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Diálogo, participação e projetos de turismo com

comunidades em Unidades de Conservação na


Amazônia brasileira

São povos caracterizados: a) pela dependência da relação de simbiose entre a


natureza, os ciclos e os recursos naturais renováveis com os quais se constrói um
modo de vida; b) pelo conhecimento aprofundado da natureza e de seus ciclos,
fato que se reflete na elaboração de estratégias de uso e manejo dos recursos naturais
- conhecimento este, que é transmitido oralmente através das gerações; c) pela noção do
território ou espaço no qual o grupo social se reproduz econômica e socialmente;
pela moradia e ocupação do território por várias gerações, ainda que alguns
membros individuais possam ter-se deslocado para centros urbanos e voltado para
a terra de seus antepassados; d) pela importância das atividades de subsistência,
ainda que a produção de mercadorias possa estar mais ou menos desenvolvida, o
que implicaria uma relação com o mercado; e) pela reduzida acumulação de capital;
f) pela importância dada à unidade familiar, doméstica ou comunal e às relações de
parentesco ou compadrio para o exercício das atividades econômicas, sociais e
culturais; g) pela importância das simbologias, mitos e rituais associados à caça,
pesca e atividades extrativistas; h) pela tecnologia utilizada, que é
relativamente simples, causando impacto limitado sobre o meio ambiente - há
uma reduzida divisão técnica e social do trabalho, sobressaindo o artesanal, cujo
produtor e sua família dominam todo o processo até o produto final; i) pelo fraco
poder político, que em geral reside nos grupos de poder dos centros urbanos; j) e
pela auto-identificação e identificação por outros por pertencer a uma cultura distinta;
e l) ademais, destaca-se que um dos principais fatores determinantes para a
identificação das populações tradicionais (PTs) é a auto-identificação, o reconhecer-se
como pertencente aquele grupo social específico, diferenciado de acordo
com as características já apresentadas anteriormente (DIEGUES; ARRUDA, 2001).

Mesmo com toda intrínseca relação com a natureza do seu lugar, esse artigo
não defende esses povos romanticamente como os representantes do “mito
do bom selvagem ecológico” (REDFORD; STEARMAN, 1991, 1993, apud
CUNHA; ALMEIDA, 2009, p.287). Como garantem Cunha e Almeida (2009), o
ambientalismo pode ser considerado uma ideologia com práticas definidas, mas
não são todos os povos que, deliberadamente, escolhem e agem a partir dessa
ideologia. As PTs possuem práticas culturais adequadas à conservação
ambiental independente de terem uma ideologia ambientalista.

Diálogo e participação em Unidades de Conservação

A participação das comunidades e demais atores na vida das UCs é um processo


complexo de construção contínua e necessidade de atenção à sua qualidade (SANTOS,
2005:177). Caso contrário, ocorrendo de modo pontual, apenas pela
obrigatoriedade legal, sem o devido zelo, perdem-se oportunidades de ampliação e
fortalecimento das relações e do diálogo entre os atores - fato que é fundamental
para tomadas de decisões coerentes e convergentes à qualidade socioambiental
da área a ser protegida, assim como de desenvolvimento político e
crítico das comunidades.

Os momentos de participação nas UCs, mesmo que legalmente impostos, acabam


se tornando espaços formativos de cidadãos, os quais, podem aproveitar deles para
se autodesenvolverem e atuarem de modo consciente e responsável diante do bem
natural e sociocultural, dependendo da categoria de UC que foram destinados a
cuidar. O desafio do fortalecimento dos espaços públicos implica, ainda, em
considerar aspectos problemáticos como a necessidade de superação das
desigualdades de poder entre diferentes atores que participam dessa esfera (SANTOS,
2005, p.67).

Atualmente aumentou-se o número de cidades na Amazônia, e com isso as cidades que


geralmente ficam na beira dos rios ficaram cada vez menores. As pequenas cidades da
Amazônia têm se modificado, tornando-se mais industrializadas.
Recursos comuns indígenas ou conservação global na
Amazônia? O Monte Roraima entre Parque Nacional e
Terra Indígena Raposa-Serra do Sol.
Nosso estudo de caso, como outros no Brasil, mostra os conflitos existentes entre
políticas de conservação da natureza e direitos à diferença cultural de grupos humanos
que, como os povos indígenas, muitas vezes dependem diretamente da apropriação e do
uso da natureza, não só por sua sobrevivência física, mas também para sua identidade
cultural e sua autodeterminação social. O contexto no qual estas questões são hoje
levantadas no Brasil tem pelo menos duas especificidades.

A perspectiva de conservação dos próprios índios pode e deve ser integrada no plano :
pois eles dependem, em sua cultura e estilo de vida, do ambiente natural onde vivem,
eles têm um interesse direto em usa-lo de maneira sustentável, e em preserva-lo para
seus filhos e netos.

Práticas de manejo eficazes e viáveis são parte da cultura indígena. O primeiro concerne
a localização e as regras associadas à caça. A área classificada como zona intangível no
Plano de Manejo do Parque, que corresponde à região do alto Rio Uailã, representa uma
reserva de caça para os indígenas da região. O segundo exemplo é o papel das práticas
agrícolas indígenas em preservar a floresta. Os Ingarikó mostram ter consciência da
interação entre suas práticas de plantio por derrubada e queimada e a preservação da
floresta. Após ter limpado a mata, uma área de roça é utilizada durante 4 ou 5 anos antes
de ser deixada de lado por 7 a 10 anos antes que seja possivelmente reutilizada

Descendo no campo, o estudo de caso do Monte Roraima mostra a existência de regras


e estratégias conscientes e deliberadas adotadas por povos indígenas para usar seus
recursos naturais de forma sustentável. O campo nos mostra também como uma
abordagem pode ser desenvolvida para juntar um empowerment baseado na propriedade
comum com a conservação da diversidade cultural e biológica, rumo a um futuro
comum sustentável.

POPULAÇÕES RIBEIRINHAS DA AMAZÔNIA E


PRESERVAÇÃO DA CULTURA TRADICIONAL – DILEMAS
EM UMA SOCIEDADE GLOBALIZADA
Segundo o Sistema Nacional de Unidades de Conservação da Natureza (SNUC), as
Reservas Extrativistas (RESEX)1 são áreas utilizadas por populações extrativistas
tradicionais, que vivem da agricultura de subsistência, da criação de animais de pequeno
porte e da extração de recursos naturais da floresta; o objetivo principal dessas unidades
de conservação é a proteção da cultura e das formas de vida dessas populações, além
dos recursos naturais existentes na área. (LEI Nº 9.985, de 18 de Julho de 2000, Art.
18º, p. 7). De acordo com Osmarino Amâncio (2004), militante notório nas lutas pela
criação dessas áreas protegidas, os seringueiros, que não tinham tradição de
coletividade, muito pelo isolamento em que viviam na floresta, começaram a organizar-
se como movimento social num momento de luta por sobrevivência e manutenção de
seus modos de vida. Para ele, se hoje muito se fala de desenvolvimento sustentável, essa
prática já era comum entre os índios e os seringueiros há muitos anos.

Sobre a A Terra do Meio, área remanescente dos “soldados da borracha”. Os recursos


naturais da floresta possuem usos distintos entre os ribeirinhos habitantes da RESEX4 .
Para alguns a pesca, assim como a agricultura, é utilizada somente como subsistência,
ao passo que para outros é também fonte de renda. O mesmo ocorre com outros
produtos como mel, ervas medicinais, frutos comestíveis e frutos dos quais se extraem
óleos (copaíba, andiroba, patauá e babaçu). A madeira é utilizada, em geral, para a
construção de casas ou canoas e lenha para cozinhar. A caça é realizada somente para
alimentação (SALAZAR, et. al. 2008, p.27).
Faz-se necessário um modelo escolar que respeite as formas de vida tradicionais e os
saberes essenciais para sua reprodução cultural, social, religiosa e ancestral, o qual
somente pode partir da própria comunidade que se educa.

Nas últimas décadas, o grupo começou entretanto a se rearticular, com a mobilização de


suas lideranças e a promoção de reuniões coletivas que permitiram a agilização do
processo de reafirmação da identidade étnica e a reconstrução da coesão da tribo.

As estratégias utilizadas pelas comunidades para viabilizar avanços político-territoriais


e socioculturais têm compreendido: a realização periódica de assembléias; a capacitação
de índios como agentes capazes de assumir funções no front político ou de exercer
cargos técnico-profissionais no cotidiano das aldeias; a consolidação de organismos de
natureza associativa- entre os índios do Alto Rio Negro (46 organizações) e Roraima
(18 organizações), particularmente; o bloqueio de estradas e pontes; a utilização de
instrumentos jurídicos para a resolução de disputas, garantindo direitos territoriais.

Materializando saberes imateriais:experiências indígenas


na Amazônia Oriental
Em acordo com sua própria tradição, a maior parte das expressões culturais e saberes
praticados pelos Wajãpi, como os grafismos, não lhes pertencem, nem são criações
deles, Wajãpi. Voltarei a esse ponto. São elementos que pertencem a outros e foram
literalmente capturados ou resultam de fluxos complexos de intercâmbio. Aliás, como
se verá, são saberes e práticas que não poderiam, logicamente, ser nem deles, nem de
outros grupos. Não só porque são produto das redes de troca entre humanos e
sobrenaturais, como porque são gerados e apenas expressados no âmbito desse sistema
de trocas, entre pessoas, entre grupos, entre humanos e não humanos.

“Posso matar tucanos, o pajé liberou. Ele disse que o dono dos tucanos vai liberá-los de
novo”. É difícil, mas a transposição da idéia de controle, relacionada à de direito de uso
exclusivo dos recursos “naturais”, está em processo. Ainda é difícil, contudo, para os
Wajãpi e os outros grupos indígenas, entender por exemplo que “terras indígenas
possuem funções ambientais”, ou seja, que tanto a terra demarcada como seus
habitantes devem ter por vocação a conservação ambiental.
Catadoras de caranguejo e saberes tradicionais na
conservação de manguezais da Amazônia brasileira
A mulher é um indivíduo de extrema importância na questão ambiental por estar
extremamente ligada ao manejo de recursos vitais para o grupo doméstico do qual faz
parte.1 Esses recursos ambientais (hídricos, agrícolas e silvícolas) são de uma
abrangência ímpar e dizem respeito tanto às plantas medicinais e às utilizadas na
alimentação quanto à forma como são controladas em sua utilização pela mulher.

Cabem a elas as atividades ligadas aos cuidados com a saúde dos membros da família,
cuidado com a criação de animais em seus quintais, com a roça, transporte de água,
lenha e de produtos dos roçados, dentre outras. Muitos desses fazeres se encontram
intimamente relacionados ao ambiente em que vivem, o que é mediatizado por suas
próprias culturas e sociedades. Apesar de as mulheres desenvolverem múltiplas tarefas,
o trabalho feminino é invisibilizado e considerado de menor relevância para a sociedade
a que pertencem. 

O conhecimento tradicional que as mulheres possuem sobre seu ambiente é essencial


para preservação das espécies, principalmente em países cuja economia depende de
recursos biológicos. Segundo Woortmann,7 à mulher cabe a socialização através da
aprendizagem de saberes ligados ao cultivo da terra e aos cuidados da casa. Mesmo
assim, e em especial quando se trata da Amazônia, muito pouco tem sido feito pelo
Estado, agências financiadoras, organizações não-governamentais (ONGs) e pelas
próprias populações tradicionais, no sentido de utilizar esses saberes no
desenvolvimento local e sustentável.8 Nessa perspectiva, a relação entre mulheres,
gênero, meio ambiente e desenvolvimento é não só permanente como muito estreita.

As mulheres catadoras de caranguejo não têm o reconhecimento da importância de seu


trabalho, nem tampouco são reconhecidos pelo poder público os seus saberes
tradicionais na conservação de manguezais. Consequentemente, as ações
governamentais ligadas ao desenvolvimento da região norte do estado do Pará carecem
de participação dessas mulheres na formulação de uma agenda que inclua os seus
saberes sobre manejo menos impactante.

Embora haja reconhecimento de que a intensidade crescente da coleta de caranguejo


trará impactos a suas vidas, essas mulheres convivem com a reduzida consideração de
seu trabalho e de seus saberes tradicionais sobre as atividades ligadas às dinâmicas dos
manguezais.

Ecologia global contra diversidade cultural?


Conservação da natureza e povos indígenas no Brasil.
O Monte Roraima entre Parque Nacional e terra
indígena Raposa-Serra do Sol
Na terceira década de um conflito entre, de um lado, organizações indígenas apoiadas
pela Igreja Católica através do seu Conselho Indigenista Missionário (CIMI),e
movimentos e organizações pró-indígenas brasileiras e internacionais, e, do outro lado,
''brancos'' locais, latifundiários e fazendeiros, criadores de gado, agricultores e
garimpeiros, além de outros atores políticos e econômicos apoiados pelo Governo do
Estado de Roraima, a Terra Indígena Raposa-Serra do Sol está agora aguardando seu
decreto de homologação. O Estado de Roraima tem apelado à Justiça contra a
demarcação da Raposa-Serra do Sol, e está exercendo uma pressão política forte e
explícita sobre o governo federal na tentativa de quebrar a área contínua e reduzir a área
da terra indígena demarcada.

Como em muitos outros casos de conflito entre áreas protegidas e populações locais no
Brasil e no mundo, nosso estudo levanta a questão da pertinência de políticas fundadas
na implementação de cima para baixo (top-down) de modelos técnicos baseados na
exclusão do homem para promover a conservação da natureza, mesmo em realidades
como a Amazônia, que raramente correspondem às representações normativas
amplamente difundidas da natureza como espaço livre do homem.

Outra questão levantada é a dos conflitos existentes ou possíveis entre políticas de


conservação da natureza e direito à diferença cultural de grupos humanos que, como os
povos indígenas, muitas vezes dependem diretamente da apropriação e do uso da
natureza, não só por sua sobrevivência física, mas também para sua identidade cultural e
sua autodeterminação social.

o 6º parágrafo do artigo 231 da Constituição declara como nulo qualquer ato ou fato
visando a posse, propriedade ou exploração de recursos naturais do solo, dos rios e
lagos, existentes nas terras tradicionalmente ocupadas pelos índios. 
Sobre a presença de parques ecológicos dentro de reservas indígenas - ''Eu sou de aqui,
eu vou longe para caçar. Eu não tenho animais em cercado como o branco: ele tem seus
animais criados perto. O índio não tem criações perto: ele precisa ir longe e caçar para
sobreviver. (...) o Parque não vai deixar os índios caçar: se matar um porco do mato eles
vão nos prender. (...) Não quero casas de outras pessoas nesta área. Não quero brancos
aqui porque não aceitam o que fazemos para sobreviver: roças, derrubar árvores,
queimadas, caça, etc. Não aceito o Parque Nacional do Monte Roraima'' (Orsivaldo,
Mapaé).

''Não aceito a proposta do IBAMA. Eu sou daqui, mas ando muito longe para caçar, até
na área dos Patamona e na Guiana. Para que isto? (mostrando a demarcação do Parque)
Cercaram a minha área! Quem é dono aqui, sou eu! Aqui é onde eu caço, em todos estes
cantos! Se cercar estas áreas, por onde eu vou caçar? Eu atravesso esta área toda num
dia só! Eu quero uma área grande porque se não acho caça ou pesca por aqui preciso ir
para outro canto. Também quando precisar, eu desço na área dos parentes Macuxi, no
São Mateus, para pescar peixes grandes que não tem por aqui'' (Ermilindo, Serra do Sol
I).

''Nesta área de floresta eu faço minhas roças. A área toda esta ocupada: eu faço a roça
em vários locais porque fazendo a roça num local só acaba transformando a floresta em
campo. Eu não quero isto. Eu faço a roça num local, e depois de um tempo mudo de
local, assim a floresta vive. É assim que nós estamos cuidando dela'' (Aulida, Manalai).

''Esta área (indicando no mapa a região do alto rio Uailã, área intangível no zoneamento
do Parque) é para nossas roças e para os homens caçarem, viajarem, festejarem... Ela já
está preservada assim por nós. É a área melhor, a mais rica de caça da região porque nós
Ingarikó decidimos de não fazer casas, de não morar lá dentro. Nós deixamos esta área
para os animais se reproduzirem, para nosso uso de caça. Nós temos as nossas casas em
volta desta área e não queremos que nada mude'' (Gelita, Manalai).

Sobre a metodologia, parece-nos que uma definição dos objetivos da conservação, que
parta da perspectiva cultural e dos objetivos sociais dos próprios índios dentro de seu
atual relacionamento com a natureza, seja a chave da viabilidade e do sucesso de
qualquer plano de manejo. A perspectiva de conservação dos próprios índios pode e
deve ser integrada no plano, pois os Ingarikós dependem, por sua cultura e estilo de
vida, do ambiente natural onde vivem, têm um interesse direto em usá-lo de maneira
sustentável, e em preservá-lo para seus filhos e netos.

A descrição dos indígenas também fornece os primeiros elementos para entender suas
regras de manejo da área. Trata-se de uma área onde eles escolheram deliberadamente
não construir suas aldeias, deixando-a para a vida e reprodução da caça, sendo isto,
provavelmente ao mesmo tempo, a causa e a conseqüência de sua abundância relativa.
Porém, esta escolha não significa que a área não seja explorada: ao contrário, ela é sua
principal área de caça.

Em geral, a descrição e a denominação indígena das áreas e de seus componentes


naturais revelam índices de um conhecimento ecológico profundo e detalhado, que não
se limita às espécies animais e vegetais diretamente utilizadas. É muito provável que os
modelos efetivos de caça Ingarikó respondam a um conjunto complexo de regras que
definem não só áreas de caça especializadas, mas também períodos para espécies
diferentes em áreas diferentes, dentro de um modelo não necessariamente estático no
tempo e/ou no espaço, provavelmente mesclado com rituais religiosos e/ou culturais,
assim como com as flutuações naturais de abundância e escassez relativa.

Os Ingarikós demonstram ter consciência da interação entre suas práticas de plantio por
derrubada e queimada e a preservação da floresta. Após a limpeza da mata, uma área de
roça é utilizada durante 4 ou 5 anos e depois deixada de lado por um período de 7 a 10
anos antes que possa ser reutilizada. Esta parece ser uma estratégia de rotação
consciente e deliberada, cujo objetivo é o de «evitar que a floresta vire campo». O estilo
de vida e a cultura Ingarikós dependem da riqueza e diversidade de recursos que a
floresta oferece, e eles querem preservá-la.

Comercialização ilegal de carne de animais


silvestres em feiras livres de algumas
cidades do Estado do Amazonas (Brasil)

Pelo exposto, percebeu-se que não somente a população tradicional da Amazônia


tem o hábito de caçar, com também estrangeiros, sempre tiverem essa atividade
como lazer. É mais barato comprar a carne do animal silvestre que a de gado. Acham
divertido caçar.
Estrutura ou sentimento: a relação com o
animal na Amazônia
Os Achuar estabelecem certas distinções entre as entidades que povoam o mundo.
A decorrente hierarquia dos objetos animados e inanimados não é, contudo,
fundada sobre graus de perfeição do ser, sobre diferenças de aparência, ou sobre
uma acumulação progressiva de propriedades intrínsecas. Ela se baseia na variação
dos modos de comunicação, a qual é autorizada pela apreensão de qualidades
sensíveis desigualmente distribuídas. Na medida em que a categoria das "pessoas"
engloba espíritos, plantas e animais, todos dotados de uma alma, essa cosmologia
não diferencia os humanos e os não-humanos; ela somente introduz uma escala de
ordenação segundo os níveis de troca de informação tidos como possíveis. 

Assim, os humanos podem ver as plantas e os animais que, quando possuem uma
alma, são supostos perceberem os humanos; mas se os Achuar falam com eles
graças aos encantamentos anent, não obtêm resposta senão por ocasião dos
sonhos. Sucede o mesmo com os espíritos e com alguns heróis da mitologia:
atentos ao que lhes dizem, e geralmente invisíveis em sua forma primeira, só
podem ser apreendidos em toda a sua plenitude no curso dos sonhos e transes
induzidos pelos alucinógenos.

 O nível mais baixo da integração social é ocupado pelos solitários: os


espíritos iwianch, encarnações das almas dos mortos que vagam abandonadas na
floresta, ou então os grandes predadores como o jaguar ou a sucuri. Entretanto,
por mais distanciados das leis da civilidade que possam estar, todos esses seres
solitários são auxiliares dos xamãs, que os empregam para disseminar o infortúnio
ou combater seus inimigos.

A morte dos animais e sua preparação não é dissimulada em recintos afastados da


visão dos profanos, como ocorre entre nós atualmente, e todo mundo na Amazônia
é familiarizado desde a mais tenra idade com aqueles corpos ainda quentes que se
vão esfolar, estripar e cortar para cozinhar.

Certamente os povos da região obedecem de antemão a uma ética da caça  não


matar mais animais além do necessário, comportar-se com respeito para com a
caça, não fazê-la sofrer à toa etc. Vários deles oferecem ainda contrapartidas
rituais aos animais ou aos espíritos que os representam na forma de ofertas de
tabaco, comida ou mesmo almas. Entretanto, em um universo cultural em que a
reciprocidade seria um valor cardinal, tais dispositivos não chegariam a suprimir
completamente o "mal-estar conceitual" que o caçador experimentaria diante da
retirada unilateral de uma vida. Daí a função de justificação da criação de animais:
acolhendo os órfãos, não poupando esforços para garantir-lhes os cuidados
necessários à sobrevivência, os índios anulariam o ato de violência que essa adoção
torna necessário.

Representar os animais caçados como afins não tem nada de surpreendente no


contexto amazônico. A predominância, aí, do cognatismo e dos sistemas de
parentesco de tipo dravidiano tem como efeito a redução do registro das categorias
sociais a uma grande dicotomia organizada em torno do eixo que separa a
consangüinidade da afinidade. Dada a diversidade das situações em que devem ser
empregadas, essas duas categorias se tornam operadores lógicos relativamente
abstratos que permitem denotar relações mais englobantes do que aquelas que
definem os laços de consangüinidade e afinidade efetivamente atestados no seio do
grupo local. Seria previsível que essa categoria genérica da afinidade servisse de
molde mental para a conceituação da relação com a caça, assim como seria
previsível que os animais de estimação fossem considerados antes como
consangüíneos, a exemplo dos filhos dos inimigos raptados para serem integrados à
família do homicida de seus pais. O animal de caça apresenta-se assim na
Amazônia, seja como um alter ego em posição de exterioridade quando é caçado,
seja como demasiado idêntico a si para ser comido quando domesticado.

O modelo da predação é particularmente manifesto no caso das tribos Jívaro, que


não oferecem nenhuma compensação pela vida da caça. Certamente, às vezes
acontece que os excessos sejam punidos: os Senhores dos Animais podem aplicar
represálias  sob a forma de picadas de cobra ou acidentes provocados na
floresta  àqueles que teriam violado as regras de respeito e moderação relativas à
atividade de caça; mas não se trata em absoluto de um processo regular de troca
voluntária fundado sobre uma paridade dos parceiros. Diferentemente dos Tukano,
aqui nenhuma idéia de circulação de energia vem conferir uma aparência de
eqüidade a essa atitude predatória para com os animais de caça, dissimulada sem
precauções excessivas por trás de uma simbólica da aliança na qual uma das partes
jamais honra suas obrigações.

A exogamia lingüística e a rede de circulação dos artefatos geram uma situação na


qual cada tribo, cada grupo local, se percebe como um elemento no seio de um
metassistema regional, elemento que deve sua perenidade material e ideal às
trocas regradas com as outras partes do todo (Jackson 1983; Hugh-Jones 1993).
Inversamente, nos grupos Jívaro, o estado de guerra generalizado exprime a
necessidade de compensar cada morte pela captura junto a outrem de identidades
reais  o rapto de mulheres e crianças  ou virtuais  as cabeças-troféus, peças
centrais de um dispositivo ritual de produção de filhos (Taylor 1993; Descola
1993b).  Certamente, a obrigação da vingança acaba por restaurar o equilíbrio; no
entanto, compreender-se-á sem dificuldade que as represálias dos inimigos sejam
uma conseqüência prevista, mas não ativamente procurada, dos atos de violência
cometidos contra eles. A predação mútua é assim um resultado não intencional de
uma rejeição geral da reciprocidade, mais do que uma troca deliberada de vidas
humanas através de um comércio belicoso.

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