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Este texto está dividido em três partes de acordo com as semanas que estão em destaque. Façam
as leituras com atenção e anotem o que acharem interessante pois iremos ter um momento para
conversarmos sobre essas informações.
1ªSemana: de 24/05 a 28/05
Este trabalho tem como referência as carrancas, esculturas em madeira utilizadas como figuras de
proa nas barcas do submédio rio São Francisco desde o final do século XIX; sua evolução
representativa como arte popular brasileira e significados míticos; sua apropriação pela linguagem
publicitária e pela mídia como ícone/símbolo da região e sua importância cultural e comercial para
o artesanato.*
A palavra carranca significa basicamente cara feia ou disforme e como carrancas ficaram
conhecidas as figuras de proa ou cabeças de proa das barcas utilizadas na região do médio rio São
Francisco, esculturas em madeira de lei colocadas nas proas das embarcações, no final do século
XIX até os meados do século XX. Desapareceram, substituídas por outros modelos de barcas, mais
leves, e também por vapores que faziam o tráfego ribeirinho, transportando gente e carga, do porto
de Juazeiro, Bahia, a Pirapora, Minas Gerais e vice-versa.
CARRANCA ORIGINAL DE BARCA DA AUTORIA DE FRANCISCO BIQUIBA DE LA FUENTE GUARANY (1882-1987) NO ACERVO DO
MUSEU DO SERTÃO, DE PETROLINA, PE. (FOTO DA AUTORA)
MODELO “CARRANCA VAMPIRO” VENDIDA ATUALMENTE EM LOJA DE ARTESANATO EM PETROLINA, PE. (FOTO DA AUTORA)
Na história da navegação, as figuras de proa estiveram e ainda estão presentes em todo
agrupamento humano que tenha alguma ligação com a água, seja o rio ou o mar. Assim, a presença
de ornamentos ou figuras de proa é antiquíssima, com certas características universais desta arte.
Os registros mais conhecidos referem-se aos barcos de guerra vickings, cujas figuras tinham a
função fundamental de atemorizar o inimigo, representando animais fantásticos, como dragões e
serpentes.
Há que se destacar dois pontos básicos em qualquer menção sobre as carrancas do sertão,
relacionadas a um espaço simbólico sobre as águas do rio São Francisco em terras semiáridas. As
figuras de proa das barcas do rio São Francisco são consideradas como arte popular brasileira e
assim foram legitimadas. Outro fato é a sua originalidade: não existe, no mundo todo, um similar
como as carrancas fluviais brasileiras, de feitio zooantropomorfo, cabeças de proa esculpidas numa
mistura criativa de gente e animal.
Seu poder simbólico, arraigado na visão do ribeirinho, espantava não só os monstros e perigos da
navegação pelo rio, como agora, protege também casas e jardins, sincretizado como uma espécie
de Exu doméstico. Daí porque, quanto mais feia, mais poderosa ela é, daí sua oscilação entre o
artístico e o comércio em larga escala. Sabedoria popular compartilhada, como representação
social que lhe confere sentido e, portanto, legitimidade. O modelo carranca-vampiro seguiu por esta
linha, tornando-se cada vez mais medonha, com uma boca escancarada, grandes dentes, olhos
esbugalhados.
O Instituto Moreira Salles montou uma significativa exposição no segundo semestre de 2015,
primeiramente na Pinacoteca do Estado de São Paulo e depois na sede do Instituto no Rio de
Janeiro, arrematada por um livro essencial, A viagem das carrancas. A exposição conseguiu
reunir figuras de proa originais, de grandes mestres como Afrânio e Guarany, entre outros.
Ressalta-se a publicação na revista O Cruzeiro, em 1947, dos registros fotográficos de Marcel
Gautherot com as barcas e carrancas do rio São Francisco quando estas esculturas de origem
popular adquiriram divulgação nacional e foram objeto de estudo e de referências, continuando a
desafiar olhares e registros. Ver os diapositivos de Gautherot é um privilégio e hoje este material
faz parte do acervo do Instituto.
A carranca também é vista como um objeto de estudo do Folclore, aqui revisitado em seu
conceito, concomitante ao de cultura popular. Luiz Beltrão nos alertara, “o discurso folclórico, em
toda a sua complexidade, não abrange apenas a palavra, mas também meios comportamentais e
expressões não-verbais e até mitos e ritos que, vindos de um passado longínquo, assumem
significados novos e atuais, graças à dinâmica da folkcomunicação. ” (In Encontro Cultural de
Laranjeiras 20 anos, p. 43). Folkcomunicação que procura estabelecer a relação entre as
manifestações da cultura popular e a comunicação de massa, evidenciada pela sociedade
multimídia e consumista em que vivemos.
BARCAS ANCORADAS EM JUAZEIRO BAHIA, COM CARRANCAS DE GUARANY, NA ENCHENTE DO RIO SÃO FRANCISCO EM 1929.
(FOTO SEM AUTORIA, DE PROPRIEDADE DA AUTORA)
Paulo Pardal destacou a força arquetípica do símbolo fálico no formato das carrancas do
São Francisco e seu caráter apotropaico[1]. Realmente, muito das interpretações das carrancas
pode ser visto por estes caminhos, mesmo quando desviadas de sua função originária, como é o
caso atual.
Terminado o ciclo das barcas, já na década de 40, as carrancas perderam sua função na
proa das embarcações, quando foram substituídas por outros modelos ou por novas tecnologias,
embora algumas tenham subsistido ainda nos anos 50. O ressurgimento das carrancas se deu
paulatinamente, como objeto decorativo, no comércio do artesanato, ou como ícone representativo
da região, assegurando-se nos anos 70 com todo vigor.
2ª Semana: de 31/05 a 04/06
Qual seria, portanto, o sentido de pertencimento que respalda a carranca, utilizada como
símbolo da região? A história em seus meandros, como memória de um passado idealizado em
mais representações de sentido, é uma justificativa para dar esse respaldo. Funda-se uma tradição
que implica uma teia de interesses coletivos e significados individuais, a partir de um conceito
básico, generalizado.
Vejam-se alguns exemplos dessa apropriação nas fotos. Evidentemente que uma leitura
sígnica detalhada de cada uma em particular mostraria o complexo em que se insere o consumo
atual desta referência. As subjetividades do design, da mensagem sub-reptícia, dos meandros
ideológicos de seu uso em diferentes processos comunicativos mostram a dinâmica dessa escolha.
Portanto, temos um novo direcionamento para o signo carranca, funcionando também como
alegoria, como ilustração visual. Claro que, por trás, está a simbolização de um lugar, mas o que
interessa agora é, sobretudo, a referência icônica. A representação da carranca, vista como um
estereótipo, foi assimilada pelo senso comum.
Vale registrar que a produção da novela encomendou carrancas aos artesãos da Oficina do
Artesão de Petrolina e escolheu duas para compor o cenário. As carrancas escolhidas seguiam o
modelo tido como original, de Guarany.
ATOR DA NOVELA “VELHO CHICO” DA REDE GLOBO, COMO UM ARTESÃO DE CARRANCAS. (TRECHO DA NOVELA)
JOSÉ NILDO SILVA FINALIZANDO A CARRANCA (FOTO DE LIZANDRA MARTINS).
José Nildo Silva, artesão de carrancas, fez também recentemente uma série de carrancas
“segundo o modelo Guarany”, a pedido de um “colecionador” do Rio de Janeiro. Encomendas desse
tipo acontecem vez em quando. Uso próprio ou para o mercado de arte? Autoria reconhecida ou
carrancas comercializadas como fraude? Suposições que considero pertinentes pois os artesãos
sempre foram explorados por atravessadores neste comércio,
Para um conhecedor, mesmo uma réplica atual, sem dúvidas, agrega mais valor do que a
carranca vampiro, hoje tão banalizada. O interessante é pensar nesta ressignificação da réplica,
com algum alcance de originalidade. Afinal, feita por um artesão popular, de madeira, nas margens
do rio São Francisco, obtém-se um rescaldo, ainda que ilusório, de justificativa da representação
encomendada e comprada.
Mas, para o público consumidor, o estereótipo funciona bem. Quanto mais horrenda é a
carranca em sua expressão, mais ela é considerada, porque, simbolicamente, seria mais
“poderosa”. Inclusive, tivemos oportunidade de ouvir, várias vezes, consumidores em lojas de
artesanato, escolhendo carrancas e achando-as lindas, comparando umas com as outras. Afinal, a
própria arte há muito perdeu a sua aura única nestes tempos de reprodutibilidade e de acesso
massificado.
Na correlação entre produção e consumo, o kitsch pode representar uma função mediadora,
como fator de ampliação do auditório e vontade de um repertório mais amplo. Insistimos, saber
colocar-se dentro deste olhar é tentar compreender também a dinâmica social e o ponto de vista
do outro, no caso de uma classe social geralmente de baixo poder aquisitivo e pouco acesso a
bens da cultura erudita.
3ª Semana: de 07/06 a 11/06
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A qualidade parece lhe importar muito pouco. O referencial é outro e a aquisição deste “bem
turístico”, exótico ou curioso, lhe faz bem. O significado da aquisição deste objeto de consumo tem
diversas conotações, bem mais complexas. Ele não se restringe a esta motivação
desencadeadora, mas também a outros componentes que lhe são passados e interiorizados.
Para o pesquisador, não dá mais para ser só descritivista, é preciso penetrar no conjunto polifônico
das manifestações culturais e do funcionamento social, alargando horizontes interdisciplinares.
Neste caso, lembrar dos interstícios da arte, do popular e do erudito, do seu consumo massivo, na
conjunção contemporânea de uma realidade onde tudo é provisório.
Elisabet Gonçalves Moreira é Mestre em Teoria Literária e Literatura Comparada pela Universidade de São
Paulo, professora aposentada da UPE – Universidade de Pernambuco e do Instituto Federal Sertão de
Petrolina. Faz pesquisas em literatura e cultura popular.
*Este artigo baseia-se essencialmente no livro homônimo de Elisabet Gonçalves Moreira Carrancas do
Sertão Signos de ontem e de hoje, de 2006, e em textos e observações posteriores, produtos de uma
pesquisa que se desenrola há quatro décadas nas margens do rio São Francisco, em Petrolina, onde mora
a autora.
BENJAMIM, Roberto. Folkcomunicação no contexto de massa. João Pessoa: Ed. Universitária/UFPB, 2000.
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Vertecchia Editores Ltda., 1981.