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A Geografia Política é sensível aos novos contextos e à inovação em áreas como a tecnologia.
Ainda assim, apesar dos novos problemas que se colocam, como a insegurança associada à
digitalização da sociedade, os velhos temas permanecem atuais e com relevância estratégica.
Recursos vitais como os minérios, a água ou os solos, continuam a fazer parte das preocupações
estratégicas de múltiplos atores, a começar pelos Estados. Considerando a “Pirâmide de
Maslow” (1943), as necessidades básicas (como a alimentação) continuam a ser a base de um
complexo sistema que garante a qualidade de vida das populações.
Em 1994, o relatório de desenvolvimento humano, publicado pelo Programa das Nações Unidas
para o Desenvolvimento (PNUD), avança com um conceito aberto e abrangente de segurança
humana, que envolve dimensões como a segurança económica e política, a segurança ambiental
e na saúde, assim como a segurança alimentar.
Um percurso pelo passado da condição humano permite identificar alguns contextos espaciais
e temporais de insegurança e violência como resultado da fome. Refiram-se, como exemplos, a
“great famine”, na Irlanda (1845—49), conhecida como a “Irish Potato Famine”; ou o
Holodomor, a catástrofe humanitária na Ucrânia (1932-33). A fome na África Oriental, sobretudo
na Etiópia (1983--85), na Coreia do Norte (1994-98) ou, na atualidade, em Madagascar, são
exemplos empíricos e estudos de caso que merecem análises detalhadas e localizadas de um
problema de insegurança com uma geografia complexa e incerta.
Ainda assim, apesar da complexidade, a (in)segurança alimentar depende também do solo fértil,
enquanto recurso estratégico, vital e escasso. De acordo com valores do Banco Mundial
(https://datos.bancomundial.org/indicator/AG.LND.AGRI.ZS?end=2010 ), em 2020, apenas 36%
da superfície continental pode ser considerada terra agrícola. A partir dessa data, esse valor tem
vido a decrescer.
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Esse decréscimo do solo agrícola e fértil enquanto recurso estratégico vital acontece em virtude
da acumulação de um conjunto alargado de agressões e supressões como a expansão urbana; a
exploração mineira; acidentes tecnológicos (ex: como Chernobyl, em 1989 ou o ‘desastre’ de
Palomares -Espanha, em 1966); múltiplas formas de erosão; a sobre-exploração de solos por
uma atividade agropecuária intensiva e o avanço da desertificação (ex: assim aconteceu no Mar
Aral e tem ocorrido no Sahel); conflitos militares e campos minados; ou o alargamento de
algumas áreas protegidas que excluem a humanização e a prática das atividades agropecuárias.
No contexto das áreas urbanas, romperam-se as lógicas previstas pelo modelo de Von Thünen
(1783-1850), que previa uma cidade protegida por círculos concêntricos (e de proximidade) de
produção agropecuária. Na atualidade, a segurança alimentar está associada a um conjunto
alargado de fluxos globais (desde pesticidas, fertilizantes, maquinaria e os próprios alimentos),
com o acréscimo das distâncias médias (absolutas e relativas) entre o consumidor e o produtor.
O atual aumento dos preços pode derivar dessa cadeia complexa de comércio e mobilidade
espacial.
Desses fluxos globais faz também parte o capital financeiro (e de influência política) para a
aquisição (internacional) de reservas de solo fértil, que envolve Estados, empresas privadas,
parcerias público-privadas e fundos diversos.
Este mercado global de “land grabbing” é um dos temas da Geografia Política e da aproximação
desta a áreas como a Ecologia Política. Esta dinâmica interfere com as relações de poder e a
cartografia complexa das soberanias. Contudo, a relação contrária também é verdadeira.
Nesta perspetiva, países como o Japão, a Coreia do Sul, a Arábia Saudita, os Emirados Árabes
Unidos ou a China, apenas para citar alguns exemplos, são compradores de terras férteis em
regiões do mundo como África e alguns países da América Latina ou do Sudeste Asiático,
associados ao denominado ‘Sul Global’.
No caso português, refira-se o modo como o Conceito Estratégico de Defesa Nacional (2013)
assume o país enquanto território exógeno caraterizado por um conjunto de dependências
(energética, alimentar, dos mercados financeiros, entre outros), com um elevado capital
diplomático e uma soberania negociada.
Ainda que se assuma a segurança alimentar enquanto desígnio estratégico do país, projetos
como o Empreendimento de Fins Múltiplos de Alqueva (vocacionado para a produção de
energia, a irrigação e o turismo), tem aberto a região do Alentejo às monoculturas e à entrada
de capitais para aquisição de solos no quadro da União Europeia, como Espanha, mas também
com origens externas, como o Chile e os EUA.
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Esta gestão espontânea também produziu solos férteis onde estes não existiam. A apanha do
moliço e a sua aplicação nos solos arenosos da Ria de Aveiro é um exemplo. A produção de solo
com o recurso a socalcos na paisagem antrópica do vale do Douro, para produção de vinho, é
um outro estudo de caso a explorar.
Ainda assim, e na atualidade, para além da expansão das monoculturas intensivas, do efeito
sistémico dos incêndios florestais e do avanço dos processos de urbanização e
impermeabilização para fins variados, como o turismo, é também longa e complexa a dinâmica
de supressão e degradação dos solos.
Fontes:
AMWA (2015)
Kachika (2010).
Sassen (2014). Expulsions. Brutality and Complexiy in the Global Economy. Cambridge and
London: The Belknap Press of Harvard University Press (capítulos 2 e 4).
Citação:
Fernandes, João Luís J. (2023). Insegurança alimentar e solos- um tema em Geografia
Política e do Desenvolvimento. Unidade Curricular - Geografia Política e do
Desenvolvimento. Universidade de Coimbra: Departamento de Geografia e Turismo
(Faculdade de Letras).