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UNIVERSIDADE FEDERAL DOS VALES DO JEQUITINHONHA E MUCURI

PRÓ-REITORIA DE DE PESQUISA E PÓS-GRADUAÇÃO


FACULDADE INTERDISCIPLINAR DE HUMANIDADES
MESTRADO PROFISSIONAL INTERDISCIPLINAS EM CIÊNCIAS HUMANAS
Disciplina Cultura e Práticas Culturais – ICH 521

Professor: André Luis Borges Matos

GUARDIÕES DA AGROBIODIVERSIDADE DO SEMIÁRIDO MINEIRO: TRADIÇÃO,


CULTURA E LUTA

Carolina Vanetti Ansani

Introdução

A questão ambiental nos últimos anos tem adquirido cada vez mais visibilidade,
principalmente em relação aos cenários delineados por especialistas em torno das
consequências climáticas da intensa atividade humana na sociedade industrial. Cenários
de grandes estiagens, catástrofes provocadas por excesso de chuvas, redução da
produtividade agrícola, entre outros, são temas frequentemente abordados nos meios de
comunicação.
Se por um lado essa preocupação provoca nas populações urbanas de classe
média algumas alterações na rotina doméstica, por outro não cessam as pressões
econômicas pela implantação de grandes empreendimentos de alto impacto em recursos
hídricos, remanescentes florestais e em comunidades locais. Em reposta, tais
comunidades, após intenso processo de organização e luta, passam a oferecer pistas para
a superação dos problemas ambientais vindouros. Nesse contexto merece atenção
especial as áreas secas, tanto para o aprendizado de estratégias de sobrevivência,
convivência e produção quanto para o reconhecimento e conferencia de direitos para a
sua população.
O semiárido mineiro, que compreende a região Norte de minas gerais e o Vale
do Jequitinhonha, foi tradicionalmente ocupado por comunidades com produção
agrícola intensa e diversa. Segundo Bustamante (2007), foram encontrados indícios de
plantio e consumo de vegetais, datados de mais de 4.500 anos – desde pinturas rupestres
a restos de vegetais – que vão de frutos nativos da região a espécies de cereais
encontradas na América Central. Dayrell e Vieira (2014) citam documentos de
naturalistas que identificaram o cultivo de diversas variedades de milho e mandioca nos
vales do São Francisco e Jequitinhonha, no século XVII. Utilizando dados do IBGE,
Bustamante (2007) reforça que até meados da década de 1950 a produção agrícola era
bastante diversa.
Em fins da década de 1960, como parte dos grandes projetos econômicos da
ditadura militar, a região passou a ser ocupada por extensas áreas de monocultura de
eucalipto e pinus, entre outras monoculturas comerciais, expulsando comunidades
inteiras de suas terras, que acabaram por se deslocar para áreas menos produtivas ou
beiras de cursos d’água (Dayrell 2011; Bustamante, 2007).
Esta política, que desconsiderava os pequenos agricultores em detrimento das
grandes fazendas monocultoras, resultou em intenso êxodo rural e pauperização das
comunidades rurais. Essas comunidades passam então a se organizar politicamente em
torno de movimentos sociais, como o MST, e de organizações como Comissão Pastoral
da Terra e o Centro de Agricultura Alternativa do Norte Mineiro (CAA NM) a
Federação dos Trabalhadores Rurais de Minas Gerais (FETAEMG), entre outros, em
busca de garantirem direitos e se protegerem de violações sofridas por processos ilegais
de desapropriação de terras em favorecimento de grandes fazendeiros e empresas, bem
como de ações violenta por parte desses grandes proprietários no silenciamento das
lutas (Dayrell, 2011).
Mas segundo Dayrell e Vieira (2014), mesmo com a enorme pressão de
fazendeiros e empresários, e com o modelo de assistência técnica que fomentava a
aplicação das tecnologias da Revolução Verde, comunidades rurais, em toda sua
diversidade – geraizeiros, vazanteiros, quilombolas, indígenas, coletores de sempre-
vivas, entre outros –, resistiram a esse processo e resguardaram o uso de cultivos
tradicionais de diversas variedades vegetais, bem como seus sistemas de plantio e
manejo de recursos naturais.
Monteiro et all (2014) destacam que essa região é uma das mais densamente
povoadas por agricultores familiares, e de menor Índice de Desenvolvimento Humano
de Minas Gerais, mas que ainda mantém grande diversidade produtiva, tanto vegetal,
quanto animal, além da atividade extrativista.
No contexto da Constituição de 1988, comunidades que se esconderam nas
grotas e chapadas do interior para se defenderem da expropriação territorial ressurgem
direcionando suas lutas na garantia de demarcação de terras quilombolas e de uso
tradicional (idem).
E com o debate da questão ambiental tomando maior visibilidade, redirecionam
o sentido de sua luta, tal como descrito por Dayrell (2011):

Uma das características comuns dessas lutas é que suas estratégias de ação
não são somente reação à expropriação. Ao mesmo tempo em que lutam para
sobreviver em contextos cada vez mais asfixiantes e marcados por graves
violações de direitos sociais e de apropriação de recursos dos territórios
procuram construir caminhos sólidos para a promoção do desenvolvimento
rural em bases sustentáveis. (p.13)

Essa movimentação é marcada pelo protagonismo de comunidades que


reivindicam, além do direito a terra, o reconhecimento de que possuem cultura própria,
uma maneira específica de ver e agir no mundo. E que, além disso, possuem uma
economia que não se baseia no lucro ou na exploração do trabalho, mas sim em outra
maneira de utilizar os recursos baseada na ancestralidade (idem).
No contexto atual das mudanças climáticas, cultivares e técnicas de cultivo e
manejo dos recursos naturais voltam ao foco da produção científica, por fornecerem
bases e referências a estratégias que aumentam a resiliência das populações humanas no
semiárido, região extremamente sensível à redução do regime hídrico e ao aumento das
temperaturas (Favero et al, 2014). Mas mais que um esforço conservador frente às
pressões modernas dos grandes projetos econômicos, como mineradoras, hidrelétricas,
monoculturas, que excluem comunidades de seus territórios e recursos, a prerrogativa
de trabalho se dá também na reformulação das tradições de acordo com o novo contexto
socioambiental. E nesse sentido é imprescindível a síntese entre os conhecimentos
tradicionais e acadêmicos.

A bandeira da cultura
Cunha (2009) identifica nos movimentos de resistência de comunidades uma
apropriação por parte dos povos tradicionais do termo “cultura” 1 como bandeira de luta,
1
Manuela Carneiro da Cunha diferencia o termo cultura – referindo-se ao termo como é
amplamente discutido na academia – do termo “cultura”, relacionado às unidades de um
sistema inter-étnico. Citando Lionel Trilling, define cultura como “um complexo unitário de
prossupostos, modos de pensamento, hábitos e estilos que interagem entre si, conectados por
caminhos secretos e explícitos com os arranjos práticos de uma sociedade”. E descreve
“cultura” como uma metalinguagem: “uma noção reflexiva que de certo modo fala de si
mesma” (CUNHA, 2009).
embora na academia, especificamente na antropologia, o termo cultura tenha saído de
cena. Segundo a autora, no debate em torno da biodiversidade e da soberania,
fortaleceu-se o argumento de que os indígenas e povos tradicionais não podem ser
excluídos de algo que só subsistiu por causa deles, porque a biodiversidade é
intrinsecamente ligada ao “conhecimento ecológico tradicional”. Povos tradicionais se
apropriaram de formulações que associam as práticas ancestrais de cultivo e manejo de
recursos naturais ao aumento da diversidade agrícola (idem).
Em sintonia com a argumentação de Cunha, Sahlins (1997a) coloca que esse
tipo de autoconsciência cultural é característico de um fenômeno cultural do fim do
século XX:

As antigas vítimas do colonialismo e do imperialismo descobriram sua


“cultura”. Por muito e muito tempo os seres humanos falaram cultura sem
falar em cultura (...). E eis que de repente a cultura se tornou um valor
objetivado, e também o objeto de uma guerra de vida ou morte.”(s/p.)

Segundo ele não se deve atribuir tal fato à ação de antropólogos ou semelhantes.
Mas sim ao contexto de ameaças sofridas dos modos de vida tradicionais em relação às
forças de dominação política e econômica (SAHLINS, 1997a).
Sahlins (1997b) também questiona o conceito de cultura de certas correntes da
antropologia, muitas vezes associado à diferença levando a relações de submissão. A
essa ideia opões diversos casos em que a cultura e suas releituras se conformam
exatamente como forma de resistência a um modo de pensar a agir global (uma cultura
universalizante) ligado à dominação política e econômica.
Assim, no contexto de debate em torno de direitos humanos e ambientais, as
comunidades do semiárido mineiro encontraram uma conjuntura favorável à
reafirmação de seu modo de vida como importante argumento em defesa de seus
interesses: o acesso a terra, à assistência técnica, investimentos e mercados.
Em sua relação com instituições de apoio, passam a demandar formas de
legitimação de seus conhecimentos, bem como ferramentas de análise e aprimoramento
de práticas para melhorarem suas condições de vida. E refletindo uma tendência
europeia, passam a reforçar, pela diferença e pela ancestralidade, o direito à autonomia
de controle de seu patrimônio – constituído não só de valores e práticas atualmente tidos
como sustentáveis, mas também de variedades genéticas de grande valor comercial –
tomando para si o termo guardiões da agrobiodiversidade.
Sistema de oposições

Uma vez que a sociedade atual está organizada em torno de conhecimentos


científicos e tecnológicos, é necessário superar as dificuldades de reflexão colocadas
pelo grau de sofisticação dos recursos tecnológicos que sustentam o agronegócio e as
controvérsias geradas em relação a modelos de desenvolvimento (CAIXETA, 2013).
Assim, o desafio posto a esses guardiões é agregar os modos de pensar próprios dos
cientistas àqueles que orientam a vida em geral.
Nessa relação antagônica, no que ser refere a comunidades tradicionais e sua
luta para garantir sua sobrevivência, há que se perpassar pela relação entre o tradicional
e o moderno.
Guiddens (1991) discute a reflexividade como uma consequência da
modernidade e afirma a respeito das culturas tradicionais que:
(...) o passado é honrado e os símbolos valorizados porque contêm e
perpetuam a experiência de gerações. A tradição é um modo de integrar a
monitoração da ação com a organização tempo-espacial da comunidade. Ela
é uma maneira de lidar com o tempo e o espaço, que insere qualquer
atividade ou experiência particular dentro da continuidade do passado,
presente e futuro, sendo estes por sua vez estruturados por práticas sociais
recorrentes. A tradição não é inteiramente estática, porque ela tem que ser
reinventada a cada nova geração conforme esta assume sua herança cultural
dos precedentes. A tradição não só resiste à mudança como pertence a um
contexto no qual há, separados, poucos marcadores temporais e espaciais em
cujos termos a mudança pode ter alguma forma significativa. (p.38)

Em sua discussão sobre a sociedade pós-tradicional, Giddens (1997) caracteriza


a tradição como uma “cola que une as ordens sociais pré-modernas”; orientada para o
passado, embora tendo uma pesada influência sobre o presente e também dizendo
respeito ao futuro, visto que as práticas estabelecidas são utilizadas para organizá-lo.
Assim, embora assuma que as tradições estejam sempre mudando, identifica que há algo
em relação à noção de tradição que pressupõe persistência.
Nessas colocações do autor fica exposta uma característica pouco variável da
tradição. Mas em seguida, o autor traz a apropriação reflexiva do conhecimento,
característica da sociedade moderna, estabelecendo certa racionalidade em torno da
tradição que anteriormente não existia (Giddens, 1991). Em outras palavras, segundo
Giddens, a modernidade promoveu mudanças na subjetividade humana em que a ação
reflexiva se faz mais evidente, refletindo inclusive nas tradições.
Conforme salientado por Sahlins (1997b) em sua discussão sobre o
desenvolvimento, “a tradição não era mais estática no passado do que é agora”.
Demonstra com exemplos como povos indígenas possuem em seus sistemas a
característica intrínseca de renovação.
Em relação ao conflito entre tradição e especialização, em que a tradição fornece
uma estrutura, uma coesão social, Guiddens (1997) explicita que a especialização está
ligada a uma crença na correção do conhecimento e de um ceticismo metódico, que
envolve processos intrínsecos de especialização e interagem com a crescente
reflexividade institucional. Segundo o autor, devido à sua forma móvel, que permite
questionamentos acerca de todas as suas determinações, a especialização é tão
destruidora quanto estabilizadora das hierarquias de autoridade. E que essa mobilidade
atenta contra a autoridade da ciência, dados os resultados catastróficos do avanço
tecnológico na produção de guerras e destruição ecológica.
Trazendo essa análise para o contexto do semiárido mineiro, não há como se
pensar as práticas culturais das comunidades tradicionais sem relacioná-las a uma
adaptação às mudanças territoriais, econômicas e ambientais sofridas por seus sujeitos.
Nesse sentido há que se considerar que o uso do termo guardião, embora em
princípio reflita uma imagem estática, preservacionista, é, na realidade, uma formulação
que pressupõe não só a reprodução incontestada de valores e práticas, mas ação
racionalizada frente às pressões sofridas pelas comunidades, uma estratégia também
política.
De fato, ações vêm sendo tomadas em torno dos guardiões da biodiversidade,
através de parcerias com organizações não governamentais, universidades e instituições
globais como as Nações Unidas (MONTEIRO, 2014), no sentido de ir além da
catalogação de práticas tradicionais de cultivo e manejo dos recursos naturais, mas
também de experimentação e inovação, considerando-se as realidades atuais vividas e
também o contato com conteúdos técnicos e acadêmicos do saber científico.
Cunha (2009) reafirma e reforça a necessidade da distinção entre o saber
científico e o tradicional, mas crê ser importante o trabalho conjunto entre esses dois
saberes.
Para ela, embora ambos sejam “formas de procurar entender e agir sobre o
mundo” e “também obras abertas, inacabadas, se fazendo constantemente”, possuem,
antes de tudo dimensões diferentes: enquanto o saber científico se propõe universal,
paradigmático, o saber tradicional é mais aberto a conhecimentos e explicações
divergentes, de validade apenas local. Enquanto observa que existe apenas um regime
para o conhecimento científico, os saberes tradicionais possuem diversos regimes.
Citando Bruno Latour, Cunha (idem) destaca que a “ciência não passa ao largo
de seus praticantes, ela se constitui por uma série de práticas e estas certamente não se
dão em um vácuo político e social.” E aponta, assim como Bourdieu (2007), para o fato
de que o conhecimento científico é hegemônico. Bourdieu afirma que todo sistema de
adjetivos reflete um sistema de classes, e Cunha (ibidem) reforça destacando que a
palavra ciência, quando sem adjetivo, se refere à ciência moderna ocidental, enquanto
precisamos adjetivar o termo ciência quando tratamos da tradicional.
Cunha (2009) vislumbra pontes entre os saberes científicos e tradicionais,
iniciando pelas operações lógicas que sustentam cada um. Citando Lévi-Strauss o
conhecimento científico opera com unidades conceituais, enquanto a tradicional com
percepções. Essa diferença pode ser útil na antecipação de descobertas da ciência
moderna. Mas traz na relação entre ambos questões políticas, econômicas e jurídicas
que não podem ser perdidas de vista.
Já há, historicamente, uma relação entre os conhecimentos científicos e
tradicionais, algumas vezes utilitaristas, como na farmacologia (CUNHA, 2009), em
que o tradicional é apenas uma fonte de informações a serem posteriormente
esmiuçadas a analisadas pela ciência moderna, transformadas em produtos a serem
patenteados e vendidos. Assim, embora reconhecidos, muitas vezes os conhecimentos
tradicionais não são validados pelo campo do saber científico. Muitos profissionais, na
relação que estabelecem com as comunidades, desconsideram seus saberes na tentativa
de doutriná-los ao uso de práticas desenvolvidas pela academia.
Tal postura é clara no âmbito da extensão rural, com destaque para a extensão
tradicional, institucionalizada, que trata mais de doutrinar os agricultores no uso de
sementes e insumos comerciais e adestrá-los às boas práticas exigidas por organismos
de controle, como o sanitário.
Por outro lado, a prerrogativa dos trabalhos de diversas organizações que atuam
no semiárido mineiro, como ONG’s, associações, sindicatos e movimentos sociais, se
dá no sentido oposto dessa relação. Esse trabalho é orientado por tornar visível e validar
os conhecimentos tradicionais, dando-lhes grande valor para a formulação de saídas aos
dilemas atuais que giram em torno do modelo de desenvolvimento predatório
capitalista.

Tradicional e científico: é possível uma síntese?


Para Manuela Carneiro da Cunha (2009) a maior riqueza se encontra na
diferença entre esses dois saberes. Em sua opinião, ambos devem interagir sem se
fundir: os conhecimentos tradicionais são a base para a produção científica. E essa
relação deve pressupor uma valorização dos saberes tradicionais, bem como o retorno
dos benefícios gerados pela ciência às comunidades de onde foram extraídas as
informações e principalmente a garantia de vitalidade da produção do conhecimento
tradicional.
Ela aponta como maiores obstáculos os entraves políticos, econômicos e
jurídicos para que aqueles pressupostos sejam alcançados: a oposição entre interesses
nacionais e locais no âmbito da soberania; a oposição entre o saber individual e
coletivo; e por fim a oposição entre moderno e tradicional.
No entanto, a perspectiva trabalhada pelos guardiões da biodiversidade do
semiárido mineiro é a apropriação de conteúdos e métodos científicos para a
reconfiguração de práticas tradicionais que os tornem mais habilitados a defender-se de
pressões econômicas e políticas e a propor mudanças institucionais que garantam a
esses povos o acesso a direitos.
Essa dinâmica pressupõe uma mudança de postura dos agentes das comunidades
em relação ao que é importante ser validado não só por seus pares, mas também em
outros campos2, a saber, o acadêmico e o político.
No campo acadêmico é forte a disputa contra a deslegitimação do saber dos
povos do semiárido. Suas práticas culturais são desqualificadas pelo mainstream da
pesquisa – política e economicamente ligado ao agronegócio – e adjetivadas como
ineficazes e obsoletas, devendo muitas vezes ser substituídas por práticas modernas,
principalmente no que se refere a manejo de recursos naturais. Em muitas produções
teóricas os povos que hoje adotam o discurso de guardiões da biodiversidade são
também estigmatizados como grandes devastadores, por práticas como soltura de gado e
caça, sofrendo pressões territoriais através do discurso ambiental preservacionista. Em
reação há grupos consolidados de pesquisadores que sistematizam práticas tradicionais e

2
Para Bourdieu (1989) o campo corresponde a um mundo social, dotado de concentrações de
poder e capital, conflitos e relações de forças que configuram estruturas e disposições. Os campos
“orbitam” como em um “microcosmos”, podendo haver interseções. Cada campo possui suas regras e
símbolos próprios cabendo aos sujeitos atentarem às “formas específicas de interesse, energia, pulsão e
invertimento” que orientam as “lutas pela conquista das moedas correntes em cada um deles”
(Bourdieu, 1989).
as revalidam com base em argumentos científicos e trabalham em conjunto com
comunidades levantando estratégias conjuntas de fortalecimento de sue modo de vida.
No campo político há o embate com grandes empresas produtoras de sementes
transgênicas, em que é de extrema importância a validação dos guardiões como gestores
de suas sementes e variedades adaptadas ao estresse hídrico, por exemplo. Nesse
campo, uma das frentes é a luta por políticas públicas específicas ao suporte de casas de
sementes comunitárias, garantindo a acesso coletivo ao patrimônio tradicional, evitando
o armazenamento de cultivares em bancos de germoplasma privados, ex situ, cujos
recursos se transformam em mercadoria. Nesse cenário é importante a conformação de
estratégias organização e luta articuladas a setores parceiros em suas diversas
dimensões, como se deu na constituição de uma Rede de Guardiões e Guardiãs da
Agrobiodiversidade do Semiárido Mineiro.
Dayrell (2011) trata do caráter inovador das ações dos povos tradicionais, no uso
de sua “cultura” quando interligada a conhecimentos científicos apropriados e
ressignificados:

São iniciativas que trazem perspectivas econômicas e societárias


diferenciadas e que, não por acaso, articulam-se e inserem-se na construção
de uma política nacional que reafirma o disposto constitucional da existência
de uma nacionalidade plural. Emergem no cenário econômico como
comunidades capazes de contribuir com uma produção com os denominados
valores de existência que Oliveira (2010, citando CUNHA e ALMEIDA,
(2001) denominou como mercadorias de quarta geração. (p.14)

Se a união de formas de ver o mundo a métodos e ferramentas científicas não


pode, por questões ontogenéticas, ser considerado uma síntese entre os saberes
tradicional e científico, pode ser algo bem próximo disso. Da mesma forma que os
guardiões se beneficiam dessa associação, pela reflexão sobre suas práticas cotidianas,
horizontes a serem trilhados e estratégias a serem traçadas, é gerado na academia
semelhante auto reflexão. Abrem-se possibilidades de estudos, análises e proposições de
modelos fora do padrão hegemônico que só tem a enriquecer o universo do saber
científico e afiná-lo a demandas concretas de setores deslegitimados.
É fato que a disputa dos guardiões por validação e autonomia não é pequena e
nem tampouco equilibrada: os grandes têm maior poder de persuação/ coerção de
instituições em torno de seus interesses. Têm também plenas condições de apropriação
de recursos, como já fazem historicamente, assim que estes se tornam válidos.
Mas na luta pela resistência há que se ocupar espaços, avançar em campos,
disputar posições. E nessa luta a defesa do patrimônio cultural, do modo de vida,
apresentou-se como importante frente a ser conquistada.

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porque a cultura não é um objeto em vias de extinção (parte I). Mana, vol 3, no 1. Rio
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______. O “Pessimismo Sentimental” e a Experiência Contemporânea: porque a cultura
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