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Título do Trabalho:
Resumo
A partir da etnografia realizada em quintais de uma rua da Baixada Fluminense, busco
compreender as maneiras como o bairro, as casas e os quintais foram construídos ao longo do
tempo. Olhar a partir do quintal revelou algumas das formas como a construção dessas esferas
territoriais se imbrica à própria construção dos corpos dessas famílias e especialmente dos
corpos das mulheres. Numa perspectiva pós-colonial do parentesco, fundamentada
principalmente nos trabalhos de Louis Marcelin (MARCELIN, 1996), que complexifica a leitura
da “linguagem da casa”(Carsten&Hugh-Jones, 1995) ao inserir intersecções de gênero, raça e
classe no primeiro plano de análise dessas relacionalidades, e privilegia um olhar diacrônico que
permite vislumbrar os processos e ciclos de vida das construções e de seus moradores, numa
relação intrínseca, desejo compreender a centralidade do papel dessas mulheres na construção
dos territórios de que fazem parte, lançando um olhar aproximado, por se tratar de um território
do qual faço parte, considero assim este trabalho como uma “escrita de trincheira” (ARAÚJO,
2021). A busca por compreender essa espacialidade e o como foi construída é também uma
busca por ouvir delas como, de suas casas, quintais, portões, elas se fizeram resistência quando
o bairro nada mais era do que ruas abertas, lotes marcados e matagal. É uma forma de ecoar
suas vozes, que, da margem (HOOKS, 1990 in KILOMBA, 2019), se fizeram tão hábeis em
construir novos horizontes de possibilidades.
Introdução
Em outro momento, ela conta sobre como veio a trabalhar como manicure
e vendedora no próprio quintal ou indo à casa de suas clientes – muitas delas
amigas e conhecidas da vizinhança. Neste ponto, ela aborda a questão do
respeito como ausência, e como premissa básica para a existência e a
manutenção da relação, ao falar sobre a vida no trabalho e como a breve
convivência com uma das patroas que teve, quando era empregada doméstica,
a fez decidir buscar outras formas de viver e de trabalhar.
Cristina teve seu primeiro emprego em “uma loja de macumba no Méier,
depois do Salgado Filho, na rua Carolina Machado, de segunda a sábado”.
Depois ela começou a trabalhar como empregada doméstica e ajudante de
cozinha, e diz que pensava que seria um trabalho tranquilo, pois “já tava
acostumada a cuidar da minha casa, então cuidar da casa dos outros era fácil”.
Mas se deparou com diversas formas de desrespeito, em particular com o
racismo de Dona Auxiliadora. Situações como não poder tomar banho ao fim de
um dia de trabalho, não poder se sentar à mesa para comer, se ver obrigada a
permanecer em lugares absolutamente inadequados, como quando precisou
fazer sua refeição “perto da lixeira”, se tornaram cotidianas, pois se repetiram em
várias casas. Até que nesta uma casa, no bairro da Tijuca, ela só conseguiu ir
duas vezes.
“Era faxina, só fui pra ela [Dona Auxiliadora] duas vezes e não
fui mais. Ninguém parava ali. Foi quando eu falei que não
trabalhava mais em casa de família, foi muita humilhação que eu
passei. Fui terminar meus estudos. Nunca mais quis casa de
família... era café dormido, pão duro... até um gato que me
atacava... (...) Antes eu não poderia escolher, quando a gente não
pode escolher, a gente encara, mas hoje eu posso escolher. Tenho
minha casa, não vivo de aluguel, meu filho tá criado. Já ralei muito
na minha vida...” [Depois de uma pausa na fala, ela continua]. “Não
podia encostar no caixonete (da porta) ... o suor, a minha cor...
Dona Auxiliadora... meu primeiro emprego de carteira assinada. Eu
fui embora. Cheguei em casa, a lágrima descia, não voltei mais. A
pessoa precisa ter senso. Tem que ter respeito. Foi aí que eu fui
fazer minhas vendas – Natura, Avon, Demillus... teve época que eu
vendia roupa de cama, toalha, sandália, calcinha...”.
5. Poética da Resistência
6. A margem e o monstro
Conclusão
A história de Cristina pode nos levar a uma série de observações, a
tomada de decisão de não mais voltar lá, de abandonar seu primeiro emprego
“de carteira assinada”, só pôde ser tomada porque não pagava aluguel e porque
seu filho já estava criado, porque independente do quanto demorasse para ela
encontrar outra fonte de renda, não ficaria sem sua casa, o quintal da família era
seu para viver. Ela tinha ali seu porto seguro. Ao saber-se segura, Cristina não
se conteve a uma posição de subalternidade, nem no casamento, nem no
trabalho, que se mostraram dois lugares de ofensa. Em defesa de sua honra ela
volta para o quintal da familia, seu lugar de enraizamento.
A transformação que ela constrói em sua vida está profundamente
conectada ao desejo de não mais se encontrar em um lugar de silêncio, e
opressão. Neste sentido as lágrimas que verte ao chegar em casa, já são um ato
de verdadeira insubmissão. O direito ao quintal, àquela terra, lhe permitiu
confrontar as amarras do patriarcado, do racismo, da divisão do trabalho e criar
um lugar de exercício de liberdade, pois ali ela se sente segura.
Enfim, a ação protagonizada por Cristina pode ser entendida como uma
atitude decolonial, pois ao se inserir no mercado formal de trabalho, ela acredita
ter encontrado estabilidade, segurança, mas logo se depara com a concretude
da outra face da modernidade, a colonialidade. Diante da opressão, ela se
espanta e reage. Busca nas frestas de sua casa, de seu quintal, um horizonte de
resistência, um horizonte onde a segurança seja fornecida por estruturas
construídas com mecanismos autênticos de sua comunidade, a partir da logica
que rege a vida dos agentes daquele lugar, que tem seus alicerces
fundamentados nos laços construídos a partir de preceitos básicos, a
consideração e o respeito.
Bibliografia
ARAÚJO, Antônia Gabriela Pereira de. Raçudas. Sobre criar forças, corpos e
performances entre jovens negras boxeadoras no Rio de Janeiro – Brasil. Rio de
Janeiro, 2021. Tese (Doutorado em Antropologia Social) – Programa de Pós-
graduação em Antropologia Social, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio
de Janeiro, 2021.
CLARKE, Edith. My mother who fathered me: A study of the family in three
selected communities in Jamaica. 1957.
GOMES, Flávio dos Santos. Para matar a hidra: uma história de quilombolas no
recôncavo da Guanabara no Século XIX. Rio de Janeiro: Vozes, 1994.