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Ministério da Educação
Fernando Haddad
Ministro do Estado da Educação
Ronaldo Mota
Secretário de Educação Superior
Carlos Eduardo Bielschowsky
Secretário da Educação a Distância
Elaboração do Conteúdo
Pedro Brum Santos
Professor pesquisador/conteudista
1
LETRAS/PORTUGUÊS
INTRODUÇÃO AOS ASSUNTOS LITERÁRIOS I
Revisão de Português
Andréa Ad Reginatto
Ceres Helena Ziegler Bevilaqua
Maísa Augusta Borin
Silvia Helena Lovato do Nascimento
Ilustração e Diagramação
Camila Rizzatti Marqui
Evandro Bertol
Flávia Cirolini Weber
Helena Ruiz de Souza
Lucia Cristina Mazetti Palmeiro
Ricardo Antunes Machado
Suporte Técnico
Adílson Heck
Cleber Righi
2
PROGRAMA DA DISCIPLINA
3) PERÍODOS LITERÁRIOS
O terceiro tópico trará algumas considerações sobre os diferentes estilos que
distinguem manifestações literárias de períodos diversos.
4) GÊNEROS LITERÁRIOS
O quarto tópico se destinará a discutir a questão dos gêneros e suas
implicações sobre as produções literárias.
5) FUNDAMENTOS DA NARRATIVA
A partir deste tópico a disciplina se concentrará no estudo da narrativa. Para
tanto, abordaremos diferentes formas narrativas e suas especificidades.
7) PERSONAGEM DE FICÇÃO
Neste tópico abordaremos a personagem de ficção, seu modo de existência e
as diferentes maneiras como ela pode ser construída.
8) ESPAÇO E TEMPO
No último tópico, enfim, trataremos do tempo e do espaço no universo ficcional.
TÓPICO 1 – NATUREZA E FUNÇÕES DA LITERATURA
à medida que a vida do homem se torna mais complexa e mecanizada, mais dividida em
interesses de classes, mais ‘independente’ da vida dos outros homens e, portanto,
esquecida do espírito coletivo que completa uns homens nos outros, a função da arte é
refundir esse homem, torná-lo de novo são e incitá-lo à permanente escalada de si mesmo.
Todas as grandes fases de evolução da sociedade tiveram aquele momento de pujança em
que, sem esforço, o artista, integrado no processo, fez do homem do seu tempo um retrato
imortal. Até hoje é com um orgulho nostálgico que nos contemplamos no espelho que
ergueram os pintores da Renascença ou os músicos do século XVIII. A arte é necessária
para que o homem se torne capaz de conhecer e mudar o mundo. Mas a arte também é
necessária em virtude da magia que lhe é inerente.
O poeta latino Horácio, em sua Arte poética, expõe que a arte de escrever
consiste em produzir textos que possam deleitar e instruir: “Os poetas desejam ou
ser úteis, ou deleitar, ou dizer coisas ao mesmo tempo agradáveis e proveitosas para a
vida”. A idéia de que a literatura é uma forma de conhecimento, ou de transmissão
de valores e saberes, vem desde Platão e Aristóteles. Para este último, a arte imita
a vida, e o homem aprende e sente prazer imitando.
O que é literatura?
A Literatura é arte e só pode ser encarada como arte. (Doutrina da arte pela arte, fins do século
XIX)
Se recorrermos ao dicionário, tampouco resolveremos nosso problema:
literatura (Do lat. litteratura.] S.f. 1. Arte de compor ou escrever trabalhos artísticos em prosa ou
verso. 2. O conjunto de trabalhos literários dum país ou duma época. 3. Os homens de letras: A
literatura brasileira fez-se representar no colóquio de Lisboa. 4. A vida literária. 5. A carreira das
letras. 6. Conjunto de conhecimentos relativos às obras ou aos autores literários: estudante de
literatura brasileira; manual de literatura portuguesa. 7. Qualquer dos usos estéticos da
linguagem: literatura oral [p.v.] 8. Fam. Irrealidade, ficção: Sonhador, tudo quanto diz é literatura.
9. Bibliografia: Já é bem extensa a literatura da física nuclear. 10. Conjunto de escritos de
propaganda de um produto industrial.
Como podemos ver, as definições são as mais diversas e podem variar segundo
a época e o sistema de valores vigentes no momento em que são formuladas. Por essa
razão, ao tratarmos desse objeto a que chamamos “literatura”, devemos ter em mente
que lidamos com um conceito, historicamente variável, e não com algo cuja definição
possa ser fixada de maneira precisa.
Vejamos alguns conceitos de literatura:
1) Literatura é tudo o que está escrito. Nessa acepção, remete ao sentido original da palavra (a
forma latina “litteratura” vem de “littera”, que significa “letra” [representação gráfica dos sons da
linguagem]). Nesse sentido, abrange as acepções 2 e 9 do dicionário Aurélio.
2) Literatura é uma escrita imaginativa, não verídica, dissociada da realidade factual (daí a
acepção 8 do dicionário, que atribui à palavra o sentido de “irrealidade, ficção”).
3) Literatura é uma escrita que emprega a linguagem de maneira peculiar. Seria, desse modo,
um tipo de linguagem que chama atenção sobre si mesma, afastando-se da linguagem comum.
4) Literatura é uma escrita que apresenta uma função não pragmática, ou seja, é uma escrita
que não tem uma finalidade prática imediata; sua finalidade precípua seria, assim, a finalidade
estética.
Atividade I:
1) Baseando-se nos textos estudados no primeiro tópico, o que se pode dizer acerca do
conceito de literatura e de sua função?
2) Por que os conceitos de literatura variam?
3) Segundo Wolfgang Kayser, que critérios podem ser usados para definir com maior
eficácia o que seja um texto literário?
Atividade II:
1) Leia os textos a seguir, atentando para a forma, para o conteúdo e para os elementos
contextuais de cada um deles:
TEXTO 1: TEXTO 2:
2) Qual deles você acha que pode ser considerado “literário”? Por quê?
Atividade III:
Obs.: Se você não puder concluir a Atividade II nesta semana, não se preocupe; nossas
discussões acompanharão as da autora ainda na semana que vem. Mas lembre-se: até o
fim da segunda semana é importante que você já tenha concluído a leitura da obra, pois
isso o ajudará na realização de sua primeira tarefa.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:
CALLADO, Antônio. Introdução. In: FISCHER, Ernst. A necessidade da arte. 6. ed. Rio
de Janeiro: Zahar, 1977.
HORÁCIO. Arte poética. Lisboa: Inquérito, [s/d]
KAYSER, Wolfgang. Análise e interpretação da obra literária. Introdução à ciência da
literatura. Coimbra: Armênio Amado, 1976.
BIBLIOGRAFIA DE APOIO:
AGUIAR E SILVA, Vítor Manuel de. Teoria da literatura. Coimbra: Almedina, 1973.
ARISTÓTELES, HORÁCIO, LONGINO. A poética clássica. São Paulo: Cultrix, 1981.
COELHO, Nelly Novaes. Literatura e linguagem. São Paulo: Quíron, 1986. [Capítulo
2: Arte e literatura]
EAGLETON, Terry. Teoria da literatura: uma introdução. Trad. Waltensir Dutra. São
Paulo: Martins Fontes, 2001. [Introdução]
LAJOLO, Marisa. O que é literatura. São Paulo: Brasiliense, 1982. Coleção Primeiros
Passos.
WELLEK, René; WARREN, Austin. Teoria da literatura. Trad. José Palla e Carmo. 4.
ed. Lisboa: Europa-América.
TÓPICO 2 – NOÇÕES FUNDAMENTAIS
Ficção e realidade
A Literatura, como toda arte, é uma transfiguração do real, é a realidade recriada através do espírito do
artista e retransmitida através da língua para as formas, que são os gêneros, e com os quais ela toma
corpo e nova realidade. Passa, então, a viver outra vida, autônoma, independente do autor e da
experiência de realidade de onde proveio. Os fatos que lhe deram às vezes origem perderam a realidade
primitiva e adquiriram outra, graças à imaginação do artista. São agora fatos de outra natureza,
diferentes dos fatos naturais objetivados pela ciência ou pela história ou pelo social.
A verdade estética – desde Aristóteles que se sabe – é diversa da verdade histórica. O artista literário
cria ou recria um mundo de verdades que não são mensuráveis pelos mesmos padrões das verdades
fatuais. Os fatos que manipula não têm comparação com os da realidade concreta. São as verdades
humanas gerais, que traduzem antes um sentimento de experiência, uma compreensão e um julgamento
das coisas humanas, um sentido da vida, e que fornecem um retrato vivo e insinuante da vida, o qual
sugere antes que esgota o quadro.
A Literatura é, assim, a vida, parte da vida, não se admitindo possa haver conflito entre uma e outra.
Através das obras literárias, tomamos contato com a vida, nas suas verdades eternas, comuns a todos
os homens e lugares, porque são as verdades da mesma condição humana.
(Afrânio Coutinho, 1978, p. 9)
Se, para criar essa “realidade sui generis”, é certo que a literatura às vezes se
utiliza de elementos do mundo exterior, é certo também que a realidade recriada pelo
texto não é o mundo exterior, embora possa até ser confundida com ele, tamanha a
fidelidade que se percebe em algumas produções.
Mesmo quando essa fidelidade é intencional, mesmo quando o poeta/autor se
propõe a falar da própria vida, é importante que se separem estes dois planos: o plano
da realidade externa ao texto (o mundo em que vivemos e em que o autor vive ou
viveu), e o plano textual (o universo fictício que só tem existência na e pela língua).
É fundamental que se entenda, portanto, que a literatura trabalha com
representações. É nesse sentido que o termo mímesis dever ser compreendido quando
se diz que a arte literária imita por meio da palavra: imitação, aqui, não é cópia pura e
simples, mas recriação. Como representação artística, a obra literária não tem
compromisso com a reprodução ou transposição fiel da realidade. Desse modo, não é
pertinente para a literatura a noção de verdade, mas sim a de coerência interna. A
História, a Ciência estão comprometidas com a suposta verdade dos fatos. A Literatura
compromete-se com o que os teóricos chamam verossimilhança.
A verossimilhança não se confunde com a verdade. Aristóteles, em sua Poética,
ao apontar o que caberia ao poeta representar, explica que: “não compete ao poeta
narrar exatamente o que aconteceu; mas sim o que poderia ter acontecido, o possível,
segundo a verossimilhança ou a necessidade”. A verossimilhança, conceito esclarecido
posteriormente pelos teóricos clássicos, deve ser considerada não como possibilidade
real, mas como possibilidade estrutural. Em outras palavras: o verossímil é aquilo que,
dentro do texto literário, é possível ou necessário, não importando se o mesmo é
possível fora do texto, na realidade empírica. Um bom exemplo do que acabamos de
dizer encontra-se nos textos de contos de fadas. Nesse tipo de conto, são relatados
não apenas fatos que jamais aconteceram como também fatos que jamais
acontecerão: são coisas impossíveis de acontecer no plano da realidade. Esses fatos,
no entanto, obedecem à lógica interna do conto de fadas: o mundo que ele representa
é o mundo maravilhoso, onde coisas extraordinárias podem acontecer.
Os conceitos de representação e verossimilhança nos remetem ao de ficção,
termo usado normalmente para descrever obras criadas a partir da imaginação. Obras
ficcionais podem ser parcialmente baseadas em fatos reais, mas sempre contêm
conteúdo imaginário. Todavia, é um tanto difícil estabelecer os limites que separam o
ficcional do não-ficcional, assim como muitas vezes não é fácil separar o que se apóia
em fatos reais daquilo que se apóia na imaginação. Se antes de Copérnico, por
exemplo, alguém afirmasse que a terra girava em torno do sol, e não o contrário, como
se acreditava, certamente essa idéia seria considerada fruto de pura fantasia; e no
entanto a ciência acabou comprovando sua veracidade. No terreno religioso estas
questões tornam-se ainda mais complexas: um religioso fervoroso pode acreditar
piamente que o mundo foi criado em sete dias, enquanto para um cientista essa
narrativa bíblica não passa de uma alegoria do processo de criação do universo. O
certo é que em praticamente todas as produções humanas pode haver uma dose de
imaginação, da mesma forma que nas produções literárias pode haver, e normalmente
há, uma dose de realidade factual. Essa dosagem varia de acordo com o gênero:
romances históricos, por exemplo, se baseiam bem mais na realidade do que contos de
fadas, mas ambos são representações literárias e devem obedecer ao princípio da
verossimilhança.
Se a obra literária é uma forma de representação artística, ou seja, é um objeto
estético, e não tem compromisso com a realidade factual, podemos inferir daí que ela
também não tem necessariamente um função prática, isto é: ela não é criada para
intervir diretamente na realidade, ainda que essa intervenção possa ocorrer, sim, por
vias indiretas. Dessa constatação se depreende que a função primordial da literatura é
a função estética, embora essa primazia não exclua as demais funções que a obra
literária possa ter.
1) A realidade criada pela obra literária é uma realidade particular que pode mas
não precisa necessariamente estar vinculada a uma realidade exterior.
2) Toda obra literária obedece a uma lógica interna que permite relacionar cada
parte entre si de modo a formar um todo coerente.
3) Uma vez criada, a realidade que a obra engendra deve ser tomada em sua
singularidade, como um objeto estético que tem um fim em si mesmo, embora
possa também desempenhar outras funções.
EXERCÍCIOS DE FIXAÇÃO:
Atividade I:
Atividade II:
.......................................................
No canavial tudo se gasta
pelo miolo, não pela casca.
Nada ali se gasta de fora,
qual coisa que em coisa se choca.
Para compreender melhor o poema, você pode tentar responder às questões propostas por
Francisco Platão Savioli e José Luiz Fiorin, no livro Para entender o texto (Lição 12):
Questão 1
Anote as palavras que mostram a oposição semântica (de sentido) /exterioridade/ versus /interioridade/.
Questão 2
Anote as palavras e expressões que mostram a oposição de sentido /silêncio/ versus /ruído/.
Questão 3
As coisas no canavial se acabam silenciosa ou ruidosamente, a partir de dentro ou de fora? Justifique
sua resposta com elementos do texto.
Questão 4
Com base na resposta à questão anterior, que mostra o modo como as coisas se acabam, estabeleça o
tema do poema.
Questão 5
Os termos “reboco” e “parede” indicam o termo “casa”, que tem um significado físico (edifício) e um
significado social (família). Os termos “poros” e “morte” têm um valor humano e um não-humano. Que
função têm no poema esses termos com mais de um significado?
Questão 6
Levando em conta a possibilidade de várias leituras do poema, a corrosão (o desgaste) pode ser lida em
diferentes planos. São eles o plano físico, o histórico (social) e o humano. Como entender a corrosão em
cada um desses planos?
Questão 7
O agente da corrosão é o cupim. Com base nas múltiplas possibilidades de leitura, mostre o que
simboliza o cupim.
(a) O tempo físico das secas e intempéries, o tempo histórico da estagnação, o tempo psicológico
da estreiteza de horizontes e da impotência.
(b) O homem com seu trabalho, com sua falta de capacidade de luta, com sua inércia.
(c) A corruptibilidade das coisas materiais, dos sistemas sociais, dos seres humanos.
(d) Todos os agentes externos que corroem as coisas.
(e) As causas indeterminadas de corrosão.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:
ARISTÓTELES. Arte retórica e arte poética. Trad. Antônio Pinto de Carvalho. Rio de
Janeiro: Tecnoprint, 1966.
COUTINHO, Afrânio. Notas de teoria literária. Rio de Janeiro: Civilização brasileira,
1978.
KAYSER, Wolfgang. Análise e interpretação da obra literária. Introdução à ciência da
literatura. Coimbra: Armênio Amado, 1976.
BIBLIOGRAFIA DE APOIO:
O Simbolismo, por exemplo, voltou-se contra o Realismo, que lhe foi imediatamente
anterior, e foi procurar apoio em certos temas e formas do Romantismo, que por sua
vez antecedera o Realismo.
A noção de período literário subordinada ao conceito de estilo de época é
recorrente entre os estudiosos do assunto (podemos observar essa relação, por
exemplo, no título da obra de Proença Filho, Estilos de época na literatura, dedicada,
na verdade, à periodização literária). Essa concepção de período tem a vantagem de
considerar as obras em sua especificidade, sem contudo dissociá-las de seu contexto
histórico. Entretanto, essa não é a única postura adotada.
A respeito do assunto, outro importante crítico literário brasileiro, Afrânio
Coutinho, explica na Introdução de A Literatura no Brasil (Vol I), que a história literária
pode assumir duas formas: uma estuda a arte literária em termos de causalidade
histórica; e outra considera as obras em termos da tradição literária. O primeiro tipo de
abordagem histórica acentua a análise das circunstâncias externas ou históricas
(políticas, sociais, econômicas) que condicionam o nascimento das obras. Esse modo
exagera a dependência da literatura em relação ao contexto histórico e ao autor,
pressupondo que há um nexo causal absoluto entre esses fatores e a obra. O segundo
tipo de história literária avalia o processo de desenvolvimento da literatura, de forma
relativamente independente, “relacionando as obras com as outras do mesmo gênero e
do mesmo estilo, identificando períodos pela similitude de traços estilísticos e
convenções estéticas, analisando os artifícios literários, os temas, os gêneros, as
convenções ou técnicas, os elementos estruturais, os recursos lingüísticos, etc” (p. 16).
Ainda que ambas as abordagens possam ser produtivas e trazer
esclarecimentos sobre as obras analisadas, não podemos confundir o estudo da vida
dos autores e dos fatos históricos com o estudo específico dos estilos literários. Isso
porque, para o estudioso de literatura, deve estar em primeiro lugar a literatura,
conforme ela se manifesta nos diferentes textos, nos diversos gêneros, nos modos
como explora elementos temáticos e formais.
Ao pensar a história da literatura, é importante compreender, ademais, que seu
desenvolvimento alicerça-se, ao mesmo tempo, sobre processos de imitação e de
renovação, que reatualizam a tradição, incorporando linguagens e assuntos
contemporâneos. Devemos entender também que a delimitação dos períodos literários
não pode ser rigorosa porque, em geral, a complexidade dos textos ultrapassa os
limites fixados por qualquer circunscrição periodológica. As obras de um determinado
período possuem semelhanças pelas quais são agrupadas em um conjunto, mas cada
uma possui suas peculiaridades.
Como podemos depreender do que foi dito até aqui, a divisão da história da
literatura em períodos não é simples, basta observarmos os diversos modos de
organizá-la encontrados em diferentes historiadores e teóricos da literatura. A verdade
é que cada organização é influenciada pelos critérios que o estudioso privilegia. Mesmo
assim, a classificação dos estilos literários, principalmente dos que o tempo já
consagrou, é parcialmente estável, e o que varia, muitas vezes, são as denominações
dadas a cada estilo.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:
BIBLIOGRAFIA DE APOIO:
Introdução
Uma rápida visada sobre o conjunto das obras que se podem chamar “literatura”
é suficiente para que percebamos que essas obras não formam um conjunto
homogêneo. Sob a designação de literatura encontram-se obras de formas e
conteúdos diversos, de modo que podemos facilmente perceber afinidades entre umas
e distinções entre outras. Vejamos os exemplos abaixo:
Fonte: http://www.dominiopublico.gov.br/download/texto/cv000024.pdf
Fonte: http://virtualbooks.terra.com.br/freebook/port/O_Espelho.htm
Qualquer obra literária que examinemos apresenta-nos sempre três elementos: forma, conteúdo
e composição; [...] a forma apresenta-se sob dois aspectos fundamentais – prosa e verso; o
conteúdo também apresenta dois aspectos importantes – psicológico (se a realidade que ele
reflete é [...] o mundo dos sentimentos e das idéias) e físico (se a realidade que ele reflete é o
mundo físico); a composição pode ser de três tipos – expositiva, representativa e expositivo-
representativa. [...]
Gênero literário é a combinação de um tipo de forma com um tipo de conteúdo e um tipo de
composição. (Antônio Soares Amora, Teoria da Literatura, 1971, p. 147, grifo nosso)
[a palavra “gênero”] vem do Latim Vulgar generu-, acusativo de generus pelo Latim Clássico
genus. E significa “família”, “raça”, quer dizer, agrupamento de indivíduos ou seres portadores de
características comuns. Nesse sentido, o vocábulo é empregado em história natural. Em
Literatura, deve designar famílias de obras dotadas de atributos iguais ou semelhantes. E da
mesma forma que na história natural, o gênero divide-se em espécies, e estas em subespécies,
a que se pode dar o nome de formas. (Massaud Moisés, A criação literária, 1971, p. 36, grifo
nosso)
Na sua maioria, a moderna teoria literária mostra-se inclinada a pôr de parte a distinção entre
prosa e poesia e a dividir a literatura imaginativa (Dichtung) em ficção (romance, conto, épica),
drama (quer em prosa, quer em verso) e poesia (centrada no que corresponde à antiga “poesia
lírica”).
Viëtor sugere, com muita propriedade, que a designação de “gênero” não deveria ser usada
indistintamente para referir tanto essas três categorias, mais ou menos primordiais, como as
espécies históricas, tais a tragédia e a comédia; e nós concordamos em que o termo deveria ser
aplicado às últimas – às espécies históricas. [...] As três espécies maiores encontram-se já
distinguidas, em Platão e Aristóteles, consoante a “maneira da imitação” (ou da “representação”).
(René Wellek e Austin Warren, Teoria da Literatura, 1948, p. 283-4)
1. A visão clássica
há uma espécie de ficção poética que se desenvolve inteiramente por imitação; neste grupo
entram a tragédia e a comédia. Há também o estilo oposto, em que o poeta é o único a falar; o
melhor exemplo desse é o ditirambo. E, por fim, a combinação de ambos pode ser encontrada
na epopéia e em outros gêneros de poesia. (1996, p. 60)
tratar da produção poética em si mesma e de seus diversos gêneros, dizer qual a função de
cada um deles, como se deve construir a fábula, no intuito de obter o belo poético; qual o
número e natureza de suas diversas partes, e falar igualmente dos demais assuntos relativos a
esta produção. (2003, p. 23, grifo nosso)
2. A visão moderna
No texto citado, a autora apresenta a chamada divisão tripartida dos gêneros (em lírico,
épico e dramático), identificando a essência, a atitude fundamental e os fenômenos
estilísticos típicos de cada um deles. Leia o referido texto para, a seguir, continuarmos
a nossa reflexão sobre os gêneros literários e suas formas.
Épico Epopéia Recitada, em versos hexâmetros O mundo exterior ao poeta: o Admiração que leva
(ritmo que corresponde ao tom mundo das grandes ações, dos o leitor a se
grandioso, acima do tom comum) grandes gestos que atuam no expandir
mundo exterior e o
transformam. A vida heróica
ativa.
Dramático Tragédia Dialogada e representada, em O mundo das grandes ações Espanto, dor,
versos trímetro jâmbico (jambo é em conflito. Hom ens superiores comoção que leva o
o metro que mais se conforma ao vencidos pela fatalidade ou ser a comungar com
ritmo natural da fala) ou verso vencedores. o sofrimento do
hexâmetro “outro”.
* Quadros apresentados por Nelly Novaes Coelho em: COELHO, Nelly Novaes. Literatura e linguagem:
Introdução aos estudos literários. 4. ed. São Paulo: Quíron, 1986.
EXERCÍCIOS DE FIXAÇÃO:
Atividade I:
Atividade II:
Leia os três textos apontados no início do Tópico 4 e estabeleça distinções entre eles
quanto à forma, ao conteúdo e ao modo de exposição.
Para ter acesso aos textos na íntegra (no caso da tragédia e do conto), acesse os links
abaixo:
http://www.dominiopublico.gov.br/pesquisa/DetalheObraForm.do?select_action=&co_obra=2255
http://www.dominiopublico.gov.br/pesquisa/DetalheObraForm.do?select_action=&co_obra=1948
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:
Fábula:
A fábula é uma das mais antigas formas narrativas. É uma narrativa curta, de
fundo didático ou moralizante. Normalmente, apresenta como personagens
animais, cujo comportamento deixa entrever o dos humanos. É não raro
identificada com o apólogo, que se diferencia da fábula pelo fato de ter como
personagens seres inanimados.
Novela:
A novela caracteriza-se pela apresentação de episódios sucessivos
(sucessão de células dramáticas), num ritmo rápido, normalmente obedecendo à
linearidade temporal, com freqüente mudança de cenários, devido ao contínuo
deslocamento espacial das personagens. A ênfase, portanto, recai na ação. As
personagens são desprovidas de profundidade psicológica, e aparecem em grande
número, justamente em função da multiplicidade de células dramáticas.
Conto:
Assim como a fábula, o conto remonta aos primórdios da arte literária.
Caracteriza-se pela brevidade e densidade narrativa – diferentemente da novela, o
conto possui apenas uma célula dramática, ou seja: um só conflito, uma só ação.
Da unidade dramática decorre a unidade temporal e espacial: o conto concentra-se
no momento em que ocorre o episódio relatado, com pouca ou nenhuma digressão
temporal. A limitação de tempo, espaço e ação implica a restrição no número das
personagens, que podem ou não receber tratamento psicológico mais apurado.
Romance:
O romance – que se distingue da demais formas também pela extensão (via
de regra maior) – apresenta um corte mais amplo da vida, com personagens e
situações mais densas e complexas. O tratamento temporal é também mais
complexo, podendo haver avanços e recuos no tempo, simultaneidade ou lapsos
temporais. Segundo alguns autores, o que o distingue o romance das demais
formas narrativas é a sua capacidade de oferecer uma visão totalizante do mundo,
diferente do conto e da novela, por exemplo, que apresentam um caráter episódico.
História, narração, narrativa
Para haver narrativa, é necessário que haja uma história a ser contada e é
necessário também que alguém assuma a tarefa de contá-la. A distinção entre
“história”, “narração” e “narrativa” nem sempre é clara, e não raro esses termos são
usados para designar a mesma coisa. Entretanto, nós podemos facilmente perceber
que o ato de contar (o relato) não se identifica com os fatos que se contam: os fatos
são independentes – coisas podem acontecer mesmo que ninguém as conte. O relato
dos acontecimentos, por sua vez, pode ser organizado de diversas maneiras,
originando textos narrativos diferentes. Daí se depreende que tampouco entre os
acontecimentos e o relato pode haver identificação. É certo que esses três elementos –
os fatos, o ato de contar e a organização textual – estão envolvidos naquilo que
chamamos, de modo muito geral, narrativa. Contudo, no momento em que nos
propomos a analisar um texto narrativo, precisamos separar essas instâncias, sob pena
de confundir coisas que são essencialmente diferentes.
Em vista desses diferentes (ainda que interligados) aspectos da narrativa, o
teórico da literatura Gérard Genette, em seu Discurso da narrativa (1973), propõe que
sejam distinguidos os termos história, narração e narrativa da seguinte maneira:
História é o “conteúdo narrativo”, ou seja, aquilo que se conta, os fatos, os
acontecimentos.
Narração é o “ato narrativo produtor”, isto é, o ato mesmo de narrar e, por
extensão, o conjunto da situação real ou fictícia na qual esse ato se realiza.
Narrativa é o “discurso ou texto narrativo”, o produto do ato que dá forma ao
conteúdo narrativo.
Entendemos por narrativa todo discurso que nos apresenta uma história imaginária como se
fosse real, constituída por uma pluralidade de personagens, cujos episódios de vida se
entrelaçam num tempo e num espaço determinados.
(Salvatore D’Onofrio, Teoria do Texto, v. 1, 2006)
Atividade I:
Atividade II:
A)
As crônicas da vila de Itaguaí dizem que em tempos remotos vivera ali um certo médico, o Dr.
Simão Bacamarte, filho da nobreza da terra e o maior dos médicos do Brasil, de Portugal e das
Espanhas. Estudara em Coimbra e Pádua. Aos trinta e quatro anos regressou ao Brasil, não
podendo el-rei alcançar dele que ficasse em Coimbra, regendo a universidade, ou em Lisboa,
expedindo os negócios da monarquia.
B)
— Há de ser alguma patuscada, dizia ela, mudando a posição de um alfinete. Benedita, vê se a
barra está boa.
— Está, sinhá, respondia a mucama de cócoras no chão, está boa. Sinhá vira um bocadinho.
Assim. Está muito boa.
— Não é patuscada, não, senhora; eles estão gritando: — Morra o Dr. Bacamarte!!! o tirano!
dizia o moleque assustado.
— Cala a boca, tolo! Benedita, olha aí do lado esquerdo; não parece que a costura está um
pouco enviesada? A risca azul não segue até abaixo; está muito feio assim; é preciso descoser
para ficar igualzinho e...
— Morra o Dr. Bacamarte!!! morra o tirano! uivaram fora trezentas vozes. Era a rebelião que
desembocava na Rua Nova.
BIBLIOGRAFIA DE APOIO:
Considerações prévias
O narrador é aquele que assume a tarefa de contar uma história. Nesse sentido
amplo, todos nós podemos ser, e freqüentemente somos, narradores de algum fato.
Nesse caso, nós – pessoas reais, de carne e osso –, quando contamos uma história
vivida, identificamo-nos com a figura do narrador: nós e o narrador somos a mesma
pessoa.
No mundo ficcional, no entanto, o mesmo não se verifica. O mundo apresentado
na narrativa de ficção, como já tivemos oportunidade de observar, é um mundo criado
artisticamente, e esse mundo é essencialmente diferente do mundo real que
conhecemos, embora tenha com ele uma relação de homologia. Se o mundo ficcional é
homólogo, mas não igual ao mundo real, devemos também entender que os elementos
que constituem o universo ficcional são também ficcionais, embora pareçam, muitas
vezes, reais.
Já vimos, no tópico anterior, que os elementos estruturais da narrativa são: a
história, as personagens, o tempo, o espaço e o narrador. Todos esses elementos, na
narrativa de ficção, são ficcionais, não têm existência fora da narrativa, porque são
justamente criados por ela. E aqui, certamente, vocês poderão perguntar: mas quem
“cria” a narrativa, já que ela não pode criar-se do nada por conta própria? Quem “cria” a
narrativa é o autor (de carne e osso, como nós); é o autor que, num ato de criação
artística, produz uma obra de arte literária específica: a narrativa de ficção. Mas, uma
vez criada, a obra adquire “vida própria”, e o autor fica fora dela. Essa separação entre
autor e obra pode ser difícil de ser percebida na literatura, mas é muito evidente nas
outras artes. Quando contemplamos um quadro, por exemplo, ou uma escultura,
sabemos que o autor da obra não está dentro dela. O escritor, assim como o pintor e o
escultor, apenas cria a obra, mas não faz parte do universo ficcional criado.
E quanto ao narrador? Podemos identificar o narrador – que, como vimos, é um
elemento ficcional – com o autor, que é uma pessoa real, como nós? A resposta a essa
pergunta, sem dúvida nenhuma, é: não, o autor e o narrador jamais se identificam. O
autor é aquele que escreve o texto; o narrador é aquele que, tendo sido antes criado
pelo autor, assume, dentro do texto, a função de contar a história.
Além da figura do narrador, o texto pode explicitar também a presença de uma
outra figura, um interlocutor a quem o narrador dirige a sua narração. Esse interlocutor
é chamado narratário, e é uma entidade ficcional, tal como o narrador. O narratário,
que é interno ao texto, não se identifica com o leitor real, que, do mesmo modo que o
autor, está fora do universo ficcional. Portanto, assim como não podemos confundir
autor com narrador, também não podemos confundir leitor real com narratário.
Com essas distinções bem fixadas, passemos, agora, ao estudo do narrador e
de seus pontos de vista.
Quem narra e como narra
Pegou das pontas do cinto e bateu com elas sobre os joelhos, isto é, o joelho direito, porque
acabava de cruzar as pernas. Depois referiu uma história de sonhos, e afirmou-me que só tivera
um pesadelo, em criança. Quis saber se eu os tinha. A conversa reatou-se assim lentamente,
longamente, sem que eu desse pela hora nem pela missa. Quando eu acabava uma narração ou
uma explicação, ela inventava outra pergunta ou outra matéria, e eu pegava novamente na
palavra. (grifos nossos)
— Que paciência a sua de esperar acordado, enquanto o vizinho dorme! E esperar sozinho! Não
tem medo de almas do outro mundo? Eu cuidei que se assustasse quando me viu.
— Quando ouvi os passos estranhei: mas a senhora apareceu logo.
— Que é que estava lendo? Não diga, já sei, é o romance dos Mosqueteiros.
— Justamente: é muito bonito.
— Gosta de romances?
— Gosto.
— Já leu A Moreninha?
— Do Dr. Macedo? Tenho lá em Mangaratiba.
— Eu gosto muito de romances, mas leio pouco, por falta de tempo. Que romances é que você
tem lido?
Os três irmãos de Medranhos, Rui, Guanes e Rostabal, eram então, em todo o Reino das
Astúrias, os fidalgos mais famintos e os mais remendados.
Nos Paços de Medranhos, a que o vento da serra levara vidraça e telha, passavam eles as
tardes desse Inverno, engelhados nos seus pelotes de camelão, batendo as solas rotas sobre as
lajes da cozinha, diante da vasta lareira negra, onde desde muito não estalava lume, nem fervia
a panela de ferro. Ao escurecer devoravam uma côdea de pão negro, esfregada com alho.
Depois, sem candeia, através do pátio, fendendo a neve, iam dormir à estrebaria, para aproveitar
o calor das três éguas lazarentas que, esfaimadas como eles, roíam as traves da manjedoura.
Rubião fitava a enseada, – eram oito horas da manhã. Quem o visse, com os polegares metidos
no cordão do chambre, à janela de uma grande casa de Botafogo, cuidaria que ele admirava
aquele pedaço de água quieta; mas, em verdade, vos digo que pensava em outra coisa.
Cotejava o passado com o presente. (grifo nosso)
1) A história pode ser apresentada de maneira mais ou menos direta, mais ou menos
resumida, o que vai determinar o grau de distanciamento ou aproximação entre o leitor
e os fatos apresentados pelo narrador. Quando o narrador mostra os fatos (utilizando-
se principalmente da cena), o leitor é colocado em contato direto com os fatos; já
quando o narrador narra os fatos (utilizando-se do sumário), ele efetua a mediação
entre o leitor e a história que está sendo contada.
3) O narrador pode ou não participar da história que conta, o que independe do fato de
ele estar narrando em primeira ou terceira pessoa. Normalmente, o narrador em
primeira pessoa conta uma história na qual ele é personagem (principal ou secundária),
mas também é possível que o narrador se apresente em primeira pessoa para contar
uma história da qual ele não participa.
Quem vê e quanto vê
2. Quis sentar-se num banco do jardim, porque na verdade não sentia a chuva e não se importava
com o frio. Só mesmo um pouco de medo, porque ainda não resolvera o caminho a tomar. O
banco seria um ponto de repouso. Mas os transeuntes olhavam-na com estranheza e ela
prosseguia na marcha. (Fragmento de A fuga, conto de Clarice Lispector)
3. Recuei e me escondi atrás da rocha, por uma fenda eu via o que se passava.
Nélson botava o cano de um revólver na testa de Léo. Léo sem camisa, ajoelhado na lama.
Léo chorava. Nélson dizia se cuspindo:
– Se você não matar esse cara agora eu é que acabo com você! Esse cara é artista de novela,
se ele quiser denuncia a gente pra polícia e com isso a fama dele aumenta! Como é que eu ia
adivinhar que isso ia acontecer, como é?! E ele viu, não tem dúvida, ele viu!
Eu vi o quê? Pensei. Seria o sangue que eu tinha visto? Era essa coisa que Nélson queria
esconder me matando? (Fragmento de Hotel Atlântico, romance de João Gilberto Noll)
Leia o Capítulo I (De como Itaguaí ganhou uma casa de Orates) do conto O alienista,
de Machado de Assis, e responda às seguintes questões:
BIBLIOGRAFIA DE APOIO:
Caracterização da personagem
Quaresma pôde então ver melhor a fisionomia do homem [de Floriano Peixoto] que ia enfeixar
em suas mãos, durante quase um ano, tão fortes poderes. [...]
Era vulgar e desoladora. O bigode caído: o lábio inferior pendente e mole a que se agarrava uma
grande ‘mosca’; os traços flácidos e grosseiros; não havia nem desenho do queixo ou olhar que
fosse próprio, que revelasse algum dote superior. Era um olhar mortiço, redondo, pobre de
expressões, a não ser de tristeza que não lhe era individual, mas nativa, de raça; e todo ele era
gelatinoso – parecia não ter nervos.
Não quis o major [Quaresma] ver em tais sinais nada que lhe denotasse o caráter, a inteligência
e o temperamento. Essas coisas não vogam.
O seu entusiasmo por aquele ídolo político era forte, sincero e desinteressado. Tinha-o na conta
de enérgico, de fino e supervidente, tenaz e conhecedor das necessidades do país, manhoso
talvez um pouco, uma espécie de Luis XI forrado de um Bismarck. Entretanto, não era assim.
Com uma ausência total de qualidades intelectuais, havia no caráter do Marechal Floriano uma
qualidade predominante: tibieza de ânimo; e no seu temperamento, muita preguiça. Não a
preguiça comum, essa preguiça de nós todos; era uma preguiça mórbida, como que uma
pobreza de irrigação nervosa, provinda de uma insuficiente quantidade de fluido no seu
organismo. Pelos lugares que passou, tornou-se notável pela indolência e desamor às
obrigações dos seus cargos. [...]
Dessa preguiça de pensar e agir, vinha o seu mutismo, os seus misteriosos monossílabos,
levados à altura de ditos sibilinos, as famosas encruzilhadas dos ‘talvezes’ que tanto reagiram
sobre a inteligência e a imaginação nacionais, mendigas de heróis e de grandes homens.
O indivíduo é aquele que se ergue acima do comum da humanidade com caracteres pessoais
que o isolam dos demais, acentuando sua individualidade. O típico ou tipo é representativo de
um grupo nacional, profissional, racial, regional. O caricatural é o que se singulariza pelo
desenvolvimento exagerado ou pela ênfase dada a uma qualidade ou alguns traços. (1978, p.
34-35)
A economia da narrativa pede, para a caracterização de personagens mais simples, uma forma
de construção mais rápida e direta. Às vezes, a personagem reduz-se a apenas uma frase do
tipo ‘João é um camponês’ (no desenvolvimento da narrativa essa personagem não vai ser
outra coisa, apenas um camponês). Uma personagem secundária, em face dessa economia da
narrativa, costuma apresentar características redundantes, não modificando seus poucos
atributos. Sua tendência é não evoluir, mantendo-se, assim, dentro de um sistema estático de
atributação. Se uma personagem é ‘boa’, ela permanecerá com esse atributo no decorrer da
narrativa, com ações bastante previsíveis, confirmando sua ‘bondade’.
[...]
Em relação a personagens mais complexas, a tendência é oposta, a de uma predicação
imprevisível: o discurso da narrativa coloca-se numa rede de traços caracterizadores em que
muitos deles se repetem e outros se modificam, às vezes de forma ambígua. Se o herói num
determinado momento é ‘corajoso’, noutro já é ‘covarde’; se é ‘pacato’, logo depois se transforma
e se torna ‘violento’, etc. Dessa forma quanto mais ambígua for a predicação, mais complexa
tenderá a ser a personagem. Há, entretanto, limites para essa ambiguidade: a consistência da
caracterização faz com que certos traços permaneçam a par da transformação de outros. As
transformações devem ser consistentes em relação a uma lógica interna do relato.
Saíra ao encontro de Henrique IV e de Sully e vinha esbarrar com um presidente [Floriano] que o
chamava de visionário, que não avaliava o alcance dos seus projetos, que os não examinava
sequer, desinteressado daquelas altas cousas de governo como se não o fosse!... Era pois para
sustentar tal homem que deixara o sossego de sua casa e se arriscava nas trincheiras? Era,
pois, por esse homem que tanta gente morria? Que direito tinha ele de vida e de morte sobre os
seus concidadãos, se não se interessava pela sorte deles, pela sua vida feliz e abundante, pelo
enriquecimento do país, o progresso de sua lavoura e o bem-estar de sua população rural?
(Fragmento de Triste Fim de Policarpo Quaresma).
Tinha-me lembrado a definição que José Dias dera deles, ‘olhos de cigana oblíqua e
dissimulada’. Eu não sabia o que era oblíqua, mas dissimulada sabia, e queria ver se podiam
chamar assim. Capitu deixou-se fitar e examinar. Só me perguntava o que era, se nunca os vira;
eu nada achei extraordinário; a cor e a doçura eram minhas conhecidas. [...] Olhos de ressaca?
Vá, de ressaca. É o que me dá idéia daquela feição nova. Traziam não sei que fluido misterioso
e enérgico, uma força que arrastava para dentro, como a vaga que se retira da praia, nos dias de
ressaca. (Fragmento de Dom Casmurro, de Machado de Assis).
Como vimos, em uma narrativa pode haver uma série de personagens, mas nem
todas exercem o papel principal na história: umas aparecem menos, outras mais; umas
ganham uma caracterização que as destaca, outras não. Como podemos, então,
distingui-las quanto ao relevo que assumem na narrativa? Philippe Hamon, no artigo
intitulado Por um estatuto semiológico da personagem (p. 83-86), propõe alguns
parâmetros que nos ajudam a hierarquizar as personagens e identificar o estatuto de
cada uma delas. Observando aspectos como a qualidade e a quantidade de
informações dadas sobre a personagem, os momentos em que ela aparece na
narrativa e a forma como o faz, bem como a função que assume, podemos verificar
uma caracterização diferencial que sinaliza a importância da personagem no
desenvolvimento da história.
A qualificação diferencial se refere à quantidade de informações atribuídas a
uma personagem e ao modo como é apresentada: é mais ou menos nomeada (tem
nome, alcunha, apelido); é descrita física, psicológica, socialmente, de forma positiva
ou negativa; conhece-se ou não a sua genealogia; recebe marcas distintivas (uma
cicatriz, por exemplo), etc.
A distribuição diferencial abrange os aspectos quantitativos: a personagem
aparece mais ou menos tempo, e em momentos estratégicos ou não.
A autonomia diferencial considera os modos de combinação das personagens:
se a personagem é importante, ela poderá aparecer sozinha ou em conjunção com
qualquer outra personagem, mantendo relações com a maioria delas.
A funcionalidade diferencial diz respeito aos papéis da personagem na ação: se
assume uma função mais ou menos importante; se é bem ou mal sucedida no que faz;
se tem ou não ajuda; se age de acordo com códigos de valores privilegiados, etc.
A pré-designação convencional indica que a importância e o estatuto da
personagem podem ser definidos a priori pelo gênero. O gênero funciona, assim, como
um código, comum ao emissor e ao receptor, que predetermina a personagem que se
destaca (por exemplo, o detetive particular, no romance policial).
Tomemos agora como exemplo o conto No Moinho, de Eça de Queirós, que
estudamos no Tópico 3, e apliquemos os parâmetros indicados por Hamon à análise
das personagens, para que possamos hierarquizá-las e distinguir, assim, as
personagens centrais das secundárias.
Logo no início desse conto, no primeiro parágrafo, lemos: “D. Maria da Piedade
era considerada em toda a vila como uma senhora modelo”. O fato de a narrativa
iniciar-se pela referência à Piedade, já nos indica que possivelmente ela será a
protagonista dessa história.
Os sete primeiros parágrafos do conto giram em torno da caracterização de
Piedade. Para isso, o narrador alude a outras personagens, como o marido entrevado,
os filhos doentes, a mãe “azeda”, o pai bêbado que, com esses qualificativos, só
servem para ressaltar a bondade incansável e paciente da personagem para com a sua
família. Notemos que o pai, a mãe e os filhos de Piedade não chegam a receber um
nome no conto, ou seja, sua identidade em si mesma não tem interesse para a
narrativa, essas personagens importam apenas na medida em que ajudam a qualificar
a vida sacrificada de Piedade. Outros dois nomes, o velho Nunes e o Dr. Abílio, que
também aparecem nessa primeira parte do conto, interessam apenas enquanto
“autoridades” que julgam o caráter da moça: “é uma santa”; “é uma fada”, dizem eles.
O oitavo parágrafo do conto destina-se a apresentar uma outra personagem,
Adrião, primo de João Coutinho, que viria visitá-lo. Pela caracterização que recebe e
pelos sentimentos que a possibilidade de sua visita despertam em Piedade, logo
vemos que essa personagem terá certo destaque. E quando o visitante chega, a
narrativa dedica mais um parágrafo para explicar as boas impressões que causou em
Maria da Piedade.
A narrativa então destina seus 34 parágrafos seguintes para contar o
envolvimento de Piedade e Adrião, mais 6 para falar da tristeza que abateu a mulher
depois da partida do primo, e os últimos 7 para relatar a transformação que Piedade
sofreu, influenciada também por leituras românticas. No final do conto, mais uma
personagem é caracterizada diretamente pelo narrador, o “praticante da botica”, novo
amante de Maria da Piedade. Este também não recebe nome, e seus qualificativos
(“odioso”, “sebento”, “de cara balofa”, etc) servem unicamente para realçar o
comportamento reles/rebaixado que Piedade passa a assumir, deixando para trás sua
imagem de santa.
Em suma, como facilmente percebemos, Piedade é o centro das atenções de
quase toda a narrativa e é por causa dela que grande parte das demais personagens
são mencionadas, por isso dizemos que é a personagem principal do conto. Podemos
afirmar também que, depois de Piedade, Adrião é a personagem mais importante
dessa história, pois, além de receber uma caracterização ampla, participa da ação mais
importante e extensa do conto (a infidelidade de Piedade), além de, com sua entrada
em cena, contribuir, decisivamente, para a transformação de caráter sofrida por Maria
da Piedade. Em termos de relevo na narrativa, depois de Adrião, ficaria o marido traído
que, apesar de não ganhar muita autonomia no conto, está bem caracterizado e é
mencionado em outros momentos da narrativa (lembremos, inclusive, que é ele quem
manda Piedade acompanhar Adrião em suas visitas à vila, tendo assim certo grau de
responsabilidade pelo que acaba sucedendo entre a mulher e o primo). As demais
personagens ficariam num patamar inferior. Algumas, como já indicamos, não ganham
sequer uma identidade própria no texto, aparecendo sempre em função da construção
de Piedade, como seus filhos, seus pais e o “praticante da botica”. Além dessas, há
outras que identificamos apenas pelo nome e pelo que fazem – como Nunes, o diretor
do correio, o dr. Abílio, Teles, o propritário da fazenda que Adrião viera negociar,
André, o dono da estalagem onde Adrião se hospeda, tio Costa, o dono do Moinho – as
quais também não participam da ação principal e servem apenas como personagens
acessórias.
Como podemos perceber, considerando os parâmetros levantados por Philippe
Hamon, é possível verificar o modo como as personagens se organizam
hierarquicamente na narrativa e, a partir daí, identificar o estatuto de cada uma delas.
EXERCÍCIOS DE FIXAÇÃO:
BIBLIOGRAFIA DE APOIO:
Como já vimos nos tópicos anteriores, para que tenhamos uma narrativa é
preciso que haja um narrador que conte uma história, que necessariamente envolverá
personagens, que por sua vez se situam no tempo e no espaço. A dimensão espácio-
temporal é, portanto, elemento estrutural de toda narrativa. Mesmo que o texto não
faça menção a estes dois elementos, eles estão sempre presentes, pois não há
acontecimento fora do tempo e do espaço. Vejamos a seguir, como esses elementos
estruturais podem se comportar na narrativa e que tipo de relação podem estabelecer
como os demais elementos do universo ficcional.
O ESPAÇO
A criação de atmosfera
A descrição dos lugares pode sugerir, ainda, uma atmosfera. A atmosfera tem
um caráter mais abstrato – pode denotar angústia, alegria, violência, etc. –,
apresentando-se como um ambiente espiritual que envolve as personagens. Nesse
sentido, empregamos também o termo “clima”, como na expressão “há um clima (uma
atmosfera) de tranqüilidade”. Poderíamos dizer, de outro modo, que a atmosfera é um
dos efeitos da descrição dos lugares, que surge, na maioria das vezes, ligada ao modo
como o narrador ou a personagem percebe/sente o espaço à sua volta.
Funções do espaço
A organização do espaço
O lugar onde uma personagem vive, os objetos que escolheu para rodeá-la e até
mesmo o modo como os organizou podem indicar traços de sua personalidade. Nas
palavras de René Wellek e Austin Warren, no clássico Teoria da Literatura,
“especialmente o interior doméstico pode ser concebido como uma expressão
metonímica ou metafórica da personagem. A casa em que um homem vive é um
prolongamento deste. Descrevê-la é descrever o seu ocupante” (1962, p. 279).
O romance realista-naturalista usou muito esse recurso para caracterizar suas
personagens. Vejamos um exemplo retirado do romance O Crime do Padre Amaro,
de Eça de Queirós.
A sala com efeito era toda uma imensa armazenagem de santaria e de bric-à-brac devoto: sobre
as duas cômodas de pau-preto com fechaduras de cobre apinhavam-se, sob redomas, em
peanhas, as Nossas Senhoras vestidas de azul, os Meninos Jesus frisados com o ventrezinho
gordo e a mão abençoadora, os Santos Antônios no seu burel, os S. Sebastiões bem frechados,
os S. Josés barbudos. Havia santos exóticos [...] Depois era, os bentinhos, os rosários de metal
e de caroços de azeitonas, contas de cores, rendas amarelas de antigas alvas, corações de
vidro escarlate, almofadinhas com J. M. entrelaçados à miçanga, ramos bentos, palmas de
mártires, cartuchinho de incenso. As paredes desapareciam forradas de estampas de virgens de
todas as trespassadas de espadas. Corações donde gotejava sangue, corações donde saía uma
fogueira, corações donde dardejavam raios...
A percepção do espaço
A maneira como a personagem percebe, subjetivamente, o espaço que lhe
rodeia também pode ajudar na sua caracterização, sugerindo seu estado de espírito,
seus sentimentos. Uma descrição como “Uma luz doce e esbatida alargava-se por todo
o campo; havia nos outeiros, no azul do ar, um aspecto de repouso, de meiga
tranqüilidade” (O crime do padre Amaro), sem dúvida, indica-nos o estado de bem-
estar da personagem que percebe essa paisagem.
Vejamos um outro exemplo, da obra Infância, de Graciliano Ramos:
mergulhei numa comprida manhã de inverno. O açude apojado, a roça verde, amarela e
vermelha, os caminhos estreitos mudados em riachos, ficaram-me na alma. Depois veio a seca.
Árvores pelaram-se, bichos morreram, o sol cresceu, bebeu as águas, e ventos mornos
espalharam na terra queimada uma poeira cinzenta. Olhando-me por dentro, percebo com
desgosto a segunda paisagem.
As funções que o espaço assume numa narrativa podem variar muito. O espaço
pode ter desde unicamente o papel de situar as ações até o de metaforizar/simbolizar
valores, intenções, aspectos morais. Por isso, é imprescindível verificarmos de que
modo é apresentado/descrito o espaço, a que situações da história ele se vincula,
através do olhar de quem ele é apresentado, para podermos dizer exatamente qual sua
importância e função em uma composição literária. Vejamos agora, de um modo geral,
como o espaço funciona em duas narrativas já por nós estudadas: o capítulo Solfieri,
da obra Noite na taverna, de Álvares de Azevedo, e No Moinho, de Eça de Queirós.
Andamos longo tempo pelo labirinto das ruas: enfim ela parou: estávamos num campo. Aqui, ali,
além eram cruzes que se erguiam de entre o ervaçal. Ela ajoelhou-se. Parecia soluçar: em torno
dela passavam as aves da noite. Não sei se adormeci: sei apenas que quando amanheceu
achei-me a sós no cemitério. Contudo a criatura pálida não fora uma ilusão — as urzes, as
cicutas do campo santo estavam quebradas junto a uma cruz.
O TEMPO
Consideremos ainda a obra Noite na taverna, de Álvares de Azevedo. O texto,
como sabemos, é composto por várias narrativas. A situação inicial, apresentada no
primeiro capítulo (intitulada Uma noite do século), nos coloca diante de cinco
personagens, cinco amigos que bebem em uma taverna e que, um após o outro,
tomam a palavra para contar histórias macabras que, segundo afirmam, eles próprios
protagonizaram. Vejamos um trecho dessa cena inicial da narrativa:
NOITE NA TAVERNA
Era em Roma. Uma noite a lua ia bela como vai ela no verão por aquele céu morno [...].Uma
sombra de mulher apareceu numa janela solitária e escura.[...]
Eu me encostei a aresta de um palácio. A visão desapareceu no escuro da janela... e daí um
canto se derramava. [...]
Depois o canto calou-se. A mulher apareceu na porta. Parecia espreitar se havia alguém nas
ruas. Não viu a ninguém: saiu. Eu segui-a.
A noite ia cada vez mais alta: a lua sumira-se no céu, e a chuva caía as gotas pesadas: apenas
eu sentia nas faces caírem-me grossas lágrimas de água, como sobre um túmulo prantos de
órfão.
Andamos longo tempo pelo labirinto das ruas: enfim ela parou: estávamos num campo.
[...]
Não sei se adormeci: sei apenas que quando amanheceu achei-me a sós no cemitério.
Como já dissemos, a história narrada por Solfieri tem seu próprio tempo. O
narrador nos dá informações esparsas, mas nenhuma data precisa (vejam-se as
indicações temporais sublinhadas). Sabemos que o episódio inicial se passou em
Roma, numa noite de lua, no verão (“Era em Roma. Uma noite a lua ia bela como vai
ela no verão por aquele céu morno”). Nesta noite Solfieri vê uma mulher e a segue
pelas ruas da cidade, enquanto a noite transcorre (“A noite ia cada vez mais alta: a lua
sumira-se no céu”, “Andamos longo tempo”), até chegar a um cemitério, onde a
personagem permanece até o amanhecer (“Não sei se adormeci: sei apenas que
quando amanheceu”), quando percebe que a mulher havia desaparecido. Vemos que
as indicações de tempo, em conformidade com as indicações de espaço, conforme
observamos no item anterior, contribuem para criar uma atmosfera de mistério, que se
transfere para a personagem da mulher, da qual nos fica apenas uma imagem vaga,
fantasmagórica. Vejamos como o texto prossegue:
Um ano depois voltei a Roma. Nos beijos das mulheres nada me saciava: no sono da saciedade
me vinha aquela visão.
Uma noite, e após uma orgia, eu deixara dormida no leito dela a condessa Bárbara. [...]Saí. Não
sei se a noite era límpida ou negra [...].
Quando dei acordo de mim estava num lugar escuro: as estrelas passavam seus raios brancos
entre as vidraças de um templo. As luzes de quatro círios batiam num caixão entreaberto. Abri-o:
era ode uma moça. Aquele branco da mortalha, as grinaldas da morte na fronte dela, naquela tez
lívida e embaçada, o vidrento dos olhos mal apertados... Era uma defunta! ...
Vemos que aqui também o narrador resume os fatos e não informa com detalhes
o que se passou nesses “dois dias e duas noites”; tampouco detalha o que aconteceu a
seguir, apenas nos diz que dormiu sobre as lajes por um ano, não explicitando nada do
que fez além disso. Percebemos assim que alguns episódios que podem ter uma
duração muito longa não ocupam necessariamente um espaço equivalente na
narrativa. Nesse caso, o tempo da narrativa (isto é, o espaço que ela dedica à narração
dos fatos) acelera-se e passamos rapidamente de um momento a outro da história.
Observamos exatamente isso quando Solfieri resume um ano inteiro de sua vida em
uma frase: “Um ano – noite a noite – dormi sobre as lajes que a cobriam”. Como
podemos perceber, aqui a duração da narrativa é bem menor do que a duração da
história.
O contrário também pode acontecer: um episódio rápido pode ocupar muito
tempo da narrativa. Isso ocorre quando o narrador passa a detalhar os fatos,
oferecendo pormenores da história. Vejamos o fragmento abaixo:
Quando dei acordo de mim estava num lugar escuro: as estrelas passavam seus raios brancos
entre as vidraças de um templo. As luzes de quatro círios batiam num caixão entreaberto. Abri-o:
era o de uma moça. Aquele branco da mortalha, as grinaldas da morte na fronte dela, naquela
tez lívida e embaçada, o vidrento dos olhos mal apertados... Era uma defunta! ... e aqueles
traços todos me lembraram uma idéia perdida... — Era o anjo do cemitério? Cerrei as portas da
igreja, que, ignoro por que, eu achara abertas. Tomei o cadáver nos meus braços para fora do
caixão. Pesava como chumbo.
O narrador poderia apenas dizer que entrou em uma igreja e encontrou morta uma
mulher, mas ele não faz isso; ao contrário ele se demora na descrição do espaço, da
moça; essa lentidão é sinalizada até mesmo pelas reticências, que tornam o discurso
mais arrastado.
Portanto, a narrativa pode dedicar um espaço maior ou menor aos episódios da
história, podendo detalhar ao extremo alguns deles ou, ao contrário, simplesmente não
mencionar alguns fatos. Como conseqüência disso, às vezes nos parece que a
narrativa “imita” o tempo que as ações duraram, e em alguns momentos pode mesmo
dedicar a elas um tempo maior do que teriam durado; mas, outras vezes, a narrativa
encurta o tempo da história, chegando até mesmo a anulá-lo (quando a narrativa não
conta o que aconteceu). Daí facilmente depreendemos que a coincidência entre tempo
da história e tempo da narrativa torna-se, se não impossível, pelo menos muito difícil de
ser observada textualmente.
Retomemos a narrativa de Solfieri e examinemos uma outra questão: a ordem
dos fatos narrados. Percebemos que, embora a narrativa avance rapidamente em
alguns momentos, omitindo mesmo alguns períodos de tempo, os fatos são
apresentados de acordo com a ordem cronológica, ou seja, são narrados conforme a
ordem em que aconteceram na história. A narrativa dispõe, desse modo, os fatos
segundo uma seqüência lógico-temporal, numa sucessão linear. Se quisesse, Solfieri
poderia inverter esses momentos, começando a sua história pelo rapto do corpo da
igreja, ou mesmo pelo enterro do corpo em seu quarto, e retornar em seguida aos
acontecimentos que o levaram a agir dessa maneira. Além disso, como Solfieri já
conhecia todos os fatos dessa história quando começou a contá-la, ele poderia ter
adiantado informações sobre episódios ainda não referidos. Em suma, a narrativa pode
inverter a ordem natural dos eventos da história, retrocedendo ou adiantando-se no
tempo.
A elipse apresenta um grau máximo de aceleração, uma vez que uma longa
duração de tempo pode ser condensada numa ausência de narração, como fez Solfieri,
ao deixar em elipse um ano de história. Vejamos outro exemplo, do conto Amor e
sangue, de Alcântara Machado:
Ao Barbeiro Submarino. Barba: 300 réis.
Cabelo: 600 Réis. Serviço Garantido.
— Bom dia!
Nicolino Fior d'Amore nem deu resposta. Foi entrando, tirando o paletó, enfiando outro branco [...]
O Temístocles da Prefeitura entrou sem colarinho.
— Vamos ver essa barba muito bem feita! Ai, ai! Calor pra burro. Você leu no Estado o crime de
ontem, Salvador? Banditismo indecente.
— Mas parece que o moço tinha razão de matar a moça.
— Qual tinha razão nada, seu! Bandido! Drama de amor cousa nenhuma. E amanhã está solto.[...]
Nicolino fingia que não estava escutando. E assobiava a Scugnizza.
As fábricas apitavam.
Quando Grazia deu com ele na calçada abaixou a cabeça e atravessou a rua.
— Espera aí, sua fingida.
— Não quero mais falar com você...
Ainda que curta, a passagem sublinhada mostra como o narrador interrompe as ações
que estava narrando, fazendo uma pausa para comentar a curiosidade. Ou seja, aqui
há um momento nulo de história, porque o narrador deixa de relatá-la. Muitas vezes,
esse tipo de pausa ganha uma extensão bem maior, como explicamos acima, ficando
ainda mais evidente a desaceleração no ritmo da narrativa.
Na leitura de um texto, ocorre uma direção vetorial cronológica quando o tempo da história se
desenvolve paralelamente ao tempo do discurso; quando lemos um segmento onde, por
exemplo, fatos ocorridos em junho de 1967 são sucedidos, depois, por outra seqüência narrativa,
com fatos de março de 1968 e assim sucessivamente. Teríamos, neste caso, o gráfico:
Tempo da história------------------------------------------------------------------------------------------------------→
Tempo do discurso-----------------------------------------------------------------------------------------------------→
Notemos que o narrador estava a relatar o tipo de vida que Maria levava, desde
os vinte anos, ao lado do marido. Ao invés de seguir contando o que sucedeu com ela
a partir daí, o narrador volta no tempo, passando a relatar como era sua vida de solteira
e a explicar os motivos que a levaram a aceitar o pedido de casamento de João
Coutinho.
Esse tipo de procedimento, o de narrar ou evocar um acontecimento que ocorreu
num tempo anterior, é chamado por Gérard Genette de anacronia por retrospecção ou
analepse. Esse recurso é muito usado para esclarecer os antecedentes de uma
determinada situação ou a vida passada de uma personagem.
Observemos um outro tipo de anacronia, num exemplo tirado do romance
Levantado do Chão, de José Saramago:
Manuel Espada teve de ir guardar porcos e nessa vida pastoril se encontrou com António Mau-
Tempo, de quem mais tarde, em chegando o tempo próprio, virá a ser cunhado
a)
Dentro de cinco dias, o alienista meteu na Casa Verde cerca de cinqüenta aclamadores
do novo governo. O povo indignou-se. O governo, atarantado, não sabia reagir. João
Pina, outro barbeiro, dizia abertamente nas ruas, que o Porfírio estava ‘vendido ao ouro
de Simão Bacamarte’...
b)
– a Há de ser alguma patuscada, dia ela mudando a posição de um alfinete. Benedita,
vê se a barra está boa.
– Está, sinhá, respondia a mucama de cócoras no chão, está boa. Sinhá vira um
bocadinho. Assim está muito boa.
– Não é patuscada, não, senhora; eles estão gritando: – “Morra o Dr. Bacamarte! o
tirano!
c)
Cerca de trinta pessoas ligaram-se ao barbeiro, redigiram e levaram uma
representação à câmara. A câmara recusou aceitá-la, declarando que a casa Verde era
uma instituição pública, e que a ciência não poderia ser emendada por votação
administrativa, menos ainda por movimentos de rua.
d)
Um amplo chambre de damasco, preso à cintura por um cordão de seda, com borlas
de ouro (presente de uma Universidade) envolvia o corpo majestoso e austero do
ilustre Alienista. A cabeleira cobria-lhe uma extensa e nobre calava adquirida nas
cogitações quotidianas da ciência.
LINS, Osman. Lima Barreto e o espaço romanesco. São Paulo: Ática, 1976.
BIBLIOGRAFIA DE APOIO