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RAM - Reunião de Antropologia do Mercosul

01 a 04 de agosto de 2023, Niterói (RJ)

Grupo de Trabalho (GT-104):

Pensamentos contra-coloniais, decoloniais, abordagens interseccionais


entre raça, gênero, classe e outros marcadores sociais da diferença.

Coordenação: Camila Fernandes (UFBA/UFRJ), Samara Freire (UFRJ), Maria


G. Lugones (Universidade Nacional Cordoba)

Título do Trabalho:

Casas, corpos e quintais: gênero, raça e classe na construção


de territórios periféricos da Baixada Fluminense

Autora: Safira Karina Reink Silva (PPGAS - Museu Nacional/UFRJ)


Casas, corpos e quintais: gênero, raça e classe na construção de
territórios periféricos da Baixada Fluminense

Safira Karina Reink Silva (Museu Nacional - UFRJ)

Resumo
A partir da etnografia realizada em quintais de uma rua da Baixada Fluminense, busco
compreender as maneiras como o bairro, as casas e os quintais foram construídos ao longo do
tempo. Olhar a partir do quintal revelou algumas das formas como a construção dessas esferas
territoriais se imbrica à própria construção dos corpos dessas famílias e especialmente dos
corpos das mulheres. Numa perspectiva pós-colonial do parentesco, fundamentada
principalmente nos trabalhos de Louis Marcelin (MARCELIN, 1996), que complexifica a leitura
da “linguagem da casa”(Carsten&Hugh-Jones, 1995) ao inserir intersecções de gênero, raça e
classe no primeiro plano de análise dessas relacionalidades, e privilegia um olhar diacrônico que
permite vislumbrar os processos e ciclos de vida das construções e de seus moradores, numa
relação intrínseca, desejo compreender a centralidade do papel dessas mulheres na construção
dos territórios de que fazem parte, lançando um olhar aproximado, por se tratar de um território
do qual faço parte, considero assim este trabalho como uma “escrita de trincheira” (ARAÚJO,
2021). A busca por compreender essa espacialidade e o como foi construída é também uma
busca por ouvir delas como, de suas casas, quintais, portões, elas se fizeram resistência quando
o bairro nada mais era do que ruas abertas, lotes marcados e matagal. É uma forma de ecoar
suas vozes, que, da margem (HOOKS, 1990 in KILOMBA, 2019), se fizeram tão hábeis em
construir novos horizontes de possibilidades.

Introdução

Durante o ano de 2017, realizei uma etnografia sobre os quintais de um


bairro da periferia da cidade de Nova Iguaçu, Baixada Fluminense. A partir
principalmente das histórias contadas por uma das pessoas com quem
conversei, pretendo refletir sobre o papel do quintal na construção do devir das
vidas dos moradores, percebendo-os como um grupo interconectado por
relações de parentesco. Ao mesmo tempo, por se tratar de quintais de um bairro
periférico, devo observá-los como lugares que se constroem à margem da
modernidade e se tornam também lugares de resistência, fonte de uma “atitude
decolonial” (Maldonado-Torres, 2016).
Faço isso traçando diálogos com etnografias e bases teóricas produzidas
em e a partir de outros lugares – também marginais, cada um com suas
peculiaridades –, e de fontes epistemológicas interseccionais, decoloniais e pós-
coloniais.
Sendo assim, este texto busca observar os quintais da periferia como
lugares construídos ao longo do tempo, cuja edificação material está imbricada
à da casa e acompanha os desenrolares da vida de seus moradores, fazendo
com que as histórias dos quintais, das casas e dos corpos estejam
intrinsecamente conectadas. e estando à margem das estruturas hegemônicas
de poder, eles se tornam portos seguros a partir dos quais as pessoas criam
múltiplas possibilidades de olhar entre as fissuras da estrutura construída pela
colonialidade em que estão inseridos, e produzem novos horizontes de
esperança, pois os corpos forjados nos quintais da periferia são justamente
produzidos em lugares que são ao mesmo tempo de opressão e de resistência.

1. Estar à margem, habitar um lugar-não-lugar

A etnografia que fiz em quintais de uma das ruas do Jardim Belo


Horizonte, nos leva a um lugar que, visto a partir da perspectiva elaborada por
Bell Hooks (2019) e Grada Kilomba (2019), considero marginal. Este pequeno
subbairro fica dentro de outro bairro, também marginal, numa região periférica
do Rio de janeiro, a Baixada Fluminense, um lugar onde, assim como tantos
outras periferias, no Brasil ou alhures, os “trilhos de trem eram lembranças
diárias de sua marginalidade” (Kilomba, 2019, p. 67). Os trilhos, cortando os
bairros, o som dos trens logo cedo, antes da alvorada, nos lembra que é hora de
partir para uma longa jornada de um dia, que dura muito mais do que as tantas
horas do expediente.
Era interessante ver como o nome do lugar era sempre quase ali, quase
lá, um lugar-que-não-era outro lugar. Ao tentarem explicar onde ficava o bairro,
como se chegava até lá, os próprios moradores nos confundíamos. Aqui é Morro
Agudo, Comendador Soares, mas não é, fica depois. Ou ainda: aqui é Riachão,
ou Rosa dos Ventos, mas não é... na verdade fica um pouco antes... Lembro que
só na adolescência vim a saber qual era o oficial nome do bairro, depois de
algumas reformas de zoneamento promovidas pela prefeitura, passaram a vir as
contas de luz com o nome do bairro. O nome oficial, enfim. Trata-se de um sub-
bairro de Comendador Soares, que muita gente, principalmente o pessoal mais
antigo ainda chama de Morro Agudo (Dutra, 2014).
A confusão acontece muito por causa dos nomes das antigas fazendas
de plantation. Naquele tempo a região era a Fazenda Morro Agudo, que
pertencia ao Comendador Soares e sua familia. A fazenda, acompanhando os
sucessivos momentos de ascenção e declínio econômico, já foi bastante
próspera e movimentou consideráveis fluxos de produtos e pessoas, e
especialmente com a crise provocada pela Emancipação, em 1888, sentida por
toda a região, que dependia de um enorme contingente de mão de obra
escravizada para realizar a manutenção do terreno alagadiço e do próprio cultivo
da cana de açúcar, foi sendo partida e repartida, fracionada, abandonada,
ocupada, desocupada e loteada pra virar enfim uma área urbana que não tinha
urbanização. Nesse meio-tempo, deixou de ser a Fazenda Morro Agudo e veio
a se tornar muitas chácaras, sítios e loteamentos, já em meados do século XX.
O trem tem um papel fundamental na ocupação do lugar, que ao passar
pelo processo de loteamento, foi ocupado por famílias trabalhadoras, nas
geralmente os homens tinham empregos no centro do Rio. Dessa maneira, era
a possibilidade criada pela estrada de ferro, de ir e vir do trabalho diariamente,
associada aos preços relativamente baixos dos terrenos que permitia que essas
famílias se instalassem ali (Bezerra, 2013). Na divisão sexual do trabalho, as
mulheres tendiam a realizar o trabalho reprodutivo, que num certo sentido
abrangia também o cultivo da “lavoura branca”, a roça doméstica cultivada no
quintal (Bastos, 1977).
As famílias eram vindas de diversas partes do Rio de Janeiro e de outros
estados do Brasil, como Minas Gerais, Espirito Santo, Bahia, Ceará e Paraíba,
por exemplo – saídas em sua maioria associadas ao êxodo rural acontecido em
seus próprios estados. A chegada aos loteamentos de Morro Agudo representa
no imaginário das famílias um permanecer no campo e trabalhar na cidade, o
que só se torna possível através desse vai e vem diário nos trens lotados.
Ali, assim como em tantos outros bairros da Baixada e de outras periferias,
o lugar é repartido entre o lado de lá e o lado de cá, com os trilhos do trem
cercados por muros que seguem cortando os bairros, impermeabilizando as
fronteiras. As passarelas são poucas e distantes entre si. Dessa maneira, a
circulação no seio do próprio bairro perde um bocado de fluidez. Para solucionar
o problema, e os moradores costumam escolher algum ponto da linha férrea para
abrir o buraco, uma passagem clandestina que cruza esses muros e permitem a
circulação e dão acesso aos serviços, ao comércio, às escolas, às vizinhanças
de um lado ao outro, criando brechas nas fronteiras construídas pelo Estado
moderno (Borges, 2013).
Importante pontuar que nesta reflexão misturo os dados etnográficos com
algumas impressões que vêm de minha própria experiência como moradora,
como alguém de dentro, pois acredito que seja vital fazer aqui uma “escrita de
trincheira”. A própria escolha do tema, passa por esse desejo de dar voz a esse
lugar-não-lugar que se situa nessa região marginal da Baixada Fluminense. Por
ser meu próprio território de origem, por ter eu feito uma etnografia na rua onde
eu nasci, onde morei quase a vida toda, onde mora minha família, creio que o
termo criado por Antônia Araújo seja mais que oportuno, ainda que o mesmo
ainda não tivesse sido criado por ela quando comecei minha pesquisa.
A “Escrita de Trincheira” (ARAÚJO, 2021, p. 47) é algo que Antônia traz
para traduzir nossa necessidade de praticar uma escrita engajada, emocionada,
subjetivamente colocada a respeito dos universos que estudamos. Trazer à tona
nossas experiências e nos permitir fazer essa “escrita emocionada” (ARAÚJO,
2021, p.48), demonstrando o como os fenômenos nos afetam e o quanto
fazemos parte daquilo sobre o que nós estamos nos debruçando é sem dúvida
algo revolucionário. Ela nos mostra ainda a necessidade de que nossa
racialidade e nossa generidade não sejam silenciadas, que não fiquemos em
estado de invisibilidade, que não permitamos ocupar o não-lugar. Dar voz, expor
nossas relacionalidades e nossa subjetividade enriquece a nossa capacidade de
captar as vozes de outres com quem entramos em diálogo e com quem nós nos
propusemos a aprender e a transcender memórias através da linguagem.
É dessa prática etnográfica, que ainda não estando assim conceituada de
maneira tão certeira, mas já intuída, que essa etnografia da Baixada Fluminense
foi feita. Nesse trabalho, pretendi fazer uma “pesquisa entre iguais”, acreditando
que por ser uma pessoa “de dentro”, que compartilhava com meus informantes
uma série de experiências, poderia acessar conteúdos que seriam limados da
conversa com pessoas estranhas, com pessoas de fora, pois “ser uma pessoa
’de dentro’ produz uma base rica, valiosa em pesquisas centradas em sujeitos”,
(Kilomba, p. 83).
Durante a pesquisa, conversei quase exclusivamente com mulheres,
geralmente em seus quintais, todas de famílias trabalhadoras, e nem sempre
estava conversando com mulheres que se viam como negras, pois essa não era
uma premissa da pesquisa. Em suas narrativas, havia aquelas que
mencionavam sua negritude, outras que casualmente se declaravam como não
sendo brancas e outras que silenciavam sua racialidade, talvez por não se
sentirem de fato racializadas. Assim como em Araújo, preferi deixar que as
referências à raça ou cor emergissem do campo espontaneamente ao invés de
provocar, indagar, formal e diretamente, partindo de categorias pré-
estabelecidas, pois assim seria possível captar a compreensão das
interlocutoras sobre si, dessa maneira tratava de não imputar categorias que eu
poderia trazer “de fora” para a conversa. O que me interessava eram as
narrativas e as atitudes, inclusive de silenciamento, que cada uma delas poderia
trazer para compor suas histórias.
Sendo assim, meu objetivo nesta análise é compreender as múltiplas
dimensões das relacionalidades (STRATHERN, 1995) com que me deparo no
campo, especialmente aquelas contidas nas histórias da moradora deste quintal
que coloco aqui em relevo. Para isso, compreendo o quintal de uma maneira
complexa, como ambiente (ao mesmo tempo material e imaterial) e lugar (um nó
de relações) (INGOLD, 2012), imbuído da cosmologia resguardada pela família
que o habita, a qual se reflete na sua edificação material e na construção do
inconsciente das pessoas que vivem ali – elementos materiais, imateriais e
relacionais que se refletem na linguagens e nas escolhas das ações a serem
tomadas pelos agentes, dentro dos leques de possibilidades que se apresenta
em cada contexto peculiar. (MINTZ, 1984). Tais elementos podem ainda ser
percebidos formas de criar novos horizontes e esperançar a realidade; e como
reações e resistências às opressões da colonialidade/modernidade que se
impõem à sua própria existência (MIGNOLO, 2017), (QUIJANO, 2005).

2. O quintal, um porto seguro, um lugar de respeito.

Durante as visitas nos quintais do Jardim Belo Horizonte, uma das


entrevistadas foi Cristina, que ao longo da conversa, ao referir-se a si mesma,
se traduz como “mulher negra”, e “uma mulher trabalhadora” que “já lutou muito
nessa vida”. Ela se casou cedo e teve logo seu primeiro e único filho e foi morar
com o marido numa casa alugada no bairro, algo que durante o trabalho de
campo foi visto entre outros casais recém-casados, quando se buscava sair do
quintal da família para preservar a “privacidade do casal”. Minha relação com
Cristina é bastante próxima, é uma de minhas primas mais velhas, fomos criadas
brincando juntas durante boa parte de minha infância, até que ela se tornasse
uma jovem moça que já tinha suas obrigações e já não brincava tanto no quintal
quanto eu, que ainda era pequena. O quintal dela é ao lado do quintal de minha
avó. Convidei-a a fazer parte da pesquisa e ela animadamente aceitou, e disse
que gostaria muito de contar suas histórias. Passamos algumas tardes
conversando no quintal da família dela e na sala de sua casa, sempre tomando
café.
Numa das conversas perguntei objetivamente o que o quintal
representava para ela, que disse sucintamente: “é meu porto seguro”, e então
explica um pouco sobre suas vivências e os relacionamentos que já tivera,
falando de seu casamento, que não deu certo. O marido logo deixou de contribuir
com suas “responsabilidades” na casa e em suas palavras, não a “respeitava”,
de modos que ela não gostava de comentar. Ela ainda permaneceu com o
companheiro por algum tempo, apesar do sofrimento em que vivia. Tiveram um
filho, mas diante das sérias dificuldades da relação, ela reuniu forças e seguiu
adiante. Era ela quem sustentava a casa, quem pagava o aluguel. Ela tinha seu
trabalho e com seu filho ainda pequeno, pediu permissão à tia, Conceição, e
voltou para o quintal da família. Ali ela se estabeleceu, fez casa de um dos
quartos da casa que havia no quintal. Ficando ali ela se viu liberta de uma relação
que a oprimia.
Naquele momento, a casa pertencia a sua tia, Conceição. Vamos nos
deter um pouco na história da casa e da família de Cristina. A bisavó, Dona Maria
das Dores de Ogum, e a avó, Dona Luíza, chegaram juntas ao bairro.
Compraram um dos terrenos da Rua Eugênio Ferreira. Ali já havia uma
construção, que parecia um paiol, segundo descrevem as moradoras mais
antigas com quem conversei. Elas foram algumas das primeiras que chegaram
àquela rua, algumas das primeiras moradoras do bairro, mãe e filha. Inicialmente
elas adaptam essa construção antiga que já havia ali, mas logo começam a
construir uma casa na parte da frente do terreno. Dona Maria e Dona Luiza
plantam ali seus axés, e sacralizam o terreno, que começa como um terreiro de
Umbanda, e depois, como Luiza fizera os rituais de iniciação no candomblé, o
terreiro passa a ser de Candomblé, e ela, a Mãe de Santo do terreiro. A casa se
torna conhecida e passa a atrair muitas pessoas da região para suas festas,
consultas e as mais diversas formas de apoio, tanto espiritual quanto material,
para aqueles que a procuram.
Luiza continuou comandando o terreiro depois do falecimento de sua mãe.
A casa de Dona Luiza foi conduzida com firmeza por ela até sua passagem, e
suas descendentes afirmam que sua presença ainda pode ser sentida no quintal
de diversas formas: na firmeza das estruturas da casa, do barracão, que mesmo
quando veio a ruir, anos depois, manteve de pé a cumeeira e os espaços mais
sagrados, os quartos-de-santo, e nas pequenas plantas, os orirís, plantas
sagradas de sua Orixá, Oxum, que brotam espontaneamente nas frestas do
cimento do chão. Naquele quintal ela criou suas duas filhas e seu filho, além de
muitos filhos de santo.
O terreno da família, onde foi plantado o axé, ficou sendo habitado pela
filha do meio, Conceição, que permanece na casa que era de sua mãe e de sua
avó. Neuzídia, a filha mais velha, foi quem herdou o axé do terreiro, tornando-se
a Mãe de Santo após sua mãe. Ela teve três filhas, a mais velha, que ela adotou
por recomendação de sua Orixá, é Cristina. Neuzídia se casou com o filho mais
velho do casal vizinho; eles então fizeram casa no quintal da família dele, que
tinha mais espaço para construir, e assim, com o casamento as famílias e os
quintais que eram amigos, se tornaram parentes.
Neste ponto, voltemos a Cristina. Quando ela se separa do marido, é no
quintal fundado por sua família, na casa de sua linhagem materna, que ela busca
morada e se estabelece. Implicitamente, nota-se que mesmo sendo ela filha de
Neuzídia, o lugar de direito de Cristina é antes de qualquer outro, no quintal
fundado pelas mulheres de sua casa, o lugar de suas ancestrais.
O retorno de Cristina ao quintal acontece sem qualquer contestação. Para
que ela more, Conceição cede um dos quartos da casa construída por Luíza e
Maria, que ficava à frente do terreno, aos fundos, ficava o barracão. A casa é
construída como uma meia-água, possivelmente para que o quintal
permanecesse com uma vasta área aberta, um terreiro que fosse o mais amplo
possível. A casa, com sala e cozinha sendo os cômodos centrais e dois quartos
nos extremos, era grande o suficiente para abrigar a família. Com a vinda de
Cristina, um dos quartos, aquele mais aos fundos, é cedido para ela. No começo
ela precisaria compartilhar cozinha e banheiro, mas com o tempo e trabalho, foi
“puxando os cômodos” e construindo sua própria cozinha, banheiro, sala,
varanda, e área, separando para si inclusive um quintalzinho onde dorme seu
cachorro, por onde a casa se areja, o sol entra, onde ela estende seu varal -
afinal, como ela conta, o “varal pode dar muito problema” se todas decidirem
lavar roupas ao mesmo tempo.
Para Cristina, viver ali no quintal da família, significa “ter uma segurança”.
O quintal é para ela esse “porto seguro” porque dali ela jamais será despejada –
um medo gerado pelo “viver de aluguel” - e porque ali ela se sente “respeitada”.
Segundo ela, “apesar de todas as diferenças que temos com os familiares, o
quintal é um porto seguro, apesar de todas as diferenças, tem respeito”.
A noção de respeito na fala de Cristina é algo em que desejo me deter.
Aqui ela fala do quintal como um lugar onde existe segurança e respeito. Ela não
fala de um lugar sem conflitos, mas sim um ambiente onde até mesmo os
conflitos são solucionados com base no respeito.
Cristina também explica sobre suas noções de parente e família, através
dos termos “sangue” e “coração”. Ela fala, por exemplo, de sua comadre, Lucia,
que para ela, é sua família, pois “Lúcia me ajudou em vezes que sangue meu
não me ajudou. Minha diferença de parente e família é essa daí”, e reforçando,
ela continua “... e minha família é de coração”. A seguir conta que conhece bem
suas origens e as formas pelas quais encontrou seu lugar de pertencimento. Ela
foi adotada por Neuzídia com 1 ano de idade, quando foi entregue pela mãe, a
quem se refere como “minha mãe que me pôs no mundo.

3. “Tem que ter respeito” – trabalho doméstico, racismo e reação

Em outro momento, ela conta sobre como veio a trabalhar como manicure
e vendedora no próprio quintal ou indo à casa de suas clientes – muitas delas
amigas e conhecidas da vizinhança. Neste ponto, ela aborda a questão do
respeito como ausência, e como premissa básica para a existência e a
manutenção da relação, ao falar sobre a vida no trabalho e como a breve
convivência com uma das patroas que teve, quando era empregada doméstica,
a fez decidir buscar outras formas de viver e de trabalhar.
Cristina teve seu primeiro emprego em “uma loja de macumba no Méier,
depois do Salgado Filho, na rua Carolina Machado, de segunda a sábado”.
Depois ela começou a trabalhar como empregada doméstica e ajudante de
cozinha, e diz que pensava que seria um trabalho tranquilo, pois “já tava
acostumada a cuidar da minha casa, então cuidar da casa dos outros era fácil”.
Mas se deparou com diversas formas de desrespeito, em particular com o
racismo de Dona Auxiliadora. Situações como não poder tomar banho ao fim de
um dia de trabalho, não poder se sentar à mesa para comer, se ver obrigada a
permanecer em lugares absolutamente inadequados, como quando precisou
fazer sua refeição “perto da lixeira”, se tornaram cotidianas, pois se repetiram em
várias casas. Até que nesta uma casa, no bairro da Tijuca, ela só conseguiu ir
duas vezes.
“Era faxina, só fui pra ela [Dona Auxiliadora] duas vezes e não
fui mais. Ninguém parava ali. Foi quando eu falei que não
trabalhava mais em casa de família, foi muita humilhação que eu
passei. Fui terminar meus estudos. Nunca mais quis casa de
família... era café dormido, pão duro... até um gato que me
atacava... (...) Antes eu não poderia escolher, quando a gente não
pode escolher, a gente encara, mas hoje eu posso escolher. Tenho
minha casa, não vivo de aluguel, meu filho tá criado. Já ralei muito
na minha vida...” [Depois de uma pausa na fala, ela continua]. “Não
podia encostar no caixonete (da porta) ... o suor, a minha cor...
Dona Auxiliadora... meu primeiro emprego de carteira assinada. Eu
fui embora. Cheguei em casa, a lágrima descia, não voltei mais. A
pessoa precisa ter senso. Tem que ter respeito. Foi aí que eu fui
fazer minhas vendas – Natura, Avon, Demillus... teve época que eu
vendia roupa de cama, toalha, sandália, calcinha...”.

Em sua fala está embutida a repreensão que recebeu por encostar na


parede, acompanhada de um insulto racista, assim como está presente seu
sofrimento profundo, sua indignação, sua consciência – a consciência de seu
poder de escolha, e a sua decisão, diretamente relacionada à ação de “não voltar
mais” àquele lugar, de voltar a estudar, fazer suas vendas e conseguir maneiras
alternativas de trabalhar. Ao se deparar com uma situação de tentativa de
controle do outro sobre seu corpo, de subalternização de sua existência, ela
reage das maneiras que pode, para não sucumbir à dominação.
Refletindo a partir do pensamento decolonial, vemos que há uma
estratégia para sair da armadilha criada pela malha da
modernidade/colonialidade, e seu escape é, primeiro, a recusa, é se negar a
estar ali, a seguir, buscar alternativa abrigo no trabalho informal, pois aquilo que
ela encontrou no “trabalho de carteira assinada”, naquela solução
aparentemente ideal, especialmente se pensarmos em termos da parte visível e
atraente da modernidade, se mostrou como algo assustador, como um monstro.
Ao se aproximar, ela vislumbrou justamente aquela face oculta da modernidade,
se viu enredada no nó da dominação e na hierarquização racial, tão presentes
na colonialidade.
Sua fala de reação, ao afirmar que “tem que ter respeito”, nos mostra que
ela escava em seu interior a lógica que rege a sua vida íntima, a relação com
sua família, a relação que existe entre as pessoas do seu quintal, ela traz à tona
algo que está na base da cosmologia que subjaz a sua cultura e confronta com
aquilo com que se depara, sendo assim capaz de julgar como inaceitável. Ela
verbaliza, renega e busca um caminho oposto àquele, para criar outras
possibilidades de existir. Ela se volta para aquele lugar de respeito que se
materializa ali, em seu quintal.
Esse lugar que é, desde então, onde ela atende suas clientes, que em
geral são também suas amigas e conhecidas da vizinhança, faz suas vendas e
trabalha como manicure. O emprego ela, ressalta, ela pôde deixar, se não
pudesse, “encarava”, mas “...posso escolher, tenho minha casa”, tem seu porto
seguro, tem seu lugar no mundo.
Dessa forma, podemos notar pela história de Cristina que o quintal pode
ser visto como um “porto seguro” porque a segurança de ter uma casa onde
morar, ou seja, acesso à moradia, à terra, a ausência do medo e da insegurança
de não poder pagar o aluguel caso não disponha de uma renda mensal fixa, de
ficar sem casa, ou ainda por causa da ausência do medo que talvez a fizesse
permanecer numa relação marcada pelo patriarcalismo, pela violência doméstica
e de gênero, em quaisquer das faces que ela se apresente. Ali o que ela encontra
e, com sua comunidade constrói, é possibilidade de viver sob as premissas do
respeito e da consideração que favorecem a criação de espaços de liberdade e
de resistência às armadilhas da modernidade/colonialidade.

4. A linguagem da casa entre os Recôncavos

Neste ponto gostaria de introduzir algumas referências ao estudo do


antropólogo haitiano Louis Marcelin em sua etnografia realizada em Cachoeira,
no Recôncavo Baiano. Seu trabalho se debruça sobre as formas de fazer
famílias entre famílias negras da região. Neste sentido, ele realiza um movimento
de crítica a uma epistemologia colonial que vigorava no seio da antropologia do
parentesco. Os estudos dessa área tendiam a relacionar duas problemáticas que
precisariam ser compreendidas e solucionadas, que passaram a ser base de
duas áreas de estudo – as famílias negras e as famílias da classe trabalhadora.
Em ambos os casos, havia parâmetros associados a modelos de família
ocidentais, relacionados a modelos juridicamente reconhecidos de formação de
famílias, aos quais as famílias negras e as famílias trabalhadoras não estavam
enquadradas. Em ambos os casos era com frequência que a dita “erosão dos
laços familiares” era atribuída à forma como as mulheres estavam posicionadas
na construção das estruturas hierárquicas familiares – que deveriam ser
patriarcais, centradas e comandadas por homens, e por vezes não eram.
Ou seja, a ideologia do parentesco ocidental se refletia nos estudos de
parentesco na antropologia de modo a enviesar as análises de tais famílias,
negras e das classes trabalhadoras, num sentido colonialista que impediu
gerações de antropólogos de perceber os problemas de se ater a um modelo
judaico-cristão-ocidental e capitalista de família, para analisar grupos sociais que
não operavam de acordo com tais lógicas. Havia uma negação em observar os
arranjos familiares compreendendo as relações interseccionais entre gênero,
raça e classe de maneira menos etnocêntrica, é justamente neste ponto que me
detenho. Em sua crítica ao juridismo teórico, ele imprime um olhar que 1. Parte
das categorias elaboradas pelos agentes para analisar as formas como eles
próprios concebem os arranjos de parentesco. 2. Compreende a importância das
cosmologias que orientam a construção da linguagem, das formas de
estabelecer relações e das formas de significar o mundo. 3. Demonstra a
importância de uma perspectiva feminista na antropologia. 4. Observa a
centralidade do papel das mulheres na construção da casa, da configuração de
casas, da família e da comunidade, especialmente no que tange a famílias
negras e trabalhadoras, que, pensadas diacronicamente atravessaram um
período de escravização e de privação de direitos no pós-abolição, processos
esses diretamente associados ao modo de produção capitalista, do seio da
modernidade/colonialidade. 5. Nota as múltiplas agências criadas nesse
contexto de opressão vivenciada na margem da sociedade moderna/colonial
como formas que aqui são interpretadas como meios de criar “condições de
resistência” e “possibilidade” (Kilomba, 2019).
Dessa forma, noto que o trabalho de Marcelin nos traz uma perspectiva
interseccional e pós-colonial, numa crítica à colonialidade pensada através de
diálogos teóricos formulados entre Caribe e Brasil. Sendo assim, suas bases
teóricas se tornam fundamentais para uma descolonização dos estudos de
parentesco. Em um de seus trabalhos, se concentra em traduzir o que seria a
“linguagem da casa” neste contexto (Marcelin, 1999), tomando como ponto de
partida a ideia de “Casa” e “Sociedade de Casas” de Lévi-Strauss, e levando
esses conceitos mais além ao lançar um olhar diacrônico, passando a considerar
a gênese da casa como algo fundamental.
Empreender um aprofundamento temporal em direção ao passado dá
condições de compreender as formas de fazimento de relacionalidades que se
delineiam e materializam no próprio processo de construção da casa. Isso
porque cada novo quarto, puxada, laje, banheiro, varanda, alicerce, está
intrinsecamente ligado às chegadas e partidas, aos nascimentos, casamentos,
adoções, negociações – a uma ampla gama de possíveis relações com parentes,
familiares, amigos e vizinhos, que se traduzem nessas construções e nos
fechamentos e aberturas de cercas, muros, portas e passagens.
Mais ainda, tanto a construção quanto os sentidos que regem os usos e
as formas de organização, cuidados e vivências na casa são “orientados por
preceitos cosmologicamente dados” (MARCELIN, 1999, p. 79), o que faz dela
uma entidade ao mesmo tempo material e imaterial que constrói e é construída
por práticas sociais e pela cultura, por isso mesmo ela se torna lugar de
centralidade de todo um sistema simbólico. Sendo assim, a casa é entendida
como “a materialização dos esforços de sujeitos (...), cuja arquitetura transcende
e expressa os esforços e processos construtivos de um grupo”. E a análise da
casa deve ser feita “considerando as condições culturais, étnicas, econômicas e
sócio-historicas produzidas a partir de contextos de dominação.” (SILVA, 2019,
p.99)
Tais casas são parte das “configurações de casas”, compostas por
aqueles que habitam unidades conectadas umas às outras através das relações
de intimidade, ajuda, cooperação, reconhecimento e respeito que estabelecem
entre si, ainda que estejam espacialmente distante umas das outras. Além disso
tomar a casa como uma entidade historicamente construída por uma coletividade
que se vê como família, na qual são depositados elementos de um “sistema de
sentidos” (MARCELIN, 1996, p. 80), faz com que ela seja algo que transcende a
materialidade e que expressa a compreensão cosmológica daqueles que a
habitam. Isso nos permite compreender que sua constituição física está
associada aos corpos daqueles que a habitam e que nela transitam. E o corpo
que melhor expressa o que é a casa dentro dessa cosmologia é o corpo da mãe.
Da casa da mãe são “puxados” os quartos e as casas dos filhos, que se espraiam
pelo quintal. A “casa da mãe” é a referência no mundo quando se deseja falar
desse lugar de origem, desse lugar onde se fincou as raízes. O enraizamento,
entre as famílias negras de Cachoeira visitadas por Louis Marcelin, é feito
justamente através desse ritual de se plantar o umbigo no chão do quintal. E nos
quintais que visitei, no bairro Jardim Belo Horizonte, também foram feitas alusões
a esse mesmo rito, ainda que com peculiares variações. O sentido do ato em
ambos os lugares é o mesmo: guarda-se ou enterra-se o umbigo do filho para
que ele nunca deixe de saber a qual lugar pertence, para que, mesmo que saia
pelo mundo, ele saiba para onde voltar.
Do Recôncavo Baiano ao Recôncavo da Guanabara*, enraizar-se é um
processo que se constitui desde o nascimento e passa por ter seu umbigo
enterrado no quintal da mãe, ou guardado por ela em um lugar sagrado da casa,
tal como uma caixa de fotografias da família, preciosidades acumuladas e
guardadas por gerações, segundo Marcelin, “O cordão umbilical une os iguais.
Ele constrói o irmão com a irmã, através da mãe. É pela mãe que o parentesco
entra no mundo (MARCELIN, 1996. p. 159)”.
O quintal é o lugar onde se enterra o umbigo, a placenta, os cabelos, os
panos com sangue, onde se planta a roça, as árvores, os axés e até mesmo a
própria casa. Aqui me importa ressaltar dois pontos; 1. o quintal como sendo o
“jardim da vida”, esse lugar de conexão cosmológica com a terra, onde se
plantam as árvores, as casas e os corpos; 2. esse papel atribuído às mulheres
nessa construção e perpetuação de laços familiares, sendo a mãe a base da
linhagem que constitui o parentesco. Isso nos leva a perceber que exista quase
naturalmente uma (con)fusão de seu corpo com a própria casa. Há referências
no modo de falar em que as pessoas ao dizerem que vão à casa da mãe, dizem
simplesmente “vou na mãe”, ou “lá na mãe”. Aquela casa subjetiva, que,
capturada pela linguagem, se confunde e integra com a imagem da mãe, é assim
própria mãe. Torna-se, dessa maneira o lugar de enraizamento, o terreno para
onde se pode sempre voltar, e saber ter para onde voltar, é necessário para se
poder andar, para poder partir. Dessa maneira a mulher, a mãe, a casa da mãe
são corpos construídos através do tempo, que materializam aqui um
entendimento do papel que o feminino conforma nessa cosmologia, se tornam
um ponto de referência no mundo, permitindo o exercício da liberdade. (ALVES,
Yara, 2018).

5. Poética da Resistência

Para Audre Lorde, poesia é iluminação, “é através da poesia que damos


nome àquelas ideias que – antes do poema – não têm nome nem forma, que
estão para nascer, mas já são sentidas.” Segundo ela “dentro de nós, mulheres,
existe um lugar sombrio onde cresce, oculto, e de onde emerge nosso verdadeiro
espírito” (Lorde, 2019. p. 46). Um lugar antigo, um lugar que sobreviveu nas
sombras e que abriga uma reserva de criatividade, emoções e poderes
ancestrais. Através da poesia, podemos encontrar formas de entrar em contato
com esse nível mais profundo e ancestral de nosso ser e dar início ao processo
de vislumbrar, dar nome e compreender nossos tesouros mais reservados. Por
isso mesmo, nas palavras da autora, para nós, mulheres, a poesia

“(...)cria o tipo de luz sob a qual baseamos nossas esperanças e


nossos sonhos de sobrevivência e mudança, primeiro como
linguagem, depois como ideia e então como ação mais tangível.
(...) Os horizontes mais longínquos das nossas esperanças e dos
nossos medos são pavimentados pelos nossos poemas,
esculpidos nas rochas que são nossas experiências diárias.”
(Lorde, 2019. p. 47)

É neste sentido que relembro aqui o poema de Conceição Evaristo, “Só


de Sol a minha casa”. O poema fala justamente da fresta através da qual
enxergamos um horizonte. Fala de brechas, e de olhar através delas, e assim
enxergar além do concreto e “prescutar em que lugar morava a esperança”.
Esperança como em Paulo Freire, que é feita de ação, que por sua vez está
relacionada ao uso da linguagem, bem como às necessidades de se transformar
a própria linguagem, a algo que pode ser observado em “Pedagogia da
Esperança” (1992) Nesta obra, ao revisitar “Pedagogia do Oprimido” (1971),
Freire atesta a importância de rever tom machista contido em seu próprio
discurso, e nesse argumento demonstra a relação entre a necessidade da
transformação da linguagem e a construção de um mundo novo, um mundo
“menos malvado”, que não seja pautado pelas construções colonialistas,
conforme o trecho que se segue. Portanto, falar de esperança, nos termos de
Freire, é tê-la como verbo, como ação, e não como espera. Esperançar é
imaginar novos caminhos para novas ações, e isso passa pela recriação da
linguagem, e, portanto, também pela recriação da cultura.
No poema de Conceição Evaristo, vemos uma mãe a exercitar a projeção
do desejo junto a suas filhas, através da imaginação de novos horizontes, de um
exercício de esperançamento. Ao lado disso, vemos que para Audre Lorde, a
poesia é ferramenta necessária nesse processo de recriação da linguagem, pois
é através dela que acontece a objetivação da subjetividade, a expressão e a
materialização da cosmologia – abrigo do nosso oculto, que guarda as imagens
ancestrais que habitam nosso inconsciente, que trazemos por gerações, em
nossos corpos e no seio de nossa cultura.
E quando falo de inconsciente aqui, estou trazendo a noção de Fanon
quando afirma que deve-se “conscientizar o inconsciente” e “agir no sentido de
uma mudança das estruturas sociais”, pois “o negro não deve mais ser colocado
diante desse dilema: branquear ou desaparecer, ele deve poder tomar
consciência de uma nova possibilidade de existir” (Fanon, 2008, p.95)
Sendo assim, podemos de um lado, relacionar a ideia de Freire, de que a
transformação da linguagem é uma forma de construir novos mundos à ideia de
Audre Lorde de que é necessário transformar o silêncio em linguagem e em ação
(Lorde, 2019 pág. 52), pois a possibilidade de verbalização do que habita nosso
oculto passa pela criação e a transformação da linguagem. De outro lado, com
Fanon podemos observar que é necessário descolonizar o inconsciente para que
seja possível formular linguagens e praticar ações que nos libertem das amarras
do colonialismo e do racismo. A linguagem, assim como a arte, que em Lorde
podemos ver como incorporadas na poesia, concatenam aquilo que está no
âmbito epistêmico e torna possível dar vazão às imagens, sensações e
sentimentos que nos habitam, e assim tais processos de recriação são
necessários, especialmente para aqueles que não se sentem contemplados no
universo criado através dos paradigmas coloniais. E de fato não o fazem porque
a linguagem do colonizador não foi nem é pensada para exprimir e concretizar
as dores que provoca nos colonizados, mas sim para que possamos agir em
conformidade com sua própria cultura. Daí a extrema e urgente necessidade
agir, de recriar horizontes e de traduzir as demandas históricas em novas formas
de linguajar a realidade.
Imaginar, criar “como ideia e então como ação mais tangível...”(Lorde,
2019, pág 47). Esculpimos nossos poemas nas rochas de nossas experiências
diárias, e nossos poemas vão além das palavras, são compostos de profundezas
que atiramos ao mundo, nesse sentido, eles são ações e podemos entendê-los
até mesmo como construções, ou ainda como práticas, como atitudes no sentido
de criar de maneiras autênticas e autônomas o nosso próprio devir. Nesse
sentido, algumas de nossas ações são poéticas, são poemas escritos na forma
de atos de resistência, que talvez passem desapercebidos justamente por se
tratar de ações de pessoas resistindo às opressões que atravessam a
normalidade dos dias.
São como as paredes de uma casa, erguidas, mantidas de pé, ainda que
aparentemente frágeis, talvez porque sejam ao mesmo tempo materiais e
imateriais. Estão ali se projetando imbuídas de sentimentos e linguagens que
vivem em nós, que brotam de nós, e que dessa forma, existem enquanto
existimos e que, ao olhar e ressignificar uma fresta, um buraco na parede, abre-
se caminho um para a esperança.
Ao compartilhar com as filhas esse olhar pela fissura como um olhar
através das barreiras da materialidade, um olhar banhado de fulminante
esperança, a ancestralidade de que somos abrigo nos ensina, como suas
herdeiras, a alimentar a poesia, a criar, inventar, transformar e transmutar –
através da linguagem e das tantas formas de ação que fazem da nossa vida um
poema. Nos ensina a transcender, a existir, a criar.
A poesia, assim colocada, e eu acrescentaria, a arte de maneira geral,
parece ser um caminho através do qual acessamos o que há de mais profundo
em nós - nossa subjetividade - e através da qual trazemos para a superfície, para
a zona de comunicação com o mundo objetivo, aqueles sentimentos ainda
inomináveis que nos compõem, que nos movem, que nos travam. Transformá-
los em palavras, símbolos, imagens, em estéticas – materializá-los, pois - é como
pegá-los na mão, transformá-los em ferramentas, em armas com as quais
podemos cavar novas frestas e abrir os caminhos necessários à construção de
devires, à construção de nossa autonomia, ao gozo de nossa liberdade, à criação
de nossa própria existência.
Talvez seja desse movimento que Grada Kilomba nos fala quando evoca
a escrita da margem,
“a margem não deve ser vista apenas como um espaço
periférico, um espaço de perda e privação, mas sim como um
espaço de resistência e possibilidade. A margem se configura
como um ‘espaço de abertura radical’ (hooks, 1989, 149) e
criatividade, onde novos discursos críticos se dão.” (Kilomba, 2019,
68)
E, conforme a autora nos alerta, poderíamos pensar que falar da margem
como lugar de possibilidade nos faria incorrer no perigo da romantização e da
idealização da opressão, da precariedade, da dor, mas ela nos lembra que,
segundo Bell Hooks, estar na margem é estar em um lugar complexo, é ocupar
dois lugares ao mesmo tempo, pois ali nos encontramos em posição de
repressão e de resistência, simultaneamente, e afinal a própria opressão nos
habilita a criar as nossas “condições de resistência” (KILOMBA, 2019, p.69)

6. A margem e o monstro

Daquele monstro de quatro cabeças e duas pernas de que fala Mignolo


(2017), me parece que aqueles que vivem na margem estão em contato
constante, com as três, simultaneamente. Desfrutam de sua presença ao
experienciar um complexo jogo de tensões. Vivem a modernidade, ainda que
não plenamente, pois a periferia, por definição, não pode ter acesso pleno ao
que a modernidade apresenta como ideal, uma vez que a periferia não é um
território geográfico, é antes um lugar existencial para onde as políticas públicas
do Estado Moderno não são direcionadas. Algo que se deve em grande medida
à colonialidade do poder e ao como a mesma se impõe na conjuntura que forma
o território periférico, que o transforma em um lugar para aqueles que são os
remanescentes, os descendentes, os frutos dos povos colonizados. E então
acabam por criar formas de resistência, assumindo assim, através de seus
“gritos de espanto”, uma “atitude decolonial” (MALDONADO-TORRES, 2016).
A decolonialidade pois pode até se apresentar como discurso, como ideia
consciente dos contextos de poder em que as pessoas estão inseridas, ou pode
não ser percebida assim. E mesmo nesse segundo caso, quando a opressão se
apresenta, a atitude de reagir, recusar. buscar e criar outras formas alternativas
de existência pode ser entendida como uma atitude decolonial, fundamental para
que haja uma decolonização da sociedade, pois esse processo deve atravessar
a existência de cada sujeito colonizado (MALDONADO-TORRES, 2016). E essa
não prescinde de teorias para acontecer, pois trata-se de, ao sentir como seu
próprio corpo experimenta o mundo, ao acumular nele tensões, ao introjetar suas
amarras, alguns fossem capazes de transcender o medo, a tristeza, a trava, e
reagir, seja argumentando, contando suas histórias ou agindo contra a lógica da
colonialidade e da modernidade que o tempo todo se impõem, criando novas
armas para lidar com velhos monstros, afinal “é o entendimento e o estudo da
própria marginalidade que criam a possibilidade de devir como um novo sujeito”
(KILOMBA, 2019, p. 69).

Conclusão
A história de Cristina pode nos levar a uma série de observações, a
tomada de decisão de não mais voltar lá, de abandonar seu primeiro emprego
“de carteira assinada”, só pôde ser tomada porque não pagava aluguel e porque
seu filho já estava criado, porque independente do quanto demorasse para ela
encontrar outra fonte de renda, não ficaria sem sua casa, o quintal da família era
seu para viver. Ela tinha ali seu porto seguro. Ao saber-se segura, Cristina não
se conteve a uma posição de subalternidade, nem no casamento, nem no
trabalho, que se mostraram dois lugares de ofensa. Em defesa de sua honra ela
volta para o quintal da familia, seu lugar de enraizamento.
A transformação que ela constrói em sua vida está profundamente
conectada ao desejo de não mais se encontrar em um lugar de silêncio, e
opressão. Neste sentido as lágrimas que verte ao chegar em casa, já são um ato
de verdadeira insubmissão. O direito ao quintal, àquela terra, lhe permitiu
confrontar as amarras do patriarcado, do racismo, da divisão do trabalho e criar
um lugar de exercício de liberdade, pois ali ela se sente segura.
Enfim, a ação protagonizada por Cristina pode ser entendida como uma
atitude decolonial, pois ao se inserir no mercado formal de trabalho, ela acredita
ter encontrado estabilidade, segurança, mas logo se depara com a concretude
da outra face da modernidade, a colonialidade. Diante da opressão, ela se
espanta e reage. Busca nas frestas de sua casa, de seu quintal, um horizonte de
resistência, um horizonte onde a segurança seja fornecida por estruturas
construídas com mecanismos autênticos de sua comunidade, a partir da logica
que rege a vida dos agentes daquele lugar, que tem seus alicerces
fundamentados nos laços construídos a partir de preceitos básicos, a
consideração e o respeito.

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