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Rio de Janeiro
2000
2
FICHA CATALOGRÁFICA
Bonilla, Oiara.
Reproduzindo-se no mundo dos Brancos: estruturas KARAJÁ em Porto
Txuiri, Ilha do Bananal (Tocantins)/ Oiara Bonilla. Rio de Janeiro: UFRJ/PPGAS,
2000.
98 p.
RESUMO
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO 1
PRIMEIRAS CONSIDERAÇOES 46
CONCLUSÕES 84
BIBLIOGRAFIA 87
CADERNO DE FOTOS 91
AGRADECIMENTOS
1
Esta tabela reproduz a que apresenta Rodrigues (1993) em sua dissertação de mestrado.
10
INTRODUÇÃO
O início
Em 1992, tive a oportunidade de trabalhar como voluntária na organização da
Conferência Mundial dos Povos Indígenas promovida pelo Comitê Intertribal - 500
Anos de Resistência. Naquela ocasião, estive em contato com várias lideranças
indígenas nacionais e fui convidada por algumas delas para conhecer suas aldeias de
origem. Em 1994, encontrava-me estudando Ciências Sociais em Bruxelas quando
recebi uma carta de Idjarruri Karajá (liderança indígena nacional) acompanhada de
um importante dossiê sobre a desocupação das terras Karajá e Javaé, há anos
invadidas e ocupadas por posseiros e fazendeiros (criadores de gado, principalmente).
O líder havia se instalado com sua família em um vilarejo de posseiros - Porto
Piauí - construído em território indígena, e havia sofrido ameaças por estar
articulando, junto com outros líderes e entidades (INCRA, FUNAI, CPT2), a
desocupação das terras KARAJÁ3. Ameaçados, Idjarruri e sua família se refugiaram
em Gurupi (cidade próxima à Ilha do Bananal), e pediram ajuda à Procuradoria Geral
da República e aos seus amigos e conhecidos, no Brasil e no exterior. Foi assim que
fui projetada para dentro da realidade KARAJÁ, envolvendo-me com abaixo-
assinados, cartas de apoio etc. Foi quando comecei a me interessar pelo aspecto
etnológico da sociedade KARAJÁ.
Em 1996 fiz a minha primeira visita à Ilha do Bananal e, mais particularmente,
à nova aldeia de Porto Txuiri, onde acabei ficando por dois meses4. De fato, o vilarejo
construído por posseiros havia sido, neste meio tempo, desocupado (assim como a
maior parte da Ilha do Bananal) e transformado em uma aldeia KARAJÁ, habitada
quase que exclusivamente por estes Índios.
2
Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária, Fundação Nacional do Índio, Comissão
Pastoral da Terra.
3
Quando me refiro ao conjunto KARAJÁ, uso letras maiúsculas, quando me refiro ao subgrupo Karajá
em particular, uso minúsculas. Sobre a escolha da utilização deste termo, em letras maiúsculas, ver
infra.
4
A partir deste primeiro trabalho de campo escrevi minha monografia de fim de curso (maîtrise) para a
Universidade de Paris X-Nanterre.
11
pelo Rio Araguaia e seu braço menor, o Rio Javaés, no estado do Tocantins. A Ilha do
Bananal é habitada, do lado do Rio Araguaia (na margem direita do rio, do lado
esquerdo da Ilha) pelo subgrupo Karajá, e, na margem esquerda do Rio Javaés (lado
direito da Ilha), pelo subgrupo Javaé. Porto Txuiri situado na margem esquerda do
Rio Javaés, fica, portanto, do lado javaé da Ilha. Mais ao norte, já fora do território da
Ilha mas ainda nas margens do Araguaia, encontram-se os Xambioá, o outro subgrupo
KARAJÁ. A Ilha do Bananal é conhecida como a maior ilha fluvial do mundo,
possuindo um ecossistema extremamente rico. Os peixes do Araguaia, do rio Javaés e
dos inúmeros riozinhos e lagos da Ilha do Bananal, atraem pescadores amadores e
profissionais durante todo o ano, e principalmente no “verão” (meses da estiagem: de
maio a outubro).
A vegetação da Ilha é característica do cerrado. Em seu interior há inúmeras
planícies que ficam inundadas durante as chuvas (de novembro a março) e suas
margens são bordeadas por mata-galeria, vegetação mais densa e verde (Rodrigues
1993: 17). Durante o “verão” chove muito raramente, as estradas se transformam em
nuvens de poeira com a passagem de qualquer veículo, a vegetação seca e é recoberta
por uma capa de poeira vermelha. É comum ver gado morto de sede na beira das
estradas. As águas dos rios diminuem de forma considerável, e o rio Javaés fica tão
baixo que pode ser atravessado a pé. As vezes, os bancos de areia formam piscinas,
interrompendo o curso do rio. Nesta época, os turistas invadem as praias do rio
Araguaia e de seus afluentes, montando acampamentos e permanecendo às vezes por
várias semanas.
Na época da chuva, a Ilha fica mais protegida, pois, o acesso é dificultado pela
enchente. As estradas de acesso ficam freqüentemente impraticáveis. Noventa por
cento da superfície da Ilha do Bananal fica submersa pelas águas de modo que só é
possível se deslocar em canoa ou barco a motor.
Os KARAJÁ
O conjunto KARAJÁ, que optei por diferenciar em caixa alta, é formado por
três subgrupos: os Karajá propriamente ditos (subgrupo mais numeroso), os Javaé e os
Xambioá, que falam três variantes ou dialetos da língua KARAJÁ que pertence ao
tronco lingüístico Macro-jê (Greenberg 1956 apud Pétesch 1992: 33) . O conjunto
12
5
Segundo Nathalie Pétesch (1992: 68) a palavra “karajá” seria de origem tupi e significaria “macaco
gariba”(Allouata sp.).
6
Enquanto à apelação iwa yre (aleijado), não pude confirmá-la no campo, mas ela é interessante se a
pensarmos em relação ao que diz Pétesch (1993) sobre a questão da mobilidade e do movimento.
13
A pesquisa de campo
Cheguei em Porto Txuiri, em 1996, com a idéia de estudar as concepções
javaé de pessoa, mas a especificidade da aldeia e de sua situação me obrigaram a
enxergar outras coisas, a tomar um caminho diferente que, só agora, me reconduz até
essas questões iniciais. As questões que eu havia preparado a partir do material
bibliográfico simplesmente não podiam ser tratadas sem antes tentar entender o que
7
Segundo Rodrigues, existem diferenças importantes nos rituais, por exemplo (1997: comunicação
pessoal). Sobre isso, ver também Toral (1992:117-132).
8
No primeiro trabalho minhas descrições oscilavam constantemente entre os termos: Javaé, Karajá, ou
Karajá como um todo (segundo os dados dos diferentes autores - alguns haviam trabalhado com um ou
outro subgrupo -, e segundo o subgrupo de cada informante). Isso acabou tornando algumas partes
muito confusas. Entendi então que para um trabalho curto como este, deveria considerar o conjunto
dos subgrupos como uma unidade.
14
era aquela aldeia, quem eram os seus habitantes, e por que haviam escolhido morar
em um antigo vilarejo de Tori9 (“civilizados”). As questões que tratei na maîtrise
estavam principalmente relacionadas ao espaço, à sua ocupação, e à história da aldeia.
Depois deste primeiro trabalho, estive duas outras vezes em Porto Txuiri: uma
em dezembro e janeiro de 1997-98, e outra em maio de 1999. Tive então a
oportunidade de aprofundar mais a questão do espaço, assim como questões
relacionadas à identidade KARAJÁ e às relações destes com os Tori.
Durante o segundo período de campo, 1997-98, a atenção da aldeia estava
toda voltada para um caso de feitiçaria: uma menina de doze anos tinha surtos diários,
que foram interpretados pelos Tori (na maioria crentes), e por alguns KARAJÁ (que
se diziam crentes naquele momento) como possessão por demônio e, pelos não-
crentes, como um ataque de feitiçaria. O alvo do ataque não era apenas a menina, mas
principalmente sua família. Só comecei a entender melhor o que havia acontecido
durante esta estada, vários meses depois, quando retomei os dados recolhidos, as
descrições das crises, dos rituais de exorcismo aos quais assisti, e as diversas
interpretações de tipos de feitiços que os KARAJÁ me haviam dado.
O último trabalho de campo foi mais curto (20 dias), e foi realizado em maio
de 1999. Nesta época, comecei a me interessar novamente pelas questões do corpo e
da pessoa. Nesta ocasião, já conhecia melhor os moradores de Porto Txuiri e sentia-
me mais a vontade para entrevistá-los e gravar suas falas. Realizei então várias horas
de entrevistas, principalmente com um senhor de idade, Ijaú Karajá, que viera da
aldeia javaé de Canoanã (maior aldeamento javaé, situado ao sul de Porto Txuiri)
fazia mais de dois anos, para instalar-se com suas filhas e sua cunhada em Porto
Txuiri. A família de Ijaú acabou me adotando e tornei-me um membro da família.
Para as entrevistas, eu preparava um tema na véspera, tema que muitas vezes estava
relacionado com o que Ijaú havia me dito anteriormente. Assim, as entrevistas
começavam com perguntas precisas e terminavam sempre onde Ijaú queria. Quase
todos os dias acabávamos falando da mesma coisa: da aldeia, dos Tori, da escola, do
dinheiro, dos jovens KARAJÁ que não vão à roça, do cacique e de sua esposa.
Os temas preferidos sempre giravam em torno da especificidade de Porto
Txuiri, de sua situação e das relações com os Tori. Compreendi que, antes de mais
9
É assim que os KARAJÁ se referem aos não-índios, por isso usarei, de preferência, este termo.
Quando traduzem o termo Tori para o português, usam, geralmente o termos “civilizado”, “cristãos’ e,
mais raramente, “brancos”.
15
nada, eu precisava entender o que se passava em Porto Txuiri, por que aquelas
pessoas haviam decidido morar nesse espaço e transformá-lo em aldeia. Quero
ressaltar que essas questões foram progressivamente surgindo, ao longo da pesquisa
de campo. Por isso decidi redigir uma dissertação que revelasse o ritmo de minha
pesquisa e das minhas descobertas, passando das descrições às questões mais teóricas,
e não o inverso.
A organização da dissertação
Apresentarei em uma primeira parte as questões ligadas ao espaço KARAJÁ
em geral e ao espaço de Porto Txuiri. Em primeiro lugar farei uma breve introdução
histórica, na qual fornecerei alguns elementos da história do grupo desde o contato
com os Tori até a invasão de suas terras por posseiros e fazendeiros criadores de
gado. A partir daí faço um histórico mais detalhado da retomada de Porto Piauí e de
sua transformação em aldeia KARAJÁ. Mostro então que os KARAJÁ não vivem em
uma aldeia “descaracterizada” e sim em uma aldeia que eles fizeram e tornaram
KARAJÁ através da reprodução de sua estrutura espacial.
16
10
Os dados que concernem o período anterior ao processo de retomada da Ilha utilizados aqui,
encontram-se nas teses de P. Rodrigues (1993: 25-47) e de N. Pétesch (1992: 48-67).
18
Neste século, o rio Javaés torna-se a via prioritária de acesso à região, pois
temem-se os ataques dos Karajá11. Até então, os Javaé tinham permanecido
relativamente isolados e protegidos em suas aldeias do interior da Ilha. Durante todo o
século XIX estes haviam evitado o contato com os exploradores e colonos. O
primeiro contato com o SPI (Serviço de Proteção ao Índio) aconteceu em fevereiro de
1911. Os agentes deste organismo registraram então a existência de seis aldeias Javaé,
no total12.
A invasão da Ilha do Bananal começou nos anos 1930 com a chegada dos
primeiros criadores de gado à região. Nesta época também começaram a se implantar
empresas mineradoras ao longo do curso do Rio Javaés e de seus afluentes, para
extrair cristal de rocha (Rodrigues 1993: 26). Na época em que os primeiros posseiros
se instalaram, ainda existiam aldeias javaé no interior da Ilha (op.cit 1993: 26). A
maioria dos colonos eram pessoas de origem humilde vindas de outros estados como
o Maranhão, Piauí, e Goiás, estados situados a leste da Ilha. Por isso, e também por
uma questão de facilidade de acesso, eles penetravam pelo rio Javaés, gerando assim
uma maior concentração populacional deste lado da Ilha (ver mapa 2)13.
Em 1969, a FUNAI passou a cobrar dos colonos uma taxa, a “renda indígena”,
calculada em função da área ocupada, da área cultivada e do número de cabeças de
gado que cada família possuía. Esta cobrança passou, de certa forma, a “legalizar” a
ocupação e a utilização das terras da Ilha (Pétesch 1992: 53; Rodrigues 1993: 34).
Teoricamente, o dinheiro arrecadado com a taxa era utilizado pela própria
administração da FUNAI local, em projetos e cooperativas (gado e pesca) que
favorecessem as comunidades KARAJÁ. Desvios e usos para fins pessoais do
11
Para esta parte consultei os dados expostos nos trabalhos de Rodrigues (1993: 22-23) e de Toral
(1992: 41-45).
12
Para mais detalhes sobre as antigas aldeias Karajá, Javaé e Xambioá ver Donahue (1982), Toral
(1992) e Pétesch (1992).
13
De fato, o rio Javaés é bem menor que o Araguaia e pode ser atravessado a pé durante a época seca.
19
dinheiro por parte dos funcionários locais da FUNAI foram inúmeras vezes
denunciados pelos próprios KARAJÁ.
O auge da invasão aconteceu nos anos 1980. As extensas pastagens naturais
da Ilha passaram a ser aproveitadas pelos grandes criadores que, na época da seca,
mandavam para lá seus rebanhos acompanhados por vaqueiros.
Por outro lado, as invasões de posseiros aumentavam. Em 1991, a SUCAM
contou 11225 moradores não-Índios na Ilha do Bananal, incluindo nestes números os
vaqueiros que não permaneciam ali o ano inteiro.
O número crescente de habitantes não-Índios e a presença de milhares de
cabeças de gado provocou o abandono e o desaparecimento de aldeias inteiras; a
redução do território; o abandono e a destruição de roças e cemitérios (pisoteados
pelo gado); o surgimento de novas epidemias; o aumento considerável do alcoolismo;
a rarefação da caça e da pesca (veados foram contaminados pela febre aftosa,
intensificou-se a comercialização do pirarucu14 e de outros peixes); a perda da
mobilidade (cercas, povoados) e consequentemente a concentração da população
Javaé em grandes aldeias como Canoanã (Toral 1983 apud Rodrigues 1993: 30).
Na década de 1980 formou-se o povoado de Porto Piauí, na beira do Rio
Javaés, a 60 quilômetros da cidade de Formoso do Araguaia.
14
Arapaima gigas.
15
O GTI era formado pela FUNAI, o Conselho Indigenista Missionário (CIMI), a Comissão Pastoral
da Terra (CPT), o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA), a Superintendência
de Colonização da Amazônia (SUCAM), o Instituto Brasileiro de Agricultura e Reforma Agrária
(IBAMA), as prelazias, as prefeituras de Formoso do Araguaia, Dueré e São Félix do Araguaia, as
lideranças e caciques KARAJÁ, assim como a Associação dos Moradores da Ilha (não-Índios).
20
16
Desconheço a forma e as condições nas quais foi criada a Comissão.
17
Para escrever esta parte trabalhei com diversos materiais: entrevistas feitas em 1996 com antigos
moradores (Tori) de Porto Piauí e da Ilha, com Idjarruri Karajá, com moradores KARAJÁ de Porto
Txuiri, mas também, com documentos oficiais e jornalísticos fornecidos pelo líder.
18
Em frente à aldeia javaé de Canoanã, alguns quilômetros ao sul de Porto Piauí, a Fundação Bradesco
oferece formações profissionalizantes em magistério e técnicas agrícolas (Rodrigues 1993: 43-44).
19
Os KARAJÁ costumam pescar nos lagos situados no centro da Ilha (como o lago chamado
Soohykÿ). Hoje, esta atividade está estreitamente vinculada às relações econômicas com os Tori, já que
é uma das principais fontes de dinheiro. Os KARAJÁ acompanham pescadores Tori em grandes
21
pescarias onde, as vezes, são capturadas mais de 2 toneladas de peixe. Esse peixe é depois vendido
pelo “dono da pescaria” (Tori) nas grandes cidades: São Luís, Goiânia, Terezina.
20
Ver Bonilla (1997: 22-23). Em uma entrevista feita em 1996 a uma antiga moradora de Porto Piauí,
esta dizia o seguinte sobre os Javaé: “É por causa deles que nós temos que sair agora, por causa
desses Índios ! Muita gente dizia isso e (...) a Funai dizia que eram os Índios que pediam para a gente
sair. Mas muitos Índios não sabiam o que estava acontecendo, sabe, tem muito Índio que é ingênuo,
que não sabe o que está fazendo, que não sabe o que quer.”
21
Insisto em ressaltar que utilizo a palavra ‘líder’ no sentido de liderança nacional (e não
obrigatoriamente local), i.e. que se posiciona no cenário político nacional e que se reivindica como
líder, para distinguir este personagem de uma liderança tradicional ou mesmo dos caciques. Agora, este
líder virou cacique de Porto Txuiri, mas naquela época ele era uma liderança entre outras.
22
O capitão de cristão distinguia-se da chefia tradicional KARAJÁ e tratava, principalmente, das
relações entre a aldeia e o mundo dos “civilizados”. É o papel que fazem, hoje em dia, os caciques.
“Cristãos” designa aqui os Tori. Para uma análise das diversas formas de chefia KARAJÁ, ver Toral
(1992: 77-93).
22
ele quanto a esposa respondem que escolheram o vilarejo por causa da escola, da
proximidade com a cidade (60 km de Formoso do Araguaia), das comodidades e
facilidades que lá existem (casas já construídas, luz, televisão, estrada, transporte,
comunicação telefônica23). Os posseiros não entenderam a instalação do líder como
algo banal ou natural; imediatamente consideraram o fato como uma ameaça direta à
permanência deles na Ilha24 de modo que Idjarruri Karajá e sua família foram muito
mal recebidos.
Em 1995, o líder sofreu ameaças de morte por parte de alguns moradores de
Porto Piauí e de colonos da Ilha e decidiu refugiar-se na cidade de Gurupi, onde se
encontra a sede da administração regional da FUNAI. Foi nesta época que ele me
enviou um volumoso dossiê sobre a desocupação da Ilha, acompanhado de uma longa
carta pedindo apoio e explicando a situação delicada na qual se encontravam.
23
A TeleGoiás mantinha um Posto Telefônico funcionando todos os dias, do outro lado do rio. Esse
Posto foi desativado em 1998 (ver Bonilla 1997).
24
Em 1998, quando Idjarruri e a sua esposa leram a introdução da minha maîtrise, ficaram indignados
com o fato de eu ter sugerido que a instalação deles em Porto Piauí podia ter sido, além de uma escolha
pessoal de vida, uma estratégia para a articulação da desocupação da Ilha e do vilarejo. De forma
contraditória, até hoje, ambos afirmam que a estratégia política adotada para “expulsar os Brancos de
Porto Piauí” foi inspirada na Bíblia, daí as epígrafes selecionadas para a abertura do capítulo.
Portanto, houve estratégia e intenção de expulsar os Brancos da vila.
25
É fundamental ressaltar que a Ilha do Bananal é alvo do interesse de vários tipos de investidores e
políticos. Situada no Estado do Tocantins rodeada pelos Estados de Goiás, Mato Grosso e Pará, a
proibição de circular nela obriga todo tipo de transporte feito entre esses Estados (gado, grãos etc.) a
contorná-la, pelo norte ou pelo sul. Isso representa um desvio de mais de 400 quilômetros. Com a
criação do Estado do Tocantins, o governador do Estado já teria tentado implantar várias vezes grandes
projetos na Ilha (LIMA FILHO 1994: 31, nota 27). Atualmente, os maiores projetos do Governo do
Tocantins são: a construção da Transaraguaia, rodovia que cortaria a Ilha ligando Formoso do
Araguaia à São Félix do Araguaia, passando exatamente entre Porto Txuiri e Santa Isabel do Morro, e
a Hidrovia Tocantins-Araguaia (que faz parte do programa Avança Brasil, do Governo Federal ).
23
de gado assim como de alguns políticos locais (que, em muitos casos, também
possuem gado e usavam as pastagens da Ilha). As alianças dos Javaé e Karajá se
fazem portanto pela intermediação de alguns líderes com o governo do Tocantins,
enquanto os posseiros contam com o apoio de alguns políticos locais (principalmente
de Formoso do Araguaia). Estes, tentam aproveitar os dois lados: negociam a
permanência dos posseiros (que é interessante para eles por causa do gado e dos
votos), sem deixar de lado o potencial eleitoral que os Índios também representam.
Para isso, eles tentam conquistar os KARAJÁ oferecendo uma vaga de candidato nas
listas eleitorais a algum líder ou cacique (de aldeias vizinhas), ou presenteando-os
com televisores, antenas parabólicas etc.
Em janeiro de 1995, todos os líderes e caciques da Ilha reuniram-se na aldeia
javaé de Canoanã e decidiram ocupar Porto Piauí para acabar com o núcleo de
resistência e acelerar o processo da desocupação. No final da reunião, um culto foi
realizado por um pastor - conhecido de Idjarruri -, no curso do qual o trecho da Bíblia
consagrado à Tomada de Jerico foi lido (ver epígrafes). Foram então chamados 30
voluntários, vindos de várias aldeias Javaé, para invadir Porto Piauí e construir casas
KARAJÁ nas suas ruas e na praça26.
Alguns dias depois, os homens chegaram à Porto Piauí e passaram vários dias
construindo as casas após reunir o material necessário. A esposa de Idjarruri afirma
que todos eles foram pagos pelo serviço. Provavelmente pela própria FUNAI ou
talvez pelo governo do Estado, através do líder27.Portanto, não se trata de considerar
Idjarruri apenas como um líder comandando um grupo de homens com a intenção de
reconquistar um espaço. É preciso considerar que se trata de uma manobra política
individual que, apesar de refletir também interesses comunitários, está estreitamente
ligada a interesses políticos locais e regionais. Quando tudo estava pronto, oito
famílias, na maioria Javaés de Canoanã, se instalaram no vilarejo.
A partir do momento da instalação das famílias KARAJÁ no vilarejo, a
desocupação da Ilha acelerou-se. Em primeiro lugar, porque os posseiros
26
Segundo um informante que participou na construção das casas de palha, os trinta homens vieram
das aldeias javaé de Barreira Branca (ao sul), São João (ao sul), Boto Velho (ao norte) e Canoanã (ao
sul).
27
Já em 1996, quando estive em Porto Txuiri pela primeira vez, Idjarruri Karajá havia rompido as
relações com a Administração Regional da Funai de Gurupi. Desconheço as razões da discórdia que
levou ao abandono da aldeia pela FUNAI no mesmo ano. É possível que a independência de ação
reivindicada e sempre reafirmada pelo líder possa ter complicado suas relações com os funcionários da
Administração Regional.
24
pressionavam cada vez mais as autoridades para que o INCRA lhes concedesse as
terras e as indenizações. Eles ameaçavam invadir terras e fazendas, pois muitos dos
que já haviam saído da Ilha, sem ter para onde ir, haviam gastado todo seu dinheiro
alugando barracos no Setor Aliança (o bairro mais desfavorecido de Formoso).
Em segundo lugar, porque as autoridades, locais e federais, temiam um
conflito maior entre posseiros e Índios agora que estes estavam convivendo em um
mesmo vilarejo. Efetivamente, a convivência entre as duas comunidades era
complicada e tensa. Percebendo que, de fato, seriam expulsos na Ilha, os moradores
de Porto Piauí não suportavam a presença dos Índios no que eles chamavam de “nossa
cidade”. Por outro lado, os Índios provocavam os posseiros e divertiam-se urinando e
defecando nos quintais, gritando à noite, matando os animais domésticos (gatos
principalmente) dos Tori e circulando pelos quintais à qualquer hora do dia e da noite.
Interrogado sobre sua estratégia de expulsão dos moradores não-Índios, Idjarruri
Karajá explicou-me que, assim como Josué teria instruído seus guerreiros a fazer
muito barulho, a tocar as trombetas e a gritar para derrubar os muros de Jerico, ele
teria “instruído o seu pessoal a fazer muito barulho, dia e noite, para afugentar os
Tori”.
No dia 2 de fevereiro de 1995, Porto Piauí é rebatizado e seu novo nome é
comunicado oficialmente pelo líder à Administração Regional da Funai em Gurupi. O
vilarejo passa a se chamar Porto Txuiri28.
28
Txuiri é o nome de um personagem mítico que, antigamente, teria subido o rio de canoa e parado
neste local para empurrá-la. Muito cansado e com os joelhos machucados de tanto empurrar a canoa
nos bancos de areia, ele teria sentado e chorado. Porto Txuiri, ou Txuirihina , é “o lugar onde Txuiri
chorou”.
25
nomeados vice-caciques. Trata-se dos dois chefes das duas maiores famílias de Porto
Txuiri29.
Finalmente, no dia 25 de dezembro do mesmo ano, a FUNAI anunciou que o
INCRA adquirira as terras a serem distribuídas aos posseiros. Estas terras estão
situadas ao norte de Porto Txuiri, na margem direita do rio Javaés. O local chama-se
Capão de Coco e seus 29000 hectares, deveriam ser repartidos entre as 413 famílias
cadastradas30. A partir deste momento, as ameaças de invasão de fazendas próximas
obrigaram as autoridades a tomarem providências rápidas. No final do ano, as
primeiras famílias saíram de Porto Txuiri, em plena época da chuva, mas a maioria
permaneceu no vilarejo e pediu um prazo até a época da seca (julho de 1996) para sair
sem correr o risco de perder bens na mudança31.
Pouco tempo depois, vendo que a maioria dos moradores não-Índios persistia
em permanecer na aldeia, os Índios pediram as “casas dos Tori”, argumentando que
chovia muito em suas casas de palha. Pouco a pouco, os Tori foram saindo,
desocupando as casas. Estas foram sendo ocupadas pelas famílias javaé e karajá
enquanto as antigas casas de palha eram queimadas32.
29
Entendo por família o conjunto de pessoas relacionadas por laços de parentesco (e que se
reivindicam como parentes) com um homem mais velho e sua esposa. Em Porto Txuiri, distingo sete
famílias (ver mapa 6: a do Warihy, do Sewerehi, do Idjarruri, do Idjanare, do Kaxiwera, do Burahi e a
do Ijaú) apesar de saber que existem relações que as unem entre elas.
30
Apenas as famílias sem terras e de baixa renda ganharam o direito a uma parcela no Capão de Coco.
31
Na época das chuvas, é difícil atravessar o rio Javaés que está cheio demais para ser atravessado a
pé, mas que nunca chega a ter um volume de água suficiente para permitir travessias em barcos fundos.
32
Aparentemente, este ato não tinha nenhuma conotação ritual. Alguns adolescentes queimaram as
casas, em alguns casos, por diversão, em outros, porque as casas estavam começando a desabar.
26
Porém, o ato, sem dúvida, teve uma conotação política, sinalizando aos Tori ainda presentes que, de
fato, perderiam suas casas e teriam que entregá-las aos Índios.
33
Essas aldeias foram abandonadas entre a década de 1950 e de 1980. A partir dos anos 1990, antigas
aldeias começaram a ser reocupadas e novas foram criadas, pelos KARAJÁ (Toral 1992: 76). Em
1991, Wari-wari (aldeia situada na região norte da Ilha, às margens do Rio Javaés) começava a ser
novamente povoada (Rodrigues 1993: 33). Em 1999, fiquei sabendo que várias famílias haviam se
instalado na antiga aldeia do Imõtxi (às margens do Rio Jaburu, no interior da Ilha), entre elas uma
família de Porto Txuiri.
34
Em maio de 1999, contei 125 moradores (esse número varia constantemente) em Porto Txuiri sendo
que 24 são Tori (contando as crianças Tori).
27
35
Ver também o Mito A, em Lima Filho (1994:141).
36
Lima Filho descreve o mundo das águas como um lugar onde não há morte, ou onde só se morre de
velhice (1994:145). O resto da descrição coincide com a dos outros autores, acrescentando um detalhe
interessante: quando um Karajá envelhecia naquele mundo, ele se sentava e ficava naquela posição,
imóvel.
28
37
Encontrei na bibliografia, duas versões contraditórias em relação à comida dos bero hatxi mahãdu
(povo do fundo das águas). Segundo Pétesch (1993: 366), este seres consomem os alimentos cozidos,
constituídos exclusivamente de peixe e de produtos vegetais não cultivados (frutas e tubérculos). Para
Rodrigues (1993: 401), estes seres comem peixe, vegetais (não cultivados) mas também consomem
carne, e tudo é pouco cozido. Isso talvez esteja ligado ao fato das duas autoras terem trabalhado com
subgrupos diferentes (respectivamente com os Karajá e com os Javaé). Os dados de Toral (sobre os
Karajá) confirmam os de Rodrigues (1992: 149).
38
Delfinídios sp. , Arapaima gigas.
39
Podocnemis sp..
40
Osteoglossum bicirrhosum.
29
os humanos terrestres enfatizando sempre algumas diferenças : são mais brancos (têm
a pele clara), têm os cabelos enrolados, e estatura diferente: são maiores ou menores.
Estes seres visitam regularmente os humanos terrestres, vestindo-se com roupas de
palha e máscaras (“capacetes”) específicas (Toral 1992: 151). Cada Ijasò possui sua
representação mascarada que é sempre dupla. Um Ijasò é representado na terra por
duas máscaras, quase iguais: há sempre uma mais perfeita que a outra (Pétesch 1992:
120).
Só os hyri (xamãs) podem visitar o mundo subaquático. Na volta, eles contam
aos humanos terrestres o que viram lá embaixo. Segundo Toral (1992: 151, meus
grifos) “em sua casa, os ijasò estão como que engessados em posições estabelecidas e
hieráticas, prontos a serem visitados pelos hàri [xamãs] da superfície. (...) Todos eles
olham para o oeste. (...) Na representação fiel do ijasòheto [casa dos Ijasò] que os
Karajá constróem na superfície, as máscaras dos ijasò também devem ser dispostas
de maneira a ficarem voltadas (olhando) para o oeste, o lado nascente em Berahatxi
[bero hatxi].”
41
Mitos da gênesis karajá encontram-se na tese de Pétesch (1992, anexo: 144), em Toral (1993:1-32,
anexo 1), e em Lima Filho (1994: 139-145).
42
Segundo Lima Filho, os heróis transformadores vieram do céu e (alguns) voltaram para lá,
descrevendo um movimento de ida e volta semelhante ao dos pré-humanos aquáticos que subiram à
superfície e (alguns) voltaram para baixo (1994: 149). Esta idéia contrapõe-se à de Pétesch (1992;
1993), que descreve o movimento dos pré-humanos para a terra e dos heróis transformadores para o
céu como um movimento ascencional, ou seja, como uma ida simples e não uma ida e volta.
43
A alma (tykytyby - pele velha) do xamã é a única que tem o privilégio de seguir para o mundo celeste
depois da morte (destino escatológico mais valorizado pelos KARAJÁ). As almas dos humanos
30
tyky, i.e. pele da chuva. Segundo Pétesch (1992: 83), ele contém água que seus
habitantes, só com o piscar de seus olhos, largam sobre a terra.
O mundo do céu é muito parecido com o das águas, mas em uma versão mais
perfeita pois, no céu, não existem monstros (aõni); faz mais calor graças à
proximidade do sol; as águas dos rios são mais claras e, portanto, enxerga-se tudo e
de longe44. Lá em cima, se come muito peixe e carne, assim como todos os produtos
da roça; tudo sempre bem cozido. Os homens e as mulheres vestem-se e pintam-se,
usam o omaryre (tatuagem facial) e os enfeites de algodão e penas, como os humanos
terrestres (Rodrigues 1993: 393-394). As aldeias do céu são iguais às dos humanos
terrestres, mas em versões menores, mais perfeitas (Rodrigues 1993).
Segundo Toral (1992: 139), o mundo celeste estaria composto de três níveis
distintos. O primeiro seria o biurawetyke, que corresponderia ao que Rodrigues
(1993) chama de biu-e-tyky, espaço celeste mais próximo da terra onde circulam as
nuvens e, provavelmente, local de moradia dos Ijasò do céu. Acima deste primeiro
nível estaria o Kanysiweisy, morada do Kanysiwe (ou Kanÿxiwe), herói
transformador, por onde passa a lua. Enfim, o terceiro nível seria a morada de Xiburè,
o grande xamã celeste (Hyri Hykÿ), onde ficam as estrelas45. O “caminho por onde
vai o sol” (txury-ò), descreveria um círculo em volta destes cinco níveis
cosmológicos: a terra, o bero hatxi (mundo das águas) e os três níveis celestes, o que
explicaria por que no mundo das águas é de noite quando na terra é de dia, já que no
mundo aquático o sol nasce ao oeste e se põe a leste46.
comuns ficam na aldeia dos mortos, embaixo do cemitério (wabède), ou seguem para o mundo
aquático (Rodrigues 1993:403-404).
44
A possibilidade de se “ver melhor e mais longe” não é um mero detalhe, é um dos elementos
essenciais do xamanismo e da feitiçaria KARAJÁ. O hyri é aquele que vê. Lima Filho (1994: 176)
termina a sua dissertação propondo como pista etnográfica a questão do olhar (e portanto do ver/não
ver) para os Karajá.
45
Se o mundo celeste é de onde se tem a visão mais nítida, mais clara, não nos surpreende que lá more
o Grande Xamã (ver nota anterior).
46
Se os KARAJÁ de verdade (humanos terrestres) são “o povo do meio”, em relação aos outros níveis
do cosmos, os Javaé (subgrupo KARAJÁ) dizem que são “o povo do meio” em relação aos dois outros
subgrupos (Karajá e Xambioá) (Rodrigues 1993). Pétesch atribui essa posição mediana dos Javaé à
ocupação territorial do grupo antes do contato: os Javaé costumavam viver no interior da ilha e não nas
margens do Araguaia e seriam caracterizados por um modo de vida mais terrestre (em oposição aos
dois outros subgrupos que sempre viveram ao longo do rio) e, portanto, mais móvel (1993: 370).
Voltaremos sobre a questão da mobilidade.
31
47
Assim, o macaco prego, o pássaro cigana (Opisthocomus Hoazin) e os porcos-do-mato eram gente, e
foram transformados em animais. Veremos mais adiante em que consiste esta transformação.
48
Mais um elemento que reforça a importância da questão da mobilidade/imobilidade encontra-se no
mito que conta como Kanÿxiwe roubou a luz do sol. O herói captura o urubu-rei (iòlò) pedindo-lhe que
lhe dê a luz. O urubu oferece-lhe três de seus mais belos cocares (raheto, casa de cabeça). Primeiro a
estrela d’alva. Kanÿxiwe recusa-a, pois esta brilha pouco. O urubu oferece-lhe então a lua, Kanÿxiwe
responde que ela também não presta. O urubu concede-lhe então seu mais belo cocar, o sol, e
Kanÿxiwe aceita. Depois disso, Kanÿxiwe quebra a perna dos três astros para que estes corram mais
devagar pelo céu, iluminem e esquentem durante mais tempo a superfície terrestre (ver Pétesch 1992:
424, mito 1.d). Segundo um informante, a estrela d’alva é o cocar de pena de arara amarela (canindé)
32
alteridade. Trata-se de monstros canibais que vivem nas grutas e cupinzeiros, de onde
só saem para procurar carne humana. São pequenos seres, pretos e peludos que podem
tomar uma aparência humana (inÿni49) para enganar suas presas (op.cit 1993: 368).
Os kuni também são seres temíveis. Eles são os espíritos dos mortos KARAJÁ (ou
estrangeiros, Ixÿju kuni) que morreram de forma sangrenta ou não tiveram um
enterro adequado. Os kuni vivem circulando entre o mundo de fora e a aldeia dos
mortos assassinados (hure mahãdu hawã)50. Para defender-se destes seres terrestres
perigosos era preciso ser ágil, veloz, saber agredir, enfim, saber lidar com “outros”51.
O movimento e os espaços abertos são as características da vida e do mundo
terrestres. Os seres que já habitavam este espaço, antes da chegada dos Inÿ Tyhy,
KARAJÁ de verdade, eram extremamente móveis. Para sobreviver foi preciso
aprender dos Ixÿ, animais-humanos, algumas técnicas e roubar deles instrumentos
indispensáveis à sobrevivência dos Inÿ Tyhy (Toral 1992: anexo: 2-17). Os heróis
transformadores ajudaram os KARAJÁ nesta tarefa até que crianças os ofenderam e
eles partiram para o céu52 (Toral 1992: 139). Por outro lado, os KARAJÁ também
tiveram que adaptar seus corpos a esse novo ambiente. Mas vamos primeiro as aldeias
que os Inÿ Tyhy construíram, à imagem das aldeias subaquáticas e celestes.
do urubu-rei; a lua é o cocar de pena branca (não sei de que pássaro), e o sol seria o cocar de pena de
arara vermelha, o “mais poderoso” (ver infra, a importância das penas de arara vermelha para o xamã).
49
Inÿ - ni , semelhante a um Inÿ, “semelhante a uma pessoa”. O mesmo pós-fixo -ni encontra-se nas
palavras kuni (“espírito de morto não socializado” - não sei o que significa ku-) e aõni (monstro), aõ é
coisa, i.e. “semelhante a uma coisa” (nenhuma das duas palavras é muito clara para mim).
50
Os worosÿ, mortos KARAJÁ, vivem no wabède, aldeia situada embaixo do cemitério. Para uma
descrição mais detalhada destes diferentes espaços, ver Rodrigues (1993:408-411).
51
Esses monstros terrestres também são chamados de bede rahy mahãdu (povo da terra/chão). Para
uma descrição mais detalhada dos diversos seres terrestres, ver Pétesch (1992:87). Alguns autores
traduzem bede como “mato”, outros como “terra”, ou como ambos. Um informante karajá traduziu este
termo como “chão”. Segundo ele, wabedè, o cemitério, seria “meu chão” e bede brò, o lado do mato
(em oposição ao lado do rio, biura) seria “as costas do chão”.
33
2.2.1 - As casas
Quando Ehrenreich visitou os Karajá, em agosto de 1888 (Baldus apud
Ehrenreich 1948: 8), as casas (heto) ainda eram construídas unicamente com madeira
e com palha de babaçu54(Malhano & Costa 1987: 64). Segundo Ehrenreich (1948:
35), sua forma era “retangular (...). A armação compõe-se, em cada lado, de três ou
quatro varas flexíveis apoiadas em forquilhas e ligadas às do lado oposto por meio
de cipós; constituem, assim, uma cobertura arqueada à maneira de canoa, e
suportada, ainda, por varas verticais fincadas na terra, em direção longitudinal. (...)
Sobre sarrafos finos, paralelos entre si, e fixados externamente na armação do
telhado, descansam as enormes folhas pinuladas da palmeira oaguaçu (Attalea
spectabilis), as quais, em várias camadas sobrepostas, formam uma cobertura
bastante impermeável. (...) À direita e à esquerda da porta estão fincadas duas varas
altas, que dão maior firmeza às camadas de folhas de palmeira do lado da frente.
52
Ver Pétesch (1992: 421, mito 1b).
53
No verão, ainda se vêem algumas famílias acampando nas praias que bordam o rio Javaés,
principalmente na época da desova das tartarugas e tracajás, muito apreciados pelos KARAJÁ, mas
não se mobilizam aldeias inteiras, como antigamente.
54
Segundo Costa & Malhano (1987: 64, nota 3) os Karajá usam também a pindoba como substituta do
babaçu.
34
55
Estas duas aldeias possuem também os outros tipos de casas descritas acima, mas em um número
inferior e, muitas vezes, localizadas fora do alinhamento das casas, em “bairros” que foram se
36
hetoku, casa da cozinha. Nela arma-se um jirau (anokudona, lugar onde se bota as
coisas, ou kuutò) e um fogo. Em alguns casos a cozinha fica em um canto da casa
(irarikò, cozinha de dentro da casa). Todos dormem em suas respectivas esteiras,
sendo que os casais possuem esteiras grandes onde dormem com os filhos menores.
Diz-se que os hyri (xamãs-feitiçeiros) só dormem com o rosto virado para o biura
(cabeça do céu, lado do rio, lugar onde nasce o sol) pois assim “enxergam melhor e
mais”.
desenvolvendo em torno do Posto da FUNAI ou/e da escola (ver Lima Filho 1994:36 e Rodrigues
37
pátio interno, hirarina) e um espaço mais público (a frente da casa, o ube) (ver Figura
1, infra).
Existem vários tipos de caminhos nas aldeias. O principal é o beyrari
(“caminho do lado da água”) que passa entre a primeira fileira de casas e o rio. Entre
cada fileira existe um caminho público, uma rua. Assim, entre a primeira e a segunda
fileira está o ubetyary (“caminho dos pátios do meio”) e por trás de todas as fileiras o
ixybròry (“caminho que fica por trás do povo da aldeia”) (Toral 1992:53-54).
Entretanto, esses três caminhos são evitados. Os KARAJÁ preferem circular pelas
passagens e caminhos laterais que ligam os quintais internos, pelos fundos (op.cit
1992: 53). Reforçando esta idéia, Rodrigues (1993: 155) explica que os Javaé
preferem não andar sem rumo pela aldeia, pois assim se exporiam demais aos feitiços.
Por esta razão não se deixa as crianças brincarem fora do espaço feminino da casa
(hirarina). Como já disse, os caminhos que levam à Casa dos Ijasò (ijasòry) não são
utilizados por mulheres ou crianças, que tampouco podem penetrar no espaço
masculino (ijoina). Quando as mulheres precisam ir para o mato colher frutas ou
castanhas, ir à roça ou sair da aldeia por algum outro motivo, têm que utilizar os
caminhos que contornam o ijoina, de onde elas não podem ver nada. O ijoina não é
apenas o lugar de reunião dos homens, ele é também o centro cerimonial e político da
aldeia pois é nele que se confeccionam e guardam as máscaras dos Ijasò, é nele que se
recebem as entidades e onda estas dançam ao longo do ritual (Toral 1992: 53-54).
Assim, considerando o plano da aldeia, vemos que além da tripartição (alto,
meio e baixo) da aldeia, constata-se a existência de uma divisão que separa a aldeia
em dois: o espaço doméstico e o espaço público-ritual56.
É importante lembrar que a divisão: alto, meio e baixo também é válida ao
nível dos subgrupos KARAJÁ: os Karajá sendo os ibòò mahãdu (povo de cima), os
Javaé os itya mahãdu (povo do meio) e os Xambioá os iraru mahãdu (povo de
baixo). Essa divisão se reproduz também entre aldeias vizinhas. Por exemplo, para os
habitantes de Fontoura, aldeia karajá situada ao norte da Ilha, os de Santa Isabel (mais
ao sul, a montante) são ibòò mahãdu (de cima), enquanto os de Macaúba (mais ao
1993).
56
Para o ritual, são construídas: a Casa Grande (Hetohykÿ), situada rio acima, que é erguida pelo
grupo masculino de cima (ibòò ijoi); a Casa Pequena (Hetoriore), situada rio abaixo, erguida pelo
grupo masculino de baixo e o túnel (hererawy) que liga as duas Casas, erguido pelo grupo do meio
(itya ijoi) (Pétesch 1993: 373-374 e Lima Filho 1994:85-89).
38
norte, a jusante) são iraru mahãdu. Enfim, cada aldeia reproduz a divisão
internamente, marcando o pertencimento dos moradores a um dos três grupos.
2.2.3 - Roças
As roças (oworu) ficam geralmente a alguns quilômetros das aldeias, nas
margens do rio. Nelas se planta mandioca mansa e brava, batata doce, cará, abóbora,
banana, algodão, urucum, tabaco, milho e melancia (Donahue 1982: 55; Pétesch
1992: 29). Antigamente, o milho cultivado pelos Karajá tinha grãos escuros (Lima
Filho 1994: 22-23). O arroz, assim como o feijão foram introduzidos com o contato
com os Tori e adotados como base da alimentação pelos KARAJÁ, que passaram a
comprá-los na cidade e, as vezes, à cultivá-los (Donahue 1982: 83)57.
Segundo Pétesch (1992: 27) as roças são abertas a uma certa distância das
aldeias, recuadas em relação ao curso do rio, para não serem atingidas pelas águas.
Quando as águas dos rios desciam (beetxi), os KARAJÁ costumavam plantar
pequenas roças nas margens recém emersas, muito férteis58. Nestas roças de beira de
rio eles plantavam vegetais cujo ciclo de crescimento era curto: alguns tipos de milho,
amendoim, abóbora e melancia (Pétesch 1992: 31).
Vimos que, sob vários aspectos, o espaço aldeão KARAJÁ reflete a estrutura
social e cósmica desta sociedade macro-jê. No espaço estão inscritas divisões
fundamentais da organização social, tais como a divisão espacial entre um lado
doméstico e um lado público que é uma das características principais das
organizações sociais jê e bororo (Carneiro da Cunha 1993: 85). A tripartição alto,
meio e baixo é fundamental na organização do ritual (Pétesch 1993: 374, Lima Filho
1994: 81) mas também serve como um “mapa” das divisões étnicas, cósmicas e em
um nível mais geral, sócio-cerimoniais (Pétesch 1993: 372). No espaço KARAJÁ,
assim como no caso dos Jê, “ (...) à tout principe d’organisation sociale est assignée
une place, un espace (...)” constituindo um verdadeiro “aide-mémoire” (1993: 85).
A partir dos dados e dos mitos expostos acima, é possível constatar que, se
por um lado, os KARAJÁ, para poderem se adaptar ao mundo terrestre, tiveram de
57
Um informante me disse que “antigamente, o índio karajá já plantava feijão”, não pude saber
exatamente a que época ele se referia.
58
Quando descreve estas roças de verão a autora utiliza o passado, portanto, deduzo que essa prática
foi abandonada. Entretanto, em Porto Txuiri, pude constatar a existência de uma destas pequenas roças,
plantada por um morador, na beira do barranco, do lado de sua casa, e onde cresciam pés de mandioca
mansa e brava.
39
transformar seus corpos, eles não precisaram mudar suas aldeias. Tanto os KARAJÁ,
quanto os autores que falam sobre o tema, concordam em dizer que, nos mundos
aquático e celeste, as aldeias são idênticas às aldeias KARAJÁ da superfície, a única
diferença é que, as aldeias subaquáticas e celestes são melhores, mais bonitas e
duradouras.
40
59
A aldeia karajá de Macaúba foi fundada pela Missão Novas Tribos mas, segundo os desenhos de
Donahue, possui o mesmo tipo de planta que as demais aldeias KARAJÁ (Toral 1992: 82; Donahue
1982: 183).
41
Idjaú Karajá
60
Um dos motivos, sem dúvida, era uma luta religiosa e ideológica não explicitada entre a freira,
católica, e a mulher do cacique, crente.
42
61
Tudo o que dependia da Prefeitura de Formoso (Município) foi fechado, desativado e retirado, na
época da ocupação de Porto Piauí pelos KARAJÁ (Posto de Saúde, motor gerador de energia elétrica,
televisão e antena parabólica comunitária). Por outro lado, o Governo do Estado do Tocantins, aliado
do cacique, manteve a Escola aberta e ajudou na instalação da rede elétrica e na extensão da linha
telefônica até a casa do cacique.
43
durante um tempo); e as instituições que estão abandonadas ou que são utilizadas para
outros fins (moradia, jogos, danças) como a Igreja Católica e a antiga sede da FUNAI.
bisavó63. É nesses pátios internos que as famílias passam a maior parte do dia.
Distinguem-se do espaço situado na frente da casa onde as famílias se instalam no
final da tarde para conversar e/ou assistir aos jogos de futebol. Acredito que o pátio
interno e a frente da casa correspondem respectivamente ao que Toral descreve como
hirarina (pátio das meninas) e como ube (pátio externo público). Assim como nas
outras aldeias, estes dois espaços são utilizados de formas diferentes e em diferentes
momentos. No pátio interno se cozinha e se come, é nele que as crianças ficam
quando não estão na escola, no rio, ou, à tarde, brincando juntas na Igreja; é nele que
se conversa com parentes, que as mulheres confeccionam as esteiras e algumas peças
de artesanato para vender. Os homens se sentam no pátio para confeccionar as armas
(arcos, flechas, bordunas), fazer alguns adornos, tais como o raheto (cocar de plumas
usado durante o ritual de iniciação) ou ornamentos de miçangas para um parente, ou
para a venda.
No final da tarde, as famílias instalam suas esteiras na frente da casa (ube).
Conversam, recebem visitas de parentes e vizinhos, comentam o jogo de futebol ou
algum acontecimento do dia. As mulheres, as vezes, continuam seus afazeres na
frente da casa, mas os homens nunca trabalham aí. Tampouco é um lugar onde se
pode comer. É muito mal visto comer à vista de todos, fora do pátio64. Trata-se de um
espaço mais público e masculino do que o pátio interno, pois as mulheres não o
utilizam quando estão sós e é onde os homens recebem as visitas. Também porque se
trata de um espaço mais visível (Toral 1992: 56). Todos podem ver o que se passa na
frente da casa, o que não é o caso com o pátio interior.
3.2.2 - A casa
As casas são, com algumas exceções, de alvenaria, e possuem vários cômodos
(dois ou três na maioria dos casos), divididos por paredes de tijolos. Pude constatar
que a utilização do espaço interno da casa não é o mesmo que o dos Tori que ainda
moram na aldeia. Geralmente, os KARAJÁ utilizam um só cômodo como espaço de
dormir, enquanto outro é usado como depósito. A cozinha fica do lado de fora, na
62
É importante lembrar que a importância da estrutura espacial da aldeia não é uma exclusividade
KARAJÁ, mas sim, uma das características principais dos grupos Jê e Bororo.
63
Toral afirma ser este o caso nas aldeias karajá, mas não fornece um exemplo preciso que possa servir
como base comparativa com Porto Txuiri.
64
A única exceção parecem ser as frutas e o iweru (bebida não fermentada feita à base de mandioca,
milho ou arroz, à qual se acrescenta mel ou açúcar). Ainda assim, lembro-me bem que os mais velhos
se recolhiam no quintal para consumir a bebida, longe dos olhares alheios.
46
parte coberta do quintal que quase todas as casas possuem. Em todos estes pontos a
ocupação das casas KARAJÁ difere das dos Tori que normalmente ocupam todos os
cômodos da casa, separando a cozinha da sala e dos quartos e mantendo apenas o
banheiro do lado de fora.
O tipo de leito utilizado no espaço de dormir varia muito. Algumas casas
possuem camas de madeira armáveis e colchonetes adquiridos na cidade, mas
continua-se preferindo a esteira como superfície para se deitar. As camas, com ou sem
colchão, são cobertas pela esteira sobre a qual a pessoa se deita65. Algumas famílias
possuem redes, mas pude observar que estas são usadas preferencialmente para deitar
os bebês e as crianças pequenas66.
É também na esteira que as mulheres e as crianças se sentam quando estão no
pátio ou na frente da casa. Os homens preferem usar os bancos mas, quando estão
com a esposa, sentam-se na esteira.
À noite, quando já escureceu, depois do jogo de futebol e da última refeição
do dia, estendem-se novamente as esteiras do lado de fora da casa, no espaço
correspondente ao ube. Os casais se deitam com as crianças em suas grandes e largas
esteiras, os mais velhos e os solteiros em esteiras menores, individuais. Assim,
passam horas conversando, às vezes, até de madrugada67. Em Porto Txuiri, os
KARAJÁ podem assistir televisão em quatro casas diferentes, todas casas de Tori68.
À tarde, antes do jogo, as crianças e os jovens não casados costumam pedir para
assistir televisão nas casas dos Tori. O missionário instalou sua televisão (que possui
antena parabólica) no quintal, e é comum ver uma dezena de jovens e crianças
assistindo a desenhos animados americanos ou filmes violentos em inglês69. À noite,
algumas famílias assistem ao Jornal Nacional e a alguma novela na casa do cacique
ou das duas professoras.
65
Quase todos possuem mosquiteiros. As famílias que possuem um ou vários membros assalariados
(seja ele um professor da escola ou um aposentado), geralmente possuem camas.
66
Ehrenreich (1948: 33) menciona a existência de um objeto chamado “riio” que seria muito
semelhante às redes de dormir. Segundo ele, essa peça trançada em algodão seria usada apenas como
manto durante o dia e estendido como esteira à noite. Mas, como em Porto Txuiri, as “macas
suspensas por meios de cordéis são usadas sòmente como berço de recém-nascidos.”
67
Os mais velhos contam histórias dos tempos passados e mitos.
68
Creio que, hoje em dia, quase todas as aldeias KARAJÁ possuem, ao menos, uma televisão.
69
Os filmes que apresentam cenas de lutas e brigas são os mais populares, principalmente, os filmes de
artes marciais.
47
70
Existem xamãs “especialistas” em Ijasò que os trazem para a superfície, e organizam as atividades
rituais (ver nota seguinte).
71
Segundo Toral (1992), os KARAJÁ caracterizariam cada pessoa detentora de um certo tipo de saber
pelo pósfixo “senhor” (du). Assim, os “especialistas” em cada área seriam designados como: “senhor
da pescaria” (wasidu), “senhor dos cantos” (wiudu), “senhor da luta” (ijesudu) e até os grandes
bebedores de cachaça seriam “senhores da cachaça” (casasádu). Esses títulos, como os chama Toral
(1992: 77), designariam aqueles que se destacam em uma atividade e que, portanto estão aptos a
transmitir seus saberes. Já o pósfixo wedu, “dono”, designaria não só o detentor de um saber mas
também aquele que exerce a liderança e o comando de um grupo em si, ou para alguma atividade
específica. Assim, existiria o dono da roça (koworuwedu), o supervisor dos trabalhos agrícolas, o
“dono do grupo de homens” (ijoiwedu) durante os rituais ou na Casa dos Ijasò, (op.cit 1992: 77). O
pósfixo dinodu designaria, por sua vez, os líderes propriamente ditos. O ixÿdinodu, líder do povo era,
antes do contato, o líder da totalidade da comunidade tanto frente às entidades cosmológicas que
visitam a aldeia, como frente aos moradores de outras aldeias KARAJÁ, ocupando portanto as funções
que, hoje em dia, estão divididas entre o ixÿtyby (pai do povo) ou ixÿwedu (dono do povo) e por outro,
o cacique. O cacique ocupa uma posição de “pacificador” no nível interno (questões do quotidiano:
brigas, adultério, roubos etc.) e de “negociador” a nível externo, i.e., nas relações com a FUNAI, na
realização de projetos na aldeia, na organização de festas (churrascos, encontros de futebol e, ao menos
48
sendo crente, não permitiria a construção da Casa a não ser para fins turísticos72. É
possível que o cacique não queria permitir a construção da tal Casa por questões
religiosas, mas é importante ressaltar outro fato importante: ele mesmo não foi
iniciado73. Para que serviria essa Casa se o cacique não pode entrar nela e participar
das atividades que se desenvolvem em seu espaço ?
Em um primeiro momento, acabei me conformando com o fato de que Porto
Txuiri era uma aldeia sem espaço masculino. A não realização dos rituais de iniciação
e dos Ijasò parecia-me, evidentemente, decorrer deste fato. No entanto, se
observarmos mais atentamente os movimentos na aldeia, percebe-se que, apesar de
não existir uma Casa dos Ijasò propriamente dita, semelhante à das outras aldeias
KARAJÁ, existem diversos espaços ocupados, de forma diferente, pelos homens, em
função de sua classe etária.
Os mais velhos, principalmente os que já são avós (ulabi(k)e), costumam ir
regularmente à casa do cacique. Este os recebe habitualmente em seu pátio interior.
As conversas não costumam ser muito extensas, mas todas tratam sobre temas
políticos, sejam eles internos ou externos. Os mais velhos vão se informar sobre a
última viagem do cacique à Brasília, este lhes conta sobre sua entrevista com o
Governador ou sobre seu projeto de cooperativa. Também conversam sobre a
organização de festas como o Natal e o Ano Novo. Assim, os mais velhos conversam
com Idjarruri sobre as tarefas de cada um nas festas: alguns ficam responsáveis pela
limpeza da aldeia, outros pela preparação da mandioca (as mulheres da família de um
dos homens, por exemplo), e outros pelo churrasco (cavar o buraco, cortar os espetos,
cortar a carne, assar a carne e, finalmente, servi-la74).
no caso de Porto Txuiri, Natal e Ano Novo). Para isso, exige-se do cacique que ele saiba dialogar com
os Tori, e portanto falar sua língua e conhecer as “coisas de Tori”.
72
Este informante explicou-me que, tanto o cacique quanto a sua esposa eram “contra” a construção da
Casa (que já havia sido requerida por dois homens da aldeia (ambos, depois, se mudaram)), por serem
“crentes”, mas que este mesmo cacique lhe havia comunicado recentemente que estava considerando a
possibilidade da construção da Casa como parte do projeto de ecoturismo que pretende implantar na
Ilha e, mais especificamente, na aldeia.
73
A esposa do cacique proibiu que seus dois filhos (que já ultrapassaram a idade da iniciação) fossem
iniciados, pois, ela estaria “entregando os filhos ao demônio”. Ela interpreta o momento no qual os
Ijasò levantam as crianças do solo (segurando-as por baixo dos braços) como sendo o ato de
“entregar” os meninos para o “Mal”. Isso provoca comentários na aldeia, e é muito mal visto,
principalmente pelos não-crentes, i.e. a maioria da população. Em uma ocasião, explicaram-me que, ao
não serem iniciados, os filhos do cacique eram como “mulheres”.
74
Em Porto Txuiri, a carne é asada em espetos, colocados em cima de um fogo aceso dentro de um
buraco na terra. Não sei se procede desta maneira nas outras aldeias.
49
Mas o que fazem os mais jovens, aqueles que já têm idade para serem
iniciados (weriri hykÿ, menino grande) ou que já foram iniciados (weriribo, jovem
homem) em outra aldeia75?
Em 1999, encontrei uma casa muito particular em Porto Txuiri. Era uma casa
aparentemente abandonada. A primeira vista, ela parecia estar quase desabando.
Vários caminhos saem de seu pátio interno, mas ignoro aonde levam: parecem levar
apenas em direção ao matagal. Essa casa fica na segunda fileira de casas, quase na
parte que corresponderia à ponta “de cima” da aldeia (ver Mapa 3, supra), quase na
frente da escola. É nela que os jovens rapazes se reúnem, conversam, se pintam e
desenham, nas paredes, diversas figuras que chamaram muito a minha atenção. A
maioria dos desenhos representa ninjas ou heróis mascarados (Spawn, Super-Homem
e Homem Aranha)76. Ao lado destas figuras há inúmeros desenhos de Ijasò. Todas as
paredes estão desenhadas. Também se pode ver os nomes dos rapazes, escritos nas
paredes com giz ou tinta preta.
O que esses dados nos permitem sugerir é que o espaço masculino de Porto
Txuiri existe, mas de forma atomizada. Os homens se apropriaram de diversos
espaços, em função de seus grupos de idade. Assim, a casa do cacique e seu pátio
interior são freqüentados para as discussões políticas mais reservadas, e
principalmente pelos homens mais velhos (hãbu ijoityhÿ, homem casado com filhos;
ulabie, avô e matuari, velho); a casa dos desenhos de máscaras é freqüentada pelos
rapazes não-casados (weriri hykÿ, menino grande, weriribo, jovem homem) e alguns
recém casados (hãbu). A frente da casa do cacique também é utilizada mas desta vez
para eventos coletivos: discursos do Idjarruri e pronunciamentos importantes que
dizem respeito a toda a comunidade (mas não aos Tori de fora da aldeia).
3.3.2 - Os pronunciamentos
Em dia de pronunciamento, o cacique avisa os moradores, através de um dos
vice-caciques ou de um professor da escola, que na noite seguinte haverá “dança”
(isè). No final da tarde, a esposa do cacique, ajudada por professoras, crianças e
75
As categorias de idade KARAJÁ foram descritas por Dietschy (1978), Toral (1992: 111-116) e
Donahue (1982: 97-98).
76
Em cima de um dos desenhos que representava um ninja mascarado havia a seguinte inscrição:
“Feitiçeiro ninja”. Essa fascinação pelos filmes e desenhos de luta assim como de figuras mascaradas
não é exclusiva dos KARAJÁ (os Wari’ de Rondônia também gostam desse tipo de filmes de porrada”,
por exemplo) (Vilaça 1996a).
50
moças (Tori ou KARAJÁ) prepara baldes de suco artificial (a ser servido após o
discurso).
Por volta das 18 horas os moradores da aldeia (KARAJÁ e Tori) começam a
chegar na casa e no pátio (interno) de Idjarruri. Todos vão pegando cadeiras e
instalando-as na frente da casa, em semicírculo. As mulheres e crianças se sentam
enquanto os homens KARAJÁ iniciam a dança. Dividem-se em duas fileiras
paralelas, frente a frente, e dançam em linha, para frente e para trás. Assim as duas
fileiras vão se aproximando e se afastando em cadência e, todos os dançarinos cantam
simultaneamente. Constatei que alguns meninos novos, inclusive crianças tori,
dançam junto com os homens. Ijaú me disse que essa dança era parte do Hetohykÿ.
Nunca pude assistir a um ritual de iniciação KARAJÁ mas acredito que, esta
dança, no contexto do ritual, provavelmente exclui a participação de crianças. É
evidente que, neste caso, trata-se de uma dança informal (todos riem, cantam, gritam)
destinada à diversão dos homens, mas também da assistência. Logo depois da dança,
o cacique, que fica sentado na frente de sua casa em uma cadeira (com um vice-
cacique de cada lado), levanta-se e faz o discurso. Nas duas ocasiões em que pude
assistir a esse evento, o tema era a viagem que ele havia feito a Brasília onde havia
conversado com dois ministros sobre um projeto de cooperativa que ele estava
implantando na aldeia (cooperativa agrícola, de pesca e de artesanato). Depois do
discurso o suco é servido e, rapidamente, todos se dispersam e voltam para suas casas.
O espaço do ube do cacique é portanto utilizado com o espaço público “interno” na
aldeia. Explico-me. Trata-se de um espaço interno pois nele são expostas e discutidas
questões internas, que dizem respeito aos moradores da aldeia, exclusivamente77.
Além disso, trata-se de um local preservado dos olhares dos Tori do outro lado78. As
danças que se realizam nele são para a diversão da comunidade (homens e crianças
dançam, usam roupas manufaturadas e não se pintam) e não para a exibição ao
público estrangeiro. Para isso está a praça.
Vimos, portanto, que os homens de Porto Txuiri se apropriaram de vários
espaços, para fins diversos. Não quero dizer com isso que as mulheres não freqüentem
77
Quero esclarecer que estes eventos aconteceram em maio de 1999, o que não quer dizer que isso não
mude ou que esse seja um espaço unicamente reservado para esse tipo de evento. Parece que, durante
os três anos em que estive visitando a aldeia, os moradores foram testando, provando, se acomodando
em seu espaço. Não quero transmitir uma idéia de rigidez, descrevo o que pude observar entre 1996 e
1999.
78
No espaço do quintal e da frente da casa do cacique também são organizados os churrascos de Natal
e Ano Novo (ver Fotos 11 e 12).
51
a casa do cacique, por exemplo. É comum ver mulheres com seus filhos (hãwyy
wyrioredu, mães) aparecerem no quintal de Idjarruri, mas essas visitas são feitas mais
especificamente à sua esposa, para pedir-lhe remédios ou algum alimento (açúcar ou
farinha). As jovens idjadoma (moças) não costumam entrar neste espaço
desacompanhadas. Entretanto, meninas, crianças e mulheres, não entram na casa dos
desenhos. Os homens também se apropriaram de um outro espaço em Porto Txuiri: a
praça da Igreja.
79
Vi fotos da inauguração da aldeia nas quais até o cacique aparece de rosto pintado. Para os
pronunciamentos, o cacique de Porto Txuiri não se pinta, nem participa da festa, apenas assiste até
chegar a hora do discurso.
80
Em 1996, as mulheres e as crianças costumavam jogar várias partidas antes das partidas dos homens.
Em 1998 e em 1999 não pude mais observar isto. Não sei porque motivo essas partidas não acontecem
mais. No máximo, as crianças jogam futebol dentro da Igreja.
52
partidas e dos times. Porém, há uma exceção. Quando um time de outra aldeia vem
jogar em Porto Txuiri, ele tem de enfrentar três times formados.
Em 1996 e 1997, estes times não existiam. Em 1999, apenas pude saber quem
eram os “donos” dos times. Os três times de Porto Txuiri são, respectivamente: - o
time do Davi (missionário americano das MNTB); - o time dos pescadores (ou do
Tindô, Tori casado com uma professora da escola); - o time do Kraó (mestiço, filho
de uma mulher Tori com um Javaé que já morava em Porto Piauí)81. O fato de eu não
ter conseguido obter a descrição da formação de cada time, e de não ter tido a
oportunidade de ver outros jogos, não me permite analisar em detalhes este fato. No
esquema sócio-cerimonial KARAJÁ esquematizado por Pétesch, o grupo de baixo é o
dos pescadores e caçadores, em oposição ao do meio, da chefia política e religiosa, e
ao de cima dos guerreiros (1993: 372). O que é ainda mais interessante de se constatar
é que as casas do cacique e dos dois xamãs de Porto Txuiri estão situadas no que
corresponderia, em um esquema ideal, ao grupo do meio.
Me parece importante ressaltar que, quando os jogadores de Porto Txuiri
enfrentam um ou vários times de outra aldeia, eles se organizam em times, dirigidos
por três não-índios que ocupam as três posições distintas no espaço aldeão. Nas outras
aldeias KARAJÁ, é no espaço do ijoina que acontecem as principais performances
rituais: as brincadeiras (rituais e jogos rituais). Durante o ritual de iniciação, por
exemplo, os três grupos de praça masculinos (iboò mahãdu, iraru mahãdu e itya
mahãdu) tem seu espaço, sua função e seu tipo de alimentação definido. Cada grupo
é responsável por um tipo de construção (Casa Grande, Casa Pequena e galeria
vegetal) (Pétesch 1992: 374; Lima Filho 1994: 81)82.
81
É interessante notar que, os “donos” dos três times são ou Tori (em dois casos) ou “misturados” (no
caso do Kraó, filho de Tori e Javaé). Outro aspecto interessante é que, cada um desses “donos” mora
em posições diferentes dentro da aldeia: o missionário mora na ponta sul (de cima), o Tindô
(pescadores) mora na ponta norte (de baixo), e o Kraô (“misturado”) mora no meio (itya). Sobre a idéia
de “dono” ver infra.
82
Durante a fase intercomunitária do ritual, os homens da aldeia onde acontece o Hetohykÿ,
representando os seus mortos (worosÿ, mortos socializados que vivem no wabède, aldeia dos mortos)
recebem a visita dos homens de outra aldeia, cada grupo representa respectivamente os mortos de sua
aldeia. Pétesch descreve o caso de Santa Isabel. Os homens da aldeia anfitriã representam os worosÿ de
cima e recebem os worosÿ de baixo (de Fontoura). De fato, a aldeia de Fontoura está situada a jusante
de Sta Isabel. A recepção dos convidados se faz através de uma série de confrontos entre os dois
grupos: na beira do rio, os de cima tentam impedir o desembarque dos de baixo, travam-se lutas (ijesu)
entre indivíduos da mesma classe etária dos dois grupos, os convidados tentam derrubar o grande
mastro erguido pelos anfitriões etc. A recepção dos convidados se faz através do enfrentamento e da
disputa. Cada vitória de um ou outro grupo é festejada pelo público com o mesmo entusiasmo e a
mesma paixão que as partidas de futebol inter-aldeãs. Descrições minuciosas desta fase do ritual
encontram-se em Pétesch (1992: 228-240) e Lima Filho (1994: 85-96;130).
53
83
Na época da seca, em 1996, as mulheres e as crianças juntavam os cacos de garrafas na aldeia e em
volta do bar e os revendiam para o dono de um caminhão que, todo mês, passava para recolhê-las. A
partir de 1997, coincidindo com a abertura da Assembléia de Deus e, depois, com a chegada dos
missionários, o consumo de bebida alcoólica na aldeia diminuiu de forma considerável. Em 1999, o
alcoolismo não parecia ser mais um problema para os moradores de Porto Txuiri.
54
Duas vezes ao dia passa um ônibus (Viação Javaés) na estrada que leva à
cidade de Formoso do Araguaia. De manhã, ele passa apenas para deixar passageiros
e segue para uma cooperativa que fica mais ao sul. Na volta, o ônibus pega
passageiros e os leva até a cidade em uma viagem de uma hora aproximadamente.
Trata-se de uma linha que foi estabelecida na época de Porto Piauí, quando muitos
colonos trabalhavam na cidade ou nas cooperativas da região84. Os KARAJÁ vão para
a cidade quando conseguem dinheiro suficiente para a passagem (que custa R$ 3,50),
ou quando precisam de assistência médica e recebem as passagens da FUNAI. Apenas
os homens vão sós para a cidade; as mulheres seguem sempre acompanhadas pelo
marido e pelos filhos pequenos. Os mais velhos, quando vão receber a
aposentadoria85, preferem muitas vezes pagar um frete, na kombi do missionário ou
no carro de algum pescador, apesar do alto valor cobrado (5 reais por pessoa cobrados
pelo missionário, 50 reais pelo frete por outros).
Até 1998, do lado do bar havia um Posto Telefônico que funcionava o dia
inteiro e onde quatro pessoas trabalhavam: três telefonistas e uma faxineira, todas
Tori86. Duas telefonistas moravam em Porto Piauí, uma delas mudou-se para o Capão
de Coco e a outra, professora da escola, continua morando na aldeia. A terceira
telefonista é esposa do dono do bar e mora em uma casinha do lado. A faxineira
morava em uma fazenda próxima. Em 1996, quando elas atendiam o telefone,
continuavam dizendo “Porto Piauí bom dia...”e , de fato, este espaço que compreendia
o telefone, o bar e a estrada era considerado por todos como Porto Piauí. De alguma
forma, foi o que restou do vilarejo, do mundo ao mesmo tempo estranho e próximo
dos colonos. Esse “pedaço de Porto Piauí” até hoje é, para os KARAJÁ de Porto
Txuiri, uma espécie de ponto de partida para o exterior: a cidade. Para chegar à
cidade, não se circula mais de canoa ou a pé, para cima e para baixo, mas sim
horizontalmente e em “condução”.
84
Na área entre o rio Javaés e a cidade de Formoso do Araguaia está instalada a maior cooperativa
agrícola do Estado da qual faz parte o Projeto Rio Formoso de irrigação (são milhares de hectares de
arroz e milho irrigado pelas águas do Rio Formoso, afluente do Javaés). Para mais informações sobre a
situação geográfica e econômica do Estado remeto a Ajara C., Figueiredo A., Bezerra V. e Barbosa J.
(1991).
85
O FUNRURAL concede aos Índios uma aposentadoria que corresponde a um salário mínimo.
86
A linha e a antena do antigo posto telefônico foram aproveitadas e conectadas ao aparelho de telefax
do cacique, em sua casa.
55
PRIMEIRAS CONSIDERAÇÕES
Vimos portanto que Porto Txuiri não é apenas uma aldeia de Índios
“aculturados” e muito menos um vilarejo de Tori. Quando se instalaram no vilarejo,
os KARAJÁ se preocuparam em restabelecer o esquema linear de suas aldeias de
origem, ocupando as casas de forma seletiva. Isso, ao meu ver, a torna plenamente
uma aldeia KARAJÁ pois, como mostram autores como Pétesch (1992), Toral (1992)
e Lima Filho (1994), é no plano espacial da aldeia que se inscrevem as divisões
sociológicas fundamentais para os KARAJÁ: as divisões no espaço aldeão (alto, meio
e baixo) reencontram-se no ritual e refletem tanto uma organização étnica (Karajá,
Javaé e Xambioá) quanto cósmica (mundo celeste, mundo terrestre, mundo
subaquático). Nas sociedades Macro-jê, e mais particularmente nos casos Jê e Bororo,
as categorias sociais fundamentais estão como que desenhadas no espaço aldeão
(Carneiro da Cunha 1993: 85). A disposição das casas, as divisões que recortam a
aldeia em vários espaços permitindo a presença ou circulação de certas categorias de
pessoas e excluindo outras, a nítida divisão entre vida doméstica e vida ritual (que
também encontra-se marcada espacialmente, geralmente, através de um espaço ritual,
central e uma periferia doméstica - nas aldeias circulares), tudo isso está marcado no
espaço da aldeia (na disposição de seus elementos, sua ocupação, suas funções
distintas e nos nomes usados para cada um deles).
Sem dúvida, a questão da Casa dos Ijasò é problemática. Considerar que o
espaço masculino em Porto Txuiri existe mas está desmembrado e divido entre vários
espaços (a casa do cacique, a casa dos desenhos e a praça) não soluciona tudo, pois é
preciso lembrar que nesta aldeia não se organizam os rituais. Isso, sem dúvida, está
ligado ao seu tamanho relativamente pequeno, à sua constituição recente, e,
principalmente, à ausência de um xamã (hyri) especialista nos assuntos cerimoniais.
De fato, na aldeia Boto Velho (javaé), por exemplo, durante um bom tempo (não sei
ao certo quanto) não havia Casa dos Ijasò, por não haver “especialista” na aldeia. Na
década de 1990, alguns xamãs experientes saíram de Canoanã e foram para Boto
Velho para lá construir uma Casa87.
87
Essas informações foram fornecidas por Rodrigues (1999), em uma carta pessoal. A construção da
Casa é indispensável à realização dos rituais, portanto, onde há Casa, há automaticamente,
possibilidade de realização do ritual. Rodrigues explicou-me que uma das condições necessárias para a
realização do ritual é que as famílias tenham um mínimo de “riquezas” (fartura nas roças, grande
capacidade de pesca e caça) pois todo ritual, tanto o dos Ijasò como do Hetohykÿ, gira em torno da
56
obrigação das famílias (os “ donos dos Ijasò”) envolvidas em alimentar as entidades vindas para a
festa. Rodrigues (1999, com.pessoal) escreveu-me assim: “Quem não tem roça não inicia seu filho no
Hetohykÿ, nem recebe Ijasò de um xamã, o que é também uma grande vergonha”. Não ter roça é
vergonhoso, assim como não ter iniciado seus filhos .
88
Há oito anos esse ritual não era mais realizado do lado javaé da Ilha (ISA 1995).
89
Quero ressaltar que, desde sua inauguração, em 1995, houve apenas uma morte em Porto Txuiri: a
de uma menina de três meses que foi enterrada em Canoanã (para mais detalhes sobre a questão da
ausência de cemitério em Porto Txuiri, ver Bonilla 1997).
57
coincide com o que era antes. Como diz Sahlins, as estruturas modificam-se no
processo de reprodução. O importante, diz ele, para entender a dimensão histórica das
sociedades em questão, não é tanto saber como os eventos são ordenados pela cultura
mas sim, no processo histórico, como a reprodução de um estrutura torna-se sua
própria transformação (op.cit: 8). Em um primeiro momento, a sociedade procura
reproduzir-se da maneira mais idêntica possível, mas, sua própria dinâmica de
reprodução a modifica (op.cit: 71-72): “In the event they do not, the received
categories are potentially revalued in practice, functionnaly redefined. According to
the place of the received category in the cultural system as constitued, and the
interests that have been affected, the system itself is more or less altered. At the
extreme, what began as reproduction ends as transformation. (...) Thus was Cook,
from the Hawaiian view, the returned god Lono. And this was surely reproduction.
On the other hand, the specificity of practical circumstances, people’s differential
relations to them, and the set of particular arrangements that ensue (structure of the
conjuncture), sediment new functional values on old categories. These new values are
likewise resumed within the cultural structure, as Hawaiians incorporated breaches
of tabu by the logic of tabu. But the structure is then transformed.”(op. cit: 67, eu
sublinho).
De um ponto de vista mais geral, esta idéia da mudança na reprodução,
encontra-se no próprio mito de origem dos KARAJÁ que contamos acima. Os
primeiros KARAJÁ reproduzem suas aldeias, de forma menos perfeita, e em
contrapartida precisam se adaptar adquirindo características alheias, e abrir mão de
hábitos e comodidades que tinham no bero hatxi (mundo subaquático). Encontramos
então, no próprio mito KARAJÁ, a idéia da reprodução de estruturas fundamentais da
sociedade acompanhada da inevitável transformação através da dinâmica histórica.
Acabamos de ver como os KARAJÁ procuraram reproduzir sua estrutura a nível
espacial, exporei a seguir como a dinâmica da reprodução implica ela mesma na
transformação. Esta transformação, no caso KARAJÁ, é antes de mais nada uma
transformação corporal. Essa modificação ficará mais evidente na análise das
transformações corporais experimentadas pelos habitantes de Porto Txuiri.
90
Mais uma vez nota-se a importância da oposição mobilidade/imobilidade. Este é mais um elemento
que permite pensar que o mito informa, de alguma maneira, todo o processo de ocupação de Porto
Txuiri.
58
Os KARAJÁ parecem ter se instalado em Porto Piauí dentre outras coisas, por
terem visto aí a possibilidade de vivência de um processo de transformação. Se a
fundação da aldeia foi, certamente, um ato político, não podemos deixar de ver nela a
reencenação de um episódio mítico, ao modo dos seres que vieram do fundo das
águas e se instalaram na superfície terrestre.
Os Javaé, os Karajá e os Xambioá que decidiram morar em Porto Txuiri,
abriram mão dos rituais, da Casa dos Ijasò e de muitas outras coisas presentes nas
outras aldeias e das quais todos afirmam sentir saudades. Mas eles também deixaram
de lado o alcoolismo e puderam experimentar uma vida que eles mesmos definem
como simultaneamente “sossegada” e “desenvolvida” (esse sossego e
desenvolvimento são definidos por eles como a ausência de alcoolismo, a facilidade
de transporte, o acesso à energia elétrica e ao conhecimento das “coisas dos Tori”,
seja através da escola, dos Tori que ainda moram na aldeia, do cacique e de sua
família, ou dos missionários). Assim como os primeiros KARAJÁ, eles tiveram de
tornar-se KARAJÁ novamente, fabricando um espaço próprio onde não havia senão
diferença. O processo de apropriação de Porto Piauí é autenticamente KARAJÁ,
mesmo que politicamente motivado ou informado.
Os KARAJÁ se apropriaram de um espaço alheio e, até certo ponto,
desconhecido, assim como nos tempos míticos se apropriaram da superfície terrestre
na qual construíram suas aldeias, à imagem das aldeias subaquáticas e celestes. Na
superfície, já existiam outros seres, com os quais tiveram que aprender a lidar,
roubando-lhes técnicas e saberes. Parece que o processo de apropriação de Porto Piauí
ofereceu uma oportunidade encantadora de reviver o mito de criação da humanidade.
Esse processo aconteceu, de certa maneira, como um processo “virótico”. Entendo
por “virótico” o processo pelo qual algo pode se reproduzir em um ambiente
hospedeiro, mantendo a sua continuidade e podendo sofrer mutações (Aurélio
eletrônico, 1996).
Veremos a seguir que dos mesmo modo que os KARAJÁ de Porto Txuiri
apropriaram-se de um espaço físico estranho: o vilarejo de Porto Piauí, e o
transformaram em Porto Txuiri, aldeia KARAJÁ, também o fizeram com diversos
59
‘espaços’ dos Tori tais como seus alimentos e práticas corporais, suas crenças
religiosas e seu discurso político. Sempre pensando no mito, é interessante perceber
que essa reprodução não se realiza como um simples decalque, cópia estática do
passado, mas sim como um processo criativo que incorpora e transforma para melhor
reproduzir. Como diz Rodrigues : “A resposta ao contato é vista como uma
improvisação criativa baseada em categorias prévias, havendo um permanente
diálogo entre o velho e o novo, entre o que existia anteriormente e as mudanças
introduzidas pelo contato com outra sociedade.”(1999: 9).
No que diz respeito ao corpo, assim como os primeiros KARAJÁ tiveram que
mudar seus corpos, adquirindo e incorporando características e qualidades dos seres
terrestres, para adaptar-se à nova vida na superfície, os KARAJÁ de Porto Txuiri
tiveram de se apropriar de algumas características dos Tori para adaptar-se à nova
vida “civilizada”.
60
“Gosta o carajá, de pintar-se com urucum e cobrir o corpo com os mais caprichosos arabescos com
tinta de genipapo.(...) Aos albores da puberdade, meninos e meninas são submetidos à “marcação a
fogo”, na região zigomática, logo abaixo dos olhos, dois círculos feitos com a orla do cachimbo em
brasa. Na ferida recente é pingado o genipapo que fixa indelévelmente a tatuagem. Furam as orelhas
das mulheres e, nos homens, o lábio inferior. (...) Nas orelhas costumam trazer brincos feitos com
penas de araras e dentes de capivara. Usam, tanto homens como mulheres, longas cabeleiras que
descem pelas costas, aparadas na testa (...). (Aureli 1962: 23)
91
Quero lembrar que os dados apresentados aqui são extraídos da dissertação de Rodrigues (1993) que
diz respeito ao subgrupo Javaé, e de Donahue (1982) sobre os Karajá. Podem existir importantes
diferenças entre os subgrupos que, até onde eu sei, não foram exploradas até hoje.
61
designa o corpo, enquanto tyky designaria a pele, a roupa, o invólucro, a vagina, mas
também, em um sentido mais largo, o corpo. O que me parece importante reter aqui é
que o termo para pele ou invólucro, tyky, adquire vários significados, segundo o
contexto. Ele designa (associado com uma palavra complementar) dois tipos de alma
(“pele verdadeira” que desaparece com o morto, e “pele velha” que é reciclada), mas
também o corpo como invólucro, como cobertura da carne, das almas e das
substâncias corporais. Veremos que essa idéia de invólucro reencontra-se quando se
fala em roupas manufaturadas. Estas também são designadas pelo termo tyky, pele.
A “pele verdadeira” (tykytyhy) seria uma espécie de alma que pertenceria
apenas ao indivíduo e apodreceria após a morte, tornando-se então invisível. Cada
KARAJÁ possui sua “pele verdadeira” que, depois da morte, descerá para a aldeia
dos mortos (wabedè), situada embaixo do cemitério onde o corpo será sepultado. Lá,
a “pele verdadeira” será recebida pelo grupo dos mortos (worosÿ mahãdu). Mais
tarde, o grupo dos mortos decidirá o destino da tykytyhy. Esta será condenada a
permanecer no wabède, ou poderá seguir para o mundo subaquático ou celeste
(Rodrigues 1993: 390-392).
A segunda alma é a “pele velha” (tykytyby), muitas vezes traduzida como
“sombra”. Trata-se de um tipo de alma/sombra, independente da carne. Com efeito,
ela pode desprender-se do corpo e do invólucro corporal para percorrer os outros
níveis cósmicos (mundo celeste e subaquático)93. A “pele velha” não está
exclusivamente ligada a uma pessoa e não desaparece depois da morte. A “pele
velha” se transmite. Ao nascer, a criança recebe uma “pele velha” (tykytyby) que o
xamã introduz em seu corpo. Essa mesma “pele velha”, recebida pela criança,
pertenceu a um KARAJÁ já falecido. Todo ser humano recebe uma “pele velha” ao
nascer, mas nem todas as “peles velhas” são recuperadas e reintroduzidas em novos
corpos porque, há mais “peles velhas” do que vivos (op.cit.1993: 83).
Depois da morte, a “pele velha” de uma pessoa se transforma em kuni, alma
errante (que chamei de alma “não socializada” em oposição aos worosÿ que vivem na
aldeia dos mortos). Quando alguém morre na aldeia, o período de luto (que pode
durar de uma semana a um mês) é particularmente perigoso, sobretudo para os
parentes do morto, pois o kuni procura companhia e persegue os vivos para devorá-
92
A utilização de metáforas físicas tal como a da “energia” é certamente discutível mas não pretendo
abordar esta questão aqui.
62
93
Entretanto, em vida, apenas os xamãs conseguem tal façanha e visitam, regularmente, os diferentes
níveis cósmicos.
94
Trata-se de uma concepção comum a diversas sociedades ameríndias. É o caso, por exemplo, dos
Suyá, grupo Jê setentrional (Seeger 1980b: 129).
95
Rodrigues (1993) fundamenta-se nesta comparação com o raka dos Bororo para desenvolver o seu
argumento sobre as substâncias corporais enquanto materialização da energia vital.
63
96
Mais uma vez vemos a importância da mobilidade como característica da humanidade terrestre e da
posição mediana desta na sociocosmologia KARAJÁ. Essa importância foi revelada e explorada por
Pétesch (1992, 1993).
97
Essa mulher recebe um presente em troca de sua assistência ao parto (op.cit 1993:69). Desconheço o
valor e a natureza do presente.
98
Irmã mais velha ou mais nova.
99
A mulher que lava a criança também é recompensada com um presente (op.cit 1993: 70).
100
Sobre as propriedades “energéticas” do urucum e do genipapo, ver Rodrigues (1993: 77-78).
101
Esta também é uma prática comum entre as sociedades amazônicas. Os vizinhos Kayapó, por
exemplo, amarram tiras de algodão nas articulações da criança para fortalecê-las (Turner 1995: 155-
156).
102
Segundo o autor essa prática teria desaparecido.
64
103
Para uma descrição detalhada das proibições pós-parto e sobre a couvade, ver Donahue (1982; 118-
122), Pétesch (1992: 483-484) e Rodrigues (1993: 68-70).
104
É interessante notar que, para os KARAJÁ, a magreza e mobilidade estão ligadas à ingestão de
grande quantidade de alimentos e sua expulsão, enquanto a ingestão de pequenas quantidades e sua
contenção estão ligadas à imobilidade e à gordura (lembremo-nos dos povos subaquáticos que comem
em pequenas vasilhas mas não expelem nada, nem se movem e são gordos, e também das mulheres que
são os seres menos móveis e não praticam todas as técnicas de aligeiramento corporal) (Pétesch 1993:
368).
105
Para uma análise aprofundada deste tipo de técnicas (no caso xinguano) ver Viveiros de Castro
(1987).
65
106
Modifiquei nesta tabela os termos usados para avô (Ulabie) e para avó (Ulahi) e para menino
(weryry) para manter a mesma grafia ao longo do trabalho.
66
Antes mesmo da criança nascer, ela recebe duas séries de nomes, uma
masculina e outra feminina, de seus avós bilaterais (ulabie/ulahi). As duas séries
podem compor-se de nomes dos próprios avós e/ou de nomes de pessoas já falecidas
(Pétesch 1992: 402). Se um menino nasce, a série masculina lhe será atribuída, se for
uma menina, ela receberá a série feminina. Apenas os que deram os nomes
efetivamente atribuídos à criança serão retribuídos com um presente107.
A primeira marcação do corpo (depois da perfuração das orelhas) se faz
através da perfuração (rurena) do lábio inferior dos meninos (weryry hykÿ), quando
estes atingem aproximadamente a idade de 8 ou 9 anos108. A perfuração pode ser feita
durante o Hetohykÿ (rito de iniciação dos meninos) ao mesmo tempo que os meninos
maiores são efetivamente iniciados109. A iniciação propriamente dita acontece um
pouco mais tarde, quando os meninos atingem a puberdade (10-13 anos). A
possibilidade de entrada na Casa dos Homens adquire-se ao longo de uma segunda
fase de iniciação. Os weryry hykÿ passam então a ser jyre (ariranha), seus corpos são
inteiramente pintados de preto (genipapo) e seus cabelos são raspados. A ariranha
(Pteronura brasiliensis), assim como os jovens jyre, representa para os KARAJÁ, a
combatividade, a agressividade e a rapidez dentro e fora d’água. Pouco a pouco, os
cabelos crescem, a pintura “vai se abrindo”, deixando mais espaços não-pintados
sobre os braços, ombros e rostos (Toral 1992b: 204). Era também ao longo desta
etapa que os rapazes (jyre e bodu) recebiam o cordão peniano (noò tehana) que, hoje
em dia, não é mais utilizado (Pétesch 1992: 209).
Depois do rito de passagem, os novos integrantes da Casa dos Homens, os
weryrybo, amarram seus cabelos em um rabo de cavalo com tiras de algodão (raòtue)
e têm seus rostos tatuados com a marca do omaryre (dois círculos gravados nas
bochechas com a beira do cachimbo em brasa e cobertos com genipapo e cinza de
fundo de panela, que deixam uma marca azulada na pele) (Pétesch 1992: 209)110.
107
Desconheço o tipo de presente que se dá nestas ocasiões.
108
A idade pode variar muito, dependendo das circunstâncias, um menino de seis anos pode ter o lábio
perfurado se, nesse momento, sua família tem riquezas suficiente para bancar a festa, e, se isso
coincidir com a realização de um Hetohykÿ na aldeia. Um caso parecido é descrito por Lima Filho
(1994).
109
Os diferentes tipos de labretes introduzidos no lábio inferior dos meninos e homens estão descritos
em Krause (1911 apud Pétesch 1992: 488, nota 10).
110
Segundo Pétesch (1992: 486-487), rure significaria gravar, marcar, e oma seria um termo genérico
para designar um tipo de peixe, mas também, se referiria ao círculo amarelo situado na cauda do peixe
tucunaré (Cichla sp.). Talvez se possa ver nisso uma forma de lembrar a origem aquática dos KARAJÁ
terrestres.
67
As meninas têm suas faces tatuadas após a primeira menstruação. Nesta etapa
da vida, as hirari hykÿ ficam aproximadamente um mês em reclusão em uma parte
separada da casa materna. Seus movimentos restringem-se ao espaço da casa de onde
elas só podem sair à noite para tomar banho no rio sempre acompanhadas da mãe ou
de uma parente próxima. Elas se tornam então ijadoma (moça) passando a usar a saia
de entrecasca. Elas podem se casar e dançar com os Ijasò (entidades mascaradas que
vêm dos mundos aquático e celeste) quando estes visitam a aldeia (Donahue 1982:
130-131).
A alimentação dos jovens e a etiqueta na hora da refeição também são
importantes. Segundo Rodrigues (1993: 117): “Moças e rapazes estão sujeitos a uma
série de normas que envolvem a posição correta de dormir, de comer, de andar, de se
sentar, de remar e tudo o mais que envolva o uso do corpo. Aos rapazes e moças
sempre é reservada todos os dias a parte central dos peixes, considerada a melhor
parte, enquanto os velhos comem a cabeça e o rabo. (...) O pirarucu, considerado
peixe nobre, só é comido pelos weryrybó e ijadoma, para ‘criar força e ficar sadio e
saudável’.”
Segundo Rodrigues (1993:129), os jovens iniciados e as moças novas
representam o ponto máximo do acúmulo de energia, estocada durante toda a infância
e ainda não perdida através das relações sexuais e da reprodução. A juventude é o
auge da vida. É nessa época da vida que os KARAJÁ valorizam mais a “beleza”: as
ijadoma passam o dia enfeitando-se e pintando seus corpos para dançar com os Ijasò
enquanto os weryrybo podem enfeitar-se com as mais exuberantes coifas de
plumas111. Depois do casamento, e principalmente após o nascimento, os adornos
corporais e pinturas são progressivamente abandonados (Rodrigues 1993: 125).
111
Essa época da vida correspondente a um estrito controle da conduta, tanto dos rapazes como das
moças, também caracteriza-se pela “vergonha” (Rodrigues 1993: 120).
68
112
Não se trata de uma característica exclusiva dos KARAJÁ. Muitas sociedades ameríndias
consideram que o xamã é “aquele que vê”, que ele possui o dom de visão e enxerga os outros níveis
cosmológicos assim como os seres sobrenaturais que povoam o cosmos. É o caso, por exemplo dos
Wari’ de Rondônia (Vilaça 1999:12), e, também, dos Suyá (Seeger 1980: 45, 48) cujos feiticeiros
“vêem tudo”, e que associam o olho ao que é perigoso e anti-social.
69
entidade específica (Ijasò e/ou aõni) e à “pele velha” de um xamã falecido (Toral
1992: 225)113.
A aprendizagem é longa e se compõe de várias técnicas e fases que incluem
ingestão de alimentos específicos (como o fígado cru de um morto recente), a
abstinência sexual, a aplicação de substâncias vegetais sobre os olhos e o corpo, e a
fabricação, pelo mestre, dos instrumentos necessários à prática do xamã (Rodrigues
1993: 146). O xamã, uma vez formado, adquire o seu saber durante suas viagens
cósmicas, consultando os seres sobrenaturais (aõni, ou “bichos”) e, principalmente, os
seres celestes que detêm o conhecimento xamânico. Além disso, os xamãs podem se
comunicar com o mundo vegetal e se transformar em animais: onças, cachorros,
algumas cobras, boto, pirarucu e alguns outros peixes e tatus. Geralmente, desconfia-
se estar diante de um xamã quando o animal se encontra em um lugar inesperado, fora
do seu habitat habitual, ou por um comportamento seu fora do comum (op.cit 1993:
148). Contaram-me, por exemplo, a história de um homem que, tomando banho, havia
perdido seu relógio na água. Desesperado, foi visitar o xamã da aldeia, contou-lhe a
história e disse que daria qualquer coisa em troca de seu relógio. O xamã lhe disse
que deveria voltar na manhã seguinte no mesmo lugar onde havia tomado banho. No
dia seguinte, o homem foi para beira do rio e encontrou o relógio na beira d’água. Na
verdade, o xamã havia se transformado em peixe e recuperado o relógio no fundo da
água. O homem retribuiu a sua ajuda dando-lhe um presente.
Os xamãs têm outras funções na sociedade, o que os leva também a se
especializar. Segundo Donahue (1982: 222), alguns apenas curam e diagnosticam
doenças114, outros trazem os Ijasò para os rituais, outros dedicam-se exclusivamente à
enfeitiçar pessoas, enquanto outros se preocupam em controlar as forças naturais e
sobrenaturais que afetam as pessoas e a aldeia: os ventos, as chuvas e alguns animais.
Existem, portanto, xamãs mais poderosos do que outros. Todo serviço prestado por
um hyri tem de ser retribuído. O valor do pagamento varia em função do serviço, mas
também da vontade do hyri. Este pode exigir o que quiser pois possui o poder de
113
É interessante notar que, no caso KARAJÁ, a parceria de um xamã com um ser sobrenatural (aõni
ou ijasò) ou, como as chama Pétesch (1987), com divindades (ijasò), parece ser mais comum do que
com um animal ou com um tipo de animal específico: onças, pássaros etc.
114
Existem pessoas que se dedicam apenas a curar, mas não mantêm nenhuma relação com o
sobrenatural. São “curadores” (ohotibedu) ou “raizeros” (neste caso são muitas vezes mulheres) que
conhecem os remédios (mona) feitos a base de raízes e ervas (op.cit. 1982: 224).
70
provocar a morte. Os presentes mais valorizados vão das penas de arara vermelha ao
rádio de pilha, à rede, à canoa, ou ao freezer (Donahue 1982: 224-225)115.
Para Pétesch (1992: 326-327, 1993: 371), o xamanismo nesta sociedade
macro-jê, fundamenta-se no poder de controlar o movimento, característica principal
do mundo terrestre. De fato, o xamã é o mestre do vento (materializado na fumaça do
tabaco utilizado para as curas) e possui, segundo a autora, um espírito alado que não
só viaja, mas também move os diferentes níveis cosmológicos, aproximando-os do
nível terrestre para atingi-los mais facilmente. Isso o torna o ser mais móvel entre os
humanos terrestres116. Donahue (1982: 205-207) e Toral (141-145; 226-227),
enfatizam a capacidade de transformação que o xamã possui. Ao meu ver, a
capacidade de deslocamento entre corpos também pode ser entendida como
capacidade de movimentação.
O único ser que possui o poder de controlar esse movimento e as
transformações de seu corpo é o xamã. Essa capacidade de movimento e
transformação opõe-se a imobilidade e a capacidade de conservação da chefia
(Pétesch 1993: 376). De fato, as crianças especiais (iòlò), preparadas para assumir a
chefia eram preservadas de qualquer contato com a terra e a animalidade e mantidos
na maior imobilidade possível117. Segundo Pétesch, o chefe tradicional também se
115
Os instrumentos do xamã são: a varinha simples (hitxiwa) de cana brava, ou a varinha (obe)
decorada com penas de arara vermelha (que segundo Rodrigues (1993: 148) é chamado de “espião”, “o
que é capaz de ver”) , e o weru, chocalho decorado como se fosse uma cara, com olhos e boca, com o
qual o hyri vê a doença. Outro objeto importante é uma cabeça de urubu-rei (rararesa), que o xamã
passa na frente de seus olhos e que o faz enxergar melhor. Os que se dedicam apenas aos feitiços usam
também flechas miniaturas (wyhy), pequenos ossos, e bonecos antropomórficos (op.cit. 1982: 226-
227).
116
O elemento móvel, segundo Pétesch (1992, 1993: 371), é característico do nível mediano da
estrutura sociocosmológica dos KARAJÁ. Tanto no nível territorial e étnico (os Javaé), quanto no
edifício cósmico (mundo terrestre), o nível mediano é móvel e exerce a função de centro mediador (a
autora explica também que os xamãs pertencem, tradicionalmente, ao “grupo do meio” das aldeias
enquanto os Javaé possuem a feitiçaria mais poderosa).
117
Alguns autores descrevem o iòlò como sendo a liderança tradicional por excelência (Lipkind 1948:
186). São crianças especiais, meninos (e/ou meninas, segundo alguns autores) que recebem uma
educação especial e que são treinados para liderar (Toral 1992: 91, Pétesch 1992: 316). Trata-se, em
princípio, do filho mais velho de um chefe (ixÿdinodu) que, desde seu nascimento é preparado, em sua
casa materna, para ser o sucessor de seu pai. Estas crianças andam sempre muito enfeitadas e vivem em
reclusão em sua casa (não podem participar de atividades quotidianas, nem serem expostas à vista de
todos); caracterizam-se por levar uma vida imóvel, ficam sentadas em um banquinho especialmente
feito para elas que é colocado sobre uma esteira (como os moradores do fundo das águas). Quando têm
que se deslocar pela aldeia, elas são carregadas nos ombros por tios (MB ou FB), pois não podem
entrar em contato com o chão (Pétesch 1992: 375). O tempo da reclusão durava até o iòlò ter um filho,
quando se tornava então, efetivamente chefe e, por sua vez, “pai de iòlò” (iòlò tyby). Assim, o chefe
era uma espécie de representação terrestre da humanidade aquática e celeste, imóvel e permanente.
Esse tipo de preparação para a chefia teria desaparecido e iòlò teria se tornado apenas um nome
próprio.
71
desloca sobre os ombros de algum afim (geralmente marido da filha). Ela enfatiza o
aspecto estático da chefia política e cerimonial (1992: 322-323) opondo-a à natureza
móvel do xamã.
É importante lembrar que o poder do xamã passa pela domesticação de um
dom natural (de visão) e/ou um aprendizado de saberes que se adquirem fora do
espaço social aldeão, seja no mundo celeste ou no mundo aquático, enquanto a chefia
é hereditária, passando-se de pai para filho (mais velho) e conservando-se no seio das
mesmas famílias ou facções.
72
118
O xamã não só controla como também detecta as transformações: ele reconhece quando um
pirarucu é um aõni (monstro) e não um simples pirarucu ou quando um homem é um kuni (espírito de
morto) vestindo um corpo de homem (Donahue 1982: 205, Toral 1992: 141).
73
que andam nus e têm seus corpos pintados e os animais eram todos humanos antes
que Kanÿxiwe os transformasse em animais verdadeiros119.
Ora, essa idéia nos lembra o perspectivismo, ou multinaturalismo, descrito por
Viveiros de Castro. De acordo com este autor, para os Ameríndios: “ (...) Os animais
são gente, ou se vêem como pessoas. Tal concepção está quase sempre associada à
idéia de que a forma manifesta de cada espécie é um mero envelope (uma “roupa”) a
esconder uma forma interna humana, normalmente visível apenas aos olhos da
própria espécie ou de certos seres transespecíficos, como os xamãs. Essa forma
interna é o espírito do animal: uma intencionalidade ou subjetividade formalmente
idêntica à consciência humana, materializável, digamos assim, em um esquema
corporal humano oculto sob a máscara animal.” (1996:117).
Segundo Toral (1992: 141), o mundo KARAJÁ é habitado por seres
transformáveis que costumam mudar de estado e que aparecem constantemente sob
diversas formas. Os hyri, por exemplo, trocariam constantemente de corpo/pele120,
para poder manter uma aparência mais jovem. Isto está ligado à idéia de que o
corpo/pele, é um invólucro que pode ser ocupado por diversas almas, “peles-velhas”
(tykytyhy). Ao entrar no corpo/pele de alguém, a “pele velha” adquire a visão e o
comportamento dele121.
Estas idéias mostram que há: “ (...) à primeira vista, uma distinção entre uma
essência antropomorfa de tipo espiritual, comum aos seres animados, e uma
aparência corporal variável, característica de cada espécie, mas que não seria um
atributo fixo, e sim uma roupa trocável e descartável. A noção de “roupa” é uma das
expressões privilegiadas da metamorfose - espíritos, mortos e xamãs que assumem
formas animais, bichos que viram outros bichos, humanos que são inadvertidamente
mudados em animais -, um processo onipresente no “mundo altamente
transformacional” (Rivière 1995: 201) proposto pelas ontologias amazônicas.”
(Viveiros de Castro 1996: 117).
119
A transformação se expressaria em KARAJÁ pela palavra ikotinÿ, i.e. “virar”, “transformar-se” em
algo. (Donahue 1982: 207).
120
O autor não especifica o termo KARAJÁ usado nestes casos. Porém, quero lembrar que o termo
tyky (pele, invólucro) também designa o corpo e é usado, hoje em dia, para designar a roupa
(manufaturada).
121
É interessante pensar que, para os KARAJÁ, a idéia de corpo pode ser traduzida como pele (tyky),
mas que o conceito de alma (os dois tipos de alma) incluiu a idéia de pele (“pele velha” e “pele
verdadeira”). Como se o ser KARAJÁ fosse concebido como uma espécie de mil-folhas (de peles
distintas): tyky (invólucro corporal), tyky (roupa), detyky (a pele da carne), tykytyby (pele velha) e a
tykytyhy (pele verdadeira).
74
O que caracteriza esses seres como “humanos” é que eles vivem em sociedade
(assim como o fazem os KARAJÁ), i.e. possuem práticas culturais comuns (se casam,
vivem em aldeias, cozinham, dançam etc.) o que muda é a percepção dessas mesmas
práticas (Vilaça 1999:7). Vilaça explica essa idéia, para o caso dos Wari’ : “Os
diferentes corpos entretanto, implicam em formas diferentes de se perceber as
mesmas coisas: assim, tanto os Wari’ como o jaguar bebem chicha de milho, mas o
que o jaguar vê como chicha é o sangue, do mesmo modo que o barro é chicha para a
anta.” (op.cit 1999:7).
A idéia de perspectiva ou ponto de vista está portanto ligada ao corpo. Quando
o xamã ocupa (ou veste) um corpo ele adquire o ponto de vista deste corpo, i.e. a
forma de ver o mundo específica deste corpo. Assim, a perspectiva (ou o ponto de
vista) não é uma representação de objetos por pessoas mas sim relações entre sujeitos:
“Todo ser que ocupa vicariamente o ponto de vista de referência, estando em posição
de sujeito, apreende-o sob a espécie da humanidade.” Mas “os animais vêem da
mesma maneira que nós coisas diversas do que vemos, porque seus corpos são
diferentes dos nossos.”. (Viveiros de Castro 1996: 127,129). A perspectiva, portanto,
situa-se no corpo. Assim, transformando-se o corpo, muda-se o ponto de vista.
A transformação corporal tem efeitos na forma de perceber o mundo. Pode-se
dizer, como enfatizou Donahue (1982:206-207) para os KARAJÁ, que todos esses
seres são humanos, mas, que possuem corpos diferentes. Ao contrário do que nós
(ocidentais) pensamos, para os Ameríndios, são os corpos que os diferenciam (entre
espécies) enquanto o espírito (a alma) os aproxima.
É preciso lembrar também que o corpo, no caso dos Ameríndios, não é
concebido como um dado fisiológico e sim como algo que se constrói, se faz, se
constitui ao longo da vida, através da ingestão de alimentos e substâncias específicas
em momentos específicos, através da sua marcação (perfuração de orelha, de beiço,
tatuagens, escarificações) e da sua modelação (modelação do corpo da criança, cortes
de cabelo, deformações de certas parte do corpo) (Seeger, Da Matta e Viveiros de
Castro 1979)122. O corpo é constituído por relações e, enquanto “conjunto de hábitos
122
Segundo os Mehinaku, por exemplo, as diversas dietas alimentares produzem literalmente corpos
distintos. Assim, os Mehinaku explicam as diferenças corporais (estatura, força etc.) entre eles, os
Brancos e os Japoneses pelo tipo de comida ingerida por cada um ao longo de sua vida (Gregor 1985:
90). Para os Wari’, a identidade situa-se no corpo e está estreitamente relacionada com o parentesco e
com a ingestão de alimentos (Vilaça 1999).
75
me levaram a refletir sobre a noção de roupa como pele (tyky)123. Comecei então a
prestar mais atenção às diversas utilizações das roupas.
O que me pareceu importante foi o excesso de vestimenta e enfeites com que
se paramentam as crianças pequenas e principalmente os recém-nascidos. De fato,
todos os recém-nascidos são vestidos com um enorme cuidado. Para isso, as mães
procuram montar um pequeno enxoval, antes mesmo da criança nascer: sapatinhos e
boné de lã, e blusinhas de algodão branco bordado. As crianças de Porto Txuiri
nasceram quase todas na cidade, em Gurupi mais especificamente, onde a FUNAI
mantêm a Casa do Índio e convênios com hospitais locais124. No último mês de
gravidez, a mãe, acompanhada pelo marido e, se for o caso, de um filho menor,
mudam-se para a Casa do Índio em Gurupi, à espera do dia do parto. Durante todo o
tempo da gravidez ela junta roupinhas para o bêbê. Além de comprar algumas
prendas, geralmente conseguem roupas dos Tori (visitantes da aldeia: pescadores,
turistas) trocando-as por artesanato, mas principalmente recebendo a maioria das
roupinhas de visitantes regulares (que vão e vêm da cidade), como era o meu caso ou
o caso da freira que morava na aldeia até 1996.
Quando a criança nasce, desde os primeiros dias vestem-na como se fosse um
dia de festa (para nós). As meninas ganham laços nos cabelos e, rapidamente, suas
orelhas, furadas, recebem brincos, ora tradicionais (pequenos cordões de fibra) ora
‘civilizados’ (brinco redondo dourado)125. Este cuidado com a vestimenta dos bêbês
chama muito a atenção quando comparado à liberdade e simplicidade que caracteriza
a vestimenta das crianças maiores (as que já sabem falar), assim como dos adultos, no
dia a dia da aldeia. De fato, as crianças maiores e os adultos se vestem com cuidado
apenas em ocasiões especiais tais como: a ida para a cidade, ou por exemplo, quando
alguém se propõe a tirar um retrato. Os KARAJÁ de Porto Txuiri não usam suas
roupas KARAJÁ (enfeites e pinturas) para ir à cidade, pelo contrário, vestem suas
123
Creio que, no caso dos banhos, coexistem várias explicações: há o problema da “vergonha” que
todos enfatizavam quando eu os interrogava sobre a razão pela qual tomavam banho vestidos e que
está relacionada à proximidade dos Tori que “olham” do outro lado; há também a questão prática, de
lavar a roupa ao mesmo tempo que se toma banho.
124
Em 1996, uma menina nasceu na aldeia; em 1997, outra nasceu em Gurupi, e em 1999 acompanhei
uma mulher grávida até Gurupi, onde ela teria o seu segundo filho. Desde a minha primeira visita a
Porto Txuiri (outubro de 1996), mais de quinze crianças nasceram.
125
Não pude assistir à perfuração de orelhas de crianças, portanto, não sei se ela é praticada como nas
outras aldeias (tampouco encontrei descrições detalhadas deste ritual específico na bibliografia).
77
126
Outro atributo étnico importante da pessoa KARAJÁ é, como vimos acima, a tatuagem facial,
omarure. Em sua tese, Pétesch (1992: 210, eu traduzo) afirma que a “escarificação tribal tornou-se,
hoje em dia, a marca distintiva da categoria de idade das pessoas mais velhas (matuari, homem velho
e senãdu, velha)” pois, já nos anos 1950, os mais jovens preferiam não tatuar-se, por questões estéticas
ou por medo da dor (Fénélon Costa 1978: 31 apud Pétesch 1992: 210). De fato, muitos jovens afirmam
preferir pintar-se a marca facial com tinta de genipapo, apenas durante o tempo do ritual. Segundo os
KARAJÁ de Porto Txuiri, a tatuagem permitiria que fossem rapidamente reconhecidos, “lá fora” (i.e.
fora da aldeia e da Ilha). Rodrigues confirma esta idéia, no que diz respeito aos Javaé (1993: 114). De
fato, muitos jovens preferem não ter marcas no rosto para poder sair, “de cara limpa”, i.e. sem
nenhuma marca que possa identificá-los como Índios.
127
Vemos que a palavra tyky, pele, encontra-se na expressão usada para dizer “retrato” ou “fotografia”.
Segundo Rodrigues (1993: 166-167), existe um novo tipo de feitiço feito a partir do “retrato” de uma
pessoa: o feiticeiro levaria a “pele velha” de alguém, prendendo-a no papel.
128
A cor da roupa também me pareceu ser importante. Há uma certa resistência em vestir as crianças
com roupas de qualquer cor. Lembro-me de um caso em que uma mulher não queria vestir seu filho
pequeno com um macacão verde que recebera da missionária americana, pois, não sabia se o aquele
verde era adequado para um menino.
78
129
Outro elemento identitário importante é, sem dúvida, o nome. Hoje em dia, os KARAJÁ possuem
todos um nome tori que aparece na carteira de identidade na frente do primeiro nome da série nominal
KARAJÁ e antes do sobrenome que, em todos os casos que conheço, é o designativo étnico: Karajá,
Javaé ou Xambioá. É possível que o uso e a apropriação destes nomes tori possam ter algum efeito
sobre a identidade (através do corpo ou da alma), mas não possuo elementos suficientes para afirmar e
analisar isso.
79
utilizam menos freqüentemente seus nomes tori e muitas, mesmo jovens, possuem as
marcas faciais. Segundo Pétesch (1992:72), elas seriam o elemento conservador e
estático da sociedade KARAJÁ: “as garantias da continuidade étnica”.
2.2.2 - Os casamentos
Porém, são estas mesmas mulheres que se casam com os regionais. O
casamento entre KARAJÁ e Tori é comum, i.e., existem casais mistos em todas as
aldeias da Ilha, principalmente aquelas que ficam mais próximas de cidades da região
(mas, proporcionalmente, esses casamentos me parecem ser mais freqüentes em Porto
Txuiri130). Os casamentos entre mulheres KARAJÁ e homens tori são os mais
freqüentes, e raramente acontece o contrário. Em Porto Txuiri, os pais expressam
muitas vezes sua preferência pelos genros tori, porque isso permitiria que suas filhas
aprendessem mais facilmente as “coisas dos civilizados”. Muitas jovens que têm
idade para se casar (ijadoma) falam em ir embora para a cidade para “casar com
civilizado”. O principal motivo, oferecido tanto pelos pais como pelas filhas, é que os
Tori seriam “mais sabidos” e “mais trabalhadores”, mas também porque os Tori não
bebem, ou, quando bebem, não batem na mulher e nos filhos. Não garanto que, de
fato, os Tori da região tenham todas essas qualidades, mas é preciso levar em conta
dois aspectos destas afirmações.
Em primeiro lugar, é preciso ressaltar a importância do “saber” para os
KARAJÁ. Casar-se com um Tori, representa, por um lado, ter no seio da família, uma
fonte de saber das “coisas de Tori”, e por outro, ter a possibilidade de tornar-se,
pouco a pouco, Tori, compartilhando o mesmo espaço, comendo a mesma comida,
trocando substâncias corporais i.e. transformando seus corpos, adquirindo parte das
características corporais tori131.
O saber dos Tori é o conhecimento “das coisas deles”. Estes sabem
manipular suas máquinas, falar português, como também sabem lê-lo e escrevê-lo. O
“saber” está também de certa forma relacionado negativamente ao alcoolismo. Os
130
Em 1999, eram cinco casais de KARAJÁ com Tori, apenas um constituído por uma mulher tori e
um homem KARAJÁ : o cacique e sua esposa.
131
Como se trata de um processo de transformação, e não de uma conversão (Viveiros de Castro 1996:
132), a lógica é reversível, e funciona nos dois sentidos: quando minha irmã karajá me tatuou, ela logo
declarou: “agora você é Karajá de verdade !”, acredito que essa transformação já estava ocorrendo
desde o momento em que eu começara a comer na casa deles, a mesma comida que eles, e que recebera
um nome KARAJÁ. Vilaça relata um episódio similar quando foi considerada completamente Wari’ ao
ingerir os vermes que eles consomem regularmente (1999:9).
80
132
Os professores tori que bebiam (havia três em 1996) foram expulsos ou saíram da aldeia (entre
1996 e 1999).
133
Com outros informantes essa idéia de troca também estava presente, mas não de forma tão explícita.
Assim, me lembro que um jovem pai, após um dos pronunciamentos do cacique, me chamou para
conversar: ele queria saber como eram feitos os transplantes de órgãos pois, tinha ouvido falar que os
japoneses quando morriam, simplesmente trocavam de cabeça e continuavam vivendo. Temas que
dizem respeito à vida na cidade e ao funcionamento das relações comerciais, e à obtenção de dinheiro
são comuns (tive que explicar várias vezes para que servia e como funcionava o cartão de saque do
banco, por exemplo).
134
Quando não se trata de um peão de alguma fazenda próxima, os homens tori, sem exceção,
participam de todas as grandes pescarias, colocando-se à serviço de grandes comerciantes de peixe (ver
supra, nota: ).
81
serviço do xamã (ver supra) assim como muitos alimentos. Em Porto Txuiri, é com
ele que seus moradores pagam suas contas de luz no final do mês.
Essas preocupações com os casamentos que provocam a “mistura” (ver
epígrafe) das pessoas e com os conhecimentos dos Tori lembram o caso dos Piro do
Baixo Urubamba (Amazônia peruana), descritos por Gow (1991). Gow mostra através
da análise das categorias de identidade usadas pelos próprios Piro, para eles, a
tradição não é considerada algo a ser conservado ou preservado, e sim como algo que
faz parte de um processo de criação continua. Os Piro dizem que são gente de “sangue
misturado”. Eles vivem em Comunidades Nativas (território legalmente marcado e
definido) e mandam seus filhos para a escola (1991:1). A primeira vista, diz Gow,
eles não parecem Índios. Mas o autor mostra como essa aparente “aculturação”
esconde uma lógica própria (Gow 1991:17). Instituições como a escola e a
Comunidad Nativa tem um papel fundamental na organização das comunidades
portanto, de modo que não seria produtivo considerá-las apenas como um sinal da
dominação da sociedade envolvente sobre os povos nativos. A realidade é, felizmente,
mais complexa.
Pelo contrário, os Piro consideram a vida nas Comunidades Nativas, entre
pessoas de “sangue misturado”, como uma forma própria de escapar da antiga
dominação à qual seus antepassados, que viviam na selva, estavam submetidos. Para
eles, “civilização” não se opõe a um conceito de “tradição” como materialização de
um passado perdido, mas sim à submissão e a violência sofrida pelos seus
antepassados que viviam sob o jugo do sistema de habilitación, na época da borracha.
A mistura de “sangues” e o acesso ao saber dos “civilizados” garantem o futuro e a
reprodução das comunidades, i.e a perpetuação da vida.
Seguindo uma lógica análoga, pareceria que os KARAJÁ encontraram em
Porto Txuiri um lugar ideal (Outro mas tornado próprio) para a reprodução de sua
sociedade em um mundo de Brancos, mundo este que, a partir das outras aldeias, não
era possível controlar e conhecer tão facilmente. É como se, pela sua própria situação
(vilarejo de Tori transformado em aldeia KARAJÁ, lugar de passagem, proximidade e
facilidade de acesso à cidade, aldeia fundada por um cacique KARAJÁ crente e
casado com uma Tori etc.) e pelos processos de transformação que os KARAJÁ
82
experimentam ali, Porto Txuiri fosse o lugar ideal para “se misturar”135, aprender as
“coisas dos Tori” e experimentar, corporalmente, o que é ser Branco. Mudar de corpo
é uma experiência análoga à do xamã: adquiri-se um ponto de vista novo sobre o
mundo, o ponto de vista dos “civilizados” (Vilaça 1999: 24).
135
A mistura à qual se referem os KARAJÁ não parece ser tão explicitamente relacionada ao sangue
em particular mas sim à relações entre corpos (casamentos e trocas de substâncias) tanto entre
KARAJÁ e Tori como entre subgrupos (aos quais se referem como “raças”: a raça javaé, a raça
karajá). Nesse sentido acredito que a analogia com os Piro é pertinente.
136
É muito possível também que o quadro encontrado por Pétesch no final do anos 80 nas aldeias
karajá tenha mudado muito desde aqueles tempo. Rodrigues (1999: 11) mostra como a sociedade javaé
vem se reestruturando de uns anos para cá.
83
(sardinhas, salsichas, enlatados em geral). Tenho poucos elementos para fazer uma
análise extensa da alimentação atual dos KARAJÁ. Há porém um elemento
etnográfico que eu gostaria de evocar aqui e que, ao meu ver, pode ser uma pista para
um estudo futuro, mais profundo, destas categorias e de suas transformações.
Esta idéia fundamenta-se em afirmações dos próprios KARAJÁ quanto à
mudança de comportamento dos jovens. Eis o que diz sobre o assunto Ijaú Karajá,
meu principal informante:
“Antigamente, o índio produzia muito. Muita coisa. Tinha roças grandes, e ele trabalhava
muito. Não passava fome de jeito nenhum. Colhia batata, cará, mandioca. Todos trabalhavam, junto
com a sua família. O homem plantava. (...). Agora, o corpo do índio amoleceu. Começamos a comer
sal e o sal acabou com a coragem do índio. Começamos a comer a comida da civilização, ficou na
moda e acabou com a nossa coragem. (...) É por isso que agora, você vê isso aqui, no espaço da
aldeia, o índio não trabalha. O índio de 20, 25, 30 anos não trabalha. Quem tem coragem de
trabalhar ainda são os homens de minha idade, plantam, fazem tudo. Mas o rapaz novo não trabalha.
Oiara: Mas então, como é que eles fazem para sobreviver ?
Ijaú: Agora um homem, um rapaz casado, vive com o pessoal que é aposentado. Assim, ele não
trabalha mais, fica vivendo às custas do sogro, ou da sogra. Vai brincar, dorme, vai brincar de novo e
dorme de novo. É assim que os jovens estão viciando agora.
Oiara: Mas se antigamente era melhor, por que hoje em dia os pais não mandam os rapazes
trabalharem ?
Ijaú: Antigamente um índio rapaz trabalhava (...). O pai mandava trabalhar para poder casar e
sustentar a família. Agora os pais não falam mais. Sei lá. A nação do índio mudou. É tudo diferente.
Antigamente éramos um povo estudado. Sabíamos respeitar todo mundo: pai, mãe, respeitava-se
qualquer um. Acontece a mesma coisa com os Tori.. O Branco que não fez estudo nenhum, ele não
respeita ninguém não. Eu vejo isso assim. O povo estudado é respeitado e respeita qualquer um.”
(entrevista com Ijaú Karajá, gravada em Porto Txuiri em 22/05/99137).
137
Ijaú Karajá nasceu no norte da Ilha do Bananal em uma aldeia, hoje em dia, extinta. Tem,
aproximadamente, 65 anos. Foi duas vezes cacique da aldeia karajá de Macaúba (Heryri), tem três
filhos, e já é avô de muitos netos (cinco netos moram com ele). Foi embora de Macaúba por causa de
seu filho e de seu genro (marido de sua filha mais velha) que têm graves problemas de alcoolismo. A
vida em sua aldeia tornara-se insuportável tendo que conviver com dois homens que, bêbados, eram
violentos e o ameaçavam ele, suas filhas e seus netos. Por isso, mudou-se para a aldeia javaé de
Canoanã onde moram parentes próximos de sua falecida mulher (o irmão mais novo de sua mulher é
casado com uma Javaé, e mora em Canoanã). Diz que mudou-se de Canoanã por dois motivos: morava
em uma casa “ruim”, i.e. afastada das linhas de casas principais, de onde não via nada (principalmente
não podia se enxergar o movimento da aldeia e no rio), e havia muitos bêbados na aldeia. Outro
84
resultado de uma falta de “estudo", i.e. de saber, de conhecimento. Vimos que Ijaú se
refere aos rapazes novos, jovens, que estão na idade de se casar ou são recém-
casados, os mesmos que freqüentam a casa dos desenhos e os que misturam roupas,
pinturas e ornamentos. São as crianças que cresceram em outras aldeias e chegaram
em Porto Txuiri já grandes. Creio que isso pode explicar, ao menos em parte, a
preocupação que os pais e avós têm para que seus filhos freqüentem a escola e sua
insistência em pedir que estes apenas estudem o português (Bonilla 1997: 93)138. É
como se os moradores de Porto Txuiri estivessem aí quase que exclusivamente para
aprender e conhecer as coisas dos Brancos.
A transformação do corpo através da ingestão de novos tipos de substâncias e
a importância da aquisição de novos saberes na chegada a um novo mundo, remete-
nos novamente ao mito. Lembremo-nos do mito de criação dos KARAJÁ e das
mudanças corporais pelas quais tiveram de passar quando se instalaram na superfície
terrestre. Através de uma transformação corporal, os homens aprenderam o
movimento, podendo então caçar, pescar, plantar. Foi a estrela d’alva (tainá hyky)
que ensinou-lhes a agricultura pois, embaixo d’água, a comida aparecia magicamente.
Vimos que a ingestão (ou aplicação sobre parte ou sobre todo o corpo) de
diferentes alimentos e substâncias tem o poder de transformar o corpo e tem efeitos
sobre o comportamento da pessoa: o xamã precisa engolir o cuspe de Xibure (o
grande xamã celeste) para poder diagnosticar corretamente as doenças; é passando
uma substância sobre seus olhos que o xamã controla o dom da visão (Pétesch 1992:
190); no ritual, o xamã (chefe cerimonial) responsável pelos Ijasò, passa uma
substância (wosina, extrato de uma raíz, diluído em água) sobre os pés dos dançarinos
para que estes não tropecem e para protegê-los de algum acidente (Pétesch
1992:192)139; o urucum protege a criança de doenças e fortalece os corpos dos
rapazes durante a iniciação; a dieta restrita dos que acabam de ser pais é importante,
pois sua violação teria efeitos nocivos sobre seus corpos e o de seu filho (doenças).
problema de Canoanã, evocado por ele, é o fato de se tratar de uma aldeia javaé (sendo ele karajá), mas
isso é uma questão sobre a qual não poderei voltar neste trabalho.
138
Muitos moradores de Porto Txuiri explicavam-me, em 1996, que haviam decidido se mudar para a
aldeia por causa da escola (de Tori). Em Canoanã há uma escola bilíngüe, mas os KARAJÁ de Porto
Txuiri afirmavam não querer que seus filhos fossem alfabetizados em KARAJÁ.
139
Também para as danças dos Ijasò, o xamã “lava” o rosto dos Ijasò com uma mistura de raízes e
água (Lima Filho 1994: 53). Este ato marcaria o início das danças.
85
Lima Filho descreve as diversas técnicas usadas pelos homens durante o ritual
de iniciação para manterem-se forte prepararando-se para as lutas ijesu. Transcrevo
aqui o que lhe disse seu informante principal, Arutana Karajá, de Santa Isabel:
“... comecei a riscar a perna, né ?! Tirando o sangue ruim, tirando aquele sangue que eu tinha no
tempo de criança, que também sai pra fora; é chegando sangue novo. Daqui a pouco toma um
remédio, (...) esse remédio, um tipo de pimenta quer dizer, Karajá chama bera axiwera. É uma folha
que arde igual pimenta, né ? E tem um remédio que a gente toma de uma árvore, pra ficar bom de
corrida, bom pra respiração. Depois a gente treina pra trazer um veado, um caititu, porco-do-mato
correndo... Agora esse na época que nós estamos, ninguém mais pega, porque Karajá tá comendo sal.
Nesse tempo não existia sal (...) Depois o pózinho que a gente mastiga, vai lá pra barriga, não sente
que tem pózinho no peixe, a gente não enxerga ele ! Mas o mais velho sabe que existe o pózinho com a
carne do peixe, com a carne mesmo do bife que a gente come. Então quando a gente come, vai para a
barriga e espalha no meio da carne (da gente) e fica uma carne doce, né ? (...) Aí o mais velho falou
pra mim:
- Quer ver ? Você pode experimentar aquele suor que sai da carne (da gente). Experimenta com a
pontinha do dedo na língua. É igual a carne que você comeu.
- É verdade, não é mentira, não ! exclamou Maluare. Então diz que tem um pózinho na carne da
gente, misturado e que não sai de jeito nenhum. Então fica pesado, por isso não corre mais não...”
(Lima Filho 1994: 77, meus parêntesis).
Esse mesmo informante explicara-lhe que o sal é evitado durante o ritual pois
este “prejudica o corpo”. Apesar de tudo, quando o ritual acontece, pratica-se o jejum
durante um ou dois dias, toma-se muita água e provocam-se vômitos. Para
desenvolver a destreza e a força também intercalam-se aplicações de pimenta no ânus,
escarificações nas pernas e braços e treinos físicos (lutas, corridas e nado).
O sal é portanto uma substância que se acumula no corpo e que não pode ser
expelida (como as outras) através das técnicas descritas acima. Esse pózinho (sal) se
acumula na carne e deixa o corpo pesado, dificultando, portanto, o movimento. Esse
argumento nos remete ao que foi dito acima por Ijaú: o corpo, acumulando sal, ficaria
pesado, amoleceria e isso, acabaria com a “coragem” dos rapazes que, antigamente,
eram os mais corajosos, fortes e vigorosos. A palavra “coragem” é usada em
português referindo-se, creio, a todas essas qualidades simultaneamente: coragem140,
força, rapidez, destreza e vigor. A perda progressiva destas qualidades, por causa da
acumulação de sal no corpo, provocou o abandono do trabalho nas roças, e portanto, a
dependência dos mais novos em relação aos mais velhos (que recebem
aposentadorias). Assim, o que os mais novos perderam foi a capacidade de
movimento. O abandono das roças veio com o abandono dos rituais, da caça, das
140
Para expressar a idéia de “coragem” tal como nós a entendemos, geralmente, os KARAJÁ, como os
Tori da região, usam a palavra “valentia”. Um homem “corajoso”, no nosso sentido, é um homem
“valente”.
86
lutas, das danças, das corridas etc. A perda da capacidade de movimento veio
acompanhada pela perda do conhecimento das “coisas do Índio”.
Entretanto, uma das coisas que os moradores de Porto Txuiri ganharam com
sua instalação na aldeia está justamente ligada ao movimento. Lembremo-nos das
palavras deste mesmo informante que afirma ser bom morar em Porto Txuiri pois,
durante todo o ano, se pode observar o movimento (dos Tori) do outro lado do rio e,
no verão, a aldeia se transforma em um lugar de passagem entre a cidade de Formoso
do Araguaia, a estrada, as outras aldeias javaé e o outro lado da Ilha, e mais
especificamente a aldeia de Santa Isabel. Essa mobilidade, digamos, moderna,
também se adquiriu através da proximidade da estrada e da cidade e da passagem
diária do ônibus. Para se adaptar a essa “vida de civilizado”, é preciso conhecê-la,
saber como funciona, poder dominar suas técnicas e adquirir novas capacidades de
movimento (o que inclui o dinheiro para ter a possibilidade de circular em transportes
modernos: carros, ônibus, kombi, barco ou mesmo avião).
Ijaú, ao falar do sal, se refere explicitamente aos jovens de 20, 25 e 30 anos.
De fato, em Porto Txuiri ao menos, são eles os que não possuem e não trabalham nas
roças. Em Porto Txuiri, a geração dos que são jovens avós (40-50 anos) e avós, com
pouca exceções, são os que possuem roças e trabalham nelas com suas mulheres e
filhas. De fato, a maioria deste homens mais jovens vive às custas de seus sogros ou
pais que recebem a aposentadoria. Dois deles trabalham como professores bilingües
na escola e recebem também um salário do estado. Alguns outros preferem dedicar-se
à pesca comercial o que lhes garante uma entrada extra de dinheiro.
Os KARAJÁ estão em um mundo no qual precisam adquirir dois tipos de
saberes, “as coisas dos Tori” e “as coisas do Índio” e, como vimos até agora, esse
aprendizado passa pelo corpo e se manifesta através de capacidades ligadas a ele tais
como a fala (o domínio da língua), a escrita (o domínio da escrita e da leitura) e o
movimento (dentro do qual incluo a capacidade de trabalho tanto para a produção de
bens : agricultura, caça, pesca e criação, como para a aquisição de bens através da
obtenção de dinheiro). Como disse acima, pareceria que Porto Txuiri constituiu-se
como um lugar ideal para se adquirir esses conhecimentos. Porém vimos que as
mudanças, misturas e apropriações de novas substâncias, roupas, alimentos provocam
mudanças corporais e comportamentais (o corpo fica pesado, os jovens perdem a
coragem e param de trabalhar). Se considerarmos o corpo como substrato a partir do
87
qual se fabrica a identidade (Vilaça 1999), podemos deduzir que tudo o que o
transforma tem efeitos sobre a identidade.
Vimos que em Porto Txuiri há muitos casamentos entre Karajá e Tori mas
também entre subgrupos. Os Karajá de Porto Txuiri vivem reclamando do
comportamento dos Javaé. Ora, mesmo sendo minoria, as duas famílias Karajá fazem
questão de se demarcar claramente do resto da população e, principalmente, dos
jovens javaé. O comportamento das jovens javaé seria, aos olhos dos Karajá,
particularmente incorreto ou mesmo vulgar. A ausência de “vergonha”, a liberdade de
circulação pela aldeia, os casamentos consecutivos (inclusive com Tori), o abandono
dos filhos, tudo isso, são atitudes particularmente mal vistas, principalmente pelos
mais velhos.
Os casamentos entre KARAJÁ e Tori também provocam transformações
importantes que, em Porto Txuiri, são particularmente visíveis. Já falamos do
problema da Casa dos Ijasò na primeira parte do trabalho. O abandono ou a rejeição
das práticas rituais é apenas um dos aspectos das mudanças ocasionadas por
casamentos interétnicos. São às mudanças nos comportamentos provocadas pelos
inter-casamentos e pela convivência entre várias “raças” que Ijaú se refere quando
diz:
“Aqui a raça do Javaé é desse jeito mesmo, é que a vida das moças que não tem marido ainda, que
não se casaram ainda, se mistura com os homens. Para você casar, tem que ser rapaz e moça.. Os
pais não se importam com a vida das filhas mulheres. Não sei porque, porque lá na minha aldeia
(refere-se à aldeia karajá de Macaúba) não tem disso não. Mulher é separada de rapaziada. Aqui é
difícil ver a mulher longe da rapaziada. Aqui não, aqui é tudo misturado. É desse jeito. É a raça de
Javaé. Ouvi dizer que veio uma moça visitar os americanos. Essa menina só andava com os filhos de
Idjarruri, não desgrudava de jeito nenhum. Ia para praia, não sei para onde. Lá em Canoanã (aldeia
javaé) é desse jeito também. Mas é feio desse jeito, acho feio demais” (Entrevista feita em maio de
1999).
supõe a distintividade singular dos espíritos, mas nem por isso declara impossível a
comunicação (...) ou desacredita da transformação espiritual induzidas por processos
como a educação e a conversão religiosa; na verdade, é precisamente porque os
espíritos são diferentes que a conversão é necessária (os europeus queriam saber se
os índios tinham alma para poder modificá-la). A metamorfose corporal é a
contrapartida ameríndia do tema europeu da conversão espiritual.” (Viveiros de
Castro 1996:132).
Assim, a transformação cultural traduz-se para os Ameríndios no idioma da
transsubstanciação e da metamorfose (Vilaça 1999).
89
vários moradores de lá resolveram cercar suas casas para evitar “ataques” de pessoas
contagiadas. Utilizo a palavra “contagiada” porque alguns KARAJÁ me disseram que
se tratava de um mal contagioso que ela havia contraído em uma visita à Santa Isabel.
Vamos às diversas interpretações:
Versão dos crentes:
Os crentes, na maioria Tori membros da Assembléia de Deus (um deles é da
Igreja Batista), interpretavam esses surtos como sendo uma manifestação do demônio
através de espíritos demoníacos (que, em várias ocasiões foram associados aos kuni -
espíritos de mortos que não seguiram para a aldeia dos mortos e vivem atormentando
os vivos) que tomavam o corpo da menina. A esposa do cacique (que é membro da
Assembléia de Deus) era quem mais me falava no assunto pois, eu estava hospedada
em sua casa era para lá que os avós da menina a levavam cada vez que os surtos
começavam. A esposa do cacique e o próprio cacique organizavam sessões de cura
improvisadas a cada surto da menina. Assim, assisti a várias sessões durante mais de
um mês. Todos os dias, e as vezes duas vezes por dia, ela era trazida pelos avós e por
vários homens para a casa do cacique.
Descrevo aqui uma das sessões a partir de minhas notas de campo:
“Entrei na casa do Idjarruri e todos estavam lá: ele, seus filhos, sua esposa, a cunhada
(professora) e os avós da menina. Ela estava deitada em cima de um colchão. O cacique e sua esposa
Adaís pegaram a Bíblia e mandaram chamar outros crentes da aldeia (no caso duas professoras Tori,
da Assembléia de Deus). Os filhos do cacique e o Negão (empregado do cacique) seguravam os pés e
as mãos da menina. As duas professoras chegaram e se sentaram em volta dela. Adaís enxugava o
rosto dela, massageava suas mãos, ombros e braços chamando-a pelo nome repetidamente. Enquanto
isso todos cantavam hinos, muito alto, em coro. Uma das professoras massageava o peito dela. A
menina continuava com a mandíbula e membros rígidos. Passaram água fria no rosto dela e todos
começaram a chamá-la pelo nome, pedindo para ela acordar. Formam um círculo em volta dela e
oram em voz alta. Adaís ajoelhou-se atrás dela e ficou segurando a cabeça dela. Idjarruri segurava a
mão direita e o filho dele a esquerda. Uma das professoras estava em pé, rezando muito alto,
gritando, pedindo a Deus, chorando, para que libertasse a menina desse mal e dessa aflição. Um a um
foram dizendo: “O sangue de Jesus tem poder ! O sangue de Jesus tem poder !”
Ela voltou a si e abriu os olhos. Todos pediam para ela cantar com eles. Pediam com
insistência. Deram uma Bíblia para ela e ela começou então a cantar. Todos cantaram de mãos
dadas. Depois leram o Salmo 91”. (Porto Txuiri, 6 de janeiro de 1997).
estava tudo limpo, mas a árvore tremia muito. Então os hyri a cortaram, arrancando
suas raízes. Depois, misturaram-na com outras raízes e com as cinzas de ossos dos
dois antebraços de um hyri muito poderoso que havia morrido141. Misturaram tudo e
molharam nessa substância umas batatinhas (que, sem a substância, são comestíveis).
Eles andam, hoje em dia, com essas batatinhas enfeitiçadas no bolso e quando querem
se vingar de alguém mordem um pedacinho delas e cospem nas costas ou na cabeça
da pessoa. A vítima começa então a sentir dor na cabeça e no fígado.
Este mesmo informante havia me dito antes que um bicho entrava no corpo da
menina. Seria um bicho chamado ehõ, um aõni do mato, monstro invisível que come
gente e mora perto do Riozinho (rio do interior da Ilha). Só os Javaé sabem onde este
monstro mora. Este bicho apareceria no Hetohykÿ, nu e todo pintado.
141
Pétesch menciona a profanação de sepulturas de hyri para fins de feitiçaria. Segundo ela, os ossos
mais procurados são os do braço esquerdo com o qual o hyri realiza seus trabalhos maléficos. Esse
processo de apropriação de um poder através da retirada de ossos de um corpo também acontecia em
outro contexto: quando um inimigo era morto na guerra e o matador retirava-lhe um osso do pé (com o
objetivo, segundo a autora, de controlar o movimento de seu espírito kuni) (Pétesch 1992:97).
93
Há muita coisa a se dizer sobre esse caso em particular, assim com sobre a
feitiçaria KARAJÁ, mas não poderei me ater mais sobre isso aqui. Gostaria de deixar
esta curta descrição e estas sugestões para a sua análise como uma pista para a
continuidade do trabalho sobre Porto Txuiri, e sobre os KARAJÁ em geral.
142
Pétesch (1992:132) afirma que os kuni e os aõni são parentes e opõem-se aos worosÿ (espíritos de
mortos socializados) e aos Ijasò (entidades benéficas, subaquáticas e celestes).
143
Segundo o autor, se trata de um aõni que os Karajá obtiveram do subgrupo Xambioá na época em
que guerreavam entre eles (Toral 1992: 183). O canto deles seria um grito comprido: “weehuuu... we!
We! Wehu!” (op.cit :183). Lima Filho também menciona os Wehõ que dançam no ritual de iniciação e
que, trinta dias depois da destruição das casas rituais, reaparecem na aldeia, surpreendendo a todos.
Eles usariam saiotes e camisões de palha e capacetes afunilados também de palha (1994: 95, 105).
Tratar-se-ia, portanto, de entidades mascaradas, mas Ijaú refere-se a seres que andam nus e pintados
(talvez quando não vestem as máscaras para visitar a aldeia).
94
CONCLUSÕES
“Un précepte de l’anthopologie britannique (...) veut que l’indigène ait toujours raison, ce qui
entraîne l’enquêteur dans des directions imprévues. Que l’ethnographe puisse être ainsi dérouté, que
rien de ce qu’il trouve sur le terrain ne corresponde à son attente, que ses hypothèses s’effondrent une
à une au contact de la réalité indigène, bien qu’il ait soigneusement préparé son enquête, c’est là le
signe qu’il s’agit d’une science empirique et non d’une science-fiction.”
(Jeanne Favret-Saada 1977:31)
Este trabalho foi concebido na forma de duas partes principais: uma sobre o
espaço e outra sobre o corpo. Estes foram os dois temas que me pareceram se destacar
do material etnográfico e que acabaram se revelando como a forma mais produtiva de
apresentar os dados. Como já disse, este trabalho foi principalmente centrado na
etnografia, deixando de lado possíveis comparações com outros grupos ameríndios.
Apesar de ter uma experiência de campo limitada, um conhecimento insuficiente da
língua e relativamente poucos dados etnográficos, optei por ir formulando as questões
a partir das descrições, à medida em que isso fosse se tornando necessário.
Assim, a partir da descrição do espaço KARAJÁ e de Porto Txuiri foram
aparecendo questões como a da continuidade estrutural de sociedades como a dos
KARAJÁ que há vários séculos mantêm relações com os Brancos. Após o primeiro
trabalho de campo, em 1996, constatei que o modo pelo qual eu poderia transformar
Porto Txuiri em um objeto de estudo devia passar por uma mudança de perspectiva.
Era preciso tentar entender Porto Txuiri de maneira positiva. Constatar
constantemente tudo o que os KARAJÁ tinham, lamentavelmente, perdido, ou
descrever o que “sobrava” desta sociedade não podia me levar muito longe.
Essa percepção positiva (i.e. indo à procura do que há e não tanto do que já
não há) dos dados etnográficos começou naturalmente quando constatei a linearidade
das casas ocupadas pelos KARAJÁ na aldeia, após ter feito vários mapas desta que
não me revelavam nada. Percebi então a importância da descrição etnográfica
exaustiva, mesmo em situações como a de Porto Txuiri na qual eu tinha a impressão,
no início, que não poderia descrever nada de muito interessante. Compreendi também
o quanto era necessário ouvir o que os KARAJÁ me diziam.
De fato, durante minha primeira estada, eu não conseguia conversar com eles
sobre outra coisa que a formação da aldeia, o futuro desta (aquisição de luz, água,
projetos de desenvolvimento etc.), as relações com os Tori e com o cacique. Eu
atribuía isso à minha falta de experiência e a uma incapacidade de fazer as perguntas
95
elementos corporais dos Tori, os corpos dos KARAJÁ estão sofrendo transformações
que repercutem sobre o comportamento. Ser KARAJÁ nunca foi pensado como algo
estático, sem mudança. O mito mostra justamente que a mudança faz parte da
estrutura. Vimos que, tanto a absorção de alimentos como a troca de substâncias e a
apropriação de vestimentas têm o poder de transformar o corpo, pois é nele que se
situa o ponto de vista. Se “virar Branco é assumir um corpo de Branco” (Viveiros de
Castro 1996:139, nota 20) é porque ao se transformar o corpo, transforma-se a
percepção do mundo e portanto a própria cultura. De certa forma, a sociedade
KARAJÁ parece ser uma dessas sociedades performativas (Sahlins 1985) que
submetem constantemente a estrutura ao evento. A transformação é prevista
estruturalmente apesar de não se ter controle sobre ela.
É importante lembrar que a formação e construção de Porto Txuiri foi, sem
dúvida, um ato político informado por uma situação histórica específica e inserido em
uma rede de relações complexas entre os KARAJÁ e os Brancos (Bonilla 1997). Mas
o que procurei mostrar, entretanto, mesmo que de forma implícita, é que é possível
apreender dimensões como a história e a mudança cultural a partir das categorias
nativas.
144
A questão do cristianismo em Porto Txuiri está ligada à instituição da escola e à chefia. Ao longo
deste trabalho, alguns elementos que estão ligados a este tema apareceram: a ausência de Casa dos
Ijasò, a não iniciação do cacique, a apropriação da Bíblia. Outro exemplo: muito mitos que colhi eram,
simultaneamente, relacionados pelos informantes à passagens da Bíblia.
98
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145
Optei por apresentar aqui uma bibliografia extensa. Apresento todos os autores que tive como
referência para a elaboração do trabalho, mesmo que não tenham sido citados.
99
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manuscrito].
CADERNO DE FOTOS
Foto 11: Crianças consumindo carne de boi na ocasião da festa de Natal (1997).
Foto 13: Partida de futebol de um dos times de Porto Txuiri contra um time visitante
(1999).
Foto 15: Aposentado pronto para ir à cidade receber seu dinheiro (1998).
Foto 16: Marlene Xirikeru Karajá com seu filhos e sobrinhos (1998).
Foto 17: Cartão postal. Foto de Ademir Rodrigues (Museu do Índio - FUNAI).