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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO


PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ANTROPOLOGIA SOCIAL
MUSEU NACIONAL

REPRODUZINDO-SE NO MUNDO DOS BRANCOS:


Estruturas KARAJÁ em Porto Txuiri
(Ilha do Bananal - Tocantins)

Lydie Oiara Bonilla Jacobs

Dissertação de Mestrado apresentada ao


Programa de Pós-Graduação
em Antropologia Social do Museu Nacional
- Universidade Federal do Rio de Janeiro.

Orientadora: Aparecida Vilaça


(Doutora em Antropologia Social)

Rio de Janeiro
2000
2

“Il faut vivre debout, debout et en mouvement...”


Jacques Brel
3

Para Sebastião Ijaú Karajá


e Sebastián Sachetti
4

FICHA CATALOGRÁFICA

Bonilla, Oiara.
Reproduzindo-se no mundo dos Brancos: estruturas KARAJÁ em Porto
Txuiri, Ilha do Bananal (Tocantins)/ Oiara Bonilla. Rio de Janeiro: UFRJ/PPGAS,
2000.
98 p.

Dissertação - Universidade Federal do Rio de Janeiro,


Museu Nacional, PPGAS.

1. Cultura Indígena - Karajá. 2. Cultura Indígena - Javaé. 3. Mudança cultural.


4. Espaço. 5. Corpo. 6. Ilha do Bananal - desocupação. I. Título.
5

RESUMO

BONILLA, Oiara. Reproduzindo-se no mundo dos Brancos: estruturas KARAJÁ em


Porto Txuiri (Ilha do Bananal, Tocantins).
Orientadora: Aparecida Neiva Vilaça. Rio de Janeiro: UFRJ/PPGAS/MN, 2000. Diss.

Esta dissertação é um trabalho essencialmente etnográfico. Os KARAJÁ


apropriaram-se de um vilarejo de Brancos e o transformaram em aldeia KARAJÁ
Apresentarei em uma primeira parte as questões ligadas ao espaço KARAJÁ em geral
e ao espaço de Porto Txuiri, mostrando que os KARAJÁ não vivem em uma aldeia
“descaracterizada” e sim em uma aldeia que eles fizeram e tornaram KARAJÁ através
da reprodução de sua estrutura espacial.
Em seguida, descrevo como os KARAJÁ se apropriam de outros elementos
Tori: alimentos, roupas, técnicas e saberes. De fato, após apropriar-se de um espaço
alheio, os moradores de Porto Txuiri se apropriaram das roupas e dos alimentos dos
Tori e optaram por constituir uma aldeia misturada (onde se casam entre subgrupos e
com os Tori). Procuro mostrar, então, que a idéia de reprodução estrutural, não exclui
a idéia da transformação. Pelo contrário, como o mostra o mito de origem dos
KARAJÁ, a própria estrutura é transformacional.
6

SUMÁRIO

INTRODUÇÃO 1

PARTE 1: PORTO TXUIRI, UMA ALDEIA KARAJÁ ? 8

CAPÍTULO 1: DE PORTO PIAUÍ A PORTO TXUIRI 8


1.1. Breve histórico da desocupação e da retomada da Ilha
1.1.1. Elementos da história do contato
1.1.2. A invasão da Ilha do Bananal
1.1. A Tomada de Porto Piauí 10
1.2.1. Porto Piauí: uma vila de posseiros.
1.2.2. A instalação do líder.
1.2.3. As alianças e os interesses em jogo.
1.2.4. A inauguração de Porto Txuiri

CAPÍTULO 2: A TRÍADE ESPACIAL: DO COSMOS À ALDEIA 18


2.1. O espaço cosmológico
2.1.1.O mundo subaquático
2.1.2. O mundo do céu e da chuva
2.1.3. O mundo de fora
2.2. O espaço da aldeia 23
2.2.1. As casas
2.2.2. Divisões espaciais e circulação nas aldeias
2.2.3. As roças

CAPÍTULO 3: ESTRUTURAS ESPACIAIS KARAJÁ EM PORTO TXUIRI 31


3.1. Restruturação espacial 32
3.1.1. Edifícios e construções
3.1.2. Restabelecimento do esquema espacial
3.1.3. Ocupação do espaço e divisões espaciais
3.2. Espaço doméstico 35
3.2.1 O quintal e a porta
3.2.2. A casa
3.3. Dos espaços masculinos ao “outro lado” 37
3.3.1. A dispersão do espaço masculino
3.3.2. Os pronunciamentos
3.3.3. A praça e o rio
3.3.4. O outro lado

PRIMEIRAS CONSIDERAÇOES 46

PARTE 2: CORPO E TRANSFORMAÇÕES 49

CAPÍTULO 1 - O CORPO KARAJÁ 51


1.1. Corpos, peles e almas 51
1.1.1. A fabricação do corpo
1.1.2. As fases de crescimento e classes etárias
1.2. O xamã: corpo e poderes especiais 58
7

CAPÍTULO 2 - O CORPO COMO ESPAÇO DAS TRANSFORMAÇÕES 63


2.1. Corpo ameríndio e transformações 63
2.2. O corpo em Porto Txuiri 66
2.2.1. Os corpos vestidos
2.2.2. Os casamentos

CAPÍTULO 3 - TRANSFORMAÇÕES EM PORTO TXUIRI 73

NOTA SOBRE A POSSESSÃO E A FEITIÇARIA EM PORTO TXUIRI 79

CONCLUSÕES 84
BIBLIOGRAFIA 87
CADERNO DE FOTOS 91

ÍNDICE DAS FIGURAS

Mapa 1: Localização atual dos KARAJÁ e dos grupos vizinhos 4


Mapa 2: Ilha do Bananal e localização das principais aldeias
7
Mapa 3: Plano geral da aldeia 32
Mapa 4: Esquema espacial de uma aldeia KARAJÁ
35
(feito a partir do mapa de Canoanã)
Mapa 5: Esquema espacial de Porto Txuiri
35
(casas ocupadas pelos KARAJÁ em 1996)
Mapa 6: Esquema espacial de Porto Txuiri
35
(casas ocupadas pelos KARAJÁ em 1999)
Mapa 7: Vista aéra (1996) 45

Figura 1: Modelo simplificado de aldeia (com divisões espaciais)


25
Figura 2: Transformação da casa KARAJÁ
25
8

AGRADECIMENTOS

Ao longo destes dois anos de pesquisa, contei com a ajuda financeira da


CAPES e da Finep, assim como de meus pais.
Gostaria de agradecer a todos os moradores de Porto Txuiri, a Idjarruri Karajá
e a toda sua família, que me acolheram sempre com muito carinho e paciência. O
apoio deles foi essencial para a realização deste trabalho. Agradeço igualmente a
minha família Karajá: meu pai Sebastião Idjaú, e minha tia Dihÿdo, minhas irmãs
Kudjanawiru, Xirikeru e meus sobrinhos, pelos momentos inesquecíveis que vivemos
juntos, e pelas as intermináveis conversas com meu pai, sempre pontuadas de
comentários e risos das mulheres. Ainda na aldeia, agradeço a Ana Maria e sua
família pela amizade e por ter me acolhido tão gentilmente em sua casa, em 1996.
Sou grata também aos professores do Museu Nacional, especialmente a
Eduardo Viveiros de Castro, Federico Neiburg e Marcus Maia. Sou muito grata ao
Departamento de Antropologia e ao PPGAS do Museu Nacional, aos meus colegas, e
à toda a equipe da secretaria e da biblioteca.
Os professores de Nanterre e da EPHE, Aurore Monod-Becquelin, Anne-
Marie Losonczy, Idelette Muzart, Patrick Menget e Philippe Erikson sempre me
ajudaram e aconselharam. Anne-Christine Taylor (EREA-CNRS) fez parte da banca
da maîtrise, incentivou-me e me fez inúmeras sugestões para a continuação do
trabalho. Sonnia Romero, em Montevideo, convidou-me gentilmente a expor o meu
trabalho em uma de suas aulas. Agradeço também a Patrícia de Mendonça Rodrigues
(UnB - University of Chicago) com quem mantive contato permanente e que sempre
compartilhou comigo suas experiências e seu conhecimento sobre os KARAJÁ e os
Javaé em particular.
A minha orientadora e amiga, Aparecida Vilaça, sempre acreditou e deu força
para que esta pesquisa continuasse, participando intensamente de cada etapa do
trabalho. Mesmo à distância, discutimos passo a passo, cada parte da dissertação,
trocando idéias e avançando sempre mais na análise dos dados.
Atenéia e Mário Feijó, Béatrice Cordier, Céline Debacker, Diego Lapique,
Florence Melinand, Guillaume Dalmasso, Joana Miller, Katrien Costermans, Laura
Madonna, Marcos Terena, Maria José Freire, Melinda Pellegrin, Monica Lagarrigue,
Mostafa Pajouyan, Olivier Coppens, Sylvia Bonilla, Rique Queijão, Ronnie
Friederich, Sol Parejo, Thamy Pogrebinschi e Vassili Rivron confiaram e acreditaram
na importância deste trabalho, sua amizade foi preciosa. Os colegas e amigos do Kyu
Shin de Montevideo me deram força e entusiasmo para enfrentar a última etapa do
trabalho.
Meus irmãos, mesmo estando longe, sempre estiveram presentes durante todo
o tempo em que não nos vimos.
Finalmente, agradeço especialmente a Sebastián Sachetti que me acompanhou
na última viagem à aldeia e me ajudou a completar muitos dados da etnografia.
Ensinou-me a enxergar e a viver o campo além do olhar antropológico, aprendeu a
comer peixe à moda KARAJÁ, e virou xará de Sebastião Idjaú. Sebastián também
compartilhou e participou intensamente de todo o processo de elaboração da
dissertação. Sem ele, certamente, todo esse caminho não teria sido tão fascinante e
agradável.
9

NOTA SOBRE A GRAFIA1

Para facilitar o ensino nas escolas bilíngües os S.I.L. (Summer Institute of


Linguisitcs) estabeleceu convenções de grafia da língua KARAJÁ que são utilizadas,
hoje em dia, por todos. Segundo Rodrigues (1993), as letras representam o mesmo
som que as nossas, com exceção de:

à - corresponde ao i (neutro) da palavra inglesa “bird”


è - corresponde ao è (aberto) de “café”
ò - corresponde ao ó (aberto) da palavra “só”
h - corresponde ao rr da palavra “carro”
j - corresponde ao j da palavra inglesa “june”
k - corresponde ao c antes de a, o e u; e ao qu antes de i e e
r - corresponde ao r da palavra “madeira”
s - corresponde ao [s ~0]
tx - corresponde ao [ts]
w - corresponde ao w da língua inglesa
y - vogal central, fechada, um pouco alta, não-arredondada.
ÿ - vogal nasal parecida com o ã da língua portuguesa.

1
Esta tabela reproduz a que apresenta Rodrigues (1993) em sua dissertação de mestrado.
10

INTRODUÇÃO

O início
Em 1992, tive a oportunidade de trabalhar como voluntária na organização da
Conferência Mundial dos Povos Indígenas promovida pelo Comitê Intertribal - 500
Anos de Resistência. Naquela ocasião, estive em contato com várias lideranças
indígenas nacionais e fui convidada por algumas delas para conhecer suas aldeias de
origem. Em 1994, encontrava-me estudando Ciências Sociais em Bruxelas quando
recebi uma carta de Idjarruri Karajá (liderança indígena nacional) acompanhada de
um importante dossiê sobre a desocupação das terras Karajá e Javaé, há anos
invadidas e ocupadas por posseiros e fazendeiros (criadores de gado, principalmente).
O líder havia se instalado com sua família em um vilarejo de posseiros - Porto
Piauí - construído em território indígena, e havia sofrido ameaças por estar
articulando, junto com outros líderes e entidades (INCRA, FUNAI, CPT2), a
desocupação das terras KARAJÁ3. Ameaçados, Idjarruri e sua família se refugiaram
em Gurupi (cidade próxima à Ilha do Bananal), e pediram ajuda à Procuradoria Geral
da República e aos seus amigos e conhecidos, no Brasil e no exterior. Foi assim que
fui projetada para dentro da realidade KARAJÁ, envolvendo-me com abaixo-
assinados, cartas de apoio etc. Foi quando comecei a me interessar pelo aspecto
etnológico da sociedade KARAJÁ.
Em 1996 fiz a minha primeira visita à Ilha do Bananal e, mais particularmente,
à nova aldeia de Porto Txuiri, onde acabei ficando por dois meses4. De fato, o vilarejo
construído por posseiros havia sido, neste meio tempo, desocupado (assim como a
maior parte da Ilha do Bananal) e transformado em uma aldeia KARAJÁ, habitada
quase que exclusivamente por estes Índios.

Porto Txuiri - localização, vegetação e clima


Porto Txuiri - nome dado pelos KARAJÁ ao antigo vilarejo de Porto Piauí -
localiza-se na Ilha do Bananal, uma ilha fluvial de 2.000.000 de hectares, formada

2
Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária, Fundação Nacional do Índio, Comissão
Pastoral da Terra.
3
Quando me refiro ao conjunto KARAJÁ, uso letras maiúsculas, quando me refiro ao subgrupo Karajá
em particular, uso minúsculas. Sobre a escolha da utilização deste termo, em letras maiúsculas, ver
infra.
4
A partir deste primeiro trabalho de campo escrevi minha monografia de fim de curso (maîtrise) para a
Universidade de Paris X-Nanterre.
11

pelo Rio Araguaia e seu braço menor, o Rio Javaés, no estado do Tocantins. A Ilha do
Bananal é habitada, do lado do Rio Araguaia (na margem direita do rio, do lado
esquerdo da Ilha) pelo subgrupo Karajá, e, na margem esquerda do Rio Javaés (lado
direito da Ilha), pelo subgrupo Javaé. Porto Txuiri situado na margem esquerda do
Rio Javaés, fica, portanto, do lado javaé da Ilha. Mais ao norte, já fora do território da
Ilha mas ainda nas margens do Araguaia, encontram-se os Xambioá, o outro subgrupo
KARAJÁ. A Ilha do Bananal é conhecida como a maior ilha fluvial do mundo,
possuindo um ecossistema extremamente rico. Os peixes do Araguaia, do rio Javaés e
dos inúmeros riozinhos e lagos da Ilha do Bananal, atraem pescadores amadores e
profissionais durante todo o ano, e principalmente no “verão” (meses da estiagem: de
maio a outubro).
A vegetação da Ilha é característica do cerrado. Em seu interior há inúmeras
planícies que ficam inundadas durante as chuvas (de novembro a março) e suas
margens são bordeadas por mata-galeria, vegetação mais densa e verde (Rodrigues
1993: 17). Durante o “verão” chove muito raramente, as estradas se transformam em
nuvens de poeira com a passagem de qualquer veículo, a vegetação seca e é recoberta
por uma capa de poeira vermelha. É comum ver gado morto de sede na beira das
estradas. As águas dos rios diminuem de forma considerável, e o rio Javaés fica tão
baixo que pode ser atravessado a pé. As vezes, os bancos de areia formam piscinas,
interrompendo o curso do rio. Nesta época, os turistas invadem as praias do rio
Araguaia e de seus afluentes, montando acampamentos e permanecendo às vezes por
várias semanas.
Na época da chuva, a Ilha fica mais protegida, pois, o acesso é dificultado pela
enchente. As estradas de acesso ficam freqüentemente impraticáveis. Noventa por
cento da superfície da Ilha do Bananal fica submersa pelas águas de modo que só é
possível se deslocar em canoa ou barco a motor.

Os KARAJÁ
O conjunto KARAJÁ, que optei por diferenciar em caixa alta, é formado por
três subgrupos: os Karajá propriamente ditos (subgrupo mais numeroso), os Javaé e os
Xambioá, que falam três variantes ou dialetos da língua KARAJÁ que pertence ao
tronco lingüístico Macro-jê (Greenberg 1956 apud Pétesch 1992: 33) . O conjunto
12

KARAJÁ se autodenomina Inÿ, i.e. “nós”, “a gente”, distinguindo-se assim dos


outros grupos indígenas da região, e dos Brancos.
Os Karajá (nome de origem tupi5) se autodenominam berohykÿ mahãdu
(gente do rio grande), em oposição aos Javaé, aos quais eles se referem como ixÿju
mahãdu (gente do mato) ou bero biawa (amigos do rio).
Os Javaé se autodenominam bero biawa (amigos do rio) e chamam os Karajá
de berohykÿ mahãdu (gente do rio grande) ou iwa yre (aleijado, sem um pé)
(Rodrigues 1993:10)6.
Os Xambioá, são chamados de ixÿbiowa, i.e. “povo amigo”, mas não sei se se
autodenominam desta forma, nem como chamam os outros subgrupos.
É importante ressaltar que, para referir-se aos Javaé, os dois outros subgrupos
utilizam a expressão: ixÿju mahãdu - gente do mato. Trata-se da mesma apelação
usada para os vizinhos jê e tupi: os Xavante, os Kayapó, os Xerente, os Tapirapé, os
Avá-Canoeiros (ver mapa 1). Mas todos os subgrupos se reconhecem e se consideram
membros do coletivo Inÿ, “a gente”. Os KARAJÁ seriam, no total, aproximadamente
2380.
• Os Karajá vivem em aldeias nas margens do Araguaia situadas, em sua
maioria, na Ilha do Bananal. As aldeias karajá mais importantes são: Santa
Isabel do Morro, Fontoura e Macaúba. Fora da Ilha estão também as aldeias
de São Domingos, Aruanã I, II e III, Mata Corã e Luís Alves (a montante
do rio Araguaia). Os Karajá são, aproximadamente, 1400 pessoas, segundo
cálculos feitos a partir dos dados oferecidos por Pétesch (1992: 50).
• A população javaé distribui-se, principalmente, entre as aldeias de :
Canoanã (a maior de todas, com 500 habitantes), Barreira Branca, Porto
Txuiri (aproximadamente 125 habitantes, em 1999), Boto Velho, Barreira
do Pequi e Wari-Wari. No total são aproximadamente 800 pessoas
(Rodrigues 1993: 13).
• Os Xambioá são menos numerosos, e estão concentrados na aldeia
Xambioá, a jusante, fora da Ilha do Bananal. No total são 176 Xambioá,

5
Segundo Nathalie Pétesch (1992: 68) a palavra “karajá” seria de origem tupi e significaria “macaco
gariba”(Allouata sp.).
6
Enquanto à apelação iwa yre (aleijado), não pude confirmá-la no campo, mas ela é interessante se a
pensarmos em relação ao que diz Pétesch (1993) sobre a questão da mobilidade e do movimento.
13

segundo os dados publicados pelo Instituto Socioambiental (Ricardo 1996:


635-636).

Em meu primeiro trabalho, eu me referia à aldeia de Porto Txuiri como


“aldeia javaé” já que esta encontra-se do lado javaé da Ilha e porque a maioria de seus
moradores definem-se como Javaé. Mas, para o presente trabalho, optei pela a
expressão “aldeia KARAJÁ”, já que esta é vista, pelos próprios moradores, como uma
aldeia “misturada”, i.e. habitada por membros dos três subgrupos (principalmente
Javaé e Karajá), e por Brancos. Eu poderia ter usado o coletivo Inÿ para me referir ao
conjunto dos moradores mas preferi usar o termo KARAJÁ por tratar-se de um termo
conhecido e usado, tanto pelos Índios (para autodesignar-se em português), como
pelos antropólogos.
Escolhi me referir aos moradores de Porto Txuiri como KARAJÁ também por
uma questão de clareza na exposição dos dados. Existem diferenças relevantes entre
os subgrupos KARAJÁ7 e, dar conta de todas elas, ao longo da descrição e da análise,
não teria me permitido aprofundar as questões que tratei aqui. Considerar as
diferenças entre os subgrupos obrigar-me-ia a relativizar as afirmações de cada
informante em função de seu subgrupo. Este cuidado certamente deveria ser tomado
para a realização de um trabalho mais longo, aprofundado e minucioso. Quero
enfatizar, portanto, que esta dissertação não trata das diferenças entre os subgrupos.
Isso não quer dizer que, em Porto Txuiri, estas diferenças estejam apagadas, mas sim
que, resolvi adotar um ponto de vista mais geral8.

A pesquisa de campo
Cheguei em Porto Txuiri, em 1996, com a idéia de estudar as concepções
javaé de pessoa, mas a especificidade da aldeia e de sua situação me obrigaram a
enxergar outras coisas, a tomar um caminho diferente que, só agora, me reconduz até
essas questões iniciais. As questões que eu havia preparado a partir do material
bibliográfico simplesmente não podiam ser tratadas sem antes tentar entender o que

7
Segundo Rodrigues, existem diferenças importantes nos rituais, por exemplo (1997: comunicação
pessoal). Sobre isso, ver também Toral (1992:117-132).
8
No primeiro trabalho minhas descrições oscilavam constantemente entre os termos: Javaé, Karajá, ou
Karajá como um todo (segundo os dados dos diferentes autores - alguns haviam trabalhado com um ou
outro subgrupo -, e segundo o subgrupo de cada informante). Isso acabou tornando algumas partes
muito confusas. Entendi então que para um trabalho curto como este, deveria considerar o conjunto
dos subgrupos como uma unidade.
14

era aquela aldeia, quem eram os seus habitantes, e por que haviam escolhido morar
em um antigo vilarejo de Tori9 (“civilizados”). As questões que tratei na maîtrise
estavam principalmente relacionadas ao espaço, à sua ocupação, e à história da aldeia.
Depois deste primeiro trabalho, estive duas outras vezes em Porto Txuiri: uma
em dezembro e janeiro de 1997-98, e outra em maio de 1999. Tive então a
oportunidade de aprofundar mais a questão do espaço, assim como questões
relacionadas à identidade KARAJÁ e às relações destes com os Tori.
Durante o segundo período de campo, 1997-98, a atenção da aldeia estava
toda voltada para um caso de feitiçaria: uma menina de doze anos tinha surtos diários,
que foram interpretados pelos Tori (na maioria crentes), e por alguns KARAJÁ (que
se diziam crentes naquele momento) como possessão por demônio e, pelos não-
crentes, como um ataque de feitiçaria. O alvo do ataque não era apenas a menina, mas
principalmente sua família. Só comecei a entender melhor o que havia acontecido
durante esta estada, vários meses depois, quando retomei os dados recolhidos, as
descrições das crises, dos rituais de exorcismo aos quais assisti, e as diversas
interpretações de tipos de feitiços que os KARAJÁ me haviam dado.
O último trabalho de campo foi mais curto (20 dias), e foi realizado em maio
de 1999. Nesta época, comecei a me interessar novamente pelas questões do corpo e
da pessoa. Nesta ocasião, já conhecia melhor os moradores de Porto Txuiri e sentia-
me mais a vontade para entrevistá-los e gravar suas falas. Realizei então várias horas
de entrevistas, principalmente com um senhor de idade, Ijaú Karajá, que viera da
aldeia javaé de Canoanã (maior aldeamento javaé, situado ao sul de Porto Txuiri)
fazia mais de dois anos, para instalar-se com suas filhas e sua cunhada em Porto
Txuiri. A família de Ijaú acabou me adotando e tornei-me um membro da família.
Para as entrevistas, eu preparava um tema na véspera, tema que muitas vezes estava
relacionado com o que Ijaú havia me dito anteriormente. Assim, as entrevistas
começavam com perguntas precisas e terminavam sempre onde Ijaú queria. Quase
todos os dias acabávamos falando da mesma coisa: da aldeia, dos Tori, da escola, do
dinheiro, dos jovens KARAJÁ que não vão à roça, do cacique e de sua esposa.
Os temas preferidos sempre giravam em torno da especificidade de Porto
Txuiri, de sua situação e das relações com os Tori. Compreendi que, antes de mais

9
É assim que os KARAJÁ se referem aos não-índios, por isso usarei, de preferência, este termo.
Quando traduzem o termo Tori para o português, usam, geralmente o termos “civilizado”, “cristãos’ e,
mais raramente, “brancos”.
15

nada, eu precisava entender o que se passava em Porto Txuiri, por que aquelas
pessoas haviam decidido morar nesse espaço e transformá-lo em aldeia. Quero
ressaltar que essas questões foram progressivamente surgindo, ao longo da pesquisa
de campo. Por isso decidi redigir uma dissertação que revelasse o ritmo de minha
pesquisa e das minhas descobertas, passando das descrições às questões mais teóricas,
e não o inverso.

É importante ressaltar que a pesquisa foi elaborada em três tempos, e que


jamais permaneci mais de dois meses consecutivos no campo. Se por um lado, isso
me permitiu acompanhar três etapas da vida aldeã, em três momentos diferentes do
ano (seca, chuva e começo da estiagem), por outro, o tempo passado na área foi
insuficiente para a aprendizagem da língua. A maioria dos contatos e das entrevistas
foram portanto feitos em português.
Os prazos curtos para a entrega da dissertação e as limitações de tamanho não
me permitiram fazer comparações com outros grupos ameríndios, principalmente com
os jê e bororo com os quais os KARAJÁ têm muitos pontos em comum. Este trabalho
está, portanto, baseado principalmente em meus dados e sobre a literatura
antropológica existente sobre os KARAJÁ.
As minhas referências bibliográficas sobre os KARAJÁ foram principalmente
as teses e dissertações escritas sobre eles a partir dos anos oitenta. São elas: as
dissertações de André Amaral de Toral (1992) sobre os Karajá, de Patrícia de
Mendonça Rodrigues (1993) sobre os Javaé, e as teses de doutorado de George R.
Donahue (1982) e de Nathalie Pétesch (1992) sobre os Karajá.

A organização da dissertação
Apresentarei em uma primeira parte as questões ligadas ao espaço KARAJÁ
em geral e ao espaço de Porto Txuiri. Em primeiro lugar farei uma breve introdução
histórica, na qual fornecerei alguns elementos da história do grupo desde o contato
com os Tori até a invasão de suas terras por posseiros e fazendeiros criadores de
gado. A partir daí faço um histórico mais detalhado da retomada de Porto Piauí e de
sua transformação em aldeia KARAJÁ. Mostro então que os KARAJÁ não vivem em
uma aldeia “descaracterizada” e sim em uma aldeia que eles fizeram e tornaram
KARAJÁ através da reprodução de sua estrutura espacial.
16

A segunda parte do trabalho está dedicada à descrição da apropriação de


outros elementos Tori: alimentos, roupas, técnicas e saberes. De fato, após apropriar-
se de um espaço alheio, os moradores de Porto Txuiri se apropriaram das roupas e dos
alimentos dos Tori e optaram por constituir uma aldeia misturada (onde se casam
entre subgrupos e com os Tori). Procuro mostrar, então, que a idéia de reprodução
estrutural, não exclui a idéia da transformação. Pelo contrário, a própria estrutura é
transformacional. Ocupar um novo espaço, assim como apropriar-se outros elementos
tori, provocou mudanças, dentre elas as do corpo.

Ao final dessa segunda parte, apresento uma breve descrição do caso de


feitiçaria que foi interpretado por alguns como possessão por demônio, e sugiro linhas
para a continuidade do trabalho.
17

PARTE 1: PORTO TXUIRI, UMA ALDEIA KARAJÁ ?

CAPÍTULO 1: DE PORTO PIAUÍ A PORTO TXUIRI

1.1 - Breve histórico da desocupação e da retomada da Ilha10


1.1.1 - Elementos da história do contato dos KARAJÁ com os Tori
Apresentarei aqui algumas referências históricas sobre as relações dos
KARAJÁ com os Tori. Para uma história mais detalhada e melhor documentada,
remeto aos trabalhos anteriores feitos por Costa (1968), Donahue (1982), Toral
(1992), Pétesch (1992), Lima Filho (1994) e Rodrigues (1993) para os Javaé em
particular.
Os primeiros contatos datariam do início do século XVII entre os Xambioá e
os Karajá e os jesuítas vindos do Pará, e logo depois com as primeiras expedições de
bandeirantes enviadas à região.
Nos séculos XVII e XVIII, as bandeiras paulistas exploraram a região do
Araguaia e de seus afluentes à procura de ouro e de mão de obra indígena. Segundo
Pétesch (1992: 40-41), após submeter-se oficialmente à autoridade do Rei de Portugal
em 1775, os Karajá começaram a ser confinados em fortes e colônias fechadas (como
em Nova Beira, na Ilha do Bananal) onde supostamente eram civilizados, e eram
obrigados a trabalhar (Op.cit.,1992: 42). Em 1782, por exemplo, 3500 Xavante e
Karajá foram confinados em um campo próximo da cidade de Goiás (atual Goiás
Velho) (Donahue 1982: 56). A maioria morreu dizimada por epidemias. Nesta época,
o rio Araguaia era o mais freqüentado, expondo mais ao contato os subgrupos Karajá
e Xambioá.
No século XIX aparecem os primeiros relatos de viajantes, testemunhando da
existência dos Karajá: Fonseca em 1868, Castelneau em 1840 (publica quatro
volumes de seu diário de viagens pela América do sul), e Couto de Magalhães em
1863 (publica pela primeira vez sua “Viagem ao Araguaia” e elabora os primeiros
mapas hidrográficos da região) (Donahue 1982: 60).

10
Os dados que concernem o período anterior ao processo de retomada da Ilha utilizados aqui,
encontram-se nas teses de P. Rodrigues (1993: 25-47) e de N. Pétesch (1992: 48-67).
18

Neste século, o rio Javaés torna-se a via prioritária de acesso à região, pois
temem-se os ataques dos Karajá11. Até então, os Javaé tinham permanecido
relativamente isolados e protegidos em suas aldeias do interior da Ilha. Durante todo o
século XIX estes haviam evitado o contato com os exploradores e colonos. O
primeiro contato com o SPI (Serviço de Proteção ao Índio) aconteceu em fevereiro de
1911. Os agentes deste organismo registraram então a existência de seis aldeias Javaé,
no total12.

1.1.2 - A invasão da Ilha do Bananal


“Lembrai-vos do que vos ordenou Moisés, servo de Javé, dizendo: ‘Javé, vosso Deus, vos concede o
repouso dando-vos esta terra’. Vossas mulheres, vossos filhos e animais poderão ficar na terra que
Moisés vos deu além do Jordão; mas vós todos, homens de guerra, passai armados à frente de vossos
irmãos para ajudá-los, até que Javé dê o repouso a vossos irmãos como deu a vós, e possuam também
eles a terra que Javé (...) lhes há de dar. Voltareis então para a terra que vos pertence (...) além do
Jordão, do lado em que nasce o sol’.” (Josué 1.13-15)

A invasão da Ilha do Bananal começou nos anos 1930 com a chegada dos
primeiros criadores de gado à região. Nesta época também começaram a se implantar
empresas mineradoras ao longo do curso do Rio Javaés e de seus afluentes, para
extrair cristal de rocha (Rodrigues 1993: 26). Na época em que os primeiros posseiros
se instalaram, ainda existiam aldeias javaé no interior da Ilha (op.cit 1993: 26). A
maioria dos colonos eram pessoas de origem humilde vindas de outros estados como
o Maranhão, Piauí, e Goiás, estados situados a leste da Ilha. Por isso, e também por
uma questão de facilidade de acesso, eles penetravam pelo rio Javaés, gerando assim
uma maior concentração populacional deste lado da Ilha (ver mapa 2)13.
Em 1969, a FUNAI passou a cobrar dos colonos uma taxa, a “renda indígena”,
calculada em função da área ocupada, da área cultivada e do número de cabeças de
gado que cada família possuía. Esta cobrança passou, de certa forma, a “legalizar” a
ocupação e a utilização das terras da Ilha (Pétesch 1992: 53; Rodrigues 1993: 34).
Teoricamente, o dinheiro arrecadado com a taxa era utilizado pela própria
administração da FUNAI local, em projetos e cooperativas (gado e pesca) que
favorecessem as comunidades KARAJÁ. Desvios e usos para fins pessoais do

11
Para esta parte consultei os dados expostos nos trabalhos de Rodrigues (1993: 22-23) e de Toral
(1992: 41-45).
12
Para mais detalhes sobre as antigas aldeias Karajá, Javaé e Xambioá ver Donahue (1982), Toral
(1992) e Pétesch (1992).
13
De fato, o rio Javaés é bem menor que o Araguaia e pode ser atravessado a pé durante a época seca.
19

dinheiro por parte dos funcionários locais da FUNAI foram inúmeras vezes
denunciados pelos próprios KARAJÁ.
O auge da invasão aconteceu nos anos 1980. As extensas pastagens naturais
da Ilha passaram a ser aproveitadas pelos grandes criadores que, na época da seca,
mandavam para lá seus rebanhos acompanhados por vaqueiros.
Por outro lado, as invasões de posseiros aumentavam. Em 1991, a SUCAM
contou 11225 moradores não-Índios na Ilha do Bananal, incluindo nestes números os
vaqueiros que não permaneciam ali o ano inteiro.
O número crescente de habitantes não-Índios e a presença de milhares de
cabeças de gado provocou o abandono e o desaparecimento de aldeias inteiras; a
redução do território; o abandono e a destruição de roças e cemitérios (pisoteados
pelo gado); o surgimento de novas epidemias; o aumento considerável do alcoolismo;
a rarefação da caça e da pesca (veados foram contaminados pela febre aftosa,
intensificou-se a comercialização do pirarucu14 e de outros peixes); a perda da
mobilidade (cercas, povoados) e consequentemente a concentração da população
Javaé em grandes aldeias como Canoanã (Toral 1983 apud Rodrigues 1993: 30).
Na década de 1980 formou-se o povoado de Porto Piauí, na beira do Rio
Javaés, a 60 quilômetros da cidade de Formoso do Araguaia.

Depois de muitas pressões por parte dos representantes e líderes KARAJÁ, em


1989, o Ministério Público entrou com uma Ação Civil Pública contra a FUNAI,
determinando a desocupação imediata da Ilha do Bananal, sua interdição aos não-
Índios e a reintegração, pelos Índios, das terras ocupadas ilegalmente. Um ano depois,
a FUNAI parou de cobrar a taxa e criou o GTI, Grupo de Trabalho Interinstitucional
(portaria 1296/91) reunindo várias instituições, órgãos públicos, lideranças e caciques
KARAJÁ, assim como os representantes dos moradores não-Índios, para a elaboração
de um plano de ação para a desocupação da Ilha do Bananal. A FUNAI passou então
a ser a responsável pela operação geral enquanto as outras instituições se
responsabilizaram pelas partes que representavam15. Em 1991, os KARAJÁ criaram a

14
Arapaima gigas.
15
O GTI era formado pela FUNAI, o Conselho Indigenista Missionário (CIMI), a Comissão Pastoral
da Terra (CPT), o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA), a Superintendência
de Colonização da Amazônia (SUCAM), o Instituto Brasileiro de Agricultura e Reforma Agrária
(IBAMA), as prelazias, as prefeituras de Formoso do Araguaia, Dueré e São Félix do Araguaia, as
lideranças e caciques KARAJÁ, assim como a Associação dos Moradores da Ilha (não-Índios).
20

Comissão Indígena da Ilha do Bananal - a COMIBA - que passou então a representá-


los nas reuniões do GTI16.
É neste contexto que, pouco tempo depois, nasceu a aldeia de Porto Txuiri.

1.2 - A Tomada de Porto Piauí17


“... Rodeareis em torno da cidade, vós todos homens de guerra, fazendo uma vez a volta da cidade;
assim fareis durante seis dias. (...) No sétimo dia, fareis sete vezes a volta à cidade, e os sacerdotes
tocarão as trompas. E quando ressoar o chifre de carneiro, quando ouvirdes o som da trompa, todo o
povo soltará um grande grito, e cairão no mesmo instante os muros da cidade: cada um entrará então
pelo lugar que lhe ficar defronte.” (Josué 6:3-6).

1.2.1 - Porto Piauí: uma vila de posseiros


Porto Piauí consolidou-se durante os últimos anos de ocupação como um dos
principais focos de resistência dos colonos na Ilha (Rodrigues 1993: 40). Era a maior
aglomeração não-indígena, habitada por aproximadamente 1000 moradores. Todos os
moradores de Porto Piauí eram posseiros. Eles criavam gado e pescavam para fins
comerciais e de subsistência. Caçavam e plantavam roças, cultivando principalmente
a mandioca, o arroz, o feijão e o milho. Cada casa possuía seu quintal onde eram
criadas galinhas e plantadas algumas árvores frutíferas.
As crianças iam à escola, situada no próprio vilarejo, na beira do rio, onde
crianças de fazendas próximas estudavam, já que esta era a única dos arredores que
oferecia o primeiro grau completo. Em Porto Piauí, muitas crianças, principalmente
meninas, terminavam o primeiro grau e eram enviadas para outras escolas do Estado
para dar seguimento à sua formação18.
Os moradores de Porto Piauí mantinham relações constantes e aparentemente
cordiais com os Javaé, principalmente com os Javaé de Canoanã. Estes os
convidavam para as comemorações do Dia do Índio, quando eram organizadas
partidas de futebol e churrascos. Os colonos trocavam bens contra favores ou peixe.
Assim, por exemplo, alguns colonos conseguiam autorização para pescar nos lagos
em troca de cachaça ou redes19. Um antigo morador contou-me que um Javaé

16
Desconheço a forma e as condições nas quais foi criada a Comissão.
17
Para escrever esta parte trabalhei com diversos materiais: entrevistas feitas em 1996 com antigos
moradores (Tori) de Porto Piauí e da Ilha, com Idjarruri Karajá, com moradores KARAJÁ de Porto
Txuiri, mas também, com documentos oficiais e jornalísticos fornecidos pelo líder.
18
Em frente à aldeia javaé de Canoanã, alguns quilômetros ao sul de Porto Piauí, a Fundação Bradesco
oferece formações profissionalizantes em magistério e técnicas agrícolas (Rodrigues 1993: 43-44).
19
Os KARAJÁ costumam pescar nos lagos situados no centro da Ilha (como o lago chamado
Soohykÿ). Hoje, esta atividade está estreitamente vinculada às relações econômicas com os Tori, já que
é uma das principais fontes de dinheiro. Os KARAJÁ acompanham pescadores Tori em grandes
21

trabalhava como canoeiro para um colono em troca do fornecimento contínuo de kohÿ


(cachaça). Entretanto, as relações com os Tori (“civilizados”) oscilavam
constantemente entre a cordialidade e a tensão. Além de ocupar um imenso território
que não lhes pertencia, os Tori aproveitavam, sem muito escrúpulo, a mão de obra
fácil e barata que os KARAJÁ representavam. Para os Tori, se os Índios eram, por um
lado, “gentis e ingênuos”, e portanto “fáceis de enganar”, por outro lado eles
representavam uma ameaça, não só por serem, aos olhos dos colonos, selvagens,
“imprevisíveis”, mas também e principalmente, por serem os donos da terra na qual
estes estavam instalados. Até hoje, a atitude dos Tori diante dos Índios é ambivalente,
ora eles louvam a docilidade destes (‘eles são mansos’), ora os acusam de serem os
culpados de suas desgraças20.

1.2.2 - A instalação do líder21


Neto do famoso capitão de cristão (tori wedu) Wataú Karajá, de Santa Isabel
do Morro, o líder Idjarruri Karajá também está estreitamente ligado ao trato com os
‘civilizados’ (Toral 1992: 82; Lima Filho 1994: 124-125)22. Nascido em Santa Isabel,
alfabetizado pelo Summer Institute of Linguistics, ele foi levado pela Funai para
estudar em Brasília onde acabou ficando e participando da criação, em 1981, da
União das Nações Indígenas (UNI). Crente e membro da Igreja Batista, ele se casou
com uma paranaense, ela mesma filiada à Assembléia de Deus. Em 1992, ele foi
convidado a participar do Grupo de Trabalho organizado pela FUNAI para a
articulação da desocupação da Ilha.
Dois anos mais tarde, Idjarruri Karajá decide voltar à Ilha e se instalar com a
família em Porto Piauí. Interrogado sobre os motivos da escolha de Porto Piauí, tanto

pescarias onde, as vezes, são capturadas mais de 2 toneladas de peixe. Esse peixe é depois vendido
pelo “dono da pescaria” (Tori) nas grandes cidades: São Luís, Goiânia, Terezina.
20
Ver Bonilla (1997: 22-23). Em uma entrevista feita em 1996 a uma antiga moradora de Porto Piauí,
esta dizia o seguinte sobre os Javaé: “É por causa deles que nós temos que sair agora, por causa
desses Índios ! Muita gente dizia isso e (...) a Funai dizia que eram os Índios que pediam para a gente
sair. Mas muitos Índios não sabiam o que estava acontecendo, sabe, tem muito Índio que é ingênuo,
que não sabe o que está fazendo, que não sabe o que quer.”
21
Insisto em ressaltar que utilizo a palavra ‘líder’ no sentido de liderança nacional (e não
obrigatoriamente local), i.e. que se posiciona no cenário político nacional e que se reivindica como
líder, para distinguir este personagem de uma liderança tradicional ou mesmo dos caciques. Agora, este
líder virou cacique de Porto Txuiri, mas naquela época ele era uma liderança entre outras.
22
O capitão de cristão distinguia-se da chefia tradicional KARAJÁ e tratava, principalmente, das
relações entre a aldeia e o mundo dos “civilizados”. É o papel que fazem, hoje em dia, os caciques.
“Cristãos” designa aqui os Tori. Para uma análise das diversas formas de chefia KARAJÁ, ver Toral
(1992: 77-93).
22

ele quanto a esposa respondem que escolheram o vilarejo por causa da escola, da
proximidade com a cidade (60 km de Formoso do Araguaia), das comodidades e
facilidades que lá existem (casas já construídas, luz, televisão, estrada, transporte,
comunicação telefônica23). Os posseiros não entenderam a instalação do líder como
algo banal ou natural; imediatamente consideraram o fato como uma ameaça direta à
permanência deles na Ilha24 de modo que Idjarruri Karajá e sua família foram muito
mal recebidos.
Em 1995, o líder sofreu ameaças de morte por parte de alguns moradores de
Porto Piauí e de colonos da Ilha e decidiu refugiar-se na cidade de Gurupi, onde se
encontra a sede da administração regional da FUNAI. Foi nesta época que ele me
enviou um volumoso dossiê sobre a desocupação da Ilha, acompanhado de uma longa
carta pedindo apoio e explicando a situação delicada na qual se encontravam.

1.2.3 - As alianças e os interesses em jogo


A época em que estiveram instalados em Gurupi teria sido a fase em que se
travaram várias alianças importantes para a história que segue. Ameaçado de morte,
Idjarruri Karajá pediu a proteção do Procurador Geral da República do Estado do
Tocantins e se aliou ao Governador deste mesmo Estado - Siqueira Campos - um dos
mais interessados na resolução dos “problemas da Ilha” e com diversos interesses
nesta região25. Dois anos mais tarde, Idjarruri ocupava dois cargos oficiais no governo
de Siqueira Campos, sendo um deles o de assessor para assuntos culturais.
É importante ressaltar que a resistência à desocupação não vinha apenas dos
posseiros mas também, e com muito mais peso, dos grandes fazendeiros e criadores

23
A TeleGoiás mantinha um Posto Telefônico funcionando todos os dias, do outro lado do rio. Esse
Posto foi desativado em 1998 (ver Bonilla 1997).
24
Em 1998, quando Idjarruri e a sua esposa leram a introdução da minha maîtrise, ficaram indignados
com o fato de eu ter sugerido que a instalação deles em Porto Piauí podia ter sido, além de uma escolha
pessoal de vida, uma estratégia para a articulação da desocupação da Ilha e do vilarejo. De forma
contraditória, até hoje, ambos afirmam que a estratégia política adotada para “expulsar os Brancos de
Porto Piauí” foi inspirada na Bíblia, daí as epígrafes selecionadas para a abertura do capítulo.
Portanto, houve estratégia e intenção de expulsar os Brancos da vila.
25
É fundamental ressaltar que a Ilha do Bananal é alvo do interesse de vários tipos de investidores e
políticos. Situada no Estado do Tocantins rodeada pelos Estados de Goiás, Mato Grosso e Pará, a
proibição de circular nela obriga todo tipo de transporte feito entre esses Estados (gado, grãos etc.) a
contorná-la, pelo norte ou pelo sul. Isso representa um desvio de mais de 400 quilômetros. Com a
criação do Estado do Tocantins, o governador do Estado já teria tentado implantar várias vezes grandes
projetos na Ilha (LIMA FILHO 1994: 31, nota 27). Atualmente, os maiores projetos do Governo do
Tocantins são: a construção da Transaraguaia, rodovia que cortaria a Ilha ligando Formoso do
Araguaia à São Félix do Araguaia, passando exatamente entre Porto Txuiri e Santa Isabel do Morro, e
a Hidrovia Tocantins-Araguaia (que faz parte do programa Avança Brasil, do Governo Federal ).
23

de gado assim como de alguns políticos locais (que, em muitos casos, também
possuem gado e usavam as pastagens da Ilha). As alianças dos Javaé e Karajá se
fazem portanto pela intermediação de alguns líderes com o governo do Tocantins,
enquanto os posseiros contam com o apoio de alguns políticos locais (principalmente
de Formoso do Araguaia). Estes, tentam aproveitar os dois lados: negociam a
permanência dos posseiros (que é interessante para eles por causa do gado e dos
votos), sem deixar de lado o potencial eleitoral que os Índios também representam.
Para isso, eles tentam conquistar os KARAJÁ oferecendo uma vaga de candidato nas
listas eleitorais a algum líder ou cacique (de aldeias vizinhas), ou presenteando-os
com televisores, antenas parabólicas etc.
Em janeiro de 1995, todos os líderes e caciques da Ilha reuniram-se na aldeia
javaé de Canoanã e decidiram ocupar Porto Piauí para acabar com o núcleo de
resistência e acelerar o processo da desocupação. No final da reunião, um culto foi
realizado por um pastor - conhecido de Idjarruri -, no curso do qual o trecho da Bíblia
consagrado à Tomada de Jerico foi lido (ver epígrafes). Foram então chamados 30
voluntários, vindos de várias aldeias Javaé, para invadir Porto Piauí e construir casas
KARAJÁ nas suas ruas e na praça26.
Alguns dias depois, os homens chegaram à Porto Piauí e passaram vários dias
construindo as casas após reunir o material necessário. A esposa de Idjarruri afirma
que todos eles foram pagos pelo serviço. Provavelmente pela própria FUNAI ou
talvez pelo governo do Estado, através do líder27.Portanto, não se trata de considerar
Idjarruri apenas como um líder comandando um grupo de homens com a intenção de
reconquistar um espaço. É preciso considerar que se trata de uma manobra política
individual que, apesar de refletir também interesses comunitários, está estreitamente
ligada a interesses políticos locais e regionais. Quando tudo estava pronto, oito
famílias, na maioria Javaés de Canoanã, se instalaram no vilarejo.
A partir do momento da instalação das famílias KARAJÁ no vilarejo, a
desocupação da Ilha acelerou-se. Em primeiro lugar, porque os posseiros

26
Segundo um informante que participou na construção das casas de palha, os trinta homens vieram
das aldeias javaé de Barreira Branca (ao sul), São João (ao sul), Boto Velho (ao norte) e Canoanã (ao
sul).
27
Já em 1996, quando estive em Porto Txuiri pela primeira vez, Idjarruri Karajá havia rompido as
relações com a Administração Regional da Funai de Gurupi. Desconheço as razões da discórdia que
levou ao abandono da aldeia pela FUNAI no mesmo ano. É possível que a independência de ação
reivindicada e sempre reafirmada pelo líder possa ter complicado suas relações com os funcionários da
Administração Regional.
24

pressionavam cada vez mais as autoridades para que o INCRA lhes concedesse as
terras e as indenizações. Eles ameaçavam invadir terras e fazendas, pois muitos dos
que já haviam saído da Ilha, sem ter para onde ir, haviam gastado todo seu dinheiro
alugando barracos no Setor Aliança (o bairro mais desfavorecido de Formoso).
Em segundo lugar, porque as autoridades, locais e federais, temiam um
conflito maior entre posseiros e Índios agora que estes estavam convivendo em um
mesmo vilarejo. Efetivamente, a convivência entre as duas comunidades era
complicada e tensa. Percebendo que, de fato, seriam expulsos na Ilha, os moradores
de Porto Piauí não suportavam a presença dos Índios no que eles chamavam de “nossa
cidade”. Por outro lado, os Índios provocavam os posseiros e divertiam-se urinando e
defecando nos quintais, gritando à noite, matando os animais domésticos (gatos
principalmente) dos Tori e circulando pelos quintais à qualquer hora do dia e da noite.
Interrogado sobre sua estratégia de expulsão dos moradores não-Índios, Idjarruri
Karajá explicou-me que, assim como Josué teria instruído seus guerreiros a fazer
muito barulho, a tocar as trombetas e a gritar para derrubar os muros de Jerico, ele
teria “instruído o seu pessoal a fazer muito barulho, dia e noite, para afugentar os
Tori”.
No dia 2 de fevereiro de 1995, Porto Piauí é rebatizado e seu novo nome é
comunicado oficialmente pelo líder à Administração Regional da Funai em Gurupi. O
vilarejo passa a se chamar Porto Txuiri28.

1.2.4 - A inauguração de Porto Txuiri


No dia 19 de abril de 1995, Dia do Índio, a aldeia de Porto Txuiri foi
inaugurada com uma grande festa, reunindo as autoridades governamentais (FUNAI +
governo do estado), Índios Xerente, Xavante e Tapirapé, Javaé e Karajá de todas as
aldeias da Ilha assim como os moradores não-Índios que ainda se encontravam no
local. Um grande churrasco foi organizado, seguido de apresentações de danças
KARAJÁ (partes dos rituais de Ijasò e Hetohykÿ). Idjarruri Karajá torna-se então
cacique de Porto Txuiri por ser o fundador da nova aldeia e dois homens javaé são

28
Txuiri é o nome de um personagem mítico que, antigamente, teria subido o rio de canoa e parado
neste local para empurrá-la. Muito cansado e com os joelhos machucados de tanto empurrar a canoa
nos bancos de areia, ele teria sentado e chorado. Porto Txuiri, ou Txuirihina , é “o lugar onde Txuiri
chorou”.
25

nomeados vice-caciques. Trata-se dos dois chefes das duas maiores famílias de Porto
Txuiri29.
Finalmente, no dia 25 de dezembro do mesmo ano, a FUNAI anunciou que o
INCRA adquirira as terras a serem distribuídas aos posseiros. Estas terras estão
situadas ao norte de Porto Txuiri, na margem direita do rio Javaés. O local chama-se
Capão de Coco e seus 29000 hectares, deveriam ser repartidos entre as 413 famílias
cadastradas30. A partir deste momento, as ameaças de invasão de fazendas próximas
obrigaram as autoridades a tomarem providências rápidas. No final do ano, as
primeiras famílias saíram de Porto Txuiri, em plena época da chuva, mas a maioria
permaneceu no vilarejo e pediu um prazo até a época da seca (julho de 1996) para sair
sem correr o risco de perder bens na mudança31.
Pouco tempo depois, vendo que a maioria dos moradores não-Índios persistia
em permanecer na aldeia, os Índios pediram as “casas dos Tori”, argumentando que
chovia muito em suas casas de palha. Pouco a pouco, os Tori foram saindo,
desocupando as casas. Estas foram sendo ocupadas pelas famílias javaé e karajá
enquanto as antigas casas de palha eram queimadas32.

Em 1996, durante a minha primeira estada no campo, os Tori que ainda


estavam na aldeia tinham todos alguma ligação com a escola ou com o posto
telefônico. Durante todo aquele ano, o caminhão do INCRA fez incessantes idas e
vindas entre a cidade, o Capão de Coco e a Ilha, para retirar mais colonos, passando
sempre por Porto Txuiri. A passagem do caminhão era a diversão das crianças à
tarde, na hora em que todos saem de casa para assistir ao jogo de futebol dos rapazes.
No final do ano de 1997, apenas 7 Tori (contando 3 crianças) continuavam
morando em Porto Txuiri. Entre 1998 e 1999, a tendência se inverteu e novas famílias
de Tori se instalaram na aldeia, desta vez, em um contexto bem diferente: a pedido de
Idjarruri e de sua mulher. Trata-se de dois cunhados de Idjarruri (sendo que um mora

29
Entendo por família o conjunto de pessoas relacionadas por laços de parentesco (e que se
reivindicam como parentes) com um homem mais velho e sua esposa. Em Porto Txuiri, distingo sete
famílias (ver mapa 6: a do Warihy, do Sewerehi, do Idjarruri, do Idjanare, do Kaxiwera, do Burahi e a
do Ijaú) apesar de saber que existem relações que as unem entre elas.
30
Apenas as famílias sem terras e de baixa renda ganharam o direito a uma parcela no Capão de Coco.
31
Na época das chuvas, é difícil atravessar o rio Javaés que está cheio demais para ser atravessado a
pé, mas que nunca chega a ter um volume de água suficiente para permitir travessias em barcos fundos.
32
Aparentemente, este ato não tinha nenhuma conotação ritual. Alguns adolescentes queimaram as
casas, em alguns casos, por diversão, em outros, porque as casas estavam começando a desabar.
26

com a mulher e os dois filhos) e de um casal de missionários americanos (Missão


Novas Tribos do Brasil) com seus seis filhos. Das famílias KARAJÁ vindas durante,
ou logo após, a tomada de Porto Piauí, apenas cinco continuam morando na aldeia. As
outras voltaram para Canoanã ou para as aldeias de Wariwari e Imõtxi33. Em
compensação, no curso destes três últimos anos, novas famílias se instalaram na
aldeia. Algumas são famílias KARAJÁ (duas famílias) ou “mistas” (Karajá com
Javaé) (uma família), as outras são casais de Tori e KARAJÁ (três famílias)34.

Porém, o ato, sem dúvida, teve uma conotação política, sinalizando aos Tori ainda presentes que, de
fato, perderiam suas casas e teriam que entregá-las aos Índios.
33
Essas aldeias foram abandonadas entre a década de 1950 e de 1980. A partir dos anos 1990, antigas
aldeias começaram a ser reocupadas e novas foram criadas, pelos KARAJÁ (Toral 1992: 76). Em
1991, Wari-wari (aldeia situada na região norte da Ilha, às margens do Rio Javaés) começava a ser
novamente povoada (Rodrigues 1993: 33). Em 1999, fiquei sabendo que várias famílias haviam se
instalado na antiga aldeia do Imõtxi (às margens do Rio Jaburu, no interior da Ilha), entre elas uma
família de Porto Txuiri.
34
Em maio de 1999, contei 125 moradores (esse número varia constantemente) em Porto Txuiri sendo
que 24 são Tori (contando as crianças Tori).
27

CAPÍTULO 2: A TRÍADE ESPACIAL, DO COSMOS À ALDEIA

As limitações do presente trabalho não permitiram uma análise em


profundidade dos diferentes aspectos do espaço KARAJÁ. Restrinjo-me portanto a
descrever brevemente os diversos níveis que constituem o cosmos KARAJÁ e, mais
especificamente, a mostrar a importância do espaço aldeão na sociedade e na
cosmologia KARAJÁ.

2.1 - O espaço no mito


2.1.1 - O mundo subaquático
“Os Karajá saíram do fundo das águas. Antigamente, no fundo das águas, um homem
acabava de ser pai; ele precisava comer mel. Então, ele saiu para procurar mel e
ouviu o grito da siriema. Foi em sua direção. Então, ele se deparou com um buraco e
saiu. Lá fora, descobriu um mundo imenso, com grandes praias e muitas árvores. Ele
comeu mel e frutas deliciosas. Na volta, levou algumas frutas para a família que
esperava por ele, preocupada com o seu sumiço. Todo mundo provou daquelas frutas
e decidiu visitar aquele outro mundo. Wobedu saiu primeiro com a sua família. Koboí
foi o último a sair mas ficou preso no buraco porque era barrigudo. Ele não pode
sair. Então, ele olhou tudo em volta e viu árvores mortas, madeira seca. Ele disse a
sua mulher: ‘esse mundo não é bom, aqui tem morte; vamos voltar para casa’. Uma
parte do nosso povo acabou ficando no fundo das águas. Eles nos chamam de os que
moram lá fora.” (Pétesch 1992: 419, eu traduzo)35.

Os KARAJÁ são portanto os habitantes do ahana obira, o “mundo de fora”.


A origem da humanidade seria subaquática. Uma parte dos moradores do fundo das
águas (bero hatxi mahãdu) teria subido à superfície e se encantado com as vastas
praias e com a possibilidade de se mover livremente já que, no fundo das águas, o
espaço seria reduzido e a população numerosa, pois não haveria mortalidade
(Rodrigues 1993: 401)36. Quando quiseram conhecer a superfície: os KARAJÁ
subaquáticos descobriram os vastos espaços, e a morte. Assim, ao emergir, alguns
moradores das profundezas aquáticas se tornaram humanos de verdade, inÿ tyhy
(gente de verdade). Estes conviveram por um tempo na terra com alguns heróis
transformadores e seres sobrenaturais que, antes de seguirem em direção ao mundo
celeste (biu-e-tyky, pele do céu), ajudaram-nos e ensinaram-nos diversas técnicas para

35
Ver também o Mito A, em Lima Filho (1994:141).
36
Lima Filho descreve o mundo das águas como um lugar onde não há morte, ou onde só se morre de
velhice (1994:145). O resto da descrição coincide com a dos outros autores, acrescentando um detalhe
interessante: quando um Karajá envelhecia naquele mundo, ele se sentava e ficava naquela posição,
imóvel.
28

que pudessem se adaptar e sobreviver na superfície terrestre. O cosmos KARAJÁ é


constituído portanto de três níveis: o original, aquático; o nível mediano, terrestre,
humano; e o celeste (Pétesch 1993: 365-366).
O bero hatxi (mundo subaquático) é muito parecido com o mundo dos
humanos, lá “fala-se a mesma língua, usam-se os mesmos adornos corporais e as
aldeias têm o mesmo esquema espacial comunitário” (Pétesch 1992: 70). Trata-se de
um lugar mais fresco do que a superfície; a água dos rios é um pouco escura e, no
chão, há muita lama. (Rodrigues 1993: 401). No bero hatxi não é preciso caçar nem
pescar pois a comida aparece magicamente. Come-se principalmente peixe e
unicamente vegetais não-cultivados (frutas e tubérculos), tudo sendo consumido
ligeiramente cozido37. As pessoas são gordas, se movimentam pouco por causa da
falta de espaço e da superpopulação, e passam a maior parte do tempo sentadas em
banquinhos (Pétesch 1993: 366; Rodrigues 1993: 401).
Os habitantes do fundo das águas são, na maioria, Ijasò (humanos aquáticos
que visitam os humanos terrestres sob a forma de seres mascarados), os donos da
fauna aquática. Mas, lá embaixo, também há peixes e ‘monstros’. Os Ijasò fornecem
peixes e quelônios aos humanos terrestres, em troca de comida durante o ritual
(Pétesch 1992: 77-78). Alguns peixes são seus duplos animais (boto, pirarucu38); as
tartarugas e tracajás39 são seus bichos de estimação (nohõ); e os monstros aquáticos
(bero aõni) são seu “braço punitivo”, segundo a expressão de Pétesch (1992: 79).
Segundo Lima Filho (1994: 145), alguns KARAJÁ subaquáticos, após uma curta
estada na superfície, tentaram voltar para o bero hatxi, e se jogaram na água, mas
foram impedidos de entrar no buraco de volta por uma grande cobra e se
transformaram então nos peixes aruanãs40 que povoam atualmente os rios e lagos da
superfície (ver infra, Lima Filho 1994, Mito C,: 142-143).
Os KARAJÁ dizem que os Ijasò são inÿroko, “restos, remanescentes da
gente”, os que ficaram lá embaixo (Toral 1992:151). Ressaltam a sua semelhança com

37
Encontrei na bibliografia, duas versões contraditórias em relação à comida dos bero hatxi mahãdu
(povo do fundo das águas). Segundo Pétesch (1993: 366), este seres consomem os alimentos cozidos,
constituídos exclusivamente de peixe e de produtos vegetais não cultivados (frutas e tubérculos). Para
Rodrigues (1993: 401), estes seres comem peixe, vegetais (não cultivados) mas também consomem
carne, e tudo é pouco cozido. Isso talvez esteja ligado ao fato das duas autoras terem trabalhado com
subgrupos diferentes (respectivamente com os Karajá e com os Javaé). Os dados de Toral (sobre os
Karajá) confirmam os de Rodrigues (1992: 149).
38
Delfinídios sp. , Arapaima gigas.
39
Podocnemis sp..
40
Osteoglossum bicirrhosum.
29

os humanos terrestres enfatizando sempre algumas diferenças : são mais brancos (têm
a pele clara), têm os cabelos enrolados, e estatura diferente: são maiores ou menores.
Estes seres visitam regularmente os humanos terrestres, vestindo-se com roupas de
palha e máscaras (“capacetes”) específicas (Toral 1992: 151). Cada Ijasò possui sua
representação mascarada que é sempre dupla. Um Ijasò é representado na terra por
duas máscaras, quase iguais: há sempre uma mais perfeita que a outra (Pétesch 1992:
120).
Só os hyri (xamãs) podem visitar o mundo subaquático. Na volta, eles contam
aos humanos terrestres o que viram lá embaixo. Segundo Toral (1992: 151, meus
grifos) “em sua casa, os ijasò estão como que engessados em posições estabelecidas e
hieráticas, prontos a serem visitados pelos hàri [xamãs] da superfície. (...) Todos eles
olham para o oeste. (...) Na representação fiel do ijasòheto [casa dos Ijasò] que os
Karajá constróem na superfície, as máscaras dos ijasò também devem ser dispostas
de maneira a ficarem voltadas (olhando) para o oeste, o lado nascente em Berahatxi
[bero hatxi].”

2.1.2 - O mundo do céu e da chuva


Os heróis transformadores ensinaram aos recém chegados técnicas agrícolas,
conseguiram para eles a luz do dia (que roubaram do iòlò, urubu rei), pois
inicialmente tudo era escuro, e a alternaram com a noite41. Depois, eles partiram para
o mundo celeste e estão lá, até hoje, morando com os Ijasò celestes (biu mahãdu)42.
Os biu mahãdu (povo do céu/chuva) são os mestres da agricultura; eles
controlam o seu ciclo através de todos os fenômenos meteorológicos: chuva, trovões,
ventos etc. Também são os mestres do saber terapêutico: é para mundo celeste que os
xamãs viajam quando sonham e lá consultam os xamãs celestes43. Apesar de situado
cosmologicamente em uma posição oposta ao mundo das águas, o mundo celeste,
próximo do sol, relaciona-se principalmente à chuva, como indica o seu nome: biu-e-

41
Mitos da gênesis karajá encontram-se na tese de Pétesch (1992, anexo: 144), em Toral (1993:1-32,
anexo 1), e em Lima Filho (1994: 139-145).
42
Segundo Lima Filho, os heróis transformadores vieram do céu e (alguns) voltaram para lá,
descrevendo um movimento de ida e volta semelhante ao dos pré-humanos aquáticos que subiram à
superfície e (alguns) voltaram para baixo (1994: 149). Esta idéia contrapõe-se à de Pétesch (1992;
1993), que descreve o movimento dos pré-humanos para a terra e dos heróis transformadores para o
céu como um movimento ascencional, ou seja, como uma ida simples e não uma ida e volta.
43
A alma (tykytyby - pele velha) do xamã é a única que tem o privilégio de seguir para o mundo celeste
depois da morte (destino escatológico mais valorizado pelos KARAJÁ). As almas dos humanos
30

tyky, i.e. pele da chuva. Segundo Pétesch (1992: 83), ele contém água que seus
habitantes, só com o piscar de seus olhos, largam sobre a terra.
O mundo do céu é muito parecido com o das águas, mas em uma versão mais
perfeita pois, no céu, não existem monstros (aõni); faz mais calor graças à
proximidade do sol; as águas dos rios são mais claras e, portanto, enxerga-se tudo e
de longe44. Lá em cima, se come muito peixe e carne, assim como todos os produtos
da roça; tudo sempre bem cozido. Os homens e as mulheres vestem-se e pintam-se,
usam o omaryre (tatuagem facial) e os enfeites de algodão e penas, como os humanos
terrestres (Rodrigues 1993: 393-394). As aldeias do céu são iguais às dos humanos
terrestres, mas em versões menores, mais perfeitas (Rodrigues 1993).
Segundo Toral (1992: 139), o mundo celeste estaria composto de três níveis
distintos. O primeiro seria o biurawetyke, que corresponderia ao que Rodrigues
(1993) chama de biu-e-tyky, espaço celeste mais próximo da terra onde circulam as
nuvens e, provavelmente, local de moradia dos Ijasò do céu. Acima deste primeiro
nível estaria o Kanysiweisy, morada do Kanysiwe (ou Kanÿxiwe), herói
transformador, por onde passa a lua. Enfim, o terceiro nível seria a morada de Xiburè,
o grande xamã celeste (Hyri Hykÿ), onde ficam as estrelas45. O “caminho por onde
vai o sol” (txury-ò), descreveria um círculo em volta destes cinco níveis
cosmológicos: a terra, o bero hatxi (mundo das águas) e os três níveis celestes, o que
explicaria por que no mundo das águas é de noite quando na terra é de dia, já que no
mundo aquático o sol nasce ao oeste e se põe a leste46.

comuns ficam na aldeia dos mortos, embaixo do cemitério (wabède), ou seguem para o mundo
aquático (Rodrigues 1993:403-404).
44
A possibilidade de se “ver melhor e mais longe” não é um mero detalhe, é um dos elementos
essenciais do xamanismo e da feitiçaria KARAJÁ. O hyri é aquele que vê. Lima Filho (1994: 176)
termina a sua dissertação propondo como pista etnográfica a questão do olhar (e portanto do ver/não
ver) para os Karajá.
45
Se o mundo celeste é de onde se tem a visão mais nítida, mais clara, não nos surpreende que lá more
o Grande Xamã (ver nota anterior).
46
Se os KARAJÁ de verdade (humanos terrestres) são “o povo do meio”, em relação aos outros níveis
do cosmos, os Javaé (subgrupo KARAJÁ) dizem que são “o povo do meio” em relação aos dois outros
subgrupos (Karajá e Xambioá) (Rodrigues 1993). Pétesch atribui essa posição mediana dos Javaé à
ocupação territorial do grupo antes do contato: os Javaé costumavam viver no interior da ilha e não nas
margens do Araguaia e seriam caracterizados por um modo de vida mais terrestre (em oposição aos
dois outros subgrupos que sempre viveram ao longo do rio) e, portanto, mais móvel (1993: 370).
Voltaremos sobre a questão da mobilidade.
31

2.1.3 - O mundo de fora


“Os aruanãs eram peixes eternos que habitavam os lagos profundos. Um dia
Hariwaki, um jovem aruanã, curioso e aventureiro, nadou mais distante e encontrou
um raio de luz. Koboi avisava que todos deviam evitar este raio de luz por que ele
atravessa um estreito e longo corredor que leva ao sofrimento, ao perigo e à morte.
O jovem olhou pelo raio de luz e descobriu sua sombra e divertiu-se com ela, mas
resolveu retornar para junto de seus amigos. Hariwaki sonhou com estranhas regiões
e ao acordar retornou ao raio de luz. O jovem seguiu o raio de luz e, ao chegar na
superfície, ficou fascinado com o ambiente cheio de luz e calor. Próximo havia um
lago com uma campina verde e árvores frutíferas. Havia também o céu, nuvens e
pássaros. O jovem aruanã transformou-se em gente (de verdade) e correu pelas
praias, ouviu os pássaros, seguiu os macacos nas árvores, sentiu o perfume das
flores, descobriu o mel de abelha e as frutas. Depois Hariwaki voltou para a água e,
ao chegar ao Lago da Pedra, já era um peixe aruanã novamente. (...)Apesar dos
avisos de Koboi, um grupo de aruanãs resolveu subir à superfície (...). Na superfície
transformavam-se em gente e adaptavam-se ao novo mundo.(...)” (Lima Filho 1994:
142-143, Mito C, meus parêntesis).

Antes da chegada dos Inÿ Tyhy (i.e. da transformação dos KARAJÁ


subaquáticos em gente de verdade, KARAJÁ terrestres), na superfície viviam os Ixÿ
(termo que designa todo ser vivo apegado a um território), a antiga humanidade
terrestre. Os Ixÿ eram animais humanos que, na maioria dos casos, foram sendo
transformados pelos heróis míticos (principalmente por Kanÿxiwe) em verdadeiros
animais ou em estrangeiros (Ixÿju, vizinhos e inimigos dos KARAJÁ)47. O que
distinguia os Ixÿ dos Inÿ Tyhy em seus modos de vida era a capacidade de mobilidade
dos primeiros. Os Ixÿ sabiam caçar, plantar roças, andar de canoa (ver mitos em
Pétesch 1992:423-425 e Toral 1992: 8-10, nota). Para se adaptar à nova vida, os
KARAJÁ tiveram de adquirir ao menos uma parte dessa mobilidade terrestre. Pétesch
relaciona essa mobilidade à animalidade destes seres, em oposição à imobilidade
divina que caracterizaria os pré-humanos do mundo subaquático48.
Além dos Ixÿ, animais humanos, a superfície terrestre também estava povoada
pelos ferozes aõni. Segundo Pétesch (1992: 88), os aõni são a versão extrema da

47
Assim, o macaco prego, o pássaro cigana (Opisthocomus Hoazin) e os porcos-do-mato eram gente, e
foram transformados em animais. Veremos mais adiante em que consiste esta transformação.
48
Mais um elemento que reforça a importância da questão da mobilidade/imobilidade encontra-se no
mito que conta como Kanÿxiwe roubou a luz do sol. O herói captura o urubu-rei (iòlò) pedindo-lhe que
lhe dê a luz. O urubu oferece-lhe três de seus mais belos cocares (raheto, casa de cabeça). Primeiro a
estrela d’alva. Kanÿxiwe recusa-a, pois esta brilha pouco. O urubu oferece-lhe então a lua, Kanÿxiwe
responde que ela também não presta. O urubu concede-lhe então seu mais belo cocar, o sol, e
Kanÿxiwe aceita. Depois disso, Kanÿxiwe quebra a perna dos três astros para que estes corram mais
devagar pelo céu, iluminem e esquentem durante mais tempo a superfície terrestre (ver Pétesch 1992:
424, mito 1.d). Segundo um informante, a estrela d’alva é o cocar de pena de arara amarela (canindé)
32

alteridade. Trata-se de monstros canibais que vivem nas grutas e cupinzeiros, de onde
só saem para procurar carne humana. São pequenos seres, pretos e peludos que podem
tomar uma aparência humana (inÿni49) para enganar suas presas (op.cit 1993: 368).
Os kuni também são seres temíveis. Eles são os espíritos dos mortos KARAJÁ (ou
estrangeiros, Ixÿju kuni) que morreram de forma sangrenta ou não tiveram um
enterro adequado. Os kuni vivem circulando entre o mundo de fora e a aldeia dos
mortos assassinados (hure mahãdu hawã)50. Para defender-se destes seres terrestres
perigosos era preciso ser ágil, veloz, saber agredir, enfim, saber lidar com “outros”51.
O movimento e os espaços abertos são as características da vida e do mundo
terrestres. Os seres que já habitavam este espaço, antes da chegada dos Inÿ Tyhy,
KARAJÁ de verdade, eram extremamente móveis. Para sobreviver foi preciso
aprender dos Ixÿ, animais-humanos, algumas técnicas e roubar deles instrumentos
indispensáveis à sobrevivência dos Inÿ Tyhy (Toral 1992: anexo: 2-17). Os heróis
transformadores ajudaram os KARAJÁ nesta tarefa até que crianças os ofenderam e
eles partiram para o céu52 (Toral 1992: 139). Por outro lado, os KARAJÁ também
tiveram que adaptar seus corpos a esse novo ambiente. Mas vamos primeiro as aldeias
que os Inÿ Tyhy construíram, à imagem das aldeias subaquáticas e celestes.

2.2 - O espaço da aldeia


A aldeia é o espaço socializado onde a maior parte da vida dos KARAJÁ se
passa. A tripartição encontrada nos níveis étnico (Karajá, Javaé e Xambioá) e
cosmológico (bero hatxi, ahana obira e biu-e-tyky) reencontra-se no nível aldeão. De
fato, as aldeias KARAJÁ são lineares, construídas em fileiras paralelas ao curso do
rio nos barrancos mais altos (Toral 1992: 51-52). De um modo geral, as aldeias
possuem duas ou três fileiras de casas com suas aberturas (portas e janelas) voltadas
para o rio. Até meados deste século, as aldeias eram habitadas somente durante a

do urubu-rei; a lua é o cocar de pena branca (não sei de que pássaro), e o sol seria o cocar de pena de
arara vermelha, o “mais poderoso” (ver infra, a importância das penas de arara vermelha para o xamã).
49
Inÿ - ni , semelhante a um Inÿ, “semelhante a uma pessoa”. O mesmo pós-fixo -ni encontra-se nas
palavras kuni (“espírito de morto não socializado” - não sei o que significa ku-) e aõni (monstro), aõ é
coisa, i.e. “semelhante a uma coisa” (nenhuma das duas palavras é muito clara para mim).
50
Os worosÿ, mortos KARAJÁ, vivem no wabède, aldeia situada embaixo do cemitério. Para uma
descrição mais detalhada destes diferentes espaços, ver Rodrigues (1993:408-411).
51
Esses monstros terrestres também são chamados de bede rahy mahãdu (povo da terra/chão). Para
uma descrição mais detalhada dos diversos seres terrestres, ver Pétesch (1992:87). Alguns autores
traduzem bede como “mato”, outros como “terra”, ou como ambos. Um informante karajá traduziu este
termo como “chão”. Segundo ele, wabedè, o cemitério, seria “meu chão” e bede brò, o lado do mato
(em oposição ao lado do rio, biura) seria “as costas do chão”.
33

época chuvosa, pois, no “verão” (época da seca) as famílias se espalhavam pelas


praias, montando acampamentos provisórios (Ehrenreich 1948: 34-35; Costa &
Malhano 1987: 58-59)53. Estes, apesar de serem constituídos por construções mais
frágeis (estruturas de madeira cobertas por esteiras), também reproduziam a estrutura
das aldeias permanentes, respeitando a posição das casas, das famílias e da Casa de
Aruanã (Pétesch 1992: 32).
Ainda hoje, nas aldeias onde existe Casa dos Ijasò (que é igualmente chamada
de Casa de Aruanã, Casa dos Homens, ou Hetokre) esta situa-se no nível mediano da
aldeia, sempre recuada em relação às fileiras de casas, e aberta para o mato (ver
Figura 1). Esta disposição das casas nas aldeias permanece inalterada desde as
primeiras descrições que se tem dos KARAJÁ (Toral 1992:52).
O rio é parte integrante da aldeia. Seu espaço é utilizado como porto para as
canoas, nele se banham as famílias de manhã e à tarde, as mulheres lavam as roupas e
a louça e, de suas margens retira-se o barro utilizado na confecção de vasilhames e
bonecas (ritxokò) de cerâmica.

2.2.1 - As casas
Quando Ehrenreich visitou os Karajá, em agosto de 1888 (Baldus apud
Ehrenreich 1948: 8), as casas (heto) ainda eram construídas unicamente com madeira
e com palha de babaçu54(Malhano & Costa 1987: 64). Segundo Ehrenreich (1948:
35), sua forma era “retangular (...). A armação compõe-se, em cada lado, de três ou
quatro varas flexíveis apoiadas em forquilhas e ligadas às do lado oposto por meio
de cipós; constituem, assim, uma cobertura arqueada à maneira de canoa, e
suportada, ainda, por varas verticais fincadas na terra, em direção longitudinal. (...)
Sobre sarrafos finos, paralelos entre si, e fixados externamente na armação do
telhado, descansam as enormes folhas pinuladas da palmeira oaguaçu (Attalea
spectabilis), as quais, em várias camadas sobrepostas, formam uma cobertura
bastante impermeável. (...) À direita e à esquerda da porta estão fincadas duas varas
altas, que dão maior firmeza às camadas de folhas de palmeira do lado da frente.

52
Ver Pétesch (1992: 421, mito 1b).
53
No verão, ainda se vêem algumas famílias acampando nas praias que bordam o rio Javaés,
principalmente na época da desova das tartarugas e tracajás, muito apreciados pelos KARAJÁ, mas
não se mobilizam aldeias inteiras, como antigamente.
54
Segundo Costa & Malhano (1987: 64, nota 3) os Karajá usam também a pindoba como substituta do
babaçu.
34

A construção da casa é, assim como nos dias de hoje, feita exclusivamente


pelos homens (Costa e Malhano 1987: 63). As casas são habitualmente construídas
em mutirão, reunindo integrantes da família extensa. Segundo Costa & Malhano
(1987), as casas KARAJÁ como as que descrevia Ehrenreich, não são mais
construídas (op.cit 1987: 64). Hoje em dia, uma série de tipos de construções
diferentes convivem nas aldeias. Costa e Malhano, em um artigo sobre habitações
indígenas (1987), fazem um levantamento dos diversos tipos de casas KARAJÁ
atuais.
São eles: “1- a casa “pseudo-tradicional”, cuja matéria-prima é quase que
exclusivamente a palha; 2- a casa “mista”, isto é, aquela para cuja construção
concorrem tanto a palha quanto outros materiais, tais como o adobe ou barro batido
(pau-a-pique), crus; 3- a casa de alvenaria (...), cujo material de construção é
constituído de tijolos cozidos, assentados e revestidos com argamassa, apresentando
a casa cobertura com telhas de cimento-amianto (ou fibrocimento); 4- a casa de pau-
a-pique ou de alvenaria com revestimento em massa e cobertura de telhas de barro
(do tipo canal);5- a casa de alvenaria com cobertura em zinco, encontrada, em sua
maioria, em Butõwiro (aldeia Fontoura); 6- a casa de alvenaria com cobertura de
palha, encontrada em Butõwiro e Heryri (aldeia Macaúba).(1986: 65-66, eu
sublinho)”.
Nas diversas aldeias KARAJÁ visitadas por estes autores (Fontoura, Santa
Isabel, Macaúba e Krehy-Luciara), a grande maioria das casas era de palha. A casa de
palha “pseudo-tradicional” atual é construída com quatro fachadas idênticas,
formando um quadrado de aproximadamente seis metros de lado (oito esteios
dispostos um a cada três metros, quatro nos cantos e quatro intermediários) As casas
atuais diferem do tipo mais antigo descrito por Ehrenreich (1948) pois estas
“apresentavam teto e paredes sem separação, formando uma abóbada de berço de
perfil ogival” enquanto “as atuais têm uma planta baixa quadrangular, cobertura em
quatro águas e um apoio central”(1987: 64). A cobertura (hetokuratyky, onde heto é
casa, ra é cabeça, tyky é invólucro, pele) é independente das paredes (horeru paredí,
parede de palha) (ver Figura 2). A construção atual da casa KARAJÁ dá-se em quatro
etapas (Malhano 1986: 18).
A primeira etapa da construção é a do corte e do preparo da madeira. A
segunda etapa é consagrada à confecção da estrutura das paredes e da cobertura. Em
uma terceira etapa corta-se e preparam-se as folhas de palmeiras para a cobertura, e,
em uma última etapa, executa-se o revestimento. As paredes só são vedadas após o
acabamento completo da cobertura (Malhano 1986: 18-19).
35

A casa de palha (“pseudo-tradicional”) é a casa KARAJÁ atual. De fato, tanto


as aldeias de Canoanã (Javaé) quanto a de Santa Isabel (Karajá), que tive a
oportunidade de conhecer, correspondem à descrição feita por Malhano (1987:22) das
casas denominadas por ele como “pseudo-tradicionais”55 (Figura 2).
O interior das casas atuais (hetokuwoku, por dentro da casa) não parece diferir
muito das antigas. Ehrenreich descrevia-o como bastante simples.
“Uma parte do chão é revestida de esteiras (bykyre) de buriti, sobre as quais também
se dorme. Um pedaço de madeira, cilíndrico e liso, colocado embaixo da esteira, faz
as vezes de travesseiro. Das vigas horizontais pendem as várias cestas de provisões,
recipientes para penas de adorno, enfeites de plumas já acabados, porongos etc.
Arcos e flechas enfiam-se entre os sarrafos do telhado. Lanças e clavas estão sempre
à mão, encostadas nalgum canto. Alguns banquinhos com feição de trenó, e os potes
e cuias de diferentes tamanhos completam o trem da casa (1948:36, meus
parêntesis)”.

Segundo Costa & Malhano (1987), a construção atual delimita um espaço


interno amplo, no qual não se observam delimitações espaciais específicas a não ser
pelo próprio uso. O que diferencia o espaço interno atual do antigo é a ausência de
esteios internos que foram substituídos por um esteio central. Em alguns casos
delimitam-se cômodos para utilizações específicas (1987:65). Hoje em dia, as casas
KARAJÁ possuem janelas.
Em Canoanã, pude observar em uma das casas que o espaço interno estava
dividido em três. Um lado estava fechado inteiramente por uma “parede” de esteiras e
era usado como quarto. Nele havia uma cama de casal coberta por esteiras e uma rede.
Em um canto deste cômodo encontravam-se umas sacolas com roupas, chinelos e um
pequeno espelho. A parte central, onde ficam as duas portas (a que dá para o rio e a
que dá para o quintal), era utilizada para receber as visitas e como lugar de passagem.
Nenhum objeto a obstruía. No outro lado da casa havia um pequeno jirau com comida
(feijão, açúcar, café), panelas e dois banquinhos (ruranÿ). Em um canto havia cabaças
e outros utensílios de cozinha. No quintal, havia um fogo coberto com uma grade para
assar (kobikuna) e um jirau no qual viam-se algumas bacias com roupa, panelas e
copos.
De fato, segundo um informante, as cozinhas costumam ser armadas do lado
de fora da casa. Monta-se uma pequena cabana justaposta à casa, chamada de heranÿ

55
Estas duas aldeias possuem também os outros tipos de casas descritas acima, mas em um número
inferior e, muitas vezes, localizadas fora do alinhamento das casas, em “bairros” que foram se
36

hetoku, casa da cozinha. Nela arma-se um jirau (anokudona, lugar onde se bota as
coisas, ou kuutò) e um fogo. Em alguns casos a cozinha fica em um canto da casa
(irarikò, cozinha de dentro da casa). Todos dormem em suas respectivas esteiras,
sendo que os casais possuem esteiras grandes onde dormem com os filhos menores.
Diz-se que os hyri (xamãs-feitiçeiros) só dormem com o rosto virado para o biura
(cabeça do céu, lado do rio, lugar onde nasce o sol) pois assim “enxergam melhor e
mais”.

2.2.2 - Divisões espaciais e circulação na aldeia


O espaço doméstico, ixÿ hawã, divide-se em parte de baixo (iraru ihuti, a
jusante), de cima (ibòò ihuti, a montante) e do meio (itya ihuti) (Toral 1992:51). Os
habitantes da aldeia são designados segundo a parte na qual moram. Assim, fulano
mora no iraru ihuti, junto do pessoal de baixo, no iboò ihuti (de cima) ou no itya
ihuti (do meio). No meio, ocupando uma posição central mas recuada em relação ao
alinhamento doméstico, está o ijoina, espaço dos homens iniciados e das máscaras.
Nele encontra-se a Casa dos Ijasò (casa dos homens: Ijoi Heto, ou Hetokre) e o pátio
dos Ijasò (dirasò ube). Ao contrário das casas, todas voltadas para o rio (biura,
cabeça do céu, lado do rio), a abertura da Casa dos Ijasò fica voltada para o mato
(bede brò, as costas do chão), de costas para o espaço doméstico e para o rio.
Crianças e mulheres estão estritamente proibidos de penetrar no ijoina assim como de
circular pelos caminhos que levam a ele (Toral 1992: 52-54). O espaço da aldeia
divide-se, portanto, por um lado, em espaço doméstico (ixÿ hawã, povo da aldeia) e
espaço masculino/ritual (ijoina), por outro, em parte de baixo, do meio e de cima
(sempre em relação ao curso do rio, baixo correspondendo portanto a “rio abaixo”,
jusante, e alto a “rio acima”, montante).
No espaço doméstico, cada casa possui um quintal ou pátio interno, chamado
de hirarina, espaço das meninas. É nele que a maioria das atividade quotidianas se
passam. É nele que está o espaço utilizado pelas mulheres para cozinhar. À tarde,
quando o sol já está baixo, as famílias saem das casas e se instalam na parte da frente
das casas que fica aberta sobre os caminhos principais. Este espaço chama-se ube
(Toral 1992: 54). Assim, o espaço doméstico aldeão compõe-se do conjunto das casas
alinhadas e, elas mesmas, divididas entre um espaço mais doméstico e privado (o

desenvolvendo em torno do Posto da FUNAI ou/e da escola (ver Lima Filho 1994:36 e Rodrigues
37

pátio interno, hirarina) e um espaço mais público (a frente da casa, o ube) (ver Figura
1, infra).
Existem vários tipos de caminhos nas aldeias. O principal é o beyrari
(“caminho do lado da água”) que passa entre a primeira fileira de casas e o rio. Entre
cada fileira existe um caminho público, uma rua. Assim, entre a primeira e a segunda
fileira está o ubetyary (“caminho dos pátios do meio”) e por trás de todas as fileiras o
ixybròry (“caminho que fica por trás do povo da aldeia”) (Toral 1992:53-54).
Entretanto, esses três caminhos são evitados. Os KARAJÁ preferem circular pelas
passagens e caminhos laterais que ligam os quintais internos, pelos fundos (op.cit
1992: 53). Reforçando esta idéia, Rodrigues (1993: 155) explica que os Javaé
preferem não andar sem rumo pela aldeia, pois assim se exporiam demais aos feitiços.
Por esta razão não se deixa as crianças brincarem fora do espaço feminino da casa
(hirarina). Como já disse, os caminhos que levam à Casa dos Ijasò (ijasòry) não são
utilizados por mulheres ou crianças, que tampouco podem penetrar no espaço
masculino (ijoina). Quando as mulheres precisam ir para o mato colher frutas ou
castanhas, ir à roça ou sair da aldeia por algum outro motivo, têm que utilizar os
caminhos que contornam o ijoina, de onde elas não podem ver nada. O ijoina não é
apenas o lugar de reunião dos homens, ele é também o centro cerimonial e político da
aldeia pois é nele que se confeccionam e guardam as máscaras dos Ijasò, é nele que se
recebem as entidades e onda estas dançam ao longo do ritual (Toral 1992: 53-54).
Assim, considerando o plano da aldeia, vemos que além da tripartição (alto,
meio e baixo) da aldeia, constata-se a existência de uma divisão que separa a aldeia
em dois: o espaço doméstico e o espaço público-ritual56.
É importante lembrar que a divisão: alto, meio e baixo também é válida ao
nível dos subgrupos KARAJÁ: os Karajá sendo os ibòò mahãdu (povo de cima), os
Javaé os itya mahãdu (povo do meio) e os Xambioá os iraru mahãdu (povo de
baixo). Essa divisão se reproduz também entre aldeias vizinhas. Por exemplo, para os
habitantes de Fontoura, aldeia karajá situada ao norte da Ilha, os de Santa Isabel (mais
ao sul, a montante) são ibòò mahãdu (de cima), enquanto os de Macaúba (mais ao

1993).
56
Para o ritual, são construídas: a Casa Grande (Hetohykÿ), situada rio acima, que é erguida pelo
grupo masculino de cima (ibòò ijoi); a Casa Pequena (Hetoriore), situada rio abaixo, erguida pelo
grupo masculino de baixo e o túnel (hererawy) que liga as duas Casas, erguido pelo grupo do meio
(itya ijoi) (Pétesch 1993: 373-374 e Lima Filho 1994:85-89).
38

norte, a jusante) são iraru mahãdu. Enfim, cada aldeia reproduz a divisão
internamente, marcando o pertencimento dos moradores a um dos três grupos.

2.2.3 - Roças
As roças (oworu) ficam geralmente a alguns quilômetros das aldeias, nas
margens do rio. Nelas se planta mandioca mansa e brava, batata doce, cará, abóbora,
banana, algodão, urucum, tabaco, milho e melancia (Donahue 1982: 55; Pétesch
1992: 29). Antigamente, o milho cultivado pelos Karajá tinha grãos escuros (Lima
Filho 1994: 22-23). O arroz, assim como o feijão foram introduzidos com o contato
com os Tori e adotados como base da alimentação pelos KARAJÁ, que passaram a
comprá-los na cidade e, as vezes, à cultivá-los (Donahue 1982: 83)57.
Segundo Pétesch (1992: 27) as roças são abertas a uma certa distância das
aldeias, recuadas em relação ao curso do rio, para não serem atingidas pelas águas.
Quando as águas dos rios desciam (beetxi), os KARAJÁ costumavam plantar
pequenas roças nas margens recém emersas, muito férteis58. Nestas roças de beira de
rio eles plantavam vegetais cujo ciclo de crescimento era curto: alguns tipos de milho,
amendoim, abóbora e melancia (Pétesch 1992: 31).
Vimos que, sob vários aspectos, o espaço aldeão KARAJÁ reflete a estrutura
social e cósmica desta sociedade macro-jê. No espaço estão inscritas divisões
fundamentais da organização social, tais como a divisão espacial entre um lado
doméstico e um lado público que é uma das características principais das
organizações sociais jê e bororo (Carneiro da Cunha 1993: 85). A tripartição alto,
meio e baixo é fundamental na organização do ritual (Pétesch 1993: 374, Lima Filho
1994: 81) mas também serve como um “mapa” das divisões étnicas, cósmicas e em
um nível mais geral, sócio-cerimoniais (Pétesch 1993: 372). No espaço KARAJÁ,
assim como no caso dos Jê, “ (...) à tout principe d’organisation sociale est assignée
une place, un espace (...)” constituindo um verdadeiro “aide-mémoire” (1993: 85).
A partir dos dados e dos mitos expostos acima, é possível constatar que, se
por um lado, os KARAJÁ, para poderem se adaptar ao mundo terrestre, tiveram de

57
Um informante me disse que “antigamente, o índio karajá já plantava feijão”, não pude saber
exatamente a que época ele se referia.
58
Quando descreve estas roças de verão a autora utiliza o passado, portanto, deduzo que essa prática
foi abandonada. Entretanto, em Porto Txuiri, pude constatar a existência de uma destas pequenas roças,
plantada por um morador, na beira do barranco, do lado de sua casa, e onde cresciam pés de mandioca
mansa e brava.
39

transformar seus corpos, eles não precisaram mudar suas aldeias. Tanto os KARAJÁ,
quanto os autores que falam sobre o tema, concordam em dizer que, nos mundos
aquático e celeste, as aldeias são idênticas às aldeias KARAJÁ da superfície, a única
diferença é que, as aldeias subaquáticas e celestes são melhores, mais bonitas e
duradouras.
40

CAPÍTULO 3: ESTRUTURAS ESPACIAIS KARAJÁ EM PORTO TXUIRI

Sendo o espaço aldeão central na definição da sociedade KARAJÁ, devemos


começar nossa análise pela pergunta: seria Porto Txuiri uma aldeia KARAJÁ ? Como
mostrei acima, as demais aldeias KARAJÁ possuem todas um padrão espacial, apesar
das mudanças experimentadas por eles desde o contato. Mas o que dizer então de
Porto Txuiri, uma aldeia constituída dentro de um espaço já delimitado, já construído
e idealizado pelos Tori ?
À primeira vista, a aldeia parece ser uma vila como outra qualquer da região:
casinhas de tijolo ou de adobe, em volta de uma praça que tem em seu centro, uma
Igreja (católica) e um campinho de futebol; três ruas paralelas e duas perpendiculares
ao rio; uma igreja da Assembléia de Deus; uma escola e um Posto de Saúde. Quase
todas as casas apresentam inscrições bíblicas em suas fachadas: “Leia a Bíblia”,
“Cristo Salva” etc. Algumas inscrições testemunham o passado movimentado da vila:
“Dentista”, “Barbeiro”, “Farmácia”, “Bar”.
As casas de Porto Txuiri não são de palha, nem parecem respeitar a disposição
linear, paralela ao curso do rio, característica de todas as aldeias KARAJÁ. Com
exceção de Fontoura, aldeia karajá que foi construída por uma Missão adventista,
formando um retângulo (Donahue 1982: 181)59. Tampouco há Casa dos Ijasò, lugar
em que, nas outras aldeias, são guardadas habitualmente as máscaras dos Ijasò
(entidades aquáticas e/ou celestes que visitam os humanos na ocasião do ritual de
Aruanã ou Ijasò), onde os homens iniciados se reúnem, e que é um dos elementos
essenciais da aldeia.
A seguir, apresento um mapa de Porto Txuiri no qual podem se ver:
 As casas abandonadas:
 As casas habitadas, até hoje, por Tori:
 Os caminhos usados pelos KARAJÁ para se deslocar pela aldeia:
 As casas habitadas pelos KARAJÁ (as cores distinguem “famílias”)
 Warihy Javaé
 Sewerehi Javaé
 Idjarruri Karajá
 Idjanare Javaé
 Kaxiwera Karajá
 Burahi Javaé

59
A aldeia karajá de Macaúba foi fundada pela Missão Novas Tribos mas, segundo os desenhos de
Donahue, possui o mesmo tipo de planta que as demais aldeias KARAJÁ (Toral 1992: 82; Donahue
1982: 183).
41

 Idjaú Karajá

3.1 - Restruturação espacial


3.1.1 - Edifícios e construções
A primeira coisa que se vê quando se chega a Porto Txuiri pela estrada é a
Igreja que, na época dos colonos, funcionava normalmente (ver Foto 2). Ela fica logo
na entrada da aldeia que é, ao mesmo tempo, praça principal e campo de futebol.
Trata-se de um edifício retangular, feito de cimento e coberto com telhas de zinco.
Em 1995, a Igreja foi abandonada pelo padre e fechada. Um ano depois, enquanto eu
estava na aldeia, ela foi reaberta, e passou a servir de salão de festas (forrós) e, mais
freqüentemente, de salão de jogos para as crianças. A tarde, muitas crianças se
reúnem nela para jogar bola, enquanto os jovens e os homens adultos jogam futebol
na praça. Desde que a Igreja foi reaberta, seu espaço não foi utilizado para nenhum
outro fim. Em 1996, o cacique Idjarruri falava em transformá-la em um Museu, que
narraria e lembraria a história da reconquista da Ilha, mas nada foi feito neste sentido
até agora, e o assunto parece ter sido esquecido.
Na época das chuvas, o espaço da praça que fica mais perto do rio é usado
como porto (bea) onde se atracam as canoas. Na praça existem dois outros edifícios
que foram importantes na época dos colonos. De um lado vemos o Posto de Saúde,
cujo funcionamento e manutenção dependia do Município de Formoso do Araguaia.
O Posto foi abandonado durante a ocupação do vilarejo pelos Índios, e reativado,
pouco tempo depois, por uma freira vinda da aldeia (javaé) de Boto Velho, ao norte
da Ilha. Esta freira havia se desligado do CIMI (Conselho Indigenista Missionário) e
se oferecido a Idjarruri para ajudar na área da saúde em Porto Txuiri. Por uma série de
motivos que, na maioria, desconheço, a esposa do cacique pediu que ela se retirasse
da aldeia no final de 1996, menos de um ano depois da sua chegada60. O Posto ficou
abandonado até 1999, quando uma mulher se instalou nele com sua filha pequena. Se
bem entendi, esta jovem javaé, estudou enfermagem, mas não a vi exercendo
nenhuma atividade enquanto estive no campo.
A outra construção importante é a do antigo Posto de Vigilância da FUNAI,
onde moravam dois funcionários, responsáveis pela vigilância das entradas e saídas
da Ilha. Em outubro de 1996, abandonaram o Posto, já que o programa de

60
Um dos motivos, sem dúvida, era uma luta religiosa e ideológica não explicitada entre a freira,
católica, e a mulher do cacique, crente.
42

desocupação da Ilha estava encaminhado e que o cacique havia-se desvinculado


completamente da FUNAI. Esta casa também ficou vazia até 1999, quando uma
família oriunda de Santa Isabel se instalou nela.
Da praça saem as três ruas principais. Uma em direção ao oeste, outra ao norte
e a terceira ao sul. Ao longo destas ruas e de algumas menores, transversais, estão
alinhadas as casas. A escola fica na rua mais povoada que é a rua sul enquanto a
Assembléia de Deus fica em uma rua paralela.
A escola é mantida pelo Governo do Estado61, e não pela FUNAI. Os
programas são idênticos aos de todas as escolas da região. A única diferença é que
existem dois professores bilingües na aldeias que dão aulas de pré-alfabetização em
KARAJÁ. A maioria dos professores, antigos moradores de Porto Piauí, partiram,
mas os que permaneceram (três), junto com dois professores javaé e uma nova
professora Tori (cunhada do cacique) ocupam-se dos 40 alunos (aproximadamente)
que freqüentam os três turnos da escola.
A Assembléia de Deus foi fechada durante o processo de desocupação, e
reaberta em 1997. O culto era celebrado duas vezes por semana pelo pastor que mora
do outro lado do rio, em frente à aldeia. Foi novamente fechado entre 1998 e 1999,
mais uma vez por causa de rixas pessoais entre o cacique, sua esposa e um pastor
visitante. Na época em que esteve em funcionamento, um ano aproximadamente,
alguns KARAJÁ passaram a se dizer crentes. Pude assistir ao culto de Natal e a uma
vigília noturna em dezembro de 1997 das quais participaram algumas famílias
KARAJÁ. Mas, assim como a Assembléia de Deus fechou, essas famílias parecem ter
esquecido do assunto. Talvez o fechamento da Assembléia tenha alguma relação com
a chegada recente do casal de missionários da Missão Novas Tribos, mas não pude
confirmar isso, nem pude saber muito sobre o assunto, que parecia sempre
inconveniente quando colocado.
A aldeia possui portanto três tipos de construções: as casas, construídas pelos
colonos e habitadas pelos KARAJÁ; as instituições como a Escola, o Posto de Saúde
e a Assembléia de Deus que continuaram funcionando (nos últimos dois casos apenas

61
Tudo o que dependia da Prefeitura de Formoso (Município) foi fechado, desativado e retirado, na
época da ocupação de Porto Piauí pelos KARAJÁ (Posto de Saúde, motor gerador de energia elétrica,
televisão e antena parabólica comunitária). Por outro lado, o Governo do Estado do Tocantins, aliado
do cacique, manteve a Escola aberta e ajudou na instalação da rede elétrica e na extensão da linha
telefônica até a casa do cacique.
43

durante um tempo); e as instituições que estão abandonadas ou que são utilizadas para
outros fins (moradia, jogos, danças) como a Igreja Católica e a antiga sede da FUNAI.

3.1.2 - Restabelecimento do esquema espacial


Como já disse acima, o esquema espacial das aldeias KARAJÁ é formado por
fileiras de casas que seguem, paralelas, o curso do rio. A primeira vista, Porto Txuiri
parece estar muito longe de ter este tipo de esquema espacial, já que foi concebido a
partir de uma praça principal da qual saem ruas em três direções (norte, sul e oeste, já
que a leste está o rio), elas mesmas interligadas por ruas transversais.
Uma das primeiras perguntas que fiz quando estive na aldeia pela primeira
vez, foi: “como vocês escolheram a casa ?”.Todos invariavelmente me respondiam
que haviam escolhido tal ou tal casa porque ela era bonita, porque eles gostavam dela
etc. Alguns meses mais tarde, resolvi fazer um mapa considerando apenas as casas
habitadas por KARAJÁ (até aquele momento considerava em meus mapas, todas as
casas, tanto as vazias como as habitadas por Tori). Percebi então que os KARAJÁ
não haviam escolhido qualquer casa como afirmavam. De alguma maneira, eles
haviam restabelecido um esquema linear bem próximo ao das outras aldeias que
descrevi acima. No decorrer dos dois outros períodos de campo, fui confirmando essa
idéia, observando que as mudanças de casa por parte de famílias já instaladas na
aldeia, e a instalação de novas famílias, se fazia respeitando essa lógica linear.
Traçando um modelo esquematizado das aldeias KARAJÁ e comparando-o
com o de Porto Txuiri em 1996 e 1999 o restabelecimento do esquema linear fica
mais claro (ver Mapas 3, 4 e 5, a seguir).
Assim, os moradores de Porto Txuiri não se concentraram em volta da Igreja e
da praça como os Tori, ou em um ou dois quarteirões, e tampouco ocuparam todas as
“melhores” casas, ao menos segundo nossos critérios, já que várias casas em muito
bom estado, amplas e sólidas, mas situadas foras do alinhamento, estão vazias.
Alguns moradores, que já mudaram várias vezes de casa, preferiram instalar-se em
casas alinhadas apesar delas estarem em muito mal estado (telhas quebradas ou
faltando, chão de terra) ou, ao menos em um caso, serem minúsculas. Vê-se assim que
o significado de uma “boa casa” para os KARAJÁ, não é obrigatoriamente o mesmo
que o nosso (solidez, tamanho, luminosidade, qualidade do material). Os KARAJÁ de
Porto Txuiri, como comprovam os desenhos, escolheram dispersar-se seguindo a
44

linha ibò(k)ò/iraru (alto/baixo, sul/norte, montante/jusante). Assim, quando alguém


dirige-se para a ponta sul da aldeia, ele vai “lá para cima”, e, se vai em direção à
ponta norte, está indo “lá para baixo”.
3.1.3 - Ocupação do espaço e divisões espaciais
Apesar da estrutura espacial e da arquitetura serem preexistentes, os KARAJÁ
restabeleceram neste espaço a linearidade própria de suas aldeias. É interessante notar
que essa apropriação de um espaço alheio e sua reconversão em espaço próprio não se
fez apenas no nível da estrutura linear da aldeia62.
Mesmo sendo construções de Tori, as casas possuem, como as casas
KARAJÁ, uma porta frontal, duas portas, uma frontal que dá acesso à rua ou à praça,
e uma nos fundos, dando acesso ao quintal. Isso facilitou as adaptações. O que é
muito importante ressaltar é que a circulação no espaço aldeão também foi restituída.
As portas da frente das casas são evitadas e, na maioria dos casos, trancadas. Estas
são apenas abertas em alguns casos quando se recebe a visita de um estrangeiro, como
as vezes nas minhas visitas.
Em 1996, notei que as cercas de arame farpado que separavam antigamente os
quintais dos colonos não haviam sido retiradas, mas que estavam em parte,
deformadas, levantadas, cortadas. É aí, por estas frestas, que se passa para ir de uma
casa à outra. Em Porto Txuiri, assim como nas outras aldeias (Toral 1992: 53), os
KARAJÁ preferem circular pelos caminhos internos que ligam as casas entre si de
modo a evitar as ruas e caminhos principais. Hoje em dia, formaram-se verdadeiros
caminhos nestas passagens, onde o mato não cresce mais por causa da circulação
permanente de pessoas. Cada quarteirão possui seus caminhos internos e, se as vezes
se trata de uma forma mais rápida de chegar a determinado lugar, este não é sempre o
caso (ver Mapa 3, supra).

3.2 - Espaço doméstico


3.2.1 - O quintal e a porta
Assim como nas aldeias KARAJÁ, em Porto Txuiri os membros de uma
mesma parentela tendem a se concentrar nesses quarteirões de casas interligadas
(Toral 1992:54). Assim, os quintais acabam formando pátios internos compartidos por
parentes próximos em torno da casa de uma mulher mais velha, que já é avó ou
45

bisavó63. É nesses pátios internos que as famílias passam a maior parte do dia.
Distinguem-se do espaço situado na frente da casa onde as famílias se instalam no
final da tarde para conversar e/ou assistir aos jogos de futebol. Acredito que o pátio
interno e a frente da casa correspondem respectivamente ao que Toral descreve como
hirarina (pátio das meninas) e como ube (pátio externo público). Assim como nas
outras aldeias, estes dois espaços são utilizados de formas diferentes e em diferentes
momentos. No pátio interno se cozinha e se come, é nele que as crianças ficam
quando não estão na escola, no rio, ou, à tarde, brincando juntas na Igreja; é nele que
se conversa com parentes, que as mulheres confeccionam as esteiras e algumas peças
de artesanato para vender. Os homens se sentam no pátio para confeccionar as armas
(arcos, flechas, bordunas), fazer alguns adornos, tais como o raheto (cocar de plumas
usado durante o ritual de iniciação) ou ornamentos de miçangas para um parente, ou
para a venda.
No final da tarde, as famílias instalam suas esteiras na frente da casa (ube).
Conversam, recebem visitas de parentes e vizinhos, comentam o jogo de futebol ou
algum acontecimento do dia. As mulheres, as vezes, continuam seus afazeres na
frente da casa, mas os homens nunca trabalham aí. Tampouco é um lugar onde se
pode comer. É muito mal visto comer à vista de todos, fora do pátio64. Trata-se de um
espaço mais público e masculino do que o pátio interno, pois as mulheres não o
utilizam quando estão sós e é onde os homens recebem as visitas. Também porque se
trata de um espaço mais visível (Toral 1992: 56). Todos podem ver o que se passa na
frente da casa, o que não é o caso com o pátio interior.

3.2.2 - A casa
As casas são, com algumas exceções, de alvenaria, e possuem vários cômodos
(dois ou três na maioria dos casos), divididos por paredes de tijolos. Pude constatar
que a utilização do espaço interno da casa não é o mesmo que o dos Tori que ainda
moram na aldeia. Geralmente, os KARAJÁ utilizam um só cômodo como espaço de
dormir, enquanto outro é usado como depósito. A cozinha fica do lado de fora, na

62
É importante lembrar que a importância da estrutura espacial da aldeia não é uma exclusividade
KARAJÁ, mas sim, uma das características principais dos grupos Jê e Bororo.
63
Toral afirma ser este o caso nas aldeias karajá, mas não fornece um exemplo preciso que possa servir
como base comparativa com Porto Txuiri.
64
A única exceção parecem ser as frutas e o iweru (bebida não fermentada feita à base de mandioca,
milho ou arroz, à qual se acrescenta mel ou açúcar). Ainda assim, lembro-me bem que os mais velhos
se recolhiam no quintal para consumir a bebida, longe dos olhares alheios.
46

parte coberta do quintal que quase todas as casas possuem. Em todos estes pontos a
ocupação das casas KARAJÁ difere das dos Tori que normalmente ocupam todos os
cômodos da casa, separando a cozinha da sala e dos quartos e mantendo apenas o
banheiro do lado de fora.
O tipo de leito utilizado no espaço de dormir varia muito. Algumas casas
possuem camas de madeira armáveis e colchonetes adquiridos na cidade, mas
continua-se preferindo a esteira como superfície para se deitar. As camas, com ou sem
colchão, são cobertas pela esteira sobre a qual a pessoa se deita65. Algumas famílias
possuem redes, mas pude observar que estas são usadas preferencialmente para deitar
os bebês e as crianças pequenas66.
É também na esteira que as mulheres e as crianças se sentam quando estão no
pátio ou na frente da casa. Os homens preferem usar os bancos mas, quando estão
com a esposa, sentam-se na esteira.
À noite, quando já escureceu, depois do jogo de futebol e da última refeição
do dia, estendem-se novamente as esteiras do lado de fora da casa, no espaço
correspondente ao ube. Os casais se deitam com as crianças em suas grandes e largas
esteiras, os mais velhos e os solteiros em esteiras menores, individuais. Assim,
passam horas conversando, às vezes, até de madrugada67. Em Porto Txuiri, os
KARAJÁ podem assistir televisão em quatro casas diferentes, todas casas de Tori68.
À tarde, antes do jogo, as crianças e os jovens não casados costumam pedir para
assistir televisão nas casas dos Tori. O missionário instalou sua televisão (que possui
antena parabólica) no quintal, e é comum ver uma dezena de jovens e crianças
assistindo a desenhos animados americanos ou filmes violentos em inglês69. À noite,
algumas famílias assistem ao Jornal Nacional e a alguma novela na casa do cacique
ou das duas professoras.

3.3 - Dos espaços masculinos ao “outro lado”

65
Quase todos possuem mosquiteiros. As famílias que possuem um ou vários membros assalariados
(seja ele um professor da escola ou um aposentado), geralmente possuem camas.
66
Ehrenreich (1948: 33) menciona a existência de um objeto chamado “riio” que seria muito
semelhante às redes de dormir. Segundo ele, essa peça trançada em algodão seria usada apenas como
manto durante o dia e estendido como esteira à noite. Mas, como em Porto Txuiri, as “macas
suspensas por meios de cordéis são usadas sòmente como berço de recém-nascidos.”
67
Os mais velhos contam histórias dos tempos passados e mitos.
68
Creio que, hoje em dia, quase todas as aldeias KARAJÁ possuem, ao menos, uma televisão.
69
Os filmes que apresentam cenas de lutas e brigas são os mais populares, principalmente, os filmes de
artes marciais.
47

3.3.1 - A dispersão dos espaços masculinos


De certa forma, a ocupação das casas e o ritmo da vida quotidiana não são
muito diferentes dos das outras aldeias, apesar de se tratar de um aldeia construída
pelos Tori. Há porém um espaço ausente que, até hoje, não foi construído: a Casa dos
Ijasò, i.e. a Casa dos Homens. Vimos que, nas aldeias KARAJÁ, o ijoina (lugar dos
homens) é um elemento essencial da aldeia, contrapondo-se ao espaço doméstico
(ixÿhawä, espaço do povo da aldeia). Ora, se em Porto Txuiri a lógica espacial
KARAJÁ foi restabelecida, tanto no que diz respeito à linearidade das casas, quanto à
ocupação interna destas, não se pode esquecer que esta aldeia não possui Casa dos
Ijasò.
Vários motivos me foram dados como explicação para essa ausência. O
primeiro é que se trata de uma aldeia “nova”, que não possui número de habitantes
suficiente para que valha a pena construir uma Casa de Ijasò. De fato, segundo
Rodrigues, existem algumas aldeias pequenas como Wari-Wari e Boto Velho que não
possuem tal casa (1993: 143), mas essa ausência explicar-se-ia pela falta de um xamã
experiente nessas aldeias70.
De fato, o segundo argumento (dado pelo cacique) é de que não há
“especialista” na aldeia para construir este tipo de Casa. Acredito que Idjarruri refere-
se justamente ao xamã experiente, indispensável para a construção da Casa e a
decorrente organização de rituais71.
O último e mais recente argumento que um informante me deu, e que várias
pessoas confirmaram depois, é que se trata de uma proibição do próprio cacique. Este,

70
Existem xamãs “especialistas” em Ijasò que os trazem para a superfície, e organizam as atividades
rituais (ver nota seguinte).
71
Segundo Toral (1992), os KARAJÁ caracterizariam cada pessoa detentora de um certo tipo de saber
pelo pósfixo “senhor” (du). Assim, os “especialistas” em cada área seriam designados como: “senhor
da pescaria” (wasidu), “senhor dos cantos” (wiudu), “senhor da luta” (ijesudu) e até os grandes
bebedores de cachaça seriam “senhores da cachaça” (casasádu). Esses títulos, como os chama Toral
(1992: 77), designariam aqueles que se destacam em uma atividade e que, portanto estão aptos a
transmitir seus saberes. Já o pósfixo wedu, “dono”, designaria não só o detentor de um saber mas
também aquele que exerce a liderança e o comando de um grupo em si, ou para alguma atividade
específica. Assim, existiria o dono da roça (koworuwedu), o supervisor dos trabalhos agrícolas, o
“dono do grupo de homens” (ijoiwedu) durante os rituais ou na Casa dos Ijasò, (op.cit 1992: 77). O
pósfixo dinodu designaria, por sua vez, os líderes propriamente ditos. O ixÿdinodu, líder do povo era,
antes do contato, o líder da totalidade da comunidade tanto frente às entidades cosmológicas que
visitam a aldeia, como frente aos moradores de outras aldeias KARAJÁ, ocupando portanto as funções
que, hoje em dia, estão divididas entre o ixÿtyby (pai do povo) ou ixÿwedu (dono do povo) e por outro,
o cacique. O cacique ocupa uma posição de “pacificador” no nível interno (questões do quotidiano:
brigas, adultério, roubos etc.) e de “negociador” a nível externo, i.e., nas relações com a FUNAI, na
realização de projetos na aldeia, na organização de festas (churrascos, encontros de futebol e, ao menos
48

sendo crente, não permitiria a construção da Casa a não ser para fins turísticos72. É
possível que o cacique não queria permitir a construção da tal Casa por questões
religiosas, mas é importante ressaltar outro fato importante: ele mesmo não foi
iniciado73. Para que serviria essa Casa se o cacique não pode entrar nela e participar
das atividades que se desenvolvem em seu espaço ?
Em um primeiro momento, acabei me conformando com o fato de que Porto
Txuiri era uma aldeia sem espaço masculino. A não realização dos rituais de iniciação
e dos Ijasò parecia-me, evidentemente, decorrer deste fato. No entanto, se
observarmos mais atentamente os movimentos na aldeia, percebe-se que, apesar de
não existir uma Casa dos Ijasò propriamente dita, semelhante à das outras aldeias
KARAJÁ, existem diversos espaços ocupados, de forma diferente, pelos homens, em
função de sua classe etária.
Os mais velhos, principalmente os que já são avós (ulabi(k)e), costumam ir
regularmente à casa do cacique. Este os recebe habitualmente em seu pátio interior.
As conversas não costumam ser muito extensas, mas todas tratam sobre temas
políticos, sejam eles internos ou externos. Os mais velhos vão se informar sobre a
última viagem do cacique à Brasília, este lhes conta sobre sua entrevista com o
Governador ou sobre seu projeto de cooperativa. Também conversam sobre a
organização de festas como o Natal e o Ano Novo. Assim, os mais velhos conversam
com Idjarruri sobre as tarefas de cada um nas festas: alguns ficam responsáveis pela
limpeza da aldeia, outros pela preparação da mandioca (as mulheres da família de um
dos homens, por exemplo), e outros pelo churrasco (cavar o buraco, cortar os espetos,
cortar a carne, assar a carne e, finalmente, servi-la74).

no caso de Porto Txuiri, Natal e Ano Novo). Para isso, exige-se do cacique que ele saiba dialogar com
os Tori, e portanto falar sua língua e conhecer as “coisas de Tori”.
72
Este informante explicou-me que, tanto o cacique quanto a sua esposa eram “contra” a construção da
Casa (que já havia sido requerida por dois homens da aldeia (ambos, depois, se mudaram)), por serem
“crentes”, mas que este mesmo cacique lhe havia comunicado recentemente que estava considerando a
possibilidade da construção da Casa como parte do projeto de ecoturismo que pretende implantar na
Ilha e, mais especificamente, na aldeia.
73
A esposa do cacique proibiu que seus dois filhos (que já ultrapassaram a idade da iniciação) fossem
iniciados, pois, ela estaria “entregando os filhos ao demônio”. Ela interpreta o momento no qual os
Ijasò levantam as crianças do solo (segurando-as por baixo dos braços) como sendo o ato de
“entregar” os meninos para o “Mal”. Isso provoca comentários na aldeia, e é muito mal visto,
principalmente pelos não-crentes, i.e. a maioria da população. Em uma ocasião, explicaram-me que, ao
não serem iniciados, os filhos do cacique eram como “mulheres”.
74
Em Porto Txuiri, a carne é asada em espetos, colocados em cima de um fogo aceso dentro de um
buraco na terra. Não sei se procede desta maneira nas outras aldeias.
49

Mas o que fazem os mais jovens, aqueles que já têm idade para serem
iniciados (weriri hykÿ, menino grande) ou que já foram iniciados (weriribo, jovem
homem) em outra aldeia75?
Em 1999, encontrei uma casa muito particular em Porto Txuiri. Era uma casa
aparentemente abandonada. A primeira vista, ela parecia estar quase desabando.
Vários caminhos saem de seu pátio interno, mas ignoro aonde levam: parecem levar
apenas em direção ao matagal. Essa casa fica na segunda fileira de casas, quase na
parte que corresponderia à ponta “de cima” da aldeia (ver Mapa 3, supra), quase na
frente da escola. É nela que os jovens rapazes se reúnem, conversam, se pintam e
desenham, nas paredes, diversas figuras que chamaram muito a minha atenção. A
maioria dos desenhos representa ninjas ou heróis mascarados (Spawn, Super-Homem
e Homem Aranha)76. Ao lado destas figuras há inúmeros desenhos de Ijasò. Todas as
paredes estão desenhadas. Também se pode ver os nomes dos rapazes, escritos nas
paredes com giz ou tinta preta.
O que esses dados nos permitem sugerir é que o espaço masculino de Porto
Txuiri existe, mas de forma atomizada. Os homens se apropriaram de diversos
espaços, em função de seus grupos de idade. Assim, a casa do cacique e seu pátio
interior são freqüentados para as discussões políticas mais reservadas, e
principalmente pelos homens mais velhos (hãbu ijoityhÿ, homem casado com filhos;
ulabie, avô e matuari, velho); a casa dos desenhos de máscaras é freqüentada pelos
rapazes não-casados (weriri hykÿ, menino grande, weriribo, jovem homem) e alguns
recém casados (hãbu). A frente da casa do cacique também é utilizada mas desta vez
para eventos coletivos: discursos do Idjarruri e pronunciamentos importantes que
dizem respeito a toda a comunidade (mas não aos Tori de fora da aldeia).

3.3.2 - Os pronunciamentos
Em dia de pronunciamento, o cacique avisa os moradores, através de um dos
vice-caciques ou de um professor da escola, que na noite seguinte haverá “dança”
(isè). No final da tarde, a esposa do cacique, ajudada por professoras, crianças e

75
As categorias de idade KARAJÁ foram descritas por Dietschy (1978), Toral (1992: 111-116) e
Donahue (1982: 97-98).
76
Em cima de um dos desenhos que representava um ninja mascarado havia a seguinte inscrição:
“Feitiçeiro ninja”. Essa fascinação pelos filmes e desenhos de luta assim como de figuras mascaradas
não é exclusiva dos KARAJÁ (os Wari’ de Rondônia também gostam desse tipo de filmes de porrada”,
por exemplo) (Vilaça 1996a).
50

moças (Tori ou KARAJÁ) prepara baldes de suco artificial (a ser servido após o
discurso).
Por volta das 18 horas os moradores da aldeia (KARAJÁ e Tori) começam a
chegar na casa e no pátio (interno) de Idjarruri. Todos vão pegando cadeiras e
instalando-as na frente da casa, em semicírculo. As mulheres e crianças se sentam
enquanto os homens KARAJÁ iniciam a dança. Dividem-se em duas fileiras
paralelas, frente a frente, e dançam em linha, para frente e para trás. Assim as duas
fileiras vão se aproximando e se afastando em cadência e, todos os dançarinos cantam
simultaneamente. Constatei que alguns meninos novos, inclusive crianças tori,
dançam junto com os homens. Ijaú me disse que essa dança era parte do Hetohykÿ.
Nunca pude assistir a um ritual de iniciação KARAJÁ mas acredito que, esta
dança, no contexto do ritual, provavelmente exclui a participação de crianças. É
evidente que, neste caso, trata-se de uma dança informal (todos riem, cantam, gritam)
destinada à diversão dos homens, mas também da assistência. Logo depois da dança,
o cacique, que fica sentado na frente de sua casa em uma cadeira (com um vice-
cacique de cada lado), levanta-se e faz o discurso. Nas duas ocasiões em que pude
assistir a esse evento, o tema era a viagem que ele havia feito a Brasília onde havia
conversado com dois ministros sobre um projeto de cooperativa que ele estava
implantando na aldeia (cooperativa agrícola, de pesca e de artesanato). Depois do
discurso o suco é servido e, rapidamente, todos se dispersam e voltam para suas casas.
O espaço do ube do cacique é portanto utilizado com o espaço público “interno” na
aldeia. Explico-me. Trata-se de um espaço interno pois nele são expostas e discutidas
questões internas, que dizem respeito aos moradores da aldeia, exclusivamente77.
Além disso, trata-se de um local preservado dos olhares dos Tori do outro lado78. As
danças que se realizam nele são para a diversão da comunidade (homens e crianças
dançam, usam roupas manufaturadas e não se pintam) e não para a exibição ao
público estrangeiro. Para isso está a praça.
Vimos, portanto, que os homens de Porto Txuiri se apropriaram de vários
espaços, para fins diversos. Não quero dizer com isso que as mulheres não freqüentem

77
Quero esclarecer que estes eventos aconteceram em maio de 1999, o que não quer dizer que isso não
mude ou que esse seja um espaço unicamente reservado para esse tipo de evento. Parece que, durante
os três anos em que estive visitando a aldeia, os moradores foram testando, provando, se acomodando
em seu espaço. Não quero transmitir uma idéia de rigidez, descrevo o que pude observar entre 1996 e
1999.
78
No espaço do quintal e da frente da casa do cacique também são organizados os churrascos de Natal
e Ano Novo (ver Fotos 11 e 12).
51

a casa do cacique, por exemplo. É comum ver mulheres com seus filhos (hãwyy
wyrioredu, mães) aparecerem no quintal de Idjarruri, mas essas visitas são feitas mais
especificamente à sua esposa, para pedir-lhe remédios ou algum alimento (açúcar ou
farinha). As jovens idjadoma (moças) não costumam entrar neste espaço
desacompanhadas. Entretanto, meninas, crianças e mulheres, não entram na casa dos
desenhos. Os homens também se apropriaram de um outro espaço em Porto Txuiri: a
praça da Igreja.

3.3.3 - A praça e o rio


A praça é o espaço público por excelência em Porto Txuiri. É nela que se
acolhem os visitantes, e onde a coletividade se reúne à tarde para assistir aos jogos de
futebol. Quando há atos políticos abertos ao público, como foi o caso da inauguração
da aldeia, ou nas comemorações do Dia do Índio, é na praça que são exibidas as
danças (partes dos rituais de iniciação e dos Ijasò) aos convidados (externos: i.e,
políticos, jornalistas etc.). Nestas ocasiões, os homens se pintam e se enfeitam79.
Da praça, observam-se os movimentos entre a Ilha e a cidade de Formoso do
Araguaia, pois dela se enxerga perfeitamente o que se passa na outra margem do rio,
onde estão o bar e a estrada e onde, antigamente, localizava-se o posto telefônico da
TeleGoiás. Na época das chuvas, quando o rio atinge a beira do barranco, é possível
escutar as conversas dos Tori que estão no bar do outro lado, bebendo, esperando o
ônibus ou alguma condução.
A praça, como já disse, é o único lugar onde há um movimento da
coletividade no quotidiano da aldeia. Os jogos de futebol ocupam um lugar
importante no dia a dia da aldeia. Todos os homens, principalmente os jovens
solteiros, os recém casados e alguns novos pais, jogam futebol à tarde80. Os homens
Tori também participam das partidas. Jogam-se várias partidas, três ou quatro por
tarde, com times de cinco ou seis jogadores. Aparentemente, as equipes são formadas
aleatoriamente (nem todos os homens estão sempre na aldeia, alguns podem estar
pescando ou estar na cidade), o que não permite uma organização muito rigorosa das

79
Vi fotos da inauguração da aldeia nas quais até o cacique aparece de rosto pintado. Para os
pronunciamentos, o cacique de Porto Txuiri não se pinta, nem participa da festa, apenas assiste até
chegar a hora do discurso.
80
Em 1996, as mulheres e as crianças costumavam jogar várias partidas antes das partidas dos homens.
Em 1998 e em 1999 não pude mais observar isto. Não sei porque motivo essas partidas não acontecem
mais. No máximo, as crianças jogam futebol dentro da Igreja.
52

partidas e dos times. Porém, há uma exceção. Quando um time de outra aldeia vem
jogar em Porto Txuiri, ele tem de enfrentar três times formados.
Em 1996 e 1997, estes times não existiam. Em 1999, apenas pude saber quem
eram os “donos” dos times. Os três times de Porto Txuiri são, respectivamente: - o
time do Davi (missionário americano das MNTB); - o time dos pescadores (ou do
Tindô, Tori casado com uma professora da escola); - o time do Kraó (mestiço, filho
de uma mulher Tori com um Javaé que já morava em Porto Piauí)81. O fato de eu não
ter conseguido obter a descrição da formação de cada time, e de não ter tido a
oportunidade de ver outros jogos, não me permite analisar em detalhes este fato. No
esquema sócio-cerimonial KARAJÁ esquematizado por Pétesch, o grupo de baixo é o
dos pescadores e caçadores, em oposição ao do meio, da chefia política e religiosa, e
ao de cima dos guerreiros (1993: 372). O que é ainda mais interessante de se constatar
é que as casas do cacique e dos dois xamãs de Porto Txuiri estão situadas no que
corresponderia, em um esquema ideal, ao grupo do meio.
Me parece importante ressaltar que, quando os jogadores de Porto Txuiri
enfrentam um ou vários times de outra aldeia, eles se organizam em times, dirigidos
por três não-índios que ocupam as três posições distintas no espaço aldeão. Nas outras
aldeias KARAJÁ, é no espaço do ijoina que acontecem as principais performances
rituais: as brincadeiras (rituais e jogos rituais). Durante o ritual de iniciação, por
exemplo, os três grupos de praça masculinos (iboò mahãdu, iraru mahãdu e itya
mahãdu) tem seu espaço, sua função e seu tipo de alimentação definido. Cada grupo
é responsável por um tipo de construção (Casa Grande, Casa Pequena e galeria
vegetal) (Pétesch 1992: 374; Lima Filho 1994: 81)82.

81
É interessante notar que, os “donos” dos três times são ou Tori (em dois casos) ou “misturados” (no
caso do Kraó, filho de Tori e Javaé). Outro aspecto interessante é que, cada um desses “donos” mora
em posições diferentes dentro da aldeia: o missionário mora na ponta sul (de cima), o Tindô
(pescadores) mora na ponta norte (de baixo), e o Kraô (“misturado”) mora no meio (itya). Sobre a idéia
de “dono” ver infra.
82
Durante a fase intercomunitária do ritual, os homens da aldeia onde acontece o Hetohykÿ,
representando os seus mortos (worosÿ, mortos socializados que vivem no wabède, aldeia dos mortos)
recebem a visita dos homens de outra aldeia, cada grupo representa respectivamente os mortos de sua
aldeia. Pétesch descreve o caso de Santa Isabel. Os homens da aldeia anfitriã representam os worosÿ de
cima e recebem os worosÿ de baixo (de Fontoura). De fato, a aldeia de Fontoura está situada a jusante
de Sta Isabel. A recepção dos convidados se faz através de uma série de confrontos entre os dois
grupos: na beira do rio, os de cima tentam impedir o desembarque dos de baixo, travam-se lutas (ijesu)
entre indivíduos da mesma classe etária dos dois grupos, os convidados tentam derrubar o grande
mastro erguido pelos anfitriões etc. A recepção dos convidados se faz através do enfrentamento e da
disputa. Cada vitória de um ou outro grupo é festejada pelo público com o mesmo entusiasmo e a
mesma paixão que as partidas de futebol inter-aldeãs. Descrições minuciosas desta fase do ritual
encontram-se em Pétesch (1992: 228-240) e Lima Filho (1994: 85-96;130).
53

O rio também é um lugar de encontro, mas nele se encontram apenas as


mulheres de uma mesma parentela, quando vão lavar roupa ou louça. O banho é
tomado em família, e os jovens casais vão juntos para o rio sós ou com os filhos
pequenos. As vezes, o grupo de homens solteiros reúne-se na praia para tomar banho
ou brincar no rio. Os mais velhos parecem preferir tomar banho em locais mais
afastados, sem serem vistos.
Com exceção de alguns velhos, de um xamã e de crianças pequenas, todos
tomam banho vestidos. As mulheres tomam banho de vestido e os homens de shorts,
as vezes vestindo também a camisa. Isso vai mais longe: cheguei a ver um rapaz que
andava de short pelo quintal da casa, vestir a camisa para ir tomar banho e brincar no
rio. Os KARAJÁ de Porto Txuiri não tomam banho nus em frente à aldeia. Voltarei
sobre este ponto mais adiante.
O rio também é o lugar onde se pesca. Geralmente os homens saem em dupla
para pescar. O produto desta pesca é dedicado principalmente ao consumo interno.
Quando os homens saem para pescar para os Tori, eles saem em grupos numerosos e
preferem pescar e acampar na beira dos lagos, no interior da Ilha. O rio é um espaço
onde, se circula para ir de aldeia em aldeia ou da aldeia para a roça, ou seja, é um
lugar de intermediação. Intermediação entre duas aldeias, entre a aldeia e as roças,
entre os KARAJÁ e os Tori, i.e. também se trata um espaço intermediário entre um
exterior (Tori, turistas, estradas, cidade) e um interior (Ilha, aldeia).

3.3.4 - O outro lado


Do outro lado do rio, estão o bar, a casa do pastor e a estrada. No bar, os
moradores da aldeia podem comprar alguns produtos alimentícios como óleo,
conservas (sardinhas, salsichas), sal, açúcar, café, refrigerantes, assim como fumo e
balas; alguns produtos utilitários como pilhas, gás e cartuchos. É rigorosamente
proibido vender álcool aos Índios mas estes, muitas vezes, pedem para algum Tori
compra-lhes uma ou duas garrafas de cachaça que eles consomem escondidos do
outro lado (perto do bar) ou nas margens do rio83.

83
Na época da seca, em 1996, as mulheres e as crianças juntavam os cacos de garrafas na aldeia e em
volta do bar e os revendiam para o dono de um caminhão que, todo mês, passava para recolhê-las. A
partir de 1997, coincidindo com a abertura da Assembléia de Deus e, depois, com a chegada dos
missionários, o consumo de bebida alcoólica na aldeia diminuiu de forma considerável. Em 1999, o
alcoolismo não parecia ser mais um problema para os moradores de Porto Txuiri.
54

Duas vezes ao dia passa um ônibus (Viação Javaés) na estrada que leva à
cidade de Formoso do Araguaia. De manhã, ele passa apenas para deixar passageiros
e segue para uma cooperativa que fica mais ao sul. Na volta, o ônibus pega
passageiros e os leva até a cidade em uma viagem de uma hora aproximadamente.
Trata-se de uma linha que foi estabelecida na época de Porto Piauí, quando muitos
colonos trabalhavam na cidade ou nas cooperativas da região84. Os KARAJÁ vão para
a cidade quando conseguem dinheiro suficiente para a passagem (que custa R$ 3,50),
ou quando precisam de assistência médica e recebem as passagens da FUNAI. Apenas
os homens vão sós para a cidade; as mulheres seguem sempre acompanhadas pelo
marido e pelos filhos pequenos. Os mais velhos, quando vão receber a
aposentadoria85, preferem muitas vezes pagar um frete, na kombi do missionário ou
no carro de algum pescador, apesar do alto valor cobrado (5 reais por pessoa cobrados
pelo missionário, 50 reais pelo frete por outros).
Até 1998, do lado do bar havia um Posto Telefônico que funcionava o dia
inteiro e onde quatro pessoas trabalhavam: três telefonistas e uma faxineira, todas
Tori86. Duas telefonistas moravam em Porto Piauí, uma delas mudou-se para o Capão
de Coco e a outra, professora da escola, continua morando na aldeia. A terceira
telefonista é esposa do dono do bar e mora em uma casinha do lado. A faxineira
morava em uma fazenda próxima. Em 1996, quando elas atendiam o telefone,
continuavam dizendo “Porto Piauí bom dia...”e , de fato, este espaço que compreendia
o telefone, o bar e a estrada era considerado por todos como Porto Piauí. De alguma
forma, foi o que restou do vilarejo, do mundo ao mesmo tempo estranho e próximo
dos colonos. Esse “pedaço de Porto Piauí” até hoje é, para os KARAJÁ de Porto
Txuiri, uma espécie de ponto de partida para o exterior: a cidade. Para chegar à
cidade, não se circula mais de canoa ou a pé, para cima e para baixo, mas sim
horizontalmente e em “condução”.

84
Na área entre o rio Javaés e a cidade de Formoso do Araguaia está instalada a maior cooperativa
agrícola do Estado da qual faz parte o Projeto Rio Formoso de irrigação (são milhares de hectares de
arroz e milho irrigado pelas águas do Rio Formoso, afluente do Javaés). Para mais informações sobre a
situação geográfica e econômica do Estado remeto a Ajara C., Figueiredo A., Bezerra V. e Barbosa J.
(1991).
85
O FUNRURAL concede aos Índios uma aposentadoria que corresponde a um salário mínimo.
86
A linha e a antena do antigo posto telefônico foram aproveitadas e conectadas ao aparelho de telefax
do cacique, em sua casa.
55

PRIMEIRAS CONSIDERAÇÕES
Vimos portanto que Porto Txuiri não é apenas uma aldeia de Índios
“aculturados” e muito menos um vilarejo de Tori. Quando se instalaram no vilarejo,
os KARAJÁ se preocuparam em restabelecer o esquema linear de suas aldeias de
origem, ocupando as casas de forma seletiva. Isso, ao meu ver, a torna plenamente
uma aldeia KARAJÁ pois, como mostram autores como Pétesch (1992), Toral (1992)
e Lima Filho (1994), é no plano espacial da aldeia que se inscrevem as divisões
sociológicas fundamentais para os KARAJÁ: as divisões no espaço aldeão (alto, meio
e baixo) reencontram-se no ritual e refletem tanto uma organização étnica (Karajá,
Javaé e Xambioá) quanto cósmica (mundo celeste, mundo terrestre, mundo
subaquático). Nas sociedades Macro-jê, e mais particularmente nos casos Jê e Bororo,
as categorias sociais fundamentais estão como que desenhadas no espaço aldeão
(Carneiro da Cunha 1993: 85). A disposição das casas, as divisões que recortam a
aldeia em vários espaços permitindo a presença ou circulação de certas categorias de
pessoas e excluindo outras, a nítida divisão entre vida doméstica e vida ritual (que
também encontra-se marcada espacialmente, geralmente, através de um espaço ritual,
central e uma periferia doméstica - nas aldeias circulares), tudo isso está marcado no
espaço da aldeia (na disposição de seus elementos, sua ocupação, suas funções
distintas e nos nomes usados para cada um deles).
Sem dúvida, a questão da Casa dos Ijasò é problemática. Considerar que o
espaço masculino em Porto Txuiri existe mas está desmembrado e divido entre vários
espaços (a casa do cacique, a casa dos desenhos e a praça) não soluciona tudo, pois é
preciso lembrar que nesta aldeia não se organizam os rituais. Isso, sem dúvida, está
ligado ao seu tamanho relativamente pequeno, à sua constituição recente, e,
principalmente, à ausência de um xamã (hyri) especialista nos assuntos cerimoniais.
De fato, na aldeia Boto Velho (javaé), por exemplo, durante um bom tempo (não sei
ao certo quanto) não havia Casa dos Ijasò, por não haver “especialista” na aldeia. Na
década de 1990, alguns xamãs experientes saíram de Canoanã e foram para Boto
Velho para lá construir uma Casa87.

87
Essas informações foram fornecidas por Rodrigues (1999), em uma carta pessoal. A construção da
Casa é indispensável à realização dos rituais, portanto, onde há Casa, há automaticamente,
possibilidade de realização do ritual. Rodrigues explicou-me que uma das condições necessárias para a
realização do ritual é que as famílias tenham um mínimo de “riquezas” (fartura nas roças, grande
capacidade de pesca e caça) pois todo ritual, tanto o dos Ijasò como do Hetohykÿ, gira em torno da
56

De alguma maneira Canoanã parece servir como “válvula de escape” a esse


problema da ausência da Casa. Os que quiseram ser iniciados foram para Canoanã
onde, desde 1991, realiza-se regularmente o ritual do Hetohykÿ (ISA 1995: 651)88.
Assim, em 1997, três famílias de Porto Txuiri estavam em Canoanã para a iniciação
de seus filhos. Duas nunca mais voltaram. De certa forma, Canoanã forma parte de
Porto Txuiri: é lá que os rapazes são iniciados, e é lá que os mortos são enterrados89.
Talvez pudéssemos considerar Canoanã como mais uma parte desse desdobramento
espacial, pois essa aldeia é a referencia principal das famílias Javaé de Porto Txuiri.
No caso dos Karajá (que são minoria na aldeia) a referencia é Santa Isabel e, em um
caso apenas (uma família), Macaúba. A vida ritual desenvolve-se sempre em
Canoanã, como foi o caso em dezembro de 1997, quando Porto Txuiri estava
praticamente deserto porque muitas famílias estavam na aldeia javaé, assistindo ao
Hetohykÿ.
O próprio discurso dos moradores de Porto Txuiri contêm uma ambigüidade.
Ora eles ressaltam a tranqüilidade da aldeia (e a possibilidade que se tem nela de
observar o movimento do outro lado) como algo positivo que a diferencia das outras,
ora reclamam da falta de agitação no quotidiano devida principalmente à não
realização dos rituais:
Oiara: Quando o senhor morava em Canoana, o que que as pessoas falavam daqui ?
Ijaú: Falavam que aqui era ruim, ruim de morar, que tinha pouca gente e era muito sujo. Mas sujo
aqui não é. Lá é pior, lá tem Posto da FUNAI. É. O cacique de lá não manda, ele é bebedor. Mas aqui
o Idjarruri agüenta, não deixa o pessoal fazer muitas coisas, ele não gosta de Aruanã (Ijasò). Mas é
bom.
Oiara: Mas aqui não tem Casa de Ijasò, falta um pedaço de aldeia ?
Ijaú: É. Não tem casa para o pessoal se reunir. Aqui não tem. É muito parado90 aqui. Não tem nada, a
gente só fica parado aqui, sentado até a hora de dormir, né. De noite você não vê ninguém andando.
O pessoal some para lá, não sei para onde. Acho que só fica na casa do outros vendo televisão.
(Entrevista realizada em Porto Txuiri em maio de 1999).

Concluiu-se portanto que, apesar de existir uma certa continuidade estrutural


em um processo de mudança histórica radical como o de Porto Txuiri, nem tudo

obrigação das famílias (os “ donos dos Ijasò”) envolvidas em alimentar as entidades vindas para a
festa. Rodrigues (1999, com.pessoal) escreveu-me assim: “Quem não tem roça não inicia seu filho no
Hetohykÿ, nem recebe Ijasò de um xamã, o que é também uma grande vergonha”. Não ter roça é
vergonhoso, assim como não ter iniciado seus filhos .
88
Há oito anos esse ritual não era mais realizado do lado javaé da Ilha (ISA 1995).
89
Quero ressaltar que, desde sua inauguração, em 1995, houve apenas uma morte em Porto Txuiri: a
de uma menina de três meses que foi enterrada em Canoanã (para mais detalhes sobre a questão da
ausência de cemitério em Porto Txuiri, ver Bonilla 1997).
57

coincide com o que era antes. Como diz Sahlins, as estruturas modificam-se no
processo de reprodução. O importante, diz ele, para entender a dimensão histórica das
sociedades em questão, não é tanto saber como os eventos são ordenados pela cultura
mas sim, no processo histórico, como a reprodução de um estrutura torna-se sua
própria transformação (op.cit: 8). Em um primeiro momento, a sociedade procura
reproduzir-se da maneira mais idêntica possível, mas, sua própria dinâmica de
reprodução a modifica (op.cit: 71-72): “In the event they do not, the received
categories are potentially revalued in practice, functionnaly redefined. According to
the place of the received category in the cultural system as constitued, and the
interests that have been affected, the system itself is more or less altered. At the
extreme, what began as reproduction ends as transformation. (...) Thus was Cook,
from the Hawaiian view, the returned god Lono. And this was surely reproduction.
On the other hand, the specificity of practical circumstances, people’s differential
relations to them, and the set of particular arrangements that ensue (structure of the
conjuncture), sediment new functional values on old categories. These new values are
likewise resumed within the cultural structure, as Hawaiians incorporated breaches
of tabu by the logic of tabu. But the structure is then transformed.”(op. cit: 67, eu
sublinho).
De um ponto de vista mais geral, esta idéia da mudança na reprodução,
encontra-se no próprio mito de origem dos KARAJÁ que contamos acima. Os
primeiros KARAJÁ reproduzem suas aldeias, de forma menos perfeita, e em
contrapartida precisam se adaptar adquirindo características alheias, e abrir mão de
hábitos e comodidades que tinham no bero hatxi (mundo subaquático). Encontramos
então, no próprio mito KARAJÁ, a idéia da reprodução de estruturas fundamentais da
sociedade acompanhada da inevitável transformação através da dinâmica histórica.
Acabamos de ver como os KARAJÁ procuraram reproduzir sua estrutura a nível
espacial, exporei a seguir como a dinâmica da reprodução implica ela mesma na
transformação. Esta transformação, no caso KARAJÁ, é antes de mais nada uma
transformação corporal. Essa modificação ficará mais evidente na análise das
transformações corporais experimentadas pelos habitantes de Porto Txuiri.

90
Mais uma vez nota-se a importância da oposição mobilidade/imobilidade. Este é mais um elemento
que permite pensar que o mito informa, de alguma maneira, todo o processo de ocupação de Porto
Txuiri.
58

PARTE 2: CORPO E TRANSFORMAÇÕES

Os KARAJÁ parecem ter se instalado em Porto Piauí dentre outras coisas, por
terem visto aí a possibilidade de vivência de um processo de transformação. Se a
fundação da aldeia foi, certamente, um ato político, não podemos deixar de ver nela a
reencenação de um episódio mítico, ao modo dos seres que vieram do fundo das
águas e se instalaram na superfície terrestre.
Os Javaé, os Karajá e os Xambioá que decidiram morar em Porto Txuiri,
abriram mão dos rituais, da Casa dos Ijasò e de muitas outras coisas presentes nas
outras aldeias e das quais todos afirmam sentir saudades. Mas eles também deixaram
de lado o alcoolismo e puderam experimentar uma vida que eles mesmos definem
como simultaneamente “sossegada” e “desenvolvida” (esse sossego e
desenvolvimento são definidos por eles como a ausência de alcoolismo, a facilidade
de transporte, o acesso à energia elétrica e ao conhecimento das “coisas dos Tori”,
seja através da escola, dos Tori que ainda moram na aldeia, do cacique e de sua
família, ou dos missionários). Assim como os primeiros KARAJÁ, eles tiveram de
tornar-se KARAJÁ novamente, fabricando um espaço próprio onde não havia senão
diferença. O processo de apropriação de Porto Piauí é autenticamente KARAJÁ,
mesmo que politicamente motivado ou informado.
Os KARAJÁ se apropriaram de um espaço alheio e, até certo ponto,
desconhecido, assim como nos tempos míticos se apropriaram da superfície terrestre
na qual construíram suas aldeias, à imagem das aldeias subaquáticas e celestes. Na
superfície, já existiam outros seres, com os quais tiveram que aprender a lidar,
roubando-lhes técnicas e saberes. Parece que o processo de apropriação de Porto Piauí
ofereceu uma oportunidade encantadora de reviver o mito de criação da humanidade.
Esse processo aconteceu, de certa maneira, como um processo “virótico”. Entendo
por “virótico” o processo pelo qual algo pode se reproduzir em um ambiente
hospedeiro, mantendo a sua continuidade e podendo sofrer mutações (Aurélio
eletrônico, 1996).

Veremos a seguir que dos mesmo modo que os KARAJÁ de Porto Txuiri
apropriaram-se de um espaço físico estranho: o vilarejo de Porto Piauí, e o
transformaram em Porto Txuiri, aldeia KARAJÁ, também o fizeram com diversos
59

‘espaços’ dos Tori tais como seus alimentos e práticas corporais, suas crenças
religiosas e seu discurso político. Sempre pensando no mito, é interessante perceber
que essa reprodução não se realiza como um simples decalque, cópia estática do
passado, mas sim como um processo criativo que incorpora e transforma para melhor
reproduzir. Como diz Rodrigues : “A resposta ao contato é vista como uma
improvisação criativa baseada em categorias prévias, havendo um permanente
diálogo entre o velho e o novo, entre o que existia anteriormente e as mudanças
introduzidas pelo contato com outra sociedade.”(1999: 9).
No que diz respeito ao corpo, assim como os primeiros KARAJÁ tiveram que
mudar seus corpos, adquirindo e incorporando características e qualidades dos seres
terrestres, para adaptar-se à nova vida na superfície, os KARAJÁ de Porto Txuiri
tiveram de se apropriar de algumas características dos Tori para adaptar-se à nova
vida “civilizada”.
60

CAPÍTULO 1 - O CORPO KARAJÁ

“Gosta o carajá, de pintar-se com urucum e cobrir o corpo com os mais caprichosos arabescos com
tinta de genipapo.(...) Aos albores da puberdade, meninos e meninas são submetidos à “marcação a
fogo”, na região zigomática, logo abaixo dos olhos, dois círculos feitos com a orla do cachimbo em
brasa. Na ferida recente é pingado o genipapo que fixa indelévelmente a tatuagem. Furam as orelhas
das mulheres e, nos homens, o lábio inferior. (...) Nas orelhas costumam trazer brincos feitos com
penas de araras e dentes de capivara. Usam, tanto homens como mulheres, longas cabeleiras que
descem pelas costas, aparadas na testa (...). (Aureli 1962: 23)

1.1 - Corpos, peles e almas91


Voltemos ao mito. Vimos que, chegando no mundo terrestre os KARAJÁ
tiveram que enfrentar, por um lado, os kuni (espíritos maléficos solitários) e, por
outro lado, os ixÿju (estrangeiros), os aõni (monstros) e os ixÿju kuni (espíritos dos
mortos estrangeiros). Os homens também tiveram de aprender a se movimentar para
caçar, pescar, fazer roças, construir aldeias, visitar parentes etc. Era preciso ser ágil,
forte e leve. Para isso, os KARAJÁ precisaram transformar seus corpos, usando
técnicas corporais específicas de aligeiramento e de treinamento (Pétesch 1993: 367-
368). Exporei agora, brevemente, o que é o corpo para os KARAJÁ e como este é
construído.
O corpo KARAJÁ é constituído de quatro elementos essenciais. Em primeiro
lugar existe o tykytyhy, a “pele verdadeira”, a alma que, materializada pelo corpo,
torna-se invisível após a morte e a putrefação da carne.
Em segundo lugar, há o tykytyby, a “pele-velha” cujas particularidades
veremos a seguir. Segundo Rodrigues (1993: 48) o corpo é “vitalizado” por uma
substância energética (kyty) associada às substâncias corporais (sangue, sêmen, leite,
suor) e, mas particularmente ao “cheiro forte” destas, que a autora compara ao raka
dos Bororo (1993:48)92. O que contém e recobre, esses três elementos é o detyky, a
“pele da carne”, i.e. a pele visível ou, simplesmente o tyky (invólucro corporal).
Temos, portanto, dois tipos de alma (“pele-verdadeira” e “pele-velha”), um princípio
energético (kyty) e um invólucro corporal (tyky).
A palavra “corpo” poderia, segundo Ehrenreich (1894:8) traduzir-se por wa-
uma, i.e. “meu corpo” que, segundo Pétesch, no sentido restrito designa o tronco (da
cabeça às pernas) (Pétesch 1992:485). Para Rodrigues (1993: 72) o termo üma de fato

91
Quero lembrar que os dados apresentados aqui são extraídos da dissertação de Rodrigues (1993) que
diz respeito ao subgrupo Javaé, e de Donahue (1982) sobre os Karajá. Podem existir importantes
diferenças entre os subgrupos que, até onde eu sei, não foram exploradas até hoje.
61

designa o corpo, enquanto tyky designaria a pele, a roupa, o invólucro, a vagina, mas
também, em um sentido mais largo, o corpo. O que me parece importante reter aqui é
que o termo para pele ou invólucro, tyky, adquire vários significados, segundo o
contexto. Ele designa (associado com uma palavra complementar) dois tipos de alma
(“pele verdadeira” que desaparece com o morto, e “pele velha” que é reciclada), mas
também o corpo como invólucro, como cobertura da carne, das almas e das
substâncias corporais. Veremos que essa idéia de invólucro reencontra-se quando se
fala em roupas manufaturadas. Estas também são designadas pelo termo tyky, pele.
A “pele verdadeira” (tykytyhy) seria uma espécie de alma que pertenceria
apenas ao indivíduo e apodreceria após a morte, tornando-se então invisível. Cada
KARAJÁ possui sua “pele verdadeira” que, depois da morte, descerá para a aldeia
dos mortos (wabedè), situada embaixo do cemitério onde o corpo será sepultado. Lá,
a “pele verdadeira” será recebida pelo grupo dos mortos (worosÿ mahãdu). Mais
tarde, o grupo dos mortos decidirá o destino da tykytyhy. Esta será condenada a
permanecer no wabède, ou poderá seguir para o mundo subaquático ou celeste
(Rodrigues 1993: 390-392).
A segunda alma é a “pele velha” (tykytyby), muitas vezes traduzida como
“sombra”. Trata-se de um tipo de alma/sombra, independente da carne. Com efeito,
ela pode desprender-se do corpo e do invólucro corporal para percorrer os outros
níveis cósmicos (mundo celeste e subaquático)93. A “pele velha” não está
exclusivamente ligada a uma pessoa e não desaparece depois da morte. A “pele
velha” se transmite. Ao nascer, a criança recebe uma “pele velha” (tykytyby) que o
xamã introduz em seu corpo. Essa mesma “pele velha”, recebida pela criança,
pertenceu a um KARAJÁ já falecido. Todo ser humano recebe uma “pele velha” ao
nascer, mas nem todas as “peles velhas” são recuperadas e reintroduzidas em novos
corpos porque, há mais “peles velhas” do que vivos (op.cit.1993: 83).
Depois da morte, a “pele velha” de uma pessoa se transforma em kuni, alma
errante (que chamei de alma “não socializada” em oposição aos worosÿ que vivem na
aldeia dos mortos). Quando alguém morre na aldeia, o período de luto (que pode
durar de uma semana a um mês) é particularmente perigoso, sobretudo para os
parentes do morto, pois o kuni procura companhia e persegue os vivos para devorá-

92
A utilização de metáforas físicas tal como a da “energia” é certamente discutível mas não pretendo
abordar esta questão aqui.
62

los. Durante o período de luto (sabina) os parentes do morto levam comida ao


cemitério para satisfazer o kuni (op.cit 1993: 366-367). Enquanto isso, o xamã
procura contê-lo, calmá-lo pois se trata de um ser extremamente móvel e instável.
Mas o perigo é tão grande que, até o final do luto, os parentes próximos têm de evitar
circular pela aldeia, tomar banhos no rio ou ir para a roça. Antigamente, o enterro
secundário consistia em juntar os ossos limpos do defunto em uma urna funerária,
trancando nela o kuni (controlando a sua capacidade de movimento) e assegurando
assim a tranqüilidade dos vivos (op.cit 1993:383).

1.1.1 - A fabricação do corpo


Os KARAJÁ consideram que o feto é formado unicamente pelo sêmen. A
mulher recebe o sêmen em sua barriga e este formará pouco a pouco o feto. Para isso,
várias relações são necessárias, pois a boa formação da criança depende do aporte
regular de sêmen até que a barriga começe a crescer visivelmente94. A partir de então,
o intercurso sexual tem de ser interrompido, pois um excesso de sêmen poderia
provocar a formação de gêmeos (Donahue 1982: 104, 106). O sêmen e outras
substâncias corporais seriam concebidos como a materialização da energia vital
(Rodrigues 1993: 53). Desta forma, a criança receberia energia vital de seus pais
(primeiro de seu pai, e mais tarde, através da amamentação, de sua mãe) para se
constituir, enquanto estes liberariam e perderiam uma quantidade importante de
energia durante e após a concepção (op.cit 1993)95.
Segundo Donahue (1982:103), para os Karajá não existe um momento
específico a partir do qual um ser é considerado social; trata-se de um acontecimento
progressivo. Pouco a pouco vai se socializando a criança, através de marcações
corporais, assim como do ensino ao respeito de regras alimentares correspondentes ao
gênero e à fase de crescimento. Da mesma forma, a convivência com parentes, a
partilha de alimentos e a proximidade física transformam os corpos, socializando-os e
fazendo-os pertecerem a uma determinada comunidade de substância (constituída
pelos parentes e pelas pessoas próximas).

93
Entretanto, em vida, apenas os xamãs conseguem tal façanha e visitam, regularmente, os diferentes
níveis cósmicos.
94
Trata-se de uma concepção comum a diversas sociedades ameríndias. É o caso, por exemplo, dos
Suyá, grupo Jê setentrional (Seeger 1980b: 129).
95
Rodrigues (1993) fundamenta-se nesta comparação com o raka dos Bororo para desenvolver o seu
argumento sobre as substâncias corporais enquanto materialização da energia vital.
63

O ato de nascer é chamado, segundo Donahue (1982:112), reakre, i.e. o


mesmo verbo utilizado para dizer “correr”96. O parto acontece geralmente em uma
parte da casa onde mora a mulher, especialmente reservada para o evento, e é feito
quase sempre pela sua própria mãe ou uma mulher mais velha (saanÿkÿdu - parteira,
raizera), especialista em retirar os restos do parto do ventre da mulher (Donahue
1982: 113, Rodrigues 1993: 69)97. Todo parto é realizado em cima de uma esteira. O
cordão umbilical é cortado por parentes femininos da mãe (eZ ou yZ98), com um
pedaço de taquara afiado, sendo em seguida enterrado com os restos do parto em um
buraco no mato. O recém-nascido é lavado com algodão molhado em água morna
(pela FZ ou pelas MM, FM99) e seu corpo é inteiramente pintado com urucum (Bixa
orellana). O urucum protege a criança de doenças assim como o genipapo (Genipa
americana) o fará em etapas posteriores da vida (Rodrigues 1993; 70-71 e Donahue
1982:113). Um informante explicou-me, em Porto Txuiri, que o urucum é passado no
corpo da criança e deixado “até secar e descascar”. Essa técnica seria utilizada para
“limpar” a criança do sangue e das impurezas do parto100.
Ao nascer, a criança não está completamente constituída. O corpo do recém-
nascido é moldado, esticado e seu crânio é puxado e massageado por um avô (FF ou
MF), ou tio (MB ou FB), com as mãos quentes, para dar-lhe forma (op.cit.1982:115).
Nos primeiros dias de vida as orelhas da criança são furadas e nelas se introduz um
pequeno cordão de fibras, que será mais tarde substituído por brincos de penas e dente
de capivara. Desde as primeiras semanas de vida, atam-se nas articulações das pernas
(tornozelos e joelhos) dos recém-nascidos tiras de algodão, tingidas com urucum. Isso
asseguraria o bom crescimento da criança e, principalmente, o fortalecimento de suas
pernas (op.cit. 1982:116)101. Segundo Donahue (1982: 116), após o parto, também
removem-se os pêlos das sombrancelhas e dos cílios das crianças102.

96
Mais uma vez vemos a importância da mobilidade como característica da humanidade terrestre e da
posição mediana desta na sociocosmologia KARAJÁ. Essa importância foi revelada e explorada por
Pétesch (1992, 1993).
97
Essa mulher recebe um presente em troca de sua assistência ao parto (op.cit 1993:69). Desconheço o
valor e a natureza do presente.
98
Irmã mais velha ou mais nova.
99
A mulher que lava a criança também é recompensada com um presente (op.cit 1993: 70).
100
Sobre as propriedades “energéticas” do urucum e do genipapo, ver Rodrigues (1993: 77-78).
101
Esta também é uma prática comum entre as sociedades amazônicas. Os vizinhos Kayapó, por
exemplo, amarram tiras de algodão nas articulações da criança para fortalecê-las (Turner 1995: 155-
156).
102
Segundo o autor essa prática teria desaparecido.
64

Enquanto o corpo da criança é formado, construído e fortalecido pelos seus


parentes próximos, os pais devem obedecer a uma série de regras e proibições estritas
cujo objetivo, segundo Rodrigues (1993: 68-70), é compensar a enorme perda de
energia que a geração e o parto de uma criança provocam103. A mãe não pode
consumir carnes ou peixes, e sua dieta se limita a frutas, vegetais e mel. Ela tem que
ficar em reclusão, limitando ao máximo seus movimentos (op.cit 1993, Donahue
1982: 119).
O pai não pode caçar nem pescar e, alguns dias após o parto, pede a outro
homem que lhe escarifique as costas, as pernas e os braços com o dente do peixe
cachorro. Vômitos são provocados regularmente pela introdução de uma varinha na
garganta. Para terminar, o pai deve ingerir uma mistura de água e pimenta vermelha.
Todas essas atividades têm como objetivo fortalecer o corpo dos pais, enfraquecido
pela criação, gestação e pelo parto de uma criança (Donahue 1982:122)104.
Técnicas semelhantes de fortalecimento e aligeiramento corporal também são
praticadas pelos homens durante os rituais (Lima Filho 1994:67, 77) e, antigamente,
eram praticadas pelos guerreiros que haviam matado algum inimigo (Pétesch 1992:
295-198). Toda mudança na ordem social (nascimento, morte, guerra, ritual) é
portanto controlada e reordenada a partir de técnicas corporais específicas105.

1.1.2 - As fases de crescimento e classes etárias

103
Para uma descrição detalhada das proibições pós-parto e sobre a couvade, ver Donahue (1982; 118-
122), Pétesch (1992: 483-484) e Rodrigues (1993: 68-70).
104
É interessante notar que, para os KARAJÁ, a magreza e mobilidade estão ligadas à ingestão de
grande quantidade de alimentos e sua expulsão, enquanto a ingestão de pequenas quantidades e sua
contenção estão ligadas à imobilidade e à gordura (lembremo-nos dos povos subaquáticos que comem
em pequenas vasilhas mas não expelem nada, nem se movem e são gordos, e também das mulheres que
são os seres menos móveis e não praticam todas as técnicas de aligeiramento corporal) (Pétesch 1993:
368).
105
Para uma análise aprofundada deste tipo de técnicas (no caso xinguano) ver Viveiros de Castro
(1987).
65

A fase de crescimento da criança é alvo do interesse de todos os familiares.


Várias substâncias são passadas sobre seu corpo para beneficiar o crescimento, a
força e a saúde. É dada uma atenção especial aos joelhos, que são a garantia da
mobilidade do adulto. Donahue (op.cit: 97-98) estabelece o seguinte quadro para
resumir as diferentes fases de crescimento e formação da pessoa Karajá106:
Phase I: Criança pequena - sem Bodu (iniciado): período posterior à
diferença de sexo iniciação, cabelo cortado.
Tohouã : bêbê que mama no peito Weriribo (jovem/guerreiro).
Wyodu : bêbê que senta no colo Mulher
Rambidu : bêbê que senta sozinho Harubodu (jovem reclusa): reclusão
Tiradu : bêbê que engatinha após primeira menarca.
Ijadoma (moça)
Fase II: Da criança que anda até a
iniciação/menstruação Fase IV: Da fase adulta ao idoso
Meninos Homem
Weryry(menino) - genérico Hãbu: homem casado
Weryryriore (menino criança) - que Hãbu Ijoihykÿ: homem casado com
anda até 6 anos aprox. filhos
Weryryhykÿ (menino grande) - Ulabie: avô
testículos começam a crescer (9 a12 anos) Matuari: velho
Meninas Mulher
Hirari (menina) - genérico. Hawykÿ: mulher casada
Hiraririore (menina criança) - que Hawykÿ wyrioredu: mulher casada
anda até os 6 anos aprox. com filhos
Hirarihykÿ (menina grande) - peito Ulahi: avó
começa a crescer (9 a 12 anos) Senadu: velha

Fase III: Da iniciação ao casamento


Homem
Jyre (iniciando): primeira fase da
iniciação, lábio perfurado.

106
Modifiquei nesta tabela os termos usados para avô (Ulabie) e para avó (Ulahi) e para menino
(weryry) para manter a mesma grafia ao longo do trabalho.
66

Antes mesmo da criança nascer, ela recebe duas séries de nomes, uma
masculina e outra feminina, de seus avós bilaterais (ulabie/ulahi). As duas séries
podem compor-se de nomes dos próprios avós e/ou de nomes de pessoas já falecidas
(Pétesch 1992: 402). Se um menino nasce, a série masculina lhe será atribuída, se for
uma menina, ela receberá a série feminina. Apenas os que deram os nomes
efetivamente atribuídos à criança serão retribuídos com um presente107.
A primeira marcação do corpo (depois da perfuração das orelhas) se faz
através da perfuração (rurena) do lábio inferior dos meninos (weryry hykÿ), quando
estes atingem aproximadamente a idade de 8 ou 9 anos108. A perfuração pode ser feita
durante o Hetohykÿ (rito de iniciação dos meninos) ao mesmo tempo que os meninos
maiores são efetivamente iniciados109. A iniciação propriamente dita acontece um
pouco mais tarde, quando os meninos atingem a puberdade (10-13 anos). A
possibilidade de entrada na Casa dos Homens adquire-se ao longo de uma segunda
fase de iniciação. Os weryry hykÿ passam então a ser jyre (ariranha), seus corpos são
inteiramente pintados de preto (genipapo) e seus cabelos são raspados. A ariranha
(Pteronura brasiliensis), assim como os jovens jyre, representa para os KARAJÁ, a
combatividade, a agressividade e a rapidez dentro e fora d’água. Pouco a pouco, os
cabelos crescem, a pintura “vai se abrindo”, deixando mais espaços não-pintados
sobre os braços, ombros e rostos (Toral 1992b: 204). Era também ao longo desta
etapa que os rapazes (jyre e bodu) recebiam o cordão peniano (noò tehana) que, hoje
em dia, não é mais utilizado (Pétesch 1992: 209).
Depois do rito de passagem, os novos integrantes da Casa dos Homens, os
weryrybo, amarram seus cabelos em um rabo de cavalo com tiras de algodão (raòtue)
e têm seus rostos tatuados com a marca do omaryre (dois círculos gravados nas
bochechas com a beira do cachimbo em brasa e cobertos com genipapo e cinza de
fundo de panela, que deixam uma marca azulada na pele) (Pétesch 1992: 209)110.

107
Desconheço o tipo de presente que se dá nestas ocasiões.
108
A idade pode variar muito, dependendo das circunstâncias, um menino de seis anos pode ter o lábio
perfurado se, nesse momento, sua família tem riquezas suficiente para bancar a festa, e, se isso
coincidir com a realização de um Hetohykÿ na aldeia. Um caso parecido é descrito por Lima Filho
(1994).
109
Os diferentes tipos de labretes introduzidos no lábio inferior dos meninos e homens estão descritos
em Krause (1911 apud Pétesch 1992: 488, nota 10).
110
Segundo Pétesch (1992: 486-487), rure significaria gravar, marcar, e oma seria um termo genérico
para designar um tipo de peixe, mas também, se referiria ao círculo amarelo situado na cauda do peixe
tucunaré (Cichla sp.). Talvez se possa ver nisso uma forma de lembrar a origem aquática dos KARAJÁ
terrestres.
67

As meninas têm suas faces tatuadas após a primeira menstruação. Nesta etapa
da vida, as hirari hykÿ ficam aproximadamente um mês em reclusão em uma parte
separada da casa materna. Seus movimentos restringem-se ao espaço da casa de onde
elas só podem sair à noite para tomar banho no rio sempre acompanhadas da mãe ou
de uma parente próxima. Elas se tornam então ijadoma (moça) passando a usar a saia
de entrecasca. Elas podem se casar e dançar com os Ijasò (entidades mascaradas que
vêm dos mundos aquático e celeste) quando estes visitam a aldeia (Donahue 1982:
130-131).
A alimentação dos jovens e a etiqueta na hora da refeição também são
importantes. Segundo Rodrigues (1993: 117): “Moças e rapazes estão sujeitos a uma
série de normas que envolvem a posição correta de dormir, de comer, de andar, de se
sentar, de remar e tudo o mais que envolva o uso do corpo. Aos rapazes e moças
sempre é reservada todos os dias a parte central dos peixes, considerada a melhor
parte, enquanto os velhos comem a cabeça e o rabo. (...) O pirarucu, considerado
peixe nobre, só é comido pelos weryrybó e ijadoma, para ‘criar força e ficar sadio e
saudável’.”
Segundo Rodrigues (1993:129), os jovens iniciados e as moças novas
representam o ponto máximo do acúmulo de energia, estocada durante toda a infância
e ainda não perdida através das relações sexuais e da reprodução. A juventude é o
auge da vida. É nessa época da vida que os KARAJÁ valorizam mais a “beleza”: as
ijadoma passam o dia enfeitando-se e pintando seus corpos para dançar com os Ijasò
enquanto os weryrybo podem enfeitar-se com as mais exuberantes coifas de
plumas111. Depois do casamento, e principalmente após o nascimento, os adornos
corporais e pinturas são progressivamente abandonados (Rodrigues 1993: 125).

1.2 - O xamã: corpo e poderes exclusivos


O xamã (hyri) é uma figura central da sociedade KARAJÁ. É ele que
estabelece a comunicação entre os diferentes níveis cósmicos, controlando as forças
sobrenaturais, curando e provocando doenças (Donahue 1982: 217). Vimos que a
“pele velha” (tykytyby) dos xamãs é a única que possui o poder de viajar através dos
vários níveis cósmicos que descrevemos acima. O xamã viaja para o bero hatxi

111
Essa época da vida correspondente a um estrito controle da conduta, tanto dos rapazes como das
moças, também caracteriza-se pela “vergonha” (Rodrigues 1993: 120).
68

(mundo subaquático) ou para o biu-e-tyky (mundo celeste) através do sonho (rasi)


(Rodrigues 1993: 143-144). Sua “pele velha” atinge o mundo celeste seguindo o
caminho da via láctea. Lá, ele consulta as “peles velhas” dos xamãs falecidos, ou o
poderoso Xibure (Grande Xamã), herói transformador que, nos tempos míticos,
exercia seus poderes na superfície terrestre (Donahue 1982: 220). O xamã é aquele
que vê e ouve112. De fato, os hyri enxergam tudo, tanto no mundo terrestre (os peixes
na água, os bichos no mato, as pessoas em suas casas) como nos outros mundos. Mas,
para ser um bom hyri, também é preciso saber diagnosticar. Um xamã, informante de
Donahue (1982: 220), explicou-lhe que, quando esteve pela primeira vez no mundo
celeste, Xibure cuspiu em suas mãos e lhe pediu para engolir esse cuspe. Assim, ele
adquirira o poder de diagnosticar corretamente as doenças.
Pode-se nascer com o dom de visão mas, na maioria dos casos, ele se adquire
através de um longo aprendizado. Existe uma técnica para “abrir os olhos” dos futuros
xamãs, e outra para “fechar os olhos” da crianças e pessoas que possuem esse dom
mas não desejam continuar “vendo” (Rodrigues 1993: 146). Quando uma pessoa
possui o dom de visão ela pode enlouquecer pois esse dom a faz enxergar tudo o que
coexiste com o mundo visível: espíritos (kuni) e monstros (aõni), seres aquáticos e
celestes. É preciso portanto domesticar esse dom e transformá-lo em saber.
Uma pessoa pode virar xamã quando é atacada por uma entidade aõni ou
ijasò, e é convidada por ela a se tornar hyri. As entidades “atacam” de várias formas.
Em primeiro lugar, elas podem tomar o corpo da pessoa que, então, não se reconhece,
não reconhece mais a própria família, nem o próprio corpo. Isso provoca o que os
KARAJÁ chamam de itxÿtere (doideira), comportamento do qual falaremos em mais
detalhes no último capítulo. Esse “ataque” pode ser acompanhado por uma visão.
Indo para a roça, caçando ou durante uma excursão de pesca, pode-se ter a visão de
um aõni, que, segundo Toral, é acompanhada por uma música de fundo (o autor não
especifica de que tipo de música se trata). A vítima procura então um xamã mais
experiente e, depois do aprendizado, passa a ser o dono da entidade que, antes, a
atormentava (Donahue 1982: 215; Toral 1992: 222). Cada hyri está associado a uma

112
Não se trata de uma característica exclusiva dos KARAJÁ. Muitas sociedades ameríndias
consideram que o xamã é “aquele que vê”, que ele possui o dom de visão e enxerga os outros níveis
cosmológicos assim como os seres sobrenaturais que povoam o cosmos. É o caso, por exemplo dos
Wari’ de Rondônia (Vilaça 1999:12), e, também, dos Suyá (Seeger 1980: 45, 48) cujos feiticeiros
“vêem tudo”, e que associam o olho ao que é perigoso e anti-social.
69

entidade específica (Ijasò e/ou aõni) e à “pele velha” de um xamã falecido (Toral
1992: 225)113.
A aprendizagem é longa e se compõe de várias técnicas e fases que incluem
ingestão de alimentos específicos (como o fígado cru de um morto recente), a
abstinência sexual, a aplicação de substâncias vegetais sobre os olhos e o corpo, e a
fabricação, pelo mestre, dos instrumentos necessários à prática do xamã (Rodrigues
1993: 146). O xamã, uma vez formado, adquire o seu saber durante suas viagens
cósmicas, consultando os seres sobrenaturais (aõni, ou “bichos”) e, principalmente, os
seres celestes que detêm o conhecimento xamânico. Além disso, os xamãs podem se
comunicar com o mundo vegetal e se transformar em animais: onças, cachorros,
algumas cobras, boto, pirarucu e alguns outros peixes e tatus. Geralmente, desconfia-
se estar diante de um xamã quando o animal se encontra em um lugar inesperado, fora
do seu habitat habitual, ou por um comportamento seu fora do comum (op.cit 1993:
148). Contaram-me, por exemplo, a história de um homem que, tomando banho, havia
perdido seu relógio na água. Desesperado, foi visitar o xamã da aldeia, contou-lhe a
história e disse que daria qualquer coisa em troca de seu relógio. O xamã lhe disse
que deveria voltar na manhã seguinte no mesmo lugar onde havia tomado banho. No
dia seguinte, o homem foi para beira do rio e encontrou o relógio na beira d’água. Na
verdade, o xamã havia se transformado em peixe e recuperado o relógio no fundo da
água. O homem retribuiu a sua ajuda dando-lhe um presente.
Os xamãs têm outras funções na sociedade, o que os leva também a se
especializar. Segundo Donahue (1982: 222), alguns apenas curam e diagnosticam
doenças114, outros trazem os Ijasò para os rituais, outros dedicam-se exclusivamente à
enfeitiçar pessoas, enquanto outros se preocupam em controlar as forças naturais e
sobrenaturais que afetam as pessoas e a aldeia: os ventos, as chuvas e alguns animais.
Existem, portanto, xamãs mais poderosos do que outros. Todo serviço prestado por
um hyri tem de ser retribuído. O valor do pagamento varia em função do serviço, mas
também da vontade do hyri. Este pode exigir o que quiser pois possui o poder de

113
É interessante notar que, no caso KARAJÁ, a parceria de um xamã com um ser sobrenatural (aõni
ou ijasò) ou, como as chama Pétesch (1987), com divindades (ijasò), parece ser mais comum do que
com um animal ou com um tipo de animal específico: onças, pássaros etc.
114
Existem pessoas que se dedicam apenas a curar, mas não mantêm nenhuma relação com o
sobrenatural. São “curadores” (ohotibedu) ou “raizeros” (neste caso são muitas vezes mulheres) que
conhecem os remédios (mona) feitos a base de raízes e ervas (op.cit. 1982: 224).
70

provocar a morte. Os presentes mais valorizados vão das penas de arara vermelha ao
rádio de pilha, à rede, à canoa, ou ao freezer (Donahue 1982: 224-225)115.
Para Pétesch (1992: 326-327, 1993: 371), o xamanismo nesta sociedade
macro-jê, fundamenta-se no poder de controlar o movimento, característica principal
do mundo terrestre. De fato, o xamã é o mestre do vento (materializado na fumaça do
tabaco utilizado para as curas) e possui, segundo a autora, um espírito alado que não
só viaja, mas também move os diferentes níveis cosmológicos, aproximando-os do
nível terrestre para atingi-los mais facilmente. Isso o torna o ser mais móvel entre os
humanos terrestres116. Donahue (1982: 205-207) e Toral (141-145; 226-227),
enfatizam a capacidade de transformação que o xamã possui. Ao meu ver, a
capacidade de deslocamento entre corpos também pode ser entendida como
capacidade de movimentação.
O único ser que possui o poder de controlar esse movimento e as
transformações de seu corpo é o xamã. Essa capacidade de movimento e
transformação opõe-se a imobilidade e a capacidade de conservação da chefia
(Pétesch 1993: 376). De fato, as crianças especiais (iòlò), preparadas para assumir a
chefia eram preservadas de qualquer contato com a terra e a animalidade e mantidos
na maior imobilidade possível117. Segundo Pétesch, o chefe tradicional também se

115
Os instrumentos do xamã são: a varinha simples (hitxiwa) de cana brava, ou a varinha (obe)
decorada com penas de arara vermelha (que segundo Rodrigues (1993: 148) é chamado de “espião”, “o
que é capaz de ver”) , e o weru, chocalho decorado como se fosse uma cara, com olhos e boca, com o
qual o hyri vê a doença. Outro objeto importante é uma cabeça de urubu-rei (rararesa), que o xamã
passa na frente de seus olhos e que o faz enxergar melhor. Os que se dedicam apenas aos feitiços usam
também flechas miniaturas (wyhy), pequenos ossos, e bonecos antropomórficos (op.cit. 1982: 226-
227).
116
O elemento móvel, segundo Pétesch (1992, 1993: 371), é característico do nível mediano da
estrutura sociocosmológica dos KARAJÁ. Tanto no nível territorial e étnico (os Javaé), quanto no
edifício cósmico (mundo terrestre), o nível mediano é móvel e exerce a função de centro mediador (a
autora explica também que os xamãs pertencem, tradicionalmente, ao “grupo do meio” das aldeias
enquanto os Javaé possuem a feitiçaria mais poderosa).
117
Alguns autores descrevem o iòlò como sendo a liderança tradicional por excelência (Lipkind 1948:
186). São crianças especiais, meninos (e/ou meninas, segundo alguns autores) que recebem uma
educação especial e que são treinados para liderar (Toral 1992: 91, Pétesch 1992: 316). Trata-se, em
princípio, do filho mais velho de um chefe (ixÿdinodu) que, desde seu nascimento é preparado, em sua
casa materna, para ser o sucessor de seu pai. Estas crianças andam sempre muito enfeitadas e vivem em
reclusão em sua casa (não podem participar de atividades quotidianas, nem serem expostas à vista de
todos); caracterizam-se por levar uma vida imóvel, ficam sentadas em um banquinho especialmente
feito para elas que é colocado sobre uma esteira (como os moradores do fundo das águas). Quando têm
que se deslocar pela aldeia, elas são carregadas nos ombros por tios (MB ou FB), pois não podem
entrar em contato com o chão (Pétesch 1992: 375). O tempo da reclusão durava até o iòlò ter um filho,
quando se tornava então, efetivamente chefe e, por sua vez, “pai de iòlò” (iòlò tyby). Assim, o chefe
era uma espécie de representação terrestre da humanidade aquática e celeste, imóvel e permanente.
Esse tipo de preparação para a chefia teria desaparecido e iòlò teria se tornado apenas um nome
próprio.
71

desloca sobre os ombros de algum afim (geralmente marido da filha). Ela enfatiza o
aspecto estático da chefia política e cerimonial (1992: 322-323) opondo-a à natureza
móvel do xamã.
É importante lembrar que o poder do xamã passa pela domesticação de um
dom natural (de visão) e/ou um aprendizado de saberes que se adquirem fora do
espaço social aldeão, seja no mundo celeste ou no mundo aquático, enquanto a chefia
é hereditária, passando-se de pai para filho (mais velho) e conservando-se no seio das
mesmas famílias ou facções.
72

CAPÍTULO 2 : O CORPO COMO LUGAR DAS TRANSFORMAÇÕES


“Il n’est rien de plus mystérieux que le destin d’un corps.”
Cioran (1995: 1493)
2.1 - Corpo ameríndio e transformações
Vimos o quanto o corpo é central na construção da pessoa KARAJÁ. Esta
centralidade do corpo não é uma característica exclusiva dos KARAJÁ. De fato, este
é um princípio essencial para todas as sociedades ameríndias (Seeger, Da Matta &
Viveiros de Castro 1979) e representa, portanto, um meio de acesso privilegiado às
estruturas fundamentais dessas sociedades (op.cit 1979).
Segundo Donahue , os KARAJÁ não consideram que exista um mundo real
em oposição a um mundo sobrenatural invisível. Segundo o autor, os KARAJÁ
concebem estes dois mundos como parte de uma relação transformacional: “a picture
of a continual back and forth - transformations from one to the other . They are the
same thing, only different; something along the lines of a liquid becoming a gas and
vice-versa with changes in temperature.”(1982: 205). O xamã seria aquele que
controla as forças que permitem a transformação entre esses dois estados, como por
exemplo, entre ele e algum animal ou entre um animal e um aõni (monstro). Essa
transformação se processa no corpo118. Ao meu ver, a idéia de mobilidade está, no
contexto KARAJÁ, relacionada à idéia de transformação, como se a mobilidade fosse
o motor das transformações. Assim aconteceu com os primeiros KARAJÁ no mito (a
mobilidade provocou e forçou a transformação dos corpos) e assim se passa com o
xamã, alguns animais (seres móveis por excelência e possuidores originais das
técnicas necessárias à sobrevivência na superfície), monstros (aõni) e kuni (espíritos
não socializados).
A partir de alguns elementos presentes nos trabalhos sobre os KARAJÁ, pode
se dizer que estes, assim como muitos grupos ameríndios consideram que uma parte
dos seres (sejam eles animais ou “bichos” i.e. seres sobrenaturais) que existem no
mundo são “gente”. Donahue (1982: 206-207) afirma que, para os KARAJÁ, todos
os seres são humanos: os Ijasò são humanos com máscaras, os mortos são humanos

118
O xamã não só controla como também detecta as transformações: ele reconhece quando um
pirarucu é um aõni (monstro) e não um simples pirarucu ou quando um homem é um kuni (espírito de
morto) vestindo um corpo de homem (Donahue 1982: 205, Toral 1992: 141).
73

que andam nus e têm seus corpos pintados e os animais eram todos humanos antes
que Kanÿxiwe os transformasse em animais verdadeiros119.
Ora, essa idéia nos lembra o perspectivismo, ou multinaturalismo, descrito por
Viveiros de Castro. De acordo com este autor, para os Ameríndios: “ (...) Os animais
são gente, ou se vêem como pessoas. Tal concepção está quase sempre associada à
idéia de que a forma manifesta de cada espécie é um mero envelope (uma “roupa”) a
esconder uma forma interna humana, normalmente visível apenas aos olhos da
própria espécie ou de certos seres transespecíficos, como os xamãs. Essa forma
interna é o espírito do animal: uma intencionalidade ou subjetividade formalmente
idêntica à consciência humana, materializável, digamos assim, em um esquema
corporal humano oculto sob a máscara animal.” (1996:117).
Segundo Toral (1992: 141), o mundo KARAJÁ é habitado por seres
transformáveis que costumam mudar de estado e que aparecem constantemente sob
diversas formas. Os hyri, por exemplo, trocariam constantemente de corpo/pele120,
para poder manter uma aparência mais jovem. Isto está ligado à idéia de que o
corpo/pele, é um invólucro que pode ser ocupado por diversas almas, “peles-velhas”
(tykytyhy). Ao entrar no corpo/pele de alguém, a “pele velha” adquire a visão e o
comportamento dele121.
Estas idéias mostram que há: “ (...) à primeira vista, uma distinção entre uma
essência antropomorfa de tipo espiritual, comum aos seres animados, e uma
aparência corporal variável, característica de cada espécie, mas que não seria um
atributo fixo, e sim uma roupa trocável e descartável. A noção de “roupa” é uma das
expressões privilegiadas da metamorfose - espíritos, mortos e xamãs que assumem
formas animais, bichos que viram outros bichos, humanos que são inadvertidamente
mudados em animais -, um processo onipresente no “mundo altamente
transformacional” (Rivière 1995: 201) proposto pelas ontologias amazônicas.”
(Viveiros de Castro 1996: 117).

119
A transformação se expressaria em KARAJÁ pela palavra ikotinÿ, i.e. “virar”, “transformar-se” em
algo. (Donahue 1982: 207).
120
O autor não especifica o termo KARAJÁ usado nestes casos. Porém, quero lembrar que o termo
tyky (pele, invólucro) também designa o corpo e é usado, hoje em dia, para designar a roupa
(manufaturada).
121
É interessante pensar que, para os KARAJÁ, a idéia de corpo pode ser traduzida como pele (tyky),
mas que o conceito de alma (os dois tipos de alma) incluiu a idéia de pele (“pele velha” e “pele
verdadeira”). Como se o ser KARAJÁ fosse concebido como uma espécie de mil-folhas (de peles
distintas): tyky (invólucro corporal), tyky (roupa), detyky (a pele da carne), tykytyby (pele velha) e a
tykytyhy (pele verdadeira).
74

O que caracteriza esses seres como “humanos” é que eles vivem em sociedade
(assim como o fazem os KARAJÁ), i.e. possuem práticas culturais comuns (se casam,
vivem em aldeias, cozinham, dançam etc.) o que muda é a percepção dessas mesmas
práticas (Vilaça 1999:7). Vilaça explica essa idéia, para o caso dos Wari’ : “Os
diferentes corpos entretanto, implicam em formas diferentes de se perceber as
mesmas coisas: assim, tanto os Wari’ como o jaguar bebem chicha de milho, mas o
que o jaguar vê como chicha é o sangue, do mesmo modo que o barro é chicha para a
anta.” (op.cit 1999:7).
A idéia de perspectiva ou ponto de vista está portanto ligada ao corpo. Quando
o xamã ocupa (ou veste) um corpo ele adquire o ponto de vista deste corpo, i.e. a
forma de ver o mundo específica deste corpo. Assim, a perspectiva (ou o ponto de
vista) não é uma representação de objetos por pessoas mas sim relações entre sujeitos:
“Todo ser que ocupa vicariamente o ponto de vista de referência, estando em posição
de sujeito, apreende-o sob a espécie da humanidade.” Mas “os animais vêem da
mesma maneira que nós coisas diversas do que vemos, porque seus corpos são
diferentes dos nossos.”. (Viveiros de Castro 1996: 127,129). A perspectiva, portanto,
situa-se no corpo. Assim, transformando-se o corpo, muda-se o ponto de vista.
A transformação corporal tem efeitos na forma de perceber o mundo. Pode-se
dizer, como enfatizou Donahue (1982:206-207) para os KARAJÁ, que todos esses
seres são humanos, mas, que possuem corpos diferentes. Ao contrário do que nós
(ocidentais) pensamos, para os Ameríndios, são os corpos que os diferenciam (entre
espécies) enquanto o espírito (a alma) os aproxima.
É preciso lembrar também que o corpo, no caso dos Ameríndios, não é
concebido como um dado fisiológico e sim como algo que se constrói, se faz, se
constitui ao longo da vida, através da ingestão de alimentos e substâncias específicas
em momentos específicos, através da sua marcação (perfuração de orelha, de beiço,
tatuagens, escarificações) e da sua modelação (modelação do corpo da criança, cortes
de cabelo, deformações de certas parte do corpo) (Seeger, Da Matta e Viveiros de
Castro 1979)122. O corpo é constituído por relações e, enquanto “conjunto de hábitos

122
Segundo os Mehinaku, por exemplo, as diversas dietas alimentares produzem literalmente corpos
distintos. Assim, os Mehinaku explicam as diferenças corporais (estatura, força etc.) entre eles, os
Brancos e os Japoneses pelo tipo de comida ingerida por cada um ao longo de sua vida (Gregor 1985:
90). Para os Wari’, a identidade situa-se no corpo e está estreitamente relacionada com o parentesco e
com a ingestão de alimentos (Vilaça 1999).
75

e processos” (Viveiros de Castro 1996: 130), ele é o substrato da identidade, o lugar


onde ela é fabricada e, portanto, onde ela pode ser transformada (Vilaça 1999: 8-9).
Se a transformação se dá no corpo, os instrumentos da transformação são as máscaras,
as roupas animais, os adornos mas também as roupas manufaturadas (Viveiros de
Castro 1996: 133; Vilaça 1999: 9) que ativam propriedades e poderes de corpos
distintos (Viveiros de Castro 1998: 98). Assim, essas “roupas” ou instrumentos “são
todos igualmente recursos de diferenciação e de transformação do corpo, que não
podem ser isolados de recursos análogos, tais como as práticas alimentares e a troca
de substâncias através da proximidade física.” (Vilaça 1999:9).
Seguindo a ordem do mito, os humanos subaquáticos foram se transformando,
pelo corpo, em humanos de verdade (Inÿ tyhy). Descreverei a seguir como os
KARAJÁ de Porto Txuiri se apropriam de novos instrumentos corporais (roupas,
alimentos, substâncias) que estão agora ao seu alcance, e como essa apropriação
provoca, inevitavelmente, mudanças fisiológicas que resultam em transformações
identitárias.

2.2 - O corpo em Porto Txuiri


“... aqui o pessoal misturou, lá (em minha aldeia de origem) não é assim, tudo aqui é
misturado.”
Sebastião Ijaú Karajá
2.2.1 - Os corpos vestidos
Vimos o quanto as concepções de espaço e de corpo são fundamentais para a
compreensão da sociedade KARAJÁ. Sabemos que “as sociedades indígenas são
comunidades de propriedades simbólicas que articulam sistemas de identidade social
antes de serem coletividades econômicas ou juridicamente solidárias” (Seeger, Da
Matta & Viveiros de Castro 1979) . De fato, “o corpo não é tido como simples
suporte de identidades e papéis sociais, mas sim como instrumento, atividade, que
articula significações sociais e cosmológicas: o corpo é uma matriz de símbolos e um
objeto de pensamento.” (op.cit. 1979: 11).
Creio que, de alguma maneira, o que está acontecendo em Porto Txuiri,
poderia ser percebido, como Vilaça propõe para os Wari’ (1999), como uma
transformação corporal. Já evoquei acima a questão dos banhos que são, ao menos
nessa aldeia, tomados vestidos, com exceção de um dos xamãs que se banha nu e anda
nu pela praia. Foram esse banhos tomados vestidos que chamaram minha atenção e
76

me levaram a refletir sobre a noção de roupa como pele (tyky)123. Comecei então a
prestar mais atenção às diversas utilizações das roupas.
O que me pareceu importante foi o excesso de vestimenta e enfeites com que
se paramentam as crianças pequenas e principalmente os recém-nascidos. De fato,
todos os recém-nascidos são vestidos com um enorme cuidado. Para isso, as mães
procuram montar um pequeno enxoval, antes mesmo da criança nascer: sapatinhos e
boné de lã, e blusinhas de algodão branco bordado. As crianças de Porto Txuiri
nasceram quase todas na cidade, em Gurupi mais especificamente, onde a FUNAI
mantêm a Casa do Índio e convênios com hospitais locais124. No último mês de
gravidez, a mãe, acompanhada pelo marido e, se for o caso, de um filho menor,
mudam-se para a Casa do Índio em Gurupi, à espera do dia do parto. Durante todo o
tempo da gravidez ela junta roupinhas para o bêbê. Além de comprar algumas
prendas, geralmente conseguem roupas dos Tori (visitantes da aldeia: pescadores,
turistas) trocando-as por artesanato, mas principalmente recebendo a maioria das
roupinhas de visitantes regulares (que vão e vêm da cidade), como era o meu caso ou
o caso da freira que morava na aldeia até 1996.
Quando a criança nasce, desde os primeiros dias vestem-na como se fosse um
dia de festa (para nós). As meninas ganham laços nos cabelos e, rapidamente, suas
orelhas, furadas, recebem brincos, ora tradicionais (pequenos cordões de fibra) ora
‘civilizados’ (brinco redondo dourado)125. Este cuidado com a vestimenta dos bêbês
chama muito a atenção quando comparado à liberdade e simplicidade que caracteriza
a vestimenta das crianças maiores (as que já sabem falar), assim como dos adultos, no
dia a dia da aldeia. De fato, as crianças maiores e os adultos se vestem com cuidado
apenas em ocasiões especiais tais como: a ida para a cidade, ou por exemplo, quando
alguém se propõe a tirar um retrato. Os KARAJÁ de Porto Txuiri não usam suas
roupas KARAJÁ (enfeites e pinturas) para ir à cidade, pelo contrário, vestem suas

123
Creio que, no caso dos banhos, coexistem várias explicações: há o problema da “vergonha” que
todos enfatizavam quando eu os interrogava sobre a razão pela qual tomavam banho vestidos e que
está relacionada à proximidade dos Tori que “olham” do outro lado; há também a questão prática, de
lavar a roupa ao mesmo tempo que se toma banho.
124
Em 1996, uma menina nasceu na aldeia; em 1997, outra nasceu em Gurupi, e em 1999 acompanhei
uma mulher grávida até Gurupi, onde ela teria o seu segundo filho. Desde a minha primeira visita a
Porto Txuiri (outubro de 1996), mais de quinze crianças nasceram.
125
Não pude assistir à perfuração de orelhas de crianças, portanto, não sei se ela é praticada como nas
outras aldeias (tampouco encontrei descrições detalhadas deste ritual específico na bibliografia).
77

roupas de Tori quando precisam lidar com os Tori em Formoso do Araguaia ou


Gurupi (ver foto 15)126.
Os jogos de futebol são também ocasião para vestir uma roupa de Tori. Trata-
se da “roupa de jogador”: shorts de nylon, camiseta com número, meias altas com
protetores, luvas para o goleiro e, em alguns casos, joelheiras. Essa roupa é muito
importante, principalmente quando se recebe algum time de outra aldeia. Ijaú Karajá,
que, há vários anos, foi cacique da aldeia de Macaúba, explicou-me que suas
primeiras preocupações como cacique tinham sido comprar uma balsa (para o pessoal
da aldeia poder atravessar o rio), uniformes completos de futebol para os rapazes da
aldeia, uma boa bola de couro e duas redes.
A fotografia (tykytarasanÿ) também é uma ocasião que requer uma roupa
específica127 (Foto 13). De fato, quase todos os moradores da aldeia pediram-me para
“tirar um retrato” deles com suas respectivas famílias. Os mais velhos colocavam
camisas sociais, as mulheres penteavam seus cabelos e vestiam suas saias mais novas,
os jovens vestiam uma camiseta e uma calça jeans, óculos de sol enquanto os
meninos, os mais enfeitados, vestiam tênis (imitações de Reebok, Nike etc.), calça
jeans, moleton ou bermuda novos, camisetas muito coloridas e bonês. As meninas
usavam lindos vestidos brancos com babados e sapatos elegantes ou calça jeans com
um top. Na hora de tirar uma fotografia, percebe-se que são as crianças e os mais
jovens os que mais capricham na aparência (ver Foto 16)128.
Em casa, no quotidiano, apenas os bêbês são vestidos com tanta atenção.
Tanto os meninos como as meninas andam de shorts. No caso dos meninos eles

126
Outro atributo étnico importante da pessoa KARAJÁ é, como vimos acima, a tatuagem facial,
omarure. Em sua tese, Pétesch (1992: 210, eu traduzo) afirma que a “escarificação tribal tornou-se,
hoje em dia, a marca distintiva da categoria de idade das pessoas mais velhas (matuari, homem velho
e senãdu, velha)” pois, já nos anos 1950, os mais jovens preferiam não tatuar-se, por questões estéticas
ou por medo da dor (Fénélon Costa 1978: 31 apud Pétesch 1992: 210). De fato, muitos jovens afirmam
preferir pintar-se a marca facial com tinta de genipapo, apenas durante o tempo do ritual. Segundo os
KARAJÁ de Porto Txuiri, a tatuagem permitiria que fossem rapidamente reconhecidos, “lá fora” (i.e.
fora da aldeia e da Ilha). Rodrigues confirma esta idéia, no que diz respeito aos Javaé (1993: 114). De
fato, muitos jovens preferem não ter marcas no rosto para poder sair, “de cara limpa”, i.e. sem
nenhuma marca que possa identificá-los como Índios.
127
Vemos que a palavra tyky, pele, encontra-se na expressão usada para dizer “retrato” ou “fotografia”.
Segundo Rodrigues (1993: 166-167), existe um novo tipo de feitiço feito a partir do “retrato” de uma
pessoa: o feiticeiro levaria a “pele velha” de alguém, prendendo-a no papel.
128
A cor da roupa também me pareceu ser importante. Há uma certa resistência em vestir as crianças
com roupas de qualquer cor. Lembro-me de um caso em que uma mulher não queria vestir seu filho
pequeno com um macacão verde que recebera da missionária americana, pois, não sabia se o aquele
verde era adequado para um menino.
78

raramente vestem camisetas, enquanto as meninas preferem usar tops. As moças e os


rapazes são os que mais misturam roupas manufaturadas e elementos da vestimenta
tradicional KARAJÁ. Assim, é comum ver uma moça com colares de miçanga, o
rosto tatuado e vestindo bermuda e camiseta (Foto 10). Da mesma forma, os rapazes,
aqueles justamente que freqüentam a casa dos desenhos, muitas vezes aparecem com
o corpo e os olhos pintados com tinta de genipapo vestindo o uniforme de futebol (na
hora do jogo) ou jeans e camiseta (quando vão a escola, por exemplo).

Esta preocupação com a vestimenta das crianças, no quotidiano, e dos jovens


nos dias de festa ou em momentos especiais coincide em muitos aspectos com o que
acontece com os enfeites e as marcações do corpo tradicionais. A apropriação das
“roupas de Tori” se faz da forma mais KARAJÁ possível: as crianças são vestidas
com roupas específicas em função de sua categoria de idade (roupas de neném) e de
seu gênero (meninas recebem roupas e sapatos de menina, brincos de meninas,
enquanto os meninos recebem calças, shorts e sapatos de menino). Os adultos vão,
progressivamente, usando as roupas de maneira mais despojada e sóbria, enquanto os
jovens, categoria de idade onde a beleza e a exuberância é a mais valorizada, são os
que mais misturam roupas manufaturadas (calças jeans, óculos escuros, bonés, anéis
etc.) com elementos da vestimenta indígena (pinturas corporais, cocares, colares,
tatuagens, penteados etc.).
Se considerarmos as vestimentas, tanto as máscaras, os ornamentos corporais
como as roupas manufaturadas, como instrumentos de transformação (e não como
disfarces) (Viveiros de Castro 1996: 133, Vilaça 1999:9) então tudo se passa como se,
apropriando-se das roupas dos Tori, os KARAJÁ continuassem fabricando seus
corpos com novas ferramentas, novos instrumentos. Os elementos da vestimenta
ocidental não foram apenas adotados, passivamente, mas foram apropriados e
passaram a formar parte dos instrumentos usados na fabricação dos corpos129.
Assim, para ir à cidade, os KARAJÁ vestem suas roupas “civilizadas”, usam
seus nomes “cristãos” e mantêm-se “de cara limpa”. As mulheres, mesmo jovens,

129
Outro elemento identitário importante é, sem dúvida, o nome. Hoje em dia, os KARAJÁ possuem
todos um nome tori que aparece na carteira de identidade na frente do primeiro nome da série nominal
KARAJÁ e antes do sobrenome que, em todos os casos que conheço, é o designativo étnico: Karajá,
Javaé ou Xambioá. É possível que o uso e a apropriação destes nomes tori possam ter algum efeito
sobre a identidade (através do corpo ou da alma), mas não possuo elementos suficientes para afirmar e
analisar isso.
79

utilizam menos freqüentemente seus nomes tori e muitas, mesmo jovens, possuem as
marcas faciais. Segundo Pétesch (1992:72), elas seriam o elemento conservador e
estático da sociedade KARAJÁ: “as garantias da continuidade étnica”.

2.2.2 - Os casamentos
Porém, são estas mesmas mulheres que se casam com os regionais. O
casamento entre KARAJÁ e Tori é comum, i.e., existem casais mistos em todas as
aldeias da Ilha, principalmente aquelas que ficam mais próximas de cidades da região
(mas, proporcionalmente, esses casamentos me parecem ser mais freqüentes em Porto
Txuiri130). Os casamentos entre mulheres KARAJÁ e homens tori são os mais
freqüentes, e raramente acontece o contrário. Em Porto Txuiri, os pais expressam
muitas vezes sua preferência pelos genros tori, porque isso permitiria que suas filhas
aprendessem mais facilmente as “coisas dos civilizados”. Muitas jovens que têm
idade para se casar (ijadoma) falam em ir embora para a cidade para “casar com
civilizado”. O principal motivo, oferecido tanto pelos pais como pelas filhas, é que os
Tori seriam “mais sabidos” e “mais trabalhadores”, mas também porque os Tori não
bebem, ou, quando bebem, não batem na mulher e nos filhos. Não garanto que, de
fato, os Tori da região tenham todas essas qualidades, mas é preciso levar em conta
dois aspectos destas afirmações.
Em primeiro lugar, é preciso ressaltar a importância do “saber” para os
KARAJÁ. Casar-se com um Tori, representa, por um lado, ter no seio da família, uma
fonte de saber das “coisas de Tori”, e por outro, ter a possibilidade de tornar-se,
pouco a pouco, Tori, compartilhando o mesmo espaço, comendo a mesma comida,
trocando substâncias corporais i.e. transformando seus corpos, adquirindo parte das
características corporais tori131.
O saber dos Tori é o conhecimento “das coisas deles”. Estes sabem
manipular suas máquinas, falar português, como também sabem lê-lo e escrevê-lo. O
“saber” está também de certa forma relacionado negativamente ao alcoolismo. Os

130
Em 1999, eram cinco casais de KARAJÁ com Tori, apenas um constituído por uma mulher tori e
um homem KARAJÁ : o cacique e sua esposa.
131
Como se trata de um processo de transformação, e não de uma conversão (Viveiros de Castro 1996:
132), a lógica é reversível, e funciona nos dois sentidos: quando minha irmã karajá me tatuou, ela logo
declarou: “agora você é Karajá de verdade !”, acredito que essa transformação já estava ocorrendo
desde o momento em que eu começara a comer na casa deles, a mesma comida que eles, e que recebera
um nome KARAJÁ. Vilaça relata um episódio similar quando foi considerada completamente Wari’ ao
ingerir os vermes que eles consomem regularmente (1999:9).
80

KARAJÁ estão perfeitamente conscientes de que os Tori também bebem e ficam


bêbados mas eles notaram que muitos Tori lidam de outra forma com o álcool:
bebendo fora de suas casas e não ficando bêbados tão rapidamente quanto eles.
Sabem, sobretudo, que existe outro tipo de Tori: aquele que não bebe, não fica bêbado
e que prega o não-beber. Trata-se, neste caso, principalmente, dos crentes, sejam eles
pastores, fiéis, missionários ou professores da escola132. Como antropóloga e Tori eu
era considerada como uma fonte de saber das “coisas de Tori” e das “coisas da
cidade” (tori hawã). Assim, a relação que eu tinha com meu informante mais próximo
era concebida como uma troca de saberes. Ele me contava as “coisas do Índio” e,
quando se cansava, me pedia para contar “coisas dos Tori”. Muitas vezes, com
antecedência, ele preparava perguntas para me fazer quando eu chegasse na casa
dele133.
Em segundo lugar, quando uma mulher KARAJÁ se casa com um homem da
região, trata-se na maioria das vezes, de alguém que sempre viveu e foi criado na zona
rural próxima ao território KARAJÁ, raramente se trata de um Tori de uma cidade
maior ou mais distante. Apesar de muitas mulheres afirmarem que querem “fugir para
casar com Tori”, raras são as vezes em que a mulher se muda para a cidade com seu
marido. O mais comum é que aconteça o contrário: o homem instala-se na aldeia, na
casa da mãe de sua mulher respeitando assim a regra da uxorilocalidade. Os pais
KARAJÁ ganham então genros tori.
Esses genros tori representam, além de uma força de trabalho suplementar e
uma fonte de “saber”, a possibilidade de ingresso de um salário, i.e. de dinheiro134. O
dinheiro se tornou um bem indispensável para os KARAJÁ. É com ele que compram
suas roupas, os instrumentos necessários à caça e à pesca (cartuchos, pólvora, balas,
redes, anzóis e linhas, gasolina para os motores), os presentes exigidos por algum

132
Os professores tori que bebiam (havia três em 1996) foram expulsos ou saíram da aldeia (entre
1996 e 1999).
133
Com outros informantes essa idéia de troca também estava presente, mas não de forma tão explícita.
Assim, me lembro que um jovem pai, após um dos pronunciamentos do cacique, me chamou para
conversar: ele queria saber como eram feitos os transplantes de órgãos pois, tinha ouvido falar que os
japoneses quando morriam, simplesmente trocavam de cabeça e continuavam vivendo. Temas que
dizem respeito à vida na cidade e ao funcionamento das relações comerciais, e à obtenção de dinheiro
são comuns (tive que explicar várias vezes para que servia e como funcionava o cartão de saque do
banco, por exemplo).
134
Quando não se trata de um peão de alguma fazenda próxima, os homens tori, sem exceção,
participam de todas as grandes pescarias, colocando-se à serviço de grandes comerciantes de peixe (ver
supra, nota: ).
81

serviço do xamã (ver supra) assim como muitos alimentos. Em Porto Txuiri, é com
ele que seus moradores pagam suas contas de luz no final do mês.
Essas preocupações com os casamentos que provocam a “mistura” (ver
epígrafe) das pessoas e com os conhecimentos dos Tori lembram o caso dos Piro do
Baixo Urubamba (Amazônia peruana), descritos por Gow (1991). Gow mostra através
da análise das categorias de identidade usadas pelos próprios Piro, para eles, a
tradição não é considerada algo a ser conservado ou preservado, e sim como algo que
faz parte de um processo de criação continua. Os Piro dizem que são gente de “sangue
misturado”. Eles vivem em Comunidades Nativas (território legalmente marcado e
definido) e mandam seus filhos para a escola (1991:1). A primeira vista, diz Gow,
eles não parecem Índios. Mas o autor mostra como essa aparente “aculturação”
esconde uma lógica própria (Gow 1991:17). Instituições como a escola e a
Comunidad Nativa tem um papel fundamental na organização das comunidades
portanto, de modo que não seria produtivo considerá-las apenas como um sinal da
dominação da sociedade envolvente sobre os povos nativos. A realidade é, felizmente,
mais complexa.
Pelo contrário, os Piro consideram a vida nas Comunidades Nativas, entre
pessoas de “sangue misturado”, como uma forma própria de escapar da antiga
dominação à qual seus antepassados, que viviam na selva, estavam submetidos. Para
eles, “civilização” não se opõe a um conceito de “tradição” como materialização de
um passado perdido, mas sim à submissão e a violência sofrida pelos seus
antepassados que viviam sob o jugo do sistema de habilitación, na época da borracha.
A mistura de “sangues” e o acesso ao saber dos “civilizados” garantem o futuro e a
reprodução das comunidades, i.e a perpetuação da vida.
Seguindo uma lógica análoga, pareceria que os KARAJÁ encontraram em
Porto Txuiri um lugar ideal (Outro mas tornado próprio) para a reprodução de sua
sociedade em um mundo de Brancos, mundo este que, a partir das outras aldeias, não
era possível controlar e conhecer tão facilmente. É como se, pela sua própria situação
(vilarejo de Tori transformado em aldeia KARAJÁ, lugar de passagem, proximidade e
facilidade de acesso à cidade, aldeia fundada por um cacique KARAJÁ crente e
casado com uma Tori etc.) e pelos processos de transformação que os KARAJÁ
82

experimentam ali, Porto Txuiri fosse o lugar ideal para “se misturar”135, aprender as
“coisas dos Tori” e experimentar, corporalmente, o que é ser Branco. Mudar de corpo
é uma experiência análoga à do xamã: adquiri-se um ponto de vista novo sobre o
mundo, o ponto de vista dos “civilizados” (Vilaça 1999: 24).

CAPÍTULO 3: TRANSFORMAÇÕES EM PORTO TXUIRI

Com o contato, muitos alimentos, até então desconhecidos, foram introduzidos


na dieta dos KARAJÁ. Nathalie Pétesch, em um capítulo dedicado à realidade atual
dos Karajá, explica como, pouco a pouco estes começaram a se dedicar mais à pesca
com fins comerciais e foram deixando de lado o que era uma atividade tradicional de
subsistência (1992: 57-58). Este fato provocaria mudanças na alimentação de modo
geral, pois, com a venda do peixe, os Karajá, preferem comprar comida
industrializada: arroz, feijão, açúcar etc. Como exemplo dos paradoxos aos quais
podem levar tais transformações, Pétesch refere-se às sardinhas em lata que os Karajá
consumem no lugar dos inúmeros tipos de peixes de seus rios (1992: 58).
Sem dúvida existem diferenças entre o que se passa em grandes aldeias karajá
como Santa Isabel, Fontoura ou Canoanã (Javaé) e em aldeias menores como Porto
Txuiri, mas é preciso dizer que, ao menos em Canoanã e Porto Txuiri, os KARAJÁ
não abandonaram suas roças136. Nos momentos diferentes em que estive na aldeia,
sempre havia mais roças e cada vez mais diversidade de produtos. Além disso, os
KARAJÁ de Porto Txuiri, apesar de dedicarem grande parte de seu tempo à pesca
comercial, não deixam de consumir privilegiadamente seus peixes e os produtos de
suas roças.
Não se pode negar, entretanto, que é grande o consumo de alimentos
industriais. De fato, os KARAJÁ adoram sardinhas enlatadas, açúcar, picolés, Coca-
Cola, e outros alimentos. De maneira geral, gostam de consumir alimentos que
possuem uma alta concentração de açúcar (picolés, rapadura, ki-suco, balas) ou de sal

135
A mistura à qual se referem os KARAJÁ não parece ser tão explicitamente relacionada ao sangue
em particular mas sim à relações entre corpos (casamentos e trocas de substâncias) tanto entre
KARAJÁ e Tori como entre subgrupos (aos quais se referem como “raças”: a raça javaé, a raça
karajá). Nesse sentido acredito que a analogia com os Piro é pertinente.
136
É muito possível também que o quadro encontrado por Pétesch no final do anos 80 nas aldeias
karajá tenha mudado muito desde aqueles tempo. Rodrigues (1999: 11) mostra como a sociedade javaé
vem se reestruturando de uns anos para cá.
83

(sardinhas, salsichas, enlatados em geral). Tenho poucos elementos para fazer uma
análise extensa da alimentação atual dos KARAJÁ. Há porém um elemento
etnográfico que eu gostaria de evocar aqui e que, ao meu ver, pode ser uma pista para
um estudo futuro, mais profundo, destas categorias e de suas transformações.
Esta idéia fundamenta-se em afirmações dos próprios KARAJÁ quanto à
mudança de comportamento dos jovens. Eis o que diz sobre o assunto Ijaú Karajá,
meu principal informante:
“Antigamente, o índio produzia muito. Muita coisa. Tinha roças grandes, e ele trabalhava
muito. Não passava fome de jeito nenhum. Colhia batata, cará, mandioca. Todos trabalhavam, junto
com a sua família. O homem plantava. (...). Agora, o corpo do índio amoleceu. Começamos a comer
sal e o sal acabou com a coragem do índio. Começamos a comer a comida da civilização, ficou na
moda e acabou com a nossa coragem. (...) É por isso que agora, você vê isso aqui, no espaço da
aldeia, o índio não trabalha. O índio de 20, 25, 30 anos não trabalha. Quem tem coragem de
trabalhar ainda são os homens de minha idade, plantam, fazem tudo. Mas o rapaz novo não trabalha.
Oiara: Mas então, como é que eles fazem para sobreviver ?
Ijaú: Agora um homem, um rapaz casado, vive com o pessoal que é aposentado. Assim, ele não
trabalha mais, fica vivendo às custas do sogro, ou da sogra. Vai brincar, dorme, vai brincar de novo e
dorme de novo. É assim que os jovens estão viciando agora.
Oiara: Mas se antigamente era melhor, por que hoje em dia os pais não mandam os rapazes
trabalharem ?
Ijaú: Antigamente um índio rapaz trabalhava (...). O pai mandava trabalhar para poder casar e
sustentar a família. Agora os pais não falam mais. Sei lá. A nação do índio mudou. É tudo diferente.
Antigamente éramos um povo estudado. Sabíamos respeitar todo mundo: pai, mãe, respeitava-se
qualquer um. Acontece a mesma coisa com os Tori.. O Branco que não fez estudo nenhum, ele não
respeita ninguém não. Eu vejo isso assim. O povo estudado é respeitado e respeita qualquer um.”
(entrevista com Ijaú Karajá, gravada em Porto Txuiri em 22/05/99137).

Há muitos elementos que precisam ser analisados a partir da explicação dada


por Ijaú Karajá. O que é preciso levar em conta é a lógica do argumento: um aporte
alimentar novo (sal) provoca uma mudança corporal (amolecimento do corpo,
preguiça) que acaba resultando em uma mudança de comportamento dos jovens
(abandono das roças). A esse argumento acrescenta-se uma denúncia, que, ao meu
ver, está estreitamente ligada ao corpo : a falta de conhecimento dos mais jovens. Os
jovens não trabalham mais como antigamente, não só porque seus corpos mudaram,
mas também porque eles não respeitam mais os mais velhos. A falta de respeito é

137
Ijaú Karajá nasceu no norte da Ilha do Bananal em uma aldeia, hoje em dia, extinta. Tem,
aproximadamente, 65 anos. Foi duas vezes cacique da aldeia karajá de Macaúba (Heryri), tem três
filhos, e já é avô de muitos netos (cinco netos moram com ele). Foi embora de Macaúba por causa de
seu filho e de seu genro (marido de sua filha mais velha) que têm graves problemas de alcoolismo. A
vida em sua aldeia tornara-se insuportável tendo que conviver com dois homens que, bêbados, eram
violentos e o ameaçavam ele, suas filhas e seus netos. Por isso, mudou-se para a aldeia javaé de
Canoanã onde moram parentes próximos de sua falecida mulher (o irmão mais novo de sua mulher é
casado com uma Javaé, e mora em Canoanã). Diz que mudou-se de Canoanã por dois motivos: morava
em uma casa “ruim”, i.e. afastada das linhas de casas principais, de onde não via nada (principalmente
não podia se enxergar o movimento da aldeia e no rio), e havia muitos bêbados na aldeia. Outro
84

resultado de uma falta de “estudo", i.e. de saber, de conhecimento. Vimos que Ijaú se
refere aos rapazes novos, jovens, que estão na idade de se casar ou são recém-
casados, os mesmos que freqüentam a casa dos desenhos e os que misturam roupas,
pinturas e ornamentos. São as crianças que cresceram em outras aldeias e chegaram
em Porto Txuiri já grandes. Creio que isso pode explicar, ao menos em parte, a
preocupação que os pais e avós têm para que seus filhos freqüentem a escola e sua
insistência em pedir que estes apenas estudem o português (Bonilla 1997: 93)138. É
como se os moradores de Porto Txuiri estivessem aí quase que exclusivamente para
aprender e conhecer as coisas dos Brancos.
A transformação do corpo através da ingestão de novos tipos de substâncias e
a importância da aquisição de novos saberes na chegada a um novo mundo, remete-
nos novamente ao mito. Lembremo-nos do mito de criação dos KARAJÁ e das
mudanças corporais pelas quais tiveram de passar quando se instalaram na superfície
terrestre. Através de uma transformação corporal, os homens aprenderam o
movimento, podendo então caçar, pescar, plantar. Foi a estrela d’alva (tainá hyky)
que ensinou-lhes a agricultura pois, embaixo d’água, a comida aparecia magicamente.
Vimos que a ingestão (ou aplicação sobre parte ou sobre todo o corpo) de
diferentes alimentos e substâncias tem o poder de transformar o corpo e tem efeitos
sobre o comportamento da pessoa: o xamã precisa engolir o cuspe de Xibure (o
grande xamã celeste) para poder diagnosticar corretamente as doenças; é passando
uma substância sobre seus olhos que o xamã controla o dom da visão (Pétesch 1992:
190); no ritual, o xamã (chefe cerimonial) responsável pelos Ijasò, passa uma
substância (wosina, extrato de uma raíz, diluído em água) sobre os pés dos dançarinos
para que estes não tropecem e para protegê-los de algum acidente (Pétesch
1992:192)139; o urucum protege a criança de doenças e fortalece os corpos dos
rapazes durante a iniciação; a dieta restrita dos que acabam de ser pais é importante,
pois sua violação teria efeitos nocivos sobre seus corpos e o de seu filho (doenças).

problema de Canoanã, evocado por ele, é o fato de se tratar de uma aldeia javaé (sendo ele karajá), mas
isso é uma questão sobre a qual não poderei voltar neste trabalho.
138
Muitos moradores de Porto Txuiri explicavam-me, em 1996, que haviam decidido se mudar para a
aldeia por causa da escola (de Tori). Em Canoanã há uma escola bilíngüe, mas os KARAJÁ de Porto
Txuiri afirmavam não querer que seus filhos fossem alfabetizados em KARAJÁ.
139
Também para as danças dos Ijasò, o xamã “lava” o rosto dos Ijasò com uma mistura de raízes e
água (Lima Filho 1994: 53). Este ato marcaria o início das danças.
85

Lima Filho descreve as diversas técnicas usadas pelos homens durante o ritual
de iniciação para manterem-se forte prepararando-se para as lutas ijesu. Transcrevo
aqui o que lhe disse seu informante principal, Arutana Karajá, de Santa Isabel:
“... comecei a riscar a perna, né ?! Tirando o sangue ruim, tirando aquele sangue que eu tinha no
tempo de criança, que também sai pra fora; é chegando sangue novo. Daqui a pouco toma um
remédio, (...) esse remédio, um tipo de pimenta quer dizer, Karajá chama bera axiwera. É uma folha
que arde igual pimenta, né ? E tem um remédio que a gente toma de uma árvore, pra ficar bom de
corrida, bom pra respiração. Depois a gente treina pra trazer um veado, um caititu, porco-do-mato
correndo... Agora esse na época que nós estamos, ninguém mais pega, porque Karajá tá comendo sal.
Nesse tempo não existia sal (...) Depois o pózinho que a gente mastiga, vai lá pra barriga, não sente
que tem pózinho no peixe, a gente não enxerga ele ! Mas o mais velho sabe que existe o pózinho com a
carne do peixe, com a carne mesmo do bife que a gente come. Então quando a gente come, vai para a
barriga e espalha no meio da carne (da gente) e fica uma carne doce, né ? (...) Aí o mais velho falou
pra mim:
- Quer ver ? Você pode experimentar aquele suor que sai da carne (da gente). Experimenta com a
pontinha do dedo na língua. É igual a carne que você comeu.
- É verdade, não é mentira, não ! exclamou Maluare. Então diz que tem um pózinho na carne da
gente, misturado e que não sai de jeito nenhum. Então fica pesado, por isso não corre mais não...”
(Lima Filho 1994: 77, meus parêntesis).

Esse mesmo informante explicara-lhe que o sal é evitado durante o ritual pois
este “prejudica o corpo”. Apesar de tudo, quando o ritual acontece, pratica-se o jejum
durante um ou dois dias, toma-se muita água e provocam-se vômitos. Para
desenvolver a destreza e a força também intercalam-se aplicações de pimenta no ânus,
escarificações nas pernas e braços e treinos físicos (lutas, corridas e nado).
O sal é portanto uma substância que se acumula no corpo e que não pode ser
expelida (como as outras) através das técnicas descritas acima. Esse pózinho (sal) se
acumula na carne e deixa o corpo pesado, dificultando, portanto, o movimento. Esse
argumento nos remete ao que foi dito acima por Ijaú: o corpo, acumulando sal, ficaria
pesado, amoleceria e isso, acabaria com a “coragem” dos rapazes que, antigamente,
eram os mais corajosos, fortes e vigorosos. A palavra “coragem” é usada em
português referindo-se, creio, a todas essas qualidades simultaneamente: coragem140,
força, rapidez, destreza e vigor. A perda progressiva destas qualidades, por causa da
acumulação de sal no corpo, provocou o abandono do trabalho nas roças, e portanto, a
dependência dos mais novos em relação aos mais velhos (que recebem
aposentadorias). Assim, o que os mais novos perderam foi a capacidade de
movimento. O abandono das roças veio com o abandono dos rituais, da caça, das

140
Para expressar a idéia de “coragem” tal como nós a entendemos, geralmente, os KARAJÁ, como os
Tori da região, usam a palavra “valentia”. Um homem “corajoso”, no nosso sentido, é um homem
“valente”.
86

lutas, das danças, das corridas etc. A perda da capacidade de movimento veio
acompanhada pela perda do conhecimento das “coisas do Índio”.
Entretanto, uma das coisas que os moradores de Porto Txuiri ganharam com
sua instalação na aldeia está justamente ligada ao movimento. Lembremo-nos das
palavras deste mesmo informante que afirma ser bom morar em Porto Txuiri pois,
durante todo o ano, se pode observar o movimento (dos Tori) do outro lado do rio e,
no verão, a aldeia se transforma em um lugar de passagem entre a cidade de Formoso
do Araguaia, a estrada, as outras aldeias javaé e o outro lado da Ilha, e mais
especificamente a aldeia de Santa Isabel. Essa mobilidade, digamos, moderna,
também se adquiriu através da proximidade da estrada e da cidade e da passagem
diária do ônibus. Para se adaptar a essa “vida de civilizado”, é preciso conhecê-la,
saber como funciona, poder dominar suas técnicas e adquirir novas capacidades de
movimento (o que inclui o dinheiro para ter a possibilidade de circular em transportes
modernos: carros, ônibus, kombi, barco ou mesmo avião).
Ijaú, ao falar do sal, se refere explicitamente aos jovens de 20, 25 e 30 anos.
De fato, em Porto Txuiri ao menos, são eles os que não possuem e não trabalham nas
roças. Em Porto Txuiri, a geração dos que são jovens avós (40-50 anos) e avós, com
pouca exceções, são os que possuem roças e trabalham nelas com suas mulheres e
filhas. De fato, a maioria deste homens mais jovens vive às custas de seus sogros ou
pais que recebem a aposentadoria. Dois deles trabalham como professores bilingües
na escola e recebem também um salário do estado. Alguns outros preferem dedicar-se
à pesca comercial o que lhes garante uma entrada extra de dinheiro.
Os KARAJÁ estão em um mundo no qual precisam adquirir dois tipos de
saberes, “as coisas dos Tori” e “as coisas do Índio” e, como vimos até agora, esse
aprendizado passa pelo corpo e se manifesta através de capacidades ligadas a ele tais
como a fala (o domínio da língua), a escrita (o domínio da escrita e da leitura) e o
movimento (dentro do qual incluo a capacidade de trabalho tanto para a produção de
bens : agricultura, caça, pesca e criação, como para a aquisição de bens através da
obtenção de dinheiro). Como disse acima, pareceria que Porto Txuiri constituiu-se
como um lugar ideal para se adquirir esses conhecimentos. Porém vimos que as
mudanças, misturas e apropriações de novas substâncias, roupas, alimentos provocam
mudanças corporais e comportamentais (o corpo fica pesado, os jovens perdem a
coragem e param de trabalhar). Se considerarmos o corpo como substrato a partir do
87

qual se fabrica a identidade (Vilaça 1999), podemos deduzir que tudo o que o
transforma tem efeitos sobre a identidade.

Vimos que em Porto Txuiri há muitos casamentos entre Karajá e Tori mas
também entre subgrupos. Os Karajá de Porto Txuiri vivem reclamando do
comportamento dos Javaé. Ora, mesmo sendo minoria, as duas famílias Karajá fazem
questão de se demarcar claramente do resto da população e, principalmente, dos
jovens javaé. O comportamento das jovens javaé seria, aos olhos dos Karajá,
particularmente incorreto ou mesmo vulgar. A ausência de “vergonha”, a liberdade de
circulação pela aldeia, os casamentos consecutivos (inclusive com Tori), o abandono
dos filhos, tudo isso, são atitudes particularmente mal vistas, principalmente pelos
mais velhos.
Os casamentos entre KARAJÁ e Tori também provocam transformações
importantes que, em Porto Txuiri, são particularmente visíveis. Já falamos do
problema da Casa dos Ijasò na primeira parte do trabalho. O abandono ou a rejeição
das práticas rituais é apenas um dos aspectos das mudanças ocasionadas por
casamentos interétnicos. São às mudanças nos comportamentos provocadas pelos
inter-casamentos e pela convivência entre várias “raças” que Ijaú se refere quando
diz:
“Aqui a raça do Javaé é desse jeito mesmo, é que a vida das moças que não tem marido ainda, que
não se casaram ainda, se mistura com os homens. Para você casar, tem que ser rapaz e moça.. Os
pais não se importam com a vida das filhas mulheres. Não sei porque, porque lá na minha aldeia
(refere-se à aldeia karajá de Macaúba) não tem disso não. Mulher é separada de rapaziada. Aqui é
difícil ver a mulher longe da rapaziada. Aqui não, aqui é tudo misturado. É desse jeito. É a raça de
Javaé. Ouvi dizer que veio uma moça visitar os americanos. Essa menina só andava com os filhos de
Idjarruri, não desgrudava de jeito nenhum. Ia para praia, não sei para onde. Lá em Canoanã (aldeia
javaé) é desse jeito também. Mas é feio desse jeito, acho feio demais” (Entrevista feita em maio de
1999).

Assim, tanto a ingestão de alimentos dos Tori como a convivência e a


“mistura” com eles, pode ser entendida como uma forma KARAJÁ de tornar-se
Branco. Mas essa ingestão e mistura acabam resultando em transformações que nem
todos desejam ou almejam. Assim, ingerindo “comidas da civilização”, os KARAJÁ
acabam virando mais Brancos do que alguns poderiam desejar. Assim, voltamos ao
perspectivismo:
“Não devemos nos surpreender com o pensamento que põe corpos como grandes
diferenciadores e afirma ao mesmo tempo sua transformabilidade. Nossa cosmologia
88

supõe a distintividade singular dos espíritos, mas nem por isso declara impossível a
comunicação (...) ou desacredita da transformação espiritual induzidas por processos
como a educação e a conversão religiosa; na verdade, é precisamente porque os
espíritos são diferentes que a conversão é necessária (os europeus queriam saber se
os índios tinham alma para poder modificá-la). A metamorfose corporal é a
contrapartida ameríndia do tema europeu da conversão espiritual.” (Viveiros de
Castro 1996:132).
Assim, a transformação cultural traduz-se para os Ameríndios no idioma da
transsubstanciação e da metamorfose (Vilaça 1999).
89

Nota sobre a possessão e a feitiçaria em Porto Txuiri

Como continuação do que expus anteriormente sobre as apropriações e as


transformações em Porto Txuiri, gostaria de apresentar, em poucas palavras, um caso
de feitiçaria que poderia ser interpretado como apropriação do cristianismo pelos
KARAJÁ.
No final de 1997, poucos dias antes do Natal, uma menina de doze anos
começou a sofrer surtos, interpretados pelos crentes da aldeia (na maioria Tori) como
possessão por demônio. Quando cheguei à aldeia, os surtos já haviam começado e só
se falava no assunto. Alguns Tori explicaram-me que se tratava da manifestação do
demônio. Este, entrava no corpo da menina e tomava conta de sua “consciência”.
Neste caso, tratava-se de vários “espíritos demoníacos” que tomavam conta do corpo
da menina, regularmente. Os surtos aconteciam sempre de manhã cedo, ao anoitecer e
durante a noite.
Os surtos começavam com fortes dores de cabeça, estômago e espasmos. A
menina começava a suar e a expressão de seu rosto ia se transformando,
principalmente o seu olhar. Pouco a pouco iam aumentando os espasmos e seu corpo
era como que sacudido de quando em quando. Sua mandíbula e membros iam se
enrijecendo e sua força física ia aumentando até chegar no ponto em que eram
necessários de três a quatro homens para segurá-la e controlá-la. Esse aumento da
força acompanhava-se de uma grande agitação e movimentação: ela corria pela
aldeia, quebrava objetos (principalmente cacos de garrafas), perseguia pessoas
(armada com pedaços de madeira, vidro), se batia e se cortava. Pouco antes do surto
começar, ela afirmava estar “enxergando tudo”, “vendo os bichos na aldeia”
referindo-se aos kuni (espírito de morto que não seguiu para a aldeia dos mortos e
permanece rondando nas superfície terrestre, atormentando os vivos) que andavam
pela aldeia.
A menina foi vítima destes surtos durante mais de dois meses, surtos que
cessaram pouco depois da minha volta ao Rio de Janeiro (em janeiro de 1998).
Enquanto estava lá, várias interpretações me foram oferecidas sobre este tipo
de surto. Em primeiro lugar, é importante dizer que, naquela mesma época havia
vários casos semelhantes acontecendo na aldeia karajá de Santa Isabel, tanto que
90

vários moradores de lá resolveram cercar suas casas para evitar “ataques” de pessoas
contagiadas. Utilizo a palavra “contagiada” porque alguns KARAJÁ me disseram que
se tratava de um mal contagioso que ela havia contraído em uma visita à Santa Isabel.
Vamos às diversas interpretações:
Versão dos crentes:
Os crentes, na maioria Tori membros da Assembléia de Deus (um deles é da
Igreja Batista), interpretavam esses surtos como sendo uma manifestação do demônio
através de espíritos demoníacos (que, em várias ocasiões foram associados aos kuni -
espíritos de mortos que não seguiram para a aldeia dos mortos e vivem atormentando
os vivos) que tomavam o corpo da menina. A esposa do cacique (que é membro da
Assembléia de Deus) era quem mais me falava no assunto pois, eu estava hospedada
em sua casa era para lá que os avós da menina a levavam cada vez que os surtos
começavam. A esposa do cacique e o próprio cacique organizavam sessões de cura
improvisadas a cada surto da menina. Assim, assisti a várias sessões durante mais de
um mês. Todos os dias, e as vezes duas vezes por dia, ela era trazida pelos avós e por
vários homens para a casa do cacique.
Descrevo aqui uma das sessões a partir de minhas notas de campo:
“Entrei na casa do Idjarruri e todos estavam lá: ele, seus filhos, sua esposa, a cunhada
(professora) e os avós da menina. Ela estava deitada em cima de um colchão. O cacique e sua esposa
Adaís pegaram a Bíblia e mandaram chamar outros crentes da aldeia (no caso duas professoras Tori,
da Assembléia de Deus). Os filhos do cacique e o Negão (empregado do cacique) seguravam os pés e
as mãos da menina. As duas professoras chegaram e se sentaram em volta dela. Adaís enxugava o
rosto dela, massageava suas mãos, ombros e braços chamando-a pelo nome repetidamente. Enquanto
isso todos cantavam hinos, muito alto, em coro. Uma das professoras massageava o peito dela. A
menina continuava com a mandíbula e membros rígidos. Passaram água fria no rosto dela e todos
começaram a chamá-la pelo nome, pedindo para ela acordar. Formam um círculo em volta dela e
oram em voz alta. Adaís ajoelhou-se atrás dela e ficou segurando a cabeça dela. Idjarruri segurava a
mão direita e o filho dele a esquerda. Uma das professoras estava em pé, rezando muito alto,
gritando, pedindo a Deus, chorando, para que libertasse a menina desse mal e dessa aflição. Um a um
foram dizendo: “O sangue de Jesus tem poder ! O sangue de Jesus tem poder !”
Ela voltou a si e abriu os olhos. Todos pediam para ela cantar com eles. Pediam com
insistência. Deram uma Bíblia para ela e ela começou então a cantar. Todos cantaram de mãos
dadas. Depois leram o Salmo 91”. (Porto Txuiri, 6 de janeiro de 1997).

Os crentes explicaram-me que os cantos e salmos são escolhidos em função do


problema que a pessoa sofre. Existem hinos que ajudam a lidar com o demônio e a
possessão: são os que falam em sangue e libertação (é o caso do Salmo 91). Existem
hinos de cura etc. No caso da menina, explicaram-me que procuravam cantar hinos de
sangue e libertação.
Versão do Idjarruri Karajá (evangélico) e de Harawana Javaé
91

Idjarruri é evangélico, membro da Igreja Batista e participava de quase todas


as sessões de cura mesmo que de maneira bastante discreta. Quando perguntei a ele o
que estava acontecendo com a menina ele me explicou que se tratava de algo parecido
ao vodu. Um feiticeiro fabrica um boneco à imagem da pessoa que quer prejudicar e
tudo o que ele fizer ao boneco acontece no corpo da pessoa.
Segundo Harawana Javaé, este é um tipo de feitiço que veio do Araguaia, i.e.
do subgrupo Karajá. Pareceria que um tal de L. (feiticeiro javaé poderoso e
conhecido) de Canoanã tinha sido o responsável por levá-lo para o lado javaé. A
pessoa que ficava com “doidera” (itxÿtere) - nome que os KARAJÁ dão a esse tipo de
surto (ver supra, Parte 2, capítulo 1, 1.2) tinha o poder de enxergar tudo e, por isso, os
feiticeiros a procuravam e perseguiam. Os feiticeiros fazem um boneco de cera em
miniatura à imagem da pessoa, com dentes de vidro e cabelos de verdade e o
enterram. É isso que faz a pessoa ficar “doida”. O único modo de curá-la é se outro
hyri (xamã/feiticeiro) desenterrar o boneco e queimá-lo com gasolina.
Versão de Kurahari, avô da menina
Kurahari me disse que queria levar a neta para a aldeia Boto Velho para se
tratar com W. que é hyrihykÿ (grande xamã) mas Idjarruri não teria “liberado” o carro
para eles e os teria convencido a ficar e tratá-la com “orações”. Perguntei-lhe se as
orações curavam e ele me respondeu que não. As orações apenas aliviam a dor da
menina e acalmam o bicho (aõni ou ijasò) que a atormenta. Segundo ele, só o xamã
pode curar este tipo de mal, mas é preciso ter dinheiro ou bens para poder
recompensá-lo. Segundo ele, o que entra nela é um bicho, um aõni, o mesmo que vem
para as festas do Hetohykÿ. Assim como os feiticeiros, ela vê tudo, vê todos os bichos
que andam por aí. Segundo ele, o maior perigo é que ela corra para o mato e vire
bicho.
Versão de Ijaú Karajá
Ijaú me disse que esse tipo de mal sempre existiu mas que nunca tinha se
manifestado com tanta força e freqüência (referindo-se também a Santa Isabel).
Segundo ele, trata-se de um mal contagioso. O hyri joga um feitiço em uma pessoa e
outros podem “pegá-lo”. Ele disse ter confirmado isso com um feiticeiro chamado Z.,
lá no Araguaia. Esse feitiço teria sido inventado por um hyri de Santa Isabel. Alguns
feiticeiros teriam achado uma árvore itxÿtere (doida), um pé pequeno de
aproximadamente um metro e meio. Em volta dessa pequena árvore não havia mato,
92

estava tudo limpo, mas a árvore tremia muito. Então os hyri a cortaram, arrancando
suas raízes. Depois, misturaram-na com outras raízes e com as cinzas de ossos dos
dois antebraços de um hyri muito poderoso que havia morrido141. Misturaram tudo e
molharam nessa substância umas batatinhas (que, sem a substância, são comestíveis).
Eles andam, hoje em dia, com essas batatinhas enfeitiçadas no bolso e quando querem
se vingar de alguém mordem um pedacinho delas e cospem nas costas ou na cabeça
da pessoa. A vítima começa então a sentir dor na cabeça e no fígado.
Este mesmo informante havia me dito antes que um bicho entrava no corpo da
menina. Seria um bicho chamado ehõ, um aõni do mato, monstro invisível que come
gente e mora perto do Riozinho (rio do interior da Ilha). Só os Javaé sabem onde este
monstro mora. Este bicho apareceria no Hetohykÿ, nu e todo pintado.

Os limites de espaço e de tempo dessa dissertação não me permitem realizar


reflexões mais profundas sobre os temas da possessão (nas diferentes vertentes do
protestantismo aqui presentes) e nem sobre os temas da feitiçaria, do cristianismo e da
conversão. Este certamente será um tema ao qual pretendo me dedicar futuramente.
O fato do surto ser explicado tanto como possessão quanto como feitiçaria
permite-me sugerir que estamos diante de mais um contexto de ‘colonização’ do
mundo tori pelos KARAJÁ. Se considerarmos o tipo de relação existente entre o
cacique e sua esposa e os moradores da aldeia podemos dizer que seria,
provavelmente, difícil a expressão da feitiçaria no contexto atual de Porto Txuiri.
Talvez a possessão tenha sido a forma pela qual a feitiçaria KARAJÁ pode se
manifestar e existir em Porto Txuiri.
É tentador pensar que, assim como se apropriaram do espaço da aldeia e dos
constituintes do corpo tori, eles estejam se apropriando aqui de mais um ‘espaço’: a
ideologia e a prática cristã, como modo de atualizar, em um contexto histórico
desfavorável para isso, a sua relação com espíritos e seres sobrenaturais genuinamente
KARAJÁ. O que mais importa, talvez, é que os bichos (kuni, espírito de morto e

141
Pétesch menciona a profanação de sepulturas de hyri para fins de feitiçaria. Segundo ela, os ossos
mais procurados são os do braço esquerdo com o qual o hyri realiza seus trabalhos maléficos. Esse
processo de apropriação de um poder através da retirada de ossos de um corpo também acontecia em
outro contexto: quando um inimigo era morto na guerra e o matador retirava-lhe um osso do pé (com o
objetivo, segundo a autora, de controlar o movimento de seu espírito kuni) (Pétesch 1992:97).
93

aõni, monstro142) possam estar presentes, mesmo que na forma de espíritos


demoníacos. Afinal, o mundo KARAJÁ não é essencialmente transformacional ?
Outra pista que se pode considerar para uma interpretação deste caso é que
dois informantes referem-se aos bichos como sendo aõni que vêm para o ritual de
iniciação. O bicho ao qual se refere Ijaú seria o ehõ (assim entendi e transcrevi a
palavra). Toral descreve vários aõni muito mencionados pelos KARAJÁ, um deles
sendo o weehõ (ou weehõni) que apareceria no início e no final do ritual de iniciação
(1992: 183)143. Ora, naquela mesma época, o Hetohykÿ estava em sua fase final em
Canoanã. Se os bichos se tornaram espíritos demoníacos, provisoriamente ou não,
talvez se possa ver nisso mais um ponto de expansão do espaço ritual de Porto Txuiri.

Há muita coisa a se dizer sobre esse caso em particular, assim com sobre a
feitiçaria KARAJÁ, mas não poderei me ater mais sobre isso aqui. Gostaria de deixar
esta curta descrição e estas sugestões para a sua análise como uma pista para a
continuidade do trabalho sobre Porto Txuiri, e sobre os KARAJÁ em geral.

142
Pétesch (1992:132) afirma que os kuni e os aõni são parentes e opõem-se aos worosÿ (espíritos de
mortos socializados) e aos Ijasò (entidades benéficas, subaquáticas e celestes).
143
Segundo o autor, se trata de um aõni que os Karajá obtiveram do subgrupo Xambioá na época em
que guerreavam entre eles (Toral 1992: 183). O canto deles seria um grito comprido: “weehuuu... we!
We! Wehu!” (op.cit :183). Lima Filho também menciona os Wehõ que dançam no ritual de iniciação e
que, trinta dias depois da destruição das casas rituais, reaparecem na aldeia, surpreendendo a todos.
Eles usariam saiotes e camisões de palha e capacetes afunilados também de palha (1994: 95, 105).
Tratar-se-ia, portanto, de entidades mascaradas, mas Ijaú refere-se a seres que andam nus e pintados
(talvez quando não vestem as máscaras para visitar a aldeia).
94

CONCLUSÕES

“Un précepte de l’anthopologie britannique (...) veut que l’indigène ait toujours raison, ce qui
entraîne l’enquêteur dans des directions imprévues. Que l’ethnographe puisse être ainsi dérouté, que
rien de ce qu’il trouve sur le terrain ne corresponde à son attente, que ses hypothèses s’effondrent une
à une au contact de la réalité indigène, bien qu’il ait soigneusement préparé son enquête, c’est là le
signe qu’il s’agit d’une science empirique et non d’une science-fiction.”
(Jeanne Favret-Saada 1977:31)

Este trabalho foi concebido na forma de duas partes principais: uma sobre o
espaço e outra sobre o corpo. Estes foram os dois temas que me pareceram se destacar
do material etnográfico e que acabaram se revelando como a forma mais produtiva de
apresentar os dados. Como já disse, este trabalho foi principalmente centrado na
etnografia, deixando de lado possíveis comparações com outros grupos ameríndios.
Apesar de ter uma experiência de campo limitada, um conhecimento insuficiente da
língua e relativamente poucos dados etnográficos, optei por ir formulando as questões
a partir das descrições, à medida em que isso fosse se tornando necessário.
Assim, a partir da descrição do espaço KARAJÁ e de Porto Txuiri foram
aparecendo questões como a da continuidade estrutural de sociedades como a dos
KARAJÁ que há vários séculos mantêm relações com os Brancos. Após o primeiro
trabalho de campo, em 1996, constatei que o modo pelo qual eu poderia transformar
Porto Txuiri em um objeto de estudo devia passar por uma mudança de perspectiva.
Era preciso tentar entender Porto Txuiri de maneira positiva. Constatar
constantemente tudo o que os KARAJÁ tinham, lamentavelmente, perdido, ou
descrever o que “sobrava” desta sociedade não podia me levar muito longe.
Essa percepção positiva (i.e. indo à procura do que há e não tanto do que já
não há) dos dados etnográficos começou naturalmente quando constatei a linearidade
das casas ocupadas pelos KARAJÁ na aldeia, após ter feito vários mapas desta que
não me revelavam nada. Percebi então a importância da descrição etnográfica
exaustiva, mesmo em situações como a de Porto Txuiri na qual eu tinha a impressão,
no início, que não poderia descrever nada de muito interessante. Compreendi também
o quanto era necessário ouvir o que os KARAJÁ me diziam.
De fato, durante minha primeira estada, eu não conseguia conversar com eles
sobre outra coisa que a formação da aldeia, o futuro desta (aquisição de luz, água,
projetos de desenvolvimento etc.), as relações com os Tori e com o cacique. Eu
atribuía isso à minha falta de experiência e a uma incapacidade de fazer as perguntas
95

certas, no momento certo, à pessoa adequada. Eu queria falar de rituais e me falavam


em instalação de postes de luz na aldeia; queria saber quem era o xamã e me falavam
das eleições e da participação do Idjarruri nelas; perguntava sobre as guerras de
antigamente e respondiam-me que os KARAJÁ eram pacíficos e não gostavam de
briga. Ao meu ver, quase que naturalmente, eu deveria obter informações sobre
feitiçaria, mitos, rituais e chegar assim a alguma grande novidade que me permitiria
fazer um trabalho original e complementar aos trabalhos que já existem sobre o
grupo.
Mas os KARAJÁ de Porto Txuiri não queriam falar em ritual, muito
provavelmente, pelo fato de Porto Txuiri não ser um lugar onde se realizam rituais.
Os rituais não fazem parte do quotidiano da aldeia mas sim os Brancos, as casas dos
Brancos, o movimento da estrada e do bar do outro lado, a escola ou os projetos do
cacique. Os KARAJÁ queriam falar de outras coisas, ou melhor: eles queriam falar
das mesmas coisas, mas de forma diferente. Passei então a levar a sério o que me
diziam e considerar tudo o que eu escutava como algo a ser pensado, contextualizado
e analisado. Fui acumulando assim uma quantidade importante de descrições, dados e
muitas fitas nas quais gravei inúmeras conversas e entrevistas com diversos
informantes (nas quais os dois temas principais da tese estavam quase sempre
presentes, de maneira mais ou menos explícita).
Esse processo de “descoberta” das questões foi uma das razões pelas quais
optei por apresentar os dados, antes das questões. Pareceu-me ser o procedimento
correto para tornar mais simples o processo de escritura e mais clara a leitura do
trabalho.

Mostrei, na primeira parte, como os KARAJÁ se apropriaram do espaço de


Porto Txuiri e reconstituíram nele os princípios estruturantes de sua organização
espacial. De certa forma revivendo e reencenando o episódio mítico da subida dos
povos do fundo das águas para a superfície terrestre (ver também Lévi-Strauss 1964:
158, M.70), os KARAJÁ de Porto Txuiri expandiram seu universo, conquistando um
espaço construído e habitado previamente por outros seres: os Brancos. Ao emergir,
os KARAJÁ subaquáticos descobriram as vastas planícies do cerrado, os largos rios e
praias do Araguaia e de seus afluentes, os frutos do mato e o mel. Seduzidos pelas
novidades (espaço amplo, novos alimentos e clima mais ameno) decidiram se instalar
96

no ahana obira (mundo de fora). Entretanto, a conquista de um universo mais amplo


tinha uma inevitável contrapartida: a morte. A vida na superfície terrestre exigia dos
novos habitantes que eles se adaptassem à novas condições de vida. Era preciso
aprender e roubar técnicas dos seres terrestres que já habitavam ali, assim como
adquirir uma parte de sua mobilidade. Então, os KARAJÁ mudaram seus corpos
(tornando-se mais magros, leves e fortes) para ficarem mais ágeis e rápidos e
aprenderam técnicas (agricultura, pesca, caça, cantos, danças) dos seres terrestres
tornando-se Inÿ tyhy, gente de verdade.
Em Porto Txuiri, os KARAJÁ oriundos de várias aldeias da Ilha, também
expandiram seu universo, tanto do ponto de vista estritamente espacial (reocupando
suas terras e expulsando os Brancos) como socialmente, ampliando seu universo de
relações como os Tori, seus espaços (cidade, escola, estrada) e suas técnicas.
Ocupando um espaço novo, mudaram seus corpos através da comida e das roupas dos
Tori, adquiriram mobilidade graças à proximidade dos Brancos, da estrada, dos meios
de transporte e também da televisão e do telefone que os levam a lugares distantes.
Aprenderam técnicas que lhes permitem sobreviver, como por exemplo, tornando-se
aposentados do Funrural, aprendendo a usar a energia elétrica e o telefone. Através da
escola, dos professores e dos missionários eles têm um acesso aos conhecimentos dos
Brancos.
Em suma, analisando o caso de Porto Txuiri vemo-nos confrontados com duas
questões indissociáveis. Por um lado, há uma preocupação com a continuidade e a
reprodução de estruturas tradicionais. A transformação de Porto Txuiri em aldeia
KARAJÁ não é o mero resultado de conjunturas e/ou estratégias individuais. Os
KARAJÁ reconstruíram de fato seu espaço, a seu modo, e reconstituíram as
referências espaciais essenciais à continuidade de sua vida em sociedade. É a
estrutura espacial de Porto Txuiri (que foi preciso desvendar, pois neste caso, ela não
era explícita, nem visível, contrariamente às outras aldeias KARAJÁ e as aldeias Jê e
Bororo) que faz dela uma aldeia propriamente KARAJÁ.
Por outro lado, a segunda questão que surge é a da mudança histórica. Dizer
que a estrutura permanece não significa que não exista mudança e transformação. Se,
por um lado, a aldeia de Porto Txuiri não é uma simples cópia das outras aldeias
KARAJÁ - vimos que nela faltam espaços e criam-se novos, o que é objeto de
constantes comentários dos moradores -, por outro, através da apropriação de
97

elementos corporais dos Tori, os corpos dos KARAJÁ estão sofrendo transformações
que repercutem sobre o comportamento. Ser KARAJÁ nunca foi pensado como algo
estático, sem mudança. O mito mostra justamente que a mudança faz parte da
estrutura. Vimos que, tanto a absorção de alimentos como a troca de substâncias e a
apropriação de vestimentas têm o poder de transformar o corpo, pois é nele que se
situa o ponto de vista. Se “virar Branco é assumir um corpo de Branco” (Viveiros de
Castro 1996:139, nota 20) é porque ao se transformar o corpo, transforma-se a
percepção do mundo e portanto a própria cultura. De certa forma, a sociedade
KARAJÁ parece ser uma dessas sociedades performativas (Sahlins 1985) que
submetem constantemente a estrutura ao evento. A transformação é prevista
estruturalmente apesar de não se ter controle sobre ela.
É importante lembrar que a formação e construção de Porto Txuiri foi, sem
dúvida, um ato político informado por uma situação histórica específica e inserido em
uma rede de relações complexas entre os KARAJÁ e os Brancos (Bonilla 1997). Mas
o que procurei mostrar, entretanto, mesmo que de forma implícita, é que é possível
apreender dimensões como a história e a mudança cultural a partir das categorias
nativas.

O próximo passo consiste em aprofundar uma série de questões relacionadas a


este trabalho. O principal ponto sobre o qual eu gostaria de trabalhar agora é a questão
da feitiçaria e do cristianismo (ver supra). A instalação recente na aldeia de uma
família de missionários da Missão Novas Tribos do Brasil com o objetivo de
converter os KARAJÁ, vem reforçar o meu interesse pela questão. O cristianismo e,
mais especificamente, algumas vertentes do protestantismo, são parte constituinte de
Porto Txuiri e me interessaria entender melhor como se faz a ponte entre esse tipo de
crença, a feitiçaria e o xamanismo KARAJÁ144. Para isso seria necessária uma
pesquisa mais profunda da bibliografia sobre a questão da conversão, assim como
sobre a história KARAJÁ e sobre os KARAJÁ em geral, além de um trabalho de
campo mais intensivo, envolvendo o aprendizado da língua, que pretendo realizar no
doutorado.

144
A questão do cristianismo em Porto Txuiri está ligada à instituição da escola e à chefia. Ao longo
deste trabalho, alguns elementos que estão ligados a este tema apareceram: a ausência de Casa dos
Ijasò, a não iniciação do cacique, a apropriação da Bíblia. Outro exemplo: muito mitos que colhi eram,
simultaneamente, relacionados pelos informantes à passagens da Bíblia.
98

REFERÊNCIAS BIBLIOGRAFICAS145

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145
Optei por apresentar aqui uma bibliografia extensa. Apresento todos os autores que tive como
referência para a elaboração do trabalho, mesmo que não tenham sido citados.
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102

CADERNO DE FOTOS

Foto 1: Rio Javaés, à direita a Ilha do Bananal (começo da estiagem) .

Foto 2: Porto Txuiri visto do outro lado do rio (começo da estiagem).

Foto 3: O outro lado visto de Porto Txuiri (época chuvosa).

Foto 4 - 5: Alinhamento de casas em Canoanã (aldeia javaé) (1999).

Foto 6: Alinhamento de casas em Porto Txuiri (1998).

Foto 7: Avó e neta (javaé).

Foto 8: Avô e neta (xambioá).

Foto 9: Avó e neto (karajá).

Foto 10: Jovem mãe vestida para o pronunciamento do cacique (1999).

Foto 11: Crianças consumindo carne de boi na ocasião da festa de Natal (1997).

Foto 12: Mulheres e crianças esperando a distribuição de presentes de Natal


(brinquedos) pelas professoras da escola (1997).

Foto 13: Partida de futebol de um dos times de Porto Txuiri contra um time visitante
(1999).

Foto 14: Crianças revendendo cascos de garrafa do outro lado (1996).

Foto 15: Aposentado pronto para ir à cidade receber seu dinheiro (1998).

Foto 16: Marlene Xirikeru Karajá com seu filhos e sobrinhos (1998).

Foto 17: Cartão postal. Foto de Ademir Rodrigues (Museu do Índio - FUNAI).

Foto 18: Sebastião Ijaú Karajá, rumo a Canoanã (1999).

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