith Santana) e depois disse não ao convite. É
que a tesouraria estava zerada [...]” (O ESTADO. Teresina, p. 3, 26 mar. 1980).
333
“[...] Durante reunião a diretoria da União Brasileira de Escritores (UBE-PI) decidiu coordenar uma campanha
para a inclusão, no texto da Constituição Estadual; da obrigatoriedade da disciplina Literatura Piauiense nos
currículos de primeiro e segundo graus e no curso superior, objetivando maior difusão dos valores da inteligência
piauiense. O projeto tem três etapas, segundo os escritores. Num primeiro momento a realização de contatos com
todas as instituições e pessoas interessadas no assunto, órgãos ligados à cultura, professores de letras das
universidades, alunos, intelectuais e líderes de todos os segmentos da sociedade; em seleção de autores e textos,
indicação de livros de pesquisa e constituição de grupos para a manutenção da ideia. Num plano final os escritores
visitarão pessoalmente cada deputado pedindo o projeto. O escritor Hardi Filho disse que a luta pela inclusão da
disciplina Literatura Piauiense nas escolas oficiais é antiga. ‘Tem mais de dez anos, quando intelectuais como
Herculano Moraes, Francisco Miguel de Moura, Magalhães da Costa, Tito Filho e J. Miguel de Matos levantaram
verdadeiras trincheiras em defesa da tese’. A saída, segundo os escritores, é incluir no texto constitucional a
obrigatoriedade da disciplina. [...]” (UBE quer literatura nos colégios. O Estado, Teresina, p. 5, 3 jul. 1988).
334
Questionando mais um dos momentos de ausência de atividades da instituição, o jornal reproduz registro de
reunião realizada em 1982 e diz “[...] No auditório Herbert Parentes Fortes, em Teresina, a União Brasileira de
Escritores (Piauí), numa de suas raras (e difíceis) reuniões [...]”. Na imagem aparecem de pé, da esquerda para a
direita: Hardi Filho, Raimundo Cazé, Jamerson Lemos, Audálio Fortes, Francisco Miguel de Moura, Rubervan Du
Nascimento e Herculano Moraes. Sentados, da esquerda para a direita: Kennard Kruel, J. Miguel de Matos,
Pompílio Santos (presidente, à época) e José Fortes Filho” (O ESTADO, Teresina, p. 10, 28 fev. 1984).
148

O inconstante apoio do poder público, o diminuto público consumidor de literatura e a


concorrência de outras instituições também impactaram na trajetória desta instituição. Entre
seus primeiros sócios, estão escritores já reconhecidos à época e escritores que posteriormente
ingressarão em instituições como a Academia Piauiense de Letras. No que diz respeito a J.
Miguel de Matos, seu envolvimento nas atividades propostas pela entidade reforça sua imagem
como sujeito interessado no desenvolvimento cultural do Estado. Tal como outros escritores e
outras entidades culturais, estes continuam dependentes de recursos externos, públicos ou
privados, para o desenvolvimento de suas atividades. Apesar de suas dificuldades, a União
Brasileira dos Escritores – secção Piauí é mais um dos espaços possíveis de legitimação de
práticas culturais e consagração de trajetórias intelectuais.
Além de participar de instituições estaduais, J. Miguel de Matos marcou presença em
pelo menos uma agremiação cultural das sub-regiões do Piauí: o Instituto Histórico de Oeiras,
na modalidade de sócio correspondente. Fundado em 06 de janeiro de 1972 e reconhecido no
ano seguinte como instituição de utilidade pública, este instituto objetiva a discussão da história,
geografia e patrimônio cultural da cidade de Oeiras, primeira capital do Piauí. 335 Realiza
atividades culturais, homenageia com a medalha do mérito Visconde da Parnaíba aqueles que
se destacam nas atividades culturais e edita uma revista, intitulada Revista do Instituto Histórico
de Oeiras. Sócios correspondentes são aqueles indivíduos que, residindo fora da sede da
entidade, mantem certa proximidade com ela, seja através de trocas de correspondências,
enviando textos para publicação ou divulgação nas cidades em que residem das atividades
realizadas pela instituição com a qual se correspondem. Considerando os textos de J. Miguel de
Matos que compõem o corpus documental desta pesquisa, não localizamos nenhum comentário
deste escritor sobre as atividades do instituto oeirense. Em contrapartida, em apenas um dos
números disponíveis para análise das Revistas do Instituto Histórico de Oeiras, se faz referência
ao soldado-escritor, registrando sua visita à instituição em solenidade de lançamento de livro
do escritor William Palha Dias.
A participação de J. Miguel de Matos em instituição interiorana chama atenção para o
processo de descentralização das agremiações culturais no Piauí. Nas décadas de 1970 e 1980,
o surgimento de outras duas associações foram bastante comentadas nos jornais locais: a

335
São sócios fundadores do Instituto Histórico de Oeiras: Adão Wallace Luz Mendes, Alina Rosa Ferraz de
Carvalho, Antônio Santana Ferreira de Carvalho, Auri da Silva Dias, Dagoberto Ferreira de Carvalho Júnior, David
Ângelo Leal, Gardênia Portela Lopes, José Expedito de Carvalho Rego, José Gutemberg Ferreira Soares, Leonilia
de Carvalho Rêgo, Leopoldo Portela Barbosa, Maria do Espírito Santo Rêgo, Petronila Rêgo Amorim, Possidônio
Nunes de Queiroz, Raimundo da Costa Machado e Wartene Portela Nunes. O quadro de sócios do instituto
contempla sócios fundadores, efetivos, beneméritos, honorários e correspondentes.
149

Academia de Letras do Vale do Longá (ALVAL), fundada em 1978, e Academia Parnaibana


de Letras (APAL), ou Casa de João Cândido, fundada em 1983. A primeira congregava homens
de letras das cidades de Barras, Batalha e Esperantina, já a segunda contemplava os escritores
e agentes culturais de Parnaíba. Estas academias, articuladas com as já citadas ao longo deste
tópico e a Academia Piauiense de Letras, objeto de discussão no capítulo seguinte, surgiram
com o objetivo de movimentar o cenário cultural em todo Estado, estimular sociabilidades
intelectuais e promover visibilidade aos escritores e suas produções. Foram idealizadas como
espaços nos quais os valores literários não seriam afetados pelos interesses e disputas
políticas.336 Contudo, se considerarmos que o poder público estadual constituía-se como
principal mecenas, as disputas por recursos públicos para realização de eventos, aquisição de
sede própria e publicação de revista institucional eram inevitáveis.
Apesar disso, entre as agremiações pouco ocorriam competições simbólicas no sentido
de evidenciar a proeminência de umas em relações a outras. Para intelectuais, literatos e agentes
culturais, estas instituições apresentam-se como espaços de solidariedade e resistência diante
de um cenário de desestimulo à prática cultural. A Academia Piauiense de Letras, em virtude
de sua longevidade, servia como modelo do que deveria ser imitado, e, do que deveria ser
evitado. O simbolismo da Casa de Lucídio Freitas se fazia sentir nas solenidades de fundação,
na escolha dos sócios correspondentes e, em muitos casos, na eleição de imortais para estas
instituições.337 A influência do Círculo Literário Piauiense também se fez sentir nestes projetos.
Embora as ações deste grupo tenham sido descontinuadas, as ações individuais ou de pequenos
subgrupos daqueles que idealizaram esta agremiação, foram as motivadoras para o surgimento
de novos espaços culturais.338
Pierre Bourdieu denomina esses espaços de reprodução e consagração de um
determinado tipo de cultura como sociedades de admiração mútua.339 Quando nos
questionamos sobre os interesses que atravessam o surgimento de instituições culturais em um

336
“[...] A região do Vale do Longá sempre representou para o Piauí uma fonte inesgotável de valores humanos e
culturais [...] O que pretendemos é uma Academia com critérios, objetivos e fins literários. Preocupa-nos a isenção
política, pois pretendemos uma casa em que valores políticos não se confundam com valores culturais, nem que o
ingresso nessa mesma casa seja encarado como um negócio a render prestígio ou troca de favores [...] o Estatuto
[...] será rígido, procurando evitar que no futuro muita gente venha tirar proveito pessoal e político, apoiando e
impondo o ingresso de acadêmicos sem nenhum respaldo cultural, sem preparo literário e sem experiência
educacional [...]” (UMA ACADEMIA para o Vale do Longá. O Estado, Teresina, p. 7, 29-30 jan. 1978).
337
A Academia Parnaibana de Letras foi fundada por José Pinheiro de Carvalho, Fontes Ibiapina, Anchieta
Mendes, Maria da Penha Fontes e Silva, Fonseca Mendes, Alcenor Candeira Filho. O já imortal membro da
Academia Piauiense de Letras, Fontes Ibiapina, foi escolhido como seu primeiro presidente. A transferência deste
magistrado para Parnaíba impulsionou as articulações que culminaram com a criação desta instituição.
338
Herculano Moraes foi primeiro presidente da Academia de Letras do Vale do Longá com mandato entre os anos
1978 e 1983.
339
BOURDIEU, 2011, p. 107.
150

Estado pobre e com uma população que pouco conhecia e, por conseguinte, consumia de
maneira restrita os produtos culturais aqui produzidos, lembramos da discussão feita sobre
Durval Muniz sobre os processos de diferenciação entre eruditos e intelectuais. Ao mesmo
tempo que estas agremiações funcionam como ambientes de exibição para eruditos, também
projetam-se como espaços de poder utilizados por intelectuais para consolidar sua identidade e
seu lugar social nas sociedades capitalistas. Para este autor, “a construção de espaços,
instituições e rituais próprios de legitimação de seu discurso e de suas atividades [...] é um passo
decisivo para o reforço de seu próprio poder”.340
Nestas confrarias literárias, eruditos e intelectuais constroem práticas e discursos em
comum, compartilham valores artísticos e produzem identificação entre os sujeitos. Dos
confrades espera-se colaboração mútua no sentido de engrandecimento pessoal e do grupo.
Participar de institutos, círculos literários, sociedades científicas significa no mercado dos bens
simbólicas acessar espaços de consagração e legitimação, em suma, a conquista de uma
visibilidade possível.

Ao longo deste capítulo apresentamos o escritor J. Miguel de Matos em seus esforços


para construir uma imagem de si por meio de seus textos. Suas produções evidenciam um lugar
de fala específico e tentativas deliberadas de apresentar-se como intelectual empenhado e, ao
mesmo tempo, perseguido e injustiçado. No conjunto de seus textos, constrói-se uma narrativa
em que sua vida é significada como uma luta constante em busca de superação e
reconhecimento.
Tomados como construções autorreferenciais ou memórias de si, os textos de J. Miguel
de Matos nos apresentam um indivíduo que, por meio da escrita, tentou barrar o esquecimento
em torno de sua trajetória à medida que se colocou em diálogo com sujeitos e acontecimentos.
À medida que sua atividade de biógrafo revela os mecanismos de uma construção de si, sua
subjetividade produz uma narrativa que atribui sentidos à sua própria trajetória, articulando-as
às experiências da criança que cresceu sem brinquedos, do jovem perseguido por professores,
do adulto que esforça-se para adquirir erudição e que a Academia Piauiense de Letras teima em
recusar. Ao tornar-se biógrafo de si, J. Miguel de Matos evidencia aquilo que Pierre Bourdieu
denomina de ilusão biográfica, uma escrita impregnada de sentidos políticos por meio da qual
este ataca, se defende, se constrói e se reinventa.

340
ALBUQUERQUE JÚNIOR, 2005, p. 50.
151

4 ACADEMIA PIAUIENSE DE LETRAS: a instituição idealizada e vivenciada por J.


Miguel de Matos

Este capítulo apresenta a Academia Piauiense de Letras, a Casa de Lucídio Freitas,


caracterizando-a a partir de três vertentes: como uma instituição cultural voltada para o
desenvolvimento cultural e científico do Piauí, como uma instituição de saber e poder, sendo
estes marcados por disputas específicas entre seus membros e os aspirantes à imortalidade e
como uma instituição de memória, na qual os rituais que envolvem o ingresso e a atuação de
seus membros desempenham um papel importante na construção de sua identidade social e na
defesa de um cânone literário piauiense.
Nos debruçaremos sobre o entrecruzamento das trajetórias de J. Miguel de Matos e desta
agremiação centenária. Por meio dos textos de J. Miguel de Matos e seus contemporâneos
acompanhamos a transformação do soldado-escritor em candidato preterido e, posteriormente,
escritor imortal. As campanhas de 1967, 1971 e 1973 serão analisadas em suas capacidades de
forjar sociabilidades, construir reconhecimentos e ressentimentos entre J. Miguel de Matos e os
membros da intelectualidade local. Acreditamos que seus escritos, entendidos como um lugar
de memória e esforço de construção de si nos ajudam a entender as aspirações, frustrações e os
ressentimentos que envolvem este processo.

4.1 A Casa de Lucídio Freitas: um panorama de sua trajetória

Fundada em 31 de dezembro de 1917, a Academia Piauiense de Letras é a instituição


cultural mais antiga em atividade no Estado. Articulados por iniciativa de Lucídio Freitas, dez
intelectuais idealizaram em Teresina uma agremiação cultural que, seguindo os moldes da
Academia Brasileira de Letras, tinha como finalidade a cultura da língua nacional e o
desenvolvimento da literatura piauiense.341 Com uma historicidade própria, seus estatutos e
regimentos expressam como seus objetivos, formas de administração e atuação social sofreram
continuidades e permanências ao longo dos anos.
Em seus primeiros cem anos de história, a Casa de Lucídio Freitas tornou-se referência
no cenário cultural piauiense, alternando períodos de vitalidade e ostracismo. A distinção social
alcançada por meio do processo de seleção de seus membros junto a representantes de várias
áreas da intelectualidade e da vida artística local garantiram a este sodalício um lugar social

341
ESTATUTOS da Academia Piauiense de Letras. Revista da Academia Piauiense de Letras, Teresina, n. 14, p.
7-15, nov. 1928.
152

privilegiado. Com uma trajetória marcada pela defesa do patrimônio cultural, pela forte relação
com o poder estatal, por práticas simbólicas manifestas em seus rituais de posse, nas disputas
entre aqueles que desejam o ingresso na imortalidade, bem como nas críticas feitas por
aspirantes, imortais-renunciantes ou por aqueles que rejeitam as normas e os modelos
acadêmicos, é justo reconhecer que a Academia Piauiense de Letras representa um marco no
que diz respeito à atuação de literatos e intelectuais no Estado.
No Brasil, a emergência de instituições de fomento à pesquisa histórica e ao
desenvolvimento da cultura nacional remetem ao século XIX, com a fundação do Instituto
Histórico e Geográfico Brasileiro, em 1838 e Academia Brasileira de Letras, em 1897. A forte
relação de seus fundadores e sócios com o poder político, seja ele monárquico ou republicano,
bem como o tipo de cultura produzida e valorizada nestes sodalícios ajudam a entender como
estas sobreviveram ao longo dos anos, a despeito de iniciativas anteriores que, sem contar com
o mecenato estatal, esbarravam em dificuldades econômicas, editoriais e no baixo nível de
letramento e consumo cultural da população brasileira.
No caso da Academia Brasileira de Letras, a influência das práticas da Academia
Francesa, fundada em 1635 por Richelieu, cardeal e primeiro-ministro de Luís XIII, se fez sentir
desde os primórdios. No Rio de Janeiro, capital federal, a influência do modelo francês 342
reproduziu em solo brasileiro uma instituição voltada para o desenvolvimento da língua nacional,
a discussão sobre artes e ciências e, sobretudo, forjou a emergência de uma agremiação
duplamente elitista: primeiro, por selecionar seus membros entre os poucos letrados do país e
segundo, por estes serem oriundos de grupos sociais já privilegiados tais como o clero, políticos,
altos funcionários públicos e bacharéis. Celebradas em seu papel de estimular e difundir a
produção literária nacional, não se pode negligenciar que, ao reunir a elite intelectual e a elite
política do Brasil, a Academia de Letras evidencia, reproduz e aprofunda, através da cultura, as
desigualdades sociais. Os processos de seleção de seus membros e o tipo de cultura produzida e
valorizada entre estes apontam para seu caráter seletivo e excludente, mesmo entre os letrados.343

342
Ao discorrer sobre as influências da Academia Francesa no contexto da fundação da Academia Brasileira de
Letras, Alessandra El Far aponta similaridades e divergências oriundas de especificidades e interesses dos
fundadores da Casa de Machado de Assis. Entre as semelhanças apontadas estão: quantidade de sócios vitalícios,
processo de eleição interna, rituais envolvendo a posse dos novos membros, homenagens a antecessores e dever
de publicar obras de seus membros. As diferenças dizem respeito a atuação social dos imortais, exigências
específicas para ingressantes, a periodicidade e ritualística das reuniões, a vitaliciedade relativa, a composição da
diretoria e a existência da categoria de sócio correspondente. Cf.: EL FAR, 2000, p. 58-59.
343
Diversos estudos abordam a trajetória da Academia Brasileira de Letras, em perspectivas histórica, sociológica,
jornalística e humorística. Além da já citada pesquisa de Alessandra El Far, destaco: RODRIGUES, João Paulo de
Souza. A dança das cadeiras: literatura e política na Academia Brasileira de Letras (1896-1913). Campinas:
Editora da Unicamp, 2001; MONTELLO, Josué. Anedotário geral da Academia Brasileira: fundadores e patronos.
153

O modelo cultural estabelecido pela Academia Brasileira de Letras difunde-se no país


ao longo do século XX. No Piauí, em 1901, surge a primeira iniciativa de reunir escritores com
o objetivo de estimular a produção cultural local, contudo, a denominada Academia Piauiense
não resistiu à reunião inicial.344 Assim como esta, surgiram outras associações e clubes literários
como Sociedade José Coriolano, Clube 12 de Outubro e Cenáculo Piauiense de Letras que se
desarticularam ao longo dos anos, o que demonstra o alcance diminuto da produção escrita e
do consumo literário no Piauí que, a exemplo do Brasil, caracterizava-se à época como uma
“ilha de letrados num mar de analfabetos”.345
Apesar das frustrações anteriores, no último dia do ano de 1917, sob a liderança de
Lucídio Freitas reuniram-se Higino Cunha, Clodoaldo Freitas, João Pinheiro, Edison Cunha,
Jônatas Batista, Celso Pinheiro, Antônio Chaves, Benedito Aurélio de Freitas e Fenelon Castelo
Branco no Salão Nobre do Conselho de Intendência de Teresina e fundaram a Academia
Piauiense de Letras. O fato desta cerimônia ter-se realizado em importante prédio público e sua
ata de fundação registrar as providências adotadas como votação da diretoria, escolha de
patronos e proposição de novos sócios aponta que a instalação desta academia de letras refletia
articulações prévias da intelectualidade piauiense. A longevidade será o diferencial da Casa de
Lucídio Freitas em relação a outras iniciativas culturais que surgiram no Piauí ao longo do
século XX, inclusive em relação ao seu contemporâneo mais imediato, o Instituto Histórico e
Geográfico do Piauí. Essas duas instituições, idealizadas por herdeiros da elite política e
pertencentes à elite intelectual vão procurar, cada uma à sua maneira, pautar os debates em
torno da história, geografia, literatura e cultura escrita piauiense.
Todavia, convém questionar: o que motiva a criação de uma academia de letras no sertão
do Brasil, sobretudo em uma cidade à margem do processo de modernização? Os fundadores
da Casa de Lucídio Freitas, em sua maioria adeptos do Positivismo apreendido em suas
graduações na Escola do Recife, defendiam o conhecimento como pressuposto para a superação

São Paulo: Martins, 1974; JORGE, Fernando. A Academia do Fardão e da Confusão: a Academia Brasileira de
Letras e os seus “imortais” mortais. São Paulo: Geração Editorial, 1999.
344
“[...] Aos quatro dias do mês de agosto de 1901, nesta cidade de Teresina, capital do Piauí, à rua da Glória, casa
do Dr. João Pinheiro, reunidos os Srs. Hygino Cunha, Arquelau de Sousa Mendes, Luiz Evandro Teixeira,
Domingos Monteiro, João Pinheiro, Antonino Freire da Silva, Clodoaldo Freitas, Manoel Lopes Correia Lima,
João José Pinheiro e Fócion Caldas, para o fim de criarem uma sociedade intitulada Academia Piauiense, foi
resolvido, por unanimidade de votos, que ficava criada, desde hoje, a referida Academia, para o fim de examinar
e emitir parecer sobre temas, problemas e questões da atualidade; acompanhar o movimento intelectual, científico
e culto, estabelecer palestras e conferências; trabalhar pelo levantamento da instrução, máxime do ensino
profissional; publicar obras de seus sócios e tudo fazer pelo desenvolvimento e divulgação das letras piauienses
[...]” (SOARES, Nildomar da Silveira (org.) Livro do Centenário da Academia Piauiense de Letras: 1917-2017.
Teresina: Academia Piauiense de Letras, 2017. p. 46).
345
CARVALHO, José Murilo de. A construção da ordem: a elite política imperial. Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira, 2003. p. 65.
154

das desigualdades. Acreditavam que, sob a égide do cientificismo e combatendo mistificações,


o progresso material seria possível. Constituindo-se como uma instituição formada por
intelectuais dessa concepção e que apostavam na educação, na cultura, na defesa da ciência e
nas posturas éticas como forma de estimular o desenvolvimento local. Em sessão comemorativa
do primeiro ano de atividades, assim pronuncia-se seu presidente

Obscuros pioneiros, nós, sem encarar sacrifícios, sem temer apodos, sem
medir o peso das responsabilidades que tomamos, sem estardalhaço,
modestamente, como convém à nossa fraqueza, vamos levando para a frente
a nossa obra patriótica e altruística, convencidos que, dessas sementes, que
lançamos no eito, surgirá um dia, remoto embora, a floresta rumurosa e
frondejante, onde irão gozar sereno conforto as gerações que nos sucederem
para levar avante, mais perfeita e já santificada pelo tempo, a obra que
iniciamos e sustentamos, confiados que não será infecundo o nosso esforço
para o desenvolvimento intelectual do nosso sempre querido Piauí.346

A falsa modéstia que o presidente não consegue disfarçar chama atenção para as
dificuldades do cenário cultural piauiense. Fundar e manter ativa uma instituição cultural era a
forma como esses bacharéis que atuavam como magistrados, médicos, professores, jornalistas,
políticos se comprometiam com o desenvolvimento do Piauí. À medida que seus textos e suas
atuações sociais evidenciassem o zelo pelas letras e pelo desenvolvimento literário, os
potenciais artísticos e científicos do Estado seriam estimulados, contribuindo para o fim da
pobreza material e do atraso cultural.
Outra resposta possível às motivações para a criação de uma Academia de Letras no
Piauí depreende-se da trajetória de alguns dos indivíduos que impulsionaram este processo. A
transição da Monarquia para a República reorganizou as forças políticas em todo país e, como
decorrência deste processo, no Piauí, membros da família Freitas migraram para Maranhão,
Pará e Amazonas.347 O investimento na construção de si como intelectuais, a sensibilidade e
criatividade artística, o exercício de cargos públicos, sobretudo na magistratura, a colaboração
constante em jornais e folhetins inseriram Clodoaldo Freitas e seus filhos, Alcides e Lucídio,
nos círculos sociais e nas redes intelectuais do Norte e Nordeste brasileiro.348 Em seus retornos
a Teresina, definitivo ou temporário, a experiência destes como fundadores e sócios de
instituições congêneres pode ter motivado o interesse em fundar no Piauí uma instituição

346
FREITAS, Clodoaldo. Sessão Magna Comemorativa do 1ºAniversário da Fundação da Academia Piauiense de
Letras, em 30 de dezembro de 1918. Discurso proferido pelo presidente Sr. Clodoaldo Freitas. Revista da
Academia Piauiense de Letras, Teresina, v. 1, n. 1, p. 220, jun. 1918.
347
QUEIROZ, 2011.
348
Pesquisas desenvolvidas pela professora Teresinha Queiroz apresentam colaborações de Clodoaldo, Lucídio e
Alcides Freitas em jornais e revistas do Piauí, Maranhão, Pará, Amazonas e Pernambuco. Nestes estados,
participaram de movimentos culturais que deram origem às respectivas Academias de Letras.
155

destinada a reunir letrados, intelectuais e agentes culturais.


Se consideramos que membros desta família se destacavam no cenário intelectual
nordestino, a liderança no processo de fundação da Academia Piauiense de Letras pode também
ser entendida como um uso tático de suas experiências culturais. Os alijamentos profissionais e
os ostracismos políticos a qual foram submetidos na transição do século XIX para o XX, poderiam
ser minimizados ou revertidos, ao atrelarem seus nomes a uma instituição que, se tivesse êxito,
perpetuaria o nome de seu fundador e de seu primeiro presidente, respectivamente Lucídio e
Clodoaldo Freitas. Neste caso, o cultivo da língua portuguesa e a valorização da produção literária
local legitimavam um projeto cultural que, aos poucos, revestir-se-ia também de sentidos
políticos.
O relato da primeira reunião oficial da nova instituição, marcada para 24 de janeiro de
1918 apresenta-nos as articulações dos fundadores a fim de viabilizar sua existência. Após a
posse da diretoria, os sócios fundadores apresentaram suas sugestões para o preenchimento de
outras dez cadeiras. Estes indivíduos deveriam escolher os patronos de suas respectivas cadeiras
e seriam considerados empossados quando pronunciassem discurso em homenagem a estes. 349
Posteriormente, estes vinte indivíduos promoveriam a eleição dos dez membros restantes, a fim
de igualar-se ao número de sócios da Academia Brasileira de Letras. A expectativa estava na
construção de um espaço regular de sociabilidade intelectual e literária, institucionalizar um
saber sobre a cultura e a literatura piauiense e harmonizar os interesses dos homens de letras do
Estado a fim de fortalecerem-se diante de reivindicações e interesses específicos.
As exigências apresentadas nos Estatutos da Academia Piauiense de Letras previam,
inicialmente, que os acadêmicos deveriam ser “piauienses natos ou filhos de outros Estados
aqui residentes que tenham, em qualquer dos gêneros da literatura, publicado ou escrito obras
de reconhecido mérito”.350 Os candidatos seriam eleitos mediante escrutínio secreto e a vitória
seria alcançada mediante maioria simples dos votos. O acadêmico eleito faria jus a titularidade

349
Tendo a Revista da Academia Piauiense de Letras como fonte, identificamos que, entre os dez fundadores,
apenas Fenelon Castelo Branco, Higino Cunha e Antônio Chaves pronunciaram discursos em homenagem aos
patronos escolhidos para suas cadeiras. No que diz respeito à seleção dos patronos, os escolhidos foram
selecionados tomando como base a produção literária e as relações pessoais com aqueles que seriam imortalizados.
Literatos, intelectuais e políticos de destaque das gerações passadas formam, com familiares dos primeiros
ocupantes, o conjunto dos patronos da Academia Piauiense de Letras.
350
A redação deste dispositivo revela a historicidade desta instituição. O trecho citado corresponde ao primeiro
conjunto de Estatuto e Regimentos da Academia Piauiense de Letras publicado na revista número 14 (1929). Em
1942 encontramos nova redação: “[...] Só podem ser membros efetivos da Academia piauienses natos, ou brasileiros
em geral, residentes, pelo menos, há 3 anos no Estado, desde que sejam ilustres nas letras ou em gênero do saber
humano, havendo publicado ou escrito obras de reconhecido mérito [...]”. Já a redação atual admite o ingresso de
“[...] piauienses natos ou os brasileiros de outros Estados ou Territórios, com o mínimo de 10 anos de residência no
Piauí, que hajam produzido e entregue ao público obra de reconhecido valor nalgum ramo do saber humano [...]”
(REVISTA DA ACADEMIA PIAUIENSE DE LETRAS. Teresina, n. 14, set. 1929).
156

perpétua de sua cadeira, sendo-lhe vetado a renúncia ou expulsão.351 A ritualística para


renovação das cadeiras exige a comunicação do falecimento de seu ocupante, o pronunciamento
do elogio fúnebre ao extinto, a publicação e obediência aos dispositivos constantes no edital de
abertura de vaga, a eleição e posse em cerimônia pública do novo imortal, que por sua vez, deve
pronunciar discurso sobre memória dos ocupantes anteriores da cadeira. O elogio do patrono e
dos antecessores estabelece entre quem ingressa e aqueles sobre quem se fala uma filiação
literária, uma aproximação e fortalece a crença de que, tal como feito no discurso que ora se
pronuncia, este também será lembrado e imortalizado ao longo dos anos. Nesta perspectiva, a
Academia Piauiense de Letras constitui-se como uma instituição de memória, que propicia a
imortalidade a seus membros a partir da constante lembrança e valorização de seus feitos
culturais através de textos ou solenidades.
Ainda no ano de sua fundação, a Academia Piauiense de Letras lançou a primeira edição
de sua revista institucional, a Revista da Academia Piauiense de Letras. Desde seu primeiro
número, esta publicação repercute a produção escrita de seus membros, sejam textos literários,
historiográficos, filosóficos ou memorialísticos. Constitui-se como um espaço de divulgação
das letras que acolhe a heterogeneidade das produções de seus membros. Sendo uma instituição
privada e sem fins lucrativos, a verba necessária para a edição da Revista da Academia
Piauiense de Letras seria subsidiada por mecenas oriundos do poder público e privado. Em
decorrência da relevância de suas ações em seus anos iniciais e da articulação política de seus
sócios, em 1921, a Casa de Lucídio Freitas, juntamente com o Instituto Histórico e Geográfico
do Piauí, foram reconhecidos pelo Poder Executivo como instituição de utilidade pública, por
meio da lei 1001, de 4 de junho. Esse reconhecimento garantiria às duas instituições subsídios
financeiros e, por decisão dos acadêmicos imortais, os recursos destinados para esta instituição
seriam utilizados para a publicação da Revista, considerada por seus membros como o principal
instrumento de divulgação da produção escrita e do cotidiano da instituição.
Discursos de posse e recepção, textos de palestras e conferências proferidas, registro
fotográfico da instituição e um espaço dedicado à memória institucional com a atualização
constante dos nomes e dados biobibliográficos daqueles que compõem o sodalício, inseridos na
Revista, tornam-se importante fonte sobre a história deste sodalício. A irregularidade dos
repasses aludidos na legislação estadual motivou periodicidade dispersa ao longo dos primeiros

351
“[...] Perpétuo, como é o título de acadêmico, não haverá lugar para renúncia ou expulsão do seu detentor,
podendo, entretanto, na forma regimental, ser este privado de direitos por tempo determinado [...]” (REVISTA
DA ACADEMIA PIAUIENSE DE LETRAS. Teresina, n. 19, p. 119, maio 1942). Na história da instituição, José
Auto de Abreu foi personagem que renunciou à imortalidade.
157

anos. Parcerias firmadas com o poder público e privado possibilitaram seu funcionamento e a
realização de outras atividades editoriais.
As dificuldades para composição do quadro de trinta sócios logo se fizeram sentir,
reflexo do cenário educacional e da migração em busca de jovens letrados para outras regiões
do país, em busca de postos de trabalhos. Apesar do cuidado dos primeiros imortais em
delimitar a quantidade de sócios que morassem fora do Piauí a fim de viabilizar deliberações e
o bom andamento das atividades, a composição do quadro inicial teve alguns percalços 352. Na
prática, nem os dez primeiros escolhidos tomaram posse com a celeridade imaginada, muito
embora as posses efetivadas tenham movimentado o cenário cultural e repercutido nos jornais
locais.353 Falecimentos, desistências, impossibilidade de tomar posse presencialmente, 354
aceites de participação não acompanhados de cerimônias de posse 355 alteraram a formatação
imaginada para esta agremiação, sobretudo no que diz respeito à escolha dos novos membros.
A constância na realização de atividades como conferências e cerimônias de posse que

352
“[...] A Academia compõe-se de trinta membros efetivos e perpétuos, dos quais vinte, pelo menos, residentes
no Estado, e de trinta membros correspondentes com residência em outros departamentos da União e no estrangeiro
constituindo-se, desde já, com os membros que assinarem os presentes Estatutos [...]” (REVISTA DA
ACADEMIA PIAUIENSE DE LETRAS. Teresina, n. 14, p. 7, set. 1929).
353
A fim de garantir a posse de todos os seus membros, fatos inusitados acontecem, como no registro da posse de
Abdias Neves. O jornal Folha da Manhã reproduziu trecho da Revista da Academia Piauiense de Letras de 1921
sobre esse evento: “[...] Já estando com assento garantido no Senado Federal, quando da instalação da nossa douta
Academia de Letras [...] só algum tempo depois, numa as viagens de visita à terra natal e aos amigos, em julho de
1921, tomou posse, constituindo sua recepção acontecimento excepcional, segundo se verifica na revista da ilustre
companhia, número de 1921: ‘Houve sessão extraordinária às 9 horas da manhã, do dia 24 findante, no salão da
casa do poeta Antônio Chaves, lindamente ornamentada. [...] Depois de larga discussão, ficou resolvido aproveitar
o momento para a recepção do eminente intelectual piauiense [...] O Sr. Matias Olímpio propôs que se consignasse
na ata a declaração de que a cerimônia daquele dia fosse considerada como excepcional, não estabelecendo
precedente, e que, doravante, as recepções deviam revestir-se do maior esplendor, como as anteriores. Foi aceita
unânimente a sua proposta [...]” (PASSOS, Artur. Abdias Neves: homens e fatos da sua época: capítulo III. Folha
da Manhã, Teresina, p. 3, 18 ago. 1963).
354
“[...] Só será considerado membro da Academia, o candidato eleito, depois de tomar posse em sessão, sendo
permitido aos residentes fora do Estado, tomar posse por declaração escrita dirigida à Mesa. O prazo para posse
em qualquer dos casos não excederá de três meses, a contar da data em que for expedida a comunicação. [...]”
(REVISTA DA ACADEMIA PIAUIENSE DE LETRAS. Teresina, n. 14, p. 14-15, set. 1929). Luís de Moraes
Correa foi empossado nesta modalidade e seu discurso de posse foi lido por Fenelon Castelo Branco. Em outras
versões dos Estatutos e Regimentos admitiu-se que o eleito podia tomar posse em qualquer Estado desde que a
respectiva Academia fosse filiada à Federação das Academias de Letras do Brasil. Atualmente, três meses é o
prazo limite para posse presencial.
355
Os exemplares da Revista da Academia Piauiense de Letras nos permitem lançar dúvidas se todos os escolhidos
tomaram posse efetivamente. Alguns casos curiosos chamam atenção: Antônio José da Costa é citado como um
dos dez sócios que foram escolhidos pelos fundadores, contudo, diz-se que este adiou sua posse por duas vezes o
que motivou o cancelamento de sua escolha e a reabertura da vaga. Benedito Francisco Nogueira Tapety, faleceu
em 1919, antes de ser empossado, e para homenageá-lo, os acadêmicos decidiram considerá-lo como primeiro
ocupante da cadeira número 15. A Revista publicada em 1942 afirma que, até esta data, Antônio Bona e Amélia
de Freitas Beviláqua só haviam aceitado participar do sodalício, sem que houvesse registro de suas posses. No
caso de Amélia Beviláqua, vale considerar que esta é prima dos fundadores, esposa do iminente jurista Clóvis
Beviláqua e foi a primeira mulher a candidatar-se em 1930 a Academia Brasileira de Letras, tendo seu pedido
negado. Se consideramos estes quatro exemplos, percebemos a existência de pesos e medidas diferentes no
processo de efetivação da imortalidade acadêmica no Piauí.
158

marcaram a primeira década do sodalício deram lugar ao pouco dinamismo da instituição nas
décadas de 1930 e 1940. A falta de movimentação da vida acadêmica pode ser percebida pela
redução de notícias e comentários sobre suas atividades nos jornais, bem como pela primeira
descontinuidade na publicação da Revista. Em 1935, a Academia Piauiense de Letras
aproximou-se das instituições congêneres ao filiar-se à Federação das Academias de Letras do
Brasil. Esta filiação motivou a reorganização de estatutos e regimentos no sentido de unificar
práticas e foi tida como pretexto para retomada da vitalidade da Casa de Lucídio Freitas, o que
observado a posteriori, não surtiu o efeito desejado.
Nesse período, o quadro acadêmico era composto, em sua maioria, por bacharéis em
Direito que se dedicavam a mais de uma área de atuação,356 como a magistratura, o magistério no
ensino básico e superior, atuação jornalística e política dentro e fora do Estado fizeram com a que
as atividades da instituição ficassem relegadas à segundo plano. O ingresso continuado de
bacharéis em Direito será alvo de críticas das gerações futuras.357 Jovens estudantes que, à época,
iniciavam suas atividades culturais, a exemplo de Manoel Paulo Nunes358 e Hindemburgo
Dobal,359 criticavam o modelo acadêmico por seu baixo impacto na produção cultural local, por
sua dependência do mecenato estatal e por cristalizarem práticas circunscritas a pequenos grupos.

356
Em seu discurso de posse, ao tempo em que enaltece o campo do Direito, Cristino Castelo Branco justifica o
ingresso de não-literatos em uma Academia de Letras ao afirmar: “[...] Não sou nem pretendo ser um literato, no
sentido estrito do vocábulo. [...] o que deslumbra a minha inteligência, o que reclama as forças todas do meu
espírito é o Direito, na sua magnitude e sua incomparável beleza [...] É preciso, pois, Senhores Imortais, que
acabemos com esse errôneo modo de entender, e aprendamos a reconhecer, a proclamar, a glorificar o mérito,
indistintamente, onde quer que ele se apresente, onde quer que ele se manifeste, na imprensa, na tribuna, nos
tribunais, na cátedra de professor ou de juiz, na banca de advogado, nos romances, nos livros de versos, nas folhas
dos autos, nos laboratórios, nos quarteis, na vida dos estadistas, no consultório dos médicos. Nada de
exclusivismos, e de preconceitos retrógrados [...]” (BRANCO, Cristino Castelo. Recepção do Sr. Christino Castelo
Branco: discurso por ele proferido. Revista da Academia Piauiense de Letras, Teresina, v. 1, n. 1, p. 258-259, jun.
1918).
357
Herculano Moraes, um dos fundadores do Círculo Literário Piauiense (CLIP), ao longo da década 1970 reforça
as críticas ao fato da Academia Piauiense de Letras ser espaço de magistrados e não de literatos. Destaco alguns
de seus comentários: “[...] Se ela é uma Academia de Letras, não vejo razões para que se instale nas suas sessões,
reuniões do Tribunal [...]” (MORAES, Herculano. Jornal do índio. Novo convite a Souza Neto é humilhante para
academia. O Estado, Teresina, p. 7, 8 maio 1973); “[...] Um imortal, pertencente aos quadros da Academia
Piauiense de Letras, chegou para um desembargador e fez o convite – Você não quer entrar na Academia? – Mas
eu nunca publiquei um livro na vida... – Tem nada não! Não precisa publicar livro, não! – E como é que faço? –
Deixa que eu arrumo as coisas! E parece que está arrumando... [...]” (MORAES, Herculano. O Estado, Teresina,
p. 7, 12 jun. 1973).
358
Nasceu em Regeneração em 1925 e faleceu em Teresina em 2021. Bacharel em Direito pela Faculdade de
Direito do Piauí, atuou como professor e técnico do Ministério da Educação. Foi presidente do Conselho Estadual
de Cultura e Fundação Cultural do Piauí. Primeiro ocupante da cadeira 38 da Academia Piauiense de Letras, a qual
presidiu entre os anos 1992-1995. Escreveu, entre outras obras, A Geração Perdida, Tradição e Invenção e
Fracasso da Educação Brasileira.
359
Hindemburgo Dobal Teixeira, de nome literário H. Dobal, nasceu em Teresina em 1927 e faleceu nesta mesma
cidade em 2008. Bacharel em Direito pela Faculdade de Direito do Piauí, atuou profissionalmente no Ministério
da Fazenda e como professor. Pertenceu à Academias Brasiliense de Letras e à Academia Piauiense de Letras, na
qual ocupou a cadeira número 10. Cronista e poeta é autor de O Tempo Consequente, A Província Deserta, A Serra
das Confusões, dentre outras obras.
159

Outra dificuldade vivenciada pela Casa de Lucídio Freitas, em seus anos iniciais, diz
respeito à falta de sede própria para realização de suas atividades culturais. A intenção
grandiosa dos fundadores contrastava com uma realidade precária. Reuniões feitas de
improviso na Casa Anísio Brito e nas residências dos acadêmicos forjaram uma informalidade
perigosa para o bom andamento das atividades propostas. Na cerimônia comemorativa dos vinte
e cinco anos da entidade, o desembargador Arimathéa Tito, orador da cerimônia, enunciou frase
célebre sobre a instituição: “não tem teto, mas vive!”.360 Tal como o primeiro presidente do
sodalício, o orador retoma a ideia de que a Academia Piauiense de Letras é feita por abnegados
que se sacrificam em nome da cultura local. Ao tempo em que lamenta a falta de apoio para a
instituição, o jurista romantiza a atuação dos acadêmicos apresentando-os como valentes
peregrinos diante das dificuldades materiais. Ao longo dos anos, as reuniões nas residências
alternaram-se com encontros em espaços cedidos ou alugados pelo poder público para
funcionamento de suas atividades. As muitas promessas estatais findaram-se apenas em 1986
quando o governador Hugo Napoleão cedeu o prédio no qual hoje está situada.

Figura 5 – Sede da Academia Piauiense de Letras361

Fonte: SOARES, Nildomar da Silveira (org.) Livro do Centenário da Academia Piauiense de Letras: 1917-2017.
Teresina: Academia Piauiense de Letras, 2017. p. 37.

360
Em 1975, J. Miguel de Matos se apropriará desta frase para denunciar a falta de sede própria para a Academia
Piauiense de Letras. Cf.: MATOS, J. Miguel de. Não tem teto a “Casa de Lucídio Freitas”. O Estado, Teresina, p.
7, 13 fev. 1975.
361
Imóvel doado pelo Governo do Estado em 1986. Situado na Av. Miguel Rosa, número 3300, Centro (Sul).
160

Ao longo da década de 1940, alguns episódios expuseram na imprensa local os jogos de


interesses que colocavam em xeque as funções exercidas pelos fundadores que ainda dirigiam a
instituição. As disputas envolvendo o ingressos dos professores Isabel Vilhena e Álvaro Ferreira,
demonstraram, por exemplo, que as relações de amizade entre acadêmicos e postulantes
ganhavam força em relação às suas respectivas ações culturais. 362 A balbúrdia provocada pelo
desacato aos estatutos vigentes por grupo liderado por Martins Napoleão permitiu que candidatos
eleitos fossem considerados aptos ao voto, retirando-se a necessidade de discurso de posse e
motivou pedido de renúncia do presidente Higino Cunha e do secretário João Pinheiro. Disputas
como estas fragilizavam as relações entre os acadêmicos e, ao serem divulgadas na imprensa
local, impactavam na imagem que a sociedade construía sobre os acadêmicos e a instituição.
A década de 1960 impôs novos desafios a Academia Piauiense de Letras. Neste período,
encontramos discursos de acadêmicos, que, embora reiterem a importância social da instituição
a que fazem parte, denunciam a falta de interesse de seus pares pelas atividades do sodalício. A
imprensa local não poupava críticas ao que denominava de falsa intelectualidade dos
acadêmicos e dos demais agentes culturais que não compareciam aos poucos eventos literários
que ocorriam à época. Exemplo disso está no comentário abaixo transcrito

A imprensa anunciou uma conferência do ilustre mestre universitário uruguaio


Carbajal, sob os auspícios da Secretaria de Educação e da Academia Piauiense
de Letras – e a conferência realizou-se na Casa de Anísio Brito, mas a ela
estiveram presentes uns dez intelectuais. Se o anúncio fosse de cantoria de
cabeludos, se fosse de autógrafo de Pelé ou de um Strip-tease de Brigitte
Bardot – aí, sim, haveria necessidade de cordões de isolamento, de policiais
troncudos para que as multidões se contivessem. Mas a conferência foi sobre
Rubén Dario, poeta, e parece que o tempo dos poetas passou. Mais
interessante é que a conferência esteve sob o patrocínio da Secretaria de
Educação – e na Casa Anísio Brito não apareceram os estudantes, nem os
professores. Que lástima.363

Denuncia-se, nesse trecho, a falta de interesse de acadêmicos, professores, estudantes e


produtores culturais em relação às atividades culturais que ocorriam em Teresina. Contudo, a
crítica, apesar de oportuna, não leva em conta questões como a relevância da atividade para a
população ou sobre as condições de divulgação do evento. Possivelmente partindo desta

362
Em 1939, candidataram-se para a cadeira 26 os professores Álvaro Ferreira e Isabel Vilhena. À época estava
em tramitação alterações dos estatutos e regimentos da instituição. A fim de garantir a vitória de Álvaro Ferreira,
o imortal Martins Napoleão propôs novo sistema de eleição com base nos regimentos ainda não aprovados. O
presidente Higino Cunha, afirmando não compactuar com essa prática, retira-se do local de reunião, acompanhado
pelo secretário geral João Pinheiro. Na ausência do presidente, o grupo aprovou as alterações regimentais, permitiu
voto a não empossados e elegeu o candidato por eles apoiado. Nas semanas seguintes, os jornais de Teresina
publicaram textos em que os grupos se atacavam mutuamente. A versão apresentada pela presidência foi publicada
na Revista da Academia Piauiense de Letras, de 1942. Isabel Vilhena tornou-se escritora imortal apenas em 1967.
363
O DIA. Teresina, p. 1, 17 jan. 1967.
161

observação e somando-a a comentários feitos em outros momentos, o articulista sentencia que


os intelectuais piauienses não se interessam por cultura.364
Simplício de Sousa Mendes,365 presidente da Academia Piauiense de Letras entre os anos
1959 e 1971, compartilhava, em partes, com as conclusões daquele articulista. Desembargador,
professor da Faculdade de Direito do Piauí e colaborador ativo da imprensa local, este escritor
comentava em suas colunas o cotidiano da cidade, destacando as atividades da instituição que
presidia. Por meio de seus textos, entendemos como este lidava com os compromissos da
Academia Piauiense de Letras e queixava-se do desinteresse dos imortais no que diz respeito à
realização de atividades culturais. Em 1961, este faz um balanço da trajetória desta instituição

[...] a academia teve os seus dias de glória e também de desânimo, de recesso


e de repouso [...] no entanto, - a Academia Piauiense de Letras, filiada à
Federação, contando dias de glória na atividade literária [...] de alguns anos a
esta parte caiu num ponto morto, quase sem sinal de vitalidade. Há anos não
edita a sua Revista, datando o último exemplar da presidência de Martins
Napoleão [...] Tinha sede provisória e uma mobília de sua propriedade, e mais
uma subvenção de cinco mil cruzeiros mensais, dada por lei do Estado. Mas
no tempo do governo ditatorial – a mobília foi tomada para o antigo Conselho
Administrativo [...] A sede provisória foi fechada, e a subvenção deixou, de
alguns anos, de ser paga, denotando isto a fase de decadência das letras e da
cultura, que aos poucos se foi acentuando no Piauí [...] Presentemente, a
Academia está reduzida a cinco membros efetivos, residentes nesta capital.
São trinta cadeira, com seis ou oito preenchidas, sem que os eleitos se tenham
empossado. Anos são decorridos e estes não atendem o convite para a posse.
Mas, agora a deliberação é dar prazo de 30, 40 ou 60 dias, conforme o caso.
Se o candidato não comparecer, abre-se nova concorrência para escolha,
decaindo a primeira [...] A Academia Piauiense de Letras, precisa de novos
associados, havendo nomes que serão devidamente considerados e
acolhidos.366

Sem mencionar sua parcela de responsabilidade, Simplício de Sousa Mendes denuncia


a decadência da instituição que, não realizava atividades culturais, não editava sua revista

364
Em 1975, ao registrar o sucesso entre os jovens de palestra com o premiado escritor João Antônio, autor de
Malagueta, Perus e Bacanaço (1963), Leão de Chácara (1975), dentre outros, e ativo colaborador de jornais e
revistas como Jornal do Brasil, Realidade e Pasquim, Cinéas Santos afirma: “[...] As múmias ficaram a distância,
cobertos pelo fardão acadêmico. Ainda bem. [...] A ausência dos medalhões de todos os acontecimentos culturais.
A mumificação total, afinal das contas. [...]” (AS DICAS de Pompílio Santos. O Estado, Teresina, p. 11, 27 nov.
1975). Ainda sobre a ausência dos escritores acadêmicos na Semana da Cultura, assim se pronuncia Pompílio
Santos: “[...] O pouco interesse das chamadas “cúpulas” pelos eventos da Semana da Cultura. Veio provar, pelo
menos, uma coisa: que tais “cúpulas” se demitiram e não tem condições de comandar nada na área cultural [...]”.
[...]”. (AS DICAS de Pompílio Santos. O Estado, Teresina, p. 15, 30 nov.-1 dez. 1975).
365
Piauiense, nasceu em Miguel Alves em 1882. Bacharel em Direito pela Faculdade de Direito de Pernambuco.
Desembargador, jurista, colaborador da imprensa em periódicos como O Dia, O Piauí e Folha da Manhã.
Fundador e professor da Faculdade de Direito do Piauí. Escreveu Os Homens, A Sociedade e O direito. Foi
presidente do Conselho Estadual de Cultura. Na Academia Piauiense de Letras, foi o primeiro ocupante da cadeira
25 e presidente da entidade de 1959 até seu falecimento em 1971.
366
MENDES, Simplício de Sousa. Televisão: Academia Piauiense de Letras. Folha da Manhã, Teresina, p. 4, 3
ago. 1961.
162

institucional, não possuía sede própria, havia perdido subvenção financeira e tinha seu quadro
incompleto em virtude do desinteresse dos eleitos em tomar posse. A baixa frequência dos
sócios às reuniões dificultava a realização de atividades e, com isso, o poder concentrava-se
unicamente nas mãos de seu presidente, contribuindo para a imagem de uma instituição
conservadora, elitista e desarticulada das questões de seu tempo.
Em 1961, a Academia Piauiense de Letras precisou renovar seus estatutos a fim de
adequar-se à ampliação de cadeiras promovidas pela Academia Brasileira de Letras. 367 O
acréscimo de dez vagas constituiu-se como dificuldade a mais para uma instituição que ainda não
tinha sequer seu quadro completo. Apenas em 1967, iniciou-se a implementação destas
mudanças, coincidindo com as celebrações do primeiro cinquentenário da Casa de Lucídio
Freitas. Assumindo uma postura autoritária e também solitária na presidência, Simplício Mendes
afirma

A Academia Piauiense de Letras completará cincoenta anos – meio século de


existência, portanto, de as mais variadas vicissitudes, - dias de brilho, de
glória, de entusiasmo, mas também, de horas de desânimo, de desalento, - em
face do meio, por vezes, refratário e um tanto indiferente às cousas do espírito,
do intelectualismo desprendido, elevado e puro [...] Mas a Academia é a
instituição maior do Estado, porque é, sem dúvida nenhuma, a depositária
permanente e sequiosa da cultura e da história do intelectualismo piauiense.
[...] Completando a 30 de dezembro de 1967 corrente o meio século da sua
fecunda existência, - duas conquistas inadiáveis tem a realizar: - Completar,
impreterivelmente, o seu quadro ainda desfalcado de sócios e instalar-se,
definitivamente, em sede condigna e à altura da insigne instituição cultural do
Estado. A Academia foi criada, por lei, - como alta promoção das letras, - de
utilidade pública, para a reserva da produção literária e científica, - da
movimentação e guarda da espiritualidade piauiense – nas suas variadas
movimentações [...] E a Academia é o órgão específico, - guardião do passado
histórico e luzeiro inapagável a incentivar e a orientar as gerações moças às
conquistas literárias, artísticas e científicas de porvir mais fecundo e mais
edificante. Com os seus quadros completos e instalada em sede própria,
necessariamente terá de festejar a gloriosa data do meio século de existência.
[...] Espero que a nossa Academia comemore, condignamente, o seu jubileu
[...]. Não há tempo a perder. As posses dos membros em falta, deve ser
acelerada. Não se pode mais adiá-la. Ficará fora, quem não se apresentar, no
máximo, até fim de junho. Temos pela frente um programa comemorativo [...]
devemos organizá-lo com a antecedência necessária [...] A Academia por
nosso intermédio, - apela para a solidariedade dos confrades e dos piauienses
em geral. Será, a 30 de dezembro, a festa do intelectualismo piauiense. Quem
não se empossar a tempo, - ficará de fora dos quadros, com a indicação
prescrita. É da Regra Acadêmica.368

De maneira esporádica, neste intervalo de seis anos entre uma manifestação e outra,

367
MENDES, Simplício de Sousa. Televisão: Academia Piauiense de Letras. Folha da Manhã, Teresina, p. 6, 21
dez. 1961.
368
MENDES, Simplício de Sousa. Televisão: as letras piauienses. O Dia, Teresina, p. 3, 1 mar. 1967.
163

Simplício Mendes voltava a apresentar as dificuldades do sodalício. Contudo, em 1967, a


situação da Academia Piauiense de Letras passou a ser a tônica de suas colaborações para os
jornais da capital. Apelando para o brilho das realizações anteriores e colocando a Academia
Piauiense de Letras como lugar privilegiado da intelectualidade local, este distorcia
informações a fim de reivindicar providências para os problemas do presente: completar o
quadro de sócios e conquistar a sede para o sodalício. Sendo uma entidade privada, não é correto
afirmar que a Academia Piauiense de Letras foi criada por lei, muito embora seu
reconhecimento como instituição de utilidade pública sinalize que esta desenvolve atividades
valorizadas socialmente. Podemos entender este comentário como uma tentativa de mobilizar
os acadêmicos, conquistar a opinião pública e sensibilizar o poder executivo para as
necessidades da instituição, sobretudo no que diz respeito às comemorações de seu jubileu.
Ao longo do ano de 1967, o presidente atualizou os leitores sobre as deliberações da
diretoria visando às comemorações do cinquentenário. As decisões envolviam revisão do quadro
de sócios, imposição de prazo limite para posse dos eleitos, inclusão de novos membros,
viabilização de novo número da Revista da Academia Piauiense de Letras e conquista junto ao
Poder Legislativo da aprovação de projeto de lei em que a Casa Anísio Brito, que concentrava o
Arquivo Público, Biblioteca e Museu do Piauí, passasse à gestão da Academia Piauiense de
Letras, resolvendo assim o problema de sua sede.369 Designou-se comissão própria para dialogar
com governador Helvídio Nunes e conseguir apoio financeiro para as solenidades previstas.
Diante do posicionamento da diretoria sobre posse dos eleitos em que se afirmava “que
não poderá haver prorrogação, por motivo algum [...] caso não haja a posse na data fixada, o eleito
perderá sumariamente a honraria”370 alguns tomaram posse em solenidades que movimentaram
a cena cultural do Estado. Outros, a exemplo de Clemente Fortes renunciaram à imortalidade
acadêmica.371 Contudo o discurso impositivo, quase ameaçador, do presidente não sensibilizou a

369
Apesar das insistências do articulista, o projeto não logrou êxito. A sede definitiva da Academia Piauiense de
Letras só foi conquistada, via doação do poder público, por meio da lei estadual 4048, de 12 de maio de 1986.
370
NOTÍCIAS da Academia. O Dia, Teresina, p. 8, 25 jan. 1967.
371
Em 1961, os jornais da cidade divulgam nota da Academia Piauiense de Letras convocando e fixando o prazo
de sessenta dias para que os escritores Clemente Fortes, Pe. Antônio Sampaio, Roberth de Carvalho e Carlos
Eugênio Porto tomassem posse em suas respectivas cadeiras. Em 1963, por duas vezes registra-se a data em que
seria a posse de Clemente Fortes, nenhuma das duas realizadas. Em dois momentos, J. Miguel de Matos apresenta
motivos para a ausência de Clemente Fortes na Casa de Lucídio Freitas: “[...] Por isso, constantemente instado por
este discípulo, que não costuma ingerir gato por lebre nos banquetes dos valores, o Mestre Clemente Fortes, para
livrar-se talvez da minha impertinência e descerrar por fim a cortina de um mistério que vinha se arrastando há
muitos anos, resolveu abrir o cofre de seu segredo [...] “Muita gente pensa que eu não aceitei a minha eleição para
a Academia Piauiense de Letras – generosa sem dúvida – por me considerar maior do que ela. Não é verdade. A
verdade é esta que eu agora revelo a você: eu é que era e ainda sou muito pequeno para a sua poltrona e para a sua
espada [...]” (MATOS, J. Miguel de. Clemente Fortes e a imortalidade acadêmica. O Estado, Teresina, p. 5, 27
dez. 1974); “[...] Do acadêmico J. Miguel de Matos: ‘A eliminação do quadro social, da Academia Piauiense de
Letras, de quem vai eleito e não se empossa na data marcada, não é fruto de minha imaginação. O saudoso
164

todos: Cláudio Pacheco tomou posse apenas em 1972. Joaquim Sousa Neto, em nenhum
momento, justificou sua ausência e apenas em 1972 sua cadeira foi declarada vaga, tendo Celso
Pinheiro Filho, ex-prefeito de Teresina e filho de um dos fundadores, tomado assento na cadeira
ocupada até 1957 por Breno Pinheiro, seu tio. A cadeira a ser ocupada por Odylo Costa Filho,
para o qual foi eleito após o falecimento de seu pai em 1957 somente foi ocupada em 1969. Neste
intervalo, foi declarada sua vacância, realizou-se nova eleição, para a qual concorreram J. Miguel
de Matos e Iracema Santos Rocha da Silva.372 Suspeitas de fraude, levaram ao cancelamento do
pleito, possibilitando que seu antigo dono a ocupasse em visita ocasional feita ao Piauí. Nestes
casos, as amizades, relações familiares e atribuições profissionais foram considerados motivos
convincentes para justificar a demora para tomar posse.
A escolha dos ocupantes das dez novas cadeiras revela as novas configurações do meio
cultural piauiense. Alegando não se tratar de cadeiras vagas, deliberou-se que estas seriam
escolhas restritas da diretoria.373 Em 1961, Simplício Mendes apresentou uma lista prévia na
qual constavam nomes como Raimundo Nonato Monteiro de Santana, Odilon Nunes, Cláudio
Pacheco, Wilson Brandão, Darci Fontenele de Araújo, Jacob Manuel Gayoso Almendra, Artur
Passos, José de Arimathéa Tito Filho. De sua apresentação inicial até 1967, a configuração
desta lista mudou em virtude da antecipação de eleições e posses de alguns dos indicados a
exemplo de Jacob Almendra eleito e empossado em 1967 para cadeira 20, A. Tito Filho, eleito
para cadeira 29, vaga com o falecimento de seu pai em 1963 e de Cláudio Pacheco, eleito mas
ainda não empossado para a cadeira 30.
Os cinco nomes acrescidos à listagem inicial de Simplício de Sousa Mendes
contemplavam a atuação de escritores da geração que entre as décadas de 1940 e 1950, tentaram
dinamizar a produção cultural do Estado. As escolhas de Maria Nerina Pessoa Castelo Branco,
Emília Castelo Branco de Carvalho, João Coelho Marques, Celso Barros Coelho e Manoel
Paulo Nunes revelam estratégias e táticas da instituição e dos escritores no momento do

acadêmico Des. Simplício de Sousa Mendes eliminou da casa de Lucídio Freitas, mesmo três ilustres nomes:
Clemente Forte, Odylo Costa Filho e Sousa Neto, por não terem tomado posse nos prazos designados’ [...]” (O
ESTADO. Teresina, p. 3, 14 set. 1977).
372
Iracema Santos Rocha da Silva nasceu em Floriano em 1927. Atuou como professora primária e foi uma das
primeiras professoras da Fundação Universidade Federal do Piauí. Foi candidata a prefeita de Teresina em 1962.
Por sua liderança na Liga Feminina do Partido Trabalhista Brasileiro e na Frente de Mobilização Popular, foi presa
pelo regime ditatorial. Em 1973, bacharelou-se em Direito pela Faculdade de Direito do Piauí. Casada com o
jornalista José Maranhão da Silva, colaborou na imprensa local com as colunas Crônica Feminina, no jornal O
Dominical e Coluna de Iracema, no jornal O Estado.
373
“[...] O seu quadro primitivo era de 30 cadeiras. Mas, recentemente foi acrescido de mais 10, - totalizando 40,
na atualidade. Assentou-se que as dez cadeiras novas seriam, na primeira investidura, - preenchidas por eleição ou
sufrágio restrito da própria Diretoria. Só as demais investiduras seriam por votação geral do quadro acadêmico. E
assim se fez [...]” (MENDES, Simplício de Sousa. Televisão: a Academia Piauiense de Letras. O Dia, Teresina,
p. 3, 10 ago. 1967).
165

recrutamento de novos membros.


A escolha de Celso Barros Coelho e Manoel Paulo Nunes reflete o reconhecimento da
Casa de Lucídio Freitas das atividades desenvolvidas por estes em variadas agremiações como
o Clube dos Novos e Movimento de Renovação Cultural.374 Trazer para instituição o capital
cultural acumulado por estes sujeitos e as influências deste movimento mostra-nos que os
quadros das academias não são monólitos, mas sim o entrelaçamento de diversas práticas
intelectuais. Ampliar os quadros acadêmicos com a inserção destes jovens agentes culturais
atendia ao movimento que legitimava novas práticas de escrita e formas de atuação cultural dos
intelectuais, articulado ao desejo de dinamizar as atividades da instituição. Recentemente, M.
Paulo Nunes comentou sobre sua escolha para a Academia Piauiense de Letras,

Foi ele quem me levou para a Academia, me colocou lá por decreto. Contarei
o episódio. Em 1967, a Academia comemorou o seu cinquentenário, mas só
contava com 30 membros desde a sua criação. E o desembargador Simplício
quis aumentar para 40 membros, para equiparar-se ao número da Academia
Brasileira. E esses dez membros ele escolheu por sua livre e espontânea
vontade. Seu ex-aluno na Faculdade de Direito, eu fui um deles [...] Não houve
eleição. Então ele escolheu pessoas representativas [...].375

A escolha de Nerina Castelo Branco376 envolve o desejo desta em conquistar um lugar


para si na Academia Piauiense de Letras. Poetisa e professora universitária, esta viu na
ampliação do número de vagas uma oportunidade de ingressar neste sodalício. 377 Não
conseguimos localizá-la em nenhuma das listas de prováveis escolhas de Simplício Mendes, o

374
Clube dos Novos, jornal O Autêntico, as revistas Zodíaco e Caderno de Letras Meridiano, o Movimento de
Renovação Cultural e o Centro de Estudos Piauienses fazem parte do espectro de ações desenvolvidas no Piauí, entre
as décadas de 1940 e 1950, pela Geração Meridiano da qual fazem parte Manoel Paulo Nunes, Hindemburgo Dobal,
Orlando Geraldo Rego de Carvalho, Celso Barros Coelho e Raimundo Nonato Monteiro de Santana.
375
QUEIROZ, Teresinha (org.). Conversas com M. Paulo Nunes. Teresina: EDUFPI, 2012. p. 80. (Coleção
Centenário, 5)
376
Maria Nerina Pessoa Castelo Branco nasceu em Teresina em 1935. Bacharelou-se em Direito e Filosofia, foi
professora da Universidade Federal do Piauí. Atuou no Conselho Estadual de Cultura. É autora de Poesias
modernas, Cruviana e Além do Silêncio. Ocupa a cadeira 37 da Academia Piauiense de Letras.
377
No contexto de uma das polêmicas em que se envolveu, J. Miguel de Matos questiona as práticas adotadas por
Nerina Castelo Branco no momento de sua escolha para a Academia Piauiense de Letras. Não localizamos outras
fontes para entrecruzar as afirmações do autor, em carta publicada por A. Tito Filho, por isso transcrevemos aqui
apenas os comentários feitos por ele, enfatizando que este trecho, aparentemente, reflete os posicionamentos de
um escritor que está ressentido por ter seu acesso negado a Academia Piauiense de Letras pela segunda vez: “[...]
Já a poetisa Nerina Castello Branco [...] entrou para a imortalidade acadêmica de modo sui generis: sabendo da
existência de vaga (das 10 criadas para completar 40, para que a Casa de Lucídio Freitas se igualasse em número
com a Casa de Machado de Assis, que, por sua vez, se mirava, muito obediente, ao bolorento modelo francês),
saiu, caladinha, com o pires na mão, a pedir voto de porta em porta. Em pouco tempo, como candidata única à
vaga da Cadeira 35, pois a poltrona não foi posta em concorrência, como mandam os Estatutos, depois de visitar
o sul do País colhendo os votos de fora, como são conhecidos os sufrágios dos acadêmicos que não residem em
Teresina, a poetisa Nerina Castello Branco, A MAIS JOVEM IMORTAL DO BRASIL, como mesmo proclama
de boca cheia, estava de posse dos votos necessários à sua vitória [...]” (TITO FILHO, A. Caderno de anotações.
Jornal do Piauí, Teresina, p. 6, 26 abr. 1972).
166

que indica que esta surpreendeu o presidente ao colocar-se à disposição para esta vaga e por
antecipar-se na coleta de votos. Sua ação tática diante do preenchimento das vagas, sua
trajetória intelectual, sua prática profissional reconhecida e o pertencimento a uma família de
destaque podem ter contribuído para a aceitação de seu nome.
Por meio de diálogos travados com J. Miguel de Matos nos jornais em 1972, este a
questiona publicamente sobre os motivos pelos quais esta lhe negou votos em suas candidaturas
frustradas. Em seu favor, o escritor alega que, em 1967, a ajudou ao escrever cartas elogiosas
que seriam apresentadas como legitimadores de sua produção escrita e intelectual.
Respondendo ao seu interlocutor, Nerina Castelo Branco tece comentários sobre as táticas que
utilizou para ingressar no sodalício e aconselha como J. Miguel de Matos deve proceder

[...] permita-me o escritor de real mérito, considerar alguns pontos de sua


carta. Li e reli a citada carta. Alguns tópicos, fixam bem a personalidade do
seu autor, pela dissecação mui realista de sua vida e infância pobre, de suas
lutas e preservação de ideal, terminando por confessar o medo de não poder
atingir a glória da imortalidade piauiense, por achar que não seria escolhido
pelos Imortais da Academia Piauiense de Letras. Não creio que você, fazendo
como eu fiz, vá bater àquelas portas e elas não se lhe abram. Duvido muito
que fé e coragem não vençam, mesmo quando inveja e maldade rondem as
consciências e procurem A TODO CUSTO, subestimar os valores....... Ali
entrei SEM TROPEÇAR NA GLÓRIA DOS OUTROS, como frisei em meu
discurso de posse. Sentei-me em cadeira que forjei pra mim e quase como
Napoleão Bonaparte – quase como ele, peguei de uma COROA e cingi minha
fronte... Acho que, como muitos, BRAS DA SANTINHA e CAMINHEIROS
DA SENSIBILIDADE, valem por uma batida às portas acadêmicas. Não
porque tenham sido escritos pelo ex-menino da rua do Molambo, que vestia
CALCINHAS rasgadas, que ao depois, veio a ser do Exército, tenha sido um
sofredor. Não por isso. Sofredores foram muitos dos grandes gênios da
humanidade [...].378

O embate entre J. Miguel de Matos e Nerina Castelo Branco expressa os


posicionamentos de ambos em relação aos procedimentos diante das oportunidades de ingresso
no sodalício. Enquanto J. Miguel de Matos esperava que os votantes considerassem as amizades
e a retribuição de favores nos momentos do voto, Nerina Castelo Branco defendia que a
iniciativa pessoal e a qualidade literária eram suficientes. Com estas considerações, a escritora
critica seu interlocutor por recorrer a uma suposta injustiça em virtude de sua origem social e
por envolver-se em polêmicas desnecessários com seus potenciais eleitores.
Já o ingresso de Emília Castelo Branco de Carvalho379 remete diretamente aos interesses

378
CADERNO de anotações. Jornal do Piauí, Teresina, p. 6, 26 abr. 1972, p. 6, grifos da autora.
379
Lilizinha Castelo Branco é nome literário de Emília Castelo Branco de Carvalho. Nasceu no Rio de Janeiro em
1919. Foi diretora da Casa Anísio Brito, do Instituto Histórico e Geográfico do Piauí e atuou no Conselho Estadual
de Cultura. Romancista, escreveu A Sinhazinha de Karnak, A Mendiga do Amparo e Quinze Anos Depois. Primeira
167

frustrados de J. Miguel de Matos. Conhecedor do processo de ampliação das cadeiras na


Academia Piauiense de Letras, observando que grande parte dos indicados pertenciam ao
Movimento de Renovação Cultural, ao qual também dizia estar filiado e pautando-se na
repercussão de seus textos na imprensa local, este acreditava que podia ser contemplado pelo
presidente da Casa de Lucídio Freitas. Ao longo do ano de 1967, empenhou-se em divulgar nos
jornais o esboço do que viria a ser Pisando Os Meus Caminhos e a intensificar elogios à Casa
de Lucídio Freitas. Contudo, a indicação não veio. A escritora Emília Leite Castelo Branco foi
indicada e, em virtude da amizade cultivada com J. Miguel de Matos, assim dirigiu-se ao
presidente da Academia Piauiense de Letras

Temos no Piauí um valor que está sendo, senão esquecido, pelo menos não
prestigiado como merece estar, pelo grupo dos intelectuais de nossa terra. J.
Miguel de Matos. Sua simplicidade pessoal, seu retraimento das coisas sociais
vai fazendo com que o lembrem menos do que merece ser destacado, ele que
é incontestavelmente um de nossos valores culturais [...] Eu peço porque sinto
como um dever moral vir dar as falas que estou dando [...] Peço a Simplício
de Sousa Mendes e a Arimathéa Tito Filho que atentem a esse homem que a
meu ver tem o direito de ser destacado. Deve ir fazer parte dos intelectuais que
dão valor à nossa Academia Piauiense de Letras. [...] Eu venho trazer o meu
encarecimento em favor de J. Miguel de Matos sem que jamais ele me
encomendasse o sermão ou outra pessoa qualquer [...] Eu sei que impulsionam
intensivamente um movimento em prol da minha entrada para a Academia de
Letras do Piauí, embora haja a injusta alegação de que não sou piauiense [...]
Quase que me vem a certeza de que ganharei a cadeira, basta-me para isso sair
à tona dos empreendimentos que me rodeiam. Pois bem, amigo Simplício
Mendes, eu abro mão dessa cortesia em favor de J. Miguel de Matos. Destine-
lhe a minha cadeira, mas faça-o já por que a vaga está aí. Destine-lhe a cadeira
que poderia ser para esta humilde escritora sua grande amiga, e receba desde
já os meus agradecimentos.380

Lili Castelo Branco, apontada por J. Miguel de Matos como madrinha e maior
incentivadora de suas ambições acadêmicas, intercedeu e negociou junto a Simplício Mendes a
indicação de J. Miguel de Matos para o sodalício. Destacou aspectos de sua personalidade e sua
dedicação às letras como justificativas para sua escolha. Por este episódio, percebemos que
amizade e senso de justiça escamoteiam a forma como alguns escritores enxergavam o processo
de ingresso na Academia Piauiense de Letras: as negociações entre aspirantes, candidatos e
escritores imortais demonstram-nos que, para além do mérito literário, as relações pessoais
tinham peso significativo nos processos de escolha.
Simplício Mendes reconhecia o interesse de J. Miguel de Matos em fazer parte do

ocupante da cadeira 37 da Academia Piauiense de Letras, cadeira esta que será ocupada por sua mãe, Lili Castelo
Branco após seu falecimento em 1990.
380
BRANCO, Lili Castelo. J. Miguel de Matos. O Dia, Teresina, p. 4, 19 out. 1967.
168

sodalício,381 contudo aparentava certas reservas quanto a seu assento nas novas cadeiras e
sugeriu que este candidatasse-se para as vagas regulares que seriam abertas posteriormente, o
que este fez e não logrou êxito. Com a recusa da mãe, o presidente indicou a romancista Emília
Castelo Branco de Carvalho, a Lilizinha Castelo Branco, possivelmente para livrar-se da
responsabilidade pela não-escolha de seu apadrinhado em benefício de sua filha, impondo assim
rearranjos de poder nas relações entre estes.
As disputas por indicações e apoios marcam a trajetória desta instituição sendo uma
prática apreendida e operacionalizada por escritores e intelectuais, antes mesmo do possível
ingresso na imortalidade acadêmica. Quantos escritores construíram seus lugares de fala a partir
de críticas à Academia Piauiense de Letras e, na primeira oportunidade de ingresso,
reinventaram seus discursos em relação à instituição?382 Quantos aspirantes à imortalidade
retiraram suas candidaturas, supostamente em reconhecimento à autoridade de seus
concorrentes, esperando também contar com o apoio destes em pleitos futuros? 383 Quantos
acordos tácitos ou estatutários da instituição sofreram (re)leituras criativas a fim de contemplar
os interesses políticos do sodalício?384 Quantos processos eleitorais foram suspensos ou
impugnados para preservar os interesses já existentes?385 Quantas vitórias e derrotas foram
alcançadas valendo-se de critérios não-literários?386

381
“[...] a inclusão de novos sócios, preenchendo assim as vagas existentes. Entre estes sobressaem os vultos
piauienses – Jornalista Carlos Castelo Branco, Desembargador Souza Neto, D. Maria Isabel Gonçalves Vilhena,
Dr. Cláudio Pacheco, Padre Balduíno Barbosa [...] o Professor José Camilo Filho. [...] Candidata-se também à
ilustre Casa de Lucídio Freitas, - o beletrista piauiense J. Miguel de Matos. Mais: - Há ainda a considerar-se a
revelação literária de D. Lilizinha Carvalho Castelo Branco [...]” (MENDES, Simplício de Sousa. Televisão: o
cinquentenário da Academia. O Dia, Teresina, p. 3, 13 abr. 1967).
382
Fundador do Círculo Literário Piauiense e crítico dos processos eleitorais na Academia Piauiense de Letras,
Herculano Moraes candidata-se para esta instituição em 1980. Seus contemporâneos reagem à sua candidatura, ao
final bem-sucedida, com pichações nas paredes externas do cemitério São José com os dizeres: “[...] Na Academia
jaz, Herculano Moraes [...]” (O ESTADO. Teresina, p. 3, 26 jul. 1980).
383
J. Miguel de Matos afirma que entre os anos de 1967 e 1973 desistiu de candidatar-se às cadeiras número 08,
16 e 26 em virtude da amizade e do reconhecimento da superioridade de seus concorrentes.
384
Estatutos e regimentos da Academia Piauiense de Letras autorizam os vivos a candidatarem-se a vagas nesta
instituição. Durante a década de 1970, Petrônio Portela Nunes, ex-prefeito de Teresina, ex-governador do Piauí,
senador e Ministro da Justiça, era assediado a candidatar-se a uma vaga na Casa de Lucídio Freitas. Em 1978,
iniciaram-se novas negociações visando o preenchimento da cadeira ocupada pelo desembargador Edgar Nogueira.
Petrônio Portela nunca requereu, efetivamente, sua candidatura porém, quando de sua morte em 1980, a Academia
Piauiense de Letras decidiu homenageá-lo com posse post-mortem. A fim de justificar tal subversão aos
dispositivos legais da instituição, recorreu-se à experiência do passado: a posse post-mortem de Nogueira Tapety,
à qual já nos referimos anteriormente.
385
Anteriormente fiz referências às disputas para cadeira 17 entre Iracema Santos Rocha Silva e J. Miguel de
Matos. O pleito foi suspenso sob suspeita de fraude nas cédulas eleitorais. A Academia Piauiense de Letras, ao
invés de reiniciar o processo eleitoral, aguardou pacientemente mais dois anos para que Odilo Costa Filho, cuja
eleição já havia sido cancelada, tomasse posse. Nas páginas seguintes, comentaremos este episódio.
386
Herculano Moraes apresenta justificativas para a derrota de José Eduardo Pereira para a Academia Piauiense
de Letras: “[...] Ainda a respeito da Academia, na opinião do imortal Herculano Moraes, três fatores contribuíram
para o Dr. José Eduardo Pereira ser derrotado na eleição para a cadeira deixada com a morte de Petrônio Portella:
um compromisso antigo que a Academia tinha para com Zenon Rocha; alguns erros táticos do candidato José
Eduardo (não frequentava reuniões), na festa de aniversário, José Eduardo não convidou nenhum imortal; e por
169

Como toda instituição cultural, o aspecto político se faz presente na vida da Academia
Piauiense de Letras. A política interna que movimenta e conforma as práticas de seus membros é
produto de disputas entre sujeitos e gerações literárias e dizem respeito ao lugar que estes ocupam
ou desejam ocupar no conjunto da literatura produzida no Estado. O bom relacionamento com os
pares garante participação em projetos comuns como publicação de coletâneas, indicações para
cargos e comissões e, sobretudo, garante que a perpetuação de relatos positivos sobre a história e
a importância dos sujeitos no contexto da literatura produzida no Estado.
A influência do mundo político sobre as práticas acadêmicas justifica-se por ser o
mecenato estatal a principal fonte de recursos financeiros que tornam possível a existência
material da instituição. As subvenções financeiras dos poderes executivo e legislativo, a
autorização para publicação de obras e revistas nas gráficas da COMEPI, a cessão de
funcionários públicos para atuar na Casa de Lucídio Freitas, a doação da sede definitiva, de
mobiliário e materiais diversos, o pagamento de jeton aos participantes das reuniões 387 são
aspectos da íntima relação da Academia Piauiense de Letras com o poder público. Quando o
Estado convoca acadêmicos para participar de comissões organizadoras, executar projetos
editoriais e atuar em órgãos públicos, a Academia Piauiense de Letras justifica seu
reconhecimento como instituição de utilidade pública posto que seus membros participam
efetivamente do desenvolvimento do Estado.388 Nesta relação, ambos saem vitoriosos: o poder
público constrói-se como parceiro das letras e conta com assessoria de sujeitos pretensamente
qualificados e o sodalício mantém a legitimidade de suas práticas no que diz respeito à
construção e reivindicação de seu lugar no cânone literário local.
Encaminhando-nos para a conclusão deste tópico, cumpre-nos enfatizar que, de acordo
com estatutos e regimentos internos da Academia Piauiense de Letras a produção de textos
escritos configura-se como principal requisito para admissão dos membros efetivos eleitos por

último o pouco trabalho pré-eleitoral realizado pelo candidato. Embora reconhecendo as falhas, Herculano votou
em José Eduardo, e promete votar nele na próxima eleição [...]” (PORQUE perdeu. O Estado, Teresina, p. 3, 6
jan. 1981).
387
Tal qual acontece com a Academia Brasileira de Letras, a Academia Piauiense de Letras reivindicou o
pagamento de jeton aos seus membros. Concedido de maneira irregular ao longo de sua trajetória, esta
remuneração era objeto de desejo desde a presidência de Simplício Mendes que assim se manifestava: “[...] A
Academia Piauiense de Letras, - tenhamos convicção e fé, - terá condigna sede própria, biblioteca, auditório, com
ar condicionado, - e ninguém se engane ou duvide, - chegará a pagar jeton aos seus imortais. E as instalações
adequadas da Casa da Cultura [...]” (MENDES, Simplício de Sousa. Televisão: o cinquentenário da Academia. O
Dia, Teresina, p. 8, 22-23 out. 1967); “[...] Que É Que Há disse que um desembargador-acadêmico é da opinião
de que APL só será instituição notável depois que adotar o pagamento do jeton, nem que seja valor simbólico [...]”
(O ESTADO. Teresina, p. 3, 1 jun. 1974). Sobre o pagamento de jeton, assim se pronuncia J. Miguel de Matos:
“[...] Magoado, deixei de frequentar as sessões sabatinas do sodalício, com prejuízo apenas, de Cr$ 75,00 para
minha algibeira, importância que não dá para comprar um quilo de carne verde [...]” (MATOS, J. Miguel de.
Recebemos. O Dia, Teresina, p. 2, 14 maio 1980).
388
TORRES, 2010.
170

seus pares. Em teoria, é por meio dessas produções advindas de sujeitos diferenciados entre si
por meio de seus lugares sociais, posturas estéticas, gêneros literários, formação intelectual,
atividades profissionais, idades, posição política, etc que esta instituição cumpre seu papel
social de zelar pela cultura escrita no Piauí. Nesse sentido, a eleição de novos membros reveste-
se de um significado político e simbólico pois legitima socialmente a qualidade intelectual e de
escrita dos candidatos e forja um lugar que os apresente como atuantes no processo de
valorização das letras piauienses.
Numa tentativa de caracterizar os grupos que compõem esta instituição, tendo como
referência a formação profissional e a atuação social dos escritores que alcançaram a
imortalidade, propomos a seguinte classificação que, em virtude da vitaliciedade do mandato
acadêmico possibilita a inter-relação entre sujeitos, grupos e práticas. O primeiro grupo abrange
os eleitos entre 1918 a 1950 destacando-se a atuação dos sócios fundadores e daqueles que,
imediatamente após fundação, foram por eles escolhidos para ocupar cadeiras no sodalício.
Nesse grupo há predomínio da atuação de bacharéis em direito cuja formação acadêmica
extrapolava os saberes jurídicos e produziam textos eruditos sobre temas variados como
filosofia, sociologia, política e literatura, com predomínio da produção poética. Seus primeiros
sucessores foram, em sua maioria, bacharéis que atuavam na magistratura e magistério local.
Um segundo grupo de escritores imortais evidencia o reconhecimento institucional da
diversificação daquilo que é considerado um homem de letras. A partir da década de 1960,
ingressam nesta agremiação indivíduos dotados ou não de formação acadêmica e que, além da
publicação de obras literárias tinham os jornais ou a gestão pública do setor cultural como
espaço privilegiado de sua atuação. Suas atuações nos periódicos locais angariavam
considerável público leitor tornando-os capazes de influenciar discussões sobre temas
cotidianos. O terceiro grupo insere-se na Academia Piauiense de Letras a partir da década de
1990, contando com o ingresso de jovens profissionais formados pelas universidades e que
atuam em áreas como o magistério, medicina, funcionalismo público, além da magistratura e
jornalismo. Suas produções não compreendem, necessariamente, a escrita literária estando
voltadas para temas específicos de sua área de atuação profissional.
Com essa breve classificação, tencionamos evidenciar como a Academia Piauiense de
Letras constitui-se como lugar privilegiado por reunir letrados e agentes culturais. A instituição
reflete as mudanças educacionais vividas pela sociedade brasileira e como estas impactaram na
ampliação do que se considera como intelectual ou homem de letras. A diferenciação arbitrária
destes grupos permite-nos também entender como estas transformações são experimentadas no
interior das instituições culturais. Convém destacar que o privilégio da formação acadêmica e
171

a atuação jornalística não são monopólios de nenhuma das classificações aqui propostas. Em
um cenário cultural que, em meados da década de 1980, caracterizava-se pela gradativa
ampliação do número de alfabetizado e pela pequena oferta de vagas no ensino superior, a
ausência de público leitor efetivo refletia na irregularidade de projetos editoriais sejam eles
financiados pelo poder público ou não. Nesse contexto, os jornais e revistas institucionais
configuram-se como espaços importantes nos quais os intelectuais piauienses podiam divulgar
suas ideias e textos literários.
Considerando esse cenário pouco propício para ao desenvolvimento da cultura escrita,
percebe-se que os acadêmicos em determinados momentos flexibilizaram os critérios que
permitiam o acesso a imortalidade acadêmica. Aspectos ligados ao exercício de funções
profissionais similares, a conterraneidade, o exercício de cargos políticos em âmbito estadual e
federal, a origem familiar e o pertencimento a gerações literárias passaram a contar mais do que
o disposto nos regimentos da instituição. No capítulo seguinte, abordaremos como o
pertencimento a gerações e grupos literários é um aspecto importante para se destacar haja vista
a vitaliciedade da experiência acadêmica ao mesmo tempo que direciona os processos de
escolha dos novos membros, permite que indivíduos de grupos e gerações diferentes convivam
no mesmo espaço institucional.
Reunir em seus quadros escritores, literatos, pesquisadores, políticos, professores forja
um lugar social para Academia Piauiense de Letras, na qual esta distingue-se por ser uma
instituição que articula saber e poder. Saber, pois seus membros possuem conhecimentos que
os tornam distintos socialmente e aptos à imortalidade acadêmica. A diversidade e a
complementaridade dos saberes articulados pela Casa de Lucídio Freitas propiciam suas
interferências em discussões sobre as diversas pautas sociais. Este saber confere-lhe um poder
simbólico e efetivo, através do qual os membros do sodalício interferem nos debates de seu
tempo, legitimando e sendo legitimados pelo distintivo da imortalidade acadêmica.
Jean-François Sirinelli, ao discutir a noção de geração, destaca que, embora o conceito
remeta à ideia de regularidade, esta extrapola a identificação por meio da faixa etária, não se
podendo, por esta via, restringir a plasticidade das relações humanas.389 À medida que membros
de grupos culturais inicialmente alternativos à vida acadêmica ingressam no sodalício seus
membros são convidados a refletir, sobretudo nos processos de escolha de novos sócios
efetivos, sobre as noções de pertencimento, autonomia e identidade institucional identificando,
nos potenciais membros, elementos que lhes garantam a convivência em comum. Percebe-se aí

389
SIRINELII, Jean-François. A geração. In: AMADO, Janaína; FERREIRA, Marieta de Moraes (org.). Usos e
abusos da História Oral. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2000. p. 131-137.
172

a formação de um espaço distinto em que os sujeitos compartilham um habitus que os


identificam como semelhantes. Forjar um habitus por meio de rituais com o objetivo de cravar
um lugar no imaginário social e propor unidade entre um grupo é sobre o que nos debruçaremos
a seguir.

4.2 A Casa de Lucídio Freitas: os ritos da imortalidade

A Academia Piauiense de Letras construiu seu lugar no imaginário social piauiense


articulando saberes heterogêneos à disputa pelo poder de enunciação e legitimação de suas
práticas. Os seletivos procedimentos de acesso aos seus quadros seguido por cerimônias
públicas ritualizadas permitem que essa instituição seja ao mesmo tempo um lugar de saber, de
poder e um lugar de memória. Esta memória personificada em rituais e símbolos, constitui e
ordena discursos e práticas de seus membros. Ao reivindicar para si a identificação como um
lugar de memória, a Casa de Lucídio Freitas pauta-se na ideia de tradição e no prestígio dos
sujeitos que dela fazem parte.
A defesa do patrimônio literário piauiense e o compromisso com a memória de seus
patronos e sócios estão entre as práticas defendidas pela instituição.390 Pierre Nora define lugar
de memória como um espaço que vive de sua aptidão para a metamorfose na articulação do
tríptico materialidade, funcionalidade e poder simbólico.391 Considerar a Academia Piauiense
de Letras como um lugar de memória significa entender que os discursos em torno de sua
existência pautam-se na ocupação de um lugar social específico no contexto piauiense, como
uma instituição que agrega sujeitos distintos, porém unificados em torno das práticas de escrita

390
No contexto das comemorações do cinquenta anos da instituição, assim se posiciona o presidente Simplício
Mendes de Sousa: “[...] A Academia Piauiense de Letras é e será sempre a Casa da espiritualidade piauiense, a
instituição das letras, - o núcleo permanente dos que, - operários da inteligência, encarregam-se de velar e cuidar
das possibilidades futuras, trazendo sempre viva e atuante a chama do ideal, - pelo culto perene dos que se
notabilizaram e passaram, - realizando e sonhando com um mundo melhor, - pelo intelecto e pelo coração do
homem. [...] A Academia Piauiense de Letras sendo, como é e como se destina – a depositária do passado
intelectual e a incentivadora do idealismo cultural do povo [...]” (MENDES, Simplício de Sousa. Televisão:
Comemorações do Cinquentenário. O Dia, Teresina, p. 3, 21 dez. 1967). No contexto das comemorações dos
cinquenta e sete anos do sodalício, assim se posiciona o presidente A. Tito Filho: “[...] não poderia deixar de
homenagear a memória dos fundadores e dos patronos e ocupantes das cadeiras, bem assim como fazer uma
congratulação aos confrades que ora honram os seus quadros [...] Tanto no passado como no presente a Casa de
Lucídio Freitas tem desempenhado a sua missão de zelar, com o poder público, no que lhe cabe, o patrimônio
espiritual da gente piauiense [...]” (TITO FILHO, A. Academia faz 57 anos. O Dia, Teresina, p. 12, 1-2 jan. 1975).
A nota de pesar divulgado pelo falecimento de Jacob Gayoso e Almendra afirma: “[...] A ACADEMIA
PIAUIENSE DE LETRAS sente profundamente a perda do notável companheiro, que a engrandecia sobremodo,
mas assume, como tem feito com os demais companheiros desaparecidos, o compromisso solene de zelar, tempos
fora, a sua memória de homem de bem, que soube cumprir os deveres, exemplarmente, com a família, a sociedade,
a terra natal e a Casa de Lucídio Freitas [...]” (ALMENDRA, Jacob Gayoso. Academia Piauiense de Letras. O
Liberal, Teresina, p. 1, 20 maio 1976.
391
NORA, 1993.
173

e no reconhecimento deste grupo seleto pelo conjunto social. As adequações pelas quais
passaram seus regimentos, os processos de renovação de seus quadros, a sobrevivência às
disputas internas e externas, suas relações com o poder público e a sociedade como um todo
caracterizam suas mudanças e permanências históricas.
Em História e Memória, Jacques Le Goof afirma que, à medida que sujeitos e
instituições conquistam um lugar na memória coletiva de uma sociedade, os discursos que
empreendem sobre si são também instrumentos e objetos de poder.392 Nesse sentido, pautando-
se em práticas que se retroalimentam, o lugar social exercido pela Academia Piauiense de Letras
foi construído a partir de discursos sobre a importância histórica de suas práticas e é também
por meio destes discursos que esta reivindica sua posição privilegiada. Contudo, convém
questionar: do ponto de vista prático, o que tais discursos, utilizados como instrumentos e
objetos de poder, garantem à Academia e aos seus membros?
Leituras sobre as práticas acadêmicas nos permitem identificar duas motivações entre
aqueles que conquistaram a imortalidade literária: o desejo por reconhecimento e visibilidade
social bem como novas oportunidades de atuação. Ser reconhecido como escritor, como sujeito
de dotado de saberes diferenciados por seus pares e pela sociedade é algo que seduz aqueles
que se dedicam às letras como fruição, no caso de beletristas e eruditos, ou como atividade
profissional, no caso dos intelectuais. Espaço nas mídias, acesso a círculos restritos, novas
oportunidades de publicação, possíveis indicações para cargos e funções públicas são também
aspirações legítimas dos homens de letras. Traduzida em reconhecimentos e oportunidades, a
imortalidade acadêmica significa prestígio social e estabilidade profissional.
No Piauí, ser acadêmico imortal significa possuir um poder simbólico que garante
distinção e, por meio desta, a conquista de certa autonomia em suas áreas de atuação.
Concebendo o poder como algo relacional e em constante disputa entre os indivíduos, Pierre
Bourdieu aponta que o poder simbólico é um poder invisível cuja força advêm de relações entre
os indivíduos e grupos que compõem a sociedade. De maneira resumida, o sociólogo afirma
que o poder simbólico só alcança seus objetivos na realidade prática a partir da cumplicidade,
conivência ou fascínio que desperta nos outros indivíduos.393 Neste sentido, os simbolismos
que revestem o poder somente são efetivos quando o corpo social os reconhece como tal, ou
seja, quando estes símbolos são instrumentos de instrução, integração e dominação.
O reconhecimento de que a Casa de Lucídio Freitas é uma instituição de saber que zela
pelo patrimônio literário do Estado, garante-lhe, como afirmado anteriormente, um poder

392
LE GOFF, Jacques. História e memória. Campinas: Editora Unicamp, 2013. p. 435.
393
BOURDIEU, 2002.
174

político e um poder simbólico. Definido por Pierre Bourdieu como um poder capaz de construir
a realidade com base em discursos e práticas difundidas socialmente, os símbolos utilizados
pela Academia Piauiense de Letras como formas exibir e reivindicar seu poder social estão
presentes nos rituais que envolvem, sobretudo, o ingresso de novos membros. A ritualística da
vida acadêmica que se inicia com o preenchimento do requerimento de inscrição, passando
pelos momentos de eleição, posse, atuação acadêmica e concluindo-se com o discurso fúnebre
enunciado por seus pares, é apreendida por meio da observação, da repetição e exercida como
forma de exibir o poder simbólico do indivíduo e da instituição. Os rituais sob os quais nos
debruçaremos neste tópico dizem respeito aos momentos de inscrição e à cerimônia de posse,
e seus sentidos extrapolam a temporalidade em que eles ocorrem.
A ritualística do ingresso na Academia Piauiense de Letras inicia-se com o momento da
inscrição. Em teoria, após o elogio fúnebre a um acadêmico falecido, são abertos os editais para
preenchimento da cadeira. Historicamente as inscrições se processaram de duas maneiras: o
interessado preenche requerimento e o encaminha ao presidente do sodalício ou então um
conjunto de acadêmicos preenche e assina a requisição indicando determinado indivíduo que,
posteriormente, será consultado pela diretoria sobre o aceite ou não da inscrição. A este
requerimento deve ser anexado curriculum vitae e obras publicadas pelo candidato. Após
aprovação de requerimento, os candidatos podem iniciar sua campanha e visitar os acadêmicos
em suas residências, postos de trabalho ou na própria Academia Piauiense de Letras. 394
Cortesias, civilidade e etiqueta social atravessam estes processos. O voto é realizado de forma
secreta, em cédula oficial impressa, podendo o voto ser enviado por correspondência. Vence a
eleição quem tiver maioria dos votos, caso contrário é marcado um segundo escrutínio. Em caso
de empate, o pleito é impugnado e novo edital é aberto. Os eleitos são comunicados da vitória
pelo presidente e estabelece-se data para posse.
No decorrer dos anos, este processo foi se modificando a fim de garantir maior autonomia
aos inscritos e delimitar o prazo de vacância das cadeiras. Nas campanhas empreendidas por J.

394
Embora existam na prática, visitas aos imortais em momentos de campanhas não estão previstas nos estatutos
e regimentos da Academia Piauiense de Letras. Na imprensa, encontramos posicionamentos contrários a esta
prática. Destacamos comentário do jornalista Cunha e Silva que posteriormente ingressará na Casa de Lucídio
Freitas: “[...] o membro de uma Academia de Letras, que se presume ser culto ou letrado, mais obrigação tem de
escolher o candidato que achar mais apto para a Academia dos chamados imortais. Mais existe a praxe de o
candidato se dirigir a cada um dos imortais pedindo-lhes o voto e quase sempre com insistência e humildemente.
É um praxe errada e que dever ser abolida, pois se o candidato tem méritos intelectuais para participar de um
Cenáculo de Letras, os componentes deste que façam a escolha quando se tratar de mais de um candidato, ou se
for só um candidato, deem seu voto a ele ou não independentemente de solicitações ou empenho [...] Dizer-se que
a eleição é secreta [...] é uma farsa, pois antes da eleição, já se conhece quem vai vencer ou não... [...] Até cabala
existe, com se os imortais não tivessem capacidade para fazer a seleção de valores [...]”(CUNHA E SILVA. Praxe
errada. Jornal do Piauí, Teresina, p. 7, 9 jul. 1971).
175

Miguel de Matos, até mesmo a quantidade de assinaturas no requerimento de inscrição era algo
simbólico, pois indicava, logo de início, a inserção social do aspirante e atestava uma qualificação
prévia, apontando que as relações no interior da Academia Piauiense de Letras refletiam
sociabilidades anteriores. Na prática, as assinaturas significam apoios em contextos de batalhas e
negociações. A fim de evitar disputas internas e dissidências, não raro, as eleições apresentam
candidatos únicos, em processos sutilmente estimulados pela imprensa e pela própria
instituição.395 Também por meio de fontes hemerográficas, temos acesso às críticas ao modelo
eleitoral da Academia Piauiense de Letras, sobretudo às posturas dos votantes que desconsideram
mérito literário, atuação profissional e cultural em nome da estima pessoal, de trocas de
gentilezas, reconhecimento por serviços e favores prestados ou como forma de aproveitar-se da
fama do eleito, motivada por influência política ou premiações literárias.
A inserção no panteão dos imortais da Academia Piauiense de Letras consolida-se com
a solenidade de posse. Cerimônia pública para o qual são convidadas autoridades e, em geral,
realizada em espaços externos à sede da instituição,396 estes eventos movimentam o cenário
cultural e repercutem nos jornais por vários dias. Por meio desta cerimônia, extremamente
ritualizada, o recém-escolhido é apresentado à sociedade e tem sua imortalidade oficializada.
A solenidade que inicia-se com formação da mesa de honra, a fim de evidenciar onde está o
poder político da cerimônia, é seguida pela introdução, no recinto, do novo imortal. Sua entrada
é acompanhada por comissão de acadêmicos, escolhidos em geral entre os apoiadores de sua
candidatura. Da mesma forma que as assinaturas no requerimento de inscrição respaldam a
candidatura do aspirante à imortalidade, a escolta que acompanha o novo sócio representa a
aceitação da instituição ao seu ingresso. A execução do Hino Nacional indica o caráter oficial
do evento e remete ao culto à língua e à literatura nacional. Na sequência dos gestos e práticas
repetidas ao longo dos anos, o novo acadêmico enuncia seu discurso de posse no qual deve,
obrigatoriamente, fazer o elogio do patrono e ocupantes anteriores da cadeira na qual será
empossado.
Na ritualística da sessão de posse, o discurso do eleito deve enaltecer a trajetória

395
O comentário de Herculano Moraes sobre a frustrada campanha de José Eduardo Pereira, apresentado no tópico
anterior, aponta para a existência de pactos e compromissos entre acadêmicos e candidatos que retiravam suas
candidaturas ou que, mesmo derrotados, eram alvo dos interesses da Academia Piauiense de Letras. É preciso
entender esses jogos de poder para compreender os sentidos dos aceites e recusas dos candidatos à imortalidade.
396
Alguns motivos para a cerimônia de posse ser realizada fora da Casa de Lucídio Freitas: inicialmente, a falta
de sede própria. Atualmente, a instituição conta com endereço fixo e com auditório, contudo este possui capacidade
reduzida diante da mobilização midiática ou círculo de amizades daquele que será empossado. Em geral, aqueles
que tomam posse escolhem espaços que remetam à sua trajetória educacional (escola, universidades) ou
profissional (tribunais, associações comerciais ou de classe), simbolizando a articulação da Academia Piauiense
de Letras com outras instituições de saber e poder.
176

biográfica, com ênfase na sua formação intelectual, de seus antecessores. Tal qual as cerimônias
religiosas, esta narrativa interliga o passado e o presente da instituição e forja uma filiação
literária entre os ocupantes daquela cadeira. A invenção de uma tradição é mais forte nas posses
de primeiros ocupantes, pois, nestes momentos, faz-se necessário justificar a escolha dos
patronos. A construção da memória opera-se de duas maneiras: na reverência às qualidades da
escrita dos homenageados e no tecimento de relações afetivas entre patrono e ocupante.397
As escolhas dos patronos representaram, sobretudo nos anos iniciais, tentativas de
instituir uma tradição literária a partir do indivíduo escolhido. Recorrendo mais uma vez a Eric
Hobsbawn e Terence Ranger, entendemos, no caso piauiense, que as narrativas em torno dos
patronos inventam uma tradição, com o intuito de forjar a ideia de que houve um passado
literário no Piauí. Para Hobsbawn e Ranger, tradição inventada significa

[...] um conjunto de práticas, normalmente reguladas por regras tácitas ou


abertamente aceitas; tais práticas, de natureza ritual ou simbólica, visam
inculcar certos valores e normas de comportamento através da repetição, o que
implica, automaticamente, uma continuidade em relação ao passado.398

Ao selecionar entre literatos, jornalistas, políticos e bacharéis do passado aqueles que


serão eternizados através da memória da institucional, inserem-se estes indivíduos em realidade
muitas vezes não vivenciadas por eles, cria-se um presente na qual a lembrança de sua atuação
é uma inspiração. Selecioná-los e inseri-los na memória literária local é gesto de admiração e
respeito. Essa relação é potencializada quando o homenageado é parente de quem o escolheu,
pois alude a sentimentos e valores que agregam outros sentidos à instituição, em especial o
reforçar do poder político e influência social de grupos familiares.399
Na escrita e no pronunciamento do discurso de posse, em geral, os escolhidos colocam-

397
A escolha dos patronos, em geral, obedece aos critérios de identificação escriturística, por exemplo, políticos
escolhem políticos, poetas escolhem poetas, etc. Há também escolhas pautadas em homenagens a políticos e a
familiares. Na expansão das cadeiras em 1967, os já imortais João Crisóstomo da Rocha Cabral e Abdias da Costa
Neves, também se tornaram patronos.
398
HOBSBAWN; RANGER, 1997, p. 9.
399
Vários exemplos ilustram essa constatação: escolha de piauienses que são tidos como pioneiros na escrita e
publicação de textos, mesmo que não tenha escrito ou publicado no Piauí tais como Teodoro de Carvalho e Silva
Castelo Branco. Homenagens a familiares se destacam: o primeiro presidente, Clodoaldo Freitas, homenageou
José Manuel de Freitas. Lucídio Freitas homenageou seu irmão Alcides Freitas. Por sua vez, Amélia Freitas
Beviláqua homenageou a Lucídio Freitas, falecido em 1921, como patrono de sua cadeira. Cristino Castelo Branco,
ao justificar a escolha de seu patrono, Antônio Borges Leal Castelo Branco diz: “[...] É preciso que agora vos diga
em obediência ao espírito de justiça que mora comigo: os laços de parentesco que me prendem a esse egrégio vulto
piauiense não me tornam absolutamente suspeito para julgá-lo [...]” (BRANCO, Cristino Castelo. Recepção do Sr.
Christino Castelo Branco: discurso por ele proferido. Revista da Academia Piauiense de Letras, Teresina, v. 1, n.
1, p. 261, jun. 1918). Contudo, o caso que mais chama atenção, pelo caráter familiar, é a ocupação da cadeira
número 37: Emília Castelo Branco de Carvalho escolheu seu pai, Heitor Castelo Branco como patrono da cadeira.
Com o falecimento desta, sua genitora Emília Leite Castelo Branco tomou posse e após o seu falecimento, seu
filho e irmão da primeira ocupante, Heitor Castelo Branco Filho, foi empossado na Academia Piauiense de Letras.
177

se em posição de extrema humildade, diria até falsa modéstia, quando agradecem ao sodalício
pela aceitação de seu nome. A posse reveste-se assim num momento de articulação passado-
presente e gera no novo acadêmico a expectativa de construção de um presente-futuro, posto
que a imortalidade de seu nome, de suas obras e de sua atuação cultural dentro e fora da
Academia Piauiense de Letras deverá ser repercutida, ad infinitum, através dos discursos de
seus sucessores e das estratégias da própria instituição que sustenta seu lugar social na
perpetuação da memória de seus membros.
Elemento simbólico e que chama atenção na trajetória da Academia Piauiense de Letras
é o (não) uso de veste especial pelos acadêmicos. A Academia Brasileira de Letras tem no
fardão verde-oliva um de seus principais elementos distintivos. Por falta de recursos
financeiros, a congênere piauiense nunca possuiu tal indumentária, mas, em sua trajetória não
faltaram esforços em transformar os acadêmicos imortais em indivíduos distintos mediante o
uso de objetos e símbolos específicos. No contexto das comemorações dos sessenta anos desta
instituição, em 1977, os jornais registram a movimentação dos acadêmicos no sentido de
produzir uma peça a ser utilizada nas solenidades. Alvo de críticas e brincadeiras na imprensa
local,400 os acadêmicos liderados por A. Tito Filho e J. Miguel de Matos providenciaram a
confecção de um manto a ser inaugurado nas celebrações do aniversário que teriam Rachel de
Queiroz, recém-empossada da Academia Brasileira de Letras, como convidada de honra.
Pierre Bourdieu afirma que o poder simbolizado através de objetos, adornos e distintivos
é mensurado no impacto social provocado por sua confecção, uso e exibição. 401 Prefaciando a
obra do sociólogo francês, Sérgio Miceli assim se refere aos sistemas simbólicos

[...] o caráter alegórico dos sistemas simbólicos numa tentativa de apreender


tanto seu organizacional próprio [...] como as determinações que sofre por
parte das condições de existência econômica e política e a contribuição
singular que tais sistemas trazem para a reprodução e a transformação da
estrutura social.402

Com base na observação sobre o impacto dos símbolos na sociedade, percebemos que

400
“[...] Absolutamente verdadeiro: o acadêmico J. Miguel de Matos confirmou ontem, que a Academia Piauiense
de Letras realizará sua sessão solene de aniversário, devidamente trajada com o fardão cerimonial. Diz que se trata
de algo mais simples que o usado pelos imortais da ABL. O desenho, segundo informou, é mesmo do Josias
Carneiro da Silva [...]” (RODA VIVA. O Dia, Teresina, p. 3, 4 mar. 1977); “[...] J. Miguel e seu mestre, Tito Filho,
foram vistos ontem nas imediações do Karnak e Iapep. Organizam a festa dos 60 anos de fundação do sodalício
piauiense. J. Miguel que é secretário da Academia Piauiense promete fazer chorar os ouvintes quando declamar
ali vestido de fardão bordado a ouro, seus versos consagrados. Será um festão. Vem a Rachel de Queiroz e outros
imortais. Vamos prestigiar a festa dos nossos imortais. [...]” (O DIA. Teresina, p. 2, 13 dez. 1977.
401
BOURDIEU, 2002, p. 14-15.
402
MICELI, Sérgio. Introdução: a força do sentido. In: BOURDIEU, Pierre. A economia das trocas simbólicas.
São Paulo: Perspectiva, 2011. p. IX.
178

os desejos de produzir no Piauí um acessório distintivo, assim como ocorre na Academia


Brasileira de Letras, foi alterado em virtude das condições econômicas dos imortais e da
instituição piauiense. Contudo, na ausência de fardão, a simbologia da distinção será expressa
no manto acadêmico. A representação forjada por meio desta peça interliga os acadêmicos entre
si e amplia a distância entre eles e a população, posto que o uso do manto em reuniões e
solenidades garante unidade e identificação ao grupo à medida que os distingue e os separa do
restante da sociedade.403

Figura 6 – Solenidade de entrega dos mantos acadêmicos404

Fonte: SILVEIRA, Nildomar da (org.) Livro do Centenário da Academia Piauiense de Letras: 1917-2017.
Teresina: Academia Piauiense de Letras, 2017. p. 78.

403
Aparentemente o uso do manto não durou muito tempo. No ano 2000, volta-se a discutir a confecção e uso de
acessório distintivo pelos acadêmicos imortais, como o registrado nas Atas da APL: “[...] Aberta a sessão, ouviu-
se as palavras iniciais do presidente Celso Barros Coelho [...] Em seguida submeteu à Assembléia as seguintes
proposições: 1. Na solenidade de posse da nova Diretoria da APL, dia 24 de janeiro, entrega a todos os acadêmicos
de um ‘certificado de membro efetivo’, com a denominação de ‘Diploma 2000’ em homenagem ao último ano do
milênio. 2. Criação de um distintivo para uso obrigatório nas solenidades da Academia (faixa, medalha, colar
acadêmico, etc.). [...] A Assembléia aprovou as sugestões do presidente, ficando para outra oportunidade,
conforme considerações da Acadêmica Fides Angélica de Castro Veloso Mendes Omatti, acertos e detalhes quanto
à formatação da insígnia, uma espécie de ‘colar acadêmico’, e também uma ‘medalha’, como distintivos dos
membros da APL [...]” (ACADEMIA PIAUIENSE DE LETRAS. Atas da Academia Piauiense de Letras,
Teresina, p. 3, 8 jan. 2000).
404
Da esquerda para a direita: acadêmicos Tito Filho, Armando Basto, Fontes Ibiapina, Marins Vieira, Cunha e
Silva, Miguel de Matos e Lilizinha Carvalho.
179

A preocupação com a imagem social do sodalício fez com que, ao longo dos anos, outros
critérios, estes não-literários, fossem adotados como forma de avaliar o ingresso ou não de
novos sócios. Não bastasse a quantidade reduzida de sócios, o caráter restrito de seus acessos,
o comportamento social dos candidatos também será apontado como qualificador. As tentativas
de diferenciar as práticas da Academia Piauiense de Letras dos comportamentos cotidianos
impactam nas produções de seus membros, nas posturas adotadas e também nas formas de
comportamento social que devem possibilitar novas sociabilidades para os sujeitos e a
instituição, além de promover uma nova dinâmica cultural para o Piauí. A preferência dada a
candidatos sóbrios, polidos, cordiais, elegantes e que dominassem as regras de etiqueta social
são tentativas de aproximar a instituição dos hábitos e valores pretensamente associados à elite
piauiense. Os discursos que associam imortalidade a comportamentos e posturas sociais
evidenciam que, para ser imortal, são necessários investimentos pessoais que extrapolam a
dedicação à escrita e à prática literária.
Na década de 1970, o repúdio, explícito ou implícito, de comportamentos boêmios,
discursos deselegantes e posturas provocativas, visava afastar a imagem da Casa de Lucídio
Freitas das características atribuídas aos jovens produtores culturais, identificados como
rebeldes, pouco comedidos, subversivos e por isso, alvo de marginalização por parte dos
acadêmicos. A preferência por candidatos dotados de civilidade, urbanidade e discursos
comedidos aproxima a instituição do imaginário sobre as elites e, por outro lado, produz um
saber tradicional e, em muitos casos, descolado da cultura produzida e vivenciada de maneira
efetiva.
O domínio das habilidades que favorecem o acesso a imortalidade exige dos aspirantes
à Academia Piauiense de Letras um comportamento social diferenciado, um habitus, definido
por Pierre Bourdieu como um processo de inculcação de valores, uma gramática geradora de
condutas, um

[...] princípio unificador e gerador de todas as práticas [...] o habitus, sistema


de disposições inconscientes que constitui o produto da interiorização das
estruturas objetivas e que, enquanto lugar geométrico dos determinismos
objetivos e de uma determinação, do futuro objetivo e das esperanças
subjetivas, tende a produzir práticas e, por esta via, carreiras objetivamente
ajustadas às estruturas objetivas.405

A Academia Piauiense de Letras projeta-se assim, como instituição cultural que agrega
indivíduos com objetivos e comportamentos articulados em torno do cultivo da língua e

405
BOURDIEU, 2011, p. 201-202.
180

literatura, bem como do desejo de participar do processo de desenvolvimento do Piauí. Ao


admitir o ingresso daqueles que compartilhavam formação acadêmica, pertencimento a
gerações literárias afins, inseridos em rede de sociabilidades literárias e reconhecidos por suas
obras e por seu comportamento social, a Academia Piauiense de Letras estimula o consenso em
torno de determinadas posturas. No tópico seguinte, discutiremos até que ponto J. Miguel de
Matos conseguiu articular os saberes capazes de inseri-lo na Casa de Lucídio Freitas.

4.3 J. Miguel de Matos, candidato a imortal

Em 1967, J. Miguel de Matos inseriu-se efetivamente nas disputas visando o ingresso


na Casa de Lucídio Freitas. Neste ano, a instituição comemorava cinquenta anos e, como parte
das celebrações, o número de sócios seria acrescido em dez. Internamente, a Academia
Piauiense de Letras estava fragilizada pela perda de subsídios financeiros e pelo distanciamento
dos acadêmicos das atividades institucionais. A gestão de Simplício de Sousa Mendes refletia
a vida acadêmica: longeva e inerte. Contudo, a comemoração do cinquentenário de uma
academia de letras representava um marco em terras piauienses. Celebrar o jubileu de uma
instituição que, a duras penas, sobrevivia em meio às dificuldades culturais e educacionais do
Estado, funcionava estrategicamente no sentido de atrair atenções, captar investimentos
financeiros e renovar o interesse de seus membros. No plano simbólico, representa a ação de
uma instituição que resiste, apesar das dificuldades.
Nos espaços disponíveis nos jornais, o presidente iniciou uma campanha visando a esta
celebração. A rememoração dos dias gloriosos da agremiação, a apresentação de comentários
sobre os acadêmicos, as denúncias em torno do abandono do poder público e a convocação dos
imortais para organização das atividades tornaram-se constantes nos jornais. A desorganização,
as disputas entre os membros e a manutenção de uma postura conservadora em relação à
imagem idealizada que tinham de si e da atuação social da instituição fazem-nos concluir que
entre os imortais havia um interesse em usufruir dos benefícios da imortalidade sem a
contrapartida de um investimento pessoal.
O principal objetivo da Academia Piauiense de Letras em 1967 fixou-se no
preenchimento de seu quadro de sócios e na ampliação de suas cadeiras. Demonstrando querer
movimentar a vida acadêmica, o presidente afirmou que as dez novas vagas seriam preenchidas
por indivíduos que tivessem sua intelectualidade reconhecida e se destacassem em suas
atuações em prol do desenvolvimento do Piauí. Militar aposentado, romancista, colaborador
ativo da imprensa e pesquisador da literatura piauiense, J. Miguel de Matos acreditou preencher
os requisitos necessários para o ingresso na imortalidade. Para chamar atenção para si,
181

intensificou sua produção escrita e, taticamente, construiu uma rede de sociabilidades literárias
que reforçava sua atuação através de comentários elogiosos. Entre as atividades a que se
dedicou durante este ano, destacamos a escrita e lançamento do segundo volume de
Caminheiros da Sensibilidade, edições da Revista Mafrense, trocas de correspondências com
acadêmicos e escritores de destaque, escrita de textos elogiosos sobre personagens ligados à
Academia Piauiense de Letras, a divulgação de autoelogios e a produção de uma série de textos
que, publicados no jornal O Dia, dois anos depois seriam transformados no livro Pisando Os
Meus Caminhos.
Seus amigos e apoiadores também se esforçaram: Lili Castelo Branco, Hardi Filho,
Francisco Miguel de Moura, Deoclécio Dantas, Altevir Alencar406 e Elvira Raulino407
utilizaram os espaços nos jornais, revistas e programas de rádio para reforçar sua imagem como
escritor ativo, conhecido entre os estudantes408 e um pesquisador talentoso compatível com as
exigências da Academia Piauiense de Letras. Inauguração de busto de madeira em sua
homenagem no Museu do Piauí409 e comentários como “continue, Zémiguel, e amanhã, quando
você bater as portas da Academia, elas por certo, se lhe abrirão, acolhedoras”410 envaideciam e
estimulavam seu destinatário. Os mais afoitos o instruíam a seguir o exemplo de Nerina Castelo
Branco dizendo

É louvável que se dificulte o ingresso de escritores ou beletristas na Academia


Piauiense de Letras [...] O ingresso suado, dificultado e marcado pelas
pressões de todo tipo, muitas delas tramadas mais para provar a esportividade
do candidato, serve na verdade para valorizar a Academia e o futuro imortal.
Este é talvez o caso do futuro acadêmico J. Miguel de Matos, o comentado
poeta-soldado de “Caminheiros da Sensibilidade”. Ele não se empenha em
conquistar o sorriso da Academia nos primeiros flertes, não, o poeta até que
se sente feliz ao ver a Academia com atitudes de Capitu, [...] Mulher
inteligente, mesmo quando simpatiza com o conquistador, costuma dificultar
a conquista, [...] Assim age a Academia – e age certo, apesar de, antes, haver

406
Altevir Soares Alencar nasceu em Alto Longá em 1934. Bacharel em Direito, político, professor, jornalista e
poeta. Além da imprensa local, atuou também em jornais do Ceará, Pernambuco, Mato Grosso. Pertence à
Academia Sul-Mato-Grossense de Letras, à Academia de Letras do Vale do Longá e da Academia Piauiense de
Letras onde desde 2000 ocupa a cadeira número 14. É autor de Sonho e Realidade, Eterno Crepúsculo e Poemas
da Solidão.
407
Elvira Mendes Raulino nasceu em Teresina, 1946. É considerada a papisa do colunismo social piauiense, tendo
colaborado em quase todos os jornais da capital: Folha da Manhã, O Dia, O Estado e Meio Norte. Fundou a
Associação de Colunistas Sociais do Brasil e da Associação de Colunistas Sociais do Piauí. Ex-prefeita da cidade
de Altos (2001-2004).
408
“[...] Numa prova de Português, no Ginásio Eurípedes de Aguiar, um professor pediu que os alunos citassem
dois escritores piauienses. Os dois mais citados: J. Miguel de Matos e Castro Aguiar. [...]” (NOTAS e fatos. O
Dia, Teresina, p. 8, 12 jul. 1967).
409
“[...] Um busto em madeira, do poeta J. Miguel de Matos, preparado pelo pintor e escultor Chico Barros, será
inaugurado no Museu de Arte do Piauí, dirigido por Josias Clarence. A acadêmica Nerina Castelo Branco receberá
o poeta por ocasião da solenidade e aposição do busto, marcado para o próximo mês [...]” (NOTAS e fatos. O Dia,
Teresina, p. 8, 23-24 jul. 1967).
410
MATOS, J. Ribamar. Carta a J. Miguel de Matos. O Dia, Teresina, p. 3, 21 mar. 1967.
182

cometido pecados veniais ao sorrir exageradamente para certos casanovas


metropolitanos que perderam os fortes vínculos com a província. Mas agora
J. Miguel de Matos acha que chegou o momento de encostar. O pai da moça,
ou seu tutor, o veterano professor Simplício de Sousa Mendes, já abriu o sinal
verde para o escritor antologista. Portanto, J. Miguel pode tirar o chapéu, pedir
licença e entrar. E eu estou aqui para aplaudir o gesto do novo casanova das
letras piauienses. Sei de antemão que J. Miguel dá muita ênfase ao beletrismo,
que eu considero uma espécie de desvio da literatura, ou a perdição da
literatura. Mas não devemos nem podemos exigir que todos busquem o mesmo
caminho. [...] Portanto, deixando de muita conversa vamos aplaudir o próximo
ingresso do poeta J. Miguel de Matos na Academia Piauiense de Letras. Poeta,
chegou a hora: tire o chapéu, peça licença e entre. - E se o velho não deixar? -
E se o velho não deixar, faça como a Nerina. Tamanho homem! Ou você não
é cabra do Nordeste?411

Pompílio Santos comparava a Academia Piauiense de Letras a uma moça que, para
valorizar-se, dificultava a sedução de um pretendente. Embora reconheça que o estilo literário
praticado por J. Miguel de Matos não o agradasse, não deixava de reconhecer os esforços do
escritor e dizia que podia contar com a permissão do “pai da moça”, o presidente da instituição.
De fato, Simplício Mendes chegou a reconhecer publicamente o interesse de J. Miguel de Matos
pela Academia Piauiense de Letras, e embora não descartasse seu ingresso, seu posicionamento
apontou que este deveria concorrer às vagas em aberto, ou seja, que não esperasse ingressar nas
novas cadeiras, de indicação direta da presidência. Apesar disso, J. Miguel de Matos esforçou-
se para construir uma relação cordial com Simplício Mendes afirmando que este é “soberba
prova de fecundidade de jornalística e solidez cultural”.412 Posteriormente, o soldado-escritor
seria confrontado com posicionamentos distintos

O Des. Simplício de Sousa Mendes, [...] disse-me que a minha entrada para a
Academia se daria, intransferivelmente até o mês de dezembro do corrente
ano. Todavia, em conversa com o ilustre Prof. e Acadêmico Tito Filho,
Secretário Geral daquele sodalício, tomei conhecimento de que as vagas
existentes já estavam reservadas para outros candidatos de absoluta escolha
do Des. Simplício Mendes.413

Contudo, se lembrarmos que às vésperas do aniversário de cinquenta anos da Casa de


Lucídio Freitas haviam cadeiras vagas e que Simplício Mendes considerava pôr em
disponibilidade aquelas cujos eleitos ainda não tivessem tomado posse, J. Miguel de Matos se
permitiu ter esperanças. Com a reabertura da concorrência para a cadeira 17, após espera de dez

411
SANTOS, Pompílio. J. Miguel de Matos e a Academia de Letras. O Dia, Teresina, p. 6, 24 abr. 1967.
412
MATOS, J. Miguel de. Campanha de assinatura do jornal “O Dia”: uma iniciativa meritória. O Dia, Teresina,
p. 7, 16-17 abr. 1967.
413
NOTAS e fatos. O Dia, Teresina, p. 8, 1 ago. 1967.
183

anos,414 quatro intelectuais se candidataram a vaga: o beletrista J. Miguel de Matos, a colunista


Iracema Santos Rocha e Silva, o jornalista Francisco Cunha e Silva415 e o desembargador Luís
Lopes Sobrinho.416 Após um processo de inscrição apressado e inusitado,417 Iracema Santos
recebeu 13 votos e J. Miguel de Matos, 11, ambos passando para um segundo escrutínio.
Desacostumada a noticiar um processo eleitoral tão concorrido, a imprensa local chegou a
sugerir à presidência que findasse a eleição e considerasse os dois candidatos eleitos,
destinando-os para as cadeiras ainda não ocupadas: as de Odilo Costa Filho e Sousa Neto.
Curiosamente, o tom conciliador adotado pelo jornal reivindicava o cumprimento do
dispositivo regimental relativo ao preenchimento das vagas para, em seguida, sugerir uma
solução, no mínimo criativa, para o pleito.418
A sugestão não foi acatada e os candidatos partiram em busca de votos em suas redes de
sociabilidades. Correspondências, cartões e telegramas foram apresentados como cédulas
eleitorais, contudo, no momento da apuração, constatou-se que haviam votos duplicados, para
ambos candidatos, pertencentes a acadêmicos residentes no Rio de Janeiro como Carlos Porto,

414
“[...] Está vaga há anos, desde a morte do primeiro ocupante, Dr. Odilo de Moura Costa [...] O Dr. Odilo Costa
Filho, nome de jornalista e homem de letras, - de projeção dentro e fora do País, - candidatou-se e fez questão de
suceder ao seu brilhante pai. E foi logo eleito. Sempre para vir tomar posse e a verdade é que vinha, de quando em
quando, ao Piauí, - e não cogitava de tomar assento na cadeira do sodalício piauiense porque tanto se interessara.
Solicitado mais de uma vez, - nunca deu reposta [...] Foi marcada a sua posse e, com antecedência de meses, o
Secretário Geral da Academia – Dr. J. de Arimathéa Tito disto lhe mandou aviso. – acrescentando que a oração de
posse poderia ser enviada, - caso não pudesse vir, - empossar-se-ia por procuração. Os estatutos da Academia
prescrevem, que marcada o dia da posse por edital e avisado o empossando – este não se apresentando no dia e
hora, - perde a cadeira, - ficando sem efeito a eleição. Deploravelmente é o que ocorre com o Dr. Odilo Costa
Filho, - não obstante o interesse que tomou de suceder ao seu ilustre progenitor. Há cerca de dez anos espera-se
pelo gesto espontâneo do jornalista e literato brasileiro, Dr. Odilo Filho, - sem que ele se disponha a vir a Teresina
ocupar efetivamente a cadeira 17ª [...] Mas o silêncio foi sempre o comportamento do eminente eleito, - em relação
à Casa de Lucídio Freitas. [...] A cadeira n° 17 está para ser declarada vaga, na próxima reunião da Diretoria da
Casa de Lucídio Freitas [...]” (MENDES, Simplício de Sousa. Televisão: a cadeira nº 17 da Academia. O Dia,
Teresina, p. 3, 25 out. 1967).
415
Francisco da Cunha e Silva nasceu em Amarante em 1904 e faleceu em Teresina em 1990. Atuou como
professor de Português, Francês e História. Catedrático de História do Brasil da Escola Normal Antonino Freire.
Dirigiu o Liceu Piauiense e a Casa Anísio Brito. Colaborou na imprensa piauiense, carioca e maranhense. Escreveu
Gatos de Palácio e A República dos Mendigos. Pertenceu ao Instituto Histórico e Geográfico do Piauí e à
Academia Piauiense de Letras, empossado em 1975 na cadeira número 8.
416
Nasceu em Oeiras, 1905 e faleceu em Teresina em 1984. Bacharel formado na Faculdade de Direito do Piauí.
Professor, juiz, desembargador e jornalista. Em 1972, tomou posse na cadeira 25 da Academia Piauiense de Letras.
417
No dia 9 de novembro de 1967, Simplício Mendes afirmou: “[...] Cada candidato à inscrição deve vir logo com
currículo vitae [...]” (MENDES, Simplício de Sousa. Televisão: a cadeira nº 17. O Dia, Teresina, p. 3, 9 nov. 1967.
No dia 28 de novembro de 1967 registra-se: “[...] Reuniu-se, sábado último, na residência do Desembargador
Simplício de Sousa Mendes, a Academia Piauiense de Letras para proceder, por votação aberta, o preenchimento
da Cadeira nº 17” (O DIA. Teresina, p. 1, 28 nov. 1967).
418
“[...] De acordo com o regimento da Academia, ante a ausência do Sr. Sousa Neto no dia em que deveria se
sagrar imortal, foi declarada vaga pelo emérito Presidente da Academia – Des. Simplício Mendes a respectiva
cadeira. Consideradas ontem as votações havidas 13 votos, para a prof. Iracema, 11 votos para o Sr. J. Miguel de
Matos, bem que poderia ser o último, aproveitado agora para a Cadeira n° 8. A professora Iracema esta receberia
naturalmente, eleição para a Cadeira n° 17, em se considerando ter sido a mais votada. [...]” (O DIA, Teresina, p.
8, 6 dez. 1967).
184

Cristino Castelo Branco e Martins Napoleão. Na impossibilidade de conferir a autenticidade das


correspondências, solicitou-se ao acadêmico renunciante José Auto de Abreu, também residente
no Rio de Janeiro, que apurasse o acontecido.419 Diante das dúvidas, Simplício de Sousa Mendes
decidiu suspender o pleito. Sobre o acontecido, assim se manifestou o presidente da instituição

A cadeira n°17 continuará vaga: - assim deliberou a assembléia que se reuniu,


para tomar conhecimento da eleição realizada em 2° escrutínio. É que a
Academia, por mais ampla liberalidade, admitiu a votação por telegrama. Mas
isso, que parecia solução mais democrática, - no final, deu na mais
intempestiva confusão. Diversos telegramas, do mesmo dia, ou dias depois,
passado do Rio, com votos aos dois candidatos, dando, assim, suspeitas de
fraude. [...] Era natural que toda correspondência telegráfica ficasse eivada de
suspeição, - deliberando, então, a comissão da Academia não apurar a eleição
assim viciada [...] Resultou isso da atividade amplamente desenvolvida,
pedindo votos, para este ou aquele candidato. É uma prática condenável, -
quando os votos acadêmicos devem ser espontâneos, e, nunca, por pedidos ou
atenções pessoas. Diante desse fracasso eleitoral, - a Academia reunir-se-á
para estudar e admitir a reforma do processo eleitoral [...] Tudo indica que há
fraude, correspondência não autêntica, apócrifa, - suspeita, sem validade
comprovada. Não se pode admitir, que homens de responsabilidade vacilem
assim, mudando de opinião de uma hora para outra, de momento a momento.
O preenchimento da cadeira 17 ficará adiado, provavelmente e o novo estatuto
de votação será, oficialmente organizado e publicado.420

O que parecia ser uma decisão justa e legítima, irritou os concorrentes. Convencida que
tinha maioria dos votos, Iracema Santos, nos anos seguintes recorria a este processo para
denunciar as práticas viciadas da Academia Piauiense de Letras. 421 J. Miguel de Matos adotou

419
“[...] A propósito dos telegramas citados a professora Iracema, ainda sábado, por intermédio do Dr. Auto de
Abreu, se comunicou com o Dr. Carlos Porto e Des. Cristino Castelo Branco, já tendo em resposta recebido o
seguinte telegrama: “Mantenho voto a favor seu nome Cristino Castelo Branco”. Hoje, às 17 horas, (horário
antigo), a Academia Piauiense de Letras estará reunida para a votação do preenchimento da cadeira de n°17. [...]”
(IRACEMA praticamente eleita. O Dia, Teresina, p. 1, 12 dez. 1967); “[...] A propósito dos telegramas falsos
recebidos pela Academia Piauiense de Letras, envolvendo criminosamente o nome de diversos acadêmicos ilustres
residentes no Rio, o jornalista Maranhão e Silva, esposo de Iracema Santos, acaba de receber do Dr. Carlos Eugênio
Porto, com data de 11 do corrente, a seguinte correspondência: ‘Tive hoje, por intermédio de José Auto de Abreu,
uma notícia surpreendente: que haviam telegrafado em meu nome encaminhando um voto a pessoa que nem sequer
conheço e, que de resto, nada me pediu. Não sei, nem quero saber quem se atribuiu esse direito de usar o meu
nome, nem tão pouco desejo participar das lutas que empolgam a Academia. Mantenho, todavia, com o maior
prazer, o voto que enviei, por seu intermédio, a dona Iracema Santos Rocha da Silva, que julgo merecedora da
eleição. [...]” (REPÓRTER do Dia. O Dia, Teresina, p. 3, 15 dez. 1967).
420
MENDES, Simplício de Sousa. Televisão: eleição na Academia. O Dia, Teresina, p. 3, 14 dez. 1967.
421
Em 1969 afirma: “[...] A direção da Academia Piauiense de Letras está noticiando para as 20 horas de hoje, no
Clube dos Diários, solenidade de posse de Odilo Costa Filho na Cadeira nº 17 desta Casa de Cultura. Já que me
faltam meios para obrigar a direção da APL a me empossar, como de justiça e de direito, nesta cadeira para a qual
fui regular, legal e legitimamente eleita, por mais de uma vez, só me resta registrar de público, para documentário
histórico, a verdade do fato [...] Como já é do conhecimento do público, oficialmente foram realizadas duas
votações tendo eu em ambas, conseguido maioria dos votos [...] A direção da Casa de Lucídio Freitas, alegando
recebimento de telegramas falsos que, entretanto, não me diziam respeito e que deveriam apenas ser anulados – o
que ocorre num processo eleitoral – resolveu convidar novamente Odilo Costa Filho para a cadeira 17, sem respeito
ao processamento regulamentar da Academia para preenchimento de uma cadeira, sem respeito aos votos da
maioria dos acadêmicos, sem respeito ainda, à realização de uma eleição que continuava e continua válida e sem
respeito à opinião pública do Estado. Tomando conhecimento deste assunto, reconhecendo a honorabilidade de
185

postura mais agressiva, com críticas a decisão de Simplício Mendes e à intervenção de Auto de
Abreu, com posicionamentos que repercutiram negativamente em sua imagem. Não localizamos
o teor de suas críticas feitas a Auto de Abreu, mas a solidariedade que jornalistas e intelectuais
manifestaram nas páginas dos jornais locais, apontam para um descontrole das críticas feitas pelo
candidato derrotado. Sabemos que, em resposta, Auto de Abreu o qualificou como escatófilo e
aretino, adjetivos não compatíveis com a erudição reivindicada por J. Miguel de Matos.
A resposta institucional diante das agressões ao acadêmico renunciante expressa a forma
como alguns acadêmicos passaram a lidar com as aspirações do soldado-escritor

Academia Piauiense de Letras, pela respectiva Diretoria, sente-se no dever de


protestar contra a grosseria intempestiva, injustificável, irrefletida, visando,
opor todos os títulos, respeitável personalidade do acatado e eminente
confrade Dr. José Auto de Abreu, [...] Um candidato à vaga existente na
cadeira n° 17, - provavelmente insofrido, inquieto, agitado, porque não
conseguiu ser eleito, - lança-se em desprimorosos, desatenciosos e
injustificáveis conceitos contra o respeitável, estimado e austero piauiense,
sem que haja ou tenha razão, para tão inesperada agressividade. O Dr. José
Auto de Abreu, por motivos ignorados, que, parece-nos, nunca os revelou a
ninguém, - afastou-se das atividades acadêmicas, - negando-se sempre a tomar
parte nas reuniões e deliberações do Sodalício, do qual é membro perpétuo
com assento na cadeira 18° [...] A verrina causou mal-estar geral, -
decepcionando a sociedade teresinense, que tanto acata e admira o caráter
rígido, os altos sentimentos humanos, a austeridade moral do conterrâneo de
fina e educada formação social. Pelas virtudes pessoais, exteriorizadas mesmo
no trato comum, - o Dr. José de Abreu é querido do povo, - gozando das
simpatias de todas as classes populares de Teresina e do Piauí. É vulto que se
impõe pela inteligência, pelas tradições, pelas excelências valorativas do
caráter de homem público e privado [...] Apenas, de volta ao Rio, - a pedido,
- esclareceu a duplicata de votos – dados por telegramas, e atribuídos a alguns
acadêmicos residentes no Rio de Janeiro. Assim, o excelente confrade e
piauiense ligado à terra pelo coração, - quis ser atencioso, correto e prestativo,
- sem que manifestasse ou tivesse preferência por este ou aquele pleiteante da
cadeira vaga da Academia. Ele próprio não atendeu a pedidos valiosos e
negou-se a votar, em qualquer dos concorrentes. A catilinária divulgada, por
equívoco, pela Rádio Club, ecoou mal na sociedade piauiense, - mesmo
porque ofendeu personalidade querida e estimosa – covardemente,
extemporaneamente, - sobretudo, - ausente. A Academia Piauiense de Letras,
- pela sua Diretoria, - por isso mesmo protesta, manifestando repulsa a essa
complexada, intempestiva, injustificável grosseria, tomando-se por pretexto
uma eleição acadêmica [...] A verrina merece repulsa; - foi injusta, recalcada,
- surpreendente, - contra os sentimentos gerais e evidentes da sociedade
piauiense. As ambições, - as aspirações às promoções de agremiações
literárias são merecedoras de aplausos, mas os candidatos à Academia
Piauiense de Letras devem ser, antes do mais, gente socialmente austera, bem

Odilo Costa, não acreditamos que o jornalista concorde com a sua posse na Cadeira 17 [...]” (NOTA ao público.
Jornal do Piauí, Teresina, p. 1, 15 ago. 1969). Em 1985 diz: “[...] E penso nas duas eleições que tive para aquele
sodalício: no primeiro escrutínio, ganhei por onze votos, no segundo, por dezoito. Mas não levei, levantaram a
tese de que os votos não eram a maioria da Academia [...]” (SANTOS, Iracema. De Cultura. O Estado, Teresina,
p. 8, 3 jan. 1985).
186

educada, - de formação educativa ao nível da nobre instituição de letras, de


ciências, de elevadas e aprimoradas relações espirituais e humanas. A
Academia é, tenha-se em mente, uma promoção de cultura e, a cultura é
espiritualidade aprimorada em ação [...] A Academia é a Casa da inteligência,
- do saber, das artes, das ciências, - da sociabilidade, das boas maneiras, -
apanágio das elites intelectuais. As ofensas pessoais não tem cabimento, - são
escusadas, contra indicadas aos candidatos, - por mais humildes ou fidalgos
que possam ser.422

Ao opor o comportamento de Auto de Abreu ao de J. Miguel de Matos e enaltecer as


qualidades morais do primeiro, a Academia Piauiense de Letras indicava quais posturas
esperava de seus membros. Segundo o presidente, atitudes intempestivas e ofensas pessoais não
combinavam com a espiritualidade, a inteligência e as boas maneiras de homens letrados. Ao
defender a Casa de Lucídio Freitas como um lugar de sociabilidade e boas maneiras e apontar
que J. Miguel de Matos não as possuía, na prática, Simplício Mendes estava dizendo que esta
instituição não era o seu lugar. Observemos que, em nenhum momento o texto fez referência à
produção escrita ou à atuação cultural de J. Miguel de Matos. Quando Simplício Mendes o
adjetivou como grosseiro, covarde e complexado colocou-se em suspeição todo o esforço
pessoal, a atuação social e os interesses por trás daquilo que o candidato produzia.
O incidente afetou como os contemporâneos acolhiam as aspirações e os
posicionamentos de J. Miguel de Matos e teve repercussão em momentos posteriores. Em 1969,
o que havia sido a publicação diária de Pisando Os Meus Caminhos tornou-se livro. Nestes dois
anos, J. Miguel de Matos pode refletir e atribuir sentidos aos acontecimentos. No novo texto, o
soldado-escritor reinvestiu na sua condição social, na sua capacidade de superação e nos
círculos que conseguiu inserir-se em virtude de sua erudição. A novidade presente no capítulo
“A Doida Ângela”, sobre o qual já comentamos, estava no argumento defendido pelo escritor:
a Academia Piauiense de Letras escondia, sob a fachada do conservadorismo e defesa de boas
maneiras, práticas de segregação e negação da pobreza social que existia para além da realidade
de seus sócios. Enquanto o presidente da Academia Piauiense de Letras baseou suas críticas nas
polêmicas e acusações injustificadas que J. Miguel de Matos teria feito, este reagiu maculando
a imagem que a instituição queria construir para si, afirmando que seus membros eram
escolhidos com base em suas condições social e financeira. Ambos desviam seus argumentos
do que deveria realmente importar: a qualidade literária e as ações deste agente cultural.
Infelizmente, não tivemos acesso a nenhum dos jornais publicados em Teresina no ano
de 1968, de modo que há uma lacuna quanto ao desenrolar desses conflitos. Todavia
identificamos que, a partir deste momento, ao lerem o que J. Miguel de Matos escrevia nos

422
MENDES, Simplício de Sousa. Televisão: Dr. José Auto de Abreu. O Dia. Teresina, p. 3, 16 dez. 1967.
187

variados suportes a que tinha acesso, os imortais e alguns de seus contemporâneos certamente
compreendiam a quem seus textos eram dirigidos. As exposições de defeitos e más-práticas
foram tidas como afrontas, algo que dessacralizava o lugar social que os acadêmicos julgavam
merecer. A essa imagem construída sobre si, a Academia Piauiense de Letras reagiu ora com
silêncios, ora com trocas de acusações recíprocas. Contudo, convém destacar que, em nossas
fontes, não há referências a um processo de autoanálise por parte dos imortais. As respostas
foram direcionadas exclusivamente ao candidato que, supostamente, não sabia perder. Quando
lhes era conveniente, estes não desperdiçavam oportunidade de rememorar este episódio a fim
de provocá-lo ou agredi-lo.423 Mesmo assim, o escritor continuou a sonhar com a Academia
Piauiense de Letras.
Por meio dos jornais, encontramos J. Miguel de Matos nos anos 1969 e 1970 em plena
atividade literária e jornalística. A imprensa registrava suas trocas de correspondências com
outros agentes culturais, sua escolha para delegado do Instituto de Cultura Americana no Piauí,
fazia referências às novas edições da Revista Mafrense, ao lançamento de Pisando Os Meus
Caminhos em Fortaleza, Teresina, Floriano e São Luís, acompanhada de muitos elogios ao texto
e à capacidade de superação de seu escritor. Tudo isso apontava para uma aceitação de sua
produção escrita, conquistada pelo trabalho árduo e no frágil cultivo de redes de afetos e parcerias.
Nos primeiros dias de 1971, Simplício Mendes faleceu em Teresina e, em seu lugar, A.
Tito Filho assumiu a presidência da Academia Piauiense de Letras. Ávida por polêmicas, a
imprensa piauiense questionou Iracema Santos se ela se candidataria à vaga e esta reiterou suas
suspeições quanto aos processos eleitorais da instituição. J. Miguel de Matos apresentou
posicionamento oposto e, passados três anos de sua candidatura inicial, J. Miguel de Matos
sentiu-se apto à disputa de um novo pleito. Diante da repercussão de sua candidatura,
novamente acreditou que sairia vitorioso.424 Desta vez seu adversário foi Luís Lopes Sobrinho
que, ao final saiu-se vencedor.425

423
“[...] A Academia bem que podia fundar uma cadeira para o POETA. Acontece que naquela casa só tem assento
pessoas de reconhecida capacidade intelectual e ilibado conceito moral. – Nenhuma das duas o POETA preenche.
Mais deixa que já mandamos fazer um banquinho onde o POETA, sozinho pode sentar-se e meditar a respeito de
suas artimanhas [...]” (SEM COMENTÁRIO: o “imortal” José Miguel de Matos. Estado do Piauí, Teresina, p. 3,
20 jun. 1971).
424
O presidente em exercício da Academia Piauiense de Letras afirma ter recebido currículo e documentação de
J. Miguel de Matos e acrescenta: “[...] Documentação valiosa, reunindo opiniões de muitos críticos a respeito da
obra e da personalidade do intelectual piauiense. Opiniões valiosas, aliás [...]” (TITO TILHO, A. Caderno de
anotações. Jornal do Piauí, Teresina, p. 2, 27 fev. 1971).
425
Sobre a candidatura de J. Miguel de Matos em 1971 encontramos poucas informações nos jornais, posto que
estes estão em sua maioria já lacrados e inacessíveis aos pesquisadores. O Livro de Atas da Academia Piauiense
de Letras nos traz algumas informações sobre o dia da eleição, contudo, em virtude das características desta fonte,
os relatos apresentados são técnicos e formais, não evidenciando as expectativas e as emoções em torno dos
resultados das eleições. Segundo o redator: “[...] Durante o pleito não houve qualquer reclamação ou protesto [...]”
188

Diferente da versão oficial, J. Miguel de Matos protestou contra o resultado. Em texto


no qual criticou o posicionamento do candidato derrotado e o da instituição, Iracema Santos
assim se pronunciou

J. Miguel de Matos que foi derrotado domingo último na eleição da Academia


Piauiense de Letras para preenchimento da Cadeira n. 25, que foi ganha pelo
poeta Dr. Luiz Lopes Sobrinho, está dizendo à imprensa que perdeu porque
foi traído e que a Academia Piauiense de Letras “só existe na cabeça de seu
Presidente”, o que se torna mais uma acusação grave para a Casa de Lucídio
Freitas. De nossa parte apenas podemos dizer, se a gente se der o trabalho de
escrever o que tem sido a vida e os “expedientes” da APL nos últimos anos,
se encontra matéria para muitas edições ...426

A articulista reitera sua posição construída a partir do cancelamento da eleição de 1967.


Questiona também o posicionamento de J. Miguel de Matos que se dizia vítima de conspiração.
Segundo ela, o escritor se contradizia ao manifestar interesse em uma instituição que, segundo
ele, não existia na prática. Mais do que apontar as incongruências do discurso do candidato
derrotado e atiçar os ânimos, Iracema Santos via em episódios como este, oportunidades de
reafirmar seu descrédito em relação à Casa de Lucídio Freitas.
Analisando as posturas de J. Miguel de Matos, o desembargador Fernando Lopes
Sobrinho teceu comentários sobre suas práticas em busca da imortalidade acadêmica. Afirmava
ser esta uma ambição comum aos homens de letras, todavia, a impaciência de J. Miguel de
Matos o atrapalhava, levando-o a cometer leviandades que só o prejudicavam. Este disse

Bem pode haver ira sem haver pecado [...] Vieram-me à lembrança estas
palavras do grande escritor lusitano, lendo um artigo sobremodo inamistoso
do ilustre escrito J. Miguel de Matos contra a Academia Piauiense de Letras,
e por ele, irado, denominada jocosamente palhoça. A ira de J. Miguel de
Matos, a quem muito admiro pela tenacidade com que tem sabido conquistar
merecidos louros no campo da literatura piauiense, essa sua ira nasceu fato de,
como candidato, não ter sido eleito para a vaga aberta na APL [...] O mal de
J. Miguel de Matos é o de não possuir, tanto quanto necessário em um homem
de letras, a virtude da humildade, ao contrário do seu opositor, o poeta Luiz
Lopes Sobrinho. E no caso particular de J. Miguel de Matos, além dessa falta
de humildade, há uma coceira da imortalidade acadêmica justificável, aliás em
homens de letras mas que no autor de Caminheiros da Sensibilidade somente
o prejudica em suas aspirações a uma cadeira na Academia Piauiense de
Letras, porque é dessas que irritam e sangram pela impaciência do candidato.
Todavia, não chego a considerar um pecado, embora o pareça, os impulsos de
ira que dominam J. Miguel de Matos, em face de sua derrota [...] - Peça a Deus
que morram as múmias da APL de que falam os Chicos da tribuna dos
Herculanos... E a Academia Piauiense de Letras tem uma boa turma de velhos,
candidatos irreversíveis àquela imortalidade sem aspas, àquela imortalidade

(ACADEMIA PIAUIENSE DE LETRAS. Livro de Atas da Academia Piauiense de Letras. Teresina: APL, 1973.
p. 28).
426
SANTOS, Iracema. Retoques e notícias. Estado do Piauí, Teresina, p. 6, 10 jun. 1971.
189

sem ira e sem pecado, preço a ser pago por todos os mortais. E meu caro
escritor J. Miguel de Matos, insista, persista e não desista, apesar dos
pesares.427

Mais uma vez, os contemporâneos de J. Miguel de Matos o alertam sobre os perigos de


seus comportamentos. O exortam a continuar produzindo e tentando ingressar na Academia
Piauiense de Letras, porém recomendam-lhe moderação, pois seu afã de tornar-se imortal
irritava e provocava antipatias.
Alertam-no para os critérios já adotados nas campanhas que havia protagonizado. Para
ingressar na Casa de Lucídio Freitas, seria necessário um currículo condizente com as
exigências do edital, o domínio das regras de sociabilidade e, sobretudo, o controle de seus
impulsos. Por meio dos comentários como o de Fernando Lopes Sobrinho percebemos a
distância entre o que J. Miguel de Matos desejava e as habilitações que possuía para conquistá-
las.
Em 1972, J. Miguel de Matos deu continuidade às suas práticas como agente cultural.
Editou, cada vez com mais dificuldade, a Revista Mafrense, concluiu a escrita do terceiro
volume de Caminheiros da sensibilidade e iniciou série Grandes Vultos, no Jornal do Piauí,
na qual apresentava comentários biográficos sobre nomes que julgava significativos para a
cultura piauiense. A leitura de Caminheiros da Sensibilidade, Perfis e das colaborações
biográficas para a imprensa local nos apresenta um escritor que, a despeito de ter grande volume
de publicações e colaborações nos periódicos, repetia ou reaproveitava seus textos.
A conclusão de Caminheiros da Sensibilidade coincidiu com um momento importante
para as políticas culturais no Piauí. Através do Decreto nº 1416, de 17 de janeiro de 1972,428 o
governador Alberto Silva lançou o Plano Editorial do Estado com o objetivo de dinamizar o
setor educativo e cultural do Piauí a partir da edição e reedição de produções escritas sobre a
cultura local, sobretudo nas áreas da literatura, folclore, história, economia, sociologia e direito.
Segundo o governador, o Estado investia “no desenvolvimento global e não parcial do Piauí, e
que dispens[ava] aos intelectuais do [...] Estado o apreço que lhes é devido”.429
Ao mesmo tempo que incentivava a produção escrita e a tornava acessível a estudantes
e pesquisadores, as estratégias governamentais para executar o Plano Editorial do Estado
passava pela cooptação de intelectuais e os colocava em disputa por incentivos públicos para
edição de suas pobras. Implementado por Comissão Especial composta por membros da

427
SOBRINHO, Fernando Lopes. A coceira da imortalidade. Estado do Piauí, Teresina, p. 1-2, 25 jul. 1971.
428
PIAUÍ. Decreto 1.416. Diário Oficial, Teresina, p. 2, 28 jan. 1972.
429
SILVA, Alberto Tavares. Plano Editorial do Estado do Piauí. In: BRANCO, Hermínio Castelo. Lira sertaneja.
Teresina: COMEPI, 1972. (Não paginado).
190

Academia Piauiense de Letras, Conselho Estadual de Cultura, Companhia Editora do Piauí


(COMEPI) e Fundação Universidade Federal do Piauí, coordenados pela Assessoria de
Imprensa do Palácio do Governo, este projeto editorial foi responsável pela reedição de
importantes obras da literatura piauiense, a exemplo de Lira Sertaneja, de Hermínio Castelo
Branco e, no campo historiográfico, possibilitou a edição de Pesquisas Para a História do
Piauí, de Odilon Nunes. Ao todo, trinta e duas obras foram editadas pelo Plano Editorial do
Estado e, à medida que os membros da Comissão Especial se dispersavam, a Academia
Piauiense de Letras, sob a liderança de A. Tito Filho concentrou poder de decisão sobre as obras
que seriam lançadas,430 o que na prática, motivou críticas e rivalidades entre a Casa de Lucídio
Freitas e escritores externos a ela.
Uma dessas disputas envolveu o convite feito a A. Tito para que escrevesse a História
da Literatura Piauiense. A iniciativa, foi bastante elogiada por aqueles que compunham o
círculo intelectual do professor e presidente da Academia Piauiense de Letras. Honrado, o
escritor traçou plano de trabalho, que incluía a visita a arquivos e bibliotecas de fora do Estado,
e defendeu que a pesquisa possivelmente originaria não a um livro, mas sim a uma coleção
sobre a literatura piauiense. Isto atrairia mais visibilidade para o escritor e para a instituição que
presidia, além de reforçar a proximidade da Academia Piauiense de Letras com o poder público.
Contudo, nem todos concordaram com a feitura da obra e, principalmente, com a
indicação de A. Tito Filho para coordenação do projeto. O escritor O. G. Rego de Carvalho431,

430
O Plano Editorial do Estado selecionou as seguintes obras para publicação, subdivididas em duas categorias:
Monografias Históricas e Monografias Literárias. Obras sobre história e geografia do Piauí: Pesquisas para a
História do Piauí, de Odilon Nunes; História da Independência no Piauí, de Wilson de Andrade Brandão;
Geografia Física do Piauí, de João Gabriel Baptista; O Piauí na História, Devassamento e Conquista do Piauí,
Os Primeiros Currais, Economia e Finanças: Piauí colonial, O Piauí, Seu povoamento e Seu Desenvolvimento,
escritas por Odilon Nunes, Roteiro do Piauí, de Carlos Eugênio Porto; Cronologia Histórica do Estado do Piauí,
de F. A. Pereira da Costa; Governos do Piauí: capitania, província e estado, de A. Tito Filho; Soldados de
Tiradentes, de Celso Pinheiro Filho e Lina Celso Pinheiro; A Guerra do Fidié, de Abdias Neves; Nas Ribas do
Gurguéia, de Arthur Passos; História da Imprensa no Piauí, de Celso Pinheiro Filho e Depoimentos Para a
História da Revolução no Piauí, de Moisés Castelo Branco Filho. Obras que compõem a série literária: Lima
Rebelo: o homem e a substância, Deus e a Natureza em José Coriolano, Zito Baptista: o poeta e o prosador,
Esmaragdo de Freitas: homens e episódios, organizadas por A. Tito Filho; Lira Sertaneja, de Hermínio Castelo
Branco; Antologia Poética Piauiense, de J. Miguel de Matos; Antologia de Sonetos Piauienses, de Félix Aires;
Cem Anos Depois: o centenário de Fenelon Castelo Branco, de José Carlos de Santana Cruz e Margarida Leite; A
Casa de Lucídio Freitas, de J. Miguel de Matos; Seara Humilde, de Maria Izabel Gonçalves de Vilhena; A
Província Deserta, de H. Dobal; Praça Aquidabã, sem número, Teresina meu amor, Sermões aos Peixes, Viagem
ao Dicionário, de autoria de A. Tito Filho; O Piauí no Folclore Nacional, de Pedro Silva; Poesias, de R. Petit;
Perfis, de J. Miguel de Matos; Epopeia Camoniana, de Martins Napoleão; Tombador, de Fontes Ibiapina; Canções
de Hoje, Canções de Outrora, de Cristina Leite; Deslumbrado, de José Newton de Freitas e Sinhazinha de Karnak,
de Emília Castelo Branco de Carvalho.
431
Orlando Geraldo Rego de Carvalho nasceu em Oeiras em 1930. Bacharelou-se em Direito pela Faculdade de
Filosofia e lecionou Língua Portuguesa no Colégio Estadual Zacarias de Góis. Bancário. Participou ativamente
do cenário cultural do Estado durante os anos 1950 atuando junto a denominada Geração Meridiano. Romancista
de destaque no cenário nacional é autor de Ulisses Entre o Amor e a Morte, Somos Todos Inocentes e Rio
Subterrâneo. Durante a década de 1950, envolveu-se em acirradas disputas com intelectuais do Estado ao
191

à época o único escritor residente no Piauí a ser publicado e ter alcançado relativo sucesso fora
do Estado, questionou publicamente a iniciativa. Eis alguns fragmentos da crítica por ele
empreendida

Escrever a história do que ainda não existe? É uma piada. De resto, que
autoridade tem o professor Arimathéa para tal empreendimento? A de
articulista? A de escritor de prefácio? A de tribuno, um termo que tanto gosta?
A de repetidor de gramática? A de Presidente da Academia Piauiense de
Letras? Imagino que o Governador Alberto Silva quis fazer sua
vingançazinha: o professor Arimathéa vive na obsessão de combater o novo
estádio e é agora convidado a escrever um livro, cousa que, estou certo, nunca
fará. Este é, aliás, um desafio, a vez de o mestre comprovar a sua famosa
inteligência! Não tem ele, porventura, a maior biblioteca de autores
piauienses? É ler essas obras e escrever sobre elas. A melhor bibliografia, a
melhor fonte, ainda são os livros a conhecer. Assim faz Assis Brasil, assim faz
Francisco Miguel de Moura.432

Ao ser questionado sobre os limites de sua intelectualidade, A. Tito Filho rebateu, com
nove argumentos, o posicionamento de O. G. Rego de Carvalho, em uma disputa que se
desdobrou calorosamente por vários dias nos jornais de Teresina. As comunidades afetivas e as
redes de sociabilidades dos escritores foram arregimentadas: entre os principais apoiadores de
A. Tito Filho estavam os jornalistas J. Miguel de Matos e Cunha e Silva. Entre os apoiadores
de O. G. Rego de Carvalho encontramos Francisco Miguel de Moura, integrante do Círculo
Literário Piauiense, graduado em Letras pela Faculdade de Filosofia do Piauí. Em seu trabalho
de conclusão de curso, este havia produzido um ensaio crítico sobre a literatura produzida pelo
escritor oeirense. Pela qualidade das análises, a faculdade publicou o texto em forma de livro
intitulado Linguagem e Comunicação em O. G. Rego de Carvalho.
No contexto dessa polêmica, J. Miguel de Matos enviou carta a A. Tito Filho,
posteriormente publicada pelo destinatário em sua coluna no Jornal do Piauí, edição de 16-17
de abril de 1972. Na missiva, J. Miguel de Matos reforçou a amizade, a admiração e qualidade
intelectual do presidente da Academia Piauiense de Letras, além de relativizar a importância
das obras de O. G. Rego de Carvalho. A escrita apaixonada lançava suspeitas sob o trabalho de
Francisco Miguel de Moura, sobre quem o soldado-escritor disse

[...] não chegando ainda a compreender porque aquela casa de ensino


patrocinou a publicação do livro do bancário Francisco Miguel de Moura –
“Linguagem e Comunicação em O.G. Rego de Carvalho” – obra cuja erudição
me parece fora do alcance cultural do seu autor, a não ser que se trate de um

questionar a existência da literatura piauiense. Membro da Academia Piauiense de Letras. Faleceu em 2013.
Estudo pormenorizado sobre a obra de O. G. Rego de Carvalho. Cf.: FONTINELES FILHO, Pedro Pio. A letra e
o tempo: a escrita de O. G. Rego de Carvalho entre a ficção e a história da literatura. Teresina: Edufpi, 2017.
432
TITO FILHO, A. Caderno de anotações. Jornal do Piauí, Teresina, p. 6, 6 abr. 1972.
192

trabalho psicografado ou de um fenômeno de aprendizagem de um intelectual


que, há tempo, era chamado de péssimo prosador, surgindo ainda a seu
desfavor a circunstância de ser ele – o bancário Miguel de Moura – colega de
repartição do romancista OG, trabalhando ambos numa pequena dependência
do Banco do Brasil de Teresina, fato que me parece comprometedor para um
homem de letras que publica um estudo que apresenta como maior relevo a
fenomenologia da obra literária, que bem poderia ter sido transmitida pelo
estudado, que tem, diariamente, à sua frente, o pesquisador do fundo do poço
cujas águas tem ao alcance de suas mãos.433

Esquecendo-se das boas relações mantidas com o autor de Linguagem e Comunicação


em O. G. Rego de Carvalho, travadas ainda nos tempos do Círculo Literário Piauiense e
manifestas em elogios recíprocos publicados na imprensa, um deles já transcritos neste texto,
J. Miguel de Matos acusou Francisco Miguel de Moura de falta de originalidade, colocou em
dúvida sua formação intelectual e sugeriu que a obra tratava-se de um autoelogio produzido
pelo próprio O. G. Rego de Carvalho. Esta declaração provocou repúdio entre os escritores
locais que, saindo em defesa de Francisco Miguel de Moura, publicaram nos jornais locais o
manifesto Nosso Testemunho. Assinada por escritores de diversos gêneros e estilos, de
diferentes gerações e grupos literários, esta nota valida a obra e a trajetória literária do autor de
Linguaguem e Comunicação em O. G. Rego de Carvalho, colocando J. Miguel de Matos numa
situação de conflito com a intelectualidade local

Foi divulgado em programa radiofônico e em um dos jornais de Teresina, carta


em que um intelectual da terra lança dúvida, não sabemos com que intenção,
quanto à autoria do livro “Linguagem e Comunicação em O. G. Rego de
Carvalho”, projetado, pensado e escrito por Francisco Miguel de Moura. Não
é nosso intuito fomentar polêmica mas não podemos silenciar ante a gritante
injustiça que se levanta contra um autor sério, honesto, sofrido [...] A ofensa
que lhe foi feita, pela rádio e pelo jornal, encontra de nossa parte o mais
veemente repúdio, esperando nós que as pessoas de bom senso de nossa terra
cerrem fileiras conosco, em defesa do patrimônio cultural do Piauí, que tem
em Francisco Miguel de Moura um de seus mais expressivos valores.
Teresina, maio de 1972. a) Fontes Ibiapina (romancista, secretário da
Academia Piauiense de Letras), Hardi Filho (poeta), Herculano Moraes
(poeta), Nerina Castelo Branco (poeta), Magalhães da Costa (poeta), Fabrício
de Arêa Leão (jornalista), Celso Barros Coelho (professor da Faculdade de
Filosofia, da Academia Piauiense de Letras), Pedro Marques (contista, crítico
literário), Pompílio Santos (jornalista, crítico literário), Rivaldo Dawsen de
Carvalho (poeta), Padre Raimundo José (diretor da Faculdade de Filosofia),
Raimunda das Dores Santos (professora de filosofia), Williams José da Silva
(bacharelando em letras pela Faculdade de Filosofia), José Reis Pereira
(professor da Faculdade de Filosofia), Maria Cecília da Costa Araújo Mendes
(professora da Faculdade de Filosofia), Vidal de Freitas (poeta), Maria Gomes
Figueiredo Reis (professora da Faculdade de Filosofia), Raimundo Reis

433
TITO FILHO, A. Caderno de anotações. Jornal do Piauí, Teresina, p. 2-3, 16-17 abr. 1972.
193

(poeta), Gomes Campos (teatrólogo), Almir Fonseca (poeta), Luiz Lopes


Sobrinho (poeta da Academia Piauiense de Letras).434

Mais uma vez os escritores piauienses escamotearam as motivações desta polêmica: A.


Tito Filho teria capacidade para escrever a História da Literatura do Piauí? Indo mais adiante:
há, de fato, uma literatura piauiense? Curioso perceber que quanto mais J. Miguel de Matos se
comprometia em defesa de A. Tito Filho, mais o presidente da Casa de Lucídio Freitas
silenciava. Considerando que a nota de repúdio contra o soldado-poeta foi assinada por muitos
acadêmicos imortais, possivelmente A. Tito Filho temeu se indispor com seus pares ou,
simplesmente, possuía expertise suficiente para saber quais batalhas travar. Diante das críticas
feitas ao seu admirador, assim se posicionou

Ilustrados jornalistas, romancistas, críticos, professores assinaram


VEEMENTE REPÚDIO À UMA CARTA, divulgada em rádio e jornal, EM
QUE UM INTELECTUAL DA TERRA suspeitou de ter Francisco Miguel de
Moura escrito livro de crítica literária, recentemente entregue ao público. A
carta aludida, de responsabilidade exclusiva de J. Miguel de Matos, por este
assinada, foi lida por mim e estampada nesta coluna. Faz quase dois meses.
Devo esclarecer que este espaço jornalístico e programação que realizo em
Rádio Difusora sempre estiveram a serviço do público, para que, com a devida
responsabilidade, os leitores e ouvintes exponham ideias, em linguagem
asseada e sem críticas à vida privada de quem quer que seja. Ofereço as
presentes explicações porque fui interrogado a respeito do assunto.
Perguntaram-me se a acusação foi minha. Não dos nãos. Foi de J. Miguel de
Matos, brasileiro, maior, eleitor, oficial do Exército, vacinado e revacinado.435

Este episódio refletia as rearticulações de poder no interior dos grupos literários. Diante
de situações como esta, laços de construíam, se reforçavam ou se desfaziam. Pierre Bourdieu, ao
discutir as articulações que tornam possíveis a existência do campo literário afirma que este é

[...] um campo de forças a agir sobre todos aqueles que entram nele, e de
maneira diferencial segundo a posição que aí ocupam (seja, para tomar pontos
muito afastados, a do autor de peças de sucesso ou a do poeta de vanguarda),
ao mesmo em um campo de lutas de concorrências que tendem a conservar ou
a transformar esse campo de forças.436

Considerando que o campo é o resultado de disputas e rearticulações de forças e


interesses, Pierre Bourdieu aponta que, em momentos de conflitos, as posições dos sujeitos no
interior do campo são alteradas tendo em vista sua trajetória pessoal e o habitus que
compartilham que com os demais. Entende os campos como espaços estruturados, regidos por

434
NOSSO testemunho. O Estado, Teresina, p. 7, 14 maio 1972.
435
TITO FILHO, A. Caderno de anotações. Jornal do Piauí, Teresina, p. 6, 18 maio 1972.
436
BOURDIEU, Pierre. As regras da arte: gênese e estrutura do campo literário. São Paulo: Companhia das Letras,
2010. p. 262-263.
194

leis internas, no interior das quais seus participantes se engajam em relações recíprocas. 437 O
campo reivindica o direito de definir ele próprio os princípios de sua legitimidade.
Considerando que, no interior dos campos, os indivíduos se esforçam para formar
grupos de indivíduos interessados em produzir e fazer circular suas obras. Que há esforços para
conquistar o público consumidor e diversificar as instâncias de reconhecimento, percebemos,
por meio de episódios como este, que, no Piauí da década de 1970, a construção de um campo
literário ou intelectual era algo incipiente. A dependência do mecenato estatal, o alheamento
social ou circulação restrita daquilo que era por eles produzido e, sobretudo, as disputas entre
sujeitos que, aparentemente possuíam objetivos comuns, dificultava a unidade necessária para
a conquista dos espaços sociais.
Na ausência de um campo literário propriamente dito, percebemos que os conflitos nos
quais J. Miguel de Matos se envolvia, impactavam na frágil legitimidade que possuía. No episódio
que envolveu A. Tito Filho, J. Miguel de Matos, Francisco Miguel de Moura e O. G. Rego de
Carvalho, a comunidade intelectual do Piauí se mobilizou e infligiu retaliações a esse indivíduo.
Seria de se esperar que acontecimentos desta natureza abalassem as relações entre J. Miguel de
Matos e A. Tito Filho, algo que realmente aconteceu por muitas vezes nos anos seguintes,
contudo, na vigente distribuição de forças no cenário literário piauiense, A. Tito Filho não é uma
personagem a quem J. Miguel de Matos podia atacar ou romper inadvertidamente. Não porque
este não possuísse vícios e defeitos, mas porque desavenças entre eles acarretariam prejuízos para
os projetos pessoais de J. Miguel de Matos. As relações pessoais e profissionais que A. Tito Filho
estabeleceu, o lugar privilegiado que ocupava na imprensa local, os cargos públicos que exercia,
garantiam a este indivíduo um poder político e simbólico difícil de ser desarticulado.
Diante das forças políticas que atuavam neste cenário literário, uma boa relação com o
presidente da Academia Piauiense de Letras garantiria benefícios efetivos a J. Miguel de Matos,
como a indicação de suas obras para publicação pelo Plano Editorial do Estado. Por este projeto,
foram lançadas, em 1974, duas obras do soldado-poeta: Perfis e Antologia Poética Piauiense,
este correspondendo ao terceiro volume de Caminheiros da Sensibilidade.438 Mesmo assim, o
escritor queixava-se da demora para publicação, motivando pilherias da imprensa local. 439

437
BOURDIEU, Pierre. Questões de sociologia. Rio de Janeiro: Marco Zero, 1983. p. 86.
438
Na publicidade do Plano Editorial do Estado, informa-se sobre a publicação de A Casa de Lucídio Freitas, de
J. Miguel de Matos. Por diversas vezes ele se refere à escrita e à publicação deste texto, inclusive alterando seu
título para Da Rua do Molambo para a Casa de Lucídio Freitas. Contudo, acreditamos que a ausência de
comentários específicos sobre ela nos jornais e o fato de não termos localizado nenhum exemplar em arquivos e
bibliotecas públicas e particulares, significam que esta nunca foi publicada efetivamente.
439
“[...] O J. Miguel de Matos batendo um papo ontem aqui com a turma da redação, anunciava a publicação para
breve do seu livro ‘Perfis’ pronto para ser entregue ao público e ‘Caminheiros da sensibilidade’, terceiro volume
195

Acredito também que, quando J. Miguel de Matos questionava o poder público sobre a demora
para a avaliação e publicação de suas obras, este o fazia sob uma perspectiva tática, procurando
solucionar o problema atraindo atenção para si. Se sua reclamação fosse ouvida, comentada,
rebatida ou, se sua obra fosse publicada com celeridade, em ambos os casos, o escritor se
beneficiaria.
Até mesmo a imprensa alternativa teresinense se posicionava diante da figura de J. Miguel
de Matos. Sem ser, ainda, um escritor imortal, os jovens produtores culturais já o identificavam
com as práticas e posicionamentos típicos dos acadêmicos. Os jovens que fizeram circular em
Teresina o jornal Gramma440 e o Estado Interessante441 mandavam recados para o soldado-poeta
como este “e pedindo a benção do Prof. Tito Filho, do Miguel de Matos, do Fontes Ibiapina, para
que perdoem nossas maneiras diferentes de pensar, vamos botar pra ferver o caldo”. 442 Para os
produtores destes jornais alternativos ao esquema de produção, edição e circulação, A. Tito Filho
e J. Miguel de Matos representavam o conservador e o ultrapassado culturalmente.
Ao longo do ano de 1972 e no início de 1973, três vagas foram abertas na Academia
Piauiense de Letras: duas em virtude dos falecimentos do jurista Elias de Oliveira e do militar
Adelmar Rocha, e uma com a aguardada declaração de vacância da cadeira que seria ocupada
pelo jurista Sousa Neto. Os processos de preenchimentos destas cadeiras nos apresentam novas
informações sobre o jogo político no interior da Casa de Lucídio Freitas. À medida que as vagas
iam surgindo, pipocavam sugestões, declarações de apoio e também muitas brincadeiras e
curiosidades sobre possível candidatura de J. Miguel de Matos.443 Para nenhuma destas cadeiras
o soldado-escritor se candidatou, alegando respeito a figuras iminentes que já haviam
demonstrado interesse em concorrer. Para a cadeira antes ocupada por Elias de Oliveira, foi
eleito o desembargador José Vidal de Freitas, a quem J. Miguel de Matos muito admirava. Para
a vaga do general Adelmar Rocha, tio de Iracema Santos, escolheu-se o desembargador Edgard

já se acha na Comissão do Plano Editorial do Piauí há mais de dois anos. Ô Miguel, o Plano já tem dois anos? [...]”
(BINÓCULO. O Estado, Teresina, p. 3, 24 fev. 1973).
440
Jornal alternativo produzido por jovens estudantes, suas duas edições circularam em Teresina em 1972.
Apresentava estética e temática das produções undergrounds. Por meio de entrevistas, comentários literários,
quadrinhos, percebemos o dinamismo, o posicionamento destes jovens em relação aos acontecimentos culturais
da cidade, bem como os modos de pensar e produzir cultura, sobretudo de maneira marginal no Piauí.
441
Assim como Gramma, o suplemento Estado Interessante era espaço de criação e manifestação da produção
cultural dos jovens produtores culturais do Piauí. O diferencial em relação ao Gramma está no fato deste circular
como suplemento dominical do jornal O Estado.
442
ESTADO interessante. O Estado, Teresina, p. 7, 26 mar. 1972.
443
Em tom de brincadeira o jornal O Estado diz que assim se comportou J. Miguel de Matos ao saber da existência
de nova vaga para a Academia Piauiense de Letras: “[...] O escritor J. Miguel de Matos, ao que se sabe, já se diz
candidato a vaga na Academia deixada pelo Dr. Elias Oliveira. Dizem as candinhas que quando o discípulo do
Barão de Domit ouviu a notícia do falecimento do mestre jurisconduto, deu um salto e ficou gritando: estou na
academia, estou na academia...??? [...]” (DIAS, Carlos. Tribuna da cidade. O Estado, Teresina, p. 2, 23 jun. 1972.
Nos dias seguintes, o escritor defende-se da calúnia dizendo que apoiava a candidatura de José Vidal de Freitas.
196

Nogueira444 e para a cadeira nunca ocupada por Sousa Neto, que teve Breno Pinheiro como seu
último ocupante, foi eleito em 1974, Celso Pinheiro Filho, seu sobrinho, advogado, ex-prefeito
de Teresina e pesquisador. Os argumentos utilizados para não candidatar-se a estas três
cadeiras, envolviam amizade, admiração ou respeito aos concorrentes, servindo-se também de
maneira tática pois, em 1973, obteve o apoio de dois destes para sua nova campanha.
A publicação em 1970, da obra Genealogia de J. Miguel de Matos, por seu amigo e
escritor Josias Clarence Carneiro da Silva, também serviu aos objetivos de J. Miguel de Matos.
A obra em questão seguia o estilo dos textos produzidos por J. Miguel de Matos: escrita que traça
perfil elogioso e enaltece a trajetória de determinadas figuras, com o diferencial de ser um estudo
genealógico, ou seja, seu foco não está no sujeito biografado, mas na identificação e inter-relação
entre seus antepassados. No prefácio da obra, assim se posicionou J. Miguel de Matos

Dr. Josias: Surpreendeu-me, sobremodo, o seu trabalho intitulado


GENEALOGIA DE J. MIGUEL DE MATOS, cuja elaboração deve ter
tomado boa parte de seu precioso tempo, fato que certamente não compensa a
tarefa em torno de um homem simples e pobre e que muito pouco representa
para as letras do Piauí, onde pontificam tantos luminares, aparecendo meu
nome, na comparação mais aceitável, apenas para completar a tela, como uma
pincelada que um artista atira no seu trabalho para ultimar um detalhe ou para
terminar a tinta do pincel.445

O trecho acima aponta novamente, para a construção de si que J. Miguel de Matos


empreendia: o escritor tentava esconder sua vaidade apelando para uma fingida humildade, ao
colocar-se como escritor insignificante. A obra de Josias Clarence foi comentada e elogiada
pelos cronistas nos dias seguintes ao seu lançamento. Elogios à pesquisa empreendida e à
narrativa apresentada, agradecimentos pelo envio da obra, divulgação dos lançamentos em
várias cidades, aparecem nos jornais e revistas. O que mais chama atenção dos comentaristas
são as formas como esta delineou os laços de parentescos do escritor com figuras como Da
Costa e Silva, Iracema Santos e o próprio Simplício Mendes.
Diante de Genealogia de J. Miguel de Matos nos questionamos: qual o seu impacto
diante das aspirações de imortalidade de J. Miguel de Matos? Não acredito que votos tenham
sido alterados a partir do exposto nesta obra. Contudo, o texto se preocupou em construir uma
ascendência nobre para este escritor, reforçando as narrativas que este empreendia sobre si, em

444
Diante do falecimento do General Adelmar Rocha, chegou-se a sugerir que J. Miguel de Matos faria jus à
cadeira, posto que tinham a vida militar em comum: “[...] O sociólogo Josias Carneiro da Silva lançando a
campanha no sentido de levar J. Miguel de Matos à Academia (na vaga deixada pelo general Adelmar Rocha).
Dois argumentos sustentados por Josias: ‘Adelmar, além de parente de J. Miguel era colega de farda do poeta da
rua do Molambo [...]” (O ESTADO, Teresina, p. 3, 11 mar. 1973).
445
SILVA, Josias Clarence Carneiro da. Genealogia de J. Miguel de Matos: edição íntima. Teresina: [s. l.], 1970.
p. 15.
197

especial, a de que veio de família tradicional que foi perdendo poder e prestígio ao longo dos
anos, bem como a apresentação de seu parentesco com outros intelectuais da terra. Diante dos
critérios não-literários que perpassam as motivações para os votos para a Casa de Lucídio
Freitas, a obra funcionou para rebater as negativas pautadas em argumentos como origem social
e o pertencimento a famílias cujos membros já tenham ocupado cadeiras nesta instituição.
J. Miguel de Matos construiu uma narrativa de si pautada nas injustiças e superações. Em
1973, este continuava afirmando publicamente que sua origem social e a ausência de formação
em curso superior eram os critérios que o afastavam da Academia Piauiense de Letras. Com o
falecimento de Edison Cunha, o único dos fundadores ainda vivo e considerando a possibilidade
de candidatar-se, publicou, no jornal O Estado, uma série intitulada Minha Luta Pela Academia,
a fim de arregimentar apoios e adesões. Rememorou eventos passados, mas, sem reconhecer
como seu comportamento agressivo, repercutia no resultado das eleições. Confidenciou ter
ouvido do escritor Fontes Ibiapina a verdade sobre os fatos: “você ainda não entrou para a
Academia por xingado, num artigo de jornal, ao desembargador Simplício de Sousa
Mendes...”.446 Com esta revelação, segundo ele, surpreendente, ele destruiu as relações amistosas
e perdeu o apoio do imortal Fontes Ibiapina, que alegou tê-lo envolvido em rede de fofocas.447
Com a morte de Simplício Mendes, em 1971, alguns dos sujeitos que entraram na
Academia Piauiense de Letras por sua iniciativa, como forma de agradecimento e honra à sua
memória, articularam-se a fim de manter distante da Casa de Lucídio Freitas um dos escritores
que mais o atacaram.448 Capitaneados pelo desembargador Felício Pinto, os acadêmicos que
rejeitavam o soldado-escritor justificavam suas antipatias referindo-se às indisposições deste
com o antigo presidente, por discordarem das formas como resolvia seus problemas por meio
de textos agressivos e desqualificadores, por não reconhecerem o valor de sua obra, e
unificavam seus discursos em torno de comentários como “ele só ingressa se for na outra
geração”.449
Tentando remediar esta situação, J. Miguel de Matos afirmou

446
MATOS, J. Miguel de. Minha luta pela Academia (I). O Estado, Teresina, p. 7, 28 jul. 1973.
447
Anos após o ingresso de J. Miguel de Matos na Academia Piauiense de Letras, o escritor Fontes Ibiapina ainda
tinha dificuldades para aceitar sua eleição: “[...] O intelectual Fontes Ibiapina continua achando que a entrada de
J. Miguel de Matos para a Academia Piauiense de Letras foi fora de propósito [...]” (KURTAS. O Estado, Teresina,
p. 4, 26-27 set. 1976).
448
“[...] Informa o professor Josias Carneiro da Silva, e disto não faz sigilo, que o desembargador Felício Pinto
continua em plena campanha contra a eleição de J. Miguel de Matos para a cadeira nº 5 da Academia Piauiense de
Letras [...]” (HELMANO NETO. Coisas assim. O Estado, Teresina, p. 2, 9-10 set. 1973.
449
“[...] Figura influente da Academia Piauiense de Letras, respondendo indagação sobre a possiblidade de
ingresso do escritor J. Miguel de Matos naquele sodalício na vaga recentemente declarada, disse: “Ele só ingressa
se for na outra geração” [...]” (BINÓCULO. O Estado, Teresina, p. 3, 28 jan. 1973).
198

Reconheço a atitude do acadêmico Fontes Ibiapina, mesmo que não guarde,


dentro de mim, qualquer fato que prove uma agressão, de minha parte, ao
Mestre Simplício de Sousa Mendes, de cuja amizade participei, embora
muitos desconheçam esse aspecto da minha intimidade com o restaurador da
Casa de Lucídio Freitas, familiaridade que alguns inimigos gratuitos da minha
consagração literária (permitam-me a imodéstia), tentaram anular ou diminuir,
sem saber, positivamente, do parentesco afim do velho jurista com a minha
modesta pessoa, na informação genealógica de Josias Clarence Carneiro da
Silva [...] É verdade, que foram feitas algumas críticas ao desembargador
Simplício de Sousa Mendes, inspiradas nos meus insucessos de ingresso na
Casa de Lucídio Freitas – coisa absolutamente normal na vida de um homem
que se tornou vulnerável pela imensa personalidade cultural que possuía, mas
nenhuma delas partidas diretamente de mim, embora meu nome sempre
aparecesse nos contextos: uns graves e outros burlescos, todos
lamentavelmente incidentes à cristalina sensibilidade do insigne Mestre.450

Atribuindo as críticas feitas ao ex-presidente à vulnerabilidade das emoções, J. Miguel


de Matos minimizava os ataques feitos no passado e tentava, por meio do discurso, dar novo
sentido à sua relação com Simplício Mendes. Apesar dos comentários contrários à sua pessoa
serem amplamente divulgados pela imprensa local, este candidatou-se novamente em 1973,
desta vez para a cadeira número cinco.
Mais uma vez seus apoiadores ajudaram a construir uma imagem intelectualizada,
sóbria, polida, austera para ele. Herculano Moraes fez elogios à trajetória, 451 comentou suas
obras, criticou a Academia Piauiense por privilegiar o ingresso de juristas, 452 fez críticas veladas
a Felício Pinto e aos magistrados que, aparentemente, conspiram453 contra J. Miguel de Matos.
Lili Castelo Branco publicou novos textos, como o reproduzido a seguir

Agora surge lá na velha e carunchenta sala da Academia Piauiense de Letras,


mais uma cadeira vazia. E como há os monopolizadores das cadeiras imortais,
certamente correrão a apresentarem os afilhados. Desta feita, porém, desta
vez, a vaga terá que ser dada a quem tem, de há muito, direito a ela. J. Miguel
de Matos. Do contrário, tombará o conceito de idoneidade da velha casa da
cultura piauiense. [...] Vamos, senhores, abrandai as prevenções, os recalques,

450
MATOS, J. Miguel de. Minha luta pela Academia (II). O Estado, Teresina, p. 7, 29 jul. 1973.
451
“[...] O escritor J. Miguel de Matos já devia estar na Academia. É um intelectual na legitimidade do termo, com
livros publicados. O diabo é que não tem toga nem anel de doutor. Mas J. Miguel é um perseguido. Nascido na
Rua do Molambo, o escritor de Caminheiros da Sensibilidade vem comendo o pão que o diabo amassou. E
enquanto isso a nobreza.... bem! – deixa pra lá... [...]” (MORAES, Herculano. Comentário de hoje: o pão que o
diabo amassou. O Estado, Teresina, p. 7, 21 mar. 1973).
452
“[...] Você votaria em J. Miguel de Matos para a Academia de Letras? [...] Votaria sim. Por vários motivos.
Dentre os quais a necessidade que tem a Academia de eleger um escritor, aliás uma das exigências do seu Estatuto
que nunca foi cumprida. Porque no momento há uma certa dúvida. Quando a Academia exige a publicação de
algum trabalho, alguns dos seus diretores pensa que se trata de sentenças publicadas no Diário Oficial [...]”
(CORDEIRO, Concita. Cochicho. Jornal do Piauí, Teresina, p. 3, 14 nov. 1973).
453
“[...] “[...] Andaram dizendo por aí que estava muito fácil a entrada do escritor J. Miguel de Matos na Academia
Piauiense de Letras, vez que o Des. Felício teria terçado armas. Pois o que soube ontem é que agora, mesmo com
o pedido que teria feito Miguel para desistir, a coisa mais está mais dura, mais negra, mais escura... e que ele não
vai entrar... diz o Imortal Felício... cantando em coro com outros... [...]” (BOAVISTA, Tania. Carrossel da vida: o
trabalho de Felício. Jornal do Piauí, Teresina, p. 3, 11 set. 1973).
199

porque Deus não aceita injustiças nem descabidos orgulhos. Ninguém mais
que os senhores sabe que não é simpatia, nem prestígio pessoal, nem riqueza,
nem boniteza, que dá direito a uma cadeira imortal. Nada disso. O que a ela
dá direito é saber escrever com maestria, organizar romance ou versos, ter
cultura intelectual. Somente tendo essas qualidades, pode ingressar alguém na
Academia de Letras e J. Miguel de Matos tem as mãos cheias desse cabedal.
É escritor de primeira grandeza. Por que estão sempre a querer fazer esperar a
J. Miguel de Matos? Querem que morra sem alcançar aquilo a que tem direito?
Assim, já não será uma prevenção, e sim, maldade. Miguel de Matos possui
um estilo magnífico. Seus escritos são verdadeiros e instrutivos [...] O que se
lhe tem feito com constantes preterições é do conhecimento de todos. Assim,
não nos ficará mal semelhante injustiça? Não será desmerecedor para nós,
piauienses, que todos venham a saber que por simples prevenção, por não ser
o candidato um nobre, um industrial, ou um cordeirinho teleguiado, o
repudiam sistematicamente? Fica-nos isso feio ou não?454

Lili Castelo Branco não cessava de lhe fazer elogios e, assim como fez em 1967, voltou a
interceder em favor do amigo.455 Cinco anos depois e com uma filha já imortalizada, a escritora
recorreu à justiça divina, às qualidades intelectuais do soldado-escritor e insinuou que o ingresso
deste traria novos ares à carunchenta instituição. Celso Pinheiro Filho, Artur Passos, José Vidal
de Freitas, Fernando Lopes Sobrinho, Emília Castelo Branco de Carvalho, Salomão Chaib,
Petrarca Sá, Carlos Porto, Moura Rego, Odilo Costa também comprometeram seus apoios. Sem
concorrente à vista, J. Miguel de Matos moderou seu discurso a fim de evitar novas indisposições.
Contudo, o grupo opositor de sua candidatura, organizou-se e lançou o nome do médico
Gerardo Majela Fortes Vasconcelos456 como concorrente. Aparentemente pego de surpresa,
este afirmou a J. Miguel de Matos que não se candidataria e, em visita que este fez a seu local
de trabalho, comprometeu-se, inclusive, a trabalhar pela eleição de soldado-escritor. Os meses
seguintes são de muitas notas provocativas nos jornais e dois fatos chamam atenção: a demora
de A. Tito Filho em posicionar-se diante da eleição, possivelmente em virtude de sua posição
como presidente da instituição e a aceitação da candidatura por Gerardo Vasconcelos nos
últimos dias de inscrição. J. Miguel de Matos afirmou estar decepcionado com as mudanças de
planos do referido médico mas que, no final das contas, sentia-se satisfeito por concorrer com

454
BRANCO, Lili Castelo. Academia piauiense de letras. O Estado, Teresina, p. 2, 15 maio 1973.
455
“[...] Lilizinha Castelo Branco de Carvalho, trabalhando em favor da eleição de J. Miguel de Matos para a
cadeira de nº 5 da Academia Piauiense de Letras, estava satisfeita no dia de ontem com a posição assumida pelo
escritor Odilo Costa Filho. O voto foi dado ao autor de Caminheiros da Sensibilidade [...]” (HELMANO NETO.
Coisas assim. O Estado, Teresina, p. 4, 14 set. 1973).
456
Gerardo Majela Fortes Vasconcelos nasceu em Timon (MA) em 1919 e faleceu em Teresina no ano 2000.
Especializado em Medicina Legal e Medicina do Trabalho. Professor da Universidade Federal do Piauí. Pertenceu
à Academia Internacional de Medicina e Medicina Social e à Academia Piauiense de Letras para a qual foi
empossado em 1985 na cadeira número 22. É autor de Lições de Medicina Legal, Lições de Antropologia Física
e Social, A arte de ensinar e Nova sistemática do Ensino Superior.
200

personalidade ilustre.457
Na proximidade do pleito, Gerardo Vasconcelos retirou sua candidatura tornando-se J.
Miguel de Matos, candidato único. Sobre essa reviravolta, assim comenta Tania Boavista

Uma crise muito séria vai envolver a Academia Piauiense de Letras, com o
recuo do consagrado homem de letras e extraordinário médico que é o doutor
Gerardo Vasconcelos, como tenho ouvido dizer. Todavia não estou gostado
nada do seu gesto, recuando depois que seu nome foi apresentado para ocupar
a cadeira dantes honrada pela privilegiada figura de Edison Cunha. O que
estou ouvindo é que o recuo de Gerardo vai criar uma situação muito
incômoda para a Academia. E o Felício, que dizia se o “Zémiguel entrar, eu
saio por outra porta”, o que vai fazer diante dos fatos? De mim, que não
conheço nada no mundo das letras mas ouço os comentários, a Academia vai
viver momentos de verdadeira intranquilidade, vai sofrer na sua vida o que em
toda sua existência não sentiu... e se verdade o que espalham, o Felício parece
ter razão... de sobra.458

Não localizamos textos do candidato desistente sobre suas motivações. Contudo, alguns
jornais apresentaram uma versão possível

[...] Esta me foi contada por uma jovem amiga [...] Dizia-me que o assunto numa
das rodas era Felício Pinto & Zemiguel [...] que o que houve foi de dizer franca
e claramente o português de sua aversão à entrada de Zemiguel na Academia e
aí, dizia, “inclusive pelo seu feio expediente indo à casa do Gerardo para dizer
que se ele fosse candidato que você se suicidaria”. Vejam então porque sou
contra, simplesmente não tolero certos expedientes... especialmente quando
envolvendo assunto tão sério, arrematava o Felício. E como é a cópia fiel do que
me foi contado, para aqui transponho e registro o fato... que podem usar como
legítimo, pelo menos as palavras do mestre... [...].459

Contada como fofoca, a nota lança dúvidas sobre a legitimidade do relatado: afinal, J.
Miguel de Matos afirmou que se suicidaria caso não fosse eleito? Não temos resposta a esse
questionamento. Todavia, por nosso conjunto de fontes podemos traçar um panorama sobre os
discursos e comportamentos de J. Miguel de Matos: trata-se de um indivíduo emotivo,
extremamente dedicado à produção escrita e ansioso por reconhecimento social, agindo no
limite entre a vitimização e a agressividade, possivelmente motivado pela percepção de que
suas armas literárias não eram sozinhas, capazes de lhe garantir o reconhecimento almejado
esperado.
Considerando o conjunto de nossas fontes, não partimos do princípio de que elas nos

457
“[...] Postulante modesto à mesma vaga, como é do conhecimento de todos, só me resta orgulhar-me de ser seu
concorrente num pleito de tanta relevância. Acho mesmo que, pelo valor cultural que possui, como médico e como
escritor, já chega um pouco tarde a um lugar que lhe cabe por legítimo direito [...]” (OLIVEIRA, José Ramos de.
Miscelânea de notícias. O Estado, Teresina, p. 7, 4-5 nov. 1973).
458
BOAVISTA, Tania. Carrossel da vida: o recuo de Gerardo. Jornal do Piauí, Teresina, p. 3, 14 nov. 1973.
459
BOAVISTA, Tania. Carrossel da vida: Felício e Miguel. Jornal do Piauí, Teresina, p. 3, 21 nov. 1973.
201

ofereçam a verdade sobre os acontecimentos. Os jornais nos apresentam narrativas que,


articuladas entre si e com outros registros, nos oferecem versões possíveis sobre os
acontecimentos. Diante do que nos é apresentado nos jornais, temos em mente as orientações
de Tania de Luca sobre suas potencialidades enquanto registros parciais de uma época. Por isso
nos empenhamos em conhecer os jornais que circulavam na capital piauiense, o perfil dos
articulistas que comentam a trajetória de J. Miguel de Matos, sua linha editorial e os interesses
na divulgação, ou não, de determinadas notícias a fim de compreendermos os discursos e as
representações que eles tornam possíveis.
O final deste tópico contempla o momento mais aguardado por J. Miguel de Matos: sua
eleição e posterior ingresso na imortalidade literária. Eleito no dia 08 de dezembro de 1973, os
jornais reproduzem congratulações e inconformismos com sua conquista. O candidato eleito tem
pressa, muita pressa em se imortalizar. Os motivos da pressa, não podemos precisar, mas talvez
um temor de que alguma reviravolta alterasse o resultado do pleito ou mesmo como postura de
repúdio àqueles que eleitos, demoravam a tomar posse. O que se sabe é que, em 18 de dezembro,
comemorava-se o aniversário de sua mãe, Maria do Ó, podendo a escolha ser uma homenagem a
esta. Sabemos que sua esposa não estava em Teresina no momento de sua posse.460 Sabemos que
seu discurso de posse, posteriormente publicado na Revista da Academia de Letras é uma colcha
de retalhos retirada dos capítulos de Pisando Os Meus Caminhos. Sabemos que, ao rememorar
aquela noite, fazia referências ao choro derramado pela filha em virtude dos resultados
anteriores.461 Sabe-se que, nesta sessão de posse, A. Tito Filho, presidente da Academia Piauiense
de Letras também enunciou, de improviso, o discurso de recepção do novo sócio.
O certo é que, entre todos os eleitos para a Academia Piauiense de Letras, J. Miguel de
Matos foi o primeiro a tomar posse em intervalo tão diminuto. O que não sabemos: quem
compôs comissão que acompanhou sua entrada simbólica na Academia Piauiense de Letras. A
ata de sua posse é apenas um rascunho, cujos espaços em branco acreditamos, seriam
preenchidos posteriormente, o que nunca aconteceu. E é justamente como os documentos
oficiais da Academia Piauiense de Letras registraram os vinte e sete anos de sua prática como

460
“[...] Após dois meses no Rio em tratamento de saúde, voltou a Teresina a Srª. Francisca de Souza Matos,
esposa do escritor J. Miguel de Matos, que se mostrou muito contente com a posse do seu marido na Academia
Piauiense de Letras. Mal desembarcou foi logo dizendo: “Até que enfim o Piauí fez justiça a meu marido” [...]”
(JÚNIOR, Mauro. O Estado, Teresina, p. 2, 16 jan. 1974).
461
“[...] Na noite de 18 de dezembro de 1973, quando minha mãe Maria do O de Matos, já na sua viuvez,
completava 84 anos de sofrida existência, tomei posse na Academia Piauiense de Letras, na cadeira fundada por
Edison da Paz Cunha e patronímica de Areolino Antônio de Abreu, depois de uma luta presumível de seis anos,
em que a possível vaidade de um escritor foi substituída, pela vontade do sentimento insultado, por um
compromisso moral que o tempo só serviu para perpetuá-lo, de um candidato que viu caírem dos olhos de sua
filha, as lágrimas que lhe saltaram do jovem coração ferido pela insídia da chacota [...]” (MATOS, J. Miguel de.
Da Rua do Molambo à Casa de Lucídio Freitas. O Dia, Teresina, p. 13, 6 abr. 1978.
202

escritor imortal que discutiremos a seguir.

Figura 7 – Ata de Posse de J. Miguel de Matos462

Fonte: ACADEMIA PIAUIENSE DE LETRAS. Livro de atas da Academia Piauiense de Letras. Teresina, 1973.

No imaginário social, o ingresso em Academias de Letras legitima práticas dos


escritores e é capaz de alterar a forma como estes serão vistos pela comunidade, garantindo-lhe
visibilidade, reconhecimento social e novas oportunidades de atuação. A imagem a seguir,
publicada nos dias seguintes à sua posse, apontam como este sujeito passou a ser visto, apesar
da imortalidade:

462
Transcrição: “Sessão Extraordinária. Posse do acadêmico José Miguel de Matos. Aos 18 dias do mês de
dezembro de 1973, sob a presidência de A. Tito Filho, realizou-se, no auditório Herbert Parentes Fortes, às 20
horas, a sessão solene para a posse de José Miguel de Matos na cadeira nº 5, anteriormente ocupada por Edison
Cunha. Compareceram vários acadêmicos e numerosas autoridades. Dada a palavra ao novel titular, este
pronunciou importante trabalho crítico sobre o patrono da cadeira e o antecessor. Em seguida o presidente declarou
empossado o Sr. José Miguel de Matos, a quem deu as boas-vindas, em nome da Casa de Lucídio Freitas,
encerrando-se a sessão”. Não foi possível identificar quem lavrou a ata, porém esta é a única assinatura presente
no documento.
203

Figura 8 – Tome Miguel o seu presente de Natal463

Fonte: FOLHA da Mãe Ana. O Dia, Teresina, p. 14, 23-24 dez. 1973.

A charge de Herculano Moraes publicada na Folha da Mãe Ana, sessão humorística e


dominical do jornal O Dia, retoma elementos constantes na narrativa que J. Miguel de Matos
fazia sobre si: a referência ao menino da Rua do Molambo que nunca recebeu presente de Papai
Noel e que, às vésperas do Natal de 1973, conquistou o presente que tanto aguardava. A
brincadeira à qual a imagem remete me faz acreditar que a inserção de J. Miguel de Matos na
imortalidade acadêmica não alterou, significativamente, a forma como este escritor era visto
por seus contemporâneos.
Talvez o fato dele se expor demasiadamente tenham-no tornado próximo demais dos
leitores e de seus colegas de jornal, dificultando a sustentação de um ar de distinção e
austeridade. O seu esforço pessoal estava justamente nas tentativas de controlar aquilo que se
dizia sobre si e sobre suas obras: enquanto desejava ser visto como intelectual, jornalista
combativo, pesquisador neutro e comentarista imparcial, seus contemporâneos insistiam em
apresentá-lo como sujeito polêmico e que se utilizava da escrita para reivindicar o espaço social
que julga merecer. Essa tentativa infrutífera de controlar discursos, afetou sua personalidade e
transpareceu em seus textos nos revelando um escritor que tentava camuflar seus interesses
pessoais em uma escrita supostamente afetiva.

463
Transcrição: “A glória de hoje é para meu velho amigo o poeta, jornalista e escritor J. Miguel de Matos (foto),
que acaba de ser eleito para a Academia Piauiense de Letras. J. Miguel vai ocupar a cadeira número 5 e já está
com a posse marcada”.
204

4.4 J. Miguel de Matos na Academia Piauiense de Letras

“Não me fiz acadêmico para ser imortal. Fiz-me imortal para ser acadêmico”. Com esta
sentença, J. Miguel de Matos concluiu seu discurso de posse na Academia Piauiense de
Letras464. No trocadilho, o novo imortal chamava atenção para sua produção intelectual e como
acreditava que esta havia pavimentado seu caminho para a imortalidade. A escrita é entendida
como algo poderoso, capaz de registrar e compartilhar saberes e possibilitar, construir
interpretações, dar sentido à realidade e garantir visibilidade e distinção social, J. Miguel de
Matos compreende a escrita como algo que imortaliza. Nesse sentido, o ingresso na Casa de
Lucídio Freitas seria apenas a consequência de seus esforços de erudição e intelectualização.
Nas entrelinhas deste pronunciamento, percebemos as intenções de um escritor que, ao
ingressar no sodalício maior da intelectualidade piauiense, desejava trazer sua experiência como
agente cultural a fim de movimentar a vida da instituição. Neste tópico, nos debruçaremos sobre
um corpus documental específico: os textos publicados por J. Miguel de Matos com
posicionamentos sobre práticas desenvolvidas por membros da Academia Piauiense de Letras e
os documentos produzidos por esta instituição sobre a atuação deste indivíduo. Acredito que esta
articulação nos ajuda a conhecer experiências sobre a prática da imortalidade acadêmica no Piauí.
O desejo de ingressar na Academia Piauiense de Letras deixou marcas na escrita de J.
Miguel de Matos. Em A Escrita da História, Michel de Certeau já chamava atenção para o fato
de que os discursos e práticas dos sujeitos evidenciam os lugares sociais exercidos ou por ele
desejados. Os jogos de poder presentes no interior das narrativas delineiam aspirações e
ressentimentos nas disputas por lugares sociais que legitimam discursos. Estes lugares,
identificados entre outros com universidades, agremiações culturais ou instituições religiosas
se fazem presentes nas escritas e nos comportamentos de seus membros impondo um conjunto
de regras cujo seguimento é recompensado com espaço e legitimidade social. As instituições,
ao apontar os caminhos para o reconhecimento dos discursos, fincam a posição social de seus
membros relegando aos não-obedientes ou aos desejosos ainda inaptos, um não-lugar
disciplinador, a interdição.465
A análise da produção literária de J. Miguel de Matos aponta vertentes para o
entendimento do mundo cultural piauiense das décadas de 1960 e 1970, entre elas como se
processam as relações entre instituições e intelectuais, as políticas culturais e a fragilidade da

464
MATOS, J. Miguel de. Discurso de posse de J. Miguel de Matos: 18 de dezembro de 1973. Revista da Academia
Piauiense de Letras. Teresina: APL, 1980.
465
CERTEAU, 2007, p. 65-118.
205

crítica literária produzida no Estado. A análise dos textos de J. Miguel de Matos, pautada na
sequência temporal de suas publicações, nos apresenta esforços de construção de si por meio
de narrativas autobiográficas e memorialísticas, revela como o meio literário estava marcado
por redes de afetos e rivalidades e nos ajuda a entender o que significava, à sua época, ser
imortal, ou seja, como se comportavam os acadêmicos e qual tipo de distinção se podia alcançar
com a imortalidade literária.
Neste primeiro momento, vamos analisar a obra Perfis, publicada em 1974 através do
Plano Editorial do Estado. Após longa espera466 o livro foi publicado e neste intervalo entre
escrita e edição, seu escritor foi eleito para Academia Piauiense de Letras. A concretização de
seu maior sonho o forçou a advertir os leitores de que “esta obra foi escrita antes da entrada do
autor na Academia Piauiense de Letras”.467 Como dito anteriormente, o escritor não negou os
comentários apresentados, apenas exortou seus leitores a observar o que e quando foram
enunciados, posto que seu autor não era apenas aquele que havia escrito a obra já era um outro,
um ser distinto pela posse da imortalidade acadêmica.
A distinção alcançada por J. Miguel de Matos é reveladora das relações entre escritores
e aponta os limites para a construção de um campo literário no Piauí. Segundo Pierre Bourdieu,
a inserção de indivíduos no campo literário simboliza sua identificação por meio de
comportamentos e práticas em comum. Aceitações ou resistências às alterações da configuração
inicial no interior dos grupos (re)oganizam e (re)orientam as ações de seus membros. A unidade
das práticas que forjam a identidade do grupo só é construída à medida que aqueles que o
compõem compartilham um habitus, que evidencia a força simbólica do grupo na sociedade.
Segundo o sociólogo, a distinção pode ser entendida como

[...] a relação estabelecida, de fato, entre as características pertinentes da


condição econômica e social – o volume e a estrutura do capital, cuja
apreensão é sincrônica e diacrônica – e os traços distintivos associados à
posição correspondente no espaço dos estilos de vida não se torna uma relação
inteligível a não ser pela construção do habitus como fórmula geradora que
permite justificar, ao mesmo tempo, práticas e produtos classificáveis, assim

466
“[...] certa vez cheguei a afirmar para um homem – ilustre advogado – que se considera expoente cultural (ou
especificamente literária) todo aquele que edifica sua vida através do verbalismo oral, do título nobiliárquico,
deixando em plano secundário as obras publicadas – cheguei a afirmar que, especialmente no Piauí ainda pobre
de mão-estirada à caridade pública, refutando sua premissa, o mérito maior não está em escrever o livro, mas em
publicá-lo, tal a indiferença do Estado como pessoa jurídica, à vida do escritor, que vai amontoando num canto
da sua sala de trabalho, obras e mais obras [...] que vão servindo para repastar o apetite voraz das baratas e do
cupim. De mim, para citar mais um exemplo, tenho, no momento que passa, dois livros inéditos: um, na posse do
governo do Estado há quase dois anos, outro, na minha estante e este que, sem nenhuma dúvida, trilhando os
mesmos caminhos, irá ser mastigado, muito breve, pelos comensais, silenciosos e ativos, citados acima: a barata
e o cupim [...]” (MATOS, J. Miguel de. Perfis. Teresina: COMEPI, 1974. p. 61).
467
MATOS, 1974, p. 25.
206

como julgamentos, por sua vez, classificados que constituem estas práticas e
estas obras em sistema de sinais distintivos.468

Pierre Bourdieu sentencia que a distinção social é um processo que envolve uma
economia de trocas simbólicas propiciada pelo compartilhamento de um habitus. Nesse sentido,
quando J. Miguel de Matos apontava que era um ser distinto daquele que escreveu o livro, o
que ele diz é que sua escrita é um produto simbólico, fruto de experiências temporais específicas
e que como tal, sofre continuidades e rupturas em seus sentidos.
Os textos reunidos em Perfis foram escritos em momentos diferentes e, embora não
datados individualmente, referências a indivíduos e acontecimentos nos permitem estabelecer
que foram produzidos entre o final da década de 1960 e meados de 1972. Neles registram-se os
posicionamentos do autor sobre os rumos da cultura local bem como suas desilusões com as
derrotas nas tentativas de ingresso na Academia Piauiense de Letras. Em várias passagens, o
autor afirma que o objetivo é propor uma apreciação crítica da obra dos escritores selecionados.
Ao fazer de sua obra um instrumento de retribuição aos apoios que recebeu em candidaturas
anteriores à Casa de Lucídio Freitas, o escritor demonstrava ter clareza do poder dos elogios
em um cenário cultural carente de visibilidade, no qual os apoios expressos em resenhas,
elogios, parabenizações davam suporte à construção de imagens e representações sobre
escritores e sobre seu fazer literário.
Nesse sentido, quando utilizava seus textos para criticar aqueles que lhe negaram votos,
criticavam seus posicionamentos, J. Miguel de Matos instrumentalizava seus escritos como
táticas diante das disputas e jogos de poder que protagonizava. A recusa em silenciar-se diante
das injustiças que, segundo ele, eram cometidas nos momentos de escolha fazia com que J.
Miguel de Matos, de maneira astuciosa, denunciasse que os ideais presentes em 1917, momento
da fundação da Casa de Lucídio Freitas, estavam se perdendo pela falta de compromisso e
inércia dos atuais acadêmicos. Os resultados dessas táticas variavam entre o apoio ofertado por
outros homens de letras às suas campanhas e o acirramento dos conflitos com alguns imortais
que publicamente se colocavam contrários às suas aspirações. Em ambos os casos, J. Miguel
de Matos astuciosamente construía narrativas que o apresentavam como escritor injustiçado.
Convém ressaltar que apesar das críticas feitas aos acadêmicos, J. Miguel de Matos
respeitava e valorizava a atuação histórica da Academia Piauiense de Letras no contexto
cultural piauiense. Após sua eleição em 1973, o escritor mobilizou seus discursos a fim de
evidenciar a posição social distinta que adquiriu com a imortalidade acadêmica. Ao colocar-se

468
BOURDIEU, Pierre. A distinção: crítica social do pensamento. Porto Alegre: Zouk, 2017. p. 162-163.
207

como alguém comprometido com a preservação da dignidade cultural da instituição, J. Miguel


de Matos chamava a atenção de seus confrades e da sociedade como um todo para

[...] a responsabilidade que pesa sobre os ombros de cada acadêmico, quando


tiver de escolher os que pretendem ingressar na Casa de Lucídio Freitas, para
que esta permaneça incólume, no seu valor e na sua missão de “triunfar sobre
a hostilidade do ambiente, repetindo a parábola cristã do grão de mostarda,
fazendo sair, consoante e botânica do evangelista Mateus, a maior das plantas
precisamente da semente mais humilde”. [...] Mesmo assim, sabendo que o
punhal de Brutus ou a espada de Pausânias podem rasgar meu coração,
permaneço na minha luta de respeito aos valores autênticos, tentando evitar,
em toda eleição da academia, que a espada da imortalidade seja colocada na
mão errada.469

O fragmento acima, apresentado no livro Garimpagem, de 1980, apresenta o princípio


que, segundo J. Miguel de Matos, orientava sua prática enquanto escritor imortal, ou seja, a
defesa de uma instituição que resistia diante das adversidades e pressões, mantendo-se firme
aos ideais de seus fundadores. Ao afirmar que os acadêmicos deviam ser responsáveis no
momento de escolher novos membros, o escritor fazia referência à existência de avaliações
injustas e processos de escolhas viciados. Neste livro que, diferente de Perfis, foi escrito e
publicado logo após seu ingresso no Casa de Lucídio Freitas, o escritor afirmava que seu lugar
de fala era diferenciado em virtude das exclusões que sofreu antes de ser aceito por esta
instituição. Mas, mesmo afirmando que se empenhava na construção de uma Academia
Piauiense de Letras justa, percebemos que seus posicionamentos estavam localizados na defesa
de seus interesses, utilizando-se de modo tático dos eventos anteriores para garantir
legitimidade às suas críticas.
Em Perfis, o autor esforçou-se, muitas vezes sem sucesso, para ser cuidadoso na
articulação dos elogios à Academia Piauiense de Letras e de alguns dos sócios a quem biografou,
ressaltando sua inteligência e o valor social da instituição. O que ele dizia denunciar eram as
decisões equivocadas dos acadêmicos diante dos processos eleitorais. Segundo ele, os imortais
desconsideravam as exigências regimentais e pautavam-se em critérios como amizade, relações
familiares e profissionais. Sobre o acesso de indivíduos com base nestes valores, afirmava que

[...] há muita injustiça na pesagem e na medida dos valores que se


imortalizaram, entre nós, com o fardão da Academia Piauiense de Letras,
diariamente julgados através de informações biográficas, que quase nada
podem mostrar do que anda na cabeça dos homens de pensamento que agora

469
MATOS, 1980, p. 70-71.
208

se acham, depois de vencerem tantas batalhas nas lutas do espírito, no justo


repouso da glória.470

Nesse cenário, ser piauiense, ter livros publicados, ser reconhecido pelo público leitor e
por outros escritores como agente cultural atuante contava menos do que origem familiar,
condição financeira e o fato de possuir ou não formação acadêmica. Quando afirmava que “nas
academias onde se supõe um ambiente repousante para uma vida intelectual menos intensa [...]
aí onde se imagina um lago azul sem névoas nem espumas, dormem, não raras vezes, abismos
dissimulados”,471 J. Miguel de Matos delineava um meio cultural marcado por rivalidades e
acomodações. Consciente disso, o escritor utilizava sua escrita para construir uma imagem
diferenciada de si, criticar adversários e construir redes de contatos com outros intelectuais.
Escrevendo Perfis no contexto de suas derrotas para Academia Piauiense de Letras, J.
Miguel de Matos desejava convencer seus leitores da imparcialidade de seus textos. Segundo
ele, a obra era o resultado de pesquisa séria, crítica e honesta, porém, ao afirmar que a obra
podia animar ou consolar aqueles que sentiam-se marginalizados, este incluía-se nesta categoria
e passava a utilizar seus textos como forma de denúncia ou vingança diante do que considerava
uma injustiça

[...] esta obra não tem por escopo dizer quem deve ou não deve alcançar a
imortalidade acadêmica, pretendendo apenas mostrar, pelo estudo crítico
honesto, para julgamento geral ou em particular dos oficiantes da literatura
entre nós, a verdadeira gama cultural dos que se agitam como estetas das
letras, no panorama largo e extenso do Piauí, ficando, todavia o seu autor certo
de uma coisa: consolar aqueles que, marginalizados, necessitam, para
desafogo de suas angústias que sabem esconder tão bem, do julgamento
imparcial da história literária desta província de Mafrense, mesmo para um
sorriso, apenas, dentro da noite de sua solidão e de seu esquecimento.472

Contudo, a escrita refletia seus ressentimentos. Em Perfis, o soldado-escritor investiu


contra o perfil da crítica, em geral elogiosa, feita aos intelectuais imortais, muitas vezes
produzidas por eles mesmos. Criticou também o processo editorial do Estado e, sobretudo, os
jovens escritores que não o reconheciam como alguém significativo para a literatura piauiense.
Investindo na construção de si como um escritor criterioso, afirmava que esta deveria ser uma
prática a ser observada pelos acadêmicos, e que isto pesava ao seu favor para o ingresso na
instituição. Segundo ele,

[...] por este comportamento que assumi perante a literatura piauiense,


assistindo, no terrível dia- a- dia da nossa vida cultural, a germinação de obras

470
MATOS, 1974, p. 236.
471
MATOS, 1974, p. 233.
472
MATOS, 1974, p. 155.
209

que não resistem ao tempo – por fracas, inúteis e vazias – venho granjeando o
ódio de uns e a antipatia de outros, que obstaculam a minha caminhada para a
imortalidade acadêmica, quando deveriam se tornar maiores do que eu pela
cultura, que seria a competição mais indicada por mais leal. Mesmo assim [...]
continuo a minha jornada, de espada em punho como o Anjo Gabriel,
decepando a cabeça das mediocridades engalanadas e cuidando, como uma
sentinela indormida, das letras e das artes no Piauí.473

Considerando o conjunto de seus escritos após o ingresso na Academia Piauiense de


Letras, percebemos que seus textos oscilam entre posturas táticas e estratégicas, visando
construir um poder simbólico que associe sua trajetória à imagem da instituição, posto que zelar
e enaltecer o sodalício significa angariar legitimidade e distinção social para si próprio.
A inserção em um grupo social distinto impactava em seus posicionamentos e, em
algumas situações, o acadêmico imortal J. Miguel de Matos acabou por adotar práticas
semelhantes às que criticara anteriormente, por exemplo, indicando ou defendendo candidaturas
que levavam em conta a atuação política ou o grau de parentesco do aspirante com o sócio recém-
falecido.474 Contudo, a lembrança das dificuldades que precisou enfrentar para ingressar nesta
agremiação cultural não deixou de ser uma constante em suas narrativas, fomentando rivalidades
e cultivando ressentimentos que o levaram, de maneira, estratégica a comprometer-se com a
defesa dos novos escritores. A suposta vigilância dos valores acadêmicos e a defesa de uma
prática literária de qualidade permitiriam a J. Miguel de Matos angariar a simpatia de outros
escritores e possibilitou inúmeras oportunidades de relembrar, atacar e até constranger aqueles
sujeitos que, no passado, dificultaram seu ingresso na instituição.
Exemplo de como o ressentimento em virtude das derrotas a que foi submetido marcou
sua trajetória e, por consequência, sua escrita, percebemos no fragmento a seguir:

[...] dessa caminhada – a mais cruel da minha vida – estarei dando conta ao
povo piauiense de que sou parte, através de um livro batizado com o nome
“Da Rua do Molambo à Casa de Lucídio Freitas, escrito em 1974 [...] Não
tinha mais intenção de publicar essa obra, mas o convívio de quase cinco anos
na Casa de Lucídio Freitas levou-me de repente à decisão de oferecê-la à
leitura especial dos que pretendem, pela profissão de escritor ainda tão ingrata
na província, sentar-se, de espada de ouro na mão, na poltrona acetinada da
imortalidade acadêmica, na tentativa nazarena de levar a cada um a bússola
que possa conduzi-los com maior segurança ao ponto final da jornada e
oferecer-lhes os meios indicados para transporem os graves perigos da
travessia [...] Fazendo o percurso da minha vida pela margem da estrada [...]
troquei de súbito o silêncio pelo barulho, a calma pela inquietação, o sono pela

473
MATOS, 1974, p. 35-36.
474
J. Miguel de Matos deseja construir-se com imortal criterioso em momentos de eleição para a Casa de Lucídio
Freitas. Na prática, o que se percebe é um indivíduo que, ingressando na Academia Piauiense de Letras, incorpora
o habitus institucional. Entre as práticas criticadas, e posteriormente praticadas por este escritor está a ocupação
de cadeiras vagas por parentes do ocupante falecido. O discurso fúnebre que fez em homenagem a Armando
Madeira, ao qual nos referimos anteriormente exemplifica este movimento.
210

vigília, ao penetrar, mudando bruscamente a rota do meu destino, no leito


acidentado e longo do caminho estreito da imortalidade, tendo, para percorrê-
lo, de valer-me da resignação de Jesus de Nazaré e da estratégia de Napoleão
Bonaparte: um, levantando a cruz de madeira; outro empunhando a espada de
aço, para poder vencer o inimigo oculto e indormido que, a qualquer instante
poderia, pela surpresa, liquidar com a pretensão cor-de-rosa deste lutador.475

No trecho transcrito, o autor afirma que escrevia seu segundo livro de memórias.
Coincidentemente, ou não, trata-se do mesmo livro que teria sido publicado pelo Plano Editorial
do Estado.476 Nesta empreitada memorialística, nos afirmava que o tema central de suas
narrativas eram os eventos ligados ao ingresso na Academia Piauiense de Letras. Mais uma vez
o escritor colocava-se como alguém que superou dificuldades, saindo de uma região muito
pobre da cidade de Floriano até alcançar espaço na instituição cultural mais antiga do Piauí.
Apesar de investir na construção de uma imagem de si que o apresentasse como alguém
distinto por fazer parte da Academia Piauiense de Letras, J. Miguel de Matos não abandonava
o investimento simbólico que associa suas práticas a um comprometimento messiânico e
combativo em relação à literatura piauiense. A suposta nobreza de suas intenções deve ser
analisada à luz das rivalidades e ressentimentos existentes entre esse sujeito e seus
contemporâneos. Ao valorizar sua atitude nazarena procura construir-se como alguém honesto,
humilde e injustiçado justamente por revelar ao grande público, os jogos de poder que levavam
os acadêmicos a disputar posições de destaque no meio cultural piauiense.
Ao referir-se ao processo que culminou com sua consagração como escritor imortal, J.
Miguel de Matos agiu de maneira tática. A denúncia ou a incorporação dos “abismos
dissimulados” que, em sua opinião, marcavam o cotidiano da Academia Piauiense de Letras
refletiu sobre os lugares sociais que lhe foram possibilitados ou interditados, afinal pertencer a
essa instituição garantiria não apenas legitimidade da escrita e distinção social mas permitiria a
inserção de alguns de seus membros em lugares de poder no contexto da cultura piauiense a
exemplo de cargos em secretarias, conselhos e comissões que poderiam viabilizar, junto ao
poder público, a edição ou aquisição de exemplares de suas obras.
Já a análise de sua atuação nas atividades acadêmicas de J. Miguel de Matos pode ser
apreendida através da análise dos registros internos e publicações da Academia Piauiense de
Letras. Os livros de atas, as edições da Revista da Academia Piauiense de Letras e o boletim
Notícias Acadêmicas nos ajudam a entender como esse sujeito experienciou sua consagração

475
MATOS, 1980, p. 88-89.
476
Como afirmado anteriormente, nos acervos e bibliotecas em que pesquisamos não há indícios de que essa obra
tenha sido efetivamente publicada. Possivelmente a inserção em um ambiente distinto que oferecia e, ao mesmo
tempo, exigia um comprometimento institucional em troca do compartilhamento dos hábitos, comportamentos e
sociabilidades, pode ter levado o novo imortal a moderar e até mesmo questionar a pertinência de sua publicação.
211

enquanto escritor imortal, haja vista serem registros institucionais sobre a dinâmica interna do
sodalício. Destaque-se que a atuação de J. Miguel de Matos na imprensa como colaborador e
editor-proprietário da revista Mafrense, bem como a relação de proximidade cultivada com
políticos que podiam viabilizar a edição de seus livros, fez com que esse escritor não dependesse
exclusivamente das publicações institucionais para manifestar seus posicionamentos.
Questões relacionadas à ausência de sede própria para a instituição até o ano de 1986 e
dificuldades de organização de seu acervo impossibilitam que muitas informações sobre a
Academia Piauiense de Letras estejam disponíveis aos pesquisadores. Registros sobre datas,
participantes, temas discutidos nas reuniões ordinárias e extraordinárias podem ser localizados
nos Livros de Atas e, embora sua sequência cronológica esteja comprometida, sobretudo entre
os anos 1973 e 2000, respectivamente o ano da posse e do falecimento de J. Miguel de Matos,
ainda é possível vislumbrar como se processava sua atuação.
O Livro de Atas correspondente aos anos 1968 e 1973 apresenta registros da segunda e
terceira candidatura de J. Miguel de Matos e nos permite saber quando foi aberto o edital
convocando os candidatos, quem eram os concorrentes, os acadêmicos votantes e a apuração
do resultado. No que diz respeito à sua terceira candidatura, temos apenas o rascunho da ata da
solenidade de posse, impedindo acesso a informações sobre o ritual em si. As informações sobre
esse momento só puderam ser localizadas nos jornais que circulavam à época. Já no Livro de
Atas dos 1974 e 1992, período da presidência de A. Tito Filho não foram feitos registros das
reuniões, apenas anotações mensais ou anuais dos principais eventos ocorridos como posses,
homenagens e lançamentos de livros, não sendo possível verificar como se processou, por
exemplo, a frequência do novo acadêmico às reuniões do sodalício. Novamente é pelos jornais
que temos acesso às parcerias e confrontos que estabeleceu com o presidente da instituição.
Entre 1992, ano do falecimento de A. Tito Filho, e 1996 não há registro de atas. No
arquivo reiniciado em 1997, percebe-se a ausência de J. Miguel de Matos das reuniões, o que
vem a ser justificado na ata do dia 12 de julho de 1997, na qual há o seguinte relato:

Presente à nossa reunião o Acadêmico J. MIGUEL DE MATOS, após longo


período de ausência, por estar em tratamento de saúde, foi o mesmo
festivamente recebido e, com a palavra, leu aos acadêmicos telegrama do
Prefeito Municipal de Floriano o qual, em nome da comunidade florianense,
e por votação da Câmara de Vereadores, comunicara ao escritor, filho da terra,
a concessão da “Medalha do Mérito Francisco Parente” e que fora recebida
pelo homenageado no dia sete de julho, por ocasião das comemorações do
centenário da cidade. Sobre a homenagem manifestaram-se os presentes,
exaltando os méritos do Acadêmico e louvando a ação do Legislativo
212

Municipal de Floriano por haver concedido aquela histórica medalha a quem


tanto a merecia.477

A escrita polida e pretensamente neutra, características de registros dessa natureza,


evidencia a cordialidade entre os membros do sodalício e apresenta um J. Miguel de Matos já
envelhecido, mas que ainda sente a necessidade de exibir, entre seus pares, as distinções e
homenagens a ele atribuídas. Os registros seguintes evidenciam as tentativas do escritor em
retomar a assiduidade das reuniões, mas possivelmente em virtude de seu estado de saúde,
percebemos mais ausências do que presenças até maio de 2000, momento em que se registra
seu falecimento. Na sequência, há registro das homenagens fúnebres que lhe foram prestadas e
sobre o processo de escolha de seu sucessor, Oton Lustosa.478
A Revista da Academia Piauiense de Letras registra apenas uma colaboração de J. Miguel
de Matos: a publicação de seu discurso de posse em edição que circulou no segundo semestre de
1980. Contudo, acredito que isso não signifique ausência de atividade escriturística ou
desinteresse pelas atividades acadêmicas, haja vista outras fontes apontarem que nesse período
este foi responsável por enunciar discursos de recepção a novos membros e prestar homenagens
a acadêmicos falecidos. Acreditamos que a falta de textos de sua autoria nesse periódico decorra
de opção do escritor em publicar seus textos em outros suportes ou, quem sabe, do julgamento da
Comissão de Redação sobre a pertinência de suas possíveis colaborações.
Apesar de sua única colaboração na Revista da Academia Piauiense de Letras, J. Miguel
de Matos se faz presente na publicação de outras maneiras. Na sessão Quadro da APL este
aparece em informes sobre a constituição das cadeiras, antiguidade dos sócios na agremiação,
divulgação de informações pessoais, como endereço e telefone pessoal, quando se faz o registro
de obras lançadas por acadêmicos, quando se reproduzem fotografias de eventos aos quais
compareceu e, finalmente, no discurso de posse de seu sucessor. Destaque-se ainda que J.
Miguel de Matos foi membro da diretoria na condição de primeiro-secretário durante a quase
totalidade de sua vida acadêmica, excetuando-se os momentos de fragilidade física.
As obras do autor também aparecem referenciadas em discursos de outros acadêmicos.
Considerando que as antologias reúnem informações biográficas e comentários sobre obras, seus
textos constituem-se como rico depósito de informações. O escritor J. Miguel de Matos aparece
também em meio às memórias sobre as sociabilidades acadêmicas, um exemplo é o discurso do

477
ACADEMIA PIAUIENSE DE LETRAS. Atas da Academia Piauiense de Letras. Teresina: APL, 1997. (Não
paginado).
478
Oton Mário José Lustosa Torres nasceu em Parnaguá em 1957. Magistrado, é autor das obras Meia vida,
Petições e sentenças e Da propriedade imóvel. Tomou posse na cadeira número 5 da Academia Piauiense de Letras
em 5 de abril de 2001.
213

filho de Luiz Lopes Sobrinho, proferido em sessão que homenageou a memória de seu pai. Além
de rememorar as atividades exercidas por seu genitor, este apontou as sociabilidades e redes de
amizade intelectuais firmadas entre os acadêmicos, entre eles, J. Miguel de Matos:

Um dia resolveu abrir um bar, O CANTINHO DO POETA, onde recebia os


amigos, especialmente intelectuais, que frequentavam o local para ouvir uma
boa prosa, um poema ainda fresco, saído da forma naquele instante, pois nosso
pai era essencialmente poeta. Era comum encontrar no bar do poeta alguns
dos mais notáveis, intelectuais daquela época: o professor Arimathéa Tito
Filho, o romancista José Miguel de Matos, o teatrólogo Santana e Silva, Ofélio
Leitão, James Azevedo, João Gabriel Baptista, Júlio Vieira, Lilizinha Castelo
Branco, um jovem escritor que despontava e por quem teve um carinho todo
especial: refiro-me ao escritor Herculano Moraes, um dos grandes amigos de
nosso pai”.479

Outra fonte institucional é o boletim Notícias Acadêmicas, periódico produzido entre os


anos 1986 e 2005 e que tinha como objetivo informar sobre as ações desenvolvidas pela
instituição e abrir canal de comunicação entre esta e a sociedade. As dificuldades financeiras
que marcam a trajetória histórica da Academia Piauiense de Letras em diversas oportunidades
impediram a regularidade da publicação de sua Revista, dessa forma, esse boletim informativo
reproduzido em gráficas particulares ou com o auxílio do poder público divulgava, de maneira
mais rápida, os eventos cotidianos da instituição. Composto em média por quatro ou oito
páginas, Notícias Acadêmicas era distribuído gratuitamente entre acadêmicos e visitantes e
também enviado para agentes culturais de fora de Teresina e do Estado.
Idealizado como publicação mensal, Notícias Acadêmicas expunha de maneira
minuciosa as atividades da instituição destacando, sobretudo, os eventos culturais promovidos
ou as atividades das quais tomou parte. Suas edições, além de minimizar a irregularidade
editorial da Revista da Academia Piauiense de Letras, oferecem informações sobre boa parte
do recorte cronológico em que não há atas sobre as atividades desenvolvidas. Neste periódico,
percebe-se também um esforço de construção de uma memória institucional a partir da
celebração dos jubileus de posse de seus membros, o destaque dado aos aniversários
(nascimentos, formaturas, casamentos, lançamento da primeira obra) de acadêmicos e, de
maneira educativa, apresenta aos leitores os perfis de acadêmicos ilustres, sobretudo nas sessões
Efemérides da Academia Piauiense de Letras e Vultos da APL.
O caráter instantâneo das informações divulgadas pelo boletim Notícias Acadêmicas
apresenta J. Miguel de Matos comprometido com as atividades acadêmicas, destacando suas
passagens pela diretoria da instituição. Em suas páginas, encontramos referência ao lançamento

479
REVISTA DA ACADEMIA PIAUIENSE DE LETRAS. Teresina, 2005, p. 56-57.
214

de suas obras e visitas que promoveu visando estabelecer diálogo entre a Academia Piauiense
de Letras e outras agremiações culturais. O registro a seguir noticia uma de suas atuações

O acadêmico J. Miguel de Matos, sempre interessado em divulgar os trabalhos


da APL, recebeu do Cel. Alberto Albuquerque Cordeiro mensagem de
agradecimento pela remessa de publicações da nossa Academia, com o elogio
pela sua atuação nos meios culturais piauienses e palavras de incentivo às
nossas realizações culturais.480

O fragmento é significativo do seu esforço em divulgar as ações do sodalício bem como


delineia algumas das redes de sociabilidade pelas quais o escritor transitava. É oportuno frisar
que à medida que divulgava as atividades da Academia Piauiense de Letras, o escritor reforçava
uma imagem de si como intelectual pertencente à instituição atuante no cenário cultural
piauiense. Notícias Acadêmicas apresenta também alguns serviços ofertados pela Academia
Piauiense de Letras, como uma biblioteca disponível a estudantes e interessados em obras
literárias. Ao informar o público leitor sobre o acervo da instituição, este boletim informativo
lista os autores cujas obras são mais solicitadas pelos visitantes:

Constituem o Departamento Cultural da APL a Biblioteca, o Museu e o


Arquivo [...] Fez-se a catalogação de livros, trabalho primoroso. Construiu-se
e inaugurou-se salas amplas e confortável para consultas, equipadas de
mobiliário novo e moderno. Leitores e pesquisadores elogiam o convidativo
ambiente e a presteza do atendimento. Organizou-se ainda a Estante da
Literatura Brasileira. Estudantes e estudiosos de todos os níveis frequentaram
a Biblioteca. Os autores piauienses mais solicitados foram Tito Filho,
Herculano Moraes, O. G. Rego de Carvalho, João Gabriel Baptista, José
Miguel de Matos, monsenhor Joaquim Chaves entre outros vivos, e entre os
mortos João Pinheiro, Abdias Neves, Lucídio Freitas, bem assim a Cronologia
Histórica do Estado do Piauí, do pernambucano Pereira da Costa.481

Registros como estes nos trazem informações sobre a recepção das obras de J. Miguel
de Matos. A presença de questões sobre literatura, história e geografia do Piauí nos exames
vestibulares locais pode nos ajudar a entender o consumo de suas obras, sobretudo as antologias,
que apresentavam informações sistematizadas sobre escritores e suas obras.
Além de informações pessoais como endereço, telefone para contato e data de
aniversário, o boletim atualizava os leitores sobre atividades desenvolvidas pelos acadêmicos
como palestras proferidas e viagens realizadas. Assim como o Livro de Atas, o boletim Notícias
Acadêmicas faz referência ao estado de saúde do escritor informando, inclusive, que a
Academia Piauiense de Letras colaborou financeiramente para tratamento de saúde a qual foi

480
NOTÍCIAS ACADÊMICAS. Teresina, p. 3, out. 1992.
481
NOTÍCIAS ACADÊMICAS. Teresina, p. 7, dez. 1989.
215

submetido e dando notícias sobre a “franca recuperação [do] acadêmico J. Miguel de Matos
(operação de safena)”.482
Acreditamos que a documentação institucional analisada nos permite identificar J.
Miguel de Matos como um escritor atuante no cotidiano da Academia Piauiense de Letras. Para
além dos textos em que se coloca como escritor injustiçado e, posteriormente, como imortal
engajado em dinamizar as atividades acadêmicas, os registros institucionais nos mostram suas
formas de atuação. Esses textos, encarados como fragmentos de memórias e experiências, nos
trazem relatos sobre suas práticas ora estratégicas, ora táticas visando fortalecer seu nome como
importante agente cultural de seu tempo. No entrecruzamento dessas narrativas, construímos
sentidos em torno de sua atividade acadêmica.
À guisa de conclusão deste tópico, propomos uma reflexão sobre como, na atualidade,
a Academia Piauiense de Letras promove a construção de sentidos em torno da experiência
acadêmica de J. Miguel de Matos. Os regimentos da instituição exigem que no ato da posse de
novos membros, estes devem pronunciar discurso elogioso aos acadêmicos que anteriormente
ocuparam a cadeira para o qual foram eleitos. O juiz Oton José Lustosa cumpriu a obrigação
protocolar ao rememorar a trajetória pessoal e escriturística do extinto José Miguel de Matos.
Contudo, seu discurso reproduziu apenas os trechos do necrológico que havia sido pronunciado
por Herculano Moraes em maio de 2000. Não houve preocupação maior do novo acadêmico
em tecer novos comentários sobre seu antecessor. Entendemos que iniciou-se aí o processo de
silenciamento em torno de sua atuação, temática que discutiremos no capítulo a seguir.
O nome e a memória de seu escritor figuram ainda em narrativas publicadas após sua
morte, sobretudo em textos que citam suas pesquisas biográficas e de antologia, mostrando que
há certa relevância naquilo que escreveu, ou nos textos que registram algumas das teias
intelectuais que alinhavou com seus contemporâneos. Curioso notar, entretanto, que no
contexto das comemorações dos 100 anos da instituição, momento em que a Academia
Piauiense de Letras direcionou seu olhar para a divulgação das contribuições intelectuais de
seus membros, reeditando através da Coleção Centenário obras fundantes sobre o Piauí ou
apresentando obras inéditas de imortais e pesquisadores, houve um completo silenciamento em
torno da produção de J. Miguel de Matos.483 Embora essa invisibilidade não seja direcionada
exclusivamente à sua figura podemos nos questionar: quais jogos de poder legitimam no

482
NOTÍCIAS ACADÊMICAS. Teresina, p. 7, ago. 1989.
483
A Coleção Centenário propunha-se, inicialmente, a lançar 100 livros de escritores imortais. O sucesso do projeto
editorial e parcerias com editoras públicas e particulares, ampliou o número de obras e os autores a publicar. Em
nosso último levantamento, já foram editados 150 títulos de acadêmicos e escritores externos à instituição, entre
literatos e pesquisadores das mais diversas áreas.
216

presente o silenciamento e a interdição em relação a sua atuação acadêmica? Quais fatores


impedem a construção de uma memória institucional sobre esse sujeito e suas obras? No
capítulo seguinte, refletiremos sobre as potencialidades e possibilidades da escrita como
instrumento de construção de significados em torno de experiências sociais.
217

5 ESCRITA, MEMÓRIA E (RES)SENTIMENTOS: J. Miguel de Matos e a literatura


piauiense

Nos capítulos anteriores, ao apresentarmos o escritor J. Miguel de Matos, identificamos,


a partir de seus textos, as táticas utilizadas por este para construir-se socialmente como um
escritor e agente cultural preocupado com os rumos da literatura produzida no Piauí. O apelo à
sua trajetória biográfica, utilizada à exaustão entre as décadas de 1960 a 2000 para pautar, na
impressa local, as referências à sua pessoa, nos coloca diante de um escritor que não mediu
esforços para ocupar os espaços sociais possíveis aos homens de letras e tentou controlar aquilo
que era dito sobre si, resultando em visões distintas sobre suas práticas entre seus
contemporâneos.
Apesar de suas inúmeras tentativas, não se pode dizer, na atualidade, que J. Miguel de
Matos seja um escritor reconhecido no Piauí. Nas décadas de 1960 e 1970, momentos em que
mais ativamente produziu livros e colaborou com a imprensa, o escritor conseguiu, como poucos,
fazer de sua escrita um instrumento capaz de apresentá-lo socialmente e com isso, angariar apoios
para suas empreitadas futuras. Seus textos não são apenas espaços nos quais o escritor exibia sua
erudição, adquirida por meio do autodidatismo. Sua escrita estava mobilizada para a construção
de uma imagem de si e das redes de afetos que tornam suas práticas possíveis.
Sua aceitação, enquanto como agente cultural, entretanto, é algo distinto do
reconhecimento da qualidade de seus escritos. Em um meio literário marcado por reduzidas
oportunidades, mais importante que a qualidade e a relevância dos escritos estava a capacidade
de movimentar o cenário cultural piauiense, construindo aproximações, fomentando
rivalidades, chamando atenção para as agremiações a que estavam filiados e construindo
imagens de si que possibilitassem sua inserção e permanência em espaços distintos. Em tudo
isso, o soldado-escritor foi bem-sucedido. Porém, à medida que seus contemporâneos
discordavam, divergiam daquilo que enunciava, seus textos revelavam frustrações, refletidas
em agressividade e ressentimento, diante da incapacidade de sua escrita em construir os sentidos
e a aceitação que almejava. A fragilização de sua saúde ao longo da década de 1990 impactou
também na projeção de seu nome que, aos poucos, foi deixando de figurar nas polêmicas
literárias da época, iniciando um processo de esquecimento em torno de suas atuações.
Por outro lado, o ingresso em academias de letras que investem na imortalidade como
seu diferencial atribuiu novos significados ao reconhecimento possível a este sujeito. Escritores
imortais, em teoria, são aqueles cujas influências atravessam os tempos. Discursos articulados
podem, inclusive, alçá-los à condição de clássicos, ou seja, de figuras representativas em suas
218

respectivas áreas de atuação e criação cultural. Com a imortalidade, espera-se, minimamente, a


perpetuação de uma memória positiva em torno de seus feitos. Nesse ponto, a experiência da
imortalidade acadêmica à qual J. Miguel de Matos está submetido, permite-nos questionar os
limites desta aceitação. Até que ponto, sua inserção no panteão dos escritores imortais do Piauí
atestou seus méritos como escritor, tranquilizando-o em relação a este reconhecimento?
Neste capítulo, vamos discutir os processos que, nos dias de hoje, contribuem para sua
inserção e os esquecimentos em torno do indivíduo J. Miguel de Matos. O valor atribuído à sua
escrita, as formas como foi inserido em uma memória coletiva, as mágoas que promoveu e os
ressentimentos que cultivou ajudam-nos a entender como este processo se desdobra. As
emoções terão lugar relevante pois, a partir delas, tentaremos entender como as ações do
soldado-escritor e de seus contemporâneos contribuíram para o processo de invisibilidade em
curso. Aqui J. Miguel de Matos não é uma vítima, mas um sujeito que fez de sua escrita um
espaço de disputa política. Sua escrita emocionada deixou entrever amizades e parcerias, da
mesma forma que, quando interessada e rancorosa, apresentou as disputas do meio intelectual
e cultural piauiense.
Pierre Ansart discute o lugar dos ressentimentos na construção das memórias. Em História
e Memória dos ressentimentos,484 o escritor aborda as relações entre os afetos e as ações práticas
dos indivíduos. Ao tempo que historiciza os usos do termo ressentimento, coloca-os como
resultado dos conflitos entre dominantes e dominados e afirma que estes são sentimentos ligados
a uma impotência rancorosa. Inveja, vingança, hostilidade, ciúme, paixão e medo são algumas
das emoções contempladas por este termo. O autor afirma que estes sentimentos possuem
intensidade variada e que os historiadores devem considerar o lugar do orgulho ferido e dos
ataques à autoestima nos desejos de vinganças dos sujeitos. De maneira didática, Pierre Ansart
considera que os ressentimentos provocam atitudes díspares, que variam da impotência à
agressividade, e como estas criam valores que impactam na moralidade e nas atuações sociais dos
indivíduos, promovendo cenários em que estes consideram que são injustiçados e vitimizados.
Já em As Humilhações Políticas, este mesmo autor situa a humilhação como o elemento
mais importante na constituição e estruturação das relações sociais do mundo moderno 485.
Enquanto situação de humilhação, provisória ou persistente ou enquanto sensação de
sofrimento que afeta os desejos e as expectativas, apresenta-se o humilhado como alguém que
se vê atacado em sua interioridade, se sente diminuído, rejeitado, excluído e atingido em seu

484
ANSART, 2004, p. 15-36.
485
ANSART, Pierre. As humilhações políticas. In: MARSON, Izabel; NAXARA, Márcia. Sobre a humilhação:
sentimentos, gestos, palavras. Uberlândia: EDUFU, 2005. p. 15-30.
219

orgulho e identidade. Identificar as situações que provocaram o sentimento de humilhação nos


indivíduos, entender seus impactos em suas relações sociais, ou seja, como afetaram suas
atitudes, expectativas, escolhas e significações atribuídas constituem-se os desafios dos
pesquisadores a fim de compreender o lugar das humilhações na construção de memórias sobre
si e sobre os outros.
J. Miguel de Matos instalou-se, confortavelmente, na posição de vitimizado pelo destino.
O empobrecimento gradativo de sua família, as perseguições no ambiente escolar, a necessidade
de abandonar o estudo formal em nome da sobrevivência financeira, as dificuldades em ingressar
na Academia Piauiense de Letras ou nos espaços de poder político não são entendidos por ele
como acontecimentos isolados, mas como injustiças. Acreditando não as merecer, apresenta-se
como alguém que é constantemente humilhado por pessoas que se legitimam socialmente por
possuírem poder familiar, econômico ou político maior que o seu. Desde Pisando Os Meus
Caminhos, esta é sua tática para apresentar uma verdade sobre os fatos que vivenciou. A julgar
pelos títulos e pelo teor dos textos que publicavam em sua defesa e já citados anteriormente,
alguns de seus contemporâneos ajudaram-no a acreditar que, de fato, era vítima de perseguições.
Negação do acontecimento, resignação, manipulação e recusas à humilhação por meio
de atos de rebeldia compõem a tipologia das humilhações propostas por Pierre Ansart. Aquele
que se sente humilhado pode não agir ou, do contrário, chamar atenção para a situação em que
se sente injustiçado. A personagem que estamos acompanhando nesta pesquisa, diante das
supostas injustiças, não as negava, tampouco resignava-se diante daquilo que era dito sobre si.
De maneira tática, utilizava tais comentários para reforçar sua imagem de injustiçado,
empreendia tentativas de manipular politicamente, em seu benefício, as humilhações que
julgava sofrer, mesmo quando estas eram resultados de comentários e posturas motivados por
ele próprio. A troca mútua de ataques entre o presidente da Academia Piauiense de Letras e este
escritor em decorrência do cancelamento do pleito de 1967, a carta de desfiliação partidária que
sucedeu às brincadeiras de comentarista político em 1975 e a má-disfarçada defesa dos prazos
de posse da Academia Piauiense de Letras em sua discussão com Josias Clarence mostram
como, até quando é efetivamente humilhado, este escritor capitaliza estes acontecimentos no
investimento de sua posição de vitimizado e incompreendido.
Confluência de afetos, o ressentimento é uma emoção. Bárbara Rosenwein em História
das Emoções propõe metodologia que nos ajuda a entender os impactos dos sentimentos na escrita
e na prática dos sujeitos.486 Sem desconsiderar o lugar do espontâneo nas experiências sociais, a

486
ROSENWEIN, 2011.
220

autora apresenta as emoções como elemento importante para o entendimento dos discursos
sociais. Reafirma-se assim, que a escrita não é um ambiente neutro, que é um espaço em disputa
por sujeitos passionais, rancorosos, ciumentos, magoados, vingativos, apaixonados que utilizam
este espaço para apresentar suas visões sobre os acontecimentos. Ao propor estudos que se
pautem em comunidades emocionais, defende que, tal como outras formas de organização
comunitária, estas apresentam os valores sociais e os laços que interligam as pessoas pois

Embora tendamos a falar das emoções de indivíduos, emoções são, acima de


tudo, instrumentos de sociabilidades. Elas não apenas são socialmente
construídas e “sustentam e reforçam sistemas culturais”, mas também agem
sobre as relações humanas em todos os níveis [...] Expressões de emoções
entre pessoas devem ser lidas como interações sociais. O vaivém de emoções
entre pessoas, forma roteiros, que levam a novas emoções e a relacionamentos
reajustados.487

Nesse sentido, as interações sociais travadas por J. Miguel de Matos no passado e que,
no presente, contribuem para o silenciamento em torno de sua atuação escrita serão entendidas
como pertencentes a uma comunidade emocional capaz de produzir identificação, ou não, entre
os sujeitos que a compõem, propiciando relações privilegiadas ou alocando-os às margens
destes grupos. Nossa tentativa de entender o impacto das sociabilidades para a construção da
memória em torno do soldado-escritor se dará por três vertentes: a aceitação de sua identidade
enquanto escritor piauiense, sua inserção nas gerações literárias do Estado e a construção do
Projeto Centenário da Academia Piauiense de Letras.

5.1 J. Miguel de Matos: escritor piauiense

“Floriano e Timon brigam em surdina. Estas duas cidades disputam a paternidade do


escritor J. Miguel de Matos”.488 Estas palavras introduzem o comentário de Edmundo de Castro
selecionado por J. Miguel de Matos para compor a sessão de apresentação da obra Perfis. Nesta
obra, após as dedicatórias, a listagem das publicações do escritor, suas filiações culturais e do
texto de apresentação feito pelo próprio autor, este reservou espaço para a reprodução de
comentários variados sobre si. Os depoimentos extraídos de jornais ou fragmentos de
correspondências recebidas destacam sua trajetória de vida, comentam suas obras ou reforçam
a amizade com o soldado-escritor. Na estrutura de Perfis, obra escrita após sua segunda
candidatura frustrada e publicada poucos meses após seu acesso à imortalidade acadêmica, estes
comentários funcionam como espaço de legitimação do autor, além de apresentação de suas

487
ROSENWEIN, 2011, p. 37.
488
MATOS, 1974, p. 29.
221

redes de sociabilidades intelectuais.


A menção à suposta disputa entre as cidades do Piauí e do Maranhão remete ao relato
de J. Miguel de Matos em Pisando Os Meus Caminhos, acerca dos preparativos para seu
ingresso no ensino formal. A ausência de registro civil, apresentada como impeditivo para
matrícula escolar, seria superada com intervenção de um familiar influente, como apresentado
a seguir

Ai entra em cena, mandado pela Providência, o então capitão Manuel


Machado de Matos, meu primo legítimo, que exercia, na cidade de Timon, a
função de Delegado Especial de Polícia [...] mandou, sabendo do meu drama,
um bilhete à minha mãe, cheia de grande entufamento policial, mostrando no
arremate o seu gênio brincalhão: - Manda o Zezinho na primeira canoa,
Maria... Esse nêgo vai virar maranhense por quebradeira... Assim, num dia
qualquer da minha adolescência, ansiando sair da treva da ignorância para a
luz do saber, com um sol que, escondido no capuz da noite, surge de repente
acendendo o dia, tornei-me filho do Maranhão, valendo dizer que a miséria –
esta minha trágica companheira! – neste distante estágio da minha vida, teve
um gesto comigo de relativo equilíbrio: tirou-me Da Costa e Silva, mas deu-
me, de contrapartida, Coelho Neto.489

Ao fazer referência aos acontecimentos de sua infância, J. Miguel de Matos romantiza,


atribui sentidos e procura tirar proveito do narrado. A narrativa autoficcional reforça a precária
situação financeira da família Matos, no qual, pelo menos um dos filhos, já em idade escolar,
não possuía documento de identificação oficial. A despeito disso, o adulto que constrói o relato
não perde a oportunidade de mostrar-se como alguém que possuí vínculos com autoridades,
simbolizando que a ascendência e o prestígio familiar poderiam minimizar, mesmo que pela
caridade brincalhona, as dificuldades cotidianas. À situação de pobreza expressa no fragmento,
o escritor atribui sentidos inusitados, com perdas e ganhos, pois ao mesmo tempo que perde a
filiação literária com o parnasiano-simbolista Da Costa e Silva490 foi adotado pela terra do
imortal Coelho Neto.491
Certamente nesse momento o menino Miguel não tinha consciência das perdas e ganhos
simbólicos resultantes desse momento. Quando o episódio foi apresentado ao público pela

489
MATOS, 1969, p. 67, grifos do autor.
490
Antônio Francisco da Costa e Silva nasceu em Amarante (PI) em 1885 e faleceu no Rio de Janeiro em 1950.
Bacharel em Direito, poeta, crítico literário, jornalista, funcionário do Ministério da Fazenda. É considerado o
“príncipe dos poetas piauienses”. É autor do Hino do Piauí e de obras como Sangue, Zodíaco e Verhaeren. Primeiro
ocupante da cadeira 21 da Academia Piauiense de Letras.
491
Henrique Maximiano Coelho Neto nasceu em Caxias (MA) em 1864 e faleceu no Rio de Janeiro em 1934.
Bacharel em Direito, colaborou em jornais e revistas com textos abolicionistas, dramaturgia e obras literárias.
Ocupou cargos públicos e exerceu mandato como deputado federal pelo Maranhão. Foi primeiro ocupante da
cadeira 2 da Academia Brasileira de Letras. Escreveu entre outras obras, Rapsódias, Rei Negro e Árvore da Vida.
222

primeira vez, nos jornais de 1967, foi apresentado de maneira distinta492 e, segundo o soldado-
escritor, a denominação “maranhense por quebradeira” foi cunhada pela escritora Nerina
Castelo Branco. Contudo, aquilo que aparentemente decorria de uma brincadeira entre amigos,
tornou-se, como o tempo, algo pejorativo. O fato de ter rompido relações com esta escritora,
quando percebeu que esta não apoiava seu ingresso na Casa de Lucídio Freitas, 493 impregnou a
alcunha de um tom de desqualificação que foi alimentado por aqueles que não simpatizavam
com seus textos e comportamentos, iniciando um processo de questionamento sobre seu
pertencimento à literatura piauiense.
Considerando o solo piauiense como um espaço construído ao longo dos anos por atos
normativos e discursos variados, reconhecemos em J. Miguel de Matos a identidade piauiense.
Ele nasceu no Piauí e por mais que seus documentos oficiais remetam ao Maranhão ou que sua
estreia literária tenha se dado no Ceará, o Piauí e sua cena cultural são os horizontes deste
escritor. Enquanto ainda servia ao Exército Brasileiro em Fortaleza, o soldado-escritor
preocupava-se em mostrar-se aos seus conterrâneos, através de correspondências, como um
piauiense que estava sendo reconhecido literariamente fora de seu Estado. Enviava comentários
sobre escritores piauienses ou sobre a cena literária alencarina e colocava-se como colaborador
da imprensa local, conquistando um espaço que seria efetivamente ocupado quando de seu
retorno ao Piauí. Apesar disto, alguns de seus adversários investiram em sua desqualificação
como escritor piauiense. Diante disso, cabem alguns questionamentos: O que caracteriza o
escritor piauiense? Indo além, podemos dizer que o nascimento em determinado lugar ou a
utilização de temas, práticas e comportamentos, supostamente característicos dos piauienses,
legitimam uma obra como sendo literatura piauiense?
Ao longo dos anos, vários escritores piauienses posicionaram-se diante da existência ou

492
“[...] Todavia, por um preceito burlesco do Destino, fui naturalizado na cidade de Timon (antiga cidade de
Flores), ali do outro lado do Parnaíba, emoldurada pelo cenário verde-escuro de seu casario e ninada pela música
desmaiada que o dedo mágico do vento vai arrancando da face enrugada das águas. O preço do registro, que era
muito menor no Cartório de Timon, obrigou minha mãe, que cuidava, sozinha, da minha vida de menino pobre e
infeliz, a fazer-me conterrâneo de Coelho Neto. Por isso NERINA CASTELLO BRANCO taxou-me de
‘maranhense por barateamento’ denominação que a verdade me inibe de qualquer reprimenda à jovem imortal
piauiense, fazendo, antes, coro com a sua espirituosidade [...]” (MATOS, J. Miguel de. Pisando os meus caminhos:
a Rua do Molambo. O Dia, Teresina, p. 7, 30 mar. 1967).
493
“[...] Constantemente, através de amigos, tenho sabido que a acadêmica Nerina Castelo Branco vem fazendo
referências desairosas a respeito da minha pessoa, tachando-me de moleque e de outros qualificativos que colidem,
inteiramente, com o conceito que eu gozava junto a ela quando a poetisa andava fazendo média para entrar na
Academia Piauiense de Letras, pedindo-me críticas apologéticas para juntar ao fraco dossier de seus méritos
literários e alcançar, como alcançou, a imortalidade acadêmica. As duas vezes em que me candidatei à Casa de
Lucídio Freitas para as cadeiras 17 e 25, Nerina, como uma advogada do diabo, andou de seca e meca, destruindo
meu sonho de entrar para o Jardim do Academo, num autêntico contraste ao que me dizia pessoalmente, nos
encontros fortuitos das ruas, das esquinas e dos logradouros públicos e mesmo por meio de correspondência, que
ainda guardo nos meus arquivos implacáveis [...]” (TITO FILHO, A. Caderno de anotações. Jornal do Piauí,
Teresina, p. 6, 26 abr. 1972).
223

não de uma literatura piauiense. Em 1972, no momento em que o governo do Estado preparava-
se para lançar o Plano Editorial do Estado, A. Tito Filho e O.G. Rego de Carvalho discordaram
publicamente sobre o tema. Ao parabenizar o poder público pela iniciativa de publicar ou
reeditar obras de escritores piauienses, o então presidente da Academia Piauiense de Letras
recomendou cuidado na seleção dos autores e títulos. Tal comentário lhe rende o convite para
escrever uma história da literatura piauiense. Enquanto fazia planos para a empreitada, o
escritor mostrou-se surpreso com crítica publicada nos jornais, na qual o escritor oeirense
afirmava desconfiar da possibilidade de escrever a história do que ainda não existe.494 A
resposta de A. Tito Filho revela facetas da cena cultural piauiense.
Inicialmente, A. Tito Filho mostrou-se decepcionado com um escritor que, segundo ele,
já havia lhe solicitado que publicasse, em suas colunas nos jornais, comentários sobre suas
obras. Por já ter publicado resenhas e comentários elogiosos a O.G. Rego de Carvalho,
possivelmente A. Tito Filho acreditava que as suas interações deveriam ser marcadas pelo
elogio mútuo e deferência ao lugar social ocupado por ambos. Enquanto presidente de uma
instituição que reúne intelectuais e escritores do Estado, A. Tito Filho ressentiu-se com o
comentário do escritor piauiense que, neste momento, gozava de certa visibilidade nacional 495.
Arregimentando apoiadores, dentre os quais J. Miguel de Matos, a discussão culmina em
referências às suas vidas privadas, quando A. Tito Filho referiu-se à proximidade do escritor
oeirense com a loucura, elemento que fazia sua obra ser destinada “apenas às chaves
intelectuais, de cultura especializada em psicopatologia”.496 A. Tito Filho ainda acusou O.G.
Rego de Carvalho de ofuscar seu protagonismo na discussão sobre a existência ou não de uma
literatura piauiense, afirmando que, antes do escritor oeirense levantar estes questionamentos,
já o havia feito em jornal publicado dias antes, no qual dizia:

Deve fazer-se referência a uma literatura piauiense? Uma literatura do homem


piauiense? Num espaço geograficamente piauiense? Num tempo
historicamente piauiense? Quando falo de homem piauiense não faço
referência ao nascido aqui. Refiro-me ao que se integrou na paisagem física,
humana, social, espiritual do Piauí. Higino Cunha, nascido no Maranhão, é
piauiense, da mesma forma que Celso Barros Coelho. Veja-se: Olvídio
Saraiva Carvalho e Silva, nascido no Piauí, é bem português, de personalidade
portuguesa, de produção literária portuguesa. Não se nega a existência do
espaço piauiense, com certas características próprias. Existe igualmente o
tempo historicamente piauiense? O Piauí participou do tempo histórico em

494
“[...] Escrever a história do que ainda não existe? É uma piada [...]” (TITO FILHO, A. Caderno de anotações.
Jornal do Piauí, Teresina, p. 6, 6 abr. 1972.
495
Em 1972, O.G. Rego de Carvalho conquistou com a obra Somos Todos Inocentes o prêmio Coelho Neto da
Academia Brasileira de Letras.
496
TITO FILHO, A. Caderno de anotações. Jornal do Piauí, Teresina, p. 6, 6 abr. 1972.
224

literatura? Creio que não, embora se possam excetuar alguns casos dessa
participação.497

Para o presidente da Academia Piauiense de Letras, o debate deveria considerar a


questão da autoria, da caracterização das personagens e da referência ao território. Afirmava
também que a literatura aqui produzida, em muitos momentos, estava distante dos movimentos
literários nacionais. Mais de uma vez A. Tito Filho se manifestou sobre o tema, defendendo a
existência de uma literatura piauiense “porque temos o homem piauiense na elaboração de
processo literário num espaço geograficamente piauiense”.498
Anos depois das discussões entre A. Tito Filho e O.G. Rego de Carvalho, o já imortal J.
Miguel de Matos também foi questionado sobre a existência ou não de uma literatura tipicamente.
Coadunando com a visão do presidente da Academia Piauiense de Letras, assim se posicionou

A literatura piauiense existe mesmo? R. - Uso a similitude como força de


argumento, citando Valter Wey: “A literatura é a mais espiritual das artes. Não
só por se servir dos instrumentos – o verbo, mas ainda por visar o mais
espiritual dos efeitos – a expressão da alma humana e a representação da vida
em geral traduzida em seu reflexo no espírito. Para alguns autores, este seria
o sentido subjetivo da literatura. Consideram-se também objetivamente. E,
neste caso, seria o conjunto de obras realizadas num país (literatura nacional),
anonimamente pelo povo (literatura popular), por uma civilização (literatura
ocidental), por uma língua (literatura francesa)”. Por que então não batizarmos
de literatura piauiense, o conjunto das obras publicadas no Piauí?499

Extrapolando a questão da autoria e do espaço geográfico, O.G. Rego de Carvalho


defendia que não havia um elemento caracterizador de uma literatura tipicamente piauiense.
Para o escritor, a literatura aqui produzida carecia de originalidade e continuidade, sendo a
reprodução de modelos já adotados por escritores de outras regiões do país. As publicações,
que emergiam esporadicamente, reforçavam uma tradição iniciada no século XIX cujos temas
remetiam ao elogio da natureza local, à romantização de uma vida rural e à valorização da figura
do vaqueiro, inserindo estas narrativas no espectro de uma literatura regional. Ao longo dos
anos, O.G. Rego de Carvalho argumentou que a repetição dos temas era a marca dos textos aqui
produzidos e afirmava

[...] quanto ao julgamento da literatura piauiense, continuo com o mesmo


ponto de vista: eu acho que não temos, no Piauí, nada, absolutamente nada de

497
TITO FILHO, A. Caderno de anotações. Jornal do Piauí, Teresina, p. 6, 6 abr. 1972.
498
Comentário extraído do prefácio de Deus e a natureza em José Coriolano, obra publicada pelo Plano Editorial
do Estado. Cf.: TITO FILHO, A. Esclarecimento. In: TITO FILHO, A. Deus e a Natureza em José Coriolano.
Teresina: COMEPI, 1973. (Não paginado).
499
SANTOS, Pompílio. PQP - Pequeno Dicionário Proust – Escritor J. Miguel de Matos. O Estado. Teresina, p.
11, 30 out. 1975.
225

que possamos nos orgulhar em termos de literatura piauiense, falo de um


conjunto de obras que represente o Piauí.500

Diante dos argumentos de O.G. Rego de Carvalho, convém também situar o lugar de seus
posicionamentos. Conhecido por suas obras intimistas e com apelo psicológico, este escritor
mostrava-se consciente da diferença de seus escritos em relação ao conjunto da literatura até então
produzida no Piauí. Explorar essa distinção é um elemento discursivo construtor de sua própria
autenticidade, uma tática que o apresentava como escritor com linguagem e discussões
universais.501 Entrar em conflito com imortais, provocar debate sobre aspectos da cultura local e
enfatizar a diferença entre sua produção e aquilo que era tido como literatura piauiense funcionam
como instrumentos para a construção da identidade deste escritor.
Ao longo dos anos, muitas oportunidades para aprofundar os debates e estabelecer
pressupostos acerca das características da literatura produzida no Piauí se perderam em virtude
da falta de maturidade da intelectualidade local que reduzia a questão às disputas por
protagonismo ou pela posse da palavra final. A naturalização da discussão é outra tônica dos
debates, como visto na resposta do escritor Fontes Ibiapina, jurista imortal, quando questionado
pelo também escritor Alcenor Candeira sobre a existência ou não de uma literatura piauiense

IBIAPINA – Pra começo de conversa, Alcenor, uma pergunta que já se tornou


lugar-comum. Amassada que nem banana em boca de velho. Ultimamente,
em toda entrevista com nossos vultos de letras, sempre é a primeira. Ademais,
quase sofística. Ora... só em você estar entrevistando um escritor piauiense, é
claro que a Literatura existe.502

A exasperação do entrevistado diante da pergunta repetitiva revela uma associação


direta, também corrente à época, entre o local de nascimento e identificação literária com a
chamada piauiensidade.503 Reconhece-se aí que, se um literato piauiense escreve, o resultado
desta prática não é apenas literatura, mas sim literatura piauiense. A ausência de discussões
aprofundadas sobre o tema, creio, advém da denominação feita por João Pinheiro, um dos
fundadores da Academia Piauiense de Letras e primeiro escritor que se propôs a historicizar a
literatura aqui produzida.
Em 1937, João Pinheiro publicou Literatura Piauiense: escorço histórico, obra na qual
reconhecia logo no proêmio que “é relativamente pequena, quase apagada, a contribuição

500
ENTREVISTA: O. G. Rêgo de Carvalho. Presença, Teresina, n. 5, p. 19-22, set.-nov. 1982.
501
FONTINELES FILHO, 2017.
502
ENTREVISTA: Fontes Ibiapina. Presença, Teresina, n. 10, p. 10, jan.-mar. 1984.
503
Discussões sobre a construção da piauiensidade a partir das obras de Fontes Ibiapina, cf.: RABELO, Elson de
Assis. A história entre tempos e contratempos: Fontes Ibiapina e a obscura invenção do Piauí. 2008. Dissertação
(Mestrado em História) – Universidade Federal do Rio Grande do Norte, Natal, 2008.
226

piauiense ao grande certame da literatura nacional”.504 Nesta obra, o escritor divulgou sua
pesquisa sobre os escritores piauienses, sejam literatos ou acadêmicos: apresentou trechos de
obras, dados biográficos dos autores, enunciou seus pontos de vista sobre estas produções e
concluiu que, apesar das dificuldades de seus produtores, estas compunham a literatura piauiense.
Tal como Fontes Ibiapina, o autor de Literatura Piauiense pertenceu à Academia Piauiense de
Letras. O reconhecimento da pesquisa e do lugar social de seu autor transformou esta primeira
investigação em palavra definitiva. Se o título da obra afirmava a existência de uma literatura
piauiense, posições contrárias seriam apenas lugares comuns explorados pela mídia.
Em Literatura Piauiense: escorço histórico, João Pinheiro identificava o analfabetismo,
o insulamento geográfico e o atavismo do piauiense como fatores que faziam deste “um povo
permanentemente fatigado, rotineiro, sem iniciativa, não só em assuntos literários, mas em
quaisquer outros ramos da atividade humana”.505 As dificuldades e o comodismo são
apresentados como responsáveis pelas produções esporádicas e pela curta duração das
publicações e dos movimentos culturais. Foram necessárias experiências educacionais e
culturais em outros espaços para motivar os nascidos no Piauí a escrever e publicar seus textos.
Segundo o autor, apesar de terem sido publicadas fora do Estado, seus produtores deixavam em
suas obras as marcas de sua procedência. Por serem produções isoladas, João Pinheiro as
caracterizou como manifestações literárias.
A diferenciação entre manifestações literárias e literatura propriamente dita, foi discutida
por Antonio Candido em Formação da Literatura Brasileira: momentos decisivos, publicado
pela primeira vez em 1959. Nesta obra, o crítico literário apresenta a literatura como um sistema
orgânico, um conjunto de textos interligados por denominadores comuns, destinados a um
público leitor receptivo e com produtores conscientes de sua articulação social com outros agentes
culturais.506 Como discutido em capítulo anterior, a construção deste sistema simbólico que
possibilita a emergência de um campo literário no Piauí ainda está em curso.
Não obstante afirmar que a produção dos escritores piauienses são manifestações
literárias, João Pinheiro intitula sua obra de Literatura Piauiense. O reconhecimento das
limitações dos escritores locais, que mesmo assim deixaram traços de suas origens em seus
textos, associados à quantidade de escritores que conseguiu relacionar na obra, podem ter feito
o escritor mudar de ideia quanto à nomenclatura a ser defendida no título, passando a entender

504
PINHEIRO, João. Literatura Piauiense: escorço histórico. Teresina: Academia Piauiense de Letras, 2014. p.
11. (Coleção Centenário)
505
PINHEIRO, 2014, p. 12.
506
CANDIDO, Antonio. Formação da Literatura Brasileira: momentos decisivos 1750-1880. São Paulo / Rio de
Janeiro: Fapesp / Ouro Sobre Azul, 2009.
227

que o conjunto expressivo de poetas e prosadores apresentados possuíam elementos que os


interligavam, constituindo assim uma literatura piauiense. A importância de João Pinheiro e
desta obra para a intelectualidade piauiense e o fato de que, somente na segunda metade da
década de 1970, tenha surgido uma segunda tentativa de historicizar a literatura produzida no
Estado pode ter arrefecido o debate e cristalizado entre os escritores a ideia de que literatura
piauiense é algo produzido por indivíduos nascidos no Piauí, embora estes atuem
profissionalmente ou publiquem fora do Estado. Esta literatura seria o conjunto de textos que
apresentam cenários e personagens associados ao comportamento do piauiense, sendo fruto do
esforço criativo daqueles que escrevem e divulgam seus textos, apesar das adversidades
econômicas e culturais do meio. O quesito originalidade ou a articulação com o que é produzido
em outras regiões não consta nesta equação.
Em Literatura Piauiense, João Pinheiro apresentou três fases para a literatura produzida
por piauienses até então, dentro ou fora do Estado. Do pioneiro Ovídio Saraiva de Carvalho e
Silva que, em 1808, publicou em Coimbra a obra Poemas, até o momento da publicação do
livro, o acadêmico imortal identificou uma primeira fase marcada pela atuação de poetas e
prosadores que estudaram, em geral, em Portugal ou em cidades brasileiras que ofereciam
cursos superiores, a exemplo de Recife e Rio de Janeiro. As produções literárias, divulgadas
principalmente em jornais, eram diminutas se comparadas à escrita de textos relativos às suas
áreas de formação acadêmica ou aos discursos políticos. A segunda fase, denominada de fase
romântica, caracterizava-se por textos líricos que exaltam as paisagens do Piauí e pela atuação
escrita de políticos, juristas, sacerdotes e jornalistas. A última fase, associada às correntes
modernas, era marcada pela atuação de seus contemporâneos, sobretudo daqueles que fundaram
a Academia Piauiense de Letras.
A divisão em três fases proposta por João Pinheiro, foi mantida por Herculano Moraes
em Visão Histórica da Literatura Piauiense, publicada em 1976. Nos quase quarenta anos que
separam estas obras, escritores como J. Miguel de Matos publicaram antologias, obras de
divulgação destinadas a apresentar determinadas facetas da produção escrita local. Embora
sejam resultados de pesquisas e publicadas com investimentos públicos, através da participação
em concursos e prêmios literários, as antologias produzidas por J. Miguel de Matos são obras
parciais, sintéticas, cujos autores apresentados refletiam as escolhas pessoais, os afetos e
interesses do seu organizador, sem oferecer uma análise articulada da obra, de seu contexto de
produção e da atuação dos escritores.
Herculano Moraes subdividiu sua Visão Histórica da Literatura Piauiense em três
gerações. A primeira geração contemplando duas fases, a Neoclássica (1808-1870) e a Romântica
228

(1870-1889). A segunda geração composta pelas fases Libertária (1889-1917) e Áurea (1917-
1940) e a terceira geração abarcando as fases Modernista (1940-1965) e Vanguardista (de 1965
até o momento da publicação da obra, 1976). Na introdução, o autor afirma que seu livro era obra
de divulgação dos valores espirituais do Piauí e faz referência a João Pinheiro e aos escritores que
“se preocuparam em demonstrar a existência de uma literatura piauiense”. 507 Sem discutir,
Herculano Moraes aceitou tacitamente a existência de uma literatura piauiense, apontou as
recorrentes dificuldades dos agentes culturais e, numa perspectiva cronológica, fez referência a
autores, obras, instituições e movimentos culturais piauienses.
Com a publicação de Visão Histórica da Literatura Piauiense, Herculano Moraes
recebeu elogios que destacavam seu empenho na pesquisa, o estudo crítico e biográfico, bem
como a organização didática dos movimentos literários.508 Por outro lado, a pretexto da
publicação desta obra, o articulista J. Rattelif, possivelmente um pseudônimo, publicou no
jornal O Estado duas colunas intituladas História e Literatura nas quais propunha um debate
sobre os limites da literatura piauiense e os vícios daqueles que a produziam. Afirma não ter
concluído a leitura da obra, contudo seus argumentos não diziam respeito, especificamente, ao
que estava apresentado no livro de Herculano Moraes. A discordância direcionava-se, mais uma
vez, para a questão da definição e especificidade da literatura piauiense. Para J. Rattelif, aquilo
que seria denominado de literatura piauiense tratava-se de um produto inacabado pois não havia
passado por todas as etapas do reconhecimento das obras literárias, a saber, produção,
divulgação, aceitação e debate público. Diante da incompletude deste ciclo, o articulista aponta
a falta de um olhar sociológico à literatura aqui produzida, e afirma:

A crítica que posso fazer à história da literatura piauiense é quanto a


conceituação de história e literatura e colocações de ordem geral. Em outras
palavras, sendo a literatura a mais alta manifestação social do homem
civilizado, a visão do fato literário, mesmo do ponto de vista de arte
internacional, da palavra trabalhada com intenção literária ou artística, não
poderá se desvincular do fato histórico, da história em si, cujo raio de ação é
mais amplo, por envolver o homem num processo social global. Por outra,
seria lícito dizer que nos falta o que poderia ser chamado de fundamentos
sociológicos da literatura piauiense [...] Do ponto de vista meramente estético
ou formal não há traços definidos do enquadramento da literatura piauiense

507
MORAES, Herculano. Visão histórica da Literatura piauiense. Teresina: COMEPI, 1976. p. 11.
508
“[...] O jornalista e poeta Herculano Moraes fará hoje na Livraria Dilertec o lançamento de mais uma obra de
sua autoria. Trata-se de VISÃO HISTÓRICA DA LITERATURA PIAUIENSE, um trabalho de demorada
pesquisa do autor que conseguiu reunir cerca de 300 escritores numa só obra de 192 páginas, correspondendo
quase 200 anos de literatura a partir de 1808 [...]” (TITO FILHO, A. Caderno de anotações. Jornal do Piauí,
Teresina, p. 5, 16 set. 1976); “[...] LEITURA: “Visão Histórica da Literatura Piauiense”, de Herculano Moraes.
Estudo crítico e biográfico muito bem desenvolvido que adota inclusive excelente critério da distribuição da nossa
vida literária em períodos. Gostei do livro. Análise criteriosa de homens e produções artísticas. [...]” (TITO FILHO,
A. Caderno de anotações. Jornal do Piauí, Teresina, p. 4, 27 abr. 1977).
229

no quadro geral da literatura brasileira. Há, em muitos casos, literatos ou


intelectuais piauienses – e alguns de boa cepa – e daí decorrem certos erros de
perspectiva ou de enfoque crítico.509

Para o comentarista, a ausência de conceituações e enquadramentos dificulta o


pensamento articulado em torno da produção literária produzida no Piauí. Sem este esforço de
definição e sem um olhar sobre as especificidades desta manifestação, aquilo que se considera
como literatura piauiense eram simples textos escritos que não haviam passado pelo crivo do
público e pela discussão sistematizada, não representando assim os valores e a identidade do
homem piauiense e,

Mais que isso, um conceito muito elástico de literatura, enquanto arte literária,
faz com que muitos autores entrassem para nossa literatura, quando
escreveram obras sem propósitos ou sem os artifícios de invenção próprias da
criação artística. Tais critérios benevolentes nos conduzem a posições
esdrúxulas e embaraçosas. [...] Uma literatura só existe pelas obras que vivem,
pelo livro lido, de valor efetivo e permanente e não momentâneo e
contingente. “Por outro lado, a literatura tem apenas tipos representativos, não
é obra individual. [...] Assim, a história da literatura não poderá ser uma lista
de nomes, sem relação positiva com as obras e estas com meio, caso contrário
estaremos no mundo da literatura de livros mortos, sem ressonância, [...]
Menos ainda seria lícito admitir a inclusão em nossa historiografia literária de
nomes que, de tão politicamente ilustres e nobres, se deram ao luxo de
escrever e publicar uma obra sequer. A não ser assim, estaremos referendando
o aulicismo, responsável, em grande parte, pela atrofia de nossas letras.510

A crítica refere-se aos critérios que legitimam os escritores no Piauí e que, segundo o
crítico, transformam o meio literário em um espaço de satisfação de vaidades de escritores
pouco inventivos, destinado às disputas políticas daqueles que, desde sempre, detinham o poder
político e econômico do Estado. Ao tempo em que critica o antologista por admitir discursos
políticos e súmulas jurídicas como textos representativos da literatura piauiense – e como visto
anteriormente, uma posição combatida por Herculano Moraes no contexto da segunda
candidatura de J. Miguel de Matos – J. Rattelif conclamou o autor de Visão Histórica da
Literatura Piauiense a refletir sobre o que, de fato, caracteriza uma obra literária, quais as
funções sociais da literatura e quem são os sujeitos aptos ao reconhecimento como escritores,
literatos ou intelectuais piauienses.
Nesta obra, o clipiano Herculano Moraes situou J. Miguel de Matos como escritor
piauiense pertencente à geração Modernista ou Meridiana (1949 a 1965), movimento sobre o
qual falaremos adiante. Foi situado no subgrupo dos contistas, cronistas e novelistas e sobre

509
RATELLIF, J. História e Literatura. O Estado, Teresina, p. 6, 10-11 out. 1976.
510
RATELLIF, 1976, p. 6.
230

ele, foi dito:

JOSÉ MIGUEL DE MATOS é natural de Floriano, onde nasceu a 29 de


setembro de 1923. Seu registro de nascimento, entretanto, é da cidade de
Timon, Maranhão. Em suas biografias (Pisando os Meus Caminhos) anota-se
a informação de que J. Miguel de Matos registrou-se em Timon “por
quebradeira”, porque naquela cidade era mais barato o registro. Oficial do
Exército, jornalista polêmico, memorialista, biógrafo, editor. Novelista. Poeta
bissexto. Membro da Associação dos Jornalistas de Teresina, do Sindicato dos
Jornalistas Profissionais do Piauí, do Instituto de Cultura Americana. Não
chegou a concluir o ginásio, abandonando-o pela metade quando estudava no
Colégio Estadual Zacarias de Góes. Fundou e dirigiu as revistas Mafrense e
Destaque. Delegado Regional do ICA pertenceu ao Movimento de Renovação
Cultural, à Academia Piauiense de Letras, registrando uma das maiores lutas
de um intelectual para ingressar naquele sodalício. Estreou em 1953 com a
novela Brás da Santinha. Não conseguiu atingir, com outros livros, o mesmo
nível literário da novela de estréia. OBRAS – Brás da Santinha (1953);
Caminheiros da Sensibilidade (1966); Pisando os Meus Caminhos (1970);
Antologia Poética Piauiense (1974); Perfis (1974).511

À primeira vista, a apresentação não destoa da forma como, ao longo dos anos, J. Miguel
de Matos construiu-se socialmente. Apresentando-se como comentarista imparcial, o
antologista enfatizou suas fontes de pesquisa e não fugiu aos moldes dos comentários presentes
em outras antologias e obras. No trecho, fez-se referência à migração, a pobreza, ao ensino
informal incompleto, as filiações literárias, as disputas para ingressar na Academia Piauiense
de Letras e obras publicadas pelo biografado. Contudo, além dos elementos de praxe, percebe-
se também o tom jocoso com o qual Herculano Moraes referiu-se à J. Miguel de Matos. O
registro “por quebradeira”, a afirmação que possuía produção poética esparsa e a dificuldade
em manter a qualidade literária após sua obra de estreia destoam dos demais perfis apresentados
no livro. Se lembrarmos as parcerias entre ambos, tendo inclusive o autor da obra se
posicionado favorável ao ingresso de J. Miguel de Matos na Academia Piauiense de Letras, o
que teria motivado os comentários que extrapolavam as informações básicas deste último?
Para compreendermos a forma como o escritor J. Miguel de Matos foi apresentado e,
consequentemente incluído em obra de apresentação dos literatos piauienses, precisamos
retornar a 1975, ano em que Herculano Moraes lançou sua primeira incursão sobre a história da
literatura produzida no Piauí, a obra A Nova Literatura Piauiense. Neste livro, o autor definiu
literatura piauiense como o conjunto de obras de escritores que nasceram no Piauí. O texto
apresenta os escritores que, segundo o autor, a partir de 1965, renovaram a produção literária
no Estado, fugindo dos modelos prestigiados e reproduzidos pelas academias de letras. Dentre
os produtores culturais apresentados na obra, os nomes ligados ao Círculo Literário Piauiense

511
MORAES, 1976, p. 101.
231

(CLIP) ganham destaque.


Em 1975, o lançamento de A Nova Literatura Piauiense contou com ampla e elogiosa
cobertura dos veículos de imprensa, em muitos dos quais o próprio Herculano Moraes atuava.512
Entre os elogios à obra, destacamos o comentário de José Ribamar Nunes

Estou no rol dos que acreditam na literatura piauiense e proclamam o seu


valor. Digo isso porque não faz muito tempo se deu uma polêmica sobre esse
tema. Mas não vou discorrer sobre esse assunto. O que desejo é dizer uma
palavra a respeito da publicação pela Artenova do Rio de Janeiro, de um
trabalho intitulado “A Nova Literatura Piauiense”, de autoria do poeta e
jornalista Herculano Moraes. Gostei do livro. Não vou dizer que se já
completo sem falhas. Seria exagero. Entretanto, não há dúvida de que tem o
autor condições de, numa edição futura, sanar as omissões. O mérito da obra
é indiscutível. Destaca-se pelo cunho didático e pioneirismo. Não conheço
trabalho semelhante. Sem dúvida estudos especializados sobre determinados
autores e gêneros literários. Mas o livro de Herculano tem a vantagem de
abordar toda a literatura piauiense da fase contemporânea, moderna, atual,
pode ser incompleta, mas não se limita a poucos autores ou obras. Fornece a
professores e alunos importantes subsídios. Está de parabéns a literatura
mafrense. Está de parabéns o Herculano pela contribuição oportuna e prática
que vem de oferecer às letras brasileiras...513

Para além das argumentações e escolhas do autor, a obra chamou atenção pelas críticas
às quais foi submetida.514 A. Tito Filho e J. Miguel de Matos, cada um à sua maneira, divergiram
do que estava apresentado em A Nova literatura Piauiense. Ao noticiar que “o professor A. Tito
Filho [...] não aceita teoria do escritor Herculano Moraes, para quem “escritores do Piauí só os
nascidos no Piauí [...]”,515 retomam-se as tentativas de definição propostas pelo presidente da
Academia Piauiense de Letras. J. Miguel de Matos criticou Herculano Moraes por ter
qualificado A. Tito Filho de cronista, quando, na verdade, este deveria ser retratado como um

512
“[...] Com um coquetel ontem às 21 horas no restaurante do aeroporto a Distribuidora ArteLivros e o jornalista
e escritor Herculano Moraes fizeram o lançamento do livro ‘A NOVA LITERATURA PIAUIENSE’ – um estudo
sobre os acontecimentos na literatura do Estado a partir do ano de 1965. O mundo social, político e cultural
prestigiaram o acontecimento. [...]” (QUE É que há? O Estado, Teresina, p. 9, 22 mar. 1975); “[...] Apesar dos
protestos do escritor e imortal J. Miguel de Matos, ocorreu com muito brilho e em ambiente da mais pura
cordialidade, o lançamento dia 21, no aeroporto, do livro ‘A NOVA LITERATURA PIAUIENSE’, do escritor e
jornalista Herculano Moraes. A vitória do distinto confrade conta com os aplausos dos que fazem este jornal. [...]”
(O LIBERAL. Teresina, p. 10, 22-23 mar. 1975).
513
NUNES, José Ribamar. Literatura Piauiense. O Estado, Teresina, p. 9, 5 abr. 1975.
514
“[...] O escritor Herculano Moraes, muito satisfeito com a repercussão do seu livro ‘A Nova Literatura
Piauiense’ que vem causando todo tipo de discussões. ‘O livro – disse Herculano – é realmente polêmico e pretende
acabar com a rotina da província’ (QUE É que há? O Estado, Teresina, p. 9, 20 mar. 1975); “[...] Nota – Recebi,
ontem, com dedicatória, o livro de Herculano Moraes “A Nova Literatura Piauiense”. E depois da sua leitura, sem
dúvida amena pelo estilo, verifiquei que, para o jovem escritor, nem sou intelectual, nem moro no Piauí, o que “é
uma lástima”, no dizer do Deoclécio. [...]” (O ESTADO. Teresina, p. 11, 4 abr. 1975).
515
“[...] O professor A. Tito Filho, presidente da Academia Piauiense de Letras, não aceita a teoria do escritor
Herculano Moraes, para quem “escritores do Piauí só os nascidos no Piauí”. E diz A. Tito Filho: “Higino Cunha
nasceu no Maranhão mas pertence à literatura piauiense”. Certo. [...]” (O ESTADO. Teresina, p. 9, 25 mar. 1975).
232

grande intelectual.516
Todavia, a crítica de J. Miguel de Matos não tem relação direta com o que se disse sobre
A. Tito Filho. As motivações surgiram antes mesmo do lançamento da obra, quando J. Miguel
de Matos soube que não estaria entre os nomes arrolados como renovadores da literatura
piauiense. Zeloso na construção de sua imagem, J. Miguel de Matos não aceitou bem sua
exclusão de A Nova Literatura Piauiense e, tal como em outras disputas em torno da construção
de uma imagem ideal de si, movimentou a imprensa local ao desqualificar o autor e a nova obra,
arregimentando as redes intelectuais para o debate. Criticando as metodologias do autor, J.
Miguel de Matos reivindica para si, a partir da publicação de Brás da Santinha, o papel de
renovador da literatura local e atribui sua exclusão a fatores como caráter mal-formado e
coração ferido517 ou à burrice e crassa ignorância.518 Por outros agentes culturais, Herculano
Moraes foi acusado de panfletagem pessoal, posto que sua obra de estreia, Murmúrios ao Vento,
foi publicada justamente em 1965.519
As críticas movimentaram a imprensa e o meio cultural520 e estimularam o interesse pela

516
“[...] ali, com despreparo crítico, negando o valor de um homem de letras que, de longa data, vem prestando
invejável contribuição à lingüística do Piauí, fazendo entre nós o mesmo papel que “Aurélio Buarque de Hollanda”
Ferreira faz no cenário do país [...] e, mais além, tachando de cronista um intelectual que, apesar de versátil, jamais
escreveu uma crônica, embora possa pegar da pena e produzir uma ou mais capazes de ombrear com os maiores
do país [...]” (MATOS, J. Miguel de. Em torno de uma entrevista – I. O Estado, Teresina, p. 7, 8 abr. 1975.
517
“[...] A omissão do meu nome a indicação do ano de 1965, como marco inicial do retorno do Piauí às suas
atividades literárias, me parecem dois purgativos: o bom senso diz que a minha novela “Brás da Santinha”, lançada
em Fortaleza-Ce, em 1953 e republicada em Teresina em 1961, foi a primeira obra dessa renovação, embora o
jovem Herculano Moraes não queira. A exclusão do meu nome no seu livro, pelo seu conteúdo, me parece
proposital, como por natural de um caráter mal formado ou de um coração mal ferido [...]” (O ESTADO. Teresina,
p. 5, 13 mar. 1975).
518
“[...] Dando resposta ao seu entrevistador, H. Moraes oferece esta aula de burrice e de crassa ignorância: ‘Em
verdade, a Nova Literatura Piauiense começou em 1965: as razões estão aí no livro. Com relação ao Sr. J. Miguel
de Matos, ele reclama algo que não me parece justo. É verdade que ele lançou, em 1953, “Brás da Santinha”, cuja
2ª edição parece-me datar de 1966. Todavia o citado livro não renovou nada, permaneceu estático, o que está
evidenciado no pouco conhecimento dessa obra, por parte do público’. Só a reedição da obra – e qualquer doido
sabe disso! – bastaria para provar a sua aceitação. Rodrigues do Santos, que o jovem Herculano Moraes, em
literatura, talvez valha um calo seco, considerou-me, por motivo do lançamento de ‘Brás da Santinha’, ‘a revelação
do ano’, o que certamente não ainda foi suficiente para que eu fosse visto pelo autor de A Nova Literatura
Piauiense, o livro mais intrigante sem dúvida que saiu por estas bandas do saudoso Mafrense [...]” (MATOS, J.
Miguel de. Em torno de uma entrevista – I. O Estado, Teresina, p. 7, 8 abr. 1975).
519
Em entrevista ao Caderno de Divulgação Cultural, Cinéas Santos questiona o marco temporal apresentado por
Herculano Moraes: “[...] CDC – Diz-se que o fato de ter tomado o ano de 1965 como ponto de partida no processo
literário renovador se deveu à sua vaidade em colocar-se embora não o diga, entre os renovadores, pois o seu livro
‘Murmúrios ao Vento’ apareceu exatamente nesse ano como explicar a coincidência? [...]”. Caderno de Divulgação
Cultural. O Estado, Teresina, p. 7, 6-7 abr. 1975.
520
“[...] Entendo por literatura piauiense o conjunto de obras de escritores que nasceram no Piauí’ – o conceito
citado evidencia nas tomadas de posição por parte do autor de ‘A Nova Literatura Piauiense’, que se outro mérito
não tiver, servirá certamente para desencadear uma série de críticas que poderão esclarecer certos detalhes sobre
coisas ligadas à nossa literatura [...]” (MORAES, Herculano. Caderno de Divulgação Cultural. O Estado, Teresina,
p. 7, 6-7 abr. 1975).
233

obra.521 Elevou-se também o tom com o qual J. Miguel de Matos referia-se a Herculano Moraes
e A Nova Literatura Piauiense. A amizade iniciada nas reuniões do Círculo Literário Piauiense
e a camaradagem construída nas redações dos jornais foram substituídas por ataques daquele
que se sentiu desprestigiado ao passo que, diante da polêmica, Herculano Moraes insistia em
apresentar suas motivações e afirmar que, em obra posterior, que viria a ser Visão Histórica da
Literatura Piauiense, discorreria sobre os escritores que, sem serem renovadores, construíram
a literatura do Estado.
Além dos fatores já citados, J. Miguel de Matos considerou a exclusão de seu nome
como falta de camaradagem entre sujeitos que atuavam em prol da cultura local. Revelando
seus próprios critérios de seleção e escrita, afirmou que “enquanto o poeta Herculano Moraes
não me põe no seu livro porque não quer, como parece, eu o não incluí em “Caminheiros da
Sensibilidade” porque ele não quis. A vida é assim”.522 Comentários como este, mais uma vez
evidenciam as motivações para a escrita de J. Miguel de Matos. A escrita é o meio através do
qual este sujeito construiu-se e alcançou espaços restritos. Como instrumento de sua luta
política individual, sua escrita tecia sociabilidades a partir da troca de textos elogiosos para
garantir, por exemplo, patrocínios e construir fidelidades entre agentes culturais e instituições
que, articulados, elaboram mecanismos para auto reforçar suas imagens.
Não sabemos as motivações de Herculano Moraes para, supostamente, não esforçar-se
em ter seu perfil biográfico incluído na coletânea publicada por J. Miguel de Matos em fins da
década de 1960. Contudo, retomando a trajetória deste no Círculo Literário Piauiense, grupo
que visava movimentar a cena cultural no Piauí e colocava-se como uma alternativa às práticas
acadêmicas, podemos inferir que, apesar das parcerias e amizade, Herculano Moraes reconhecia
em J. Miguel de Matos um intelectual alinhado às instituições culturais oficiais. Não constar
nas obras do soldado-escritor poderia ser uma tentativa de não associar-se com as práticas
sociais de J. Miguel de Matos e com os usos que este fazia da escrita.
O apoio que Herculano Moraes ofertou para ingresso de J. Miguel de Matos na
Academia Piauiense de Letras pode ser entendido no contexto maior de crítica à instituição que,
segundo o autor de A Nova Literatura Piauiense, funcionava mais como uma extensão do
Tribunal de Justiça, do que propriamente um espaço de reconhecimento do valor literário de J.
Miguel de Matos. Sendo este um escritor ativo, inserido em diversos projetos culturais, a defesa

521
“[...] na IV Feira do Livro, que será realizada entre 26 à 30 deste no campus da Fundação Universidade Federal
do Piauí (FUFPI) no bairro Ininga [...] Na III Feira do Livro, realizada no ano passado, o livro mais procurado foi
‘A Nova Literatura Piauiense’, de Herculano Moraes. O livro vendeu mais de 200 exemplares. [...]” (O ESTADO.
Teresina, p. 2, 23 abr. 1976).
522
PRÓ, Miguel. Curtas e certas. O Estado, Teresina, p. 8, 8 mar. 1975.
234

de seu ingresso poderia representar um ganho real em virtude das articulações e atividades
culturais desenvolvidas pelo soldado-escritor. A ausência de curso superior seria compensada
pelas movimentações do escritor em diversos espaços de atuação dos letrados. O não
pertencimento à família tradicional seria superado pelas atividades de escrita, edição e
divulgação cultural feitas pelo do candidato.
No contexto de divulgação de A Nova Literatura Piauiense e diante das críticas feitas
por J. Miguel de Matos em vários meios de comunicação, o escritor Cinéas Santos, redator do
Caderno de Divulgação Cultural, suplemento literário financiado pelo poder público e
publicado aos domingos no jornal O Estado, entrevistou Herculano Moraes. Pediu que o
entrevistado comentasse sua obra, apresentasse seus critérios de seleção e se posicionasse diante
das críticas formuladas por J. Miguel de Matos. Eis um trecho de suas respostas:

[...] quando procurei selecionar os novos, reli a obra de J. Miguel de Matos,


desde Brás da Santinha até Perfis, recentemente publicado, e confesso que
nada encontrei de renovador em sua obra. Ele diz fazer memórias, mas, em
verdade, fez autobiografia e a literatura, hoje, não admite que se procure
apenas traçar biografias pessoais... Isso, parece-me pouco construtivo. J.
Miguel de Matos tem o seu estilo, mas não é o estilo renovador que se reclama
para a mudança de estruturas na ficção. Em Visão Histórica da Literatura
Piauiense terei o prazer de considerar o seu trabalho.523

Tais afirmações receberam rápidas respostas de J. Miguel de Matos que, entre os dias 8
e 18 de abril de 1975, publicou cinco artigos intitulados Em Torno de uma Entrevista , textos
posteriormente inseridos no livro Mosaico. Nestes textos, procurou demonstrar os limites da
obra de Herculano Moraes e a injustiça praticada contra nomes reconhecidos da intelectualidade
local, bem como a si próprio. Legitimando seu lugar de fala, mais uma vez assinou seus textos
com o distintivo “da Academia Piauiense de Letras”. O pertencimento a espaços de consagração
reforçava seu lugar de fala, lugar este entendido por Michel de Certeau como um espaço
submetido a regras e imposições, mas também “ligada a privilégios, enraizada em uma
particularidade. É em função deste lugar que se instauram os métodos, que se delineia uma
topografia de interesses, que os documentos e as questões que lhes são propostas, se
organizam”.524 Enfatizar o pertencimento a esta comunidade intelectual serve para evidenciar
as falhas da obra de Herculano Moraes.
A série de críticas à obra e, principalmente ao seu escritor, assim se inicia

[...] não reclamei, pelas barbas do profeta, minha presença no livro do poeta
Herculano Moraes (A Nova Literatura Piauiense), como anda assoalhando,

523
MORAES, Herculano. Caderno de Divulgação Cultural. O Estado, Teresina, p. 7, 6-7 abr. 1975.
524
CERTEAU, 2007, p. 66.
235

exatamente quando anda bebendo água que passarinho não, um certo


intelectual da terra, porque jamais tentei entrar na casa alheia à força.
Estranhei como muita gente, foi que ele tivesse considerado, no seu livro, que
a literatura piauiense, assim definida objetivamente, tenha o seu marco
renovador na obra de O. G Rego de Carvalho (1965), pois antes dele outros
nomes luminosos surgiram nas nossas letras [...] Como questão de tempo,
lembrei o lançamento do meu primeiro livro “Brás da Santinha” (1953/61),
mas que, sem dúvida, pela omissão do meu nome no seu livro, a obra não tem
o mérito exigido para aparecer num livro de sua autoria, especialmente quando
ele passou de discípulo a mestre. [...] O que não se entende, também, é a
tentativa do poeta Herculano Moraes para explicar minha ausência do seu
livro, afirmando a uns, que eu e Permínio Asfora (um grande romancista ainda
quase desconhecido entre nós, mesmo sendo filho do Piauí) vamos constar de
seu próximo livro, parecendo dizer que o seu livro ora em badalação, é muito
pequeno para nossa dimensão, conversa sem dúvida para inglês ouvir; e a
outros, que eu não entrei nele por não me considerar intelectual, o que parece
mais justo, pelo menos para mim, que reconheço a minha pequenez.525

No questionamento aos critérios adotados por Herculano Moraes, fica evidente o desejo
de reconhecimento e o ressentimento diante do orgulho ferido. Em perspectiva psicanalítica, o
ressentimento articula um conjunto de emoções humanas tais como rancor, indignação, inveja
e desejo de vingança. São frutos de supostas injustiças decorrentes dos jogos de poder presentes
nas interações sociais, deixando marcas nos indivíduos e na memória coletiva. Em
Ressentimento,526 Maria Rita Kehl apresenta o ressentido como um sujeito que, embora capaz
de reagir e ressignificar suas experiências históricas opta, deliberadamente, por não superar ou
esquecer eventos que, em algum momento, lhe provocaram perda ou dor.
Diante da recusa em superar ou esquecer aquilo que lhe provoca indignação, inveja ou
ciúmes, o ressentido age com uma falsa agressividade. Maria Rita Khel afirma que, em geral,
o desejo de vingança, o abatimento e a resignação são consequências esperadas diante das
mágoas e traumas vivenciados pelos sujeitos. 527 O ressentido é aquele que não supera seus
traumas, mas também não se resigna. Entre as opções disponíveis àqueles que se sentem
magoados estão a vingança dirigida aos seus opositores ou a reflexão, e posterior entendimento
e aceitação daquilo que lhe ocorreu. O ressentido opta por agir de maneira efetiva, escolhe
remoer ad infinitum aquilo que lhe causa dor. Essa rememoração ativa do agravo produz seu
deslocamento para a esfera de vítima, colocando seus adversários na condição de vencedores.
Ao longo deste texto, apresentamos algumas das formas com as quais J. Miguel de
Matos lidou com comentários e ações direcionadas à sua pessoa. Seria possível identificar
ressentimento em suas práticas? Na concepção defendida por Maria Rita Kehl, o ressentido

525
MATOS, J. Miguel de. Em torno de uma entrevista – I. O Estado, Teresina, p. 7, 8 abr. 1975.
526
KEHL, Maria Rita. Ressentimento. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2015.
527
KEHL, 2015, p. 22.
236

oscila entre a passividade e a recusa em superar suas mágoas. As páginas anteriores estão
repletas de textos nos quais J. Miguel de Matos reagiu às suas tentativas frustradas de
reconhecimento efetivo, seja no campo da literatura, da escrita biográfica ou vida política. A
relativa facilidade com que seus posicionamentos eram publicizados nos jornais, livros e
conversas com contemporâneos evidenciam um bastante escritor ativo e empenhado na
construção de sua imagem. Por outro lado, ao rebater as críticas dirigidas a si e, sobretudo, não
refletir sobre as origens destas, o escritor transforma-se em um ser ressentido e apegado às
supostas humilhações de que julga ser vítima.
Em J. Miguel de Matos, o ressentimento emerge de forma tática. Ao acusar seus
adversários de, deliberadamente, recusarem seu ingresso na Academia Piauiense de Letras ou
sua inserção em obras sobre os renovadores da literatura produzida no Estado, tal como a
publicada por Herculano Moraes, o soldado-escritor os coloca na posição de algozes, sem
refletir sobre as possíveis motivações destes. Nesse sentido,

Embora o ressentido se coloque sempre na condição de vítima inocente de


uma injustiça, uma ofensa, um complô, sua posição não é tão ética quando ele
pretende, pela simples razão de que ela sustenta a recusa do sujeito em
responsabilizar-se por suas escolhas. O que o ressentido não arrisca, acima de
tudo, é seu narcisismo. É o que faz dele um fraco.528

Embora J. Miguel de Matos tenha razão ao denunciar, por exemplo, o elitismo das
práticas da Academia Piauiense de Letras, não o encontramos refletindo ou questionando-se
sobre a qualidade de seus textos, sobre as formas como inseriu-se em instituições culturais,
sobre como acessou as políticas editoriais ou sobre como suas ações repercutiam entre seus
contemporâneos. Diante das circunstâncias, colocava-se sempre no lugar de vítima,
desconsiderando inclusive que os espaços e oportunidades aos quais tinha acesso eram restritos
a letrados que ativamente inseriam-se no jogo político e social vigente.
Na perspectiva de Maria Rita Kehl, o possível perdão àqueles que lhe ofendem ou a
superação de suas mágoas passa, inevitavelmente, pelo esforço do ressentido em compreender
as motivações dos agravos que julga sofrer, pelo entendimento seguido do esquecimento. Como
um sujeito que investe na construção de sua imagem como injustiçado pode renunciar às suas
mágoas e ressentimentos? Como articular o desejo de que seus adversários superassem as
referências às suas origens, sua formação escolar, sua atividade profissional, seu tipo de escrita
como impeditivos para seu ingresso em academias e outros espaços de reconhecimento literário
ao fato de que são estes os distintivos identitários que sustentam seu lugar de vítima, suas

528
KEHL, 2015, p. 28.
237

reivindicações e críticas?
Ao ofender, provocar ou expor seus adversários, o escritor manifestava-se ativamente,
porém, de modo deliberadamente ineficaz, no sentido de superar suas mágoas. Isto porque, em
J. Miguel de Matos, os ressentimentos são instrumentos táticos, armas com as quais pode atacar
seus opositores e, ao mesmo tempo, defender-se ao argumentar que suas reações resultavam do
orgulho ferido diante das injustiças que julga sofrer. A responsabilidade por seus fracassos está
sempre em um Outro, responsável por lhe interditar espaços e oportunidades, um Outro que
resistia a reconhecer sua importância para o meio cultural piauiense.
Retomando o contexto de publicação de A Nova Literatura Piauiense, os jornais de 1975
apresentam alguns desdobramentos de seu lançamento. Como dito anteriormente, J. Miguel de
Matos publicou cinco artigos comentando os posicionamentos e desqualificando os critérios
adotados por Herculano Moraes para a montagem de sua obra. Em suas argumentações, listou
autores e obras, instigou escritores e agentes culturais a inserirem-se no debate, comentando ou
refutando suas análises sobre o percurso histórico da literatura piauiense e sua inserção na
mesma. Um dos autores que decidiu manifestar-se foi O.G. Rego de Carvalho, com quem já
havia protagonizado debates anteriores.
J. Miguel de Matos interpretou que Herculano Moraes escolheu O.G. Rego de Carvalho
e o ano de 1965 como marcos para a renovação da literatura produzida no Estado. Sem afirmar
diretamente que se considerava um dos renovadores da literatura piauiense, argumentava que
seu Brás da Santinha foi publicado antes disso. Possivelmente motivado pelas rivalidades
anteriores, O.G. Rego de Carvalho posiciona-se apenas uma vez sobre as colocações do
soldado-escritor, afirmando que

[...] já não tenho o gosto de polêmicas. Mas é preciso pôr os pontos nos is. O
beletrista J. Miguel de Matos irou-se porque, segundo imagina, o Sr.
Herculano Moraes cita a mim como iniciador da nova Literatura piauiense,
em 1965. E diz que antes de mim houve ele; J. Miguel de Matos, 1953, Fontes
Ibiapina; 1958, e Mário Faustino, 1955. Há dois erros capitais na afirmativa.
Primeiro não sou eu o autor citado como inovador, mas Assis Brasil. Segundo,
meu livro Ulisses entre o amor e a morte é de 1953 – repito: 1953 – e já é
posterior ao movimento literário aqui desencadeado pelo Caderno de Letras
Meridiano, que H. Dobal, M. Paulo Nunes e eu fizemos circular em Teresina
por volta de 1950. [...] No entanto, nada estou reivindicando. Somente
colocando a verdade no devido lugar, em respeito às futuras gerações. Quem
se equivocou foi o apressado Sr. J. Miguel de Matos, criticando, no escuro,
sem ler, a obra de Herculano Moraes. Ele, que está fora do tempo e da
literatura.529

529
CARVALHO, O.G. Rego de. Caderno de Divulgação Cultural. O Estado, Teresina, p. 7, 9 abr. 1975.
529
KEHL, 2015.
238

Em seu posicionamento, o escritor oeirense apresenta J. Miguel de Matos como


beletrista, minimizando assim os esforços do soldado-escritor em tornar-se um intelectual.
Refere-se ao movimento Meridiano e, ao citar os nomes dos envolvidos nesta iniciativa cultural,
deixa claro que J. Miguel de Matos não estava nele incluído. Dando a entender que não queria
envolver-se no debate, O.G. Rego de Carvalho afirmou que nada estava reivindicando, que se
preocupava apenas com a verdade dos fatos. Referindo-se à personalidade irascível de J. Miguel
de Matos, afirmou que este agia de maneira apressada, sem refletir sobre o que lia ou escrevia
e, em virtude das polêmicas desnecessárias, dos equívocos cometidos, sentencia que a ele seria
reservado um não-lugar no conjunto da literatura local.
Ao longo dos dias, o debate teve efeitos práticos: reforçou e reconfigurou as afinidades
literárias, fomentando parcerias e rivalidades entre sujeitos. Além disso, a curiosidade em torno
do texto fez com que este se esgotasse rapidamente nas livrarias da cidade.530 Herculano Moraes
não recuou de suas posições, tampouco pediu desculpas J. Miguel de Matos, apenas
comprometeu-se a citá-lo em obra que estava produzindo, na qual pretendia discutir a história
literária piauiense desde os seus primórdios. O soldado-escritor utilizou-se dos espaços dos
jornais para expressar seu descontentamento com a obra de Herculano Moraes e para declarar
que, ao findar seus argumentos, reagiria às críticas com outras estratégias, de outras maneiras,
entre elas o uso da força física, como registrado a seguir

[...] em face das últimas provocações que tem recebido pela imprensa local, o
escritor J. Miguel de Matos resolveu assumir atitude radical: Não responderei
a esses fedelhos pelos jornais. Agora vou partir para a prática, pois a teoria
não resolveu. Comigo agora vai ser no bíceps.531

Como antecipado, Herculano Moraes cumpriu sua promessa 532 e, em Visão Histórica
da Literatura Piauiense publicou o primeiro comentário sistematizado acerca do autor de Brás
da Santinha. É nesse contexto que o perfil citado páginas atrás deve ser entendido. Em 1991,
quando foi publicada a segunda edição da obra, o perfil biográfico de J. Miguel de Matos
praticamente se repetiu, sendo apenas atualizada as publicações do biografado e inserido dois

530
No contexto de divulgação da IV Feira do Livro realizada na biblioteca da FUFPI, os jornais assim se referiram
à procura pelo livro de Herculano Moraes: “[...] Na III Feira do Livro, realizada no ano passado, o livro mais
procurado foi “A Nova Literatura Piauiense”, de Herculano Moraes. O livro vendeu mais de 200 exemplares. [...]”
(O ESTADO. Teresina, p. 2, 23 abr. 1976).
531
O ESTADO. Teresina, p. 15, 18-19 abr. 1975.
532
Ao longo dos meses J. Miguel de Matos tentou desqualificar a publicação de livro de Herculano Moraes, tal
como se percebe nesta nota: “[...] Maio de 1977 marca o centenário de nascimento de João Pinheiro, autor
consagrado de ‘A Literatura Piauiense’, único texto de fôlego sobre livros e autores do nosso Estado. O citado
livro merece ser reeditado, e não submetido a hábeis e finórios trabalhos de ‘suíte’, os quais, no final das contas,
retratam apenas um tipo de desonestidade intelectual mais do que refinado. Detalhes para depois. [...]” (O
ESTADO. Teresina, p. 3, 23 set. 1976).
239

novos comentários, conforme pode ser observado no fragmento a seguir

JOSÉ MIGUEL DE MATOS é natural de Floriano, onde nasceu a 29 de


setembro de 1923. Seu registro de nascimento, entretanto, é da cidade de
Timon, Maranhão. Em suas biografias (Pisando Meus Caminhos), anota-se a
informação de que J. Miguel de Matos registrou-se em Timon “por
quebradeira”, porque naquela cidade “era mais barato o registro”. Oficial do
Exército, jornalista polêmico, memorialista, biógrafo, editor. Novelista, poeta
bissexto. Membro da Associação dos Jornalistas de Teresina, do Sindicato dos
Jornalistas Profissionais do Piauí, do Instituto de Cultura Americana. Não
chegou a concluir o ginásio, abandonando-o pela metade quando estudava no
Colégio Estadual Zacarias de Góes. Fundou e dirige as revistas Mafrense e
Destaque. Delegado Regional do ICA, pertenceu ao Movimento de
Renovação Cultural. Membro efetivo da Academia Piauiense de Letras,
registrando uma das maiores lutas de um intelectual para ingressar naquele
sodalício. Estreou em 1953 com a novela Brás de Santinha. Não conseguiu
atingir, com outros livros, o mesmo nível literário da novela de estréia.
Revela-se ensaísta dos mais lúcidos, a linguagem penetrante e rica, eivada de
um lirismo adjetivado e pueril. Como biógrafo, seu maior pecado é não
selecionar com rigor seus biografados. OBRAS: Brás de Santinha (1953);
Caminheiros da Sensibilidade (2 volumes, 1974); Antologia Poética Piauiense
(1974); Pisando os meus caminhos (1969); Síntese Bibliográfica da Literatura
Piauiense (1972); Perfis (crítica, 1974); Mosaicos (1976); Evocação de
Abdias Neves (1976); Da Costa e Silva – o Poeta da Saudade (1977),
Garimpagem (1980).533

Embora a base do texto seja a mesma, a inserção de novos comentários evidencia


aspectos das trajetórias do biógrafo e do biografado. Percebe-se que, ao longo da década de
1980, o biografado pouco publicou, período que coincide com o início de seus problemas de
saúde. Separadas por 15 anos, as duas edições dialogam entre si e percebe-se, a partir da
inserção de supostos elogios, a tentativa de Herculano Moraes em disfarçar o eco das polêmicas
que marcaram a primeira edição da obra. Ao tempo em que elogia a lucidez e riqueza de
vocabulário do biografado, o antologista chama atenção para a frivolidade dos escritos deste e
associa esta característica à sua ausência de critérios para seleção e escrita. Possivelmente para
mostrar-se como alguém distinto e não motivado por compromissos assumidos em meio às
polêmicas que marcaram a estreia da obra, Herculano Moraes refinou sua visão sobre o soldado-
escritor, olhar este que enaltecia não o biografado, mas sim o autor da obra que se colocava
como observador atento e imparcial do cenário cultural piauiense, alguém capaz de superar
ofensas passadas e reconhecer os méritos de seus desqualificadores. Isto porque os embates
entre J. Miguel de Matos e Herculano Moraes não findaram com sua inserção em Visão
Histórica da Literatura Piauiense.
Entre 1976 e 1980, os jornais da cidade nos permitem enxergar uma convivência

533
MORAES, 1991, p. 126-127.
240

aparente harmoniosa entre estes dois sujeitos. Herculano Moraes residiu em Porto Alegre
durante o ano de 1977, momento em estabeleceu contatos com agentes culturais do Sul e
Sudeste do Brasil. Seus regressos à Teresina eram comentados nos jornais locais e suas
experiências fora do Estado ajudaram na tentativa de revitalização, em 1978, da União
Brasileira dos Escritores – secção Piauí. Entre as estratégias desta entidade visando à articulação
de intelectuais e agentes culturais em torno da valorização da literatura piauiense estavam a
busca de apoio político para a institucionalização de seu ensino nas escolas do Estado e a
realização de encontros com estudantes com a finalidade de sensibilizá-los para a importância
de valorização da literatura local e prepará-los para possíveis questões em exames vestibulares.
Unidos em torno de um objetivo comum, a saber, a divulgação dos valores literários do Estado,
ambos envolveram-se na realização de atividades como Encontro de Escritores do Piauí,
Encontro de Escritores Norte/Nordeste e Seminário de Literatura da UFPI.
Certa feita, em uma das primeiras manifestações da imprensa local após as polêmicas
em torno das obras de Herculano Moraes e de seu retorno à Teresina, registrou-se a seguinte
interação entre os dois escritores:

O escritor J. Miguel de Matos acompanhava atento e carrancudo a palestra que


o seu colega Herculano Moraes fazia na Câmara Municipal, ontem. Já se
passavam mais de trinta minutos de exposição do palestrista e nenhuma
citação à presença de J. Miguel na literatura piauiense – que era o tema
abordado. Eis que, de repente, Herculano começou a focalizar os justos
méritos literários do colega e, para desafogo de sua consciência e da própria
conferência, estampou-se um largo e reconhecido sorriso no semblante de J.
Miguel de Matos. Coisas de poetas e intelectuais.534

Por comentários como este, percebe-se, mais uma vez, como a imprensa estimulava os
debates entre os escritores. Mesmo em momentos de relativa tranquilidade, as ações e reações
destes eram monitoradas. Neste fragmento em específico, registrou-se oportunidade na qual J.
Miguel de Matos pode conferir se sua inclusão em Visão histórica da literatura piauiense
refletia, de fato, os posicionamentos de seu autor. Satisfeito com o comentário positivo a seu
respeito, a coluna de Herculano Moraes registrou, nos dias seguintes, novas interlocuções e
confluências de ideias entre os dois escritores.
Quando J. Miguel de Matos ameaçou renunciar à sua condição de primeiro secretário
da Academia Piauiense de Letras, entre as inúmeras desavenças que teve com A. Tito Filho,
encontrou em Herculano Moraes um apoiador. Surpreendentemente o apoio não foi motivado
pela descrença deste em relação àquele, mas foi entendido como uma oportunidade para criticar

534
O ESTADO. Teresina, p. 3, 13 mar. 1978.
241

a apatia e os jogos de poder internos à Casa de Lucídio Freitas. No episódio, o soldado-escritor


aparece como alguém que, mesmo gozando das possíveis vantagens da vida acadêmica, recusa
o comodismo de seus pares

A renúncia do escritor J. Miguel de Matos à 1º Secretaria da Academia


Piauiense de Letras, antes de gerar uma crise revela graves sintomas de
dissidência teórica no seio da agremiação. O escritor, frustrado com seus
planos de transformar a Academia de Letras num organismo capaz de
representar o pensamento global da arte literária no Estado, sentiu que a terra
lhe foi, a pouco e pouco, faltando sob seus pés, não recebendo, portanto, o
apoio indispensável à sua luta emergente. O nevrálgico de tudo isto é a
perspectiva de uma luta intestina, geradora de divergências inconciliáveis
dentro da Academia. O Sr. Miguel de Matos, hoje um homem mais brando,
mais sereno, depois de implosão da crise, procurou jornalistas para justificar
sua decisão, sem, contudo, ferir susceptibilidades. Ele chegou inclusive a
elogiar o trabalho de Arimathéa Tito Filho na presidência do sodalício e a
afirmar que a sua renúncia obedeceu a impulsos de foro íntimo. A Academia
Piauiense de Letras é uma organização que não chega a representar, em sua
totalidade, o pensamento cultural piauiense. Muitos ali ingressaram
utilizando-se de prestígio que foge ao consenso acadêmico. Outros, ali estão
levados pelas mãos protetoras de parentes e amigos. Isto, entretanto, não chega
a ser privilégio da Academia Piauiense de Letras, nem do Piauí [...] Mas não
se esqueçam que vivemos no país dos contrastes. Para o escritor J. Miguel de
Matos, o problema de sua renúncia não é tão grave assim. Ela reflete uma
posição alternativa, uma decisão íntima, pessoal, de quem acredita ainda na
possibilidade de uma paz negociada através da fundamentação de
compromissos com a literatura, com a Academia, com o futuro cultural do
Piauí. Homem de índole indomável, rebelde e intransigente na defesa do que
considera justo, J. Miguel de Matos é encarado pelos seus amigos como um
homem que tem sofrido para alcançar seus objetivos. E pelos seus inimigos,
como alguém que sabe, como poucos, atingir os alvos mortais dos adversários.
A crise na Academia, pelo que se pode observar, tem vida curta. Ela tem a
exata duração de um entendimento entre o ex-futuro secretário e o presidente
A. Tito Filho. Portanto, trata-se de um desentendimento passageiro, gerado
por quem encampa o direito de ter pensamentos e ideias. As crises no campo
do pensamento, são passageiras. E eu pessoalmente acredito que até o fim da
semana todo o problema esteja contornado. O importante, para todos os que
desejam o melhor para a literatura piauiense, é a Academia absorver e gerir
metade das ideias e dos planos de A. Tito Filho e J. Miguel de Matos, dentre
os quais está a abertura do sodalício para os escritores que já receberam a
aprovação do grande público.535

A índole explosiva de J. Miguel de Matos, até então considera fonte de problemas, é


ressignificada como uma posição alternativa ao status quo acadêmico. O sodalício é
apresentado como um lugar de contrastes porém, para Herculano Moraes, A. Tito Filho e J.
Miguel de Matos representavam o que havia de melhor nos esforços acadêmicos para dinamizar

535
MORAES, Herculano. Mirante. O Estado, Teresina, p. 2, 28 mar. 1978.
242

o setor cultural. As publicações de J. Miguel de Matos eram elogiadas, 536 o escritor foi
apresentado como alguém que soube reorientar o sentido de suas críticas e aprendeu a controlar
suas emoções. Abandonar a diretoria da Academia Piauiense de Letras foi entendido como uma
denúncia, uma tática de J. Miguel de Matos para movimentar o interior da instituição.
Em contrapartida, fazendo eco a argumento utilizado por Herculano Moraes quando este
apoiou sua última candidatura à Academia Piauiense de Letras, J. Miguel de Matos passa a
defender publicamente que o sodalício seja ocupado por escritores, categoria na qual o próprio
Herculano Moraes se encaixava

Recebi do escritor J. Miguel de Matos uma carta, em que defende, além de


outras coisas, o ingresso de escritores na Academia Piauiense de Letras [...] É
de lembrar-se, a quem interessar possa, que a Academia Piauiense de Letras,
já agora com 60 anos de existência, continua mastigando as velhas estruturas,
com a maioria de seus membros decidindo eleições quase inteiramente
ignorantes do lastro cultural dos candidatos e agarrados, somente, para não
votarem em branco, à decisão generosa do afeto, da amizade e, sobretudo, do
parentesco [...] De mim, tudo tenho feito para sensibilizar os senhores
acadêmicos para o direito dos escritores piauienses, costumeiramente
atropelados na sua natural intenção de ingressarem no academismo, sem o
temor incômodo de uma derrota por um candidato de menor mérito ou de
mérito quase nulo, assistido pelo beneplácito de um generoso sentimento
macróbio, ou pela conveniência de uma intervenção parental, ou, ainda,
oriunda de laços afetivos. A omissão do escritor piauiense nos embates
eleitorais da Academia Piauiense de Letras, por uma possível descrença no
reconhecimento do seu valor que a estrutura do sodalício tem mostrado a sua
prevalência, vem constituindo um fator preponderante da ausência, no nosso
academismo, de nomes que bem merecem o galardão da imortalidade,
deixando, por esse comportamento que já caráter sociológico, o campo aberto
às investidas, sempre proveitosas, das glórias irrecusáveis, que se valem de
tudo para tomar o lugar que pertence a outro, recebendo, sempre, o sufrágio
consagrador das formações culturais acomodadas com o divã macio das salas
acadêmicas, que fazem ouvido de mercador à sentença de Lucídio Freitas, o
genial fundador da Casa [...] Do confrade e admirador: Acadêmico J.
MIGUEL DE MATOS.537

Interessante perceber como, nestas ocasiões, as práticas de J. Miguel de Matos são


entendidas por seus contemporâneos. A depender do contexto e das afinidades cultivadas, este
era visto como indivíduo agressivo ou em busca de justiça, ora como escritor conservador e
pueril, ora como alguém que agia para revitalizar a instituição do qual fazia parte, atuando na

536
“[...] Sob o sugestivo título – ‘Da Costa e Silva – O POETA DA SAUDADE’, o nosso prestigioso confrade da
Academia Piauiense de Letras José Miguel de Matos, na sua incomum quão indormida peregrinação pelos
caminhos luminosos da literatura piauiense, acaba de felicitar-nos com a publicação dessa sua obra sobre o maior
poeta piauiense, em uma 2ª. edição excelentemente melhorada e ampliada [...] Tenho para mim que José Miguel
de Matos nessa 2ª edição sobre – ‘Da Costa e Silva – O POETA DA SAUDADE’ superou a quantos intelectuais
já escreveram sobre o aedo excelso [...]” (MORAES, Herculano. Mirante. O Estado, Teresina, p. 2, 26 jul. 1978).
537
MORAES, Herculano. Mirante. O Estado, Teresina, p. 2, 2-3 abr. 1978.
243

contramão daqueles que valorizavam os vínculos de parentesco ou afinidades profissionais


como norteadores de seus critérios de aceitação ou recusa.
Os quinze anos que separam as duas edições de Visão Histórica da Literatura Piauiense
aqui citadas foram preenchidos por projetos em comum, por disputas por funções públicas e pelos
escassos recursos, via mecenato, para edição e aquisição de obras. Os trechos, seja o de 1976 ou
de 1991 podem ser lidos à luz dos afetos, disputas e ressentimentos que marcaram as trajetórias
desses homens de letras. À título de curiosidade, em 2019, esta obra ganhou edição póstuma,
publicada pela Coleção Centenário da Academia Piauiense de Letras. Nesta nova versão, o nome
de J. Miguel de Matos não está relacionado a nenhum movimento ou geração literária.
Além das obras de Herculano Moraes, selecionamos outras publicações dedicadas à
análise e divulgação da literatura produzida no Piauí. Sem alterar a fórmula inaugurada no Piauí
por João Pinheiro, estes textos estruturam-se, basicamente, em torno das seguintes informações:
dados biográficos e relação de livros publicados pelos escritores selecionados, acrescidos ou
não de fotografias, trechos de suas obras e comentários críticos sobre o perfilado. Correndo o
risco de tornar este texto repetitivo, apresentarei na sequência as formas como J. Miguel de
Matos foi sendo inserido no espectro da literatura aqui produzida. Os livros analisados são:
Piauí: terra, história e literatura, datado de 1980, Literatura e Arte, de 1986, Escritores
Piauienses de Todos os Tempos, lançado em 1993, Grande Dicionário Histórico-biográfico
Piauiense, de 1997, Literatura Piauiense Para Estudantes, 2001 e Livro do Centenário da
Academia Piauiense de Letras: 1917-2017, lançado em 2017.
Organizado por Francisco Miguel de Moura, Piauí: terra, história e literatura,
publicado em 1980, reuniu vinte e cinco escritores nascidos ou radicados no Estado 538 e que,
na ótica de seu idealizador, seriam representativos das tendências atuais da produção literária
piauiense. Publicado por meio de parceria entre Editora do Escritor e a Editora Cirandinha, 539

538
Os escritores selecionados para a coletânea foram: Francisco Miguel de Moura (organizador), Assis Brasil,
Barros Pinho, Carlos Castelo Branco, Deusdeth Nunes, Dodó Macêdo, Esdras Nascimento, O.G. Rego de
Carvalho, Paulo Machado, Fontes Ibiapina, Francisco Pereira da Silva, Geraldo Borges, Gregório Moraes, H.
Dobal, Herculano Moraes, João Falcão, João de Lima, Lindebergh Pirajá, Magalhães da Costa, Menezes y Morais,
Nilson Maldonado Avante, Pedro Celestino, Rosa Maria dos Santos, Pedro Marques e Rubervan du Nascimento.
539
“[...] Para que a literatura piauiense alcance nível de citação nacional nada melhor que reunir numa ciranda
mãos e pensamentos, voltados definitivamente para o engrandecimento das letras e efetivamente abertos a todos
os gêneros, credos e raças” (CADERNO de Divulgação Cultural. O Estado, Teresina, p. 8, 19-20 set. 1976). Com
estas palavras, os idealizadores do Grupo Ciranda, realizaram ações comemorativas aos dez anos de fundação do
Círculo Literário Piauiense, movimento do qual muitos eram remanescentes. O grupo organizou a revista Ciranda,
produzida pela Editora Nossa, do professor Cineas Santos. Retomando um discurso que os colocava como
renovadores da cultura piauiense, assim a imprensa local repercutiu a iniciativa: “[...] Foi um negócio diferente
[...] o livro ‘Ciranda’ esgotou-se na noite de lançamento [...] É verdade que alguns ‘intelectuais de vanguarda’ (sic)
não gostaram. Mas esta classe não é muito chegada a comprar livros: falar mal custa menos, não? O certo é que o
negócio não pode morrer: em setembro lançaremos ‘Ciranda’ (II) – contos, edição bem mais trabalhada, com uma
tiragem inicial de dois mil exemplares e preço mínimo, tentativa de transformar o livro num produto mais acessível
244

a obra foi apresentada como resultado de longa pesquisa do seu organizador. Nos textos de
divulgação, o editor Luz e Silva apresentou a tese defendida pelo organizador da obra, que
afirmava “o estrato econômico da sociedade é que determina a possibilidade da arte e de sua
história”.540 Nesse sentido, Piauí: terra, história e literatura contribuiria para minimizar o
“perigoso isolacionismo intelectual, resultante das distorções de um progresso desordenado,
que vem ameaçando nossa cultura incipiente”.541
A obra pensada para dar visibilidade aos escritores representativos da terra piauiense,
preencheria também uma suposta lacuna de publicações destinadas aos estudantes que se
preparavam para os exames vestibulares. Ainda segundo o editor, “nunca é demais salientar-se
a importância da antologia, principalmente para um levantamento da produção literária
brasileira, passada e atual, e sua devida valorização”.542 Diferente das antologias produzidas
por J. Miguel de Matos e Herculano Moraes, Piauí: terra, história e literatura preocupava-se
em divulgar os textos dos selecionados. É preciso reconhecer que, no cenário cultural piauiense,
coletâneas como estas representavam a primeira e até mesmo, a única oportunidade que alguns
escritores tinham para divulgar seus textos para o grande público. Contudo, também é preciso
considerar os critérios que norteiam os trabalhos dos organizadores.
Na listagem dos autores que compõem esta antologia, o nome de J. Miguel de Matos
não se fez presente. No período de seu lançamento, este escritor fez saber, por meio dos jornais,
que estava insatisfeito com o livro apresentado. Afirmou que o organizador da obra havia lhe
solicitado texto a ser inserido na publicação o qual, surpreendentemente, não constava no livro
lançado. Em texto intitulado Mágoa de Imortal, assim se repercutiu a situação:

O acadêmico J. Miguel de Matos, considerado o mais atuante que a Academia


tem em seu quadro, anda visivelmente magoado com o escritor e poeta
Francisco Miguel de Moura. É que, o organizador de Piauí: Terra História e
Literatura, pediu ao J. Miguel o conto para ser enfeixado na publicação. O
pedido foi atendido e o poeta Miguel de Moura não cumpriu com a palavra,
dando a desculpa de que o conto do J. Miguel de Matos sairia numa outra
participação apenas de imortais. E que a atual era só para os “não

aos que ainda acreditam nele. O critério de seleção não será dos mais exigentes [...] Uma única exigência: se você
não acredita no negócio, não entre [...]” (CADERNO de Divulgação Cultural. O Estado, Teresina, p. 8, 22-22 ago.
1976). A iniciativa não ultrapassou o segundo número, contudo no ano seguinte o escritor Francisco Miguel de
Moura fundou a Editora Cirandinha, responsável entre outras coisas, pela publicação da Revista Cirandinha,
publicação piauiense de circulação nacional que, entre os anos 1977 e 1984, reuniu em suas dez edições
colaboradores piauienses e estrangeiros.
540
MIGUEL de Moura lança novo livro sobre o Piauí. O Dia, Teresina, p. 10, 17 abr. 1980.
541
MOURA, Francisco Miguel de. Piauí: terra, história e literatura. Folha da Mãe Ana. O Dia, Teresina, p. 15, 13-
14 abr. 1980.
542
MIGUEL de Moura lança novo livro sobre o Piauí. O Dia, Teresina, p. 10, 17 abr. 1980.
245

imortalizados através da APL”. Acontece que dois imortais fazem parte da


antologia editada, o que deixou o J. Miguel de Matos magoado.543

Não encontramos, na documentação, os posicionamentos de Francisco Miguel de Moura


acerca do suposto episódio. Tudo o que conhecemos foi apresentado pelo próprio J. Miguel de
Matos, portanto, não sabemos se o pedido chegou, de fato, a ser feito. Contudo, se lembrarmos
que, em 1972, o soldado-escritor havia questionado a autoria de Linguagem e Comunicação em
O.G. Rego de Carvalho, também de autoria de Francisco Miguel de Moura, e as polêmicas
travadas por J. Miguel de Matos com pessoas próximas afetivamente ao organizador da obra,
não me parece razoável acreditar que a solicitação tenha sido feita. Se considerarmos que os
escritores selecionados integraram o Círculo Literário Piauiense ou Grupo Ciranda e que
Herculano Moraes, um dos imortais presentes na publicação foi bastante ativo nestes
movimentos, podemos entender Piauí: terra, história e literatura não apenas como uma
antologia, uma obra de divulgação do trabalho dos escritores piauienses, mas também como um
espaço de afeto, no qual as identificações literárias e interesses pessoais estão presentes nos
momentos de seleção, somando-se a fim de construir circuitos de reconhecimento e
consagração.
Importa chamar atenção para uma demanda dos escritores piauienses daquele momento:
a inclusão de questões sobre a literatura piauiense nos testes seletivos para a Universidade
Federal do Piauí e, por conseguinte, a obrigatoriedade de seu ensino nas escolas. Esta aspiração
aprofundou-se, em especial, a partir de 1971, quando da instalação da referida universidade,
fundada a partir da fusão das faculdades existentes até no Piauí.544 As dificuldades dos autores
para editar e publicar seus textos, as dificuldades do público leitor para encontrar em livrarias
e bibliotecas ou mesmo adquirir as obras de escritores piauienses, justificava a publicação de
coletâneas, perfis biográficos, sínteses bibliográficas, antologias e dicionários. Estas obras
supriam uma necessidade urgente dos estudantes, a saber, conhecer minimamente os escritores
e seus livros a fim de pontuar nos exames vestibulares. A implementação do Plano Editorial do
Estado, em 1972, também pode ser entendida como uma forma de tornar o escritor e o livro
piauiense mais acessível.
As coletâneas publicadas por J. Miguel de Matos nas décadas de 1960 e 1970, além da
apostila Síntese Bibliográfica da Literatura Piauiense, da qual não localizamos nenhum
exemplar, atendem à demanda do público estudantil. Nos jornais, identificamos sua

543
O DIA. Teresina, p. 4, 23 abr. 1980.
544
As faculdades que compuseram o núcleo inicial da Fundação Universidade Federal do Piauí foram: Faculdade
de Medicina, Faculdade de Odontologia, Faculdade de Direito, Faculdade Católica de Filosofia, estas em Teresina
e a Faculdade de Administração, localizada em Parnaíba.
246

participação em eventos que tinham como objetivo divulgar os escritores locais e aproximar as
instituições às quais pertencia da sociedade. Seu nome costumeiramente aparecia nas listagens
de escritores mais citados ou pesquisados545 e este mesmo afirmava que Caminheiros da
Sensibilidade era obra de “manuseio quase obrigatório dos nossos colegiais”.546 Antes mesmo
de ingressar na Academia Piauiense de Letras, J. Miguel de Matos participava de atividades às
quais os intelectuais eram convocados, entre elas, gincanas escolares, como a registrada a seguir

A convite da jovem estudante Cleonice dos Santos [...] estive [...] para tomar
parte, como escritor, numa gincana cultural que ali se realizara por inspiração
do seu corpo docente [...] O meu encontro com professores, alunos e o próprio
estabelecimento de ensino [...] teve o mérito para mim muito salutar de sentir
que o homem de letras do Piauí, depois de um longo olvido como coisa quase
nenhuma valia, o acolhimento que já lhe devota o professor piauiense, antes
tão indiferente à sua existência, e sopesar o entusiasmo fagulhante da
mocidade teresinense em poder conversar com ele, no necessário amálgama
de sua educação, através de encontros diretos e constantes, surgindo a gincana,
mesmo na sua esportividade, como o grande elo entre a cultura e a educação,
que o Secretario Raimundo Wall Ferraz tão bem irmanou, pela adoção de
novos e revolucionários métodos de ensino e pela implantação do Plano
Editorial do Estado [...] Ali, no convívio puro com a mocidade que vai
carregar, depois de nós, nos ombros, o Piauí e o Brasil depois que acordaram
do seu longo sono de letargia, pelas mãos de Médici e de Alberto Silva, pude
sentir que muitos de nossos intelectuais fizeram ouvido de mercador ou
apresentaram desculpas frias, quando convidados para a gincana, esquecidos
talvez que, se para eles nada significa a festa cultural da nossa mocidade, tanto
representa para um espírito em formação [...] Outro fato importantíssimo que
chegou ao meu conhecimento [...] foi o desejo de um jovem professor daquele
educandário, parecendo representar o pensamento unânime de todos os
mestres do Piauí [...] de um encontro da classe com os acadêmicos do Brasil
[...] Sem nenhuma dúvida, merece o melhor respeito a ideia do jovem
educador em querer conhecer, por dentro a “torre de marfim” da nossa cultura

545
Anteriormente citei como, em 1967, o nome de J. Miguel de Matos apareceu em resposta à indagação de um
professor em atividade avaliativa. Registro aqui mais três referências à procura por suas obras datadas de 1972,
1978 e 1991. Em 1972, Herculano Moraes o inseriu em sua lista de destaques da literatura do ano anterior: “[...]
Tentarei fazer uma classificação seria, e espero que a opinião pública coincida comigo nestes pontos de vista.
Registro os nomes e os fatos sem partidarismo, [...] de quaisquer paixões, apenas movido pelo interesse de
estimular as pessoas ao trabalho em benefício da coletividade. 9 – OS MELHORES DA LITERATURA a) – J.
Miguel de Matos b) – O. G. Rego de Carvalho c) – Magalhães da Costa d) – Chico Miguel de Moura e) – Luís
Lopes Sobrinho (Acontecimento: Luís Lopes Sobrinho é eleito para a Academias Piauiense de Letras) [...]”
(MORAES, Herculano. Mirante. O Estado, Teresina, p. 2, 12 jan. 1972). Em 1978, assim registra-se: “[...] Um
teste de sondagem aplicado em dois cursinhos pré-vestibulares de Teresina – envolvendo algumas dezenas de
alunos – revelou quais os escritores piauienses preferidos pelos jovens. O resultado foi o seguinte: Herculano
Moraes – 131 votos. Assis Brasil – 126. O.G Rego de Carvalho – 122. H. Dobal Teixeira – 40. A. Tito Filho – 25.
Lilizinha Castelo Branco – 15. J. Miguel de Matos – 12. Álvaro Pacheco – 6. Também receberam entre um e dois
votos: Esdras do Nascimento, José Maria Vasconcelos, Gregório de Morais, Joaquim Chaves, João Gabriel Batista
e João Paulo dos Reis Velloso [...]” (LÍDERES da Literatura. De Leve. O Estado, Teresina, p. 3, 20 abr. 1978). O
Boletim Notícias Acadêmicas de dezembro de 1991 aponta: “[...] Livros mais solicitados pertencem a autores da
terra especialmente didáticos. Muita procura sobre aspectos políticos, econômicos e sociais. Autores mais
solicitados: A. Tito Filho, Herculano Moraes, Odilon Nunes, Padre Chaves, João Gabriel Baptista, José Miguel de
Matos, Wilson Brandão, M. Paulo Nunes, Francisco Miguel de Moura [...]” (NOTÍCIAS ACADÊMICAS.
Teresina, p. 5, dez. 1991).
546
JORNAL DO PIAUÍ. Teresina, p. 4, 10 abr. 1973.
247

maior, além de beber, no encontro, as luzes do saber [...] Com este registro
pretendo, como mero homem de imprensa, chamar a atenção [...] no sentido
de que possibilite [...] diálogo entre mestres e imortais [...].547

A referida gincana aconteceu no período de sua campanha vitoriosa para a Academia


Piauiense de Letras e às vésperas do lançamento de Perfis. O soldado-escritor compareceu à
atividade acompanhado por, Herculano Moraes e Francisco Miguel de Moura. O texto
publicado representa mais uma oportunidade de J. Miguel de Matos chamar atenção para suas
práticas, à medida que cravava a diferença entre si e os imortais que, convidados a participar,
fizeram ouvido de mercador. Representando a cultura piauiense, no texto, a Casa de Lucídio
Freitas foi apresentada como uma torre de marfim, distante e indiferente da população. Para o
escritor em campanha, seu ingresso facilitaria o trânsito da instituição com outros grupos
sociais. No fragmento, o escritor destaca ainda outra faceta de sua intelectualidade: sua atuação
como agente cultural que intermediava as demandas sociais, no caso professores e estudantes,
junto às instituições e o poder público.
Na década de 1970, professores, literatos e a imprensa local insurgiram-se acerca de
como a literatura piauiense aparecia nos exames vestibulares. A forma como as questões de
Comunicação e Expressão, Língua Portuguesa ou, atualmente Linguagens e Suas Tecnologias
aparecem nos exames seletivos dialogam diretamente com as concepções e práticas
educacionais, bem como com as políticas públicas vigentes. Pelo exposto nos jornais daquele
período, as maiores críticas decorriam da ausência de questões sobre autores e livros piauienses,
denunciando-se assim a preferência por escritores reconhecidos nacionalmente. Por outro lado,
quando haviam referências aos escritores piauienses, estas eram criticadas pelo pouco
aprofundamento dos itens, que valorizavam a memorização em detrimento do conhecimento e
capacidade de interpretação dos textos. As coletâneas produzidas por J. Miguel de Matos
atendiam basicamente a este modelo de avaliação pois apresentavam os elementos básicos da
biografia, das influências culturais e da produção escrita dos literatos locais.
Contudo, a instalação da Universidade Federal do Piauí gerou expectativas em torno de
um desenvolvimento econômico e modernização nas práticas sociais. A oportunidade para que
de jovens dessem continuidade à sua formação, o que beneficiava especialmente aqueles que
não possuíam condições financeiras de manter seus estudos em outras regiões do país, o
aumento do número de vagas e oferta de novos cursos foram vistos como instrumentos a favor
do desenvolvimento e de uma maior valorização da cultura local. Nesse sentido, a inserção de

547
MATOS, J. Miguel de. O encontro de Academias e os professores piauienses. O Estado, Teresina, p. 3, 11 out.
1973.
248

questões acerca da literatura local traria consequências práticas como um maior conhecimento
da história e da identidade cultural piauiense, ações que passariam por um maior incentivo aos
agentes culturais, entre eles, apoio para reedição ou publicação de seus textos.
Reconhecendo a ausência de ações efetivas destinadas à difusão da cultura piauiense,
juntos, a União Brasileira de Escritores – secção Piauí e a Geração Mimeógrafo promoveram
palestras, seminários, cursos de formação visando divulgar e preparar os vestibulandos para os
exames. O primeiro destes seminários ocorreu em 1974 e sobre ele se disse

Contando com a participação dos professores Balduíno Barbosa de Deus, F.


Miguel de Moura, J. Miguel de Matos, Socorro Neiva, Geraldo Borges, Cinéas
Santos, a Secretaria da Cultura do Piauí promovendo um curso sobre literatura
Piauiense destinado aos vestibulandos de 1975. Nada menos de 750 alunos
estão inscritos que evidencia a validade da promoção. O referido curso está
sendo ministrado na Biblioteca Pública de Teresina nos horários; da tarde, e
noite.548

Ao comentar a importância desta atividade, J. Miguel de Matos admira, com falsa


modéstia, o fato de ter sido alçado à posição de professor,549 em virtude de conferência sobre
Félix Pacheco. O Seminário de Literatura Piauiense foi inserido no calendário de atividades
destinadas aos estudantes de Teresina, sendo realizado ora pela Secretaria de Cultura, ora pela
Universidade Federal do Piauí, contando também com a colaboração da Academia Piauiense
de Letras. Sejam como divulgador, assessor de imprensa ou palestrante, J. Miguel de Matos
participou ativamente destes eventos.550 Contudo, nem assim a Comissão Permanente de
Vestibular (COPEVE) oferecia questões que atendessem às expectativas de professores,
estudantes e escritores. Exemplo disso foi a repercussão das provas de 1977 e 1978

O desprezo aos autores piauienses proclamado pelo professor Cineas Santos


(Andreas Vesalius), no ano passado, voltou a se verificar este ano no
vestibular da Universidade Federal do Piauí e ainda muito pior: nenhuma
questão foi formulada a respeito de escritores locais na Prova de Comunicação
e Expressão. Além disso, uma questão sobre o livro de Jorge Amado não
lançado no Piauí até o momento [...] Em 77, duas questões muito levemente
foram incluídas na prova, uma delas se referia a obra “Pacamão” de autoria de
Assis Brasil [...] Umas questões isoladas que não mereceram horas a fios dos
candidatos que estudaram O.G. Rego de Carvalho, Francisco Miguel de
Moura, Da Costa e Silva, Lilizinha Castelo Branco, Herculano Moraes, Fontes

548
O ESTADO. Teresina, p. 12, 24-15 nov. 1974.
549
“[...] Para falar sobre a cultura poética de Félix Pacheco (José Félix Alves Pacheco), foi convidado o acadêmico
que escreve este artigo transformado, como se vê, de uma hora para outra, no mais modesto e indouto professor
do Piauí [...]” (MATOS, J. Miguel de. Seminário de Literatura Piauiense. O Estado, Teresina, p. 9, 6 dez. 1974.
550
“[...] A FUFPI, através da Pró Reitoria de Extensão e do Departamento de Letras, iniciou ontem o Seminário
sobre Literatura Piauiense, que trará a Teresina homens como Álvaro Pacheco e H. Dobal. Ontem na abertura, a
presença do professor Carlos Daniel, que representou o senhor reitor Camilo Filho e deu por aberto o seminário;
A. Tito Filho, que fez uma brilhante palestra; e Cassy Távora (todos participaram da mesa de honra), José Ribeiro
e Silva, escritor J. Miguel de Matos e Osvaldo Nascimento [...]” (O DIA. Teresina, p. 11, 25 nov. 1980).
249

Ibiapina, Arimateia Tito Filho e J. Miguel de Matos. Para a maioria dos


professores de Literatura Piauiense, a Copeve está tendo um grande
desrespeito para com os autores locais, pois não vem procurando difundi-los,
e até mesmo melhorar o conhecimento dos estudantes, sobre os escritores mais
conceituados.551

Ao longo da década de 1980, a União Brasileira de Escritores – secção Piauí, uma das
entidades ao qual J. Miguel de Matos era filiado, dedicou seus esforços à crítica sistemática,
sensibilização política552 e articulação de professores e escritores553 visando institucionalizar a
obrigatoriedade do ensino escolar de temas relativos à história, literatura e cultura piauiense.
Defendiam que o estudo sistematizado seria positivo para os alunos, que assim conheceriam
suas raízes culturais, e para os escritores que seriam estimulados a produzir, publicar e divulgar
suas obras, impactando por fim, na elaboração de exames vestibulares condizentes com os
conteúdos ministrados e expectativas dos literatos. A formação de um público leitor, de
mercado consumidor e de espaços de discussão seriam estimulados, elementos que segundo
Pierre Bourdieu, formatam o campo literário.
A mobilização dos membros da União Brasileira de Escritores – secção Piauí que
atuavam nas áreas da educação, da imprensa, nas entidades culturais, nos órgãos públicos e na
política partidária resultou, apesar da intermitência das ações da entidade, na inserção na
Constituição Estadual de 1989, da obrigatoriedade do ensino de literatura piauiense nas escolas
públicas e privadas.554 Em todo o Brasil, as mudanças pelas quais passaram o ensino da Língua
Portuguesa que, aos poucos, foi abandonando questões pautadas na memorização de regras
gramaticais e escolas literárias sendo substituídas por questões interpretativas estimulou novas
formas de trabalhar os autores piauienses em sala de aula. Por outro lado, atualmente, a adesão
gradativa ao Sistema de Seleção Unificada (SISU) por meio do Exame Nacional do Ensino
Médio (ENEM) que apresenta prova única para todo o país trouxe novos desafios para a

551
AUTORES piauienses: nem referências. O Estado, Teresina, p. 5, 12 jan. 1978.
552
“[...] A Constituinte Piauiense, ora em fase de elaboração, recebeu até agora como proposta de entidades apenas
a dos intelectuais da terra solicitando que seja obrigatório o ensino da literatura piauiense nas escolas. O deputado
Humberto Reis já se pronunciou amplamente favorável [...]” (O ESTADO. Teresina, p. 3, 18 mar. 1989).
553
“[...] A UBE-PI, União Brasileira de Escritores do Piauí, está realizando, no auditório do Liceu Piauiense, um
encontro de escritores do Estado que tem como um dos objetivos centrais discutir e alertar as autoridades
competentes para a concretização da obrigatoriedade do ensino de literatura piauiense nas escolas do Estado. Este
assunto, aliás, abre os debates de hoje, a partir das 19:30h, com a palestra ‘Luta pela obrigatoriedade do ensino de
literatura piauiense’, que será proferida por Elmar Carvalho, atual presidente da UBE no Piauí [...]” (O DIA.
Teresina, p. 14, 28 jun. 1990).
554
A Constituição Estadual de 1989 estabeleceu no artigo 226 que “será obrigatório, nas escolas públicas e
particulares, o ensino de literatura piauiense e noções de trânsito e de meio ambiente”. O artigo foi alterado ao
longo dos anos levando em consideração as atualizações na Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional. Em
2005, por meio da Lei Ordinária 5.464, instituiu-se a “obrigatoriedade do ensino de literatura brasileira de
expressão piauiense, no ensino Fundamental e Médio, nas escolas das redes pública estadual e privada, no Estado
do Piauí”. A efetivação desta normativa é um desafio que perpassa os anos.
250

implementação destes dispositivos legais.


Ao longo dos anos, sobretudo a partir de fins da década de 1990 até a adesão ao modelo
de seleção nacional unificado, a Universidade Federal do Piauí e a Universidade Estadual do
Piauí, esta fundada em 1984, as comissões responsáveis pela elaboração dos exames vestibulares
próprios foram, gradativamente, sistematizando os modos de inserção de autores e questões
relativas à história, geografia, literatura e demais manifestações culturais do Piauí. Embora com
suas especificidades, as universidades divulgavam meses antes dos exames, a listagem de obras
literárias que seriam discutidas nas avaliações, subdividindo-as em literatura estrangeira,
especificamente obras de escritores portugueses, literatura nacional e literatura piauiense.555 Esta
divulgação atendia a reivindicação de escolas e cursos pré-vestibulares visando à melhor
preparação de seu alunado. Em torno desta listagem, construiu-se um lucrativo mercado editorial
destinado ao atendimento da demanda por exemplares das obras de autores piauienses. Da mesma
forma que textos literários foram editados ou reeditados, surgiram como subproduto desta
demanda, livros e apostilas que reuniam comentários sobre autores e livros elencados.
Estes livros remetiam ao formato das antologias e coletâneas publicadas na década de
1970, tais como as de J. Miguel de Matos, contudo ao invés de apresentar os perfis de escritores
e suas obras, a metodologia de confecção destas obras restringia-se ao material indicado pelos
elaboradores das provas. Nestas, apareciam dados biográficos do escritor, o contexto de
produção de suas obras, as correntes literárias às quais estava atrelado, as características
específicas do texto literário, um conjunto de comentários acerca da obra além de questões
presentes nos vestibulares anteriores. Considerando apenas a potencialidade das obras a serem
inseridas, acredito que o tipo de texto no qual J. Miguel de Matos se especializou, ou seja,
investiu ao longo de sua trajetória, em sua maioria textos biográficos ou colunas para jornais
posteriormente reunidas em forma de coletâneas, inviabilizou a inserção de suas obras entre as
indicadas para estudo. Acredito que estas listagens ajudaram a formatar um cânone literário
para o Piauí, no qual alguns autores e obras ganharam prevalência em detrimentos de outros, a
despeito de seus estilos, influências e recepção semelhantes.
Aqui o cânone é entendido como um conjunto de discursos que, articulados, indicam e
legitimam determinados textos e autores considerando-os representativos da produção escrita.

555
Solicitamos junto à Comissão Permanente de Seleção (COPESE) da Universidade Federal do Piauí e ao Núcleo
de Concursos e Promoção de Eventos (NUCEPE) da Universidade Estadual do Piauí acesso ao acervo institucional
ou listagem das obras anualmente indicadas aos vestibulandos. As solicitações não tiveram resposta. Arrisco
afirmar que o fim da elaboração de vestibular próprio deve ter desmantelado o acervo destas comissões. Acredito
também que as medidas de distanciamento social vigentes a partir de março de 2020 impossibilitaram a consulta
aos seus arquivos. Neste texto, as referências a estas obras e livros são produto da memória desta pesquisadora,
que se utilizou destes materiais em seu processo de preparação para o vestibular.
251

Ao serem legitimados pelas instituições de saber e poder, estas obras produzem uma noção de
identidade que será sacralizada por meio de investimentos práticos e simbólicos. O discurso
que produz canonização, ou seja, a valorização e investimento, inclusive midiático, dos bens
culturais é um território restrito e por isso, um espaço de disputas. Nesse sentido, Maria Eunice
Moreira defende que ser mais prudente considerar a existência de vários cânones, de várias
disputas entre um “cânone vencedor” e os “cânones alternativos”.556
É fundamental entender a formatação e os investimentos naquilo que se considera
representativo de variadas áreas da produção intelectual, entre elas a literária. No caso do Piauí,
torna-se importante investigar os processos que levam à seleção e escolha de autores e textos a
serem indicados aos estudantes, seja por meio da obrigatoriedade do ensino nas escolas, seja na
indicação aos vestibulandos. Compreender os mecanismos que promovem a indicação de um
autor em detrimento de outro desnuda algumas facetas dos jogos de poder presentes no cenário
cultural local.
Ao discutir a noção de cânone, Roberto Reis define alguns dos questionamentos que
devem ser feitos à essas construções discursivas:

Perguntar quem articulou o cânon, de que posição falava, que interesses


representava, qual seria seu público-alvo e qual a sua agenda política [...], por
tais critérios norteou a sua eleição e rejeição de obras e autores. A noção de
valor e a atribuição de sentido não são empresas separáveis do contexto
cultural e político em que se produzem, não podendo por conseguinte, ser
desconectadas de um quadro histórico. O significado de qualquer juízo de
valor sempre depende, entre outras coisas, do contexto em que for emitido e
de sua relação com os potenciais destinatários e a sua capacidade de afetá-los
ou mesmo convencê-los.557

Apesar das fragilidades do meio literário local, é possível apontar alguns temas que
perpassam as obras listadas nos editais de vestibulares. Desde a Literatura Piauiense, de João
Pinheiro, investiu-se na valorização de textos que ressaltam a articulação dos colonizadores às
origens do sertanejo piauiense. Lira Sertaneja, de Hermínio Castelo Branco, primeira obra
reeditada pelo Plano Editorial do Estado em 1972, apresenta, de modo idílico, as aventuras de
colonizadores e vaqueiros. O folclore piauiense, representado nas obras de Fontes Ibiapina e
Magalhães da Costa, também tem destaque, posto que constroem a ideia de um Estado que muito
lentamente se moderniza e que, mesmo na atualidade, preserva práticas e comportamentos típicos
do meio rural. A pobreza e as dificuldades vivenciadas pelos piauienses expressas na literatura ao

556
MOREIRA, Maria Eunice. Cânone e cânones: um plural singular. Letras, Santa Maria, v. 26, p. 89-94, 2003.
557
REIS, Roberto. Cânon. In: JOBIM, José Luis (org.). Palavras da crítica: tendências e conceitos no estudo da
literatura. Rio de Janeiro: Imago, 1992. p. 65-92.
252

tempo que romantizam as dificuldades da vida rural, revelam o valor do povo e sustentam outros
discursos, sobretudo aqueles que apontam para a constante necessidade de intervenção econômica
de superintendências e órgãos de desenvolvimento, bancos e políticas públicas.
Percebemos também a valorização local de escritores que, em alguma medida, tiveram
inserção ou reconhecimento na cena cultural nacional. Alguns exemplos estão contidos na
receptividade às obras de Félix Pacheco, primeiro piauiense a compor a Academia Brasileira de
Letras; Da Costa e Silva e Mario Faustino, funcionários públicos atuantes na capital federal e que
destacaram na imprensa nacional publicando poesias e crítica literária; Torquato Neto, que
participou do movimento tropicalista; O.G. Rego de Carvalho, H. Dobal, mais uma vez Fontes
Ibiapina, Assis Brasil, esses que, em algum momento foram contemplados com disputados
prêmios literários ou foram publicados por editoras de alcance nacional. Quase que como se a
boa aceitação de suas obras fora do Estado fosse suficiente para legitimar a inserção de suas obras
naquilo que pode se considerar um cânone literário local. Este não é um processo natural, é
produzido a partir da articulação de instituições públicas e privadas que atuam no cenário cultural
tais como universidades, editoras, escolas, academias de letras e agremiações culturais.
Flávio Kothe, ao discutir a formação do cânone da literatura nacional, se propôs a fazer
uma leitura a contrapelo dos processos que o fizeram emergir e, sobretudo, que propiciaram a
desvalorização ou interdição de outros autores e obras. Os exemplos apontados pelo
pesquisador apontam que a ascensão do cânone reflete um processo não democrático, posto que
exclui, silencia e pejora textos e escritores com práticas e visões distintas do modelo priorizado.
No caso brasileiro, o autor aponta que da literatura canonizada brasileira se depreende uma
sociedade autoritária, patriarcal e racista. São produtos de um tempo e, por permanecerem como
obras canônicas, evidenciam a lenta transformação dos valores e práticas sociais no país. A
partir dessa constatação, de modo irônico, o escritor afirma

Nesse espectro e nesse sentido, bem ao contrário do que pretendem antologias,


historiografias, manuais, artigos, teses, etc., os autores do cânone são todos
“suspeitos”: alguma coisa errada devem ter feito, para serem consagrados por
um sistema tão perverso quanto esse que auratiza uma das sociedades mais
espoliadoras, antiiluministas e autoritárias do planeta. A ilusão básica é crer
que eles estejam no cânone por sua qualidade artística.558

Para Flávio Kothe, o olhar crítico para o cânone literário evidencia as desigualdades
presentes nos sistemas culturais instituídos. Participar de antologias, ser relacionado como
escritor significativo de determinado lugar ou área de atuação não significa, necessariamente, o

558
KOTHE, Flávio K. O cânone imperial. Brasília: Editora UNB, 2000. p. 21.
253

reconhecimento da qualidade literária mas a capacidade dos autores de inserirem-se nos circuitos
de produção e cultivar parcerias com sujeitos e instituições que legitimam autores e obras.
Literatura & Arte, publicado em 1986, é outra obra que apresenta referências à trajetória
intelectual de J. Miguel de Matos. Escrita por José Fortes Filho, jornalista e membro da União
Brasileira de Escritores – secção Piauí, a obra é uma coletânea de textos publicados pelo autor
em sua coluna no jornal O Dia. Neste livro, J. Miguel de Matos ganha destaque, sendo incluído
entre aqueles a quem o escritor agradece ao apoio para a publicação da obra. Além disso, o
soldado-escritor fez jus a uma dedicatória especial na qual se disse:

Ao biógrafo de Da Costa e Silva, o poeta da saudade, imortal J. Miguel de


Matos, que mesmo pisando caminhos árduos, encontra momentos para
orientar os neófitos, centrado no princípio da sincera amizade e dedicação que
sempre tem me distinguido no trato de assuntos literários.559

A dedicatória destaca a admiração e o afeto que José Fortes Filho nutre por J. Miguel de
Matos. Entre os artigos selecionados para compor o livro, aparece outra referência ao soldado-
escritor, em artigo intitulado J. Miguel Continua Pisando Caminhos. Neste texto, acompanhado
de fotografia daquele a quem se referia, o articulista enaltece a pesquisa biográfica e crítica
literária que J. Miguel de Matos empreendeu sobre o “príncipe dos poetas piauienses”, trabalho
que, em 1977, lhe rendeu premiação em concurso promovido pela Secretaria de Cultura. O texto
de José Fortes Filho, datado de 1985, baseia-se no questionamento acerca da ausência do
premiado escritor em comissão formada para organizar as atividades alusivas à comemoração do
primeiro centenário de nascimento do poeta Da Costa e Silva.
José Fortes Filho ainda não atuava na imprensa em 1977, momento em que ocorreram
em Teresina as atividades relativas à inauguração da Praça Da Costa e Silva. A programação
da inauguração incluiu palestras sobre o escritor, publicação de livros, revistas e materiais de
jornais, a vinda de alguns de seus familiares ao Piauí e houve, inclusive, mobilização frustrada
no sentido de trasladar seus restos mortais para sua cidade natal, Amarante. Para a inauguração
do equipamento público, foram confeccionados e fixados na praça alguns painéis contendo
poesias do homenageado. Como deferência por ter vencido o concurso literário que lhe rendeu
a publicação do livro Da Costa e Silva, o Poeta da Saudade, J. Miguel de Matos ficou
responsável pela seleção das poesias. No entanto, os comentários nos jornais acerca da
solenidade realizada em setembro de 1977 apontam para alguns problemas.
Em texto em que lamentava o azar do poeta Da Costa e Silva em virtude do descuido
que os piauienses tinham para com a divulgação de sua vasta produção, Pompílio Santos

559
FORTES FILHO, José. Literatura e arte. Teresina: [s. l.], 1986. p. 11.
254

denuncia a falta de critério do governo do Estado na contratação de editora nacional que não
entregou a obra Poesias Completas em tempo hábil. Apesar do trabalho local de J. Miguel de
Matos ter sido elogiado560 e de sua obra ter-se esgotado em poucos dias,561 Pompílio Santos
afirmou que esta não trouxe o aprofundamento merecido pelo poeta. Por fim, responsabilizou
J. Miguel de Matos por erros nos painéis comemorativos:

Não entendo mesmo o que vem acontecendo com a glória do nosso poeta
maior Da Costa e Silva [...] Não é preciso explicar – eu quero é entender.
Inauguram uma praça e transcrevem, num painel de aço inoxidável, os sonetos
do poeta – mas o fazem erradamente [...] vem o nosso J. Miguel de Matos e
pratica outra brincadeira editorial a título de divulgar a mensagem do poeta.
Será que o próprio Alberto da Costa e Silva, ilustre diplomata e escritor de
talento, não dispõe de tempo para um trabalho crítico-biográfico sobre Da
Costa e Silva? Vítima da indecisão de épocas, Da Costa e Silva não teve sorte
com os seus pôsteres. Mas ainda há tempo.562

Possivelmente por desconhecimento dos episódios de 1977, José Fortes Filho


questionou a ausência de J. Miguel de Matos nos preparativos do centenário de Da Costa e
Silva. O vínculo de amizade e o reconhecimento do valor da obra premiada àquela época
motivaram a indagação aos representantes da Secretaria da Cultura. Não localizamos nos
jornais de 1985 respostas ao questionamento do articulista. Em texto que retoma sua posição
de vítima das ações de terceiros, J. Miguel de Matos iguala sua situação a episódios envolvendo
reconhecidos escritores e afirma

Indagado por que não foi indicado para membro da Comissão, o imortal J.
Miguel de Matos ofereceu esta resposta: “mesmo sem aquele profundo
sentimento de luta contra a obscuridade de José de Alencar, o grande
romântico da literatura brasileira, revelado por Luiz Viana Filho, seu grande
biógrafo, responde por mim o romancista Emílio Zola, o criador do
Naturalismo: é preciso morrer, para ter razão.563

Ainda sobre a forma como J. Miguel de Matos foi inserido em obras que discutem o
contexto da literatura piauiense. Em Escritores Piauienses de Todos os Tempos, lançado por
Adrião Neto em 1993, J. Miguel de Matos não aparece entre os escritores biografados.

560
“[...] ‘Da Costa e Silva, o poeta da saudade’, de J. Miguel de Matos. Na oportunidade da inauguração da praça
Da Costa e Silva sob o calor de tanto entusiasmo de povo e autoridades, o escritor piauiense lançou mais um
trabalho bem conduzido, de crítica verdadeira, que se salientam os mais admiráveis episódios poético do grande
versejador piauiense. J. Miguel de Matos interpreta os dezesseis painéis que, por encomenda do governo,
selecionei, e que são vistos eternizando o amarantino, no magnífico logradouro do meu nome. [...]” (TITO FILHO,
A. Caderno de anotações. Jornal do Piauí, Teresina, p. 3, 20 out. 1977).
561
“[...] O escritor J. Miguel de Matos já está preparando a segunda edição de seu último livro intitulado ‘Da Costa
e Silva, o poeta da saudade...’, que se esgotou em duas semanas. O conhecido acadêmico adverte aos predatórios:
‘podem amolar o punhal de Brutus e arranquem da bainha a espada de Pausaneas...’ [...]” (O ESTADO. Teresina,
p. 3, 20 set. 1977).
562
SANTOS, Pompílio. Cultura. O Estado, Teresina, p. 5, 23-24 out. 1977.
563
FORTES FILHO, 1986, p. 98.
255

Entretanto, este livro apresenta a literatura piauiense em duas perspectivas: na primeira parte,
apresentou-se dados biográficos dos escritores selecionados e na segunda parte, fez-se um
apanhado histórico dos principais movimentos e agremiações culturais do Piauí, do passado e
no presente. Foram apresentados os objetivos das instituições e movimentos, seus membros e
comentários acerca do impacto de suas ações. Ao apresentar o Movimento de Renovação
Cultural, movimento ao qual J. Miguel de Matos constantemente aparecia como filiado, assim
registra

MOVIMENTO DE RENOVAÇÃO CULTURAL – O movimento de


Renovação Cultural surgiu em Teresina na década de 60. Herculano Moraes,
em seu livro “A Nova Literatura Piauiense”, edição de 1975, detendo-se sobre
o MRC, fala de “um punhado de intelectuais políticos que não conseguiram
renovar coisa nenhuma”, no entanto, ressalta que o movimento “teve o mérito
de deixar a herança de alguns compêndios produzidos em favor da História e
da Economia Piauiense. Dente os que participaram do movimento de
Renovação Cultural destacamos: José Camilo da Silveira Filho, J. Miguel de
Matos, Raimundo Nonato Monteiro de Santana, Raimundo José dos Reis, José
Ribeiro e Silva, Nerina Castelo Branco.564

A publicação de Adrião Neto trouxe ainda dois diferenciais: apresentou um tópico


destinado a registros fotográficos, um dos quais reproduzia a fotografia da cerimônia de entrega
dos mantos aos imortais da Academia Piauiense de Letras já apresentado nesta pesquisa.
Também nesta obra, J. Miguel de Matos foi referenciado na sessão Bibliografia.
Cronologicamente, Escritores Piauienses de Todos os Tempos foi a primeira obra a reconhecer
os textos deste escritor como fonte de pesquisa acerca da história da literatura produzida no
Piauí. Os livros consultados pelo autor foram as antologias Caminheiros da Sensibilidade,
Mosaico e Antologia Poética Piauiense.
Ainda sobre Adrião Neto, em 2001 este publicou Literatura Piauiense para Estudantes,
livro didático destinado, como afirma o título, aos alunos em preparação para os exames
vestibulares. A proposta do livro era apresentar a periodização das correntes literárias
identificadas pelo autor, a saber, Neoclassicismo (1808-1866), Romantismo (1866-1917), Fase
Acadêmica ou Sincrética (1917-1940) e Modernismo, iniciado em 1940 contemplando os
seguintes movimentos culturais: Movimento Meridiano, Vanguardistas, O Clip, Geração
Mimeógrafo ou Geração 70. Cada periodização iniciava-se com a contextualização histórica,
referenciando temporalmente os acontecimentos que, segundo o autor, influenciaram as
práticas dos respectivos grupos. Na sequência apresenta-se a esquematização do estudo e os

564
ADRIÃO NETO. Escritores piauienses de todos os tempos: dicionário biográfico. Teresina: Gráfica e Editora
do Povo, 1993. p. 185.
256

destaques, tópico no qual se apresentavam os escritores que pertencem a este movimento. Para
os escritores de destaque, há comentários sobre suas obras, coletados pelo autor em jornais e
livros. O livro finaliza com apanhado das questões relativas à literatura piauiense presente nos
vestibulares de anos anteriores.
Diferente da publicação de 1993, J. Miguel de Matos não foi referenciado nesta obra e
não posso afirmar que esta exclusão decorre do fato de que ainda não havia sido listado para
questões de concursos seletivos posto que outros nesta mesma situação foram citados na
publicação. J. Miguel de Matos não foi listado entre os participantes de movimentos literários
tampouco como referência bibliográfica. Curiosamente, Herculano Moraes não apareceu nos
comentários acerca do Círculo Literário Piauiense, sendo citado apenas no final como jurado
na escolha das Dez Melhores Obras do Piauí, sondagem proposta por Isabel Cardoso,
colaboradora do jornal Alternativo reproduzida no livro e que aqui transcrevo

Embora pouco conhecida e divulgada, a produção literária piauiense é


bastante significativa, de boa qualidade, sendo objeto de estudo de
pesquisadores, estudantes e professores universitários. A bem da verdade, a
literatura piauiense se tornou muito mais conhecida entre os jovens quando a
Copeve e a Universidade Estadual fizeram sua inclusão nos exames de
vestibular. Hoje, qualquer estudante sabe citar pelo menos quais são os livros
e os autores piauienses mais importantes. Há duas semanas, a equipe do
Alternativo convidou professores, escritores e acadêmicos, pedindo a cada
um, uma relação dos dez melhores livros de autores piauienses. Diante de
tantas publicações, a escolha foi difícil para alguns jurados, mas o resultado
final não apresentou grandes surpresas. Na lista dos melhores estão os
escritores Mário Faustino, O.G. Rego de Carvalho, Da Costa e Silva, Torquato
Neto, Assis Brasil e outros. Há escritores que enviaram uma relação contendo
mais de dez obras. Então, isso demonstra a dificuldade que há para fazer uma
escolha entre os melhores da literatura piauiense. Na relação abaixo, a equipe
fez uma contagem e notificou os livros que foram mais citados na lista enviada
pelos professores, acadêmicos e pesquisadores.565

De acordo com a enquete, naquele momento, as obras mais lembradas pelos escritores
foram O Homem e Sua Hora, de Mário Faustino, Beira Rio Beira Vida, de Assis Brasil, Rio
Subterrâneo, O.G. Rego de Carvalho, Lira Sertaneja, Hermínio Castelo Branco, Zodíaco, de
Da Costa e Silva, Ataliba, o Vaqueiro, de Francisco Gil Castelo Branco, Tempo Consequente,
de H. Dobal, Um Manicaca, de Abdias Neves, Os Últimos Dias de Paupéria, de Torquato Neto,
Curral de Serras, de Alvina Gameiro. Foram chamados para compor o júri os professores
Wellington Soares, Cineas Santos, Maria do Socorro Rios Magalhaes e Luiz Romero, que
atuavam tanto no ensino básico ou superior. Os imortais Celso Barros e Herculano Moraes,
além dos jornalistas e literatos Aci Campelo, Chico Castro e Kenard Kruel. A função deste júri

565
ADRIÃO NETO. Literatura piauiense para estudantes. Teresina: Geração 70, 2001. p. 119.
257

era ordenar, a partir de suas preferências pessoais, as obras acima listadas. Os resultados foram
os mais diversos a depender, em especial das afinidades e filiações literárias dos avaliadores.
Do fragmento e das obras listadas podemos apreender alguns elementos: a necessidade
de afirmar que, embora pouco conhecida, a literatura aqui produzida tem qualidade, que sua
trajetória histórica fornece elementos para conhecer e pensar a sociedade piauiense. É a
continuidade de um discurso iniciado com João Pinheiro, que alia potencialidades e limitações,
discurso este que atravessou o tempo marcando a atuação dos escritores e as práticas das
instituições às quais pertenciam. O texto evidencia também como os vestibulares impactam na
construção de uma memória sobre os livros, os escritores e os movimentos literários piauienses.
Diante das dificuldades de se fazer emergir um público leitor para as obras de autores
piauienses, público este que estimularia editores, livreiros e escritores a continuar produzindo,
a obrigatoriedade do ensino de literatura piauiense e a presença de questões sobre esta nos
exames vestibulares garantiram aos estudantes um conhecimento mínimo sobre nossa
produção.
Conhecimento efetivamente mínimo posto que restrito a critérios de seleção que levam
em conta fatores variados, sobretudo ligados ao reconhecimento externo e a existência de obras
editadas e disponíveis para consumo. Têm-se aí critérios subjetivos posto que os alunos
precisariam lembrar de narrativas que lhe chamaram atenção para montar suas listas. Já os
professores, pesquisadores e imortais apresentaram lista mais com mais de dez escritores,
simbolizando assim que os textos literários piauienses são restritos aos grupos que os produzem
ou analisam profissionalmente. Demonstram seu grau de conhecimento sobre a literatura local
além de critérios objetivos e subjetivos para inserção de autores e obras. Nesse contexto, ao
selecionar as obras literárias para seu vestibular, a universidade atuava como instituição que
formatava junto aos estudantes um cânone específico.
J. Miguel de Matos não constou nesta lista, tampouco suas obras foram indicadas para
os exames vestibulares. A preferência deste por escrever perfis biográficos o afastou deste
público específico e, como discutirei no próximo tópico, impactou nas formas como este seria
lembrado e referenciado.
O imortal Wilson Carvalho Soares publicou três obras nas quais apresentava indivíduos
que, em sua perspectiva, são significativos para a história e literatura local. Em 1997, lançou
Grande Dicionário Histórico-Biográfico Piauiense, uma coletânea de perfis biográficos de
políticos, artistas plásticos, professores e literatos. No ano 2000, lançou Antologia da Academia
Piauiense de Letras, na qual apresentou os perfis biográficos de patronos e membros deste
sodalício e, em 2006, publicou Antologia de Poetas Piauienses dedicada a apresentar os
258

representantes deste gênero literário no Estado. Em todas as publicações, J. Miguel de Matos


foi referenciado, com ligeiras diferenças entre os textos.
No texto de 1997, assim J. Miguel de Matos foi apresentado:

MATOS, José Miguel de – Poeta, jornalista, antologista, biógrafo e


genealogista, nascido em Floriano a 29-09-1923. Pertence à Academia
Piauiense de Letras. Participou do Movimento de Renovação Cultural.
Membro efetivo do Instituto Histórico e Geográfico do Piauí. Ex-coordenador
do Instituto Histórico, Artístico e Arqueológico do Piauí. Fundou e dirigiu as
revistas “Mafrense” e “Destaque”. Cidadão Teresinense, título concedido pela
Câmara Municipal. Detentor da “Medalha de Guerra”, por ter colaborado na
2º Guerra Mundial. Laureado com o “Prêmio Abdias Neves” (Universidade
Federal do Piauí e Secretaria de Cultura do Estado), com o livro biográfico
“Evocação de Abdias neves”. Bibliografia: “Brás da Santinha”, novela
regionalista – duas edições; “Caminheiros da Sensibilidade”, em dois
volumes; “Antologia Poética Piauiense” – Rio de Janeiro, 1974; “Pisando os
Meus Caminhos”; “Síntese Biográfica da Literatura Piauiense” (1972);
“Perfis” – crítica literária; “Evocação de Abdias Neves” (1976); “Da Costa e
Sila, o Poeta da Saudade”; “Mosaicos” – esparsos; “Garimpagem”; “João
Pinheiro” (1994); “Martins Napoleão” (1994); “A Casa de Lucídio Freitas” e
“Genealogia da Família Moura Fé”. Inéditos: “Da Rua do Mulambo à
Academia Piauiense de Letras” e “Vida e Obra de Autores Piauienses”.566

Ao texto foi acrescido, à título de crítica literária, o seguinte comentário:

Além de sua afirmação pessoal como escritor de variados recursos e


luzimento, o Piauí tem a dever-lhe, como préstimo inestimável, a dedicação
continuada com que empenha inteligência, energia e tempo de ressaltar os
valores das letras piauienses – muitas vezes injustamente deslembrados e, não
raro, completamente desconhecidos. É essa rememoração da terra longínqua
e do tempo perdido, já muito difícil de reencontrar, que você, meu caro Matos,
me traz ao presente, com uma saudade de doer, mas que muito lhe agradeço
com uma primavera renascente – Acadêmico L.M. Ribeiro Gonçalves.567

Em relação aos trechos anteriores, o comentário de Wilson Carvalho Gonçalves é bem


mais simpático à trajetória de J. Miguel de Matos. O texto centra-se em sua atividade
escriturística distanciando-se das referências à sua vida pessoal e suas relações om outros
escritores. O comentário crítico destaca seu empenho em fazer conhecer os sujeitos que
construíram a literatura do Piauí. Pelos títulos apresentados, alguns dos quais não localizados
nem referenciados nas instituições em que pesquisamos, é possível perceber as principais
características de sua produção cultural: autor de textos biográficos, frutos de uma escrita única
e que reproduzida ad infinitum nos jornais com os quais colaborou e nos livros que publicou. J.
Miguel de Matos publicou muitos livros, contudo, há pouca inovação nos textos que reeditou,

566
GONÇALVES, Wilson de Carvalho. Grande dicionário histórico-biográfico piauiense: 1549-1997. Teresina:
[s. l.], 1997. p. 204.
567
GONÇALVES, 1997, p. 204.
259

sendo estes releituras ou reorganizações daquilo que já havia publicado em outros suportes.
Em Antologia da Academia Piauiense de Letras, publicado no ano 2000, o texto
biobibliográfico basicamente se repete, sendo apenas acrescido, no início, de uma fotografia de
J. Miguel de Matos e a referência “(1923-2000). Segundo ocupante da Cadeira nº 5, da APL”.568
Para valorizar a produção dos membros da instituição referenciada no título, nas páginas que
se seguem, Wilson Gonçalves reproduziu poema intitulado Soneto, uma crônica intitulada O
Natal do Menino Jesus569 e novamente o depoimento de Ribeiro Gonçalves. Já em Antologia
de Poetas Piauienses, o antologista é bem mais suscinto, sintetizando em pouquíssimas linhas
os dados pessoais e textos publicados pelo escritor perfilado.570 Ao final repete-se uma versão
poética do texto O Natal do Menino Jesus. O pouco destaque à investida poética de J. Miguel
de Matos é proporcional às suas produções nesta seara. Os textos de Wilson Carvalho
Gonçalves repetem a tática já utilizada pelo soldado-escritor: publicar vários livros nos quais
se repetem, com leves alterações, as mesmas informações.
Em 2001, Francisco Miguel de Moura lançou Literatura do Piauí, texto no qual o
escritor imortal, graduado em Letras, discute a produção literária do Estado. Dentre os textos
que fazem referência a J. Miguel de Matos citados até aqui, este foi o livro que mais se
aproximou de uma discussão teórica acerca dos conceitos de literatura, autor piauiense e
literatura piauiense. Os textos que compõem Literatura do Piauí começaram a ser publicados
nos jornais da cidade ao longo do ano de 1992. Em À Guisa de Explicação, o autor aponta que
o livro destina-se a professores e estudantes no qual se apresentam os autores consagrados e as
características do momento histórico-literário em que produziram seus textos.571
De modo geral, assim Francisco Miguel de Moura define os eixos norteadores de sua
obra: entende literatura como uma criação do espírito na qual se registram os sentimentos do
artista.572 Entende que o termo piauiense é um adjetivo que caracteriza aquilo que é produzido
no Piauí, independente da origem de seu autor. 573 Nesse sentido, a literatura piauiense é assim

568
GONÇALVES, Wilson de Carvalho. Antologia da Academia Piauiense de Letras. Teresina: Ed. do Autor,
2000. p. 317.
569
Na ausência de referência na obra de Wilson Gonçalves, destaco que o texto foi publicado originalmente na
edição do dia 25-26 de dezembro de 1973 do jornal O Estado, sendo o primeiro texto no qual J. Miguel de Matos
identifica-se como “da Academia Piauiense de Letras”.
570
GONÇALVES, Wilson de Carvalho. Antologia de poetas piauienses. Teresina: [s. l.], 2006.
571
MOURA, 2001, p. 9.
572
“[...] Assim compreendida, literatura é uma criação do espírito através do registro das emoções e sentimentos
pessoais do artista. É arte escrita em prosa de ficção ou em poesia e destina-se a “emocionar, divertir e ensinar”,
como nos ensinou Horácio. Muito mais expressa do que comunica. E a leitura silenciosa é a maneira essencial de
seu recebimento e fruição [...]” (MOURA, 2001, p. 17).
573
“[...] Autor piauiense é quem faz literatura no Estado, seja aqui nascido ou não, mas também aquele que, aqui
nascido e escrevendo sobre temas ligados à terra, aos costumes e falares piauienses [...]” (MOURA, 2001, p. 18).
260

definida

[...] literatura piauiense são a poesia, a ficção e a peça teatral (enquanto não
representada) feitas nos Piauí ou não, por piauienses natos ou não, glosando
temas, modos de ser e costumes piauienses, seu folclore, seu ser social, enfim,
o registro de emoções em nosso “subdialeto” ou no dialeto nordestino.574

Após estas definições, o autor discorre sobre as relações entre história e literatura, a
partir da qual estabelece sua periodização para a trajetória histórica da literatura piauiense,
subdividindo-a em cinco gerações, com marcos temporais não muito rígidos. Na leitura de
Francisco Miguel de Moura, a produção literária local tem a Primeira Geração, seguida de uma
Geração Acadêmica, a Segunda Geração Acadêmica, o Período Quase Vazio e o Modernismo,
no interior do qual atuam os grupos Meridiano, CLIP e Marginal. Ao discorrer sobre estas
subdivisões, o autor apresenta autores e trechos de obras que considera representativas de sua
produção.
Embora seja um escritor piauiense, encaixando-se na definição apresentada pelo autor,
J. Miguel de Matos não foi inserido em nenhuma geração ou grupo literário, muito embora seu
nome apareça de várias maneiras ao longo do texto. Suas antologias foram consultadas e
referenciadas pelo autor. Sem inserir J. Miguel de Matos no contexto literário local, duas
referências textuais indicam claramente, que o soldado-escritor era atuante no meio cultural
piauiense. Ao discorrer sobre a Geração Meridiano, Francisco Miguel de Moura destaca a
influência do imortal Raimundo Nonato Monteiro de Santana para os escritores que lhe eram
contemporâneos e afirma

[...] um divulgador da estirpe de Raimundo Nonato Monteiro de Santana [...]


funda o “Movimento de Renovação Cultural” (1957/1960), publicando os
historiadores Odilon Nunes e Mons. Chaves, na “Revista Econômica”, além
dos seus próprios trabalhos de pesquisa, e incentivando os que surgiam na área
propriamente literária: J. Miguel de Matos, A. Sampaio, Pedro Celestino e
tantos outros.575

Em uma segunda referência, ao discutir o papel da crítica literária no Piauí, o autor


aponta aqueles que se destacaram na produção de antologias. Sem falsa modéstia, refere-se a si
mesmo ao rememorar as suspeitas que recaíram sobre a autoria de seu livro Linguagem e
Comunicação em O.G. Rego de Carvalho,576 apresenta as produções de seus companheiros de

574
MOURA, 2001, p. 19.
575
MOURA, 2001, p. 183.
576
“[...] Talvez, por esta razão, quando circulou Linguagem e Comunicação em O.G. Rego de Carvalho, 1972, de
autoria de Francisco Miguel de Moura, então aluno da Faculdade Católica de Filosofia do Piauí, houve um certo
rebulício na intelectualidade local. O livro foi um marco avançado, a julgar pelos aplausos que o crítico e o autor
da obra estudada receberam através da imprensa local e do sul do país [...]” (MOURA, 2001, p. 210).
261

Círculo Literário Piauiense (CLIP) e diz sobre J. Miguel de Matos:

Porém antes, nos anos 60, J. Miguel de matos também fez interessante
levantamento crítico e de divulgação dos poetas e da poesia piauiense, numa
obra denominada Caminheiro da Sensibilidade (2 volumes, 1966/1967),
seguida da Antologia Poética Piauiense, 1974.577

Mesmo que não tivéssemos informações acerca das relações pessoais entre o autor da
obra e J. Miguel de Matos, os fragmentos evidenciam que Francisco Miguel de Moura conhece
a trajetória escriturística de J. Miguel de Matos, conhece e compreende o sentido de seus textos,
então, porque este escritor não foi inserido no contexto das gerações literárias? Em capítulo
anterior, destacamos os elogios que Francisco Miguel de Moura fez a Brás da Santinha quando
esta foi lançada no Piauí. Quando os clipianos convidaram J. Miguel de Matos para a solenidade
de fundação de sua agremiação literária, este chamamento refletia um reconhecimento sobre a
atuação cultural deste sujeito. Nesse sentido, entendemos o livro Literatura do Piauí como um
lugar de memória revelador das relações travadas por estes sujeitos. Embora houvesse o
reconhecimento de suas práticas, este foi embotando-se ao longo das polêmicas nas quais estes
tomaram partido em lados contrários. O não-lugar de J. Miguel de Matos nesta obra revela que
a escrita de manuais, dicionários e antologias são atravessadas pelas informações que julgam
importante serem divulgadas, ou não, e pela sociabilidade vivenciada pelos sujeitos nos
momentos de escrita.
O último e mais recente texto que faz referência a J. Miguel de Matos é uma publicação
da própria Academia Piauiense de Letras, alusiva ao seu primeiro centenário. Considero este
perfil biográfico como uma síntese dos processos de referência a este escritor que,
gradativamente foi migrando da posição de sujeito que inspirava admiração e rejeição, em igual
medida, para alguém sobre quem se fala de maneira polida, respeitosa e distante:

2º ocupante: José Miguel de Matos (1923-2000). Nasceu em Floriano-PI e


faleceu em Teresina-PI. Posse na APL: 18.12.1923. Poeta, jornalista,
antologista, biógrafo e genealogista. Cidadão Teresinense. Fundou e dirigiu
as revistas Mafrense e Destaque. Participou do Movimento de Renovação
Cultural. Membro efetivo do Instituto Histórico e Geográfico do Piauí.
Detentor da Medalha da Guerra, por ter colaborado na 2º Guerra Mundial.
Livros publicados: Vocação de Abdias Neves, Brás da Santinha, Caminheiros
da Sensibilidade.578

O texto é a cristalização da sua imagem como escritor e imortal. Não se discute mais se
é escritor piauiense ou não, o que pode significar a irrelevância ou superação deste falso debate.

577
MOURA, 2001, p. 211.
578
SOARES, 2017, p. 91.
262

Ao longo dos anos, as referências a este indivíduo foram perdendo o aspecto apaixonado,
provocador ou vingativo estabelecendo-se, em seu lugar, a simples referência às suas produções
e atuações no cenário cultural local. Enquanto pôde, J. Miguel de Matos investiu contra aquilo
que era dito sobre ele, sobretudo quando não se compatibilizavam com a imagem que este
queria que se perpetuasse sobre si. Aos poucos passou-se a se investir não em sua qualificação
ou desqualificação, mas em com sua trajetória poderia ajudar a construir a própria imagem da
Academia Piauiense de Letras. Se, nesse tópico, vimos como o escritor J. Miguel de Matos foi
inserido no seio da literatura piauiense, nas próximas páginas analisaremos como as relações
pessoais que travou com seus contemporâneos contribuem para a imagem e memória que se
têm dele na atualidade.

5.2 J. Miguel de Matos e seus contemporâneos

Em História das Emoções, Bárbara Rosenwein propõe que as trajetórias e interações


entre os indivíduos sejam compreendidas à luz das comunidades emocionais por eles tecidas a
partir de suas experiências sociais. Na obra, a autora apresenta um pequeno roteiro com
procedimentos que devem ser observados a fim de delinear estas comunidades. Sugere que os
pesquisadores reúnam dossiês com fontes relativas a cada emoção identificada nos sujeitos e
grupos analisados, que se observem as formas como as emoções são nomeadas, entendidas e
quais seus impactos nos contextos em que se apresentam e chama atenção para a leitura dos
silêncios, uso de metáforas e ironias. A partir destes procedimentos, a autora assim define as
comunidades emocionais

Comunidades emocionais são fundamentalmente o mesmo que comunidades


sociais – famílias, bairros, sindicatos, instituições acadêmicas, conventos,
fábricas, pelotões, cortes principescas. Mas o pesquisador que se debruça
sobre elas procura, acima de tudo, desvendar os sistemas de sentimento,
estabelecer o que essas comunidades (e os indivíduos em seu interior) definem
e julgam como valoroso ou prejudicial para si (pois é sobre isso que as pessoas
expressam emoções); as emoções que eles valorizam, desvalorizam ou
ignoram; a natureza dos laços afetivos entre pessoas que eles reconhecem; e
os modos de expressão emocional que eles pressupõem, encorajam, toleram e
deploram.579

A metodologia proposta por Bárbara Rosenwein nos ajuda a identificar comunidades


emocionais forjadas entre literatos, jornalistas, intelectuais e agentes culturais no meio cultural
piauiense entre as décadas de 1960 a 2000. As relações entre os indivíduos, grupos e instituições
e destes com o poder público produzem uma história social e cultural das práticas de letrados e

579
ROSENWEIN, 2011, p. 21.
263

intelectuais. Estas interações se transformam em sociabilidades, parcerias, defesas de projetos


em comum além de rivalidades, sobretudo quando o que se está em jogo são os escassos
recursos públicos e possibilidades de reconhecimento e distinção.
A trajetória de J. Miguel de Matos pode ser entendida à luz das comunidades emocionais
nas quais esteve inserido. Sua atuação na imprensa, no mercado editorial, com o mecenato
público, com as instituições públicas e privadas produziu neste sujeito e em seus
contemporâneos expectativas e ambições, desejos e frustrações, afetos e rivalidades. Estas
interações constituem sua identidade e pautam as formas como os indivíduos e grupos sociais
compreendem suas práticas. A memória coletiva sobre este indivíduo construiu-se como
resultado de suas ações, dos afetos e das reações que produziu naqueles que com conviveu.
Neste texto, já expusemos como as emoções de J. Miguel de Matos são evidenciadas
em seus escritos. As amizades, os desejos de distinção, as tentativas de intervir no que se dizia
sobre si, as reações por vezes exageradas diante das críticas constroem nele a ideia de que é
injustiçado, incompreendido, uma vítima de poderosos e invejosos que querem diminuir a
importância de suas práticas. O soldado-escritor utiliza-se destes elementos para cultivar um
ressentimento deliberado em relação a seus contemporâneos, um ressentimento acessado nos
momentos em que precisou posicionar-se diante das referências ao seu nome. Contudo, ao
cultivar ressentimentos acaba por produzir rancores em seus contemporâneos. Estes reagem a
seus comportamentos com comentários irônicos, desqualificadores e, às vezes, com silêncios,
tentando assim, obscurecer o lugar social que ocupava. Do mesmo modo que há aqueles que o
respeitam e valorizam suas ações, há um conjunto significativo de indivíduos inconformados
com a projeção que conseguiu alcançar e, tanto no passado quanto no presente, ainda há aqueles
que contribuem para o silenciamento em torno de suas práticas.
Neste tópico, analiso as relações de J. Miguel de Matos com seus contemporâneos,
muitos dos quais acabaram tornando-se imortais da Academia Piauiense de Letras, a fim de
entender a ausência de investimentos na construção e perpetuação de uma memória em torno
de sua atuação cultural. Esta análise será feita em três perspectivas: buscando entender como o
grupo cultural ao qual J. Miguel de Matos dizia estar filiado construiu a memória de suas
práticas e das ações de seus membros, retomando narrativas acerca das relações de J. Miguel
de Matos com os integrantes do Círculo Literário Piauiense e da Academia Piauiense de Letras
e refletindo sobre como a prática escriturística de J. Miguel de Matos foi acolhida no passado e
é significada no presente a partir da Coleção Centenário, projeto editorial que formata outro
modelo de cânone literário para o Piauí, a partir do investimento em produções de alguns
escritores imortais.
264

Os perfis biográficos produzidos sobre J. Miguel de Matos apontam sua filiação ao


Movimento de Renovação Cultural (MRC), grupo que, ao longo da década de 1960, promoveu
a publicação de textos relativos à história, geografia, literatura e folclore piauiense. Vários
intelectuais faziam parte deste grupo,580 contudo, seus principais representantes são o
economista Raimundo Nonato Monteiro de Santana, o professor Odilon Nunes e o sacerdote
Joaquim Chaves. As destacadas pesquisas e os textos destes indivíduos lhes garantiram o
ingresso na Academia Piauiense de Letras, em especial, na fase da expansão do quadro de
imortais em 1967. Ao discorrer sobre grupos e instituições que formataram a historiografia
piauiense, os pesquisadores costumam afirmar que o Centro de Estudos Piauienses (CEP),
atuante na década de 1950 e o Movimento de Renovação Cultural que emerge na década de
1960 foram responsáveis por fomentar e divulgar as pesquisas sobre a realidade piauiense. 581
Os dois movimentos são apresentados como distintos, porém, considerando que eram formados
basicamente pelos mesmos membros, que tinham objetivos semelhantes, que utilizavam
estratégias similares para publicar e divulgar suas obras, os identifico como etapas de um único
movimento que, como o nome indica, buscava movimentar e renovar produção cultural do
Estado.
Na década de 1950, a Academia Piauiense de Letras era a única instituição
representativa da cultura estadual, e não por sua atuação efetiva mas pela inusitada longevidade.
As dificuldades apontadas pelo presidente Simplício de Sousa Mendes em mobilizar os
acadêmicos para reuniões e de convencê-los, minimamente, a tomar posse já evidenciam a
apatia do cenário cultural piauiense. Nos anos anteriores, grupos de jovens universitários
fundaram agremiações literárias tais como a Arcádia Teresinense, o Clube dos Novos e o
Meridiano,582 movimentos autodeclarados antiacadêmicos. Outra iniciativa para dinamizar a
produção cultural foi a fundação do Centro de Estudos Piauienses, no qual jovens pesquisadores
dedicaram-se a divulgar por meio de livros, conferências e programas de rádio seus estudos

580
São apontados como membros do Movimento de Renovação Cultural: Raimundo Nonato Monteiro de Santana,
Odilon Nunes, Joaquim Chaves, José Camilo da Silveira Filho, José Miguel de Matos, Artur Passos, Pedro
Celestino, Raimundo José dos Reis, José Ribeiro e Silva e Maria Nerina Castelo Branco.
581
Entre estas pesquisas acerca da historiografia piauiense, destaco a dissertação de Iara Guerra intitulada
Historiografia Piauiense: relações entre escrita histórica e instituições político-culturais. Cf.: GUERRA, Iara.
Historiografia piauiense: relações entre escrita histórica e instituições político-culturais. Teresina: Fundação
Cultural Monsenhor Chaves, 2015.
582
Em entrevista a Áurea Queiroz, Manoel Paulo Nunes lista os participantes destes movimentos: José Maria
Soares, Hindemburgo Dobal, Eustáchio Portela Filho, Vitor Gonçalves, Arnaldo Victor de Pinho, Edmar Santana,
O.G. Rego de Carvalho, Afonso Ligório, Clóvis Moura, Celso Barros Coelho. A Arcádia Teresinense surgiu em
1944 reunindo indivíduos dispostos à discussão literária e que fundaram o jornal O Alternativo para difundir suas
ideias. Em 1946, fundou-se o Clube dos Novos, destacado por publicar o primeiro manifesto antiacadêmico do
Piauí. Em 1949, surgiu o Meridiano, responsável pela publicação de Cadernos de Letras Meridiano.
265

sobre a realidade econômica do Estado. Suas práticas pautavam-se em “pesquisar e escrever


sobre assuntos piauienses, de modo a revelar o que ainda era inédito ou aprofundando aquilo
que já se sabia”.583
Diante das dificuldades para desenvolver pesquisas e editar livros, o Centro de Estudos
Piauienses perdeu forças ao longo dos anos e, no início da década de 1960, Raimundo Santana
articulou-se a novos agentes culturais e encabeçou a fundação do Movimento de Renovação
Cultural, também voltado à promoção cultural e publicação de obras relativas à história e à
literatura local. As ações do Centro de Estudos Piauiense eram mais amplas e centravam-se na
realização de palestras nos vários municípios e na edição da revista Econômica Piauiense. O
Movimento de Renovação Cultural empenhou-se também na captação de recursos públicos e
privados para publicação de pesquisas fundantes para a historiografia piauiense. Nesta década
foram publicados, entre outros, Súmula de História do Piauí e Pesquisas para a História do
Piauí, de Odilon Nunes, Evolução Histórica da Economia Piauiense, de Raimundo Santana,
Folclore Piauiense, de Artur Passos e Poesias Modernas, de Nerina Castelo Branco. Nestas
obras, são discutidas as consequências políticas e econômicas da colonização deste território, a
ação da Igreja Católica neste processo, as características da escravidão, além de temas relativos
ao folclore e a cultura local.
Seus esforços direcionavam-se para a divulgação das potencialidades e limitações
históricas do povo piauiense e não para o investimento na construção de uma identidade para o
grupo. Nestes grupos, eram aceitos aqueles que se interessavam pelo desenvolvimento e
modernização do Piauí. A formação universitária não era um pré-requisito, porém ter essa
formação, atuar no magistério, pesquisar e publicar livros sobre o Piauí entrelaçam suas
trajetórias. Diferente de outros movimentos culturais do Piauí, no qual um ou mais integrantes
tomaram para si a responsabilidade de biografar ou constantemente divulgar e rememorar as
práticas e ações do grupo, os membros do Centro de Estudos Piauienses e Movimento de
Renovação não publicaram, no passado e no presente, textos em que narram as atividades dessas
agremiações, de suas práticas enquanto grupo.
J. Miguel de Matos não residia em Teresina quando o Centro de Estudos Piauienses
desenvolveu suas atividades. Ao retornar à capital piauiense no início da década de 1960, o
soldado-escritor inseriu-se nas atividades culturais do Estado. Tornou-se colaborador na
imprensa, editou revistas e aproximou-se dos indivíduos que compunham o Movimento de
Renovação Cultural. Em outros momentos já apresentamos como J. Miguel de Matos se

583
SANTANA, Raimundo Nonato Monteiro de. A propósito de uma apresentação. In: CHAVES, Joaquim
(Mons). Apontamentos biográficos e outros. Teresina: Fundação Cultural Monsenhor Chaves, 1994. p. 5.
266

relacionou, individualmente, com alguns membros deste grupo. Monsenhor Joaquim Chaves
foi seu professor no Liceu Piauiense. Com Nerina Castelo Branco trocou elogios e críticas, em
especial estas últimas quando a escritora não apoiou sua candidatura à Academia Piauiense de
Letras. Odilon Nunes votou favorável ao seu ingresso na Casa de Lucídio Freitas. Entre as
poucas referências à sua atuação cultural listadas em Literatura do Piauí o escritor Francisco
Miguel de Moura o apresentou como alguém que foi incentivado por Raimundo Santana,
destacando a relevância de suas antologias. As fontes pesquisadas nos mostram, inclusive, que
um dos volumes de suas antologias foi confeccionado por editora ligada ao Movimento de
Renovação Cultural.584
Não conseguimos identificar se e como J. Miguel de Matos colaborou de maneira efetiva
para as ações deste movimento cultural. O que sabemos é que, já em suas primeiras
colaborações na imprensa piauiense, este utiliza o distintivo “do Movimento de Renovação
Cultural”, o qual vai sendo substituído por outras filiações tais como “do Instituto Histórico do
Piauí” e “da Academia Piauiense de Letras”. Não identificamos se houveram contestações a
esta filiação por parte daqueles que são constantemente listados como pertencentes a este.
Contudo, tendo em vista os objetivos do grupo, a saber, a necessidade de ação conjunta e
articulada em prol do desenvolvimento cultural do Estado, acredito que não houve relutância à
sua identificação. Por outro lado, percebemos que os textos produzidos por J. Miguel de Matos
não se articulam às temáticas estimuladas pelo Movimento de Renovação Cultural, salvo os
textos iniciais da série Grandes Problemas da Cidade, na qual o escritor denuncia e pede
soluções para os problemas cotidianos de Teresina. Analisando o conjunto da produção deste
indivíduo, percebemos que, enquanto o Movimento de Renovação Cultural seguia uma
perspectiva editorial, promovendo publicações que discutiam os desafios do desenvolvimento
local, J. Miguel de Matos ocupava-se da construção de sua imagem e de suas redes de
sociabilidades a partir da produção de perfis biográficos.
A despeito de como se processou a participação de J. Miguel de Matos nas atividades
do Movimento de Renovação Cultural, todos os perfis biográficos elaborados sobre o soldado-
escritor afirmam que este fez parte deste movimento. O primeiro a fazê-lo foi Herculano Moraes
e aqui convém destacar que a associação de J. Miguel de Matos a este movimento funciona
como um elemento de desqualificação de sua atuação cultural. Isto porque, um dos discursos
que legitimam o surgimento do Círculo Literário Piauiense, fundado na segunda metade da

584
“[...] Sairá já em setembro o segundo volume da antologia “Caminheiros da sensibilidade”, de autoria do escritor
J. Miguel de Matos. O livro será lançado pelo Movimento de Renovação Cultural, liderado pelo Prof. Raimundo
Santana, sob a etiqueta de Edições DESTAQUE [...]” (O DIA. Teresina, p. 8, 8 jul. 1967).
267

década de 1960 por Herculano Moraes, remete à necessidade de superação da indiferença com
a qual a cultura piauiense estava sendo tratada. Ora, se, apesar das dificuldades as agremiações
lideradas por Raimundo Santana buscavam justamente dinamizar as práticas culturais e
estimular as pesquisas sobre a realidade piauiense, nesta linha do tempo, o Círculo Literário
Piauiense não seria inovador mas apenas mais um grupo a tentar movimentar a cultural.
Na tentativa de construir uma memória para seu grupo, cravar a diferença entre os
clipianos e aqueles que os antecederam, Herculano Moraes afirmou, à época, que o Movimento
de Renovação Cultural não promoveu alterações profundas no panorama cultural piauiense. A
inverdade da afirmação esconde disputas entre os homens de letras e os movimentos em busca
do protagonismo e distinção social para si, seus confrades e seu grupo. Quando em A Nova
Literatura Piauiense afirma que o Círculo Literário Piauiense veio para “destruir o formalismo
das concepções literárias do fechadíssimo grupo do Movimento de Renovação Cultural, [cujos
integrantes possuíam] iniciativas individualistas [os quais acreditavam] na possibilidade de
criar o novo”,585 Herculano Moraes qualifica o Movimento de Renovação Cultural como um
grupo fechado, cujos integrantes estavam mais preocupados com suas carreiras individuais do
que com os rumos da cultura no Estado.
Comentários como este devem ser entendidos à luz dos jogos de poder travados entre
homens de letras e agremiações literárias e nas tentativas de construção da imagem de um grupo
em detrimento das iniciativas de outro. Michel Pollak destaca o papel da memória na construção
das identidades de um grupo. Em um cenário cultural marcado pela dependência do mecenato
estatal e carente de um mercado consumidor, apontar divergências, expor contradições e
limitações, funcionam no interior dos discursos, como tática para valorização de uns em
detrimento de outros. Lido no presente, o comentário de Herculano Moraes desconsidera as
aptidões desses sujeitos para atuar fora do Estado e seus desejos individuais de promoção e
reconhecimento profissional. Exemplo disso é a trajetória de Raimundo Santana que migrou
para Brasília a fim de trabalhar na Superintendência de Desenvolvimento do Nordeste
(SUDENE) e como docente na Universidade de Brasília (UnB). O posicionamento de
Herculano Moraes coaduna-se com comentário feito décadas mais tarde por Pedro Celestino,
um dos membros do Movimento de Renovação Cultural que afirmou “acabou cedo sem
ninguém saber por que acabou, parece que cada [membro] arribou [...] Eu achei muita fraqueza
do Santana ter abandonado aquilo, ele era o cabeça”.586 Posicionamentos como este mostram
que estranhamentos e disputas internas estão presentes também na trajetória deste movimento

585
MORAES, Herculano. A nova literatura piauiense. Teresina: COMEPI, 1975. p. 19-20.
586
ENTREVISTA: Pedro Celestino de Barros. Cadernos de Teresina, Teresina, ano 8, n. 18, p. 32-36, dez. 1994.
268

cultural.
O comentário explicita a dependência do Movimento de Renovação Cultural em relação
às iniciativas de Raimundo Santana. Expõe ainda o ressentimento de Pedro Celestino que,
décadas após o fim do movimento, ainda não havia assimilado a descontinuidade das ações do
grupo. Em Visão Histórica da Literatura Piauiense, lançado em 1976, Herculano Moraes mais
uma vez criticou o Movimento de Renovação Cultural ao dizer

Foi uma geração que nasceu no século XX, viveu os mais tensos instantes de
afirmação política e social do mundo, se integrou definitivamente na luta
diária pela mudança das coisas desgastadas, pela renovação dos valores já
envelhecidos [...] Alcançou o que queria. Atingiu seus objetivos. E sua
contribuição só não foi maior devido à própria corrida humana pela
sobrevivência diária. Os advogados tomaram assento nas tribunas jurídicas,
os dentistas foram tratar os dentes de sua clientela, os médicos foram curar os
doentes.587

Inserir J. Miguel de Matos em um movimento que, embora exitoso, sucumbiu diante da


necessidade de sobrevivência material de seus integrantes é uma forma de associá-lo a um
movimento que teve alcance limitado. Associar o investimento destes em suas vidas
profissionais a um egoísmo, é tentativa de diminuir o valor das conquistas alcançadas. O
desmantelamento do grupo foi entendido como um sinal de fraqueza do movimento em si e
daqueles que o compunham.
Quando em 2019, Visão Histórica da Literatura Piauiense ganhou edição póstuma, a
forma como o imortal Herculano Moraes remeteu-se às ações do Movimento de Renovação
Cultural, em especial às iniciativas de Raimundo Santana, ex-presidente da Academia Piauiense
de Letras, destacado editor e recém-falecido ganharam novo olhar.588 A convivência acadêmica
ao longo dos anos ressignificou os posicionamentos. Embora distintos entre si, forjou-se a ideia
de complementaridade entre estes, em postura que favorece a imagem da Casa de Lucídio
Freitas. Esta emerge como espaço de encontro dos grupos e sujeitos que atuam em prol do
desenvolvimento das pesquisas e das escritas sobre a cultura e realidade política, econômica e
social piauiense.
O investimento empreendido por Herculano Moraes, ao longo das décadas de 1960 e
1970, contra a imagem do Movimento de Renovação Cultural impacta direta ou indiretamente,

587
MORAES, 1976, p. 81.
588
“[...] O Movimento de Renovação Cultural, criado neste período, fomentou ampla discussão dos problemas
regionais e propiciou a publicação de algumas teses sobre o desenvolvimento do Piauí e o surgimento e
consequente afirmação de alguns valores intelectuais, dentre os quais Camilo Filho, J. Miguel de Matos, Pedro
Celestino de Barros, José Ribeiro e Silva, Raimundo José Reis, Nerina Castelo Branco. Nem todos, é certo, se
filiaram ao movimento, mas ingressaram em seu contexto [...]” (MORAES, 2019, p. 223).
269

na construção social acerca de J. Miguel de Matos. Outras interações entre o soldado-escritor


e os membros do Círculo Literário Piauiense também interferem nas formas como sua trajetória
é entendida atualmente, isso porque Herculano Moraes e Francisco Miguel de Moura foram se
constituindo ao longo dos anos como indivíduos legitimados para a construção de discursos
sobre a trajetória histórica da literatura piauiense. Suas longas atuações em movimento
literários, o relativo trânsito que possue(ia)m nas redações de jornais, os projetos editoriais que
desenvolveram junto ao poder público, as muitas reedições de suas obras, suas ações na
diretoria da União Brasileira de Escritores – secção Piauí e da Academia Piauiense de Letras e
suas influências na criação de agremiações literárias em outras cidades do Estado,
transformaram-nos em vozes credenciadas do debate sobre a cultura local. Constar em seus
livros, e sobretudo, a forma como as trajetórias dos homens de letras são apresentadas em suas
narrativas contribuem, no curto e médio prazo, para construção e legitimação de memórias em
torno destes indivíduos.
Em outros momentos, fiz referência às formas como antologias e manuais de literatura
podem ser entendidos como espaços de memória. As informações que estes apresentam
produzem, por um lado reconhecimento, aceitação e legitimidade à sujeitos, grupos e
instituições. Por outro lado, o esquecimento, a referência incorreta, o comentário irônico podem
produzir deslegitimações que são aprofundadas quanto maior é o alcance destas obras.
Entendida como um instrumento de poder em disputa entre os grupos sociais, as memórias
construídas a partir das antologias, ao referenciar ou excluir fatos e sujeitos transformam-se em
um ato político atravessado por afetos, ressentimentos e interesses. Se auto proclamam-se como
frutos de pesquisas em arquivos, o que justifica a negligência em relação às práticas de sujeitos
que, sabidamente, participaram das atividades culturais? Se são relatos memorialísticos da
atuação dos sujeitos e grupos, o que explica o silenciamento em relação a parceiros e
contemporâneos?
Os estudiosos da memória em perspectiva histórica, em especial Jacques Le Goff,
Michel Pollak e Paul Ricouer destacam que os atos de lembrar e esquecer, em seus aspectos
neurológicos, identitários, instrumento de construção das comunidades emocionais e como ato
político são perpassados por limitações e/ou escolhas deliberadas. A memória humana é finita
e, a depender dos traumas ou dos afetos que promovem nos indivíduos, produzem seleções,
enquadramentos ou esquecimentos deliberados. Quando observamos que os membros do
Círculo Literário Piauiense escolheram minimizar a atuação de J. Miguel de Matos, um agente
cultural com quem comprovadamente interagiram e desenvolveram projetos em comum,
verifica-se aí um abuso, um esquecimento deliberado, manipulado posto que
270

A falta excessiva de memória [...] pode ser classificada como esquecimento


passivo, na medida em que pode parecer como um déficit do trabalho de
memória. Mas, enquanto estratégia de evitação, de esquiva, de fuga, trata-se
de uma forma ambígua, ativa tanto quanto passiva, de esquecimento.
Enquanto ativo, esse esquecimento acarreta o mesmo tipo de responsabilidade
que a imputada aos atos de negligência, de omissão, de imprudência, de
imprevidência, em todas as situações de não-agir, as quais, posteriormente,
uma consciência esclarecida e honesta reconhece que se devia e se podia saber
ou pelo menos buscar saber, que se devia e se podia intervir.589

Quando as obras de Herculano Moraes e Francisco Miguel de Moura se apresentam


como frutos de pesquisa séria e resultantes das vivências culturais de seus autores, cabe-nos
questionar a qualidade e relevância de textos que silenciam ou atribuem sentidos alternativos
às práticas de sujeitos e grupos culturais. Se ocorreram sociabilidades entre os autores e J.
Miguel de Matos, se este é citado – embora não inserido efetivamente em grupos literários,
entendemos que os silenciamentos em relação à sua trajetória indicam que estas obras
cristalizam a existência de uma comunidade emocional na qual os indivíduos são inseridos a
partir das relações travadas com seus produtores. Apresento, a seguir, outros aspectos das
relações entre J. Miguel de Matos e os membros do Círculo Literário Piauiense. Neste primeiro
momento, apresentarei suas relações com Hardi Filho, aquele que, da trindade clipiana, foi o
único a não produzir textos acerca da historicidade da literatura piauiense.
Os jornais das décadas de 1960 e 1970 apresentam várias interações entre Hardi Filho e
o escritor J. Miguel de Matos. Em 1967, o destacado poeta o presenteou com Soneto publicado
no jornal O Dia, no qual suas trajetórias de dificuldades e embates contra “barões e duques”
são assemelhadas.590 Em 1969, Hardi Filho fez parte da comitiva na qual o soldado-escritor fez
o lançamento, em Floriano, de Pisando Os Meus Caminhos.591 Em 1971, J. Miguel de Matos
não poupou elogios à Gruta Iluminada, texto de Hardi Filho.592 Nas ocasiões em que
candidatou-se à Academia Piauiense de Letras, Hardi Filho o apoiou e inseriu-se no debate
sobre a ausência de escritores naquela instituição.593 É mais do que evidente as sociabilidades

589
RICOEUR, 2010.
590
“[...] Felizes os plebeus! Menosprezados, / diminuídos por barões e duques / assoberbados dentro dos estuques
/ de seus castelos de brasões doirados. / Nós possuímos cá a nossa estufa / para aquecer o pão de dois cruzados...
/ Felizes nós, plebeus! Eles (coitados!) / usam veludos que a nobreza atufa! / Feliz aquele que entre os seus labores,
/ entre palmas, desprezos, dissabores, / para que a fonte do humor não seque, / recorda os dias que o passado
encobre, / revê seus tempos de criança pobre / e ainda se lembra que já foi moleque. [...]. Teresina – 31 – 12 – 66”
(HARDI FILHO, Francisco. Soneto para J. Miguel de Matos. O Dia, Teresina, p. 4, 10 jan. 1967.
591
TITO FILHO, A. Caderno de anotações. Jornal do Piauí, Teresina, p. 2, 25 jul. 1967.
592
Meticuloso, erudito, emotivo, lúcido, intérprete arguto da poesia são adjetivos que constam no comentário
crítico que J. Miguel de Matos elaborou sobre Gruta Iluminada, de Hardi Filho. Cf.: TITO FILHO, A. Caderno
de anotações. Jornal do Piauí, Teresina, p. 2, 27 jan. 1971.
593
“[...] Uma parada difícil de ser entendida e preenchida as três vagas existentes em nossa Academia Piauiense
de Letras. Até o momento só a cadeira nº 16 está considerada vaga conforme o regimento da instituição. Os jornais
e as fofocas intelectuais da cidade apontam o nome de três ases, des. Edgard Nogueira, Miguel de Matos e
271

e parcerias literárias entre ambos. Situação que se inverteu em 1974, logo nos primeiros dias da
imortalidade de J. Miguel de Matos. Neste momento, Hardi Filho lançava Poesia e Dor, obra
na qual discutia a produção poética de Celso Pinheiro, imortal fundador da Academia Piauiense
de Letras. Quando a imprensa repercutia o lançamento da obra, J. Miguel de Matos escreveu
um artigo criticando as escolhas do autor e acusando-o de tentar minimizar sua importância na
produção de críticas literárias.
A crítica de J. Miguel de Matos pautou-se em duas frentes: apontar os erros e omissões
do autor e acusá-lo de não valorizar a amizade travada entre ambos. Diz que que Hardi Filho
errou ao afirmar que Celso Pinheiro era o mais esquecido dos autores piauienses. Para sustentar
seu argumento, afirma que, no segundo volume de Caminheiros da Sensibilidade, já havia
dedicado várias páginas à biografia e crítica sobre a produção daquele escritor. Por fim, apontou
que Hardi Filho foi desonesto ao utilizar, sem fazer as devidas referências, os argumentos sobre
Celso Pinheiro já expostos em sua obra de 1967, e disse

[...] o senhor HARDI FILHO costumava ler, ao microfone da Rádio Clube de


Teresina (hoje TV Rádio Clube – canal 4), aos sábados, em um programa
literário que ali mantinha, capítulos inteiros do meu livro “CAMINHEIROS
DA SENSIBILIDADE”(2° volume), sem citar a fonte e o nome do autor, fato
que eu poderia julgar uma mera omissão não fosse agora, com o lançamento
de seu último livro em prosa – “poesia e DOR”, o seu novo alheamento a uma
obra de minha autoria em que falo – muito antes dele – batendo na tecla da
mesma argumentação crítico-biográfica, da poesia e do poeta CELSO
PINHEIRO [...] , mesmo tendo o livro na sua estante, não levou em
consideração, ou fez como o pior cego: não viu porque não quis! De qualquer
forma, é válida a iniciativa do senhor HARDI FILHO no sentido meramente
cultural, pois nada mostra de novo na musa conhecida e admirada de CELSO
PINHEIRO.594

Além de acusar Hardi Filho de ser “crítico de supetão”, J. Miguel de Matos o apresentou
como mau amigo, acusando-o de repetir, no momento do lançamento, o que havia feito ao longo
da obra: omitir seu nome “como se para ele, por razões que ainda não cheguei a atinar, eu
praticamente não existisse”.595 Ressente-se sobretudo porque, segundo ele, o havia apresentado
muito bem em perfil biográfico publicado no primeiro volume de Caminheiros da Sensibilidade
– o que reforça nosso argumento de que, J. Miguel de Matos utilizava-se da escrita para
promover a si e suas afinidades. Diante da repercussão do livro que ora se lançava, o novo
imortal exigia reconhecimento de seus argumentos ou, que no mínimo, tivesse seu nome listado

Herculano Moraes. Ardy Filho [sic] nos declarou não se candidatar por não ser bacharel em Ciências Jurídicas e
Sociais ou magistrado [...]” (SILVA, Josias Clarence Carneiro da. Movietone. O Liberal, Teresina, p. 6, 6 jun.
1973.
594
MATOS, J. Miguel de. Dor é imortalidade. O Estado, Teresina, p. 3, 22 jan. 1974.
595
MATOS, J. Miguel de. Dor é imortalidade. O Estado, Teresina, p. 3, 22 jan. 1974.
272

de maneira especial por aquele que julgava como amigo.


O sempre discreto e conciso Hardi Filho responde dessa maneira ao artigo de J. Miguel
de Matos

Simples espectador das diatribes do senhor José Miguel de Matos contra


respeitáveis figuras da intelectualidade, da imprensa e da sociedade piauiense,
jamais pensei ver as suas inconseqüentes baterias assestadas contra mim,
ainda mais como pretexto para mendigar um elogio, uma citação, uma
referência. [...] O que possuo, em termos literários, pois nada além disso tenho,
me veio às mãos sem que eu o pedisse. Não sei pedir nada, principalmente
elogios. Sei, sim, agradecer; e aqui vai um agradecimento, desta vez de
público, ao acadêmico José Miguel de Matos, por haver ele incluído o meu
nome em duas de suas antológicas antologias ESPONTANEAMENTE, ou
seja, por reconhecer nos meus trabalhos mérito literário. Pena é não ser ele o
único a reconhecer isso. [...] ao longo de dez anos só tenho tido motivos de
tranqüilidade e contentamento com os louvores e estímulos recebidos. [...]. A
primeira critica negativa foi essa do acadêmico José Miguel de Matos. Como
se vê, o saldo é de uma positividade inconteste, alarmante até. Em meus
escritos procuro fazer coisas novas. Não gosto de cometer erros
(principalmente em amizades). Quando isso acontece, tento corrigi-los. O
senhor José Miguel de Matos me partiu ao meio e colocou as metades em cada
prato da balança do seu açougue. Por esta razão não entrarei e considerações
sobre a personalidade ou falta de personalidade do senhor José Miguel de
Matos. Todos o conhecem. Eu não diria nada de novo.596

Em 1974, Hardi Filho destaca as imprecações constantes de J. Miguel de Matos e, entre


surpreso e magoado, indicou o lugar que ambos ocupavam na cena literária local daquele
momento. Hardi Filho colocou-se como alguém que se esforçou e conquistou elogios
espontaneamente. J. Miguel de Matos é apresentado como alguém que constrange seus
contemporâneos, ao exigir-lhes reconhecimento ou atacar suas trajetórias. Dessa forma,
questiona a seriedade das antologias produzidas por J. Miguel de Matos ao sugerir que estas
não estão pautadas na qualidade literária dos selecionados, mas funcionam como moedas de
troca entre o escritor e aqueles com quem deseja forjar comunidades literárias e emocionais.
Hardi Filho critica a mendicância de elogios e diz ecoar o senso comum: todos já conhecem as
táticas do antologista. Ataques como este, motivados pela vaidade e pelo desejo de vingar-se
daquilo que supostamente maculava sua imagem, vão marcar a forma como o escritor será
entendido por seus contemporâneos. Nos anos seguintes, embora tenham atuado juntos na
União Brasileira dos Escritores - secção Piauí, as parcerias e trocas de elogios foram
substituídas por uma respeitosa indiferença.
Retomando as relações entre J. Miguel de Matos e Herculano Moraes, identificamos

596
HARDI FILHO, Francisco. A propósito da mendicância de elogios do senhor José Miguel de Matos em artigo
inserido em as páginas do “O Estado” de 22 de Janeiro de 1974”. O Dia, Teresina, p. 8, 27-28 jan. 1974.
273

novos contornos a partir de 1979. No decorrer dos anos, as polêmicas em torno das obras deste
último foram sendo substituídas por projetos em comum, tais como a realização dos seminários
para difusão da produção literária local. Para surpresa daqueles que compunham os grupos
culturais alternativos das décadas de 1960 e 1970, Herculano Moraes candidatou-se à Academia
Piauiense de Letras. Esta seria a oportunidade perfeita para J. Miguel de Matos mostrar
reciprocidade em relação ao apoio que o agora aspirante à imortalidade lhe ofertou nos
momentos em que concorreu à Casa de Lucídio Freitas, oportunidade também para apresentar-
se como alguém que, em momentos de eleição, abandona as paixões e pauta suas decisões em
critérios literários e na atuação cultural dos pleiteantes.
Em meio às cadeiras vagas no fim da década de 1970, surgiram muitos possíveis
candidatos e J. Miguel de Matos teve sua fidelidade posta à prova em relação às suas
sociabilidades literárias. Na disputa que parecia se consolidar, Herculano Moraes e José
Eduardo Pereira,597 seus supostos amigos, o soldado-escritor apoiou este último, à época
integrante do primeiro escalão do governo Lucídio Portela.598 Na dança das cadeiras, quando
identificou-se que os candidatos acima listados concorreriam para vagas distintas, as relações
entre J. Miguel de Matos e Herculano Moraes já haviam ficado novamente estremecidas.599
Em resposta aos contemporâneos que criticavam seu ingresso na Academia Piauiense
de Letras, Herculano Moraes rearticulou seus discursos a fim de conciliar as críticas que, no
passado, havia feito à instituição e ao lugar social que agora almejava. Atribuía as pichações
nos muros da cidade e as críticas à sua candidatura ao despeito600 e afirmou que, enquanto
imortal, suas atuações seriam voltadas para o ressurgimento da vida cultural piauiense, pela
qual sentia-se ainda mais responsável.601 Enquanto acadêmico já eleito, sua primeira iniciativa

597
José Eduardo Pereira nasceu em Realengo (RJ) em 1929 e faleceu em Teresina em 1993. Escreveu O Solar das
Estrelas Marrons e O Monumento da Cruz do Cossaco. No jornalismo, colaborou com jornais escritos e dirigiu a
Rádio Difusora de Teresina. No campo do Direito, foi professor na Universidade Federal do Piauí, Procurador-
Geral do Estado e Secretário de Segurança Pública. Em 1989, tomou posse na cadeira 27 da Academia Piauiense
de Letras.
598
Lucídio Portela Nunes nasceu em Valença em 1922 e faleceu em 2015 na cidade de Teresina. Médico e político
que exerceu mandatos como governador do Piauí (1979-1983) e senador da República.
599
A ironia da situação está no fato de que José Pereira Bezerra renunciou à candidatura em benefício de Petrônio
Portela, irmão do governador do Estado, senador da República que à época ocupava a função de Ministro da
Justiça. A gentileza do renunciante foi apreciada e registrada nos jornais de 22 de novembro de 1979. Petrônio
Portela faleceu no início de 1980 e foi empossado post-mortem na Academia Piauiense de Letras. Contrariando as
expectativas, quando da reabertura da vaga, o renunciante foi preterido em eleição na qual o médico Zenon Rocha
foi eleito para a cadeira 16. Enquanto isso, em fevereiro de 1980, Herculano Moraes foi eleito, em segundo
escrutínio, para a cadeira 18.
600
“[...] E por falar em intelectual, o imortal Herculano Moraes não está incomodado com a campanha que está
sendo feita contra ele nos murais da cidade. Ele atribui o fato aos frustrados que não podem chegar, como ele, à
imortalidade [...]” (O ESTADO. Teresina, p. 3, 24 mar. 1980).
601
“[...] Perguntado como se sentia depois de ter sido eleito o mais novo imortal da APL, o jornalista Herculano
Moraes respondeu: “bem mais responsável por esta cultura que está à beira da falência” [...]” (O ESTADO.
Teresina, p. 2, 15 fev. 1980).
274

foi transformar sua cerimônia de posse em um evento popular,602 coincidindo com a data de seu
aniversário. O evento repercutiu bastante na imprensa local sendo, inusitadamente, denominado
de Baile da Imortalidade.603 A solenidade foi apresentada como meio de aproximar a Casa de
Lucídio Freitas dos demais agentes culturais, contudo também pode ser entendida como tática
de Herculano Moraes para silenciar os críticos de sua eleição, reafirmar o lugar social e as
afinidades construídas pelo novo acadêmico.604 À medida que se noticiava a programação da
posse, surgiram também reações distintas, entre as quais destacamos as de A. Tito Filho e J.
Miguel de Matos.
Diante das notícias, J. Miguel de Matos dizia temer que o evento maculasse a imagem
da instituição, e alertava: “É preciso não confundir festa acadêmica com terreiro de macumba.
Academia é assunto sério e respeitável”.605 Elitista, conservadora e eivada de preconceitos, a
fala de J. Miguel de Matos reflete também o receio de que uma suposta popularização dos
eventos acadêmicos afete o lugar distinto que julga ocupar na sociedade piauiense. Tal como
apresentado por Pierre Bourdieu em suas discussões sobre a construção de uma distinção social
a partir de rituais de reprodução e consagração,606 percebe-se que, por mais que o escritor
investisse na ideia de que seu ingresso na Academia Piauiense de Letras significou a aceitação
de um escritor popular, na prática, a defesa da popularização do acesso à imortalidade e de uma
renovação nas práticas acadêmicas só eram aceitas quando lhe favorecia. Ao tornar-se imortal,
J. Miguel de Matos assumiu uma postura de estranhamento em relação às novas formas de
valorização da cultura escrita posto que uma vulgarização da vida acadêmica poderia, no fim,
ameaçar a imagem que a sociedade tinha da instituição e de seus membros.
Em nota intitulada Pedido de União, Herculano Moraes assim rebateu o comentário de

602
“[...] Herculano Moraes que vai se tornar Imortal pois assumirá uma Cadeira na nossa Academia Piauiense de
Letras, programando sua posse de maneira diferente e mais popular. Herculano procurando atingir a todas as
camadas sociais por ocasião do seu ingresso na Imortalidade [...]” (JORNAL DO PIAUÍ. Teresina, p. 8, 1 maio
1980).
603
“[...] O programa de posse do escritor Herculano Morais na Academia Piauiense de Letras, prevista para o
próximo dia 30 de abril, terá início naquela data com uma recepção à Imprensa no Clube do Professor, seguindo-
se o Baile da Imortalidade, na sede do mesmo clube. No dia 1º de maio, às 9 horas, será celebrada, pela primeira
vez no Piauí, uma missa em trova pelo padre Matusalém na Igreja de São Benedito. A solenidade de posse ocorrerá
no dia 1º de maio, às 21 horas, no auditório Herbert Parentes [...]” (O DIA. Teresina, p. 4, 15 abr. 1980).
604
“[...] Com tanta gente importante envolvida, só devo estar mesmo é atordoado, especialmente quando observo
que há gente preocupada com o tipo de festa que pretendo realizar. Esta noite, por gentileza dos professores
piauienses, estarei recebendo meus amigos no Clube da Apep. Para a imprensa, ofereceremos um jantar, para os
demais convidados, um baile que se prolongará pela madrugada. Mas só amanhã, dia primeiro de maio, a Academia
Piauiense de Letras, em obediência a seus estatutos e à sua doutrina, estará diretamente envolvida, sob a
presidência do professor A. Tito Filho, quando abrirá suas portas, no auditório Herberth Parentes, para os discursos
protocolares [...]” (MORAES, Herculano. Academia de Letras. Mirante. O Estado, Teresina, p. 3, 30 abr. 1980).
605
O ESTADO. Teresina, p. 3, 27-28 abr. 1980.
606
“[...] O reconhecimento implícito da legitimidade cultural transparece sobretudo através de dois tipos de
conduta aparentemente opostas: a distância respeitosa dos consumos mais legítimos [...] e a negação envergonhada
das práticas heterodoxas [...]” (BOURDIEU, 2011, p. 132).
275

J. Miguel de Matos

Não tenho culpa de ter chegado cedo à Casa de Lucídio Freitas. Isto significa,
antes de qualquer vaidade tola e intolerável, uma confiança daqueles que
chegaram antes e que sufragaram meu nome, dando-me uma votação
consagradora [...] Para chegar à Academia, não foi preciso derrubar a porta,
nem agredir o mundo, nem ameaçar suicídio. Cheguei lá com os próprios pés,
sob o patrocínio de respeitáveis acadêmicos, que acreditaram na contribuição
que eu posso oferecer para o desenvolvimento das tarefas acadêmicas [...] No
programa de posse, quis ser amplo, para dar aos meus amigos condições de
partilhar de uma alegria que não é apenas minha e de minha família, mas
também daquele que de qualquer forma, tiveram influência na minha
formação [...] Não sou jovem porque tenho 35 anos. Mas porque não deixei
que o ódio, o sectarismo, a inveja, a frustração me intumecessem o espírito.607

Tentando minimizar os comentários maldosos, Herculano Moraes tocou em pontos


sensíveis ao processo de eleição do próprio J. Miguel de Matos. Diferente daquele que o
atacava, Herculano Moraes afirma que não precisou ameaçar suicídio tampouco constranger
imortais para ser aceito na Academia Piauiense de Letras. Apesar de sua relativa juventude em
relação aos demais acadêmicos, atribuiu o sucesso de sua candidatura às boas relações travadas
no meio cultural. J. Miguel de Matos não rebateu estes comentários, porém, para não ficar de
fora do debate envolvendo a posse de Herculano Moraes, redirecionou suas críticas ao
presidente da instituição.
Lançando mão dos regimentos, criticou o presidente da Casa de Lucídio Freitas por
admitir novas práticas, ao dizer:

Li, com a costumeira atenção, as informações simpaticamente hilariantes que


tiraram, prudentemente o seu formalismo, sobre a programação de posse do
colega Herculano Moraes [...] A programação, aprovada, ipsis litteris, pelo
venerável colega A. Tito Filho, um dos maiores nomes da cultura do Piauí,
criou impacto na opinião pública pelo seu inusitado, mas não deixou de contar
com uma grande massa de simpatizantes [...] A imprensa, que sabe mais do
que ninguém, que, em posse de acadêmico só consta, conforme a lei do
sodalício, o discurso de posse do empossado e do seu recebedor – no caso
Herculano e Clidenor – achou no episódio – primeiro a ocorrer no academismo
nativo um motivo de leitura bem condizente com o apetite público e quiçá dos
imortais, longamente habituados a assistirem posses mais tranquilas, o que
não invalida, pelo menos para mim, a proliferação do exemplo, contanto que
não dê na veneta dos futuros empossados incluírem, na programação, por
exemplo, desfile topless, gay e quejandos, mesmo que os nossos colegas de
academismo, com a vista certamente muito curta, não tenham olhos para
enxergar bem, munidos embora por fortes lentes oculares. Louvável, muito
louvável mesmo, o gesto do insigne Mestre A. Tito Filho defendendo, a seu
modo, a Academia Piauiense de Letras, só que, estranhamente, misturou alhos
com bugalhos, quando incidiu sobre a dignidade de alguns colegas, visto até
por cegos mesmo no subjetivismo do recurso estilístico que usou, quando diz,

607
MORAES, Herculano. Academia de Letras. Mirante. O Estado, Teresina, p. 3, 25 abr. 1980.
276

na primeira investida: “Falei-lhe de acadêmicos respeitáveis com os quais o


senhor admite ridicularias e acolhe a baba do despeito e da inveja”.608

Explicitando mais uma vez os valores do soldado-escritor, o trecho também afirma que
é dever do presidente zelar pela tradição e admitir nas solenidades de posse apenas os discursos
habituais. De modo dúbio, argumentou que não era contrário à proliferação do exemplo ao
tempo que exigia certo rigor, a fim de evitar excessos que poderiam constranger os respeitáveis
imortais.
O fragmento apontou também para uma suposta confusão que teria sido feita pelo
presidente da Academia Piauiense de Letras. Contextualizando: o comentário de A. Tito Filho
ao qual J. Miguel de Matos se referia constava em carta aberta ao diretor do jornal O Dia, na
qual A. Tito Filho denunciou o tom desrespeitoso com o qual um jornalista o havia questionado
se, na posse de Herculano Moraes, os acadêmicos dançariam forró e beberiam cachaça.609 Na
ocasião, o presidente da Casa de Lucídio Freitas afirmou que os eleitos eram livres para celebrar
suas conquistas e qualificou a indagação como tentativa de achincalhe às figuras respeitáveis
que compunham o sodalício, e afirmou:

Jornalismo, Senhor Viana, sabe o Senhor melhor do que eu, nunca foi
debocha... A Academia Piauiense de Letras merece respeito e os acadêmicos
estão às suas ordens, para quaisquer esclarecimentos que deseje publicar em
sua apreciada coluna. Todos eles são homens simples, bondosos, honrados,
amigos do próximo – excetuados raríssimos exemplos existentes, aliás, em
todos os setores de convivência humana. Do seu admirador, que lhe pede
publicação, sem ideia de polêmica inúteis e que a nada conduzem.610

Ao ler e repercutir o comentário de A. Tito Filho, J. Miguel de Matos tentou


comprometê-lo com os demais acadêmicos, instigando-o a nomear os acadêmicos que não
seriam bondosos e honrados

Outro trecho da carta do acadêmico A. Tito Filho que me chamou atenção vai
aqui registrado e devidamente comentado, no uso do meu direito de membro
da Academia Piauiense de Letras, senhor Redator: “A Academia Piauiense de
Letras merece respeito e os acadêmicos estão às suas ordens, para quaisquer
esclarecimentos que deseje publicar em sua apreciada coluna. Todos eles são
homens simples, bondosos, honrados, amigos do próximo – Excetuados

608
MORAES, Herculano. Roda Viva. O Dia, Teresina, p. 2, 27 abr. 1980.
609
Ainda nesta carta, A. Tito Filho afirmou: “[...] A Academia mandou convite a muita gente para a solenidade de
posse de Herculano Moraes, dia primeiro de maio, no Auditório Herbert Parentes Fortes. E lhe acrescentei que o
cidadão Herculano tinha e tem completa liberdade de oferecer a quem quiser o que convier à sua veneta – à veneta
dele Herculano. A Academia não tem nem poderia ter responsabilidade com as diversões que qualquer acadêmico
queira promover: baile, banquete, jogo de bola, palavra cruzada, recepção a jornalistas, bumba-meu-boi. Tais
cometimentos são da vontade de cada um. Fui adiantar, Senhor Viana, estranhando que o Senhor, no seu
colunismo, permita deboche com homens e instituições, porque deboche não é crítica, é desasseio, é a negação do
jornalismo [...]” (TITO FILHO, A. Roda viva. O Dia, Teresina, p. 2, 4 maio 1980).
610
TITO FILHO, A. Roda viva. O Dia. Teresina, p. 2, 4 maio 1980.
277

Raríssimos Exemplos Existentes, Aliás, em todos os setores de convivência


humana”. Como acadêmico que desconhece, no sodalício, a existência de
colegas, mesmo raríssimos, que não sejam Simples, Bondosos, Honrados e
amigos do Próximo, desejaria que o insigne presidente da Casa de Lucídio
Freitas, informasse publicamente, os nomes desses colegas, para que os
primeiros evitem tal convivência, de certo muito incômoda, por que nunca se
viu azeite andar misturando com água, a não ser pela alquimia do sucessor do
acadêmico Simplício de Sousa Mendes, desde o recuado ano de 1971.611

Não localizamos resposta de A. Tito Filho à provocação de J. Miguel de Matos.


Contudo, sabemos que, neste momento, mais uma vez, as relações entre eles estavam
tensionadas por motivos que nem sempre ficam evidentes nos jornais. Como demonstramos ao
longo deste texto, utilizar os jornais para atacar ou atiçar comentários de adversários eram
expedientes utilizados por estes dois imortais. Apesar de que, em muitos momentos, seus
discursos se alinhassem em defesa da Academia Piauiense de Letras ou de parcerias editoriais,
as rivalidades eram acionadas em torno de posições de poder na diretoria da instituição. 612
Trocas de acusações, comentários constrangedores, ameaças de entregar a presidência da Casa
de Lucídio Freitas ou abandonar funções na mesa diretora eram estratégias utilizadas por
ambos. Passadas as crises, suas afinidades e posições eram reacomodadas no jogo político
próprio da instituição.613 Em nenhum momento suas renúncias foram efetivas: A. Tito Filho
ficou no cargo até seu falecimento em 1992, e a única vez que J. Miguel de Matos não foi
incluso na chapa que disputou a diretoria coincidiu com os momentos em que havia se afastado
das reuniões semanais devido sua condição de saúde.
Ainda sobre o questionamento de J. Miguel de Matos ao presidente da Academia
Piauiense de Letras, é curioso observar que, neste momento, o soldado-escritor abandona a
postura de crítica aos seus confrades. Este, que não desperdiçava oportunidade de criticar o
alheamento dos imortais às práticas da instituição ou por seus critérios não-literários em
momentos de eleição, agora os considerava simples e amigáveis. Em uma instituição moldada
a partir das interações entre os sujeitos, que valorizava a erudição e qualidade escriturística na

611
O DIA. Teresina, p. 2, 4 maio 1980.
612
“[...] Andam fazendo intrigas por aí... de que o Zemiguel está lutando para colocar candidatos em profusão na
APL, desde que possa ele, na hora precisa, contar com eles, no sentido de chegar a ser presidente, pois lhe contaram
que as verbas estão gordas e sendo assim, com ele logo haverá movimento, empregará seus amigos, dará coquetel
aos acadêmicos e fará um série de coisas... que é missão precípua deles, os imortais... E diz que já conta com dois
e com ele três... dispostos a começarem a luta... Agora anda um por aí doidinho atrás do Zé, pois teve a garantia
de que desta vez entrará... Ora, e a reação onde está? Pois juro que não vai ser fácil... já que seu Ary tá firme e
sólido como aquele poste ali da esquina da Assembleia... então Zemiguel, te manda, para não perder tempo nem
linguiça... [...]” (JORNAL DO PIAUÍ. Teresina, p. 3, 7 maio 1980).
613
“[...] Ainda sobre a Academia: o acadêmico J. Miguel de Matos, deverá, no próximo sábado, retornar ao
convívio dos imortais. No momento Miguel andou envolvido pelas angústias do mundo dos mortais, não retirando
daí, segundo um venerável mestre do vernáculo, nenhum ensinamento sadio [...]” (MORAES, Herculano. Mirante.
O Estado. Teresina, p. 3, 25 jun. 1980).
278

mesma medida em que premia parentescos e comportamentos distintos, não é razoável supor
que seus contemporâneos esquecessem com facilidade os constrangimentos aos quais foram
submetidos, mesmo que entendessem que estas falas remetem a ressentimentos em virtude dos
planos frustrados. Tal postura corrobora posicionamento atribuído ao imortal piauiense
Adelmar Soares da Rocha e várias vezes repetido por J. Miguel de Matos: “nas academias, onde
se supõe um manso lago azul, dormem, não raras vezes, abismos dissimulados”.614
Se antes as críticas de J. Miguel de Matos a Herculano Moraes derivavam da forma
como tinha sido apresentado (ou não) em suas obras, neste momento, as polêmicas envolvem
concepções distintas sobre as práticas acadêmicas. Os jornais e livros que fazem menção às
suas relações podem ser lidos a partir dos interesses e rivalidades mútuas, das proximidades
interessadas e dos ressentimentos cultivados. Aqui, as coletâneas funcionam como um lugar de
memória, tal como delineado por Pierre Nora, pois o que neles está expresso é o resultado das
experiências e pesquisas de seu autor, selecionadas a partir das relações travadas com os autores
listados e destes com o meio cultural no qual estão inseridos.
As informações podem ser acrescidas ou excluídas à cada reedição evidenciando a
capacidade de metamorfose destas narrativas. O que está dito pode ser mantido ou alterado a
depender de como impacta nas relações entre sujeitos, grupos literários e instituições. O mesmo
pode ser dito das obras de Francisco Miguel de Moura, escritor com quem J. Miguel de Matos
construiu parcerias que foram se enodando a partir do momento em que o soldado-escritor
lançou, em 1972, dúvidas acerca de sua autoria. Oscilando entre admissão de certo
reconhecimento e tentativas de apagamentos, as obras de Francisco Miguel de Moura e
Herculano Moraes produzem valor e estabelecem um lugar para J. Miguel de Matos no contexto
da literatura piauiense.
J. Miguel de Matos não se envolveu diretamente nas eleições em que os clipianos
concorreram à Academia Piauiense de Letras. Sua presença nos dias de votação está registrada
nos livros de atas, porém não encontramos comentários específicos do soldado-escritor a
respeito de seus ingressos, à exceção do estranhamento em relação à cerimônia de posse de
Herculano Moraes. Ainda sobre as relações entre J. Miguel de Matos e Herculano Moraes,
destacamos que este último foi responsável por seu panegírico, pronunciado em sessão solene
da Academia Piauiense de Letras no dia 06 de maio de 2000.
A Casa de Lucídio Freitas é uma instituição de memória na qual seus integrantes se
corresponsabilizam pela construção da memória institucional e individual de seus membros ao

614
Algumas das vezes em que o trecho foi utilizado pelo escritor: JORNAL DO PIAUÍ. Teresina, p. 2, 4 jan. 1972,
e MATOS, J. Miguel de. Roda viva. O Dia, Teresina, p. 2, 27 maio 1980.
279

evidenciar seus valores e práticas. A escolha daquele que deverá, em cerimônia pública, fazer
homenagem e rememoração das práticas dos acadêmicos extintos é decisão da presidência da
instituição e leva em conta fatores como a amizade, as parcerias intelectuais e profissionais,
além da vontade da família. Na experiência da imortalidade acadêmica, o elogio fúnebre é a
última etapa antes da cadeira ser considerada vaga e iniciarem-se os trâmites para escolha do
novo integrante.
Repetindo a urgência do escritor que, poucos dias após sua eleição, logo tomou posse
no sodalício, a cerimônia em sua memória foi realizada apenas cinco dias após seu falecimento,
possivelmente em virtude da presença de um de seus filhos que morava fora do Estado. 615 No
elogio enunciado, publicado nos jornais da cidade,616 o imortal Herculano Moraes relembrou a
longa e atribulada amizade, fez breve comentário das obras do extinto, destacou seu estilo
literário, rememorou as dificuldades deste para acessar a imortalidade acadêmica, ao tempo em
que ressaltou sua postura combativa e emocionada diante das adversidades. No texto, chama
atenção aquilo que considera como “amizade sólida”

Como desincumbir-me de tarefas emocionais a que frequentemente sou


designado a cumprir? A morte de J. Miguel de Matos provocou um desses
momentos, em que a emoção fala alto e a dor do desenlace nos revela que o
coração já não é tão forte assim, para suportar o desabamento sucessivo de
amigos e confrades da Academia. O fato de ser amigo pessoal de J. Miguel de
Matos, tendo acompanhado sua rica trajetória intelectual e participado de
alguns momentos alegres e dolorosos de sua vida, talvez tenha levado o
presidente Raimundo Nonato Monteiro Santana a designar-me a tecer o
panegírico do nosso pranteado Miguel [...] Comecei a conhecê-lo melhor
quando, ainda adolescente, o procurei, levando os originais de um livrinho de
poemas denominado “Murmúrios ao Vento”. Ia em busca de uma voz amiga,
a palavra confortadora de um escritor consagrado, provavelmente o nome
mais conhecido dos meios culturais na ocasião: meados da década de 1960.
Daí para cá mantivemos uma amizade sólida, vez por outra colocada em prova
diante de suas atitudes polêmicas e da luta para sobreviver numa sociedade
contaminada por expressões “legitimadas” pelo poder e pela proclamação

615
“[...] Em seguida, o presidente, disse da finalidade precípua da sessão, que era a comunicação oficial do
falecimento do Acadêmico José Miguel de Matos, ocorrido no dia 1º de maio em curso, e respectiva homenagem
acadêmica. Solidarizando-se, em nome da Academia, com a dor dos familiares do pranteado acadêmico, o
presidente registrou e agradeceu a presença de Marleide Matos Torquato – filha; Maria de Lourdes Matos Pessoa
– irmã; Alexandro Matos Torquato – neto; Maria Ilce de Araújo Santos; Lina Maria de Araújo S. Tito – sobrinhas,
e demais familiares de José Miguel de Matos. Passou então a palavra ao Acadêmico Herculano Moraes, incumbido
do breve elogio fúnebre em nome da APL. Com a palavra, Herculano Moraes relembrou os principais aspectos da
vida e da obra de José Miguel de Matos, destacando a importância do seu trabalho literário no contexto histórico
da cultura piauiense. Em testemunho do que foi dito, manifestaram-se os acadêmicos Celso Barros Coelho,
Francisco Hardi Filho, Francisco Miguel de Moura e Paulo de Tarso Melo e Freitas. E ao fim, ouviu-se o
emocionado agradecimento da filha (em nome da família enlutada) Marleide Matos Torquato. O presidente,
William Palha Dias, encerrou a sessão, e para constar, foi lavrada a presente ata [...]” (ACADEMIA PIAUIENSE
DE LETRAS. Atas da Academia Piauiense de Letras. Teresina: APL, 2000. (Não paginado)
616
No Anexo I deste trabalho reproduzo textos que circularam nos jornais de Teresina em virtude do falecimento
de J. Miguel de Matos.
280

encomendada. Conheci sua luta e sua vida. Contribuí para algumas de suas
alegrias.617

Embora referencie que, em alguns momentos, a relação entre estes ficou abalada, o texto
foi respeitoso e formal. Cumpriu o protocolo de homenagear sua trajetória, fazer referência aos
lugares identitários valorizados pelo falecido, contudo, muito mais do que enaltecer a trajetória
deste, houve um destaque para a relação entre ambos, com um Herculano Moraes tendo a
palavra final sobre a forma como este deveria ser lembrado: escritor ativo e combativo mas que,
no afã de mostrar seu valor, promovia polêmicas desnecessárias, sendo por conta disso, muitas
vezes incompreendido.
Ainda no contexto da repercussão de seu falecimento, em matéria do jornal O Dia, sua
filha, Marleide Matos, acrescentou novos elementos para o entendimento de sua experiência
acadêmica ao afirmar

[...] apesar de não guardar rancor, J. Miguel de Matos levou para o túmulo a
mágoa por ter sido discriminado, quando pleiteou uma vaga na Academia
Piauiense de Letras, “pelo fato de ser pobre e negro”, segundo a filha dele,
advogada Marleide Matos.618

Diferente do pai que compreendia as negativas ao seu nome como um elitismo da


Academia Piauiense de Letras, as discussões sociais pungentes no início dos anos 2000
permitiram que a filha nomeasse este conservadorismo como discriminação. A partir das
resistências à J. Miguel de Matos, a Casa de Lucídio Freitas é apresentada como uma instituição
que, no cenário cultural reproduz o status quo de uma sociedade patriarcal, elitista, nepotista,
corporativista e discriminadora. Após esse comentário inicial, enunciado em contexto de
emoção pela perda de seu genitor, não mais se retornou à questão da negritude como fator de
interdição, contudo a história social e cultural brasileira dá sustentação à leitura como esta.
O panegírico produzido por Herculano Moraes dá continuidade às informações que já
constavam nas antologias que referenciavam a trajetória de J. Miguel de Matos, as quais
dialogam diretamente com os textos de Francisco Miguel de Moura, de 2001 e da própria
Academia Piauiense de Letras, em 2017. Apesar de o discurso de posse ser de responsabilidade
daquele que ingressa no sodalício, considero que o pouco esforço de Oton Lustosa em redigir
um texto original sobre J. Miguel de Matos é indicativo do pouco valor que seus
contemporâneos já atribuíam aos seus textos e às formas como os escritores entendiam suas
práticas. O discurso, também reproduzido nos anexos desta pesquisa, é construído basicamente

617
MORAES, Herculano. J. Miguel de Matos: um adeus. Meio Norte, Teresina, p. 4, 19 maio 2000.
618
CULTURA de luto com morte do escritor J. Miguel de Matos. O Dia, Teresina, p. 11, 2 maio 2000.
281

na articulação entre as antologias e o necrológico elaborado por Herculano Moraes.


A acolhida aos textos escritos por J. Miguel de Matos é outro ponto a se considerar
quando pensamos em sua inserção no contexto literário local. Autor de um único romance,
diversos perfis biográficos e inúmeros artigos para os jornais, qual a repercussão e validade de
seus textos no passado e no presente? Se a memória é uma construção acerca do passado,
construída a partir de elementos que motivam suas permanências na longa temporalidade, de
que modo as informações, as metodologias e o estilo de J. Miguel de Matos são relevantes para
os dias de hoje? A construção de um cânone, a produção de uma memória das gerações literárias
pauta-se na divulgação de valores universais que extrapolam a temporalidade na qual os textos
foram escritos. O que há de atemporal na produção escrita de J. Miguel de Matos?
Tão ou mais criticado que as polêmicas nas quais J. Miguel de Matos se envolvia em
busca de visibilidade ou para defender a imagem que construiu para si, os perfis biográficos
escritos por este sujeito o colocam no centro de um debate sobre os usos políticos da escrita. As
antologias e coletâneas publicadas por J. Miguel de Matos articulando escrita biográfica e
crítica literária produzem textos ricos em informações, porém limitados pelos métodos e
objetivos que atravessam estes relatos.
Em O Pequeno X: da biografia à história, Sabina Loriga historiciza a trajetória do gênero
biográfico caracterizando aquilo que, ao longo dos anos, o potencializa e limita. Apoiando-se
na cientificidade e nas idiossincrasias dos biografados, almeja-se um equilíbrio nas formas de
registrar os acontecimentos factuais articulando-os às ideias sociais correntes, sem desprezar os
elementos que tornam os indivíduos únicos, peculiares embora envoltos em uma
coletividade.619 Segundo a autora, quando bem desenvolvida, a biografia extrapola as
hagiografias enaltecedoras das vidas de santos e reis, abandonam o caráter intimista das micro
histórias e fogem à ilusão que, segundo Pierre Bourdieu, forja uma previsibilidade calculada
para a biografia humana. O cuidado com a construção de biografias reflete um zelo com as
trajetórias individuais. Esta é uma visão apurada e atualizada da prática biográfica, contudo
nem sempre esta foi assim.
Na década 1960, momento em que J. Miguel de Matos transicionava da escrita de
romance para a produção de antologias, somente aos poucos a escrita biográfica se recuperava
da desconfiança que a Escola dos Annales fez investir, em nome de uma cientificidade, contra
essa modalidade da prática intelectual. Nesta época, J. Miguel de Matos era aconselhado por
seus confrades a investir em outras modalidades de escrita e nas palavras dele

619
LORIGA, Sabina. O pequeno X: da biografia à história. Belo Horizonte: Autêntica, 2011.
282

No Piauí – e falo da cátedra – há uma turminha que só aplaude livros


rigidamente dentro do seu sabor literário. De um colega da Academia, recebi
esta severa recomendação “Largue esse negócio de biografia... Escreva
ficção...”, esquecido ele que eu comecei minha vida de escritor fazendo obra
inventiva, através da novela “Brás da Santinha”, que teve duas edições.620

Possivelmente por não querer entender a crítica que lhe era dirigida, J. Miguel de Matos
optou por reforçar as várias facetas de sua produção escrita. Para ele, ter publicado um romance
e agora escrever perfis biográficos não simbolizava um demérito, sendo inclusive, prova de seu
talento. Se seus contemporâneos criticavam sua prática biográfica era porque consideravam-na
um gênero menor, menos criativo que a ficção ou simplesmente, porque desejavam uma
uniformidade nos tipos de textos produzidos pelos imortais. Contudo, as inúmeras críticas
publicadas sobre suas antologias deixam claro que o problema não era a prática biográfica em
si mesma, mas os usos e abusos que cometia através delas. Sendo leitor e colaborador ativo dos
jornais, é impossível acreditar que J. Miguel de Matos desconhecesse, especificamente, o que
se dizia sobre seus perfis biográficos. Ao não aprofundar a discussão em torno do que estava
sendo criticado, ao preferir atacar seus críticos e colocar-se como injustiçado e incompreendido,
o escritor opta por cultivar um ressentimento que será construído, alimentado e utilizado e
maneira tática para desviar das críticas aos processos de produção de suas obras.
O soldado-escritor afirmava que seu método para a escrita de perfis biográficos
articulava pesquisa séria e afetos. Todavia, seus contemporâneos apontavam que esta fórmula
era uma artimanha através da qual ele construía vínculos intelectuais, reivindicava patrocínios
junto ao setor público e privado e, principalmente, atacava seus opositores. Diante de seus
textos, seus críticos se questionavam por que se aceitava impunemente o que ele escrevia? 621
Por que o meio cultural admitia que ele se servisse da literatura quando deveria agir à serviço
dela?622 De maneira mais descontraída, diziam que seus textos eram cafonas e o passaporte para
uma morte indolor.623

620
MATOS, J. Miguel de. Se a noite não caísse. O Estado, Teresina, p. 10, 3 out. 1976.
621
“[...] O deputado João Lobo parece não se afinar muito com o espírito criativo de J. Miguel de Matos. Ontem,
na Assembléia, comentava para o jornalista Wilson Fernando e para o vereador Carlos Augusto não entender por
que J. Miguel escrevia impunemente. João Lobo acha que seus ouvidos são ríspidos para os atavios da musa
miguelista [...]” (O ESTADO. Teresina, p. 2, 12 jun. 1974); “[...] Seus maus escritos livros, lançados impunemente
para manuseio do público piauiense, é um caso de polícia, pois deseducam e assassinam a língua portuguesa [...]”
(INTELECTUAIS quase brigam na Rio Branco. O Estado, Teresina, p. 8, 8 jun. 1976).
622
“[...] J. Miguel de Matos sendo elogiado pelos gregos e criticado pelos troianos por causa do último livro –
MOSAICO. Luminóide da Dilertec disse: ‘Jota Miguel se serve da literatura ao invés de servir à literatura’. Damos
razão aos gregos e aos troianos. [...]” (O ESTADO. Teresina, p. 9, 14 jul. 1976).
623
Em PQP, Pompílio Santos entrevista o jornalista Deusdeth Hart que atuava no jornal Folha da Manhã. Entre as
respostas temos: “[...] Cite três coisas cafonas da imprensa local. R. 1) os artigos de J. Miguel de Matos; 2) os
artigos do Fabrício; 3) O prego na Chuteira, do Deusdeth Nunes [...] 5. Dê três receitas para uma morte rápida e
indolor. R. 1) Ler os livros de J. Miguel; 2) ouvir os discursos do Jofre na Câmara de Vereadores; 3) e ouvir o bate
283

Aqueles que faziam parte de seu círculo íntimo ou que haviam sido contemplados com
comentários elogiosos não escondiam sua admiração pelo escritor.624 Por outro lado, um misto
de curiosidade e desconfiança rondava os períodos de lançamento de suas obras, todos queriam
saber, principalmente, como os políticos seriam retratados. 625 Neste caso específico, evidencia-
se que os perfis eram instrumentos de bajulação utilizados para conquistar benefícios,
concessões ou acesso a espaços e recursos restritos. Há aqueles que defendem que estes textos
serviam apenas para difamar pessoas de bem.626
Difamação foi palavra mais identificada com o conteúdo de Perfis, escrito no período
de suas derrotas para a Academia Piauiense de Letras e ironicamente publicada logo na
sequência de sua posse. A seu Mosaico, publicado em 1976 atribui-se a qualidade de cerâmica
artificial.627 Sua Antologia Poética embora destinada ao público estudantil foi considerada obra
com fraco conteúdo didático.628 Em resumo, acusava-se J. Miguel de Matos de ser copiador de
coisas alheias629 e o instigavam a produzir algo diferente, pois como já destacamos, suas
publicações se resumem à repetição de um modelo biográfico com alcance restrito e objetivo
interesseiro.
As repercussões dessas obras somadas às polêmicas nas quais se envolveu
transformaram J. Miguel de Matos em um dos escritores mais comentados do Estado. 630 Os

papo na praça do Al Lebre com o Garrincha. [...]” (SANTOS, Pompílio. As dicas do P.S. O Estado, Teresina, p.
11, 2 dez. 1975).
624
“[...] Do discurso de Santiago Vasques Filho, como saudação a Miguel de Matos, na solenidade de lançamento
do livro ‘Pisando os meus caminhos’: ‘Eu não lhes apresento agora o escritor fulgurante de Brás da Santinha e o
ensaísta perfeito de Caminheiros da sensibilidade, mas o memorialista inteligente de Pisando os meus caminhos”
(TITO FILHO, A. Caderno de anotações. Jornal do Piauí, Teresina, p. 2, 3 ago. 1969).
625
“[...] Inexplicavelmente, o ex-governador Alberto Silva e o prefeito Raimundo Wall Ferraz deixaram de figurar
no mais recente livro do escritor, jornalista, poeta, cronista, crítico literário, teatrólogo, novelista e acima de tudo
profundo conhecedor dos buracos da cidade, militar da reserva J. Miguel de Matos. Um astuto observador aventava
que aquelas autoridades não fazem parte da obra do escritor por uma simples razão: um deixou o governo do Piauí
e o outro não colaborou no financiamento do livro. [...]” (DIAS, Carlos. Política. O Estado, Teresina, p. 4, 18 maio
1975).
626
“[...] Perfil seria o nome do novo acervo de insultos que alguns chamam de livro, a ser editado em Teresina. O
autor revoltado em sua miséria tenta investir contra a reputação de homens de bem desta terra [...]” (SETE flechas.
O Liberal, Teresina, p. 3, 23 maio 1973).
627
“[...] De um intelectual após deleitar-se com a leitura do último livro do escritor J. Miguel de Matos: “Li tudo
e acho que o poeta foi infeliz no título do livro: não tem nada de mosaico. Parece mais uma cerâmica artesanal
daquelas lá do Poty” [...]” (O ESTADO. Teresina, p. 3, 20 jul. 1976).
628
“[...] Apesar do fraco conteúdo didático, a ‘Antologia Poética Piauiense’, de J. Miguel de Matos, edição
primorosa da Artenova, foi bem recebida pelos meios intelectuais da terra. A capa de Sálvio Negreiros é para lá
de excelente. A antologia é uma coedição Artenova/Secretaria de Educação do Piauí. [...]” (O ESTADO. Teresina,
p. 9, 1 jun. 1974).
629
“[...] fiz publicar nota convidando o escritor J. Miguel de Matos a saldar a sua dívida de arrendamento da
Empresa Gráfica Parnaíba. Isto deveu-se em tendo enchido os bolsos de dinheiro, o copiador de poesias alheias
“desguiou-se” de fininho da Gráfica devendo, além de dois meses de arrendamento, dois meses de força e luz e
mais [...]” (ESTADO DO PIAUÍ. Teresina, p. 6, 20 jun. 1971).
630
“De bem e de mal, o intelectual mais falado do Piauí continua sendo o escritor J. Miguel de Matos (entre os
vivos, é claro) está preocupado com a situação das cadeiras da Academia Piauiense de Letras cujos titulares ainda
284

comentários relativos à sua trajetória pessoal, aos temas e qualidade de seus textos, suas
aproximações com o poder político, as disputas por recursos e funções públicas, as denúncias
e contradições acerca dos valores que deveriam nortear as práticas culturais no Estado, as
iniciativas visando fomentar o meio literário, a defesa de uma Academia Piauiense de Letras
ativa, os embates com seus opositores, os elogios mútuos entre os que compõem sua rede de
sociabilidades literárias, a defesa da obrigatoriedade do ensino de literatura piauiense nas
escolas, estão entre os temas aos quais dedicou atenção. A infinidade de pequenas notas e
artigos completos produzidos por ele ou sobre ele, a partir de seus posicionamentos, evidenciam
sua prática intelectual. Contudo, sua intensa participação na vida cultural, sobretudo das
décadas de 1960 a 1980, não condiz com o silenciamento e frias referências às suas práticas na
atualidade.
A imprensa e os valores culturais piauienses foram se alterando ao longo dos anos. A
ampla participação de J. Miguel de Matos nos jornais é produto de um tempo em que as
redações eram ocupadas por colaboradores que tinham a vivência prática da produção de
notícias, sem formação acadêmica específica forjando debates na articulação de temas que
atraiam atenção do público e nos limites de uma censura ditatorial. Neste contexto, letrados e
agentes culturais tornavam-se produtores de notícias em potencial e, à medida que conseguiam
atrair atenção do público leitor, promover interação entre artistas, políticos e a sociedade
conquistavam espaços nos quais suas ideias pautavam os debates públicos. Transformar os
jornais em espaços privilegiados para divulgação e disputas entre projetos políticos e culturais
garantia visibilidade àqueles que possuíam tempo, interesse e disponibilidade para atuar e
interferir no debate. Por outro lado, à medida que a saúde deste indivíduo se debilitava, que o
acesso às políticas públicas destinadas ao setor cultural ganhava contornos mais definidos e que
a imprensa se profissionaliza, sujeitos como J. Miguel de Matos vão perdendo espaço. Nestas
condições, se a reverberação de seu nome é diretamente proporcional à sua capacidade de
fomentar e interferir nos debates de seu tempo, percebe-se aí um declínio em sua popularidade.
Por outro lado, a construção de uma memória sobre esse sujeito não depende
exclusivamente de seus atos. As lembranças são construídas na coletividade, a partir da
interação entre o todo social. Enquanto J. Miguel de Matos atuou na imprensa conseguiu
interferir, para o bem ou para o mal, naquilo que diziam sobre si e suas obras. Quando perdeu
acesso aos espaços que lhe permitiam essa construção ou monitoramento, restou a este
indivíduo contar com suas parcerias literárias e com as ações das instituições de memória das

não assumiram. Para J. Miguel. O acadêmico eleito não pode ter preguiça de escrever o discurso de posse. [...]”
(O ESTADO. Teresina, p. 3, 4 jan. 1977).
285

quais participava para perpetuar seu nome. Já vimos que aqueles que com ele conviveram não
priorizavam a construção de uma memória acerca de suas práticas, quando muito, esforçaram-
se para retirar delas aquilo que contrariava seus próprios projetos de memória. E o que dizer
sobre as ações de instituições como o Instituto Histórico e Geográfico do Piauí e da Academia
Piauiense de Letras?
Passado um século da fundação destes sodalícios, o Instituto Histórico e Geográfico do
Piauí ainda não conseguiu colocar em prática os objetivos de seus estatutos. No Piauí, as ações
de valorização da história, geografia, literatura e demais áreas da cultura escrita no Estado
passam, quase que em sua totalidade, pelas práticas da Academia Piauiense de Letras,
instituição que também convive com dificuldades materiais para manutenção de sua memória
e desenvolvimento de seus projetos. Contudo, a penetração dos imortais em variados espaços
sociais e o trabalho mais consistente das últimas diretorias tem possibilitado a execução de
projetos editoriais próprios ou em parceria com outras instituições. Na atualidade, o principal
projeto editorial da Casa de Lucídio Freitas é a Coleção Centenário, que em 2012 propôs que
até 2017, ano do primeiro centenário do sodalício, fossem colocadas em circulação as cem obras
mais significativas produzidas pelos acadêmicos do passado e do presente.
A Coleção Centenário possui uma Comissão Editorial renovada sempre que há eleição
da diretoria. Até a presente data, mais de 150 livros foram editados ou reeditados por este selo
e os autores publicados, há muito deixaram de estar restritos ao universo da imortalidade
acadêmica, tornando esta coleção um rico acervo da cultura escrita do Piauí. Curiosamente ou
não, até o momento nenhuma das obras de J. Miguel de Matos foi listada para reedição, ao
passo que outros escritores, inclusive membros das diretorias tem mais de um livro editado por
este projeto. Não falaremos aqui sobre a qualidade ou relevância dos textos selecionados,
contudo, chamaremos atenção para o poder simbólico de alguns autores e textos em relação a
outros. Autores já reconhecidos recebem mais incentivos e visibilidade, escritores mais
obscuros ou atuantes em áreas mais específicas continuam no limbo.
O acesso a essa política editorial depende da qualidade do texto, mas sobretudo, do aval
da comissão de seleção. A depender dos sujeitos que compõem a Comissão Editoral, alguns
temas, autores e obras alcançam (ou não) visibilidade. Se mesmo com um projeto editorial bem-
sucedido a Academia Piauiense de Letras contribui para o silenciamento ou desconhecimento
da trajetória de um de seus imortais mais ativos, algumas explicações são possíveis: ou ele não
está inserido nos grupos literários, entendidos como comunidades afetivas, ou seus textos são
considerados irrelevantes para o contexto atual. Tratando-se de J. Miguel de Matos, entendo
que as tentativas de apagamento de suas práticas articulam esses dois elementos.
286

Neste capítulo mostramos que os contemporâneos de J. Miguel de Matos empreenderam


reduzidos esforços visando a perpetuação de sua memória ou, quando o fizeram, foi tentando
tornar mais palatável os ataques e críticas que este empreendeu sobre sujeitos e grupos. Por não
concordar com o que ele escreveu, como se posicionou socialmente ou por memórias
traumáticas de suas interações, não houve um esforço dos imortais acadêmicos em inseri-lo em
suas comunidades afetivas. E as práticas de J. Miguel de Matos foram as motivadoras deste
processo deliberado de exclusão. Quando identificamos as interações deste sujeito com os três
imortais que, sendo seus contemporâneos diretos, ainda estão vivos, compreendemos a falta de
afinidade entre eles. As rusgas com Celso Barros em virtude melhor tradução de uma poesia,
as relações estremecidas entre com Nerina Castelo Branco que motivou a alcunha piauiense
“por quebradeira” e as relações com o clipiano Francisco Miguel de Moura, que pouco depois
de sua morte já decretou a ausência-presença deste no seio literário piauiense, são mostras da
falta de identificação entre eles. As afinidades construídas através de grupos identitários,
gerações literárias e comunidades afetivas impactam na construção de memórias sobre este
sujeito.
Observando-se o conjunto de sua obra, percebe-se também um descompasso entre o que
ele produziu e as demandas do público leitor atual. O conjunto de informações biográficas que,
nas décadas de 1960 a 1970, atraíam estudantes e pesquisadores da literatura piauiense para as
antologias por ele produzidas, hoje estão acessíveis em vários formatos, à distância de um
clique. O conhecimento literário atualmente exigido dos estudantes articula interpretação
textual, contextualização histórica e posicionamento reflexivo sobre textos e autores. Estes
elementos pouco aparecem nas antologias de J. Miguel de Matos. Se somarmos a isto o fato
que a literatura piauiense, assim como outras literaturas regionais, sequer constar no espectro
dos exames vestibulares nacionais, a produção deste escritor se torna obsoleta.
A forma e o teor de seus textos, entendidos como bajuladores, interesseiros ou até
mesmo maledicentes, ao serem lidos desassociados de seus contextos de produção, pode
constranger indivíduos e a ameaçar a imagem polida que a instituição quer perpetuar sobre si
mesma: a de uma instituição formada por homens de letras, intelectuais e agentes culturais
preocupados com o desenvolvimento do Estado e não com picuinhas particulares. Nesse
sentido, a Coleção Centenário é mais uma tentativa de construção de um cânone literário para
o Piauí. Como nos aponta Maria Eunice Moreira em Cânone e cânones: um plural singular,
iniciativas editoriais como estas atuam de modo metonímico, tentando atrelar a produção dos
imortais acadêmicos ao todo da produção literária e escrita do Estado. No texto, a autora
apresenta uma visão clássica do cânone, entendido como uma seleção de obras capazes em
287

transformar-se em modelo significativo para o entendimento da língua, dos momentos


históricos e da historicidade da literatura.631 Pautando-se nas aproximações e distanciamentos
entre várias definições de cânone, Maria Eunice Moreira conclui que, historicamente, a
discussão e organização do cânone literário não é um processo monolítico e homogêneo.
Fatores políticos, comportamentais e econômicos interferem em sua construção e a autora
chama atenção para a existência de variados cânones que disputam entre si o poder de formatar
a memória literária de lugares e épocas.
O cânone é entendido como um espaço de disputa, capaz de produzir discursos que
habilitam ou interditam a perpetuação de obras e autores. Instituições e grupos sociais
dominantes utilizam-se de seu poder a fim de conformar o cânone a uma modelo de sociedade
e cultura que lhes reflita e favoreça. Pierre Bourdieu, em A Distinção e As Regras da Arte
apresenta os mecanismos utilizados por esses grupos e instituições para interferir no processo
de formatação do cânone. Aquilo que parece unanimidade é resultado de disputas entre
concepções de literatura, história e sociedade. Nas disputas entre cânones plurais, o cânone
singular vencedor é aquele capaz de articular as referências e inspirações do passado à uma
literatura plural em temas, gêneros, tendências, teorias e conceitos.
O cânone constitui-se assim como memória literária possível, estabelecendo relações
entre o homem e sua finitude. Da incapacidade humana de acessar toda produção escrita, o
cânone serve como instrumento de legitimação do discurso literário, uma baliza
problematizadora da história da literatura, dos modelos de valoração das obras, servindo
também como reveladora dos jogos de influências, dos processos de edição, circulação, crítica
e consumo literário. J. Miguel de Matos tentou inserir-se e interferir na produção deste cânone
em duas perspectivas: como literato e antologista. O desejo de figurar nas relações de autores
consagrados, a partir da escrita de Brás da Santinha e sua atuação como proponente que
seleciona e apresenta os potenciais canonizados. Tudo isto evidencia-se naquilo que diz sobre
seus biografados e nas tentativas de controlar o que se dizia sobre si.
Ao concluir este capítulo em que identificamos várias estratégias para silenciar, apagar
ou minimizar as ações, as produções, os comportamentos e os posicionamentos de J. Miguel de
Matos, concluímos que sua não inserção de J. Miguel de Matos nos manuais sobre a história da
literatura piauiense ou na Coleção Centenário, entendendo-a como um mais um esforço de
construção daquilo que pode tornar-se um dos cânones literários do Piauí, é um investimento
deliberado, um esquecimento premeditado, atravessado pelos afetos individuais e pelas

631
MOREIRA, 2003.
288

transformações do meio literário e cultural do Estado.


289

6 CONCLUSÃO

“A imortalidade é uma espécie de vida que adquirimos na lembrança dos


homens” (DIDEROT).

Nesta pesquisa analisamos como escrita, memória e ressentimentos se articulam às


trajetórias do literato e antologista J. Miguel de Matos em suas interações com a Academia
Piauiense de Letras, centenária instituição cultural do Piauí. Tomando os textos escritos por
este sujeito entre as décadas de 1960 a 2000, buscamos compreender como estes revelam e
registram suas relações sociais, os investimentos identitários, seu processo de erudição, a
formação de comunidades intelectuais e afetivas e o desejo por distinção social que lhe
garantiria o acesso à imortalidade acadêmica.
Entendida como uma narrativa construída na inter-relação de discursos, expectativas e
afetos, a escrita é algo central na trajetória de J. Miguel de Matos. Por meio da escrita ele se
construiu como erudito, intelectual e agente cultural. A escrita é também seu instrumento de
trabalho, meio com o qual apresentou-se socialmente, reivindicou espaços e denunciou supostas
injustiças. Para esta personagem, a prática da leitura e escrita funcionou como símbolo de
distinção social. Em um contexto marcado pelo analfabetismo e carente de atividades culturais,
dedicar-se a leitura e, posteriormente, produção e publicação de textos fez dele um autodidata.
Embora não tenha concluído o ensino formal, tornou-se um beletrista, um amante das letras,
alguém dedicado ao estudo e difusão sistemática daquilo que produzia.
Para eruditos e intelectuais, a escrita é instrumento para construção de imagens de si.
Através de seus textos, J. Miguel de Matos fez investimentos discursivos nos quais a pobreza,
a migração, as supostas injustiças praticadas contra si e a superação de dificuldades são
rememoradas e ressignificadas a fim de construir a imagem com a qual deseja ser reconhecido
socialmente. Recorrendo às suas lembranças, o escritor construiu uma autoficção sobre sua
trajetória, investindo na ideia de humilhação que servia para produzir afinidades e atacar
àqueles que agiam contrariamente à imagem que reivindicava para si. Esta postura lhe propiciou
espaços e oportunidade, deu-lhe visibilidade e potencializou narrativas nas quais denunciava os
problemas econômicos e culturais do Estado. A produção de novela regionalista, de artigos
sobre os problemas da cidade, de textos destinados ao conhecimento e difusão da literatura e
dos literatos piauienses e de textos nos quais denuncia as dificuldades e vícios do cenário
cultural transformaram-no em um intelectual, entendido aqui como aquele que lê, reflete,
produz e propõe intervenções sociais.
À pretexto de divulgar conhecimentos e tentar interferir no debate público, fez-se
290

atuante em vários espaços, em especial, no meio literário, na imprensa, no mercado editorial e


em funções do serviço público. Apresentou as dificuldades da produção literária piauiense e,
para contribuir com sua divulgação, publicou artigos, livros e revistas. Seus textos buscavam
tornar as informações culturais acessíveis ao grande público mas, mais do que isso, promoveu
o surgimento de círculos de sociabilidades entre os letrados e construiu comunidades afetivas
em torno daquilo que produzia.
Ao longo da pesquisa, consideramos seus textos e os de seus contemporâneos
produzidos a partir de suas interações, como espaços de memória e disputas. A análise dos
livros, colunas de jornais, revistas que produziu, revelou seus posicionamentos, mas, sobretudo,
aquilo que desejou difundir sobre si. As escritas sobre si revelam um sujeito ativo que, por meio
da produção de perfis biográficos, operava no sentido de silenciar seus opositores com
argumentos e, quando estes não eram suficientes, apelava-se para referências às situações da
vida pessoal e das contradições públicas destes, tentando com isso, colocar sob suspeição aquilo
que era dito sobre si. Sendo também palco para atuação de seus críticos, a escrita revela as
discordâncias, desqualificações e investimentos contra sua autoproclamada imagem de
injustiçado.
Nestas disputas discursivas, J. Miguel de Matos apresentava-se como injustiçado e
humilhado, enquanto seus opositores eram tidos como invejosos, conservadores ou elitistas. A
disputa política, entendida aqui no sentido de agências através dos quais se acessam espaços
distintos e recursos públicos, movimentou o meio intelectual piauiense e colocou-o no centro
de muitos debates. À medida que seus adversários apontavam o perfil interesseiro de suas
escritas, este apelava para um suposto ressentimento, resultante das injustiças e humilhações
dos quais se sentia alvo. O ressentimento, oportunamente cultivado por J. Miguel de Matos,
escondia a recusa em não refletir e/ou debater sobre a qualidade e/ou relevância de seus textos
e argumentos. O suposto orgulho ferido foi trampolim utilizado taticamente para reforçar sua
imagem de injustiçado, humilhado e perseguido.
Se, para J. Miguel de Matos a escrita é espaço de construção de si, um meio para divulgar
suas habilidades, um saber capaz de diferenciá-lo socialmente a partir das disputas que
permeiam a construção de uma memória de si, estes mesmos usos são apropriados por seus
opositores e pela instituição cultural ao qual se filiou após muitas tentativas: a Academia
Piauiense de Letras. Para J. Miguel de Matos, o ingresso nesta agremiação representava a
palavra definitiva, um atestado legitimador de sua qualidade escriturística. Investindo-se como
uma instituição de saber, poder e memória, a Casa de Lucídio Freitas reúne, ao longo de sua
trajetória centenária, destacados escritores em suas respectivas áreas de atuação. Este
291

imaginário revela uma tentativa metonímica de atrelar os textos e os membros da Academia


Piauiense ao posto de representantes legítimos da cultura piauiense. Se considerarmos que nem
todos que escrevem ou dedicam-se às atividades intelectuais almejam a imortalidade
acadêmica, que alguns até se candidatam mas desistem em virtude das dificuldades e disputas
de poder já postas, entendemos que a Academia Piauiense de Letras é apenas uma parte de um
todo social, contudo é uma parte que, em virtude dos discursos acumulados ao longo dos anos,
está revestida de simbologias que propiciam a seus membros, inclusive, parcerias com o poder
público, a fim de mimetizar suas práticas e valores em algo estrutural.
Ao desejar tornar-se imortal, J. Miguel de Matos quis reconhecimento, oportunidades e
legitimação de sua qualidade junto a seus pares. Tentou, sem sucesso, disfarçar esse interesse
em denúncias dos maus procedimentos e critérios dos imortais que, anteriormente, lhe negaram
o acesso. O insucesso de suas primeiras tentativas foi entendido como elitismo,
conservadorismo e enclausuramento dos representantes culturais do Piauí. Mais uma vez o
escritor não voltou seus olhos para suas próprias práticas. Acessar a imortalidade acadêmica
significa ingressar em instância legitimadora da produção cultural, ter maiores chances na
concorrência por cargos e recursos públicos e ter à sua disposição uma estrutura que, ao longo
dos anos, esforça-se para valorizar a memória de seus integrantes.
Quando Diderot enunciava que a imortalidade é uma espécie de vida que adquirimos na
lembrança dos homens está apontando a possibilidade de permanência de nomes, obras e
práticas daqueles que, mesmo já falecidos, continuam a ser referências de escrita, discussão de
temas ou mesmo pela boa articulação com outros segmentos sociais. O processo de construção
e manutenção das memórias sobre indivíduos, grupos e instituições não é natural, envolve
seleção, enquadramentos, esquecimentos, todos esses aspectos atravessados pelas emoções e
demandas do tempo histórico. Isto porque a memória é construída por indivíduos que tem
aspirações e sentimentos, que atuam articulando interesses pessoais e coletivos.
Ingressar na Academia Piauiense de Letras, tornar-se imortal é uma expectativa
regulada pela ação da própria instituição e de seus integrantes. Apenas em teoria o acesso às
instituições de consagração, reconhecimento e distinção é sinônimo de investimento
memorialístico. No caso de J. Miguel de Matos, a memória institucional sobre suas práticas é
marcada por apagamentos e silenciamentos deliberados. Considerando sua presença ativa e
constante nos debates culturais das décadas de 1960 e 1970, e o não-reconhecimento de seu
nome pela geração atual, esta pesquisa apontou fatores externos e internos que ajudam a
entender a ausência de investimentos discursivos visando a perpetuação de seu nome e suas
obras, sobretudo pela Academia Piauiense de Letras.
292

De acordo com J. Miguel de Matos, os perfis biográficos que produzia para suas
antologias articulavam pesquisa e afeto. As informações coletadas e sistematizadas em seus
textos, embora relevantes, tornavam-se suspeitas a partir do atravessamento dos interesses
pessoais do biógrafo. Os interessados elogios excessivos ou a exposição vingativa de
contradições das personagens biografadas colocavam em suspeição a qualidade intelectual e
relevância das práticas do biógrafo e seus biografados. A facilidade com que, na atualidade,
conseguimos acessar as informações presentes nas obras de J. Miguel de Matos tornam-se
impeditivos para a não reedição de seus textos. Dessa maneira, este escritor acaba não se
habilitando para inserção nos cânones literários locais, seja aquele estimulado pelas demandas
do meio escolar, sejam aquelas estimuladas pelos movimentos da própria Academia Piauiense
de Letras.
Quando consideramos os laços afetivos, as sociabilidades e as disputas internas da Casa
de Lucídio Freitas, percebemos que a inserção e o reconhecimento de J. Miguel de Matos na
imortalidade acadêmica foram marcados por desconfianças e, até mesmo, por recusas. Suas
credenciais literárias e não-literárias eram contestadas, a fim de dificultar sua participação neste
grupo seleto e distinto de intelectuais e eruditos. A qualidade e relevância de seus textos, seus
laços familiares e profissionais, a dificuldade em situá-lo nos movimentos literários, as
polêmicas que travou com seus contemporâneos e que ajudaram a construir uma imagem de
sujeito irascível e sem polidez social, dificultaram a legitimação de suas obras e trajetória. No
conjunto dos valores, grupos e influências culturais abrigados no interior da Academia
Piauiense de Letras, J. Miguel de Matos não conseguiu construir parcerias duradouras, em
virtude das rivalidades e jogos de poder em que se envolveu.
Para que haja investimentos na preservação de sua memória no presente, seria
necessário que suas obras sejam consideradas necessárias e incontestes. A perpetuação das
memórias não é algo natural, depende da ação dos sujeitos que, no presente, compõem a
instituição. Enquanto pôde, em vida, este escritor tentou controlar aquilo que era dito sobre si.
Após sua morte, a preservação de sua memória delega-se a familiares, amigos, confrades,
pesquisadores e à própria instituição que, por dever regimental, deve atuar para que seu nome
e suas obras sejam lembrados. Se a construção de uma memória é um investimento dos sujeitos,
de seus grupos e comunidades afetivas e da instituição, as relações tumultuadas que J. Miguel
de Matos estabeleceu com seus contemporâneos tem impactado na construção de uma memória
sobre sua trajetória e sobre seu lugar no conjunto da literatura piauiense.
293

O lembrar articula experiências passadas, afetos e interesses compartilhados além da


busca de um sentido prático na construção e valorização dos sujeitos e suas práticas. Na
atualidade, percebemos que, por parte dos sujeitos que conviveram com J. Miguel de Matos, há
tentativas de silenciar suas práticas e que, o que em alguns momentos foi dito ou vivido entre
eles, interfere na construção de uma memória sobre o soldado-escritor. O cenário de ausência-
presença de um escritor ativo em um tempo cronológico bem próximo a nós nas atividades e
projetos acadêmicos está atravessado por mudanças no cenário educacional, editorial e na
oportunidade daqueles que sobreviveram a ele, de controlar o que se diz sobre esse sujeito, ter
a palavra final sobre o sentido de suas práticas e interações.
Em J. Miguel de Matos a escrita é uma potência, um espaço de construção e reinvenção
de si. Um investimento e uma arma que acionada à medida que tentava controlar o que se dizia
sobre si. Sua escrita e a de seus contemporâneos os expõem mutuamente e, dessa maneira,
conseguimos identificar como o meio cultural piauiense, entre as décadas de 1960 e 2000,
estava constituído por sujeitos ativos que, tenta(ra)m construir ou preservar memórias sobre
suas práticas. Estas memórias interessadas, vingativas ou ressentidas nos permitiram
compreender como J. Miguel de Matos utilizou-se da escrita para forjar comunidades
intelectuais e emocionais com os sujeitos, grupos e instituições com os quais conviveu.
294

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O ESTADO. Teresina, 13 mar. 1975.

O ESTADO. Teresina, 25 mar. 1975.

O ESTADO. Teresina, 4 abr. 1975.

O ESTADO. Teresina, 18-19 abr. 1975.

O ESTADO. Teresina, 22 maio 1975.

O ESTADO. Teresina, 23 maio 1975.

O ESTADO. Teresina, 23 abr. 1976.


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O ESTADO. Teresina, 14 jul. 1976.

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O ESTADO. Teresina, 23 set. 1976.

O ESTADO. Teresina, 4 jan. 1977.

O ESTADO. Teresina, 19 abr. 1977.

O ESTADO. Teresina, 14 set. 1977.

O ESTADO. Teresina, 20 set. 1977.

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312

ANEXO I - Repercussão do falecimento de J. Miguel de Matos na imprensa piauiense

Figura 9 – Cultura de luto com morte do escritor J. Miguel de Matos

Fonte: CULTURA de luto com morte do escritor J. Miguel de Matos. O Dia, Teresina, p. 11, 2 maio 2000.

[...] Autor de 14 livros, faleceu, às 6h45min de ontem, o escritor J. Miguel de Matos,


aos 76 anos, vitimado por sequelas de um derrame cerebral sofrido há 35 dias. Apesar de não
guardar rancor, J. Miguel levou para o túmulo a mágoa por ter sido discriminado, quando
pleiteou uma vaga na Academia Piauiense de Letras, “pelo fato de ser pobre e negro”, segundo
a filha dele, advogada Marleide Matos.
Para externar o que passou nessa época, ele escreveu um livro sobre as pressões e a
discriminação que sofreu, entregando-o à guarda de Marleide Matos, com que morou nos
últimos dia de sua vida, pedindo que o trabalho fosse publicado após a sua morte. “nessa obra,
313

ele conta o que sofreu e sua conquista, ao ingressar na academia, mas ele não guardava rancor
daqueles que o discriminavam, apenas nutria uma certa mágoa”, argumenta. Ela disse ainda que
esse livro é dedicado a ela, bem como outro que aborda temas políticos, também em vias de ser
publicado – fugindo ao estilo romântico do escritor.
Apesar da discriminação, ele conseguiu entrar na Academia, passando a ocupar a
Cadeira N°5, além de ser sócio efetivo da União Brasileira de Escritores e ser detentor da
Medalha de Guerra do Brasil, pelos feitos prestados quando era militar. José Miguel de Matos
era um biógrafo por excelência, tendo escrito Antologia Poética Piauiense, Brás da Santinha,
Caminheiros da Sensibilidade, Da Costa e Silva: o Poeta da Saudade, seis volumes biográficos
– em parceria com o escritor Arimathéa Tito Filho, entre outros.
Por muitos anos residiu em Fortaleza (CE), onde escreveu uma infinidade de artigos para
jornais e revistas, notadamente, para o jornal O Povo, na época da revolução de 1964. Retornando
para O Piauí, ele passou a ser articulista de vários jornais, dando contribuição para o crescimento
da imprensa local, com a revista Mafrense – da década de 70, da qual era o diretor.
Nascido na cidade de Floriano, no dia 29 de setembro de 1923, mas registrado em Timon
(MA), J. Miguel de Matos era viúvo, há 15 anos, de Francisca Pereira Matos, deixou três filhos,
dez netos e um bisneto. Marleide Matos disse que ele já havia se submetido a oito cirurgias,
estando com o organismo debilitado. “Ele já não conseguia escrever com o próprio punho; ele
ditava e nós transcrevíamos para o papel”, frisou. O sepultamento será hoje, às 8h30min, no
cemitério Jardim da Ressurreição, zona Leste da cidade [...]”.
314

Figura 10 – Lembranças de J. Miguel de Matos

Fonte: LEMBRANÇAS de J. Miguel de Matos. Meio Norte, Teresina, p. 3, 3 maio 2000.

[...] O mundo das letras do Piauí tem sofrido bastante nos últimos meses com a morte de
grandes personagens.
Na última segunda-feira o Estado perdeu o imortal J. Miguel de Matos, que ocupava a
cadeira n° 05 da Academia Piauiense de Letras, cujo patrono era Areolino de Abreu. Matos era
escritor, romancista, ficcionista e crítico literário. Segundo o presidente da APL, R.N. Monteiro
de Santana, o imortal também foi poeta de circunstância. “De vez em quando ele fazia algumas
poesias”, comenta.
O professor Cineas Santos lembra que um dos principais trabalhos de José Miguel de
Matos foi a novela “Brás da Santinha”, escrita na década de 50. “Ele também organizava
antologias de poetas piauienses, como “Caminheiros da Sensibilidade”. Santos conta ainda que
Matos vez por outra escrevia críticas literárias para os jornais da capital.
J. Miguel de Matos nasceu em Floriano em 29 de setembro de 1923, filho de João Emílio
de Matos e Maria do Ó de Matos. Era oficial reformado do Exército e exerceu também a função
de assessor da reitoria da Universidade Federal do Piauí.
315

O acadêmico M. Paulo Nunes conta que Matos participou de movimentos intelectuais no


Piauí e era membro de instituições internacionais. Matos era um romancista de caráter popular
e regionalista, como Fontes Ibiapina. “Um de seus grandes orgulhos era ser delegado regional
do Instituto de Cultura da América”, revela Nunes, acrescentando que o imortal fundou e dirigiu
as revistas Mafrense de Destaque.
Suas principais obras publicadas são o já citado “Brás da Santinha”, que é um romance
regionalista, “Garimpagem”, o livro de memórias “Pisando meus Caminhos”, a “Síntese
Biográfica da Literatura Piauiense”, “Evocação de Abdias Neves” e “Da Costa e Silva – O Poeta
da Saudade”, a “Genealogia da Família Moura Fé” e pequenos ensaios sobre autores piauienses
como Abdias Neves, Lucídio Freitas, João Pinheiro e Martins Napoleão, entre outros.
J. Miguel de Matos foi casado com Francisca Pereira de Sousa e tinha três filhos: a
advogada Marleide Pereira Matos Torquato, o comerciário José Miguel de Matos Filho e o
empresário José Ribamar Matos Pereira. M. Paulo Nunes descreve o imortal como “um
romancista de caráter popular e regionalista. Ele era muito voltado para sua terra, o Piauí. Nesse
ponto comparo-o a Catulo da Paixão Cearense, Fontes Ibiapina e João Ferry, e também ao
português Raul Brandão, também profundos amantes de suas terras natais. Ele era um adepto
da filosofia de que através do regional é que se atinge o universal”. O acadêmico Herculano
Moraes fará o panegírico de J. Miguel de Matos no próximo sábado, dia 6, na Academia
Piauiense de Letras. (N.M) [...].
316

Figura 11 – J. Miguel de Matos: um adeus

Fonte: J. MIGUEL de Matos: um adeus. Meio Norte. Teresina, p. 4, 19 maio 2000.

Herculano Moraes – da APL


[...] Como desincumbir-me de tarefas emocionais a que frequentemente sou designado
a cumprir? A morte de J. Miguel de Matos provocou um desses momentos, em que a emoção
fala alto e a dor do desenlace nos revela que o coração já não é tão forte assim, para suportar o
desabamento sucessivo de amigos e confrades da Academia.
O fato de ser amigo pessoal de J. Miguel de Matos, tendo acompanhado sua rica
trajetória intelectual e participado de alguns momentos alegres e dolorosos de sua vida, talvez
tenha levado o presidente Raimundo Nonato Monteiro Santana a designar-me a tecer o
panegírico do nosso pranteado Miguel.
Comecei a conhecê-lo melhor quando, ainda adolescente, o procurei, levando os
originais de um livrinho de poemas denominado “Murmúrios ao Vento”. Ia em busca de uma
voz amiga, a palavra confortadora de um escritor consagrado, provavelmente o nome mais
conhecido dos meios culturais na ocasião: meados da década de 1960.
317

Daí para cá mantivemos uma amizade sólida, vez por outra colocada em prova diante
de suas atitudes polêmicas e da luta para sobreviver numa sociedade contaminada por
expressões “legitimadas” pelo poder e pela proclamação encomendada.
Conheci sua luta e sua vida. A viagem de Floriano a Timon, pousando os pés nos talos
de buriti das embarcações que desciam o Parnaíba. A casa pobre, rústica, onde um pé de
mulungu descomunal começava a tombar, como tombariam, ao longo da vida, os sonhos do
ansioso autor de “Brás da Santinha”.
Poeta? Foi apenas uma vez, na prática, quando escreveu seu cantos à “Rua do
Molambo”, onde passou parte de sua infância e adolescência. Mas foi poeta a vida inteira, pelos
gosto da noite, pelo amor à mulher, pelos paradoxos da existência.
“Brás da Santinha” abriu-lhe os caminhos. E veio a crítica, a favor e contra, marcando
o estilo polêmico de um escritor de estigmas singulares. Mas não foi a ficção que consolidou
sua carreira de escritor. A pesquisa dos principais vultos de nossa poesia deu o tom do seu
talento. “Caminheiros da Sensibilidade” revelou o pesquisador arguto, analista da alma
humana, sempre buscando, nas vertentes de suas indagações, as contradições do espírito criador
de cada vulto estudado. Invariavelmente isto lhe rendia problemas, quando, por exemplo, tentou
mostrar o lado menos fulgurante da vida social de Abdias Neves.
O estilo? Talvez herdeiro da linhagem melódica e substancialmente romântica de
Humberto de Campos. Mas se houve um mergulho mais profundo nas entranhas de sua
narrativa, Graça Aranha poderá surgir como influência benéfica. A metáfora, as frases longas,
quase irrespiráveis, os períodos intercalados, as adjetivações tornaram sua literatura bastante
singular no universo da literatura piauiense.
Cada linha de sua narrativa revela o sofrimento do homem, a solidão, um certo desespero
decorrente das frustrações infanto-juvenis, a miséria como pano de fundo de algumas paisagens
que pintou.
O ofício de escritor despertou nele o sonho da imortalidade.
E foi à luta, registrando uma das mais difíceis campanhas de ingresso na Academia
Piauiense de Letras. “Sem trava na língua”, contavam-se histórias as mais diferentes. Umas
com o objetivo de fazê-lo recuar, o que não era do seu estilo. Pelo contrário, as refregas sempre
o seduziram.
Parece-me que tinha o destino de combater o bom combate e nessa trajetória, quando
contrariado em suas opiniões, nem os amigos escapavam. E aqui me incluo, juntamente com o
professor A. Tito Filho. Pouco depois, o coração bondoso o fazia bater à porta de algum de nós,
saindo reconfortado em suas emoções.
318

Extremamente emotivo, de gestos largos. Às vezes ferido nas suas avaliações, mas
amoroso e fraterno J. Miguel de Matos nasceu em Floriano, mas afirma ter sido registrado em
Timon “por quebradeira”. Isto é, sem condições, a família teve de registrá-lo na cidade onde
possuía alguns familiares.
Contribuí para algumas de suas alegrias. Uma delas foi indicar seu nome ao Governador
Moraes Souza para receber a Medalha do Mérito Renascença. Outra, a de justificar junto ao
reitor da UESPI, Jônathas Nunes, a reedição de Brás da Santinha e Pisando os Meus Caminhos.
Mas estas divagações não estariam completas se não registrasse aqui as palavras da filha,
Marleide Matos Torquato, quando a Academia prestou homenagem à memória do seu pai [...]”

A Decisão Final - Marleide Matos Torquato


“[...] 25 de março de 2000. São 16 horas. Joana liga para mim. Era a notícia de que meu
pai não estava bem. O tempo parecia longo demais para que eu e meus filhos tomássemos as
primeiras providências. Angustiados procurávamos encontrar uma ambulância. Como uma
ambulância se torna importante. Mais forte, cheia de vida. Imponente e cara. A trajetória em
busca de socorro foi traumática. O vil metal com todo o seu império evidenciava a
vulnerabilidade da pessoa. O poder e o dinheiro surgem com toda a sua arrogância. Acordos,
contratos, cheques-caução, plano de saúde, convênios, a frieza empresarial! Miguel de Matos,
meu pai! Com certeza não ficamos ricos, mas temos muitos amigos, cuja sensibilidade
esmaeceu, um pouco, nosso sofrimento e incertezas. Os médicos militares, Tenente Eulálio e
Silvana, os funcionários do Hospital do BEC, a equipe do Hospital São Marcos, os diligentes
enfermeiros do Hospital Getúlio Vargas, viva o SOS Teresina e ambulância do 2° BEC; os
médicos Luís Cláudio, Francisco Ramos, Aderson, o fisioterapeuta, assistente social Clarisse,
a psicóloga Eulineide, a esotérica Teresinha, o evangélico Antônio, as católicas Helena
Carvalho, Amparo, Anaílza e Ducarmo, os radiologistas da Max Imagem e da Med Imagem a
clínica do Valdinar, o apoio da Fundação Municipal de Saúde, através de Sílvio Mendes.
A luta titânica em defesa da vida. A sua vontade de viver ajudou bastante. Os seus netos
vibravam a cada melhora. Acompanhávamos, com esperança, a sua lenta recuperação. Suas
palavras formavam frases. A desconexidade de ideias inicial deu lugar ao balbucio de ideias
coerentes. O apoio da Academia Piauiense de Letras com a visita do seu presidente e
Acadêmicos deu-lhe novo alerto. A clássica postura de Celso Barros Coelho e Tomaz Campelo
se transformou numa saudável necessidade. Entretanto, além dessa união e forças, os
insondáveis mistérios dos desígnios de Deus conta dia, hora e minutos para liberá-lo da clausura
que as dores lhe impusera.
319

No dia 1° de maio, às 6h, José Miguel fez sua passagem. Ficamos atônitos. As suas
palavras, os passos, o seu sorriso eram apenas a antevéspera. Restou-nos a certeza de encontrá-
lo no dia do juízo final quando, frente a frente, nossos olhos substituirão as lágrimas de tristeza
com a sua partida, cintilar dos sinos. Minha mãe Francisca, por certo, estará e então, aceitaremos
com serenidade, que a decisão final é de Deus, o Criador [...]”.
320

ANEXO II – Discurso de posse do escritor Oton Lustosa na cadeira nº 05 da Academia


Piauiense de Letras

Discurso de posse do escritor Oton Lustosa na cadeira nº 05 da Academia Piauiense de Letras


- Solenidade realizada no Auditório Wilson de Andrade Brandão, da APL, em 5 de abril de
2001.632

I) INTRODUÇÃO

Senhoras e Senhores:
O homem não busca apenas satisfazer as suas necessidades materiais. Para viver,
plenamente, busca a satisfação espiritual. Cheio de poder, posto que dotado de inteligência -
esta explosiva força criadora -, o homem transforma o mundo. Escarafuncha, mexe, bisbilhota
as coisas da Natureza... Queda-se extasiado diante das belezas naturais... Encafifa-se com os
mistérios que levam à perfeição das coisas criadas... Chega a uma conclusão derradeira,
inapelável: Deus existe! Mas... De tanto investigar termina por concluir que algo deve ser
melhorado ainda neste mundo de Deus. Quer o homem o mundo ao seu serviço, útil e prático;
que lhe proporcione um estado tal de bonança, inenarrável, sublime. Algo a que deu o nome de
Felicidade! Eis o objetivo primeiro e último do gênero humano: Ser Feliz! Por isso transforma,
modifica, cria, destrói, luta. E a tal felicidade como uma miragem, ora perto ora longe. E haja
esperanças e haja angústias e haja sonhos! Ah! os sonhos!... Quer o homem, em pleno estado
de vigília, entender os sonhos, torná-los concretos. Freud bem que tentou ensinar a fórmula.
Mas a psicanálise freudiana, para muitos, ainda é um imenso labirinto onírico. Por isso, em
perseguição dessa tão sonhada felicidade, o homem desanda a sofrer. Busca, finalmente, um
lenitivo para essas dores do espírito. Põe-se a serviço da construção e da contemplação da
Beleza. Nesta sua caminhada terráquea, a estação que o leva a mais se aproximar da felicidade
é a contemplação da Beleza. É aí que as artes ocupam importantíssimo papel na vida do homem.
Aliás, ouso dizer, sem a arte - expressão maior da inteligência humana -, o homem não passaria
de um miserável bicho bípede, deslanado, sem cauda, sem garras, despreparado para a caça e
para a pesca; e sem nenhuma chance de cavar, mergulhar e voar. Mas o homem, ser divino, tem

632
DISCURSO de posse de Oton Mário José Lustosa Torres. Revista da Academia Piauiense de Letras,
Teresina, n. 59, p. 83-100, 2001.
321

a Inteligência!... Que o leva ao trabalho maneiroso, ao engenho, à arte, à perfeição, ao amor...


E ainda o levará à felicidade!
Hoje, nesta memorável noite, aqui estamos a enaltecer os progressos da inteligência
humana. Esta sessão acadêmica, solene e festiva a um só tempo, não se realiza para celebrar a
ascensão social ou intelectual de um homem; que o homem continua o mesmo: do tamanho de
suas ações, do tamanho de suas obras, do tamanho de seus méritos, do tamanho do seu caráter.
É à cultura de um povo que se rendem homenagens! Um templo acadêmico, que tem os
guardados da história e da tradição cultural de um povo e tem a senha para um alvissareiro
futuro, vive intensamente o presente, faz Cultura; posto que, no dizer de ORTEGA Y GASSET,
“cultura é o sistema de idéias vivas que cada tempo possui”.i

II) ACADEMIA E A CADEIRA CINCO


E por falar em cultura, o nosso Piauí não ficou de braços cruzados naqueles momentos
de ânsia em que o País Verde-Amarelo, no início do século XX, buscava a sua afirmação
cultural. Aqui, também, as artes eram cultuadas. Porém, a partir de 1910, como que houve por
estas plagas uma avalanche cultural. Senão vejamos:
Estrondeava o Positivismo de AUGUSTE COMTE, aos brados de TOBIAS
BARRETO, este sergipano indomável, que fez a Escola do Recife e à frente dela arrebanhou
uma legião imensa de seguidores e discípulos; varões que mais tarde viriam a gerir as ciências,
a cultura e a política deste país. O Brasil jovem, irrequieto, vontadoso, idealista, revolucionário
mesmo, para ali afluía em busca das luzes da sociologia, a nova ciência dos fatos sociais, que
tem por fundamento a experiência; descarta as abstrações metafísicas e busca o objetivo último
do aperfeiçoamento moral do homem. Ali, no velho prédio da Faculdade de Direito, no Largo
do Hospício, ecoaram as vozes retumbantes e brilharam as idéias maravilhosas de JOAQUIM
NABUCO, CASTRO ALVES, RUI BARBOSA, SYLVIO ROMERO, AUGUSTO DOS
ANJOS e tantos outros vates de incomensurável valor. Piauienses de aguçada inteligência
foram ao Recife beber conhecimento. Era início do século... HIGINO CÍCERO DA CUNHA,
CLODOALDO FREITAS, ABDIAS NEVES, entre outros, lá estiveram. De volta à terra natal
abre Clodoaldo a sua casa à visitação dos intelectuais da terra, afinados com as novas idéias e
dispostos a desafiar a velha ordem filosófica. Tempos mais tarde eis que surge um líder! Quem
o seria? O filho de Clodoaldo, o jovem LUCÍDIO FREITAS! Poeta de profunda sensibilidade
e de vasto saber científico e filosófico; jovem bacharel aos dezenove anos de idade, fez-se
magistrado no Pará, onde, também, lecionou para acadêmicos de Direito. Com a saúde física
abalada, cheio de saudades da terra distante, regressa à sua querida Teresina, para aqui curar-se
322

de todos os males, viver feliz e poder, com galhardia e desassombro, realizar o que mais gostaria
de fazer: jornalismo e literatura! Em curto espaço de tempo como que faz uma revolução
intelectual na cidade: profere inúmeras e esplendorosas conferências, congrega literatos, prega
a idéia de criação de um grêmio literário que bem pudesse representar a Literatura Piauiense.
Assim é que em 30 de dezembro de 1917, é fundada a Academia Piauiense de Letras!
Louvada seja aquela radiosa manhã de dezembro! Porque de lá para cá o Piauí viu subir
o seu moral no cenário artístico-literário nacional.
Nesta noite, não a de Clodoaldo - o pai; mas a imortalizada Casa de Lucídio Freitas – o
filho -, mais uma vez se enche para homenagear a Literatura Piauiense. Faz acontecer, como é
da sua tradição, mais um fato histórico. Registra nos seus anais, movida pelo idealismo ainda e
sempre do Poeta Louro, a acolhida democrática de mais um piauiense, humilde e modesto que
seja, mas cheio de idéias sãs e de vontades boas.
Quantos pontificaram neste Sodalício, a difundir a verdadeira política, as ciências úteis
e as belas artes!...
Como recipiendário, cabe-me, com grande honra, falar a respeito do patrono e ocupantes
da cadeira número cinco, esta que no primeiro momento de fundação coube a Edison da Paz
Cunha, num segundo momento a José Miguel de Matos; e que hoje me cabe graças a uma
eleição democrática, de muita justiça e de muita bondade de coração por parte dos integrantes
desta gloriosa Casa.
Um grande piauiense, político de grande valor, que serviu abnegadamente ao seu Estado
e ao seu povo, renomado profissional da ciência de Hipócrates, dá nome à cadeira número 05.
Areolino Antônio de Abreu! Nome de rua movimentada desta capital; nome do maior hospital
psiquiátrico de nossa querida Teresina. É nome que figura na viva lembrança do povo e que
está presente nos compêndios da História do Piauí. Teresinense de nascimento, aqui viveu, aqui
dedicou toda a sua vida de trabalho. Médico psiquiatra do mais refinado zêlo e de fulgurante
visão de futuro. Valeu-se da política partidária para laborar em prol do povo, da saúde do povo.
Fez-se deputado, vice-governador e governador do Estado. Fundou o Asilo dos Alienados de
Teresina que anos mais tarde veio a se transformar no atual Hospital Psiquiátrico “Areolino de
Abreu”. Jornalista e escritor. Enfim, um grande piauiense! Por isso, com muita justiça e com
muita honra, regozija-se a Academia Piauiense de Letras em ter Areolino Antônio de Abreu
como patrono de uma de suas cadeiras, a de número cinco.
Não poderia deixar de mencionar, ainda que de forma rápida, a figura de Edison da Paz
Cunha. Escritor, jornalista, advogado, promotor de justiça, filósofo e poeta. Teresinense de
nascimento, filho do grande Higino Cunha. Amigo de Lucídio e um dos fundadores da
323

Academia Piauiense de Letras. Primeiro ocupante da cadeira cinco. Mudou-se para Parnaíba e
ali desenvolveu atividades educacionais, jornalísticas e forenses. Por ocasião do jubileu de prata
da Academia Piauiense de Letras lançou Vozes Imortais, antologia que reuniu toda a atividade
intelectual dos integrantes da APL ao longo de sua existência.
Agora, eis que me chega o momento de falar sobre o último ocupante desta cadeira:
JOSÉ MIGUEL DE MATOS! E o faço com prazer intenso e viva emoção. J. Miguel de Matos:
assim era carinhosamente chamado. Nasceu no ano de 1923. Encetou carreira militar no
Exército Brasileiro, fez-se valoroso soldado no posto de oficial e foi laureado com a “Medalha
de Guerra” por combater na 2ª Conflagração Mundial. Jornalista, antologista, genealogista,
biógrafo, poeta. Escrevia quase que diariamente nos jornais de Teresina. Publicou os seguintes
livros: Brás da Santinha; Caminheiros da sensibilidade; Antologia poética piauiense; Pisando
os meus caminhos; Síntese biográfica da literatura piauiense; Perfis: crítica literária; Evocação
de Abdias Neves; Da Costa e Silva: o poeta da saudade; Mosaicos; Garimpagem; João Pinheiro;
Martins Napoleão; A Casa de Lucídio Freitas; Genealogia da família Moura Fé. Em co-autoria
com Arimathéa Tito Filho, escreveu Vida e obra de autores piauienses. Ficaram inéditos: Vida
e obra de Da Costa e Silva e “Da Rua do Molambo à Academia Piauiense de Letras”, este o
livro polêmico bem ao gosto do saudoso J. Miguel.
Sobre essa figura notável das letras piauienses, disse HERCULANO MORAES, seu
confrade e amigo:

... Conheci sua luta e sua vida. A viagem de Floriano a Timon, pousando os
pés nos talos de buriti das embarcações que desciam o Parnaíba. A casa pobre,
rústica, onde um pé de mulungu descomunal começava a tombar, como
tombariam, ao longo da vida, os sonhos de ansioso autor de ‘Brás da
Santinha’. Poeta? Foi apenas uma vez, na prática, quando escreveu seu ‘canto
á rua do molambo’, onde passou parte de sua infância e adolescência. Mas foi
poeta a vida inteira, pelo gosto da noite, pelo amor à mulher, pelos paradoxos
da existência. ‘Brás da Santinha’ abriu-lhe os caminhos. E veio a crítica, a
favor e contra, marcando o estilo polêmico de um escritor de estigmas
singulares. Mas não foi a ficção que consolidou sua carreira de escritor. A
pesquisa dos principais vultos de nossa poesia deu o tom do seu talento.

Prossegue HERCULANO MORAES:

[...] O ofício de escritor despertou nele o sonho da imortalidade. E foi à luta,


registrando uma das mais difíceis campanhas de ingresso na Academia
Piauiense de Letras. ‘Sem trava na língua’, contavam-se histórias as mais
diferentes. Umas com o objetivo de fazê-lo recuar, o que não era do seu estilo.
Pelo contrário, as refregas sempre o seduziram. Parece-me que tinha o destino
de combater o bom combate e nessa trajetória, quando contrariado em suas
opiniões, nem os amigos escapavam. E aqui me incluo, juntamente com o
324

professor A. Tito Filho. Pouco depois, o coração bondoso o fazia bater à porta
de algum de nós, saindo reconfortado em suas emoções.

Extremamente emotivo, de gestos largos, às vezes, ferino nas suas avaliações,


mas amoroso e fraterno”.ii

CAMILO CASTELO BRANCO, o grande romancista português, que escreveu Amor


de Perdição, disse certa vez: “A poesia não tem presente: ou é esperança ou é saudade.”
Melhor seria, pois, que aqui estivesse a falar um poeta. A vida de J. Miguel de Matos, que se
transmuda em saudade, muito melhor seria cantada. E o que dizer do seu sucessor, que
representa a esperança? Mais uma vez, o poeta é que se desincumbiria a contento de tal mister.
Saudade e esperança: o mundo maravilhoso dos poetas!
Literatura, entretanto, não se faz apenas de saudades e de esperanças. Por isso é que o
prosador é chamado para vir testemunhar o presente, registrar o seu tempo, expor a sua visão
de mundo. Dito isto, podemos concluir: de poetas e prosadores faz-se o tempo, que é trindade
e é uno, a um só tempo. Passado, presente e futuro - eis o tempo! O tempo que nós matamos, o
tempo que nos enterra - como sussurrou o defunto Brás Cubas ao ouvido de Machado de Assis,
o Bruxo de Cosme Velho. O tempo enterrou Lucídio, enterrou Areolino, enterrou Edison,
enterrou J. Miguel... Falo dos homens que o tempo enterrou... E por que falo? Porque tenho o
que falar. Tenho a história que os resgata. Tenho os seus nomes, tenho as suas obras, tenho a
sua arte. Tenho bem vivas as suas idéias! Morrem os homens, nunca morrem as idéias!
É para isto que existem as Academias de Letras: para que o tempo, que tudo leva de
roldão, não arrebate as idéias que, não obstante tenham sido elas forjadas no pretérito, cumprem
a missão de servir ao presente, para que haja o futuro. Daí a necessidade de se conservarem as
obras e as idéias dos que se foram, para que os que hão de vir possam fazer muito mais e melhor.
Num passado remotíssimo tudo se criava e recriava pela tradição oral. A palavra que
fazia a comunicação, que fazia a arte, que fazia a cultura era dita e não escrita. Mesmo assim
não se perdia tão facilmente. Surgiu a palavra escrita, surgiu o livro e a cultura agigantou-se,
ganhou o mundo, venceu o tempo.
A arte da palavra não tem idade!
Os clássicos continuam atualíssimos. Os dramas da vida são de hoje, de ontem e de
antanho e de sempre. A mensagem artística é sempre atual. É que a Arte expressa o Belo... E a
Beleza, no dizer do filósofo PLATÃO, “é o esplendor da Verdade”.
Nem precisa dizer que a Verdade é a nossa razão de viver, a nossa libertação, a nossa
genuína imortalidade.
E viva o livro! “Um país se faz com homens e livros”, disse-o MONTEIRO LOBATO.
325

Agora leio na mídia que os passionais da cibernética, da informática e da robótica agouram o


fim do livro impresso... E prognosticam o livro eletrônico. Em novembro do ano passado, foi-
se o PLÍNIO DOYLE. Mas o outro ficou: aí está firme, serena, inabalável a figura do JOSÉ
MINDLIN, o grande mecenas, o bibliófilo-mor do Brasil, a nos passar a tranqüilidade de que o
livro impresso continuará para todo o sempre a sua função sublime de globalizar a cultura e
elevar o homem ao mais alto patamar de sua inteligência.
O poeta contemporâneo SILAS CORRÊA LEITE, a propósito dessa maledicente
profecia, lança no papel a sua indignação:

[...] Alguns arautos da imbecilidade coletiva pregam o fim do livro impresso.


Brincadeira de mau gosto. Mesmo com todo o exuberante avanço dos meios
de comunicação, as palavras precisam ser impressas/expressas, não apenas os
símbolos de tecnologia de ponta, pois a grafia e a fala são extremamente
importantes e o universo precisa de diálogo, de exercitar o uso de palavras por
atacado. E esse papel sagrado – sustentáculo da espécie humana – mantém-se
com o livro; somente o livro poderia fazer estrutura e base dessa continuação
ético-plural-comunitária do Ser Humano enquanto Ser e enquanto Humano.
Vieram os provedores, as ferramentas, os lap-tops, os canais on-line, os chips,
bips, plugs e outros recursos de mídia e comunicação. No entanto, por incrível
que possa parecer a leigos e açodados algozes do apocalipse da cultura, nunca
se vendeu tanto livro, nunca o bendito livro deixou de ser um amigo, um
companheiro, um utensílio de entretenimento, cultura, educação e lazer à mão,
apesar dos pequenos computadores, das tecnologias avançadas de toda
natureza. O livro, sim, aquele que nos acompanhou em sonhos e abstrações;
em esperanças e iluminuras, em matizes de evolução em todos os níveis e
sentidos. O livro, companheiro do silêncio, da solidão mais íntima, da poesia
mais exercício de libertação (parafraseando Manuel Bandeira), da viagem
mais interior, do paraíso mais hangar ou do salto para o alto. O Livro, bendito
seja!”.iii

III) UMA HISTÓRIA PARA CONTAR: MINHA INFÂNCIA


Senhoras e Senhores Acadêmicos; meus amigos:
A Ciência, a Arte e o dedo de Deus me conduzem a este cenáculo das letras piauienses!
Quanta emoção sinto nesta hora... Como prosador, mais habituado a entregar as tarefas difíceis
aos personagens, sempre me limitei a narrar. Agora, nesta passagem emocionante do romance
de minha vida, vejo-me na condição de personagem e teria eu próprio de narrar e descrever o
que se passa comigo e à minha volta. Não me bastam as palavras... Socorro-me da ciência e da
tecnologia: valho-me das imagens vivas. Elas me dirão melhor amanhã o que hoje se passa
aqui. Filmem!, por favor, a ternura de minha família e de meus parentes, a satisfação, a
confiança e a esperança dos meus amigos! Filmem esta minha emoção, que dentro em pouco
se avolumará mais e mais quando me puser a narrar algumas passagens da minha infância. Já
326

ultrapasso a estação dos quarenta, mas numa hora dessas urge que me transforme em criança.
É como se fosse ontem...
Uma tarde calorenta de agosto... Venho à luz, não sem causar enormes dores à minha
mãe, que logo ao ouvir o meu choro faz-se toda ternura e o sofrimento puerperal cede lugar ao
regozijo do amor intenso. Bebo o leite de minha mãe e sob a sustância do peito farto imunizo-
me contra os males devoradores de anjinhos. Sara o meu umbigo e eu escapo. Chegam os meus
irmãos: um, dois, três. Breves quatro anos de intercaladas desmamas precoces. Dali mesmo do
leito da vida, onde choramingava o meu irmão caçula, recém-nascido, numa alegre-triste tarde
de outubro, sob o impacto da eclampsia, partiu minha mãe para a eternidade. Ficamos os quatro,
entregues ao nosso extremoso pai e a este mundo adverso. Ainda bem que o nosso mundinho
era pequeno. Pequena a casa, pequeno o rebanho, pequena a gleba. Grandes eram os sonhos!
Grande era o Amor de meu pai!
E agora, nesta noite triunfal, eis que as imagens da infância como que pintam aquarela
em minha memória. Vejo o cinzento do capuão de mato ao lado do curral... O barro vermelho
da cova de minha mãe... Bem... Represo aqui as lágrimas. Transporto-me para o lado alegre da
vida. Canto aqui como cantou alhures o jovem poeta das primaveras: “Oh! que saudades que
tenho da aurora da minha vida, da minha infância querida, que os anos não trazem mais.” Vejo
as vacas, os bezerros, os cabritos... As cebolinhas do campo, floridas, no mês de novembro,
com as primeiras chuvas. Gigantescas flores de borboletas esparramadas sobre o paul suculento
da lama do curral, também no valado das grotas e barrocas, nas prainhas do córrego. O Paraim,
empanturrado, a engolir as vazantes e a devorar os arrozais, os milharais, as melancias e as
abóboras em flor. O bando das capivaras, dos quatis e dos guaribas... Como o vaqueiro Fabiano,
o anti-herói graciliâneo de Vidas Secas, vejo “o mundo feito de penas”! Multicolorido com o
verde das maracanãs e dos papagaios, o vermelho dos guarás e a nuvem das marrecas, garças e
jaburus. Em meio à densa folhagem dos saboneteiros, juazeiros, gameleiras, ingazeiras, pajeús
e outros majestosos espécimes da flora graúda do baixo Paraim, aqui e ali, por entre a floresta
secundária, degusto travosas frutinhas de creolis, doces bananinhas do mato, melífluos grãos-
de-galo, coroatás, mutambas, resinas açucaradas e a doce farinha dos jatobás-de-casca-fina.
Ah!... Que vidinha gostosa! Feita de leite mungido, coalhada escorrida, dedos lambuzados no
tacho de doce e nos doces favos dos jataís e das mandaçaias!... Vidinha perigosa das quedas e
coices dos jumentos, das marradas dos carneiros, das dentadas das piranhas, dos mortais da
ribanceira e das flechadas da galhada do muquém. Vidinha insalubre... Das frieiras e dos
carrapatos, das sezões e dos sarampos!
Vejo-me na minha amada cidade de Parnaguá... Entre a serra encantadora e a lagoa
327

encantada; imensa, de águas róseas maretadas, onde tem morada o curumim enjeitado filho de
Miridan. Um tanto acanhado, na casa do avô octogenário, sob os cuidados das tias, em meio à
corriola dos primos citadinos, atilados, peraltas... Que chupavam picolés e pirulitos, atiravam
de baladeiras, assistiam de coroinhas, fumavam cigarros mansos, aperreavam as meninas na
pracinha da igreja e faziam indecências nos escondidos dos quintais. No joguinho do pião ou
da bolinha de gude, por qualquer discórdia, lá vinha o duelo: dois riscos no chão, uma mãe,
outra mãe... O tapa, a rasteira, a atracação. O campo do jogo virava rinha. Lavava-se com sangue
a honra ultrajada da mãe, que era o risco, pisado pelo adversário atrevido. Algumas vezes fiz
tal defesa e me dei mal. Confesso, não fui um valente soldado do exército de minha rua.
Na Escola Paroquial embasbaco-me com a didática do professor Guida e não acerto as
composições sobre o Dia das Mães, a lenda da Miridan, a vida pública e privada do senhor José
da Cunha Lustosa, o Barão de Paraim. Depois, salvo do exame de admissão ao ginásio, no meu
querido Colégio São José, enliço-me na prosa engrolada dos mercedários espanhóis e não
entendo bem as equações matemáticas do padre González Flores. Nas ruas da minha querida
cidade de Corrente curto toda a minha adolescência; feita de mergulhos no meu rio de águas
lépidas, barrentas, com seu perau traiçoeiro e suas aconchegantes coroas; sob o verde das copas
das mangueiras e a sentinela de esguios coqueiros-da-praia. Recordo as tardes alegres das
peladas no campinho do Instituto Batista Correntino e as gloriosas manhãs setembrinas sob o
rufo dos tambores e os solos dos clarins em homenagem à pátria amada. Miúdo, envergando o
brim da fatiota de gala, no adro da Matriz da Conceição, interpretava o Castro Alves e o
Casimiro de Abreu. Choviam as palmas e o meu mundo já não era feito de penas; era feito de
versos, rimas e sonhos.
Belos tempos! Belos sonhos!

IV) CONTAR HISTÓRIAS: MINHA ARTE


Eis que dali a um futuro próximo a poesia da adolescência teria de ceder lugar à ciência
do homem maduro, pronto para enfrentar a vida e ser útil à coletividade. Bacharel, advogado,
julgador. Entrego-me à auscultação jurídico-sociológica. O fato social freme nos meus ouvidos,
arde nos meus olhos, solavanca o meu coração. A balança da justiça se me apresenta com
palmas pequenas para abarcar todas as vicissitudes da vida. E o que vejo: a injustiça social,
crua, agressiva, malvada, a devorar sonhos a um palmo do meu nariz. O que posso fazer? Faço!
Vejo, ouço, aconselho, defendo, julgo. Humilde operário na construção desse gigantesco
edifício social, o meu trabalho é quase nada... Se pudesse, consertaria o mundo, que a receita
eu tenho comigo: neste caldeirão fervente de realidade mundana falta o tempero da justiça
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social, da paz e do amor.


Oxalá se OSCAR WILDE, ivo irreverente escritor irlandês(mais londrino que irlandês),
tivesse razão e a vida, realmente, imitasse a arte! Os poetas, os ficcionistas, os artistas, sonhadores
todos, recriariam um novo mundo real e maravilhoso. A Beleza governaria a Terra. A vida
ganharia formas divinais: eretas, airosas, altivas; ganharia tetos asseados, mesas fartas, alvos e
expansivos sorrisos. A tristeza bateria em retirada e a Felicidade faria morada em cada lar.
Mas é ao contrário que se dão as coisas. Ainda e sempre com a razão Aristóteles, o velho
filósofo grego: é a arte que imita a vida! E a vida é esta: a ignorância e a clarividência, o
fanatismo e a fé, a favela e o palácio, o molambo e o luxo, o espírito e a matéria, o amor e o
ódio, a guerra e a paz, o bem e o mal.
Algo, porém, se faz presente na vida em qualquer dos dois extremos: os sonhos!
Oniricamente a vida se iguala! Sonhamos todos: ricos ou pobres, ignorantes ou sábios.
A arte, que imita a vida, é feita de realidades e de sonhos. As realidades provocam a
reflexão profunda, o exercício meticuloso da inteligência, o projeto e a ação; os sonhos feitos
de traços, de formas, de movimentos, de sons, de tinta, de versos e de frases provocam o prazer
estético e sublimam a alma humana.
Vivo! Isto é: faço, vejo, sinto, rio, choro e sonho! Valho-me da ciência para registrar a
minha visão do mundo. Valho-me da arte para dar vazão às minhas idéias que borbulham em
meu intelecto; às minhas emoções que se me derramam pelos olhos; às minhas angústias de
animal político que não sabe viver sozinho sem se espelhar no seu semelhante. Escrevo.
Testemunho o meu tempo, canto a minha aldeia; de meus devaneios e pesadelos faço prosa
curta ou comprida... Crio um mundinho pinóia feito de tinta e papel e nele meto personagens
cambembes, encontradiças por aí nas praças, nas esquinas, nas feiras, nos subúrbios, nos guetos,
nas favelas, nas ribanceiras, nos brejos e nas grotas de meu chão nordestino, brasileiro.

V) MEU FANAL: A VERDADE


Senhoras e Senhores:
Chego à Academia Piauiense de Letras... Não trago bagagem grande. Não venho para
multiplicar, que só valho por um único homem. Multiplicar por um é o mesmo que não fazer
qualquer operação aritmética. Por outro lado, não represento a diferença. Pequena parcela é o
que sou! Venho para somar e não venho como divisor nem como dividendo. Estou certo de que
não aportei no Paraíso. A felicidade plena ainda continua sendo uma miragem para mim e creio
que para todos nós.
Não trago um baú de respostas, por isso digo que a minha bagagem não é grande. Venho
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fazer perguntas. Perguntas aos mestres, perguntas a mim mesmo. Nunca, jamais, deixarei de
me interrogar. O que vejo, o que sinto, o que imagino: eis o meu questionário, eis o meu
universo de dúvidas. A minha ânsia é um dia entender plenamente o meu semelhante, a vida, o
mundo. Conhecer por inteiro a Verdade! Não me convence a resposta pífia que a realidade
mundana me oferece. Mudar o mundo... Para melhor!... Este deve ser o trabalho da inteligência
humana. Entrego-me de corpo e alma a esse labor. No campo, na rua, no foro, no lar... No meio
do mundo, na escola da vida... Aprendendo... Ensinando... Deus por guia e a boa vontade por
instrumento de ação. Exploro, ilimitadamente, a minha liberdade; abnegadamente, busco a
Verdade, que representa a minha libertação.
Muito obrigado!

i
JOSÉ ORTEGA Y GASSET. Filósofo espanhol. Catedrático de metafísica da Universidade de Madri. Criador
da filosofia da “Razão Vital”, que é sintetizada em sua famosa frase: “Yo soy yo e mis circunstancias”. Autor de
La Rebelión de las Massas (1929).
ii
HERCULANO MORAES DA SILVA FILHO é poeta, crítico literário, ocupante da cadeira 18 da Academia
Piauiense de Letras. Publicou este panegírico sobre J. Miguel de Matos no jornal O Dia, logo após a morte do
escritor ocorrida em maio de 2000.
iii
SILAS CORRÊA LEITE é poeta e professor, autor de Trilhas & Iluminuras. In: O ESCRITOR, Jornal da
União Brasileira de Escritores-RJ, n. 94, p. 10, jan. 2001.
iv
OSCAR FINGAL O’FLAHERTIE WILLS WILDE – “apresentava-se em público com seus longos cachos,
casaco de veludo, calções, camisa larga de colarinho baixo, gravata de cores extravagantes. Na mão ou na lapela,
sempre um lírio ou um girassol”. Homossexual. Escreveu O Retrato de Dorian Gray (romance), considerada
“obra envenenadora dos costumes londrinos”. Pregou “a arte pela arte” e afirmava a superioridade do artista.
Preso e condenado por seu relacionamento homossexual com o belo jovem Alfred Douglas, o Bosie. Faleceu, em
Paris, em 1900.

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