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Introdução
A questão ambiental nos últimos anos tem adquirido cada vez mais visibilidade,
principalmente em relação aos cenários delineados por especialistas em torno das
consequências climáticas da intensa atividade humana na sociedade industrial. Cenários
de grandes estiagens, catástrofes provocadas por excesso de chuvas, redução da
produtividade agrícola, entre outros, são temas frequentemente abordados nos meios de
comunicação.
Se por um lado essa preocupação provoca nas populações urbanas de classe
média algumas alterações na rotina doméstica, por outro não cessam as pressões
econômicas pela implantação de grandes empreendimentos de alto impacto em recursos
hídricos, remanescentes florestais e em comunidades locais. Em reposta, tais
comunidades, após intenso processo de organização e luta, passam a oferecer pistas para
a superação dos problemas ambientais vindouros. Nesse contexto merece atenção
especial as áreas secas, tanto para o aprendizado de estratégias de sobrevivência,
convivência e produção quanto para o reconhecimento e conferencia de direitos para a
sua população.
O semiárido mineiro, que compreende a região Norte de minas gerais e o Vale
do Jequitinhonha, foi tradicionalmente ocupado por comunidades com produção
agrícola intensa e diversa. Segundo Bustamante (2007), foram encontrados indícios de
plantio e consumo de vegetais, datados de mais de 4.500 anos – desde pinturas rupestres
a restos de vegetais – que vão de frutos nativos da região a espécies de cereais
encontradas na América Central. Dayrell e Vieira (2014) citam documentos de
naturalistas que identificaram o cultivo de diversas variedades de milho e mandioca nos
vales do São Francisco e Jequitinhonha, no século XVII. Utilizando dados do IBGE,
Bustamante (2007) reforça que até meados da década de 1950 a produção agrícola era
bastante diversa.
Em fins da década de 1960, como parte dos grandes projetos econômicos da
ditadura militar, a região passou a ser ocupada por extensas áreas de monocultura de
eucalipto e pinus, entre outras monoculturas comerciais, expulsando comunidades
inteiras de suas terras, que acabaram por se deslocar para áreas menos produtivas ou
beiras de cursos d’água (Dayrell 2011; Bustamante, 2007).
Esta política, que desconsiderava os pequenos agricultores em detrimento das
grandes fazendas monocultoras, resultou em intenso êxodo rural e pauperização das
comunidades rurais. Essas comunidades passam então a se organizar politicamente em
torno de movimentos sociais, como o MST, e de organizações como Comissão Pastoral
da Terra e o Centro de Agricultura Alternativa do Norte Mineiro (CAA NM) a
Federação dos Trabalhadores Rurais de Minas Gerais (FETAEMG), entre outros, em
busca de garantirem direitos e se protegerem de violações sofridas por processos ilegais
de desapropriação de terras em favorecimento de grandes fazendeiros e empresas, bem
como de ações violenta por parte desses grandes proprietários no silenciamento das
lutas (Dayrell, 2011).
Mas segundo Dayrell e Vieira (2014), mesmo com a enorme pressão de
fazendeiros e empresários, e com o modelo de assistência técnica que fomentava a
aplicação das tecnologias da Revolução Verde, comunidades rurais, em toda sua
diversidade – geraizeiros, vazanteiros, quilombolas, indígenas, coletores de sempre-
vivas, entre outros –, resistiram a esse processo e resguardaram o uso de cultivos
tradicionais de diversas variedades vegetais, bem como seus sistemas de plantio e
manejo de recursos naturais.
Monteiro et all (2014) destacam que essa região é uma das mais densamente
povoadas por agricultores familiares, e de menor Índice de Desenvolvimento Humano
de Minas Gerais, mas que ainda mantém grande diversidade produtiva, tanto vegetal,
quanto animal, além da atividade extrativista.
No contexto da Constituição de 1988, comunidades que se esconderam nas
grotas e chapadas do interior para se defenderem da expropriação territorial ressurgem
direcionando suas lutas na garantia de demarcação de terras quilombolas e de uso
tradicional (idem).
E com o debate da questão ambiental tomando maior visibilidade, redirecionam
o sentido de sua luta, tal como descrito por Dayrell (2011):
Uma das características comuns dessas lutas é que suas estratégias de ação
não são somente reação à expropriação. Ao mesmo tempo em que lutam para
sobreviver em contextos cada vez mais asfixiantes e marcados por graves
violações de direitos sociais e de apropriação de recursos dos territórios
procuram construir caminhos sólidos para a promoção do desenvolvimento
rural em bases sustentáveis. (p.13)
A bandeira da cultura
Cunha (2009) identifica nos movimentos de resistência de comunidades uma
apropriação por parte dos povos tradicionais do termo “cultura” 1 como bandeira de luta,
1
Manuela Carneiro da Cunha diferencia o termo cultura – referindo-se ao termo como é
amplamente discutido na academia – do termo “cultura”, relacionado às unidades de um
sistema inter-étnico. Citando Lionel Trilling, define cultura como “um complexo unitário de
prossupostos, modos de pensamento, hábitos e estilos que interagem entre si, conectados por
caminhos secretos e explícitos com os arranjos práticos de uma sociedade”. E descreve
“cultura” como uma metalinguagem: “uma noção reflexiva que de certo modo fala de si
mesma” (CUNHA, 2009).
embora na academia, especificamente na antropologia, o termo cultura tenha saído de
cena. Segundo a autora, no debate em torno da biodiversidade e da soberania,
fortaleceu-se o argumento de que os indígenas e povos tradicionais não podem ser
excluídos de algo que só subsistiu por causa deles, porque a biodiversidade é
intrinsecamente ligada ao “conhecimento ecológico tradicional”. Povos tradicionais se
apropriaram de formulações que associam as práticas ancestrais de cultivo e manejo de
recursos naturais ao aumento da diversidade agrícola (idem).
Em sintonia com a argumentação de Cunha, Sahlins (1997a) coloca que esse
tipo de autoconsciência cultural é característico de um fenômeno cultural do fim do
século XX:
Segundo ele não se deve atribuir tal fato à ação de antropólogos ou semelhantes.
Mas sim ao contexto de ameaças sofridas dos modos de vida tradicionais em relação às
forças de dominação política e econômica (SAHLINS, 1997a).
Sahlins (1997b) também questiona o conceito de cultura de certas correntes da
antropologia, muitas vezes associado à diferença levando a relações de submissão. A
essa ideia opões diversos casos em que a cultura e suas releituras se conformam
exatamente como forma de resistência a um modo de pensar a agir global (uma cultura
universalizante) ligado à dominação política e econômica.
Assim, no contexto de debate em torno de direitos humanos e ambientais, as
comunidades do semiárido mineiro encontraram uma conjuntura favorável à
reafirmação de seu modo de vida como importante argumento em defesa de seus
interesses: o acesso a terra, à assistência técnica, investimentos e mercados.
Em sua relação com instituições de apoio, passam a demandar formas de
legitimação de seus conhecimentos, bem como ferramentas de análise e aprimoramento
de práticas para melhorarem suas condições de vida. E refletindo uma tendência
europeia, passam a reforçar, pela diferença e pela ancestralidade, o direito à autonomia
de controle de seu patrimônio – constituído não só de valores e práticas atualmente tidos
como sustentáveis, mas também de variedades genéticas de grande valor comercial –
tomando para si o termo guardiões da agrobiodiversidade.
Sistema de oposições
2
Para Bourdieu (1989) o campo corresponde a um mundo social, dotado de concentrações de
poder e capital, conflitos e relações de forças que configuram estruturas e disposições. Os campos
“orbitam” como em um “microcosmos”, podendo haver interseções. Cada campo possui suas regras e
símbolos próprios cabendo aos sujeitos atentarem às “formas específicas de interesse, energia, pulsão e
invertimento” que orientam as “lutas pela conquista das moedas correntes em cada um deles”
(Bourdieu, 1989).
as revalidam com base em argumentos científicos e trabalham em conjunto com
comunidades levantando estratégias conjuntas de fortalecimento de sue modo de vida.
No campo político há o embate com grandes empresas produtoras de sementes
transgênicas, em que é de extrema importância a validação dos guardiões como gestores
de suas sementes e variedades adaptadas ao estresse hídrico, por exemplo. Nesse
campo, uma das frentes é a luta por políticas públicas específicas ao suporte de casas de
sementes comunitárias, garantindo a acesso coletivo ao patrimônio tradicional, evitando
o armazenamento de cultivares em bancos de germoplasma privados, ex situ, cujos
recursos se transformam em mercadoria. Nesse cenário é importante a conformação de
estratégias organização e luta articuladas a setores parceiros em suas diversas
dimensões, como se deu na constituição de uma Rede de Guardiões e Guardiãs da
Agrobiodiversidade do Semiárido Mineiro.
Dayrell (2011) trata do caráter inovador das ações dos povos tradicionais, no uso
de sua “cultura” quando interligada a conhecimentos científicos apropriados e
ressignificados:
Referências Bibliográficas
BOURDIEU, Pierre. O Poder Simbólico. 11ª Ed. Rio de Janeiro. Bertrand Brasil, 1989.
311 p.
BUSTAMANTE, Patrícia. G.; CORREIA, João R.; LIMA, Isabela L. P.; CAVECHIA,
Laura A. Recursos genéticos utilizados para alimentação pelas famílias dos agricultores
da comunidade Água Boa 2, no município de Rio Pardo de Minas, MG. In:
CONGRESSO BRASILEIRO DE SISTEMAS DE PRODUÇÃO, 7, 2007, Fortaleza.
Agricultura familiar, políticas públicas e inclusão social. Fortaleza: Embrapa
Agroindústria Tropical, 2007. 1 CD-ROM.
CUNHA, Manuela C. Cultura com Aspas e outros ensaios. Cosac Naify 2009
DAYRELL, Carlos A. Rebeldia nos Sertões. In: Agriculturas. ano 8. vol 4. dez/2011.
p. 9-14