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Brazilian Journal of Development 1491

ISSN: 2525-8761

Cicatrizes abertas da escravidão na região Cacaueira da Bahia:


marcas de violência e perpetuação do desmentido

Open scars of slavery in the Cacaueira region of Bahia: marks of


violence and perpetuation of the debate

DOI:10.34117/bjdv8n1-092

Recebimento dos originais: 07/12/2021


Aceitação para publicação: 07/01/2022

Renildo Nascimento Santos


Mestrando em Memória Social pelo Programa de Pós-Graduação em Memória Social da
Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro -UNIRIO
Avenida Pasteur 458 Urca – Rio de Janeiro
renildo.edu@unirio.br

Francisco Ramos de Farias


Professor do Programa de Pós-Graduação em Memória Social e do Departamento de
Fundamentos da Educação da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro -
UNIRIO
Bolsista Produtividade do CNPq
Avenida Pasteur 458 Urca – Rio de Janeiro
francisco.farias@unirio.br

RESUMO
Partindo da premissa que são escassas as informações, pesquisas e mesmo representações
culturais sobre o período escravagista na região cacaueira do sul da Bahia, propomos
discutir essa construção do esquecimento ou apagamento da escravidão à luz do conceito
de violência considerando a concepção de trauma. Realizamos o percurso metodológico
pela pesquisa bibliográfica em obras literárias e também de comentadores. Outro ponto
de destaque é o papel da literatura na naturalização da ausência de homens e mulheres
negras não só como força principal do trabalho, mas também como componentes
importantes no estabelecimento econômico da cacauicultora. Enfim, acreditamos que o
desmentido dessa circunstância representa uma modalidade de violência, bastante ativa
no sentido do apagamento da contribuição do trabalho escravo na sustentação econômica
da região para os grandes latifundiários.

Palavras-chave: Violência, Trauma, Desmentido, Escravidão. Memória.

ABSTRACT
Based on the premise that information, research and even cultural representations about
the slavery period in the cocoa region of southern Bahia are scarce, we propose to discuss
this construction of the oblivion or erasure of slavery in the light of the concept of
violence considering the concept of trauma. We carried out the methodological path
through bibliographical research in literary works and also by commentators. Another
highlight is the role of literature in the naturalization of the absence of black men and

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women not only as the main force of work, but also as important components in the
economic establishment of the cocoa plantation. Finally, we believe that the denial of this
circumstance represents a form of violence, quite active in the sense of erasing the
contribution of slave labor to the economic support of the region for the large landowners.

Keywords: Violence, Trauma, Denial, Slavery. Memory.

1 APRESENTAÇÃO
O sul do Estado da Bahia, área dos primeiros avanços na conquista do território
tupiniquim pelos portugueses, importante região da cadeia agrícola do Brasil, é conhecido
atualmente pela força do turismo, balneários, belas praias, resorts e pelas enormes
manchas de remanescentes da Mata Atlântica. Ainda guarda - na arquitetura, na história,
na agricultura e na política local - traços que remetem ao período colonial.
Ressalte-se que há, em termos geográficos, pequenas discordâncias entre
estudiosos e romancistas no tocante a essa área. Na porção sul do Estado da Bahia as
paisagens são, há muito tempo, marcadas por grandes latifúndios inseridos diretamente
no fluxo agrícola internacional e pequenas propriedades dedicadas à agricultura familiar,
mas também atividades como a pesca, a extração de madeira, criação de gado etc. Nos
municípios em que suas economias se tornaram dependentes do plantio, comércio local e
exportação do cacau, criou-se uma cultura do cacau. Esse conjunto de arraiais, vilas,
pequenas e médias cidades formam a região cacaueira, que se em muito se confunde com
os limites da própria região sul, podemos dizer que não há correspondência total
(SANTOS, 1957; ANDRADE, 1973).
Do mesmo modo, ponto central para entendermos a região cacaueira, a cidade de
Ilhéus é lembrada por seu passado como sede de uma das quinze capitanias hereditárias
(primeiro modelo de divisão administrativa do território brasileiro), a Capitania de São
Jorge dos Ilhéus. Em 1761 é anexada à capitania da Bahia, com sede em Salvador,
tornando-se assim comarca e dividida em freguesias, segundo a estrutura administrativa
da coroa portuguesa (GONÇALVES, 2014). É desse espaço geográfico que escritores
como Jorge Amado, Jorge Medauar e Adonias Filho se apropriam para escrever contos,
poesias e, no caso dos dois primeiros, uma literatura de costumes denominada de
romances do cacau.
Esses romances também se apropriam daquilo que Milton Santos (1957), em seu
estudo acerca do espaço brasileiro, vai chamar de tipos humanos que podem ser

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exemplificados pelas figuras dos coronéis do cacau e dos trabalhadores rurais


assalariados. Escritores premiados, citados acima, nascidos no “berço do cacau”, também
trataram de temas como a disputa de terras, a violência agrária, meio ambiente,
prostituição, lendas, religião, política etc.
Portanto, mesmo com o ocaso econômico das lavouras do cacau (que perdura até
hoje e causado por um fungo denominado vulgarmente como “vassoura de bruxa”), a
literatura tem forte papel de fixação na memória dos habitantes da região imaginada
“região cacaueira” que resiste, por força da cultura, mesmo após outras formas de
regionalizar - dividir e classificar o espaço agrário e urbano do sul da Bahia - tornarem-
se oficiais (XING, 2014; IBGE, 2017).
Contudo, quando a literatura escolhe lançar luz sobre alguns temas, pode também
ajudar no ofuscamento de outros. Pois, como nos diz afirma Ricoeur (2007, p. 459), “ver
uma coisa é não ver outra. Narrar um drama é esquecer outro”. É o caso do passado
colonial e da contribuição da mão de obra escrava para o estabelecimento da cultura
cacaueira (SANTOS, 2019). Um tema deixado ao largo de outros de menor ou igual
importância. Mas sem o qual, a lacuna acerca dos estudos do período colonial fica sem
preenchimento.
A pesquisadora Mahony (2001) recolheu, em Ilhéus, relatos de uma tradição oral
que dava conta da chegada das primeiras amêndoas de cacau para região trazidas por
africanos escravizados ao chegarem a Bahia. Mesmo que existem relatos não encontrem
confirmações documentais, a autora afirma que:

A discussão acerca de escravos e de escravidão em Ilhéus tem demonstrado


que os escravos e a escravidão foram importantes para a cidade no século XIX
e para o início da cultura do cacau. Contudo, a importância da escravidão, para
Ilhéus ou para qualquer sociedade, não repousa apenas na quantidade de
escravos que havia na cidade, no número de escravos por residência, no
número de residências que possuíam escravos, ou no tipo de trabalho que eles
realizavam. Repousa, também, na divisão da sociedade entre pessoas livres,
libertos e escravos, e no desenvolvimento de uma hierarquia social e cultural,
na qual os brancos descendentes de europeus são privilegiados, e os negros
descendentes de africanos não o são (MAHONY, 2001, p. 137).

A memória do período escravagista está presente inclusive na disposição das roças


de cacau: um dos motivos para que as plantações fossem bem alinhadas em fileiras, com
estaqueamentos ordenados em ruas (espécie de amplos corredores nas roças), além da
boniteza e arejamento das plantas, essa organização funcionava para que os cativos não
pudessem embrenhar-se pela plantação sem serem vistos à longa distância
(GONÇALVES, 2014). Flagrante inscrição espacial, vestígio persistente também no

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tempo, que pode ser observado até hoje nas paisagens de roças mais antigas nas quais os
cacaueiros centenários são testemunhas.
Infelizmente, aquilo que trataremos como construção de esquecimento não é uma
situação exclusiva das terras do cacau. Naquelas áreas onde a escravidão era mais
evidente por números absolutos e pela maior necessidade de mão de obra, nas fazendas
cafeicultoras do Sudeste, mais especificamente no Vale do Paraíba, esse apagamento
concentrou-se no período do pós-abolição, principalmente no que concerne à identidade
negra, posse de terra e festividades. É o que mostram Abreu e Mattos em Festas,
patrimônio cultural e identidade negra (2013, p. 3) quando tratam do desprestígio pelas
“festas em torno da escravidão”.
Para além das divisões do trabalho, nas quais pesa que a pior parte ficava
evidentemente para os escravos, a importância destes para o estabelecimento do cacau
como lavoura e motor econômico brasileiro se insere também nas redes de comércio
locais e como instrumento de compensação no precário sistema financeiro do século XIX.
Quer dizer, era comum no Brasil oitocentista que o acesso ao crédito bancário fosse
demasiadamente dificultado para agricultores de áreas periféricas, de modo que a peleja
pelo capital necessário à expansão da atividade agrícola era piorada quanto mais isolada
fosse a fazenda. Quanto mais escondidas nos sertões do continental território brasileiro.
Pequenos e médios proprietários passaram a utilizar a mais eficiente forma de penhor
daquela condição de desfavorecer o financiamento e grandes trocas comerciais: o escravo.
Encontrar um comprador para uma fazenda executada judicialmente após penhora e
moratória era muito difícil em áreas remotas. Para a compra de escravos não. Podiam ser
transportados (MAHONY, 2001).
Eis outro sentido do ser humano como mercadoria ao qual Mbembe (2016, p. 132)
se refere ao falar sobre a negação à elementaridade do corpo negro:

Esse poder sobre a vida do outro assume a forma de comércio: a humanidade


de uma pessoa é dissolvida até o ponto em que se torna possível dizer que a
vida do escravo é propriedade de seu dominador. Dado que a vida do escravo
é como uma “coisa” possuída por outra pessoa, sua existência é a figura
perfeita de uma sombra personificada.

A vida do escravo, para o senhor, não é possível sem o sentido de posse, do lucro,
do negócio, enfim, dos arranjos econômicos. Exemplo dessa ideia poderia ser encontrada
facilmente no pacato tecido urbano da Ilhéus do século XIX, onde ser escravo, na cidade,
significava maiores possibilidades de conexões na rede de contatos necessária à conquista

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da alforria. Uma pequena vantagem frente aos escravos do campo. A possibilidade de se


misturar na multidão, exercer um ofício, mesmo que com a obrigação de cessão dos
ganhos ao senhor, já era um avanço na situação de extrema precariedade e falta de
dignidade em que se encontravam (CRUZ, 2012). Talvez nesse sentido, o feito, a obra, a
conquista do escravo, no sistema econômico que “moía” e “extraía” a força de trabalho
negra jamais fosse vista como obra de um ser humano. A autoria do trabalho, da fala ou
do pensamento, é uma construção que o escravo, visto como um instrumento de geração
de lucro, demora a conquistar.
Em Os Condenados da terra, Fanon (1968, p. 38) ao analisar os arranjos dos
colonizadores para manipular fatos históricos afirma que “o colono faz história e sabe que
a faz”. Acrescentamos que o “colono” sabe como a faz. Sobretudo as elites que, na escala
e estrutura do capitalismo global também são compostas por colonizados.
Mas quando em uma relação de poder desigual, em posição de senhorio, atua pela
negação da humanidade do outro, opera pelo eclipsamento da história e construção de
estórias com pouca ou nenhuma relação com a realidade, verdadeira produção de mitos
movida por interesses.
Podemos nos apoiar mais uma vez em Mahony (2001, p. 96) para constatar que
os estudos sobre escravidão no sul da Bahia, sobretudo nas lavouras de cacau ainda são
escassos na academia. De certo modo, este cenário, compartilhado entre literatura e
academia, tem servido há muitos anos para a manutenção de um “mito histórico”,
construído no século XX, valorizando “certa luta” mentirosa “da elite do cacau” ao
difundir que não teriam precisado da escravidão para estabelecer suas grandes fazendas e
demais riquezas.
Nas memórias narradas na região, é bastante comum encontrar causos sobre
riquezas, excessos e certa mística em torno do mandonismo local, o coronelismo.
Analisaremos com maior atenção o papel da literatura, principalmente de Jorge Amado.
Contudo um oportuno trecho de seu último romance rural, Tocaia Grande: a face
obscura completa, por ora, nossa necessidade de exemplos. No início deste romance, o
próprio Jorge Amado ironiza de maneira sutil a visão dos coronéis como desbravadores.
Uma versão positiva de um modelo particular de bandeirante dos confins do cacau, já
utilizada inclusive pelo autor em outras obras. Vejamos:

Foram escritos artigos laudatórios, recordando, com a ênfase e a retórica


necessárias, os feitos do coronel e do doutor, páginas de civismo, lições da
História, exemplos para as gerações vindouras. Tudo como manda o figurino,

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para gáudio dos notáveis, da intelectualidade, da juventude — esperança da


pátria —, enfim de todos os que são capazes de reconhecer e aplaudir o
heroísmo e o devotamento dos ínclitos antepassados à causa pública
(AMADO, 2008, p. 12).

No século XVIII, pensadores que escreviam e reclamavam o princípio inalienável


da liberdade aceitavam, com certa naturalidade, que milhões de pessoas fossem
sequestrados em suas terras, transportados em condições desumanas e comercializados
tal qual mercadorias no Novo Mundo. Na mesma linha de Susan Buck-Morss, David
Brookshaw (apud XING, 2014) afirmam como intelectuais das décadas de 1920 e 1930
tratavam de maneira pessimista qualquer referência a cultura afro-brasileira. Nesta lista
incluem-se folcloristas, antropólogos, historiadores, musicólogos e (por que não?)
romancistas (ABREU e MATTOS, 2013).
Na cultura, a presença negra está sempre associada a gestos de resistência. À
necessidade de encontrar espaços para se estabelecer. Embora a escravidão tenha sido
presente por mais de três séculos no Brasil, as contribuições de negros e negras migrantes
da África e seus descendentes foram por muito tempo fadadas a uma espécie de guerrilha
cultural. Expressões marginais. Tidas como de menor ou nenhum valor. Também, pudera!
“Após a abolição da escravidão, o Estado Brasileiro destruiu grande parte ou praticamente
todo o acervo referente à documentação de origem dos escravos” (FARIAS e DUPRET,
2019, p. 22).
Outrossim, a historiografia brasileira a exemplo da literatura que se produzia na
região, durante muito tempo, não foi capaz de discutir

[...] como se deu a passagem entre a escravidão e o trabalho livre. Criou-se no


imaginário popular a ideia de que teria inexistido na lavoura do cacau o uso da
mão-de-obra escrava. Entretanto, as fontes revelam o contrário, a massa de
trabalhadores cativos advindos do tráfico de escravos contribuiu
significativamente para o cultivo do cacau, e no pós-abolição foram os afro-
brasileiros que mantiveram em ritmo acelerado a produtividade agrícola
regional (CRUZ, 2012, p. 13).

Mesmo porque a experiência dos poderosos da região reafirmava a condição de


superioridade na sociedade imperial. Ainda que as amarras jurídicas já não existissem em
alguns casos de alforria comprada ou conquistada mediante acordos, exigia-se “que os
libertos se mantivessem subservientes aos seus senhores” (CRUZ, 2012, p. 22).
Tal qual aconteceu no resto do país, na região cacaueira, já em meados do século
XIX, incentivou-se a migração de colonos estrangeiros, especificamente alemães. D.
Pedro II, “principal incentivador, ordenou que a câmara de Ilhéus pagasse as diárias dos

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alemães por dois anos” (RIBEIRO, 2005, p. 30). Dois objetivos seriam atingidos:
substituição da mão de obra e o branqueamento da população. Distanciar-se das
representações construídas pela própria elite em torno do negro é mais um motivo para
negar e apagar a contribuição de homens e mulheres escravizadas.
Sem embargo, margeando o risco de um certo determinismo geográfico,
acreditamos que características peculiares da região e das próprias lavouras de cacau
impediram a fixação mais volumosa de imigrantes. Plantações na modalidade cabruca,
ou seja, que utilizam o sombreamento de grandes árvores para proteger os cacaueiros,
faziam das lavouras verdadeiras florestas que intercalavam grandes exemplares na Mata
Atlântica e variedades de cacaueiros de médio e pequeno porte. Algumas dessas fazendas
ainda tinham matas não exploradas (reservas para futuras expansões), associadas ao
clima úmido das florestas tropicais aumentavam o nível de insalubridade.
Do mesmo modo, a configuração espacial de “grandes impérios” do cacau com
impressionantes extensões territoriais imporia distância considerável das instalações de
moradia para qualquer infraestrutura como estradas, ferrovias, urbanização e comércio.
A produção do cacau transportada em cangalhas e lombos de muares nas comitivas de
tropeiros. Outra hipótese que podemos levantar é o próprio desenho político-estratégico
privilegiando outras regiões administrativas que não a atual região Nordeste.
A substituição de mão de obra escrava por assalariados europeus teria sido
direcionada para os centros do Sudeste e Sul, ainda que colônias de migrantes estivessem
presentes em outras regiões, inclusive no Nordeste, é flagrante que a porção sulista do
país teve mais assentamentos.
Ainda podemos pensar que trabalhadores negros, mesmo após a libertação, não
dispunham do mesmo poder de negociação que os imigrantes europeus. Exigia-se menos.
Infelizmente passou a ser uma mão de obra que servia para regular a oferta de empregos
e salários ao mesmo tempo que sustentava a produção de cacau (CRUZ, 2012). A elite do
cacau poderia manter assim seu status social, o senhorio.
Contudo não podemos perder de vista houve a tentativa de descarte de um povo
explorado e depois “abandonado pelas elites” pela busca de imigrantes “com um passado
para contrapor o mérito de um e outro”. Além do passado, deixando clara a “socialização
familiar distinta nos negros” – a família nuclear no mesmo local era considerada um
benefício que poderia ser revogado com a venda ou punição de escravos (miséria material,
moral e simbólica fabricada pela máquina de moer gente escravagista em contraponto aos

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europeus que, mesmo não estando no mesmo patamar social das elites, gozavam de
“segurança existencial de quem é gente”). (SOUZA, 2017, p. 33).
A chegada dos substitutos merecedores de terem a cessão da força de trabalho
renumerada, configurou-se em mais uma violência e contribuiu para o processo de
apagamento da memória escrava na região cacaueira. Pois, podemos entender que existe
um povo com direito à memória. A rememorar seus feitos, seu nome, seus lugares, o
pertencimento à uma terra; e outro onde a memória só é possível se ligada aos signos de
resistências.

2 A IMPOSIÇÃO DO ESQUECIMENTO COMO VIOLÊNCIA


Entendemos que a promoção do esquecimento constitui-se em uma modalidade
de violência. Mas que tipo de violência? Seguiremos a advertência de Zizek (2014) acerca
da violência direta (subjetiva, facilmente identificável), entendemos que, na região
proposta nesse estudo, assim como no país no período colonial, existem relatos do
folclore, da oralidade ou até mesmo de termos judiciais sobre altercações entre
proprietários, assassinatos, justiçamentos, castigos e demais atrocidades direcionadas aos
corpos de homens e mulheres negras por senhores de escravos.
Do mesmo modo, em uma relação, não exatamente de oposição, temos a violência
simbólica que faz sentido nas formas de linguagem, estando ligada a certa “imposição de
sentido”. Para Farias (2014,) nesta violência verifica-se o distanciamento entre ato e
objeto da violência. Daí a dificuldade de identificá-la ou mesmo combatê-la.
É importante admitir que, como ser pensante, o “ser humano encontra-se
irremediavelmente dividido”: escolher a violência ou renunciá-la. Temos aí a inscrição
no âmbito dos valores primeiros do ser. A violência pensada a partir da noção de bem e
mal. Apesar da fácil inscrição como bom e evidente relutância a ser mau, a violência está
no ser humano. É também, a violência, “legítima representante do mal” (FARIAS, 2014,
p. 30; p. 43).
Ainda seguindo as pistas de Zizek, veremos que, a violência faz parte de um
sistema político e econômico, é chamada de violência sistêmica. Ambas, simbólica e
sistêmica são subdivisões da violência objetiva, aquela que se estabelece em um estado
normal de coisas. Esse tipo de violência, objetiva, ainda pode ser encontrada nos dias
atuais nas sentenças de motivação racista formuladas em nossa língua.

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No massacre do qual a linguagem também faz parte, o escravo recebia todo tipo
de impropérios. Era em sua direção que os olhares, os gestos e as palavras pareciam
constituídos de rugosidades, dotados de aspereza.
Na precariedade de sua existência o escravo precisa manter o mínimo dos laços
sociais para manter distância do sentido de inferioridade, construído para quebrar sua
dignidade. Nos exemplos já citados de inserção do negro como instrumento ou
mercadoria, o comércio que o explorava em forma de ativo, seja na legalidade ou no
tráfico ilegal, o transforma em lucro, a partir do qual desfaziam-se laços sociais com
família, amigos e aliados importantes a própria sobrevivência, estabelecimento de
sanidade mental e esperança de superação da condição de ser humano escravizado.
Minava-se a resistência por meio dos aparatos jurídico-econômico-estatais.
No caso da escravidão, a violência objetiva sistêmica dá tranquilidade operacional
aos agentes de Estado, às elites, aos comerciantes, ao agricultor etc haja vista que aqueles
que não têm sua liberdade questionada apresentam elementos em comum para se
distanciar, o negro escravizado, conforme aponta Souza (2017) em A elite do atraso: da
escravidão à lava jato. Há um lastro mínimo que o cidadão, mesmo que não tenha
escravo, será beneficiário.
O sistema escravocrata possibilita que todo brasileiro não-negro, livre, tenha ao
menos um estamento social abaixo do seu. É bem verdade que a violência não é um
fenômeno exclusivo de uma única época, pois faz parte da “construção da sociedade
humana desde as suas comunidades primitivas” (HILDEBRAND e SALZTRAGER,
2019, p. 168). Porém, há exemplos de resistências e reações violentas por parte de
escravos. Mas no contexto sistêmico da violência objetiva no período da escravidão no
Brasil as ações de apagamento do legado da escravidão ,na região cacaueira, é um
esquecimento operacionalizado.
Nesse sistema produtor de violências cotidianas como normalidades, as elites
forjam a necessidade desse apagamento que causa, para determinados grupos sociais,
desenraizamento e obstrução dos caminhos concernentes às suas histórias.
Não obstante, esse apagamento como violência também se evidencia em grupos
em situação de vulnerabilidade. Porém a escravidão vai além, ou seja, ultrapassa a
precariedade ou vida vulnerável, utilizando-se da estrutura econômica colonial, por
arranjos políticos e jurídicos para negação mesmo da vida, da humanidade.
É preocupado com semelhantes questões sobre a colonialidade que Fanon se
refere a um mundo compartimentado “quando se observa, em sua imediatidade, o

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contexto do mundo colonial, verifica-se que o que retalha o mundo é antes de mais nada
o fato de pertencer ou não a tal espécie, a tal raça” (FANON, 1968, p. 29). No mundo
colonial, a violência por parte dos grupos hegemônicos, nem sempre é direta, embora
abundem os relatos de violência subjetiva. Mas vai se instalando e avançando no
cotidiano.
Contudo, a violência, na experiência humana, de um modo geral, produz
vestígios que podem transformar-se em memória. Principalmente porque os eventos
violentos têm potencial criador para atenuar uma força contida nas bases da memória que
é o próprio esquecimento. Por outro lado, a violência também “produz descontinuidades”
que se devem, provavelmente, a um outro caráter: a produção de experiências traumáticas.
Que em seu turno pode, o trauma, ser entendido como “furos que acometem as teias da
memória” (FARIAS, 2014, p. 35; 2016, p. 201).
O trauma, disparado por atos violentos, poderá provocar confusão mental uma
vez que a pessoa lesada estará sujeita às percepções recorrentes, “modos como o corpo
recorda, involuntariamente, eventos de particular intensidade e dificuldade emocional”
(ORTEGA, 2011, p. 4), ou seja, uma imagem pregnante, fazendo real e assombra o sujeito
visto se referir a uma desagradável do passado mantida no presente. (FARIAS, 2012), na
condição de evento traumático que, segundo Ortega (2011, p. 6), seria “uma excitação
excessiva do mundo externo” que se repete de forma, causando para a pessoa um estado
de confusão quanto ao tempo. Um evento do passado que involuntariamente está no
presente.
Uma dificuldade de “assimilação” devido o caráter “repentino” do ato.
Provavelmente algo que interfere na sua relação com os outros. Mas como se dá a situação
de trauma em um contexto em que a consciência de lugar no mundo estará viciada por
uma estrutura opressora que faz uso de diversos tipos de violência? O que se pode dizer
de atos violentos experienciados por mais de uma pessoa, por um grupo, por uma
comunidade? Quando as violências potencialmente geradoras não são superadas, mas
transformadas, incrementadas, o trauma também se aprofunda?
A escravidão foi uma experiência violenta para milhares de pessoas e que se
mantém presente na memória da coletividade uma vez que a população negra descendente
de africanos que migraram forçadamente ainda é alvo do aparato estrutural que tenta
manter o desenho social que justifica a elite econômica em posição superior. Neste
sentido, tentando traçar um paralelo entre apagamento, violência e o trauma, nos

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apoiamos em Gondar (2012) quando afirma, em sua leitura de Ferenczi que o trauma está
no campo da comoção psíquica e não se configura no momento do ato violento em si.
Ou seja, há “um o sentimento de estar seguro de si”, uma “confiança em si” e no
mundo a sua volta como uma espécie de “preparação”, anterior ao evento que decepciona.
Que rompe com esta confiança e alimenta a decepção (FERENCZI, 1992, p. 109).
Contudo, dizer que a violência tem potencial gerador de trauma não significa afirmar que
haverá trauma em todas as vezes que existirem atos de violência. É aí que se destaca a
originalidade de Ferenczi.
Como se dará a vivência da vítima após sofrer a violência é importante para que
se configure o trauma especialmente no momento quando alguém ao relatar violência
sofrida a alguém de sua confiança, passa por uma punição ou descrédito, ocasionado uma
angústia da “comoção psíquica” irá se somar ao sentimento de injustiça: o trauma se
torna patogênico justamente nessa situação de “negação, o desmentido” (Ibid., p.79).
É importante o papel da alteridade, do outro, do entorno da vítima para que se
configure o trauma. O que se tem então é uma memória que pode ficar adormecida
inacessível ou indisponível (RICOEUR, 2007). É, ao ter sua dor reduzida a um
desmentido, que a vítima vê-se em situação de desamparo, punida uma segunda vez e
fragilizada, tendo que lidar com a presença forçada das imagens que não cessarão de
retornar. No contexto de negação, sobretudo de não reconhecimento, é que se dá o
desmentido e se configura o trauma.
Portanto, não se trata do instante mesmo em que acontece o evento potencial de
violência, mas de um segundo momento, em que poderá se dar ou não. “O trauma se
completaria na “não-validação” dos eventos sofridos, “no descrédito” (ORTEGA, 2011;
GONDAR, 2012, p.196). Desse modo, ainda que o trauma não descarte a violência, não
corresponderá à ideia instantânea, “ação de cunho agressivo que muda um organismo pela
produção de dano” (FARIAS, 2016, p.188). O entendimento sobre o trauma pode ser
tomado, portanto, a partir de outra escala, diferente daquela comumente estudada a partir
do ser humano.
Podemos fazer um movimento inverso. Observar o fenômeno como coletivo, ou
melhor, nas relações entre as pessoas como trauma social. Conjunturas sociais, situações
que assolam a vivência em grupos, também podem gerar consequências individuais. Nos
tempos atuais aceita-se a ideia de “medo e ansiedade” podem ter “origem nas causas
sociais” (ORTEGA, 2011, p. 8).

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Conforme já apontamos, escravidão como chaga aberta no passado colonial


brasileiro e parte integrante do sistema de expansão capitalista é uma violência objetiva
sistêmica no contexto em que foi gestada dentro de uma ideologia dominante. Ao mesmo
tempo, as relações desiguais de poder nas bases do senhorio e da micropolítica do
cotidiano inscrevem-na como como violência subjetiva - nesse caso, expressões de força
física direcionadas aos corpos negros visando a domesticação, coibindo reações - e cria
um sentido dando-lhe o caráter de normalidade, aceitável, legal. Portanto, violência
simbólica.
Se a violência, em suas diversas expressões, é potencial geradora de trauma,
temos aqui amplo rol. Com alguma segurança poderíamos avançar no entendimento da
configuração de traumas do período escravagista brasileiro. Contudo, em se tratando de
um regime persistente no tempo, com flagrantes marcas espaciais e presente na memória
coletiva do país, poderíamos falar em escravidão como trauma social?
A esse respeito seguimos as ideias de Ortega (2011, p. 11) que adota a noção de
trauma social para “designar os processos e os recursos socioculturais por meio dos quais
as comunidades encaram a construção, elaboração e respostas a experiências de graves
fraturas sociais”. Essa elaboração, é feita de maneira coletiva a partir da constatação de
injustiças. Assim, entende-se que o trauma social também dependerá da vivência após o
ato violento em si, do reconhecimento ou do desmentido, pois trata-se de “experiência
associada a acontecimentos históricos percebidos coletivamente e validados como
traumáticos” (ORTEGA, 2017, p. 14).
No que concerne à escravidão no Brasil tratada como trauma social, elaboração
e validação são evidentes quando parte significativa da população negra orgulha-se da
descendência e legado dos antepassados ao mesmo tempo que acusa atravessamentos
persistentes no tempo e no espaço tais como a discriminação racial, estrutura social
excludente e violência estatal direcionada aos corpos negros.
Voltando ao nosso recorte regional, na cultura do cacau, somente possível nas
primeiras lavouras graças a mão-de-obra de homens e mulheres negras, desconsiderar a
importância destes pode ser considerado um desmentido? Em quais áreas do
conhecimento podemos nos basear para definir se este trauma social foi consolidado, ou
seja, desmentido? Pela facilidade de exemplificação devido a maior presença de
comprovação com referências em outros trabalhos e o próprio desenho de pesquisa nos
concentraremos no reconhecimento no plano cultural tendo como base a literatura
produzida na região cacaueira.

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Jorge Amado e o papel da literatura


A importância da literatura para o tema já foi explicitada. É com a mesma
consciência quanto ao papel dos escritos literários produzidos na região que o pesquisador
Cruz (2012) cita uma série de obras que simplesmente ignoram a presença negra escrava
na região cacaueira: Sul da Bahia: Chão de Cacau (1976); um ensaio que delimita parte
do sul daquele Estado como civilização regional tendo no cacau sua principal distinção.
É obra do imortal da Academia Brasileira de Letras Adonias Filho que também era
romancista. Nela, Filho irá passear por temas como território, população, cultura,
coronelismo e economia, todos importantes para a lavoura cacaueira.
Contudo a ausência do componente escravidão não passa desapercebida. Cruz
(2012) poderia acrescentar nesta lista o ganhador do Prêmio Jabuti na categoria contos,
crônicas e novelas de 1959, Jorge Medauar, jornalista, contista, cronista, poeta e
romancista, não deixou de retratar o negro em suas obras recheadas de memórias de sua
terra, Água Preta (atual município de Uruçuca), importante nó na rede de comércio do
cacau até hoje. Porém, mesmo que suas obras narrem acontecimentos pré-abolição, a
escravidão não ganha destaque.
Tomando como base a exortação de Ginzburg (2012, p. 123), quando diz que “a
história da literatura brasileira poderia ser contada a partir do ponto de vista de suas
relações com a violência”, e sendo a escravidão violenta em seus diversos prismas,
encontramos estrita relação entre autores do nosso país e a violência que permeia muitos
títulos conhecidos nacionalmente sobretudo aquelas que tratam o Brasil rural.
Dentre estes escritores, temos como principal expoente, no que tange à violência
presente na cultura cacaueira, outro imortal da Academia Brasileira de Letras, Jorge
Amado, com diversos prêmios literários (incluindo o Jabuti). A escrita de Amado é
amplamente influenciada por relatos de suas memória, de familiares e fatos históricos que
se fundem com causos ficcionais do seu gênero de atuação, o romance. Jorge Amado
nasceu em uma fazenda de Ilhéus, cidade que até hoje “respira” o cacau, onde viveu parte
significativa de sua vida. Esta forte carga afetiva e as tentativas de retratar o Brasil
aproximaram os seus romances históricos do tema cacau ao ponto de alguns destes livros
serem as principais obras dentre aquelas denominadas “romances do cacau”
(CASTELLO, 2009; SANTOS, 2017, p. 16), a saber: Cacau (1933); Terras do Sem Fim
(1943); São Jorge dos Ilhéus (1944); Gabriela Cravo e Canela (1958) e Tocaia Grande:
a face obscura (1984).

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É de conhecimento geral que Jorge Amado é um dos brasileiros mais lidos no


exterior. Por isso, suas obras serão usadas como exemplos principais para percorrer este
caminho em direção ao entendimento do tema por ora proposto: o reconhecimento e/ou
negação cultural que pode nos aproximar da resposta sobre os desmentidos quanto à
escravidão. Aqui cabe um justo reconhecimento. Personagens negros estão sempre
presentes de maneira importante no universo amadiano. No romance Jubiabá aparece seu
primeiro herói negro.
A originalidade desse romance pode ser celebrada pelo fato de que até então, na
literatura brasileira havia poucos casos semelhantes. Também neste livro o tema religiões
de matriz africana é uma das marcas do escritor que dedica capítulos inteiros à descrição
de festividades e rituais. Curiosamente, este não é um romance que se passa na região
cacaueira (XING, 2014, p. 11).
Conforme já vimos, o reconhecimento no plano cultural é uma das possibilidades
de perceber o outro em sua dimensão subjetiva e social, pois o “sentimento de injustiça
que provém de experiências de recusa de reconhecimento” como principal força motora
das lutas políticas (GONDAR, 2012, p. 201). Oportunamente, na interpretação do
conceito hegeliano de reconhecimento, Buttler (2006, p. 72), em Vida precária, afirma
que o futuro da relação com o outro como papel fundamental. Mais uma vez: a relação
com o outro presente é importante para entendermos o exposto, pois no não
reconhecimento ou negação está o desmentido.
Para voltarmos a Jorge Amado, seguiremos ainda Xing (2014, p. 32) que
recomenda o romance Tocaia Grande: a Face Obscura como obra síntese. Nele, Amado
retomará diversos temas. Um leitor mais atento poderá notar que vários personagens de
sua extensa obra dão o “ar da graça” como espíritos bem-vindos nas tramas do romance.
Trata-se de um dos últimos romances do autor. Sem dúvida, a última vez que Amado
lança-se em suas memórias para retratar os costumes deste Brasil rural pouco conhecido
em terras grapiúnas do sul da Bahia. Iniciado em maio de 1982 foi escrito “de déu em
déu” e concluído em setembro de 1984 (Amado, 2008). Aqui, o autor concentra seus
esforços em narrar sagas do período considerado importante pela expansão da lavoura
cacaueira e consequentemente transformação do Sul da Bahia que encontra sua vocação
monocultora no cacau. Até então, as pequenas e grandes fazendas misturavam tabaco e
engenhos de cana-de-açúcar - a exemplo do recôncavo- mandioca, serrarias, alambiques
e café – a exemplo do Vale do Paraíba e Oeste do Estado de São Paulo (GONÇALVES,
2014).

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Já no início o livro nos mostra “uma das práticas dos grandes coronéis durante a
conquista de terras no sul da Bahia no século XX: a tocaia” (SANTOS, 2017, p. 16). Na
história, uma propriedade rural evolui para povoado até chegar à condição de município
em meio a episódios de violência (as emboscadas) para eliminação de inimigos, o que se
adequa perfeitamente ao tema dessa reflexão que abarca um recorte temporal importante
ao mesmo tempo que realista para a operacionalidade da mesma: última década do século
XIX (período de conquista e expansão de terras) até primeira metade do século XX (auge
do cacau).
O período pós-abolição carregou por muito tempo os “fantasmas” da escravidão.
A sociedade ilheense, por exemplo, classificava negros por suas características físicas
com termos que aludiam a escravidão. Por isso, é de se estranhar que uma literatura de
costumes que se utiliza deste espaço geográfico como cenário não aborde temas tão
presentes. Por outro lado, essa situação de vulnerabilidade social compartilhada por
pessoas na mesma condição de negação, desmentidos, pode ter fortalecido laços de
solidariedade dentro das comunidades, acendido focos de resistência, estabelecido
quilombos e coiteiros, propiciado a compra de cartas de alforria (GONÇALVES, 2014).
Em verdade, nesse ponto a ficção de Jorge Amado em Tocaia Grande se aproxima
muito da realidade: um novo sítio incrustrado no meio das roças e matas da região
cacaueira. Ponto de confluência de estradas. Local de passagem para vários tipos de
personagens. Em sua grande maioria representações de elementos marginalizados e/ou
sob forte pressão social. Mulheres vítimas de violência doméstica, imigrantes, famílias
expulsas de suas terras, trabalhadores assalariados de baixa qualificação, tropeiros,
fugitivos, andarilhos solitários etc. Pessoas que encontram no povoado laços de
solidariedade e igualdade devido a situação de precariedade comum, se não a todos, à
maioria. Talvez “para corrigir a sua negligência da miséria dos negros na escravidão” é
que se identifica uma originalidade em Tocaia Grande: a primeira vez em que há uma
tentativa, ainda que tangencial, de discutir escravidão. Infelizmente esta narrativa em
específico não se desenrola pelos territórios do cacau (XING, 2014, p. 57). Trata-se da
introdução do personagem Castor Abduim ou, seguindo alcunha baseada em sua
ocupação de ferreiro, Tição Aceso.
Tal qual a moderna temática dos jogos de videogame, neste romance, Jorge
Amado (2008, p.51) vai “desbloqueando” personagens, revelando-os ao leitor e
acrescentando importantes peças ao cenário do povoamento onde se situa a história. É
deste modo que nos apresenta Castor Abduim da Assunção com grande destaque para

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suas habilidades de amante e condição de objeto sexual da Baronesa de Albuquerque,


esposa de grande figurão dos Engenhos de cana-de-açúcar de outra região do estado, o
Recôncavo baiano. Chega a Tocaia Grande como fugitivo após ser jurado de morte por
esbofetear o Barão e defender uma companheira de criadagem.
Na história, Tição não era escravo. Seus pais já eram forros, mas ainda assim é
tratado e performa como mucamo. Sua aparição na história nos remete a estrutura
escravagista da casa grande, senhor e senhora de escravos, escravos domésticos,
exploração sexual do corpo negro, violência corporal, castigos e negação de humanidade.
Para que a descrição do personagem não se alongue, é neste ponto que nos aproximamos
novamente de Jô Gondar para atingir nosso objetivo de entender o apagamento da
escravidão na cultura do cacau pela ótica da violência, do esquecimento construído como
um desmentido que confirma o trauma social. Quer dizer, o desmentido é uma forma de
negação.
Assim, não há maior negação do que o não reconhecimento de humanidade.
Talvez, a semelhança primeira não seja o reconhecimento da precariedade de vidas
subjugadas por alguma instância de poder ou comunidades solapadas pela vulnerabilidade
social. É – evitando margear a pieguice - reconhecer o humano, dotado de subjetividade
e seu direito inalienável à liberdade. Provavelmente, aqui temos uma situação em que o
esquecimento sirva como absolvição, pois “se o outro não é real, não há dano ou negação
possível desde o momento que se trata de vidas já negadas” (BUTTLER, 2006, p. 60).
Comparando com alguns exemplos trazidos por Ortega (2017, p.19-20), nos
parece que na literatura de Jorge Amado e suas poucas aproximações com o tema
escravidão não há uma “recordação traumática”. Mesmo porque, se fosse assim retratada,
seriam “identificados esforços por entender”. Pois em acontecimentos desse porte, com
tamanha carga de violência e duração, não há apenas relatos factuais. Ressalte-se que a
literatura, devido a suas características de expressão artística, acolheria muito bem
elaborações criativas presentes nas “preocupações e contextos de quem recorda no
presente”.
Assim, na escrita amadiana, bem como de seus contemporâneos colegas
romancistas, mesmo a escassez de fontes e estudos acadêmicos nos indicam uma falta do
reconhecimento da escravidão como problema, uma porção significativa que falta na
memória acerca do estabelecimento da cultura que nomeia a região cacaueira e, mais
importante, dos vestígios de memória sobre o passado escravagista brasileiro.

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3 CONSIDERAÇÕES FINAIS
A realização do trabalho aponta que houve um processo de apagamento da
escravidão na região cacaueira do sul da Bahia.
Este processo se dá no âmbito da violência sistêmica que é a própria escravidão.
Ao mesmo tempo que se revela um trauma social persistente no tempo, uma vez
que a construção deste apagamento tem inclusive na literatura o expediente de negação,
um desmentido, o qual também se estende para o campo dos valores morais e tradições
transmitidas há mais de um século, depois da abolição da escravidão.
Há um apagamento. Esse apagamento pode ser entendido como violência. A
violência tem potencial para gerar trauma, à medida que se traduz em uma espécie de não
reconhecimento da condição humana dos povos negros, bem como do legado que
deixaram a partir de sua força de trabalho.
Além do não reconhecimento há também uma espécie de desenraizamento pelo
fato de não admitir a questão da origem desses povos com relação aos países do
continenete africano.
A violência com certa magnitude, especialmente quando incide sobre um povo a
partir de critérios discriminatórios e segregacionistas, como no caso dos povos negros que
foram considerados pelos povos brancos, inferiores pela cor da pele, pode causar um
trauma coletivo, social, se nos atentarmos principalmente o artificio utilizado para negar
a violência praticada como uma modalidade de violência, ou seja, o arsenal de práticas
de humilhação e aviltamento que incidiu sobre os povos negros, foi e ainda é, até certo
ponto, naturalizada, constituindo-se assim um modalidade de desmentido que apresenta
todas as prerrogativa de se converter em um trauma.
Essa negação é um descrédito da vítima, um desmentido.
De resto, podemos seguramente admitir que o não reconhecimento da condição
humana dos povos negros, bem com o silenciamento sobre o legado produzido pela força
de trabalho são condições que se apresentam na rubrica de um desmentido e, por isso,
violência em cicatrizes abertas em função das questões concernentes à distribuição
desigual da precariedade orientada por critérios racistas, entre outros.

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