Você está na página 1de 8

O passado cultural re-atualizado na cerâmica figurativa Karajá

Chang Whan, doutoranda, PPGAV - EBA - UFRJ, whanchang@gmail.com

Introdução
Os Karajá são uma sociedade indígena brasileira, habitantes imemoriais das
margens do Rio Araguaia, na Ilha do Bananal e arredores, na divisa entre os estados
de Mato Grosso e Tocantins. Os “Iny”, como se auto-designam na língua Karajá,
contam atualmente com uma população de cerca de 2.800 pessoas, distribuídas em
cerca de 12 aldeias1, sendo que as maiores e mais antigas são Santa Isabel do Morro,
atualmente com cerca de 652 habitantes e Fontoura, com cerca de 611 habitantes,
ambas na ilha do Bananal2. A língua Karajá, que pertence ao tronco lingüístico Macro
Jê, é ativamente falada na grande maioria das aldeias3.

Os Karajá se destacam entre os povos indígenas brasileiros por apresentarem


uma notável condição de preservação de suas tradições culturais, lingüísticas e de
organização social, mesmo estando em contínuo contato com a sociedade nacional por
mais de dois séculos. Muitas mudanças têm se verificado na vida secular Karajá,
como a introdução de bens industrializados e de consumo no cotidiano das aldeias e o
trabalho como funcionários em órgãos do governo, como a FUNAI e a FUNASA. No
âmbito do sagrado, contudo, os conteúdos simbólicos e as suas formas expressivas
permanecem não só admiravelmente preservados, como continuamente re-atualizados
através de suas festas e de seus ciclos cerimoniais e rituais tradicionais. Quadro que se
reflete visualmente na sua rica cultura material, com especial destaque para as artes da
cestaria, da plumária e da cerâmica.

O foco do presente estudo se volta para a produção da cerâmica figurativa


Karajá, uma produção que continuamente reafirma a permanência e a atualidade da
identidade cultural Karajá. As “ritxoko”4 , como são chamadas pelas ceramistas no

1
Números aproximados, fornecidos por funcionário da FUNASA, em julho de 2008.
2
FONTE: Governo do Tocantins, Secretaria da Cidadania e Justiça - Diretoria de Promoção e Defesa
dos Direitos Humanos. SIASI - FUNASA / São Félix do Araguaia – MT, 01/01/2008.
3
Até a idade escolar as crianças falam exclusivamente a língua materna, só passando a aprender o
português quando começam a freqüentar a escola.
4
Ou “litxoko”.

1
seu dialeto feminino5, são fabricadas exclusivamente pelas mulheres, sendo que
atualmente grande parte de sua produção se destina ao mercado de turismo regional e
de arte étnica. Com um variado repertório temático, as “ritxoko” são criações que
retratam inúmeros aspectos da vida, da pessoa e do imaginário Karajá. Constituem-se
como um rico canal de expressão para as ceramistas, que, através delas, nos revelam
sobre muitos aspectos da visão de mundo das mulheres Karajá.

Tradição e inovação

Quando, em fins do século XIX e início do século XX, os primeiros etnólogos


a registrarem aspectos da cultura e da vida social dos Karajá, os alemães Paul
Ehreinreich (em 1888) e Fritz Krause (em 1908), chegaram em território Karajá, nas
cercanias da Ilha do Bananal, aí encontraram uma sociedade bem estabelecida e
estruturada, muito se admirando com a riqueza e a complexidade de seus sistemas
rituais e cerimoniais. Completava tal cenário etnográfico uma pródiga produção de
cultura material, com suas dramáticas máscaras que personificam entidades
sobrenaturais nas danças rituais de Aruanã, passando pelas vistosas indumentárias e
adereços ornamentais em plumária e trançados, até os elaborados grafismos
executados como ornamentação de corpos e de objetos. Entre os muitos itens da
cultura material Karajá registrados pelos etnólogos, as bonequinhas feitas em barro,
com as suas formas esteatopígeas (bases volumosas), foram objeto de particular
atenção, tendo sido descritas e reproduzidas em desenhos em seus cadernos de notas
de campo e amplamente coletadas e levadas para museus e instituições acadêmicas na
Europa.

Tradicionalmente, a atividade oleira, que pertence ao domínio feminino, se


caracterizava principalmente pela produção de peças utilitárias, como potes, panelas,
tigelas e urnas funerárias. Com exceção das urnas funerárias, as peças utilitárias são
ainda produzidas atualmente, principalmente os grandes potes para armazenamento de
água, pois estes ajudam a conservá-la sempre fresca. Geralmente são as mulheres
mais velhas que sabem fazer os grandes potes de água e as peças utilitárias, sendo
estas destinadas ao uso próprio ou para presentear parentes e amigas. As mulheres

5
Na língua Karajá, há o dialeto feminino, que se distingue da fala masculina. Os homens se referem as
bonecas por “ritxoo” ou “litxoo”

2
mais jovens se dedicam mais à confecção das “ritxoko” movidas pelo interesse de
venda e geração de recursos monetários.

Originalmente as “ritxoko” eram confeccionadas no contexto da produção das


peças utilitárias, e se destinavam a servir de brinquedo para as meninas. Constituíam
conjuntos representando membros de uma família – pai e mãe, filhos e filhas, avós e
avôs, etc. Eram geralmente feitas pelas avós ou tias ceramistas como presentes para
netas ou sobrinhas. Além de brinquedo para mera fruição lúdica das crianças, estas
pequenas famílias de “ritxoko” constituíam uma espécie de “recurso didático”
(usando um típico jargão pedagógico da nossa educação formal) dentro do processo
de educação informal tradicional Karajá, com o qual as relações familiares e de
parentesco eram explicitadas e os laços afetivos reforçados pela noção de conjunto
que estas famílias de “ritxoko” formavam.

Ainda hoje as famílias de “ritxoko” são fabricadas com este mesmo propósito,
sendo mantidos todos seus aspectos sócio-educativos, assim como as suas principais
características formais: As dimensões reduzidas, de cerca de 10 cm de comprimento,
adequadas para o fácil manuseio de mãozinhas de crianças, e a apresentação formal
destas “ritxoko” no estilo antigo, denominado “hakana ritxoko”, no dialeto feminino.
Um importante aspecto, de caráter técnico, no entanto, distingue as antigas “hakana
ritxoko”, das “ritxoko” fabricadas atualmente: a queima. As “hakana ritxoko”,
literalmente, “bonecas do tempo antigo”, em Karajá, eram, originalmente, finalizadas
em barro cru, ou seja, não eram submetidas à queima. A queima, feita nos moldes do
que se convencionou chamar de queima “primitiva”, em fogueira aberta, era
empregada apenas no fabrico dos potes e outros utilitários, não sendo praticada para
as pequenas “ritxoko”. Podemos supor que tal fato possivelmente decorresse em
função das dimensões reduzidas destas “ritxoko do tempo antigo”, assim como as suas
formas arredondadas, robustas e sólidas, características físicas que conferiam uma
considerável resistência às à figurinhas quando secas.

A introdução da queima no fabrico das “ritxoko”, concordam os principais


pesquisadores e etnólogos que estudaram a cerâmica figurativa Karajá, como Luis de
Castro Faria (1952, 1957), Darcy Ribeiro (1957), e Heloisa Fénelon Costa (1978), foi,
portanto, o fator chave que deflagrou um grande movimento de mudança nos aspectos
3
formais e estilísticos da cerâmica figurativa Karajá. No contexto de sua produção, as
mudanças no âmbito das técnicas e processos de produção desencadearam o
surgimento de um novo padrão estilístico no âmbito formal de expressão artística.

Não se pode precisar exatamente quando as ceramistas Karajá começaram a


queimar as suas pequenas “ritxoko”. Estima-se que tenha sido provavelmente em
algum momento na primeira metade do século XX, possivelmente por sugestão de
compradores, interessados em obter maior resistência e durabilidade para as
bonequinhas (Castro Faria, 1957; Ribeiro, 1957; Fénelon Costa, 1978). A partir de
então, com a maior resistência obtida nas peças, as ceramistas se viram frente a
infinitas novas possibilidades de criação para a sua arte. De início as dimensões
cresceram, passando para peças de em torno de 15 a 25 centímetros. Em seguida as
figuras começaram a adquirir maior iconicidade, com a incorporação de braços ao
longo do corpo, pois com a queima e a maior resistência, estes não se quebrariam
facilmente, desprendendo-se de seus troncos. Os braços não demoraram a se soltar
para expressarem dramaticidade e movimento. As “ritxoko” passam a ser
confeccionadas em diferentes posturas corporais, ora de pé, ora sentadas, retratando
cenas da vida Karajá, como o trabalho das mulheres e dos homens, cuidando de
criança, ralando mandioca, na canoa, voltando da pesca, e muitas outras situações.
Nascia assim um novo paradigma estilístico na cerâmica figurativa Karajá,
denominado “wijina bede ritxoko”, ou seja, literalmente, “ritxoko do tempo atual”,
bastante distinto das “hakana ritxoko”, as “ritxoko do tempo antigo”, que logo é
amplamente adotado e copiado entre as ceramistas na aldeia de Santa Isabel do
Morro, aldeia onde, segundo Fénelon Costa (1978), se deu este movimento de
inovação . Castro Faria, em seu estudo intitulado A figura humana dos índios Karajá
(1959), refere-se a esta distinção como duas fases, a antiga e a moderna (1959, 51), e
Fénelon Costa (1978:53), sob influencia de Franz Boas (1947) emprega a tipologia
estilo simbólico e estilo realista, respectivamente, para distingui-los. Não me parece
adequado, no entanto, fazer esta distinção em termos de fases, uma vez que as
“ritxoko” modernas não suprimiram as antigas, tradicionais. A noção de fases está
ligada à ideia de tempo decorrido, de estágios evolutivos.

4
s.f. (sXIV cf. FichIVPM) 1 cada um dos estados de algo em evolução ou que passa por
sucessivas mudanças <as f. de uma doença> <a produção do filme está em f. final> 2 período
ou época com características próprias <a f. figurativista de um pintor> (Houaiss) 6

Não é exatamente este o quadro que se constata com relação à produção das
“hakana ritxoko” e das “wijina bede ritxoko”. As “ritxoko do tempo antigo” não
deixaram de ser confeccionadas com a eclosão criativa que caracterizou o surgimento
das “ritxoko dos tempos atuais”. Estas continuam a ser fabricadas até hoje, mantendo-
se as características formais tradicionais que as distinguem, assim como as funções
sócio-educativas a elas associadas. Tampouco me parece muito apropriada a
denominação estilo simbólico versus estilo realista de Fénelon Costa, particularmente
se considerarmos as representações de seres sobrenaturais retratados nas “ritxoko”.
Por isso, propomos a designação “estilo tradicional” e “estilo moderno” para as
“ritxoko” Karajá.

Além da esteatopigia7 que caracteriza as “hakana ritxoko”, as figuras do estilo


tradicional são fabricadas segundo padrões formais rígidos: destituídas de braços,
apresentam invariavelmente pares de protuberâncias na parte superior do tronco,
referentes indiciais que designam ombros. À primeira vista, podemos ser levados a
associar a estes elementos sígnicos, em função de sua localização nas figuras, os seios
femininos, numa representação de caráter mais naturalista. No entanto, constata-se
que estas duplas protuberâncias estão presentes também nas figuras que representam
homens, e mesmo seres sobrenaturais do gênero masculino, o que nos leva à
conclusão de que tal traço físico não deve ser associado a seios, mas a ombros nas
“hakana ritxoko”.

Outra característica formal que se observa nas figuras do estilo tradicional é a


solução encontrada para a aposição de um adorno corporal típico Karajá, as
braçadeiras vermelhas em algodão tecido “desi”. Muito apreciados e usados sempre
aos pares nos antebraços por jovens de ambos os sexos, o “desi” é um elemento visual
importante na composição do que se concebe como um belo corpo adornado de uma
pessoa Karajá. A vontade de incorporá-las às “bonequinhas do tempo antigo”, sem
braços, levaram as ceramistas a lançar mão de uma operação estética de síntese

6
Dicionário eletrônico Houaiss da língua portuguesa 2.0
7
s.f. (sXX cf. AGC) MED hipertrofia das nádegas por acúmulo de gordura ETIM esteat(o)- + -
pig(o)- + -ia; ver pig(o) - (Dicionário eletrônico Houaiss da língua portuguesa 2)

5
formal. As braçadeiras foram colocadas nos roletes que representam os cabelos das
moças “ijadokomã”. As ceramistas Karajá operaram, assim, uma fusão formal:
cabelos se tornam braços, se fundem, ou melhor, são, ao mesmo tempo, cabelos e
braços, para que sirvam de suporte ao muito apreciado enfeite Karajá “desi”.

Com a produção das “hakana ritxoko”, portanto, as ceramistas Karajá estão


continuamente re-atualizando uma tradição. Estas não foram abandonadas com o
surgimento do novo estilo, com as “wijina bede ritxoko”. Os dois estilos estão
presentes de forma concomitante na produção das ceramistas. A inovação não
suplantou a tradição.

O passado se re-atualiza pelas mãos das ceramistas não apenas no seu aspecto
formal, mas também através de suas escolhas temáticas. É o que se pode observar na
produção das “wijina bede ritxoko”, das “ritxoko” do estilo moderno. A imagem do
guerreiro, segurando o tacape e a lança, do caçador, com uma onça ou uma queixada
nas costas, certamente não encontram facilmente referentes reais e concretos nos
tempos atuais, mas evocam imagens pretéritas que ainda despertam o orgulho pela
forma de ser Karajá. Não se percebe nenhuma presença de elementos materiais da
cultura do “tori”8 nas “ritxoko” modernas, embora estes estejam cada vez mais
presentes nas vidas cotidianas das aldeias - televisão, fogão, bicicleta, lanchas
“voadeiras” a motor, e a lista se estende e é longa . São bastante comuns as cenas do
trabalho tradicional, dos funerais, e as cenas reproduzindo momentos importantes nos
rituais Karajá. Podemos dizer que as “ritxoko” constituem-se como artefatos
mnemônicos que celebram uma existência cultural pretérita, bem como a identidade
étnica Karajá. Muitas da formas culturais tradicionais têm caído em desuso, porém
não foram, ou serão, esquecidas - ao menos parece ser esta a vontade das ceramistas
Karajá.

Conclusão

O estudo da cerâmica figurativa Karajá constitui um fértil campo de


investigação sobre a cultura e a sociedade indígena Karajá. A partir do surgimento de

8
“tori” – termo Karajá designativo da pessoa não Karajá, especialmente dos brasileiros da sociedade
nacional.

6
um novo estilo moderno bem distinto, que introduz grandes mudanças, tanto técnicas
como formais e estilísticas, e principalmente no seu conteúdo sígnico, as “ritxoko”
passam a retratar imagens da vida e do modo de ser “Iny”. A iconografia presente nas
“ritxoko” nos informam sobre as imagens que o “Iny” tem de sua própria pessoa, de
sua própria identidade, assim como as imagens do imaginário Karajá, quando retratam
seres míticos e sobrenaturais, personagens de mitos e estórias da tradição oral.

As “ritxoko” fundam uma linguagem visual da cerâmica Karajá. Podem ser


consideradas como auto-retratos étnicos, uma vez que retratam apenas a “gente Iny”.
Contam a história do povo Karajá, as atividades da vida cotidiana, os momentos
importantes na vida da pessoa Karajá, as relações sociais, entre muitos outros
aspectos. Como retratos que preservam imagens de formas culturais de tempos
passados, as “ritxoko” podem também ser consideradas como artefatos mnemônicos
que celebram o passado e a identidade étnica Karajá.

Através das ”ritxoko” pode-se dizer que a voz feminina Karajá se expressa,
visualmente, “em alto e bom tom”, e, no seu conjunto, mandam a seguinte mensagem:
“Assim somos nós, o povo “Iny”, assim é a nossa vida, assim é o nosso modo de ser -
segundo as formas dos nossos costumes e tradições. E é assim que gostamos de viver,
e é assim que gostamos de ser”. Esta parece ser a recorrente mensagem das mulheres
ceramistas Karajá para o mundo exterior, assim como para seu próprio povo.

Referências Bibliográficas

CHANG, Whan. RERU – Figuras em Cordéis dos Índios Karajá. Dissertação de


Mestrado - Programa de Pós-graduação em Artes Visuais. Rio de Janeiro,
EBA – UFRJ, 1998.

CHANG, Whan. Tradição e Inovação na Cerâmica Figurativa Karajá. In:


Tradição e Inovação – Anais do 5º Encontro do Mestrado em História da Arte.
Rio de Janeiro, UFRJ, EBA, 1998.

COSTA, Maria Heloisa Fenelon. A Arte e o Artista na Sociedade Karajá. Brasília,


FUNAI, 1978.

7
EHRENREICH, Paul. Contribuições para a Etnologia no Brasil. In: Revista do
Museu Paulista, s/n, vol II. São Paulo, 1948.

FARIA, Luis de Castro. A figura humana dos índios Karajá. Rio de Janeiro, Museu
Nacional, 1959.

KRAUSE, Fritz. Nos sertões do Brasil. In: Revista do Arquivo Municipal, no. 66-
95. São Paulo, 1940-1943.

LIMA, Tania Andrade. Cerâmica Indígena Brasileira. In: Ribeiro, Darcy Suma
Etnológica Brasileira. Tecnologia Indígena. Petrópolis: Vozes, 1987.

RIBEIRO, Darci ed. Suma Etnológica Brasileira – Arte India. Petrópolis: Vozes,
1986.

----. Suma Etnológica Brasileira –Tecnologia Indígena. Petrópolis: Vozes,1987.

SIMÕES, Mário Ferreira. Cerâmica Karajá e outras notas etnográficas. Goiania:


Ed. UCG/IGPA, 1992.

Referência eletrônica

Dicionário eletrônico Houaiss da língua portuguesa 2.0

Você também pode gostar