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IMAGENS

DO ALEIJADINHO,
O ALEIJADINHO
IMAGINÃRIO
RODRIGO MOURA

O barroco é uma miragem .


Germain Bazin 2

Imagens do Aleiiadinho é uma das exposições que abrem o programa


do MASP em 2018, ano dedicado às Históriasafro-atlânticas,com expo-
sições, seminários, programas de mediação e publicações em torno das
trocas culturais entre África, Europa e Américas. Essa é a primeira exposi-
ção monográfica no museu dedicada à obra do artista Antônio Francisco
Lisboa, o Aleijadinho (1738-1814), e é um fato significativo que ela ocorra
no contexto desse eixo de programação.
Filho de um artífice português e de sua escrava, 3 alforriado pelo
pai, Aleijadinho inaugura um modelo de mulatismo e mestiçagem que
constituiu um dos modos de compreensão da contribuição africana para
a cultura brasileira-um modelo que, mesmo polêmico, é fundamental
para a história da arte brasileira ao longo dos séculos. Profissionalmente
ativo em Minas Gerais durante o ciclo do ouro, de meados do século 18
ao início do século 19, Lisboa é .o autor de uma série de obras realizadas
em igrejas mineiras a pedido de ordens terceiras e que formam um dos
principais conjuntos de arte religiosa executados no Brasil.
A principal referência da exegese da obra do Aleijadinho à luz da
mestiçagem é o ensaio de Mário de Andrade (1893-1945), "O Aleijadi-
nho", publicado em livro em 1935 e republicado neste catálogo (páginas
177-91). Na análise de Mário, esse é um fenômeno cultural gerado pela
coletividade colonial.

Os mulatos não eram nem melhores nem piores que brancos portugueses
e ou negros africanos. O que eles estavam era numa situação particular,
AUTORIA DESCONHECIDA desclassificados por não terem raça mais. Nem eram negros sob o baca-
7. São Jorge a cavalo,
sem doto
lhau escravocrata, nem brancos mandões e donos. Livres, dotados duma
Acervo Centro de Pesquisa MASP liberdade muito vazia, que não tinha nenhuma espécie de educação, nem

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meios para se ocupar permanentemente. Não eram escravos mais, não
chegavam a ser proletariado, nem nodo. 4

M6rio de Andrade foi um dos muitos e~critores que construíram a


fama do Aleijadinho, ajudando a modelar a figura de que tratamos hoje.
Sua interpretação da obra desse artista e o lugar central que lhe confere
na história da arte brasileira constituem a pedra fundamental em seu en-
quadramento no contexto das Históriasafro-atlânticas. Porém não consti-
tuem, de formo nenhuma, a última palavra sobre o enquadramento que se
pretende dar ao papel do cultura africana no obra do Aleijadinho e seu
contexto de elaboração . A própria Ideia de mestiçagem contribui para
uma visibilidade problem6tica do elemento africano em sua obra, posto
que o considere um fenômeno local, tendendo a enquadrá -lo como algo re•
sidual ou sempre em menor presença (subjugado) pela influêncla europeia
no contexto colonial.
Imagensdo Aleijadinho reúne 38 esculturas devocionais cuja autoria
foi atribuída ao A leijodinho ou a sua oficina por diferentes especialistas
ou pela tradição . Essas obras pertencem a acervos de museus, igrejas e
coleções particulares . Chama -se "escultura devoclonol '' aquela estatuá-
ria destinado à veneração direto do fiel, em contexto púb lico ou priva -
do, diferenciando-se, no conjunto de obras do Aleijadinho, do escultura
monumental [executado em pedra e integrada ao conjunto arquitetônico
do monumento religioso) e dos Imagens inseridos nos conjuntos de talho
ornamental !por exemplo, os anjos de um retábulo, subordinados o um con-
junto decorativo) . Essas esculturas gozam de relativo autonomia funcional,
embora sejam feitas paro retábulos, oratórios e andores, dos quais quase
sempre, ao longo do tempo, se perderam. Um exemplo contundente é o
imagem de são Jorge, conservado desde 1940 no Museu da Inconfidência,
em Ouro ~reto, Minas Gerais, executada para ser levada no procissão de
Corpus Clirisli, com as pernas articu ladas poro montar um cavalo, e hoje
exibido no Museu ao lado de sua sela original (a imagem teria sido levada
em procissão pelo última vez em 1886).
A produção do Aleijadinho imaginário (termo que designa o escultor
que faz imagens) oferece, em certo medida, uma possível síntese da lingua-
gem do escullor ao condensar uma série de atributos formais convencional -
mente associados à sua obra e encontrados em frontões, portadas, altares
e outros elementos de ornamentação de igrejas . Constituem, desse modo,
o porção de sua produção que mais se presta o ser deslocada -c olecio -
nada e mostrado- e, por isso, supõe uma di ssociação de seus contextos
originais de fruição e uso, e uma relação mais cerrada com o sistema
de arte formado a partir do século 19, com base em noções de autoria,
originalidade e unicidade estranhos àquelas que informaram o regime de
produção dessas obras no século 18 colonial brasileiro.
Entre os esculturas devocionals legadas pelo Aleijodinho , que contam
com autoria comprovado por recibos ou registros de pagamentos em livros
de termo, estão apenas as imagens de são Simão Stock e são João da Cruz
[ambos 1779)dos altares laterais do igreja do Carmo de Sobaró e o acacho-
pante conjunto de 64 peços distribuídas pelos seis Passosda Paixão (1796-99),
no santuário do Senhor Bom Jesusde Matozinhos, em Congonhas, onde tam-
bém se encontram os doze profetas em pedra-sabão (1800-05). No Carmo,
o Aleijadinho assino ainda o coro e as imagens dos atlantes (exemplo de

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figuro mitológica na sua produção) que o sustentam, o grade do nove e a
decoração da fachada. No arqu ivo dessa igreja, h6 tombem um documento
contemporâneo ao artista, em que seu nome vem seguido da alcunha com
que se tornou famoso. Todas os demais obras têm autoria atribuída pela tra-
dição ou por laudos de especialistas mediante estudos históricos, do técnica
utilizada e análise estilística comparativo com obras documentadas.
O último grande compêndio a compilar um grande numero de obras
do artista é o livro O Aleiiadlnho e sua oficina:catálogo dos escullurosde-
vacionois15de Myriam Ribeiro Andrade de Oliveira, Olinto Rodrigues dos
Santos Filho e Antonio Fernando Batista dos Santos, publicado em 2002, que
reúne 128 escuhuras, entre elos as 6.d peços dos Possosde Congonhos. Essa
publicação é fundamental poro a pesquisa dessa vertente da obro do Alel -
jodinho, e 21 obras nela publicadas estão expostas em Imagens do Alei;odi-
nho. Antes disso, o antigo Serviço do Potrimônio Histórico Artístico Na cional
(Sphan, atua l lphon) tomou como urna de suas principais tarefas o Inventário
da obro do Aleijadinho, tendo seu fundador Rodrigo Melo Franco de Andrade
(1898-1969)à frente do empreitada, e publicou em 1951 um pr imeiro esboço
de catalogue roisonné.6 Em seguida, é o historiador francês da arte Germain
Bazin (1901-1990) quem inclui um Catálogo racionalda obro na sua monu-
mental monografia de 1963, publicado no Brasil, em 1971.7 Recentemente,um
Catálogogeral da obro foipublicado, com uma ampliação do corpo do obra
poro .d86 peços, o que suscitou míticos por causa da inclusão de obras de
auxiliares, contemporâneas ou executados à maneira do artífice.s
Entre essas publicações, há um número considerável de discordân-
cias em re.lação às obras atribuídas o Antônio Francisco Lisbo'o. Uma ex-
posição do Aleijodinho é, portanto, necessariamente polêmlca também na
escolho de suas obras. Como a maior parte das atribuições é feita por
características de estilo, por vezes não há consenso abso luto entre os es-
pecialistas e, muitas vezes, os documentos históricos-como descrições de
época ou comprovantes de transação econôm!co-são folhas para ampa-
rar o atribuição. Em Imagens do Aleijadinho, buscou-se então trabalhar de
maneira conservadora, sem tentar criar um novo consenso sobre a autoria
de obras nem questionar atribuições .
Nos empréstimos de obras para esta exposição, priorizamos traba -
lhos de coleções públicas e eclesiásticos, entre os quais se deslocam aquelas
do Museu da Inconfidência, em Ouro Preto; do Museu Regional de São João
dei-Rei, em São João dei-Rei; e Museu do Ouro, em Saberá-todos eles
criados no âmbito do lphan e hoje geridos pelo Instituto Brasileiro de Museus
(lbram). No entanto, o Museu da Inconfidência tem em sua próprio origem o
disseminação da obro do A leijodinho, conservando o mais importante cole-
ção de sua obra. Também devem ser mencionados os empréstimos da igreja
Matriz de Nosso Senhora do Bom Sucesso, em Caeté, onde o Aleijadinho
trabalhou no início de sua carreira, e do igreja matriz de Nossa Senhora da
Conceição, em Raposas, de sua fase final, ambos cedidos pelo arquidiocese
de Belo Horizonte, e aqueles do Museu de Arte Sacro de São João del-Rei9
e do Museu de Arte Sacra de São Paulo. Além das publicações e coleções
mencionados, o pesquisa dos obras recorreu a exposições organizados
anteriormente, entre elos encontra-se em primeiro lugar Aleiiodinho,10 com
curadoria de Lucio Costa (1902-1998), no Museu de Arte Moderna do Rio de
Janeiro, em 1978, em que buscamos peças incluídas nesta mostro e de onde
retiramos a ideia de ter uma vitrine exclusivo para obras de menor tamanho.

15
O arquiteto modernista Lucio Costa foi um dos principais estudiosos do obra
do Aleijodinho, e contribuiu para forjar o arcabouço que se associa ao estilo
do artista. Em 2007, Aleijadinhoe seu tempo: fé, engenho e arte,11 realizado
no Centro Cultural Banco do Brasil (CCBB), com curadoria de Fobia Ma -
galhães, foi a última grande mostra do Aleijadinho e também serviu como
importante elemento de pesquisa poro nosso curador ia.
No entonto, realizar uma exposição como esta no MASP apresento
desafios específicos. Embora tenha sido mencionado aqui que esta é o pri-
meiro exposição do Museu dedicado ao artífice mineiro, no início de sua
história, em 1949, o MASP programou urna exposição do Aleijodinho em
colaboração com o Sphan, que, até onde se pôde apurar, acabou sendo
cancelada. Uma dos estratégias daquela exposição era a de incluir foto-
grafias de obras monumentais, algo que retomamos nesta mostra, como
veremos adiante. 12 O Museu mantinha relações próximas com o Sphan, e
o historiador e curador francês Germain Bozin contou com grande apoio
de Assis Choteaubriand (1892-1968), fundador do MASP, e dos seus Diários
Associados poro fazer suas viagens de pesquisa no Brasil.
A arte religioso brasileira compreendido como algo de valor e não
apenas eplgono do arte europeia, mos antes uma manifestação artística
autêntico, fazia parte do receita do "museu sem adjetlvos" 13 de Lino Bo Bordi
(1914-1992) e Pietro Maria Bardi (1900-1999), como se pode ver em diversos
matérias na revista Habilot, órgão oficioso do museu, e na passagem-ain-
da que apressada e esquemático-ilustrado por imagens dos profetas de
Congonhas, que Pietro Maria Bordi dedica o elo no livro TheArts in Brozil:

Um dos elementosda tradição brasileiro recente é o barroco, que foi intro-


duzido pelos missõesreligiosas, especialmentebeneditinas e jesuítas.Nas
mãos dos artesãos nativos e negros sofreu transformaçõescuriosas. Por suo
habilidade técnico imp~rfeita e escassaresultouem Formasestranhase im-
pressionantes-obras de arte ingênuasem que o símbolo do cacho de uva
se tornou o abacaxi, a garça tomou o lugar da pomba.14

Outro passagem de Lino Bo Bordi, muitos anos depois, reformulo essas


ideias em outros lermos, colocando ,::,Aleijodinho no centro de um progra-
mo de revisão da cultura brasileiro:

O reexomeda história recentedo país se impõe. O balanço da civilização


brasileiro "popular" é necessário, mesmo se pobre à luz do alta cultura.
Estebalanço não é o balanço do folklore, sempre paternalisticamenteam-
parado pela cultura elevada, é o balanço visto do outro lado, o balanço
participante. É o Aleijadinho e a cultura brasileira antes da Mlssão France-
sa. É o nordestinodo couro e das latas vazias, é o habitante das vilas, é o
negro e o índio. Uma massaque inventa,que traz uma contribuição indireta,
seca, dura de digerir.15

A arte do Aleijodinho, como se pode observar, é escolhido como estandar-


te para uma art~ popular, contrário aos acodemiclsmos e elitismos.
Assim, os desenhos poro exposições do MASP criados por Lino Bo
Bordi vêm ao auxílio para mostrar os Imagens do Aleiiadinho e oferecem
soluções mais críticos poro operar o deslocamento necessário dos objetos
paro o saio de exposição. O sistema desenhado pelo Metro Arquitetos, em

16
estreito diálogo com a curadoria e implantado no galeria do primeiro andor,
ecoo os cavaletes de vidro do pinacoteco do segundo andor ao criar unida-
des expositores outônomos paro cada uma das obras, 16 que são dispostas
numa grade regular que cria caminhos entre elas e oferece múltiplos acessos
e leituras, diversos ângulos de abordagem que operam o fomosa transparên-
cia (arquiletônica, pedagógica, ideológ ica), tão propalodo quando o assunto
são os modos de expor de Lino. Esse partido de certa maneira leva à raiz a
dessacralização dos objetos e manifestamente desconsidera suas condições
originais de fruição-como sua adesão centrífuga às paredes do espaço e
suo adequação a nichos e altares que só permitem que se tenha deles uma
visão frontal ou que sejam vistos de baixo poro cimo, levando o escultor a
aplicar desproporções propositadamente. O nosso partido insiste nessa dife-
renço e sabe que recriar essas condições originais serio impossível e, mais,
necessariamente falso. As esculturas estão todas voltadas poro o entrada
da sala e niveladas à altura dos olhos dos visitantes. Os materiais usados
não tentam emular uma oura "sacra" com forros de tecidos nobres e bases
rebuscadas, mos, antes, têm um aspecto funcional e franco, quase industrial.
Despojado, como muitas das igrejas mineiras.
Ora, os edifícios que o Aleijadinho concebeu e nos quais trabalhou,
notadamente o Carmo de Sabará, São Francisco de Assis de Ouro Preto e
os Passos da Paixão de Congonhas, são espaços em que os elementos es-
tão sujeitos o uma ordem cénica total ligada à visão do artista, oferecendo
uma experiência espacial ao visitante. A igreja normalmente é considerada
uma metáfora do museu antigo, em tudo diferente dos partidos de Bardi e
Lino para as exposições do MASP,que deveriam engajar o visitante e não
o envolver numa aura de culto. Embora, de maneira diversionista, pudés-
semos advogar um estatuto cênico diferente para as igrejas mineiras nos
quais o Aleijodinho operou, mais arejado, colmo e luminoso do que aquele
do barroco anterior a ele-algo em que não vamos nos deter neste texto-
e que é trabalhado por Carlos Eduardo Riccioppo num dos textos desta
publicação (pp. 22-33). Mos fico o tentadora anotação poro conexões com
a arte da instalação: da arte do Aleijodinho à arte de Una Bo Bardi.

Uma das questões que se destacam na análise histórico mais agudo do


obro do Aleijodinho é justamente o quantidade de anacronismos que se
empregam ao trotarmos dela hoje-algo que, embora inevitável, merece
relevo. Assim, buscam-se sempre a certeza da autoria e a pureza da ori-
ginalidade, quando essas noções simplesmente inexistem como categorias
históricas no contexto de execução dessas obras . Assim é que, diante do
fenômeno da hipertrofia da figura do artista, deve-se sempre relembrar da
construção da imagem do Aleijadinho, que se põe em marcha a partir de
meados do século 19 e segue ao longo do século 20, pari passu, primeiro
com o romantismo e, depois, com o modernismo brasileiro . É bastante justo,
então, que, poro alguns pesquisadores, seja menos controverso simples-
mente ter como significante do termo Aleijodinho uma oficina, escola ou
maneiro características do fim do século 18, em Minas Gerais, em lermos
da atribuição das obras-o que não significa pôr em xeque a existência
do artista, como frequentemente se tenta propor de maneira sensaciona-
lista.17E, claro, é inegável o abismo que existe entre o artista e sua figura

17
construída ao longo dos séculos-entre o Aleijadinho imaginário e aquele
arlisla que, de fato, criou essas obras .
O estudo das condições do lroba lho artlstico no amplo contexto
cultura l chamado de barroco mineiro pode esclarecer o interesse pela
imagem do Aleijadinho como o primeira grande cristolízaçõo artística au-
têntica do cultura brasileiro e, consequentemente, pelo mulotismo como fe-
nômeno cultural corocteristico do período . Em seu livro O barroco mineiro:
artes e lrabalho,16 o historiador Caio Boschl levanto alguns dos pontos mais
importantes poro delinear esse quadro . Em primeiro lugar, tem-se o con-
lexto geral do veloz urbanização do região mineradoro , trazendo amplo
gama de atividades culturais, diversificação produtiva e também relações
de trabalho pautadas foro do formato senhor-escravizado, entre elos os
que regem profissionais liberais, ortifices e artesãos.

Acrescente-se a isso o fato de o colonizador branco não ter superado em


Minas Gerais a ibérico aversào pelo traba lho manua l, atitude que, se por
um lado abriu espaço poro a otuoçào de mestiços, mais precisamente de
mulatos, por outro gerou a valorização social do traba lho produtivo de
oficiais mecânicos, especialmente de artesãos e de ortifices . 19

Lembrando que a miscigenação não significava igualdade racial nem as-


censão social, mas que o trabalho artístico conferia um estatuto diferente
ao mestiço. Prossegue Boschi:

É pelo via do exercício de atividades manuais e artísticas que o mulato se


imporá no quadro social de então. É pela destreza, habilidade, fino senso
estético que ele rivalizará com a branco e, dependendo do ótico, o suplan-
tará na sociedade minerodoro. 20

As noções de artista, artífice e artesão se sobrepõem nesse contexto, assim


como se sobrepõem os tarefas mecânicos empreendidas por eles. Caropinos,
carpinteiros, marceneiros, entalhadores, escultores, imaginários e sonteiros
são categorias que se c onfundem, e um mesmo oficial pode exercer mais
de um desses ofícios, e os trabalhos manual e criativo se equivalendo . Em
Minas, ao conlrório do litoral onde h6 o presença dos escolas de orles e
ofícios das ordens religiosos, a formação dos or!islos é exercido no prático .21
Oficiais brasileiros e portugueses migram entre oficinas e os dezenas de
obras civis e religiosos que são erigidas ao mesmo tempo, se influenciando
mutuamente. Segundo Boschi, "a política restritivo e proibitivo em relação à
fixação dos clérigos no capitania contribuiu decisivamente paro o floresci-
mento de expressões ortístico•culturois e artesanais próprios".
Um coniunto de soluções estéticas e materiais para o exercício do
arte surge do impossibilidade de seguir os padrões vigentes. Os azulejos
que vicejom no litoral quebram nas viagens de lombo de burro morro acima
e são substituídos pelas pinturas em painéis de madeira nos capelas -mor.
As portados de lioz são substituídas por aquelas de esteatilo (pedra-sabão)
e de itocolomito, que ladeiam e encimam as entradas das igrejas como se
fossem vomitadós desde seu interior decorado, chamando o fiel e contras-
tando com os empenas alvíssimas que sempre decepcionovam o viajante
europeu em relação à arquitetura religiosa mineiro . Nesta orle o Aleijo-
dinho é o mestre maior, com os impressionantes portados do Carmo de

18
Ouro Prelo, de São João dei-Rei e de São Francisco de Assis das mesmas
cidades atribuídas a sua lavra. Os modelos europeus são redimensionados
e incorporam valores e visadas nativas, abrindo espaço para a pujança
criativa dos artistas.

Ali6s, aí est6: a arte religiosa colonial mineiro é obro essencialmente de


artistas leigas. Mais: é encomendado ou consumida por leigos, consequen-
temente livres do rigidez, do formalismo e do hieratismo da arte produzida
pelas congregações religiosas. 22

Esseprocesso de efervescência da vida urbana se intensifica no perío-


do de declínio da produção aurífera 23 e a presença do trabalho livre signifi-
ca a possibilidade de mobilidade socic1Ipara o negro forro .24 A presença da
população negra e mestiça é massiva. Em 1776, dos 319.769 habitantes do
capitania, 70.769 eram brancos, 82 mil, pardos, e 167 mil, negros, e a popu-
lação não branca somava 77,9% do total. 25 A circulação de objetos culturais
de origem africana, como joias , tecidos e amuletos, é significativa, embora
também o sejam os proibições violentas aos cultos tradicionais. 26 A miscige-
nação é um elemento fundamental e as formas religiosas do cristianismo são
marcados pela manifestação popular, com modos sincréticos ofro-cat6licos,
criando uma relação dialética entre o religião oficial pós-tridentina e a popu-
lar. O culto aos santos assume características afetivos, humanizando o divino .
As irmandades do Rosário dos Pretos permitem e estimulam o reisado. H6
ainda o fluxo de escravizados e artesãos livres ou cativos do Bahia, centro
receplor da herança cultural africana, direcionado o outros portes da colô-
nio pelo trófico interno escrovisto, entre elos, Minas Gerais.
O africanista Marionno Carneiro da Cunho, em texto aqui republicado
(pp. 194-98), em verdade excerto de seu capítulo sobre "Arte afro-brasileira"
na Históriageral da arte no Brasil,ori;anizada por Walter Zonini (1925-2013),
reivindica um estatuto africano para as obras do Aleijodinho, avançando no
caminho aberto por Mário de Andrade. Porém, não é o condição mestiça
do artista que ele considera decisiva, mas sim as característicos dos obras.
Citando nomeadamente as esculturas da fase final do artífice, em que se teria
influenciado pelos escravos que lhe serviam de assistentes, ele aproxima pe-
ças como o São Jorge de Ouro Preto dos máscaras geledés, com seus olhos
rasgados e pendor sintético. Também o museólogo Orlandino Seitas Fernan-
des,27 especialista no obra do Aleijadinho e autor de uma série de laudos
de atribuição de autoria de suas imagens devocionais, dizia que elas têm
algo de fetiche africano. Germain Bozin apostava no fator atávico da origem
africana do artista, que teria herdado "seu dom plástico de seus ancestrais
negros",28 mas não há dúvida de que prepondero sobre este o universo cultu-
ral do meio em que viveu o artista e dos mentalidades com que ele conviveu.

Imagensdo Alei;adinhosõo também as imagens que circulam em torno do ar-


tista, que retratam suo figuro imaginário e representam, substituem e apresen-
tam sua obro, constituindo uma espécie de Imaginário do Aleijadinho, reunido
e oferecido aqui para ser exibido com as Imagens devocionois. O título da ex-
posição adquire um duplo sentido: imagens geram imagens, acompanham a
obra "original" e formam um repertório que também é parte de sua recepção.

19
Antõnio Francisco era pardo escuro, linho voz forte, a fala arrebatada, e o
gênio agastado: a estatura era baixa, o corpo cheio e mal configurada, o
rosto e a cabeça redondos, e esta volumosa, o cabelo preto e anelado, o
da barba cerrado e basto, a lesta larga, o nariz regular e algum tanta pon-
tiagudo, os beiços grossos, as orelhas grandes, e o pescoço curto .

O primeiro retroto do Aleijodinho é este feito por seu biógrafo Ro-


drigo José Ferreiro Breias (1814-1866),no texto de 1858 que é republicado
neste volume (pp. 168-76), semente do formação do seu mito.29 Este pode-
rio ser um possível ponto de partido do narrativo desta seção iconográfico
ou, numa ordem cronológica mais estrita, os mapas sediciosos do militar
português José Joaquim do Rocha (1737-1807), contemporâneos do Alei-
jodinho e que teriam servido de subsídio para o levante do Inconfidência
Mineiro, revelando os pontos exatos dos núcleos urbanos e suas rotos de
acesso. Essessão preciosos documentos da situação geográfico do capi-
tania dos Minas, mas são também delicados iluminuros.30 Duas oquarelas
sem autoria identificada, pertencentes ao fundo Yonn de Almeida Prado
do Instituto de Estudos Brasileiros IIEB),registrom as atividades de extração
de ouro e a antiga feição do praça principal de Villo Rico. As imagens de
Johonn Moritz Rugendas {1802-1858) e Thomas Ender 11793-1875)fazem
porte da iconografia dos viajantes, que teve início com a abertura do Brasil
às missões científicas, e registram os modos de vida e o paisagem mineiro.
A fotografia da fazendo da Jaguara foi feita por Augusto Riedel
11836-1877)durante a viagem do duque de Saxe 11845-1907)e faz parte de
um álbum que é dos mais importantes documentos fotográficos brasileiros
do século 19. Foi ali um dos famosos locais onde trabalhou o Aleijadinho,
criando a decoração da igreja da fazenda, que, posteriormente, teve seus
altares remontados na igreja Matriz de Nosso Senhora do Pilar, em Nova
Lima !Minas Gerais). A imagem da Jaguara é justaposta a um fragmento de
talha que também teria pertencido a sua igreja.
A imagem da Jaguara dó início a uma série de imagens fotográficos,
o começar por duas ampliações de More Ferraz 11788-1850),que registram
o mercado em frente do igreja de São Francisco de Assis, em Ouro Preto,
e os Possos da Paixão de Congonhas. O fotógrafo modernista argentino
Horacio Coppolo IJ906-2012) esteve em Minas Gerais em 1945 e, com seu
olhar clínico, captou alguns dos mais interessantes aspectos da esculturo
do Aleijadinho. 31 Dele, mostramos uma imagem de um anjo da portado
do Igreja do Carmo de Soborá e um detalhe do mão da imagem de são
Simão Stock do mesma igreja. Sobre as fotografias de Coppolo, pode-se
pensar que elas têm o poder de serem talvez mais reais que os próprias
imagens que elos representam, simulacros que são uma espécie de repeti-
ção reiterativo ou mimese do mimese. É dele ainda o impressionante ima-
gem do medalhão do frontispício da Igreja de São Francisco de Ouro Preto,
que representa o santo recebendo as chagas , exibida em justaposição com
a tela da mesma Iconografia de EI Greco (1541-1614),da coleção de pin-
tura europeia do MASP.Marcel Gautherot 11910-1996) deve ser o fotógrafo
que mais registrou a obra do Aleqodinho, o serviço do Patrimônio, 32 e
encontra-se aqÚi representado por uma imagem do coleção MASP Pirelli
que documento a concentração dos romeiros no jubileu do santuário de
Congonhas, uma fotorreportagem que humaniza o monumento e ressalta
seu caráter popular.

20
A pequena pintura de Euclásio Penna Ventura, doada ao Arquivo Pú-
blico Mineiro em 1941, constitui um dos mais interessantes retratos imaginá-
rios do escultor, que parece não ter sido retratado em vida. Para uma ideia
do excessivo entusiasmo mineiro sobre os temas do Aleijadinho, mencione-
-se que essa pintura é, desde 1972, reconhecida por lei como a efígie
oficial do artista ...33
O pintor Henrique Bernardelli (1858-1936)também. criou uma visão
construída do Aleijadinho no século 19, na pintura que representa o escul-
tor no momento em que finaliza os trabalhos de decoração no interior da
igreja franciscana de Ouro Preto. A relação do século 19 com Aleijadinho
é o tema do ensaio inédito de Ricardo Giannetti neste volume (pp. 58-69),
tendo a pintura de Bernardelli e sua passagem por Ouro Preto como pon-
tos de partida.
A paisagem montanhosa mineira tem sido apontada como uma das
influências da arte barroca das cidades históricas.34 O traçado das ruas
sinuosas e íngremes confere movimento às cidades, que é indissociável da
experiência de fruição das igrejas , confluindo paisagem e monumento. A
compreensão desse espaço está na origem dos obras de Tarsila do Amoral
{1886-1973),que participou com Má rio de Andrade do chamada "caravana
modernista", que entrou para a história da arte oficial como aquela que "des-
cobriu" a arte religioso de Minas Gerais, e de Alberto da Veiga Guignard
(1896-1962),cuja obra se confunde com a paisagem mineira. José Pancetti
IJ902-1958)passou temporadas em São João dei-Rei,numa das quais reali-
zou um impressionante "retrato" da igreja de São Francisco de Assis daquela
cidade, templo que tem o risco original do Aleijadinho.
Uma vocação construtiva insuspeita emerge da montagem da Corte-
mo Congonhos-Jesus carregandoo cruz- Aleiiodinho(circo 1973),de Aloí-
sio Magalhães, o encontro da cruz criando formas geométricas repetitivas,
imagens do Aleijadinho ad infinitum.Talvez aqui valha fazer uma pausa na
descrição da montagem para remeter ao projeto que me trouxe até este, o
comissionamentoao pintor venezuelano Juan Araujo para que trabalhasse na
exposição Mineiriona,no Instituto lnhotim em 2013, o partir de várias referên-
cias imagéticas mineiras, tendo o Aleijadinho como uma das fontes principais.
O diálogo com Araujo partiu do pressuposto de que o barroco mineiro infor-
mava toda uma visualidade ao longo do século 20, que se disseminou pelos
meios de reprodução mecânicas em livros, cartões-postaise reportagens de re-
vista, servindo inclusive como produto de exportação da cultura brasileira. Na
mostra do MASP,as obras de Araujo pontuam a montagem criando diálogos
com temas e lugares-entre as paisagem mineiras, com a pintura Os inconfi-
dentes (2013),feita a partir de um frame do filme homônimo de Joaquim Pedro
de Andrade (1972)e com o desenho O adro e os passos (2013)e o políptico
Reconquistade Congonhas(2012),evocando o magnífico conjunto escultórico
que também é o tema do ensaio de Myriam Andrade Ribeiro de Oliveira repu-
blicado neste volume (pp. 199-207). Ao lado da Cartemade Magalhães, ain-
da num viés construtivista, uma pintura de Araujo constitui como o simulacro
da capa do número 2 da revista Barroco,editada pelo poeta Affonso Ávila
(1928-2012)em 1970. No desenho gráfico origina l do pintor abstracionista-
-geométrico Eduardo de Paula, havia um encontro entre temos do barroco e a
estético concretista, algo presente também na poesia de Ávila .
Rochelle Costi renova a tradição dos artistas fotógrafos que registra-
ram as <;>brasde Congonhas, com imagens a contrapelo dos Passos. Numa

21
delas, vemos o mõo negro do escultora Lourdinho, ativa hoie no região de
Ouro Prelo1 que segura um pedaço de pedra -sabão, representando o resis-
tência de uma tradição escultórico afro-mineiro. No obro de Antonio 066,
Iconografia - Missa prata (2017),esl6 em curso uma liturgia em negro, re-
velando um corpo africano no processo étnico-espiritual brasileiro, pintado
como ausência e sacramento. Por fim, Thiogo Honório cria uma montagem
[Leiluras, 2018)se apropriando de dois elementos: o primeiro edição publi-
cado em livro do texto de Mário de Andrade sobre o Aleijodinho (1935) e
uma réplica encomendada o um ímoglnórlo do mão do são Simão Stock
sobarense. Aqui, o ensaio de interpretação fundante do mulotismo é toca-
do pelo corpo mutilado do escultura, metáfora do escultor.
Seja pela onóllse formal de suo obro, seja pelo análise do contexto
de suo produção ou ainda pela maneiro como hoje se pode apropriar
dela, como se vê são múltiplas as leituras dos histórias afro-atlânticos em
torno das Imagens do Aleijadinho.

Rodrigo Moura, curador adjunto de orle brasileira, MASP

1. Esta exposição se beneficiou do interlocução Anlônio Francisco Lisboa. Publicação n. 15,


com diversos individues em muitos est6gios Rio de, Janeiro, Mlnislllrio do Educação e
do projeto, aos quoi1 ogrodeço : Adriano Saúde, 1951. Para os textos de Rodrigo Melo
Pedro10, Adriano Ramos, Angelo Oswa ldo de Franco de Andrade sobre o Atoijodinho , ver
Araú jo Sontos, Codu Riccloppo, Cecilio Rocha ANDRADE, Rodrigo Melo Franco de. Rodrigo
de Slquelro, Eliana Marta Teixeira Lopes, e seus /empos. Rio de Janeiro : fundação
Fobia Mogolhães, José Bouzos, Lulz Mareio Nacional Pró-Memória, 1986.
Ferreiro de Carva lho Filho, Morce la Aroú io, 7. BAZIN, Germoin. O Aleijadinhoe a
Max Perlingeiro, Padre Corrêo do Lago, esculturo barroco no Brasil.Rio deJaneiro:
Ricardo Gionna tti e Thiago Honório . Agradeço Record, 1971. No capítulo 3 do Colólogo
também às bibllotec6rios do Coleção racional, dedicado às Imagens,encontra-se
Mineiriona, do Biblioloca Públ ico Estadu al uma listo de 27 obras, que "lembram o estilo
Luiz de Bessa, Belo Horizonte. do Aleijodinho e sua execução" e cinco
2. BAZIN, Germoin. A arquiteturareligiosa "obras atribuídos ao Aleijodinho e estranhos
barroco no Brasil.Rio de Janeiro: Record, oo seu estilo".
1956, p. 9. 8. JARDIM , M6rcio; PINTO, Herbert Sordir,ho;
3. "Filho natural da Manuel Francisco da COIMBRA, Marcelo. O Ale/fadinho: cot6logo
Costa Lisboa, dblinlo ar9ulte10 português, gorai do obro : lnventório das co leçõei
leve por mõa urna ofricolio ou crioulo, públicos e particulares. ltu: lgil, 20 1I.
de nome Isabel, e escrava do mesmo Lisboa, 9. Reproduzido no copo deste cotàlogo,
que o libertou por ocasião de fozõ -lo batizar" . o Cristo do flagelação ou da coluna [imgs.
Ver BRETAS,Rodrigo José Ferreiro . Traços 85, 86) do acervo do Museu de Arle Sacro da
biográficosrulolivo1 ao finado António Sõo João dei -Rei foi restaurado pelo MASP no
Franc:/sco l.isboa.Belo Hori zonte : Editora início dos anos 1980, conforme documentação
UFMG, 20 13, pp . 37-38. encontrado no posta do Aleijodinho no arquivo
4. ANDRADE, M6rlo de . "O Aleijodinho". de referência do Museu.
ln:MOURA, Rodrigo \org .j. Imagens do l O. Aleiiadinho.Rio deJaneiro: Museu
AleiJodlnho . São Pou o : Museu de Arta da Arte Moderno, 1978. Curadoria de lúcio
de São Paulo Assis Choteoubriond, 2018, Costa. Cot6logo de exposição . Ne5Semosmo
p, 179. ano, Lúcio Costa assinou o roteiro da um
, Myriom Andrade Ribeiro de;
5. OLIVEIRA filme homõnimo, dirigido por Joaquim Pedro
SANTOS FIL!-iO,Olinlo Rodriguru dos; de Andrade (1932-1988)e narrado pelo
SANTOS, Anlonio Fornor,do Batista dos lorgs.). critico Ferreira Gullor (19::l0-2016), uma espécia
O Aleljodinhae suo oficina : catálogo das de complemenlo 6 eJCposiçãode estotuórlo
escul/uras devoclonais . Sõo Paulo: Coplvoro, davocionol, que percorro obras ln s/fu
2002. Esta edição do MASP se baseou do Aleijodinho l3S mm, cor, som, 22"1,
numa série de parâmetros de O Aleijodinho 11. MAGALHÃES, Fábio , A/e;jodinhoe 5eu
e suo oficina,entre elas, o dotação das tempo: fé, engenho e orle. Rio de Janeiro:
obras publicados. Centro Cultural Banco do Brasil, 2006.
6. Diretoria do Potrimônio Histórico Nocional. Cot61ogo de exposição.

22
12. No arquivo dos exposições no MASP, 22. ld., ibid.
encontra-se uma pasla de 1950 com 23, Sobre o declínio do ciclo do ouro
documentos relativos a essa mostra, que o o processo do ernpobreclmenlo o de
serio roalizada no museu naquole ano , Num morginollzoção gorados por ele, ver MEllO
tocorle de O falado do S. Paulode 26 de E SOUZA, louro de . Da,claSJllícados
novembro de 19d9, a exposição ó anunciado , do ouro: a pobrexa mineiro no século tB.
ao pas10 que 11umocaria ao lot6grofo Rio de Janeiro : Graol , 1982.
Jorge do Cas lro, do 7 do ioneiro de 1950, 24. Sobre as condições do trabalho artístico
e, oxpo~içõo il dado como suspenso. Não no período, ver tombém 'coRREIADIAS,
onconlramca monções posioriores 6 moslro Fernando. "Poro uma sociologia do barroco
nos veículos de divulgação do museu. mineiro". Revista Barroco,Bolo Horizonte,
13. "Museu sem adjetivos" e "contromuseu" Universidade Federal de Minas Gerais, n. 1,
são algumas dos formos como Pletro pp. 63-74, 1969. Sobre o popel dos ordens
Maria Bardi denomino o proje10 do MASP. terceiros, ver também o estudo pioneiro
Ver BARDt,Plelro Maria . "Um museu foro dos de SAllES,Frilz Teixeira de. Associações
limilos". ln· O MuJallde Ar/a de São Paulo. religiosasno ciclo do ouro: introdução
São Paulo: MASP,2016. (Bolelim; 61. ao comporlomenlo social dos Irmandades
14. BARDI , Pielro Maria . ThoArts ,n Brax/1
; do Minas no século IB. 2g ed. rev. e ompl,
A New Museum ai São Paulo. MIião: São Paulo: Perspectiva, 2007.
Ediziono do! Mllione, 1956, p. 56, fato livro 25. MEllO E SOUZA,Loura de . Op. cil.,
oferec11uma espécie de norrolivo do criação p. 141.
do MASPporo o publico inlernocionol. 26. Ver PAIVA,Eduardo Franco. Escravidão
[Trecho original : One ol tj,o elemonls e universo culturalno colónia: Minas Gerais,
ol recen1 brazil ion tradition Is the Boroque, 1716-1789.Belo Horizonte: Editora UFMG,
which was lntraduced by rhe rollgious 2001.
missions, especially 8enedlcllna and Josuit. ln 27. FERNANDES, Orlondino Seitas.
the hands ol tho native ond Negro craltsmen, "O despertar do torro". ln: SCHEIER, Peter.
it undorwent curious transformotions; for Imagens do passado em Minas Gerais .
thelr lmperlect ond scarce technicol ability Rio de Janeiro: Kosmos, 1968, p. 19.
re1ulred ln slrange ond Impressivo shopes - 28. BAZIN,Germain. Op. cil., 1971, p.63.
lngenuous work1 ol ort in which the symbol 29. A narrativo de Breias é dos loxtos
of the grape cluster became lhe pineapple , mols publlcodos sobre o Aleljodinho e foi
lhe heron took lho ploce of lhe devo .] desconslruída por Guiomar de Grommant,
15. •um balanço doz1ma is anos dopo!J", que o comparo o um conto de lodos e vê
ln: BARDI,Lino Bo. Tempos de grossura: nele o ropolição dehislórías encontrados
o design no impasse. São Paulo: Instituto em outros ''vldos de ortlstos". ln: GRAMMONT,
Lino Bo Bardi, 1994, p. 12. Guiomar de. Aleiiadlnha e o aeroplano :
16. Poro uma referência sobre a retomado o paraíso barroco e o comrruçõo do herói
dos desenhos do expos ição de Lino Bo colonial. Rio de Janeiro : Civilizaçõo Brasileiro,
Bordi pelo atual dlreção orfütico do MASP, 2008, pp . 67-130.
ver PEDROSA,Adriano; PROENÇA,Luizo. 30. FURTADO, Júnio Ferreiro. "Um
Concrelo e cristal:o acervo do Masp corl6grofo rebelde? José Joaquim do Rocha
nos cova/eles de LinoBo Bardi. São Paulo: e o corlogrofio de Minas Gerais". Anais
Mosp; Cobog6, 2015. do Museu Paulislo: Históriae Cullu.ra
17. Entre os negocionistos mais célebres, estão Moleriol, São Paulo, v. 17, n. 2, jul./dez.
Fou do Carvalho (O Aleiiadinho, Antônio 2009, pp , 155-87.
Francisco Lisboa. Belo Horizonte: Edições 31. Lux,cedro 8 pedra: esculturasdo
Históricas, 19341e Augusto de LimaJúnior Aloi;adinhofotografadas em Minas Gerais,
(O Alei;adinho e a orle colonial. Rio de 1945. Rio de Janeiro: lnslituto Moreira Salles,
Janeiro: Edição do Autor, 1942;Arle religiosa. 2012, Cot6logo de exposição . No ensa io
Belo Horizonte: Institutode História, Letras do curador Luciano Miglioccio, ele lembro
a Arre, 19661, As polémicas em torno que Horocio Coppolo 16lotogroforo com seu
do existência do Aleljodlnho são trotados cuidadoso método esculturas mosopotõmlas
no texto do lornollsto, escrilor e curador e pré-colombianas.
de arte Angelo Oswoldo de Araujo Santos, 32. Paro o trabalho de Marcel Goutherot
publicado nesle ca16logo (pp. 34-45). em Congonhas, ver GAUTHEROT , Marcel.
lB. BOSCHI, Caio . O barroco mineiro: orles PaisagemMoral: Os profetas de Congonhos
e trabalho. São Paulo: Brasiliense, 19B8, do Campo. São Paulo: lnstitulo Moreira
possfrn. Ver, do mesmo autor, Os /oigos Salles, 2009.
e o poder (Irmandadesleigas e polllico 33. Conforme o Lei n. 5.984, de 12 de
colonlxadoro em Minos Gerias/ . São Poulo: setembro de 1972.
Állca, 1986, em que ele estudo o popel 34. Ver MACHADO,LourivalGomos. "Viagem
político das ordens terceiros no sistema o Ouro Preto". ln: MACHADO,LourivalGomes.
colonial e suas implicações raciais. Barrocomineiro. São Paulo: Perspectiva,
19. Idem.O barroco mineiro: orles o trabalho. 1978, pp. 186-89.
Op . cil., p. 13.
20. ld., ibid., p. 13.
21. /d. "A formação artístico subvencionado
pelo er6rio régio só passo o ter lugar no
inicio do século 19". ln; ibid.

23
O ALEIJADINHO
MÁRIO DE ANDRADE,1928

A Fernanda Mendes de Almeida

Se excetuarmos os tempos de agora, a período que vai mais ou menos de


1750 a 1830 ser6 talvez o de maior mal-estar poro a entidade nocional bra-
sileira. É nele que vive António Francisco Lisboa, o Aleijodinho (1730-1814).
A Colônia dera por dois séculos certos expressões grandiosas da
sua significação histórica e socia l. A Guerra Holandesa, o Bandeirismo,
Gregório de Moto s (1636 -1696), o Igreja e conven to de S. Francisco, na
Bahla . Todos estes fenômenos, porém, são esporádicos, seccionados geo -
gráfica, crono lógica e socialmente. Embora expressões muito específicos
de colonia lismo, são frutos dos condições de determinadas cap itania s,
não são frutos da Co lónia . Não resultam da coletividade colonial. Expres-
sões desta, principiam aparecendo com frequência só mesmo da segunda
metade do século 18 em diante, com a posição burocrática e centra liza -
dora da cidade do Rio de Janeiro, com a expansividade antimarítima das
Mina s Gerais, com o influência do homem colonial sobre o Metrópole,
com a normalização do mestiço.
É então que o Rio de Janeiro principia trabalhando socialmente no
emprego que durante o Império havia de sustentar com tanta lógica ... O
Rio de Janeiro é o maior homenagem que oferecemos ao tropical instinto
burocrático da nacionalidade.
Não correspondendo a nenhuma confluência económica, a nenhu-
ma necessidade industrial ou comercial do país, usando (e abusando um
bocado também) da sua posição geográfica, o Rio de Janeiro cumpre es-
trategicamente a sua sinecura lustrosa de capital da Colônia e da Nação
independente.
A expansividade da Capitania das Minas foi real. O ouro funcio-
nou realmente como o primeiro fixativo da atenção americana de reinóis
e brasileiros coloniais. Por outro lado, os fatos francamente desagradáveis

181
da Inconfidência vão repercutir e ter desfecho no Rio de Janeiro. A mani-
festação coletivo da, possível em título e verdadeiro em norma, Arcádia
Ultramarina, se sabe que profetizo o Romantismo indianista e cantador do
Segundo Império. No Uruguai, nas Cartas chilenas, nos Marílias, estão à
espera de fecundação europeia , os mães legítimas do Y-)uca-Pirama,de
Castro Alves (1847-1871),do modinheiro de salão oitocentista. A expan-
sividade mineiro tem outros fenômenos mais concretos : José Joaquim da
Rocha (1737-1807),que por 1770 funda a escola de pintura baiana, pro-
vavelmente é mineiro. E mineiro sem discussão é Mestre Valentim ([1745]
morto em 1813), parando no Rio de Janeiro.
É muito forte o influência hum-ano que o Colónia principio exercen-
do sobre a Metrópole . O Judeu revoluciono os portugueses com os remo-
ques dele. Matias Aires (1705-1763)fora colher no "jardim da Europa" os
cravinas da vaidade que no São Paulinho daquela época não linha vergai
que desse. As liras de Gonzaga (1744-1810)fazem furor em Portugal, mui-
to relidas e muito contadas . A modinha então, nem se falai E os açafatas
de Dono Maria, nem bem pilhavam um momento de recreio, pronto : caíam
na modinha. Caldas Barbosa (1739-18001,apesar de mestiço, é aplau-
didíssimo nos reuniões e serenins de Lisboa, e apesar de padre, é pelos
mod inhas que consegue apl auso. Os próprios estrangeiros, que nem Link,
põem reparo que a can tiga bra sileira encanto mais que a portuga, por
a presentar "maior va riedad e e uma alegria tão franca e ingênua como
a nação origi nadora de la". E era também da seiva da Colónia que prin-
cip iava elaborand o, lundusodo e lo mbusado de nossos méis e do negro
doce, o fado que se tornaria em seguida representativo de Portugal.
Mos a prova mais importante de que havia um surto coletivo de
racialidade brasileira, está na imposição do mulato. A Colónia, por forço
dos suas circunstâncias económicos unicamente, e sem o mais mínima
intervenção político de Portugal, fazia dois séculos que vinho se enrique-
cendo de algumas realizações artísticas. Era principalmente no arquitetu-
ra que isso... acontecia . Bahio, Pernambuco já estavam cheios de igrejas
luxuosas, e algumas até belos. Minas também já inaugurara com enge-
nheiros e mestres-carapinos lusitanos os motrizes de Vila Rica, Mariano,
Sobará, mais ou menos na década de 1730 a 1740. Mesmo Caeté, um
bocado mais tardonha (1757), era pelo tamanho guaçu, um bruto dum
munhecaço emboaba atordoando o consciência nacional nascente. De
todos esses exemplos principiam nascendo na Colónia, artistas novos que
deformam sem sistematização possível a lição ultramarina. E entre esses
artistas brilha o mulato muito.
Caldas Barbosa e Mestre Valentim são mulatos . Leandro Joaquim
(1738-1798),da mesmo época e dos melhores pintores do Rio, é mestiço
também. O podre José Maurício Nunes Garcia (1767-1830), mulatíssimo
e o mais notável dos nossos músicos coloniais . Estou lembrando ainda
aquele Joaquim Manuel prodigioso, escutado por De Freycinet (1779-1841),
virtuose em cujos dedos o violão "tinha um encanto exprimível, que vencia
em qualquer competição os melhores guitarristas europeus" .. . E carece
não esquecer que o pessoolzinho vindo das tradições do tal "Conservató-
rio dos Negros" que Balbi (1782-l848) imaginou sobre os ensinos musicais
do Fazendo de Santa Cruz, chegou o levar no Rio de Janeiro , as óperas
de Marcos Portugal (1762-1830).. . Em Ouro Preto os mulatos representa-
vam tragédias no teatrinho ... E o Aleijadinho é mais outro mulato. Bastam

182
estes ex mplos paro se compreende r esle lodo, nc10dominanJo, rnus inten-
srnno11te vlsivel, de como o raça brosil ircJse impunha no momento.
É urioso de observo que toJos estes mulatos apare m brilhando
µrlncipolmenle n(lS artes plôslicas e na músico. Mo stram assim o iu e
tínho de fortemen te negro neles. O próprio Ler no Selimunlino (1739-
- 1800) é mais modinheira que liler ta, e orno poeta o gente não pode
sequer aproximá -lo de Gonzaga, Basílio do Co mo p740 -1795) ou Cláu -
dio Manuel do Costa (1729-1789). Os africanos são Íortem nte plásticos e
musica is. No musi o é que eles conseguiram se lornar manifesr·ação per-
manente de arte americano, habanera, tango, lundu, samba , raglime e
iozz . Pela esculturo chegaram mesmo a influenciar as artes europeias con-
1 rnporâneas . Os nossos mesliços do fim do Co lônio g lorificam o "maior
mulataria", se mostrando artistas plásticos e musicais. Só bem mais tarde
é que darão representações literárias notáveis. Naquele tempo não . Apo •
recerom profetizando para o Brasil uma constância futura genia líssimo,
ospecia lizada nos artes plásticos. lnfelizmenle isso não passou de rebate
falso, uma aurora que não deu dia.
Me espanta mas é muito, ver o sinceridade mesquinho com que
historiadores e poetas depreciam o mulato. Copistrono de Abreu (l 853•
· 1927), O liveira Limo (1867-1928), obedecendo sem nenhuma revisão ho-
nesto, à quizi lio que já no Colônia os reinóis manifestavam contra os
mulalos 1 deixaram páginas sobre isso que não correspondem a nenhuma
verdade nem social, nom psicológica . Ul!imamente ainda foi Graça Ara -
nha (1868-1931)que fez o mesmo numa página que me pareceu repulsivo
em suo eloquência romântico . Não fazem mais do que se escrav izar a
um vício reino! e europeu, que já levava Bougainville a desaploudir os
rep resentações de brancoronas nos teatros do Rio de Janeiro, e Mortius
(1794-1868) o ficar todo enquizi lodo com aque le pano de boca do teatro
São João, no Bahio, em que um mulato mocota, empunhando o caduceu
de Mer cúrio, ~Antnvn cheio de circunstância sobre urna caixa de açúcar ...
Que os mulatos eram foçonhudos não tem dúvida que sim. Mas
eram porém, pelo simples foto de formarem o classe servil numerosa, mos
livre . É lantes vezes a classe que desclassifico os homens... Em São Pau-
lo agora os entreveras e crimes surgem entre os Pislone, os Elias Faroht,
e também nas últimas noites, entre húngaros, !checos e o lvuras arianos .
É ridículo que certos juízos interessados peguem tonto, e virem lugares-
•comuns. Os mulatos não eram nem melhores nem piores que broncos
portugueses ou negros africanos. O que eles estavam era numa situação
particular, desclassificados por não terem roço mais. Nem eram negros
sob o bacalhau escravocrato, nem broncos mandões e donos . Livres, do -
tados duma liberdade muito vazia , que não tinha nenhuma espécie de
educação, nem meios poro se ocupar permanentemente. Não eram es-
cravos mais, não chegavam a ser proletariado, nem nado . Soldados . Na
mesmo disponibilidade do soldado na cion al. E mesmo assim, se com-
pararmos bem o atuação dos mulatos e a dos Fanforrões Minesios , um
Dão João Vt (1767-1826), um Pedro 1 (1798-1834), uma Carlota Joaquina
(1775-1830), os poetas coimbrões de Inconfidência, o Diretoria lisboeta
do Companhia do s Diamantes, pro só lembrar casos salientes e históricos:
será difícil decidir quem que tem olmo de "mulato" entre esses porlu gas e
brasilianos sem firmeza nenhuma de caráter . Mulatos , mais "mulatos" que
os desroçodos mulatos do maior mulataria.

183
Porque carece lembrar principalmente essa verdade étnico: os mu-
latos eram então uns desroçodos. Raças aqui tinha os portuguesa~ e os
negros. Sob o ponto de vi sta socia l os negros forma vam uma raça ape-
nas. Roço e classe se confu nd iam de ntro dos interesses do Colônio . O
que essas dum "roças" acabaram faze ndo, nós sabemos: os brancos não
se amo laram com os preconceitos, gostaram e deveras Jas negros cor-
pudas e veio um Lundu cantar:

Que bem me importa


Que falem de mim,
Eu 90510 da negro
Mesmo assim

E veio o mulataria.
Já naquele tempo os mulatos, antes de se dispersarem como ape-
nas um dos elementos da raça brasileiro, apareciam, e sempre aparece-
rão, não como roça, mas como mestiçagem: muito irregulares no físico e
na psicologia . Cada mulato era um ser sozinho, não tinha referência étni-
ca com o resto da mulatada . Uns brigões, não tem dúvida, outros mansos,
porém. Uns burríssimos e primários, outros viva zes, e tontos até com inte-
ligência fecundo e criadora. A vaidade nuns era humildade noutros. Se
um gostava de passar seus peolos, outro manifestava noção doentia do
verdade; e caráter organizado não era ra ro entre eles não . O mansinho,
puro, ca rid oso podre José Maurício (1767-1830), aguenta ndo a "mulatice"
ingênita de Marcos Portugal e do mano Simão. O ~ócl l e esper talhão
do Mestre Valentim doí a pouco ia funcionar discreto nas manobras do
vice-rei . O Aleijod inho, despeitado da vid a, mucudo, engrolando o latim
bíblico pro se omansor, dmansou? Diz-que os escravos queriam bem ele.
E o alei jado reinventava curiosamente em Vila Rica, uma existênc ia de
ar tista do Renascimento, entre d iscípulos que lhe desbastavam a pedra e
esculpiam a parte menos impor tante do ta lho. 1 E me esqueci de lembra r
que na Bohia, primeiro em doto nesse conga de mulatos fomanazes, Cha-
g a s, o Cobro, pre ludidra com vigo r o co ro dos sanleiros nacionais . Todos
esles va lores justificam em nossa lradição desses lempos , os possíveis
recordes de malandragem e crime que os mestiças por força da co ndição
e do número, bateram então.
Mos denunciei o mal-estar desse período brilhantíssimo, certamen-
te o mais relumeante das artes plásticas brasileiras até agora ... Mal-estar
principalmenle por causa da inco nsciê ncia nocional que o caracteriza.
Justo o con lrário do mal-estar de ogoro, em que os diferenciações e os-
cila ções de progresso econô mico e o internaciona lismo do pro letariado
nascente, dera m origem o um verdadeiro engur.gitamento de consciência
naciona l. De que nós 0s modernis tas de 1922, não deixamos de ser um
bocado vítimas também ...
O mal-estar era terrível. Todo o furor plástico da Bahia, o próprio
esplendor das terras de mineracão, era falso. O do Rio de Janeiro, já falei,
era apenas a obrigação burocrática, de usar camisa e requififes. O que
vinha fazer essa técnica tardonha? O que vinho completar esse poder de
artistas ilustres? A que força real dd Colô nio tudo isso correspondia? A
quase nenhuma já. Eram a eco atra sado da g randeza econômica. Toda
essa gente gloriosa chegava tarde; e, depois da festa acabada, é que se

184
punha onfeilund o o salão, Qua ndo o R côncavo bri lhou de negócio e
d111hi,o, a nocionol 1dode incipiente não Í'ormulo ro um ,,orne de pin tor ou
Je es ullor 91,e o representasse. A própria igr eja e co nvento de São Fron-
cis o se acabo só em 1750. E se Chaga s j6 esculpi a então os santos dei ,
Manuel Inácio do Costa, se não me engano outro mulato, nem nascera.
Na sce dez anos depois mais ou menos, e co nhecerá o Sele de Abril, poi s
rr1orresô em 1849. Quan to oo grupo de pintores baian os, · só depois de
1770 que aparece . O doce José Teófilo de Jesus (1758-1847), amigo do s
composiçõ es bem equi librados , se co mprazendo em só combinar formos
com os personagens que representava, criando paz em pintura , mor re em
1847 E quanto a Anlõnio Joaquim Franco Velosco, nascerá por 1760, pro
morrer em 1833. E era no entonto um dm mais fortes pintore s nacionai s,
espécie de Delacroix (1798-1863) antecipado, pelo vigor dramático das
suas concepções e movimento impetuoso das formas. Joga os figuras com
uma eloquência de gesto vivo e sobe dar vida, feito um Greco IJ54l -1614),
ao cloro-escuro.
Em Minas, o ouro já q uase que ocupava apenas os faiscadores .
O próprio dl slrilo diomantino desfale cia, depois de ler abarrotado a Eu-
ropa . Fulgor legitimo fora o dos três pr imeiros quarlos do século, com as
maluquices esplendorosas dos con tratadores, com o noviozinho do Chico
da Silva (1732. 1796), com o Triunfo Eucaríslico de 1733, e com os motri-
zes das comarcas, feiosas no orqulteturo, empetecados de tolha doirado
e bon!l'as no interior sem harmonia . Toda essa brilhoção correspondera
a um bem-estar econômico incontestável. E até social, se poderá dizer.
O episódio dos Emboabos solidificara bem a prepol ência portuguesa ,
e abatera nos paulislas a prelensão de mando . Mas no momento em
que o Aleijodinho, ali pelos trinta anos de vida ou ta lvez mais, impôs o
génio dele. Mina s decaía como quem despenca . O que perseverava era
apenas o brilho exterior. E este, essa tradição de fausto é que alimentou
e gra ças o deus fez funcionar Antônio Francisco Lisboa, e o parceiro dele
na pintura, M anuel da Cosia Atoíde (1762-1830), E bem parc eiro mesmo,
porque colaborou com o gênio tanto no obro de maturidade em São
Francisco da Penllênc ia, de Vila Rico (até 1777), como na obro da velhice,
pintando o São Bom Jesus de Matosinhos e encarnando figuras dos Pas-
sos, em Congonhas (1791-99).
Por debaixo do brilho roncava uma insatisfação medonha. O que
se enxergava porém, era a "bela viola" . Pulava de cada ladei ra, de cada
ponte, de cedo chafariz, um padre . Era mesmo uma padraria festeiro,
sem educação, sem mesmo certa religiosidade exterior (Capistrano de
Abreu ), de sque. Dão Joaquim Borges de Figueiroo (1714•1788), das águas
episcopais do ribeirão do Carmo, tirava mais obaruno do que ouro os ca-
rumbés. A festa de todos era o sempre cozido co lonia l de músico, teatro
e religião. Tinha orquestras em S. João d'El-Rei e Vila Rica. As procissões
melodramáticas desciam os abas dos cochilhos pisando chão empedrado
pelo escravaria, mexendo no movimento ritmado dos seus imperadore s,
imperotrizes , símbolos, alegorias, bulha de liras, e fogos de artifício me-
nos miríficos às vezes que a dromatlcidode físico dos imagens. Quebrava
os corações o célebre Senhor do Monte Alverne, em S. João d'EI-Rei,
mognificamenl·e estilizado no peito , e com a fisionomia tão docinho que
nem o próprio amor de Deus. Pudera! poi s o escultor do imagem quem
sabe se não foro Jesus mesmo? o tal desconhecido três dias fechado no

18S
lelheiro, ~em materia l nem instrumentos, porlido sem que nlnguéin vis~e, e
deix ando o cr ucifixo ronde ló ... Em Vila Rica, divertia muito nas repre •
5entações da proc issão de Corpus Chrisli, era o São Jorge o ca valo num
pingo ajaezodo ô rnirieira, estribos e rédeas de prato, e indo por cimo
com a lgumas enfeitaçoes mais jesultica mente místicas. "É o José R'omõol",
se comen tava , repetindo com fatalidade popular, a tradição folclóri ca
tão universal, que mesmo no Brasil se repetirá mais vezes com os pinto -
res baia nos José Rodrigues Nunes ( 1800 -1881) e Bento Rufino Capinam
(1791-1874). Não podiam matutar exegeses folc lóricos· esses mineiros . Pas-
seavam, rezavam, mapia vom, nem se imaginando decaden tes, festança
a li. E no melo da norte chegada, cada vulto, varapou mogruço meio
curvo, gen te mineiro banzava nos ruas carcundas, fazendo relumeor nas
luminá rias de jane las e por tos, os bo tões de ouro do co lete e as botas
de couro !.vinho . Se nos encaravam logo se percebia que eram gente
boa, bem cabeluda no braço e no peito entrado e com olhos dum ne·
grume calmo, meigo JJra todo o sempre, Meiguice ... M ulta melosidade,
é certo. No fundo, já aque la moléstia tão dos brasilei ros e que Nobuco
(1849-19 10) simbo lizo u: uma timidez acaipirada, envergonhada da terra
sem tradições . Sem tradições porque ignoravam a pátrlo e a terra . Em
verdade, no consciência daque la gente ainda não fínha se geogrofado o
mapa do imenso Brasil. Ambições, .desilusões, nababios ., quedas bruscos,
estaduanismo, ma l-estar fundo: era natural que brotasse uma alma com
po•u ca prática do vida, cheia de arroubos assustados , se esquecendo
de si mesmas nas névoas do religiosidade supersticiosa, cujo rea lismo,
quando aparecia, aparecia exacerbado pela comoção , longe do natural,
dramático, expressioni sta, mais de fo rmador que os próprios símbolos. E
de foto não passou disso o Inconf idência . E foi isso quase que a obra
toda de escultor, do Aleijadinho.
Antônio Francisco Lisboa era respeitado. Lhe pressentiam o gênio,
e se não enriqueceu, de certo foi porque, ver a maioria dos art istas, gas•
tava o que ganhava. E sabe -se também que foi urn mão-aber ta . Se ga •
nhou meia oitavo de ouro por dia, como refere Bretas,2 isso durou algum
tempo só, on les r.la celebridade ou já quando na rela da morte foi exp lo-
rado pelo discípulo Justino, na construção dos a ltares paro o Carmo de
Ouro Preto. Djalma de Andrade (1894-1977) comenta que pelo menos du-
rante os vários lustres de Congonhos (179 1 a talvez 181O), o A leijadinho
ganho u bem . E chegou a possuir três escravos e uma escrava.
Reconhecidam ente acei to como artis ta de va lor, célebre a pon to
de lhe aceitarem as exigências e caprichos , o Aleijadinho quose não foi
celebrado no tempo dele . Em 1790, o livro de registro dos fatos notáveis,
de Maríana, o nomeia já corno "superior a tudo e singular" (Breias). As
Cartas chilenas apareceram relatando a vida vila-riq uense, quando as S.
Francisco e N . S. do Carmo já estavam desde muito acabados . Mas as
Cortas não se refe rem oo A leijadinho . Era lido , possuía cer ta instrução
que parece, chegou olé o latim bib lico. Mos não se sabe que tenha tido o
mínimo co ntalo com os Árcades. Nenhum destes se refere a ele.
Talvez Antôn io Francisco fosse mesmo desprezado por ca uso do
dor ... Uma provo talvez disso, é que nos documen tos relativos ó co nstru-
ção do São Francisco (São João d'EI-Rei), nunca que vem menciono.do o
nome dele. Fala-se em "o ar tista", no "arquiteto fdmoso de Vila Rica" ... Só
iima a to, por ca usa duma necessidade de interpretaç ão, é que esclarece

J86
definitivamente ser do Aleijadinho a arquitetura do templo. Famoso e fin-
gidamente esquecido, parece ter sido a posição social que Antônio Fran-
cisco Lisboa sofreu na terra dele.
Aliás, durante todo o século passado se esqueceram dele, e mesmo
os que o amam agora e lhe salientam o valor, o deformam os mais das
vezes por cruéis incompreensões. Me parece importante.sobretudo evitar
que lhe ajuntem à personalidade o epíteto de "primitivo". Primitivo por
quê? Em relação a quê? Com a palavra vaga, que tonto pode significar
primário como lurluveanle iniciador de orientações estéticos novas, a gen-
te salva a próprio incompreensão e principalmente o medo das feiuras .
Se tal Cristo do Aleijodinho é disforme, um soldado romano é hor-
rível com o seu narigão quase que plaslicamenle insuportável, se ainda a
estátua do São Jorge tem uma carantonha espantada perfeitamente boba,
ou se as cúpulas das torres da São Francisco de São João d'EI-Rei, são
bolotas de mau parecer: é que o Aleijadinho é um "primitivo" .. . Assim a
gente evita de reconhecer o mais legítimo e olé mais indispensável direito
dos gênios, o direito de errar, o direito de fazer também obras feias e
dispensáveis. Apavorador pelos feiuras que o Aleijadinho deixou, como
Rafael deixou, como Miguel Anjo deixou, como Shakespeare (1564-1616)
ou Beethoven (1770-1827) deixaram, a gente disfarça algum tempo, com
uma palavra aleatória que não significa absolutamente nada no caso, os
nossos sustos, nossos remorsos.
Sim, remorsos . Afirmamos a genialidade do Aleijadinho, mas es-
barramos logo com o conceito de genialidade que nos veio do Europa. É
a biblioteca de mil volumes sobre Wagner {1813-1883),e a exegese eu-
ropeia, milionária e acomodatícia, explicando tudo, os erros, os cochilos,
ignorâncias e bobagens de Dante {1265-1321),Camões (circo 1524-circa
1580), Goethe (1749-1832) . Não estou esquecendo não, que os gênios são
de fato, muito superiores o si mesmos, e que nas obras deles tem um dilú-
vio de forças, belezas e símbolos, em que eles por si não puseram reparo .
Porém, é a mais incontestável das verdades que há nas obras deles outro
dilúvio de feiuras e defeitos, em que eles não puseram reparo também.
Conceda-se ao gênio o direito de errar, em vez de nos aplicarmos a essa
falsificação europeia da genialidade que busca reverter feiuras ostensivas
em sutilezas do belo. ·
Pelo contrário, o Aleijadinho ainda está sem uma exegese com-
pleta. E os estrangeiros que nos visitaram, no geral se esqueceram dele,
o que inda mais assusta a nossa timidez. Manue l Bandeiro ( 1886-1968)
já se queixou disso, quando lembrou que foi Saint-Hi laire (1779-1853), a
primeiro estranho ''o se referir em letra impresso ao Aleijadinho" . É isso.
No fuhdo, o generalidade dos brasileiros não lemos confiança no que é
nosso, a não ser depois que estranhos nos autariz_am ao samba, a Carlos
Gomes (1836-1896)e à baía de Guanabara.
Ora, infelizmente os viajantes que se referem a Antônio Francisco
Lisboa são duma desprezível insuficiência. Spix (1781-1826)e Morlius, nem
pio. Rugendas (1802-1858),idem. Saint-Hilaire se refere a ele no Voyage
dans le districtdes diamans et sur le litoraldu Brésil,diz Manuel Bandeira.
Mas na Voyage dans les provinces de Rio de Janeiro et de Minas Gerais,
moita. No entanto passou duas semanas em Vila Rica, descreve bostante
e pormenoriza as arquiteturas. Num passo curioso, fala que, depois de es-
cassear o ouro, os mineiros "se contentaram com os pintores da terra. Estes,

187
muitas vezes dotados de genialidade natural, não passam entretanto de mi-
seráveis borra-botas (barboui//eurs), porque não possuem professores nem
podem contemplar modelos bons". Sempre a obsessão do primitivismo ....
Já o capitão Burton (1821-1890), cujo universalidade de espírito é
admirável, e cuja perfeição de observador mereceu os elogios de Tylor
(1832-1917),a gente percebe que ficou muito preocupado com o Aleija-
dinho. Mas não o compreendeu minimamente, além de dar algumas ra-
tas boas. Assim, quando conta que Antônio Francisco trabalhava sem ter
mãos, amarrando os utensílios aos antebraços, comenta desastradamente :
"mas o caso do Aleijadinho não é o único de atividade surpreendente nos
aleijados, basta lembrar o caso recente de Miss Biffin". O caso do Aleija-
dinho se torna, pois, pro Burton, o duma qualquer Miss Biffin ...
Noutra página, chega a descrever com certa pormenorização, a
admirável São Francisco, de São João d'EI-Rei. Critica razoavelmente as
defeituosas cúpulas das torres, e especifica o processo, quase sistemático
na arquitetura de Antônio Francisco, de torres em quadrados curvilíneos
("this may be called lhe round-square tower style" [esse pode ser chama-
do o estilo de torre quadrado-redonda]), achando que só se recomenda,
porém, pela excentricidadeP
E, sonhando com os belezas orquitetônicas do Velho Mundo , não
tem uma pa lavra de elog io paro a o bra -prima, antes conclui conselheiral
que os povos jovens, da mesma forma que a rapaziada, carecem saber
que a geni al idade princi pia pe la i mitação, e só depois cria por si. É que
q uan do a crianç a preced e precocem ente a imitação, no geral os resulta-
dos são de mau gos to, de sgra ciosos e grotescos. O conselho não é de
todo péssimo, porém a verdade é que o Aleijadinho estava imitando! E
se genializavo o imitado, culpa não era dele de possuir a violência de
temperamento, a grandeza divinatória que o tornava original sem querer.
Burton ainda se refere várias vezes ao Aleijadinho . Acha "hand-
some" o exterior da São Francisco, de Ouro Preto, e sem nenhum elogio
se refere à talha do Carmo, de São João d'EI-Rei, também obra do "infa-
tigável". Os Passos, de Congonhas, meio que o horrorizam, chama-lhes
"caricaturas". Mas, sem perceber o elogio expressionista que fazia, reco-
nhece que, embora grotescas e vis, essas esculturas serviam pro "fixar
firmemente os assuntos no espírito da gente do povo" .
Quem talvez melhor percebeu o valor do gênio, creio que foi Von
Weech (1837-1905), no segundo escrito que publicou sobre o Brasil, a
relação da viagem .4
É verdade que passando em Ouro Preto, elogia as fontes da cida-
de, di sting ue uma ig reja sem ja nela s (?), e do Aleijadinho e suas obras,
nem pio . Ma s dia nte do s profe tas da escadaria de Congonhas, aos quais
o protestante chama de apósto los, perce be o homem.
"A s estátua s dos doze após to los, em tamanho natural e pedra -
-sabão, foram esculpidas por um homem sem mãos; embora não sejam
obras -primas, os trabalhos deste curioso artista, completamente autodida-
ta, trazem o cunho dum talento insigne" .
O Al eijadinho não teve o estrong eiro que ... lhe desse gênio . E por
isso nós não acre dit amos em nós. O q ue os brasileiros sabem no geral
é q ue teve um hom em biman eta neste país, que amarrava o camartelo
nos co tos dos braços e esculpia assim. E isso os impressiona tanto, que
contam pros companheiros, e estes pros seus companheiros . Miss Biffin.

188
Mas nem Miss Biffin, nem "primitivo" também. Primitivo em relação
a quê? Pelo contrário, o caso dele é perfeitamente o de completamento e
coroação duma fase. Ele transporta ao seu clímax a tradição luso-colonial
da nossa arquitetura, lhe dando uma solução quase pessoal, e que se
poderá ter por brasileira por isso. Saint-Hilaire fez na viagem de Minas,
uma síntese verdadeiramente admirável da igreja colonial brasileira. Não
deixo de a transcrever inteira:

Construites à peu pres sur le modéle de celles de Portugal, elles sonl beau-
coup plus petiles que les nôtres. Le clocher ne s'éléve point du milieu du toit,
il est remplacé par deux tours carrées qui, faisanl partia de la foçode de
l'église, prolongenl ses deux côlés, el l'inlervalle que las deux lours laissent
entre elles est rempli por un fronton que diminua de largeur de la base ou
sommel, à peu pres comme un lriongle, el se termine par une croix. Ouel-
ques églises de campagne n'offrent qu'un fronton sons ornement ; d'aulres
n'ont qu'une tour ou même elles n'en ont pas du tout, et alors la cloche est
ordinairement placée à côté de l'église sous un petit toil soulenu par deux
poteaux. Aucune église n'a de bos côtés. Le sancluoire n'est point comme
chez nous, continu ovec le reste dú voisseou ; c'est, oinsi que l'indique lo
dénomination portugaise « capelo mor », une véritable chopelle distincte
de lo nef, moins élevée et surtoul moins large qu'elle. Pour masquer les
ongles qui, de choque côlé, resultent naturellement de lo différence de lar-
geur de la nef e de la chopelle mojeure on conslruil à droite el à gauche
un outel oblique. Au-dessus du moitre-outel, qui occupe le fond de la cho-
pelle majeure, s'éleve dons une niche une haule pyramide de gradins char-
gée de chondeliers et de bouquets de fleurs ; le sommet de la pyramide
porte la slatue du patron, el les côtés de la niche sonl ossez générolemenl
occompognés de colonnes, ce qui forme un ensemble d'un effet ogréoble
et d'un goOt ossez pur. li ne faut pos s'ottendre à trouver, dons les églises
de l'intérieur du Brésil, des chefs-d'ceuvre de peinture et de sculpture ;
on n'y voit oucun tobleau, mais les eslatues des saints, les peintures des
plafonds et des murailles, ne sonl pos beaucoup plus mouvoises que celles
de la plupart de nos églises de province. On a senti chez nous que les
édifices religieux empruntaient d'une lumiere offaiblie quelque chose de
plus imposont ; mais souvenl, on a exagéré ces effets, el plusieurs de nos
temples sont devenus tristes et lugubres : il n'en est pos oinsi des églises
brésiliennes ; elles sont mieux écloirées que les nôtres ; les fenêtres ne sont
pos Ires grandes, mais elles sont plus multipliées et n'onl point de correoux
à petits plombs. La mogesté de nos temples ne se retrouve point, il esl vrai,
dons les églises du Brésil, mais on o beaucoup plus de soins de mointenir
lo propreté. Toutes sonl planchettées et, des deux côtés de lo nef, dons une
largeur de cinq à six pieds, le ploncher esl plus élevé d'environ neuf pou-
ces que dons le reste de l'église. Cet espace ainsi exhoussé, est seporé du
milieu de lo nef, por une bolustrade de « jacarandá » noir com me l'ébene,
et lo même bolustrode, prolongée parollelement ou moitre-autel, separe
encore le sanctuaire de la nef. 5

Citei por Inteiro esta admirável síntese, porque os arquiteturas do


A leijodinho se reconhecem nela.
Nos igrejas mineiras do século 18 a gente percebe a luta de duas
influências principais : a do A leijodinho e a do engenheiro reinai Pedro

189
Gomes Chaves, anterior ao brasileiro . Pedro Gomes Chaves já aplica
o processo das fachadas em planos irregulares, às vezes curvilíneos. O
documento disso é a N . S. do Pilar de Ouro Preto (1720),empreitada pelo
mestre-carapina Antônio Francisco Pombal, tio do Aleijadinho . E é fácil de
ver 9ue este imitou o engenheiro português . A fachada da São Francisco
de Ouro Preto, não passa dum desenvolvimento mais e9uilibrado e muitís-
simo mais gracioso, da solução de N . S. do Pilar.
Outra característica da obra de Pedro Gomes Chaves, é o frontão
triangular, denunciado por Saint-Hilaire, 9ue em vez de formar um todo
inteiriço, é seccionado em três partes, duas laterais gêmeas em movimento
ascensional, e uma central volumosa, desgraciosa no seu peso 9uadran-
gular, munida ao centro duma rosaça, 9ue duplica a rosaça do coro, esta
encimando imediatamente o pórtico. Esseé um processo bem luso-colonial,
fre9uente nas igrejas da Bahia, onde aliás, se apresento mais elegante,
com a rosaça substituída por janela com sacada . Também fre9uento os
templos pernambucanos 9ue nem na Madre de Deus, 9ue é um exemplo
típico, e na Espírito Santo, também do Recife, e na acachopada antiga Sé
de Olinda , o modelo mais lógico. Pedro Gomes Chaves deselegantizou
com toneladas de bruteza, os frontões nordestinos, trazendo sem ri9ueza
pras M inas 09uele jeito que no final do domínio dos Felipes, se introduzira
na arqu itetura de Portuga l (v.g. as Carmelitas Extintas do Porto, 1628).
A ma neira dos fro ntões de Pedro Gomes Chaves se vulgarizou
bem por Minas, e só o Aleijadinho e os que o imitaram, não caíram na
deselegância do português . Mas a Conceição de Antônio Dias, a Car-
mo (Ouro Preto) se infelicitaram seguindo Gomes Chaves . A deliciosa
Rosário, também de Ouro Preto, parece fundir as influências de Chaves e
do Aleijadinho. Traz a fantasia curv ilínea das paredes exteriores, q ue o
Aleijadinho sistematizara nas duas Igrejas fra nciscanas de Ou ro Preto e
São João d'EI-Rei, traz dele as janel as de pa nda nos torres, co m q ue estas
ficam orientadas pelos ângulos e não pelos planos da nave. E no fro nfão
reflete com mais lógica e menos peso, a segmentação tripartido de Pedro
Gomes Chaves. Tem ainda uma igreja de São José, não sei don de, que
conheço apenas por uma borradís simo repro du ção de jo rnal, me pa re-
cendo refletir essas mesmas tendências conciliatórias .
O Aleijodinho, surgindo da lição de Pedro Gomes Chaves, vem ge-
nializar a maneira deste, criando ao mesmo tempo um típico de igreja que
é a única solução original que jamais inventou a arquitetura brasileira. E
o que lenho por absolutamente genial nessa invenção é que ela contém
algumas das constâncias mais íntimas, mais arraigados e mais étnicas da
psicologia nocional, é um protótipo da relig iosidade brasileira . Essetipo de
igreja, fixado irnortalrnente nas duas São Francisco de Our o Preto e São
João d'EI-Rei, não corresponde apenas ao gosto do tempo, refletindo as
bases portuguesas da Colônia, como jó se distingue das soluções barrocas
luso-coloniais, por uma tal ou qual dengu íce, por urna graça mais sensual
e encantadora, por uma "delicadeza" tão suave, eminentemente brasileiras.
É certo que elas não possuem majestade, corno bem denunciou
Saint-Hilaire . Mas a majestade não faz parte do brasileiro, embora faça
parte comum de nossa paisagem. Carece, no entanto, compreender que o
sublime não implica exatamente majestade. Não é preciso ser ingente para
ser sublime. As igrejas do Aleijadinho não se acomodam com o apelativo
"belo", próprio à São Pedro de Roma, à catedral de Reims, à Batalha, ou à

190
horrível São Marcos de Veneza. Mos são muito lindas, são bonitas como
o quê. Sõo dum sublime pequenino, dum equilíbrio, duma pureza tão bem
orranjodinho e sossegado, que sõo feitas pro querer bem ou pro acarinhar,
que nem na cantiga nordastino . São ba rrocas, não tem dúvida, mas a sua
lóg ico e equilíbrio de solução é tão perfeito, que o jesuitismo enfeitador de-
saparece, o enfeite se ap lico co m urna naturalidade tamanha, que se o esti-
lo é barroco, o sentimento é renascente. O Aleijadinho soube ser arquiteto
de engenharia. Escapou genialmente do luxuosidade, da superfectacão,
do movimento inquietador, do dramótico, conservando uma clareza, uma
claridade é melhor, puramente da Renascença.
Ainda como santeiro, o Aleijadinho nodo tem de primitivo. As suas
estátuas e altos-relevos não divergem sensivelmente do estatuária religiosa
hispono-portuguesa, nem sequer por um individualismo pro nuncia do. Di-
vergem muitas apenas por serem melhores que o comum, sobretudo provi-
das de mais caráter, e algumas por serem ge nlol rner1te plásticas. Porém o
individualismo propriamente não se reflete nelas, mesmo nos estátuas tor-
turadas dos Passos, Um ou outro processo de tornear bocas, golpear olhos,
etc., é mais maneira técnica de ser, que individualismo propriamente.
Mas, antes de se afirmar qualquer coiso de definitivo sobre o indi-
vidualismo de Antônio Francisco Lisboa, careceria determinar exatamente
toda a obra dele, o que não está feito. São vários os problemas o resolver.
Sabemos que a São Francisco de Ouro Preto é inteiramente dele: plano,
escultura em pedra e pau, plano da talha. As esculturas de Congonhas,
pedra e pau, são dele. A arquitetura de São Francisco !São João d'EI-Rei)
é dele. A escultura em pedra da Carmo de Ouro Preto é dele ainda. E o
São Jorge fraco, Carece discriminar perfeitamente o que é dele na Carmo
de Saberá, na São Francisco de Mmiana, nas matrizes de São João do
Morro Grande e Santa Luiza do Rio das Velhas, e nas capelas das fazen-
das de Sabará.
Casos há que me parecem encrencados e apaixonantes . Assim, o
da Carmo de São João d'EI-Rei.
Basílio de Magalhães dá essa igreja como iniciada em 1732. Po-
rém se sabe que mais tarde modific o1ram a fachada. A escultura da porta
corre como do Aleijadinho, o que me parece incontestável.
Manuel Bandeira constata que toda a fachada respira a arte do
Aleijadinho. Respira. O frontão, mais pueril e esbelto, lembro a desenvol-
tura audaciosa da São Francisco de Ouro Preto. Os janelães da fachada
lembram os da outra São Francisco. A rosaça da claraboia emprega à
perfeição do círculo, que está nas outras duas igrejas certas do Aleijadi-
nho, e rara nas Minas de então.
A N. S. da Conceição, a do Pilar, a do Rosário (Ouro Preto), Carmo
e São Francisco (Mariana), S. Bom Jesus(Congonhas), todos trazem aquela
irregularidade fantasista na rosaça, que culminou no sentimentalismo exa-
cerbado e jesuitismo da Carmo de Ouro Preto. Ainda outra peculiaridade
das arquiteturas do Aleijadinho são as torres sistematicamente circulares
com as janelas de banda, orientadas para os ângulos da nave. Dispo·
sição curiosa que disfarça ainda mais a sensação chata de plano das
fachadas. Carmo também traz essa disposição, que Antônio Ferreira de
Souza Calheiros imitaria na Rosário dos Brancos, de Ouro Prelo (1785).
Por tudo isso, também me inclino a crer que o plano primitivo da igreja
do Carmo de São João d'EI-Rei tenha sido modificado pelo Aleijadinho.

191
Outro problema a resolver é o dos pórticos das Mercês de Cima
e da São Bom Jesus de Matosinhos, ambas em Ouro Preto. O primeiro é
tradicionalmente aceito como do Aleijadinho, diz Diogo de Vasconcelos .
Há um argumento muito forte, me parece, em favor da autoria de
Antônio Francisco Lisboa pro esses pórticos : ele é o único escultor do tem-
po, capaz de trabalhar a pedra-sabão com a firmeza que esses trabalhos
apresentam . E ambos refletem a sensualidade excelente com que ele sabia
salientar o caráter dessa pedra mole. Além disso, a figura do nicho (São
Bom Jesus) e a da Senhora das Mercês respiram uma certa graça grave,
um espirita que são do mane iro de Antônio Froncísco . O anjo então é uma
obro -pri mo já, possuindo aquele mesmo sorri so artificial, meio estereoti-
pado do anjo do meda lhão, do sacristia da São Francisco de Ouro Preto.
Acho d ifíci l de con testar a outo( io do Al eija dinho nessa figura . E ainda o
cabeço do anjo central, bem como os dois querubins do coroo nos Mercês,
repetem sem moestrio, o coroamento do pórtico da Carmo de Ouro Preto.
Mos vários argumentos contrariam com força tudo isso. O principal
de todos é o concepção do conjunto, absolutamente contrário em estilo
e liberdade, aos outros portais do Aleijadinho . Ele possuía uma audácia
admirável, movimentadíssima apesar de serena, do decorativo barroco.
Fugiu do nicho olé quando este se tornava provável como na fonte da São
Francisco de Ouro Preto. Sentindo nos mãos o dengue mulato da pedra
azul, fazia ela se eslorcer com ardor molengo e lento. Mas esses dois
pórticos apresentam uma composição, uma ordem frio, quase luisfelípica
na São Bom Jesus, e compacta por demais, incipiente, de estudante nas
Mercês . Principalmente isso: frieza . Com exceção do arcanjo do nicho,
esses pórticos gelam a gente . Não possuem aquela volúpia plástico, que
é o qualidade mais forte das pedras do mulato. E inda por cima, o relevo
representando o Purgatór io (São Bom Jesus) com as chamas naturalistas,
não revela aquela audácia estilizadora que modelou as volutas de nuvens
no sacristia do Carmo, o leão quase bizantino junto ao Daniel de Congo-
nhas, e as esplendidamente pétreas ondas do púlpito de Jonas, Ouro Preto.
A minha incerteza entretanto pende mais para aceitar a autoria do
Aleijadinho nessas obras, que a negá-la. Não consegui obter as datas
desses pórticos . Talvez por elas a gente possa esclarecer muita coisa .
Serão obras de mocidade? ... Francamente, parecem . Mostram essa apli -
cação do aluno, essa gelidez, essa obsessão do alheio com que os novos
se apresentam no geral. 6
E o Aleijodinho, de fato nada teve de anormal na suo evolução
artística . Foi evoluindo gradativamente. Só depois dos 35 anos é que se
mostra no maturidade prodigiosa e ainda sã que deixou nos duas São
Francisco e nas pedras das duas Carmos, uma das elevadas expressões
plásticas do gênio humano. Depois doença chegou ... E foi Congonhas .
O gênio sofre fisicamente dema is, a se não deca i pro pria mente, doença
e velhice o perturbam . A obra de Congo nhas, frequen temente genial, vá-
rias vezes sublime ainda, turtuveio . É irregu lar, mais a tor mentada, mais
místico, berro num sofrimento raivoso de quem sabemos que não tinha
paciência muita, apesar das leituras bíblicos. A gente percebe o impa-
cientado que no cotre final, pedia pra Deus que lhe pesasse enfim sobre
o corpo malevo os "divinos pés".
Me parece muito importante repisar esta realidade histórica . O
sentimentalismo ambiente, esquecido das datas, se inclino a ver nos obras

192
do Aleijadinho , as obras do doente, sofrendo horro r - s com essa tal de
zamporina misterioso, que também estava irwolidondo ou lra ar tista bra-
sileiro, o pintor Leandro Joaquim . O apar ecimento da doe nça d ivide em
duas fases nítidos a obro do Aleijadinho. A fase sõ de O uro Prato e São
João d'EI-Rei se caracterizo pela serenidade equilibrada, e pela clareza
magistral. No fase de Congonhas do enfermo, desoparece aquele sen-
timento renascente da fase sã, surge um sentimento muito mais gótico e
expressionista. A deformação no fase sã é de caráter plástico . Na fase
doente é de caráter expressivo.
É certo que em Congonhas o Aleijadinho tratou mais a madeira
do que o pedra. Oro, ele foi um técnico formidável que sabia perfeita -
mente se condi ciona r aos ma teria is que empregava, bem como até que
ponto os po dia cond icio na r à sua imagi nação expressivo. Os planos ar-
redondados , principal mente o audacioso emborrigomento dos paredes
laterais, no São Francisco de São João d'EI-Rei, aproveitam admiravel-
mente o valor do taipa na arquitetura, assim como existe uma diferen-
ço forte de concepção entre as esculturas de madeira ou de pedra . A
"moralidade" das esculturas dele é prodigiosa por isso. Na pedra foi um
plástico intrínseco, no madeira um expressionista às vezes feroz. Na pe-
dra mais dura, mais eterna, ele caracteriza sempre e saliento a sensação
de nobreza e de eternidad e, que a pedra tem. A s sua s fig ura s guardam
um imóvel profundo; não são os gestos que movimentam os ped ras dele,
é o luz. Suas pedras permanecem perfeitamente co nceituai s, nesse valor
de eternidade incorruptível que torna mesmo o pedra tão solitária, tão
nobre no alheio da natureza. Nos cenas dos púlpitos, nos fontes de
sacristia, nos profetas de Congonhas, as pedras edificam num ritualismo
extático, a que as redondezas lisas dos volumes ainda acrescentam esse
paroxismo de volúpia, que está mesmo sempre junto do êxtase e dos
calmas hieráticas .
Só duas vezes o Aleijadinho escapou de.ssP. ... classicismo da pe-
dra. Uma delas foi no São Francisco do fonte de sacristia. Nessa figuro
maravilhoso, o pedra não vem mais tratado como um valor dinomogênico
puramente plástico, mas antes o corpo está concebido com uma intensi-
dade, uma força esplêndida de vida . A outro feita foi no medalhão de
fachada, nessa mesma São Francisco de Ouro Preto.
O Aleijadinho manifesto frequentemente a tendência pro defor-
mar os figuras lhes aumentando um pouquinho o tamanho da cabeça .
Isso vem no São Jorge, nos profetas de Congonhas, nos painéis dos
púlpitos. Esse é um processo co mum aos escultor es gó ticos de França,
que apare ce por exemp lo, nos patriarcas de São Trop hime (Arles), no
portal nort e do cat edral d e Loo n, em a lguns dos pr ofetas e na série
admirável do s a póstolo s, em Ami ens, nos Gê meos, de Chartres, nos
profetas, apóstolos, no São João Batista, do fachad a pr inci pal de Rei-
ms, e inda é mais sistemático nas frisas e capitéis historiados, como
na Nôtre-Dame du Port em Clermont, e nas igrejas do Puy-de-Dôme.
Esse processo, reinventado entre nós pelo Aleijodinho, dá para as fi-
guras uma força impressionante, meio fanta sma l. Um lempo imaginei,
que no coso dos profetas do escadar ia de Co ng onh os, isso derivasse
dos necessidades da esculturo arqu itetura l, a despro po rção vindo de
propósito pro que se desse propor ciono liz ação d entro do perspectivo.
Que é proposital estou certo . Mos se nos profetas de Congonhas elo se

193
justifica pela necessidade arquitetônica, o caso dos púlpitos historiados
parece antes designar uma intenção expressiva, pro tornar mais impres-
sionantes os cenas descritos. Já o processo desaparece nos fontes de
sacristia, vem raro e co m manifesto intenção e.xpressioni stica nos Possos,
pro tornar caria s figuras (no gera l os infiéis) mais impressionantes, mais
assombradas. E não aparece nesse incomparáve l medalhão em que
São Francisco recebe os sligmos, que, já falei, fo i uma das duas vezes
em que o A leqad inho fez a pedra -sabão servir exc lusivamente às suas
intenções expressivos. A cena é trotado rea listicamen te, o corpo do san-
to ajoelhado se joga pro trás, coma impulsionado ao conto to dos raios
que vêm das feridas do Cruc ifixo. O corpo é que está impressio nante
pela proporção e movimento com que domina o âmbi to do medalhão.
Esse é um dos momentos moís ge niais da escultura do Aleijadinho, em
que a uma doçura d ivin o de primitivo ita liano se alia um movimento, um
senso rea lístico admirável.
Mos com o doença, o sofredor insofrido , vira expressionista, duma
violência tão exasperada que não raro se torna caricatural. Nos Passos,
ele está lidando com a madeira, bem mais mole que a pedra, duma plas-
ticidade mais servil. Não obedece a ela . Ela é que o serve totalmente, e
aos seus ódios terríveis (a série ca ricata dos soldados romanos ), a seus
amores divinos (algun s dos Cr istas, principalmente o que está sendo pre-
gado no cruz), e aos seus cari nhos huma nos (como no figur inha da crian-
ça com o cravo, o São João dormindo, as mulheres na subida ao Ca lvário ,
o bom ladrão) . Mos nem ludo é bom mais . Se na ped ra dos profetas
se observa openar. uma tal o u qual irregu laridade, uma certa hesitação
em criar, muito desco nfortável, os Passos contêm figuras positivamente
dep loráveis, que a gente chega o Juv idor sejam do Aleijadinho, serão?...
N o subido oo Colvório, o Cristo é detestáve l, e outros horrores se veem,
principalmente no flage lação e na coroação de espinhos.
Trabalhando com técnico per feito, ele foi duma variedade assom-
broso . O individualismo divaga, pouco aferrável em tamanha riqueza
de exp ressão. Sem dúvida que muito co iso que hoje dizemos dele era
dos seus a lunos escra vos, embora nem primitivo ele seja, no sentido de
precursor duma orientação estético ou d um estilo, pois que nem os seus
próprios compan heiros de ateliê lhe prolongaram a obra ... Sem dúvida
ainda que muito corpo , muito rocalho, muito cara, ele deve de ter escul-
pido, o porr inhado do vida, cor rido de sofrimen to, afobodo pe la ingêndo
da trabalheira :'
Raro realista, foi um deformador sistemático. Mas a sua deforma-
ção é duma riqueza , duma liberdade de invenção absolutamente extraor-
di nários. Falaram que ele Ignorava esculturo, e principalmente ignorava
anatomia ... Isto aliás, não tinha importân cia nenhuma, porque co nfundir
escultura com anatom ia é que é ignorância vasto . Porém, ele não igno-
rava nem isso não . Quem fez a fonte de São Francisco, o medalhão dos
estigmas, o Cristo pregado na cruz, o braço do so ldado tocando trom-
beta, o São Pedro, o expressão de dor do soldcido de orel ha cortada,
nos Passos, sabia realizar magnificamente os va lores anatômi co s, quando
es.tescoincidiam co m, e acentuavam o valor expressivo que ele queda
tirar da madeira ou da pedra. E vivendo no Barroco e o expressando ,
ele vai além das lições barrocos que presenc iava, o seu tipo de igreja
é dum sentimento renascente . E no torêutica ele manifesta uma ciê ncia
de composição equilibrada, muito serena, que escapole do barroco tam-
bém. E na escultura ele é toda uma história da arte . Bizantino às vezes,
como no leão de Congonhas, frequentemente gótico, renascente às vezes,
frequentemente expressionista à alemã, evocando Cranach (1472-1553),
Baldung (1480-1545), Klaus Sluter (1340-1406); e mais raro realista, dum
realismo mais espanhol que português.
O Brasil deu nele o seu maior engenho artístico, eu creio . Uma
grande manif estação humano . A função histórico dele é vasta e curiosa .
N o meio daquele enxame de va lores pl6 sticos e musicais do tempo, de
mt1lto superior o todo s co mo genia lidade , ele coroava uma vida de três
séculos co loniai s. Era de todos o único que se poderá dizer na cional,
pelo originolidade dos suas soluções. Era já um produto do terra , e
do homem vivendo nela , e era um inconscien te de o utrns existências
melhores de além -mor : um aclimado, no extensão psicológica do termo .
Mas , engenho lá nacional, era o maior boato -fa lso do naciona lidade,
oo mesmo tempo que caracterizava todo o fa lsificação do nosso enti-
dade civ ilizada, feito não de desenvo lvimento interno, naluro l, que vai
do centro pra periferia e se torna excêntrica por expansão, mos de
importações acomodatícios e irregulare s, artificia l, vindo qo ex terior .
De foto Antônío Francisco Lisboa profetizava paro o nacionalidode um
gênio plástico que os Almeida Juniores posteriores, tão raros! são insu-
ficien tes pra confirmar .
Por outro lodo, ele coroa, como gênio maior, o período em que a
enlldode brasileiro age sob a influência de Portugal. É a solução brasilei-
ra da Co lônio . É o mestiço e é logicamente a independência. Deformo a
coiso luso, mas não é uma coiso fixo ainda . Vem economicamente a tra-
sado, porque a técnico orlísl'ico nas Minas foi mais lento a se desenvolver,
que o esplendor ecanômico feito apenas dos sobras dum co lonia nismo
que visava unicamente enriquecer Portugal. Por isso, ele surge quando já
nào correspondia a nenhuma estabilidad e finoncei ra . É um verdadeiro
abor to luminoso, como abortos luminosos foram o valorização do borra-
cho e do café, e por mliitas partes o industrialização de São Paulo.
Mas abrasileirando o co isa luso, lhe dando graça, delicadeza e
dengue na arquitetura, por outro lado, mestiço, ele vagava no mundo .
Ele reinventava o mundo. O Aleijodlnho lembra tudo l Evoco os primitivos
itóllcos, bosquelo o Renascença, se afundo no gótico, quase francês por
vezes, muito germânico quase sempre, espanhol no realismo mistico. Uma
enorme Irregularidade vogomundo, que serio di letante mesmo, se não fos-
se o força de convicção impresso nos suas obras imortais . É um mestiço,
mais que um nocional. Só é brasileiro porque, meu Deus! aconteceu no
Brasil. E só é o A leijodinho no riqueza itinerante dos suas idiossincrasias.
E nisto em principa l é que ele profetizava americanamente o Brasil. ..

Mário de Andrade !São Paulo, Brasil, 1893-1945) foi musicólogo, escritor, pesquisador, fol-
clorista e um dos pioneiros do poesia moderno brasileiro. Suas pesquisas guiam -se pelo busco
de ospectos definidores do identidade nocional o partir do valorização dos manifestações
culturais do Brasil.

FONTE:texto publicad o O[igino lmante com o título "O Aleijodinho e o suo posição nocional" IJ928I
no livro O Aleiiadinho e Alvores de Azevedo !Riode Janeiro: R.A. Editora, 1935). Republicado aqui
o partir de Aspectos das orles plósticas no Brasil!Belo Horizonte: ltotioia, 1984).

195
1. Aquolo concoilo totalista do orlisla largura do bcue ao cume, um pouco como
criodor grogo, tão bom demonstrável pelo um triângulo, terminando com uma cruz.
oxemplo Je Fídias j48O a.C.-43O a ,C.) e Alguma, igreja, do interior apresentam
principalmente pela noção do Música ao apenas um fronlão sem ornamenta,; outro,,
mesmo tempo poolo o ator, so apagara tão 50menle uma torre ou nem mesmo isto,
com o anonimoto congrogacional om riue o nesse, coso,, o sino costumo ficar no
pormc111 ocororn praticornonte os artistas lodo da igreja, sob uma pequena coborluro
do pdmoira Cd~l1uni1rno u1é a C1ltaIdade su1tentodo por dois pilares. Nenhuma igreja
Módla. S110oxo,nplos típi cas desse tem nove lateral. O santuário não é como
ononimc1to conwugacionol a Canlochão, o, nosso,, um prolongamento do nove. Ele
os Hinos rnlmódicos, as Prosas e íropos, é, como indico a denominação portuguesa
como também a lortlutica, a imaginária, e 'capelo-mor', uma verdadeiro capelo
a próprio arquitetura da Gótico. Com o distinta da nove, mais baixa e, sobretudo,
Renascença reaparece o individuoJismo• mais estreito do que elo. Poro dissimular
-social do conceito totalista grego. E Giollo 01 ângulos que, de cada lodo, resultam
[circo 1267-1337) logo de inicio, entre naturalmente do diferenço de largura entre o
pinturas, arquitetando o campanário nove e o copolo -mor, co1Hlrói•se c'Jdirelld o
de Santa Maria dei Fiori. E no alto ó osquurcla um al io( ob liquo . Aci ma do altar
Ronoscimonlo , os ílgurm pqrlo ltos do Do pdncipol, q110 ocupo o fundo do ca polo ,mor,
Virtcl IJA52-t5 19) o Mlguul Ange lo (1,175. orguo ,,e num nicho uma plrômide o ito com
-l56d ). EH co nc:cilo to talista do crki dor. o degrau, robrwo, de co 11dalobros o buquôs
Alo íjodinho rei nvento surpreender1lon1ento do lloros ; o 6pico do prrõmiJo su1tenlo o
tJquí, 110 segundo motode do sócvlo ,ist6tuo do podroolro, o os duas lolo r01,
18. Não ió ele doscobre o ,entldo do do plcho 1õo 11uasesompro romotodc,, por
ateliê da Renascença, com os discípulos co lunas, o que formo 11mcon junl o do deito
co mpletando m obras do mestre, como é ag rodQ1111 I o de gos to bos tante puro . Não
arqui teto, e,cuhor o onto lhador ao mesmo ~o deve esporar Ancontror 11Osígroj m do
tempo . Porilm não ó 0><0m plo único nesse interior do Brasil obrm -prlmos de pl r1turo e
co nceito . Mes tre Volentln, foz o mesmo, escultura; não se vê nenhum quadro, mos os
es,uhor, onla lhodor o arquilo lo pelo esculturas de santo,, a, pinturas do teto e
mllílos do jord in.1. Bom modio cre aliás, o dos muros não são muito piores do que o da
j,ilgor pela abso luto falta de Invenção do maioria das nossos igrejas inlerioranas. Já se
primeiro Possolo Público .. , E co mo (Fillippo] 11otouque os nossos construções religiosos
Elrunellesch i j1J77,14tl6) o tontos mais, que derivaram da luz débil alguma coisa de mais
não se dedignovom nem mesmo de encenar impononlo; ma, rnuitm ve1.es esses efeitos
cordões cornovaleschi, ó constante no Elahio lnrn ,n 011.ugoro<los,cio formo q ue muitos dos
o faz-tudo intenso a riualquer encenação do 11o~soslomplos hlrnurwn ,,e lrb tes e lúgubres:
pló$1ico. não é o coso e.loslg,eios brmileiros, que
2 Rodrigo Jc)5Óferreiro l.lrclos (cl'rco IIJl ~- são mais bem iluminados que as nossas;
.J 066), biógrolo da Aleijod in ho, cujo 1J1 h,do as janelos não são tão grandes, mas são
rmços biog ráficos ro/olivos ao Finoclo An16nio em maior nú,:nero e não aprosonlum perfis
Fra11ci$CO /Jsbao-Dlstinlo escullor mineíto, de chumbo. E bem verdade que as igrejas
mais c:011/iecido polo apelido de Alei/odfrrlio do l.lrot.il ,mo pos suem o majestade de
(1858) está rapub llcodo nesle cató looo ós nossos lamp las, rnos o cuidado com a
. IN,Jo E.I
pógi nos tli8 -17<'1 limpozu é n1olor (orlus elas lêm piso de
J . De mcmol ro 11ue,pro Burlon, nóo posio e.lo madeiro e, dos dois lodos do nava, com
exce ntricidade o principio m1Jifomais lógico uma largura de cinco o seis pés, o tablodo
de ~erom redondm ns lor'res exclu 5lvamente fico mnis ou menos nova polegadas acima
de acesso aos sinos, refletindo no exterior do chão da resto da igrejo. Esse espaço
a estruturo interno dos escadas em caracol. .. elcvodo esta sepdrod o do éentro do novo
Perdoe -se Burton, que não sabia patavina por uma ba loustrcrdo do jo corondá , nrigm
Je estético e orquilAhira, CJUondapro tontos como êbcrno, e asso rr1tJsmabolnu~troda,
arquitetos de ngoro, os principias de Gropilis pro longudo pnrolelomé•llo oo oltar princi pol,
[1883 · 1969l ou le Corbusier jl8B7 -1965) separo ainda o ~onluríllo do nove''
tombêm nõo posso,n Je xctmlricidodes . IT1oduçõo 1105 59 J
,t , Hó um peque1H) engan o em M anuel ó . Depo is dm origi nais deste hvro lerem
Bandeiro óo afirmar que Saint-Hiloire foi o sido enviados po ro edlçóo, ob tive
primeiro estranho o ~e referir ao Alel jodinho o recente opúscu lo ~obre O 'Aferiodinho",
em llvro . A obro citada de Soinf -Hila ire ó e.la rio historiodor m neiro fnu de Carval ho,
1833, ao passo que o livro de [Friedrich] Von editado pelos Ediçõe~ Históricm, de l.lelo
Weech foi publicado em 1831. Horizonte, em 193d. E um bem estranho
5. "Construidas mais ou menos segundo livro, em que o Sr. Feu de Carvalho, legitimo
o modelo dos portuguesas, elas sóo bem S. fomé do história pótrio, custa o reprimir
menores do que os nossas. O campanário ç, sua ine~pllcóvel má von lode co 11tm o
não se elevo mais o partir do centro do Aleijodloho . O Sr. Fau de Carval ho nego
teto, tendo sido substituído por duas torres <j lJOSH lut.la o 4ue Breias, o tradição e os
quadrados que, fazendo porte do fechado autores têm o tribuido ao Aleijodinho, e só
de igreja, também prolongam suas laterais, acredit o no 9ue os documentos que ele põde
e o intervalo onlre as duas torres é ocupado 9 bter provam e mais provam sor do gõ nlo.
por um frontão que vai diminuindo de F.urna destruição quase compl eto, Mos lido

196
o livro, so sai e.leio num rnc,I-eslor curioso putlor ia do1locor r, rnov.,r lào posuJo bloco
O Sr. fou dn Corvnlho só consuriuiu duvrdu, do mcírmoro. l11conlu~lovolmo11tn e, co,roçiio
,. I11'\Jlll Mm provnr O, )Ull\ 11nuu1ovc1s, il(lll dn vordodo hi1lór1co ni>o irnpedn uos mais
<ó 11 r,111,egul11,um 06 d o u111 onlo~, c11m11I " de puro
si11ccrm hislnriodores, movi111e11!as
n dum obr ,1s n ml rnlr/Jv,il luvubo <lu tc 111110 li, ,•,ma npol~ tm( 1do J tl lrn,1voi 11\Jmm ri!Jr1
dr• uro Prn10 IP i?OIu o'" "' urnndo 1tlt11J pul,1,cndo 11cmsor onrl , qu h,, urno
imp011r1ntln , pnrlr o e.losMo,co, (p 1111) . ' I"º 10110n i<, Ci""'º ,upn, Mk1osu om Mina s, o
justo ocnbo d cnrnoi,ftll' O rnMn do qü tl 11111 tudo CIO Alnl1t1di11ho O lrv, o Jv
~.,.r1111l
1J~, h,,, du orvr, I111 ,, rç,,:1,:,(11111Aloijurl,11li1>, S, rov Jo orv al ho poclnrio •,or u~, a111ldo10
ol f!( !JCI ,0 111p1ovm ( 111111!0 I111
0,esrno tn ~t.11 ! o lun M m 1101J ó E nos osclureco
101111
qu~ o lu) to r,utl o, )O ns,onho º"' n10• ' "" 'I"º po11,~(1 Rllfi~c,opono~ u1110cl(rvldo que
111111111
o, louvocJow , do Aln11odl11l10p,u tlcc11u111 nüu 1001 11011hum vulor so 10I O A I ljodinh
oxuu 110\ ,, nh,urcim rio louvação lno lh , h qum e unia ln11rlo? f 11 vorr:lode mn rovilho!,O
1omc1yw11d, purh1 e.loo pú~ ulu, to mo so um q110 or.rod,tili /6 ,e 110<.JOIJ n o~.1Milnc1u
p,ovmso 019111110 colM1 ó provu u xislén ili de N npolcoo (1/(,9 , lá21). o~ o S, f u
d com,;6 •• uoJm, ,nrn inloros io noqhum de u, vc1lho comogu r so nopol .,onizor
mm! que o d,• un1u1 Ac1r,d,1c,quo o Sr. ~ou na dili huição do Aluija rh11ho, o pos51vcl
u Corvo lloo lnmh( im stejo 1H•1fe llo 111nn1c, que no p,oxlmo sé ulo olgurn pr,dre, so
dosl11t111ossodo , mo s rsso ,,õo irnpud qu oxislilu111poJ,c s 011tõo, co m,dnro o S,. feu
u ~uo polxàr J 1111011 1iv,~to o levo lombó111o e.loCa , v<1lho c,p nca um S,mbu lo olnogrol rco,
ol,~u,Jo, pc rfe l11nrento lndes culp •~e s l'w rnp 10sontollvo do noi te quo tudo llílfJOI no
,1c,go1· o outolio do S Jorge IJ,.~6). 1 rnbr e, ,ua us1.urezo nogotivis to Mas o Ale1tod111lt v
qua o Alo l)odi nlio jâ 11õomtovcr entoo om an tes 1fc 11ml1nodo, e um simbolo social de
V,lo Rico, mos lrabull1 cmd l'l em 011go11 lms e1101 mc í111porlbr1ciobwsilciro, americano
E g1nciosomento c.ornon!i t qu1, o 11 omondu e u111vorsu l. f:lc reprusenlo um cor,junlo de
de corto tor,o sido lello pelo 1clfllonc 011 ol,rc,s de wlt• mc,g11il,cos; um dos momentos
polo 1olé_g,c1l0 .. Como )O vê 1160 oxlstmd o deci sivos do r1our.1 fornmçãa hist6rico-
tolofono e 1elón1o lo, o~, Fu11 d c,rvnlho •psicol6gico; um gênio americano. A História
negn o direi to ti o locomoçôu . Su u [111 0 do não !em nodo com todo esla simbólico
Aleijod,nho trobolhC1r enrêio ern Co ngonho$, progmalislo, eu sei. Mos o dúvida é um
mvalida urn boçado o oneclc,to d11Brotos, dm mais despreziveis dentre os sentimentos
de que eu tombem duvidei lembronclo que humanos. Se o Sr. Feu de Carvalho tivesse
o foto do copior em o bras de or lo, feiç ões documenlos certos que desmentissem
existentes, de que a gente que, se vingm , o verdade tradicional, era virtude denunciar
pert . nce à anedôtico lolclor íco opllcóvel ,, esta verdade, repudió-la e exigir o revisão
parle ignoro Jo do vid a dos o rfüt os; nado dos valores. Porém o Sr. Feu de Carvalho
Impede que de Vil a Rico se renha feito não 09iu nem co mo lti sto1iodo 1, nem
urno encomendo o um ar!is to con hacido o como dona dos suos virtude s peuoois,
op rectodo parando em Co ngonhos , Mos que estou longe de ignorar, quando dúvida
1
o Sr Feu de Carval ho, incomodado po r e mais dúvida, o por Isso nego e mais
tamanho d istónclo, prefere acreditor quo nego, estribado apenas e tão somente
o moiorio do s ob ras do Aleijodlnho tenho 110verdode histórico de que um p6rlico
sido folio por orlislas encomendado. n, mediocre e um lavabo odmirável não são
Porlugal. .. Meno s digno a lr1da do histor iador do Aleijodinho. Sem oulros provas maiores,
e jp. 53) duvidor de cer tos ob ras de pedra me conservo com Breias, com Vasconcelos,
do A leijodln h0, porque "set1do este o lei jodo com o tradição.
do omba1 as mãos, sozinho não poderio, ó 7, Monuel Bande iro em 1928 contou 66
cloro , deslocar e mover Ião pesa do s blocos figuras de madeiro, nos Possos de Con9011hos.
de pedra " slcl De mor1elro que o Crislo e n Eu co ntei 74, quando eslive ló, em 1917.
Adú/lero, de Bernordo Jli IJ852-19Jil , nunca Não creio 101or•rodo 110canta. Será que
ser6 deste, pois que soi:lnho ele jorna is que suprimiram algumas? , ..

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