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Síntese II

Insegurança alimentar e solos- um tema em Geografia Política e do


Desenvolvimento.

A Geografia Política é sensível aos novos contextos e à inovação em áreas como a tecnologia.
Ainda assim, apesar dos novos problemas que se colocam, como a insegurança associada à
digitalização da sociedade, os velhos temas permanecem atuais e com relevância estratégica.

Recursos vitais como os minérios, a água ou os solos, continuam a fazer parte das preocupações
estratégicas de múltiplos atores, a começar pelos Estados. Considerando a “Pirâmide de
Maslow” (1943), as necessidades básicas (como a alimentação) continuam a ser a base de um
complexo sistema que garante a qualidade de vida das populações.

Em 1994, o relatório de desenvolvimento humano, publicado pelo Programa das Nações Unidas
para o Desenvolvimento (PNUD), avança com um conceito aberto e abrangente de segurança
humana, que envolve dimensões como a segurança económica e política, a segurança ambiental
e na saúde, assim como a segurança alimentar.

De acordo com a FAO ( https://www.fao.org/hunger/en ), a insegurança alimentar implica vários


graus de necessidade e carência: “A person is food insecure when they lack regular access to
enough safe and nutritious food for normal growth and development and an active and healthy
life. This may be due to unavailability of food and/or lack of resources to obtain food. Food
insecurity can be experienced at different levels of severity. FAO measures food insecurity using
the Food Insecurity Experience Scale (FIES). When someone is severely food insecure, they have
run out of food and gone a day or more without eating. In other words, they have most likely
experienced hunger.”

Um percurso pelo passado da condição humano permite identificar alguns contextos espaciais
e temporais de insegurança e violência como resultado da fome. Refiram-se, como exemplos, a
“great famine”, na Irlanda (1845—49), conhecida como a “Irish Potato Famine”; ou o
Holodomor, a catástrofe humanitária na Ucrânia (1932-33). A fome na África Oriental, sobretudo
na Etiópia (1983--85), na Coreia do Norte (1994-98) ou, na atualidade, em Madagascar, são
exemplos empíricos e estudos de caso que merecem análises detalhadas e localizadas de um
problema de insegurança com uma geografia complexa e incerta.

A relação entre a pobreza, a insegurança alimentar e os conflitos não é direta e carece de


investigações empíricas. Na verdade, como nos mostram autores como Josué de Castro (1908-
1973) ou Amartya Sen (ver, entre outras, a obra “Poverty and Famines”, de 1981), a ‘fome’ é
resultado de uma constelação de fatores, entre os quais as relações assimétricas de poder.

Ainda assim, apesar da complexidade, a (in)segurança alimentar depende também do solo fértil,
enquanto recurso estratégico, vital e escasso. De acordo com valores do Banco Mundial
(https://datos.bancomundial.org/indicator/AG.LND.AGRI.ZS?end=2010 ), em 2020, apenas 36%
da superfície continental pode ser considerada terra agrícola. A partir dessa data, esse valor tem
vido a decrescer.

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Esse decréscimo do solo agrícola e fértil enquanto recurso estratégico vital acontece em virtude
da acumulação de um conjunto alargado de agressões e supressões como a expansão urbana; a
exploração mineira; acidentes tecnológicos (ex: como Chernobyl, em 1989 ou o ‘desastre’ de
Palomares -Espanha, em 1966); múltiplas formas de erosão; a sobre-exploração de solos por
uma atividade agropecuária intensiva e o avanço da desertificação (ex: assim aconteceu no Mar
Aral e tem ocorrido no Sahel); conflitos militares e campos minados; ou o alargamento de
algumas áreas protegidas que excluem a humanização e a prática das atividades agropecuárias.

A estes problemas, e na perspetiva da (in)segurança alimentar, acrescenta-se o efeito


combinado da privatização dos solos, da expansão das monoculturas e do avanço dos
combustíveis que, ao nível da ocupação do solo, competem com a produção de alimentos.

No contexto das áreas urbanas, romperam-se as lógicas previstas pelo modelo de Von Thünen
(1783-1850), que previa uma cidade protegida por círculos concêntricos (e de proximidade) de
produção agropecuária. Na atualidade, a segurança alimentar está associada a um conjunto
alargado de fluxos globais (desde pesticidas, fertilizantes, maquinaria e os próprios alimentos),
com o acréscimo das distâncias médias (absolutas e relativas) entre o consumidor e o produtor.
O atual aumento dos preços pode derivar dessa cadeia complexa de comércio e mobilidade
espacial.

Desses fluxos globais faz também parte o capital financeiro (e de influência política) para a
aquisição (internacional) de reservas de solo fértil, que envolve Estados, empresas privadas,
parcerias público-privadas e fundos diversos.

Este mercado global de “land grabbing” é um dos temas da Geografia Política e da aproximação
desta a áreas como a Ecologia Política. Esta dinâmica interfere com as relações de poder e a
cartografia complexa das soberanias. Contudo, a relação contrária também é verdadeira.

Nesta perspetiva, países como o Japão, a Coreia do Sul, a Arábia Saudita, os Emirados Árabes
Unidos ou a China, apenas para citar alguns exemplos, são compradores de terras férteis em
regiões do mundo como África e alguns países da América Latina ou do Sudeste Asiático,
associados ao denominado ‘Sul Global’.

No caso português, refira-se o modo como o Conceito Estratégico de Defesa Nacional (2013)
assume o país enquanto território exógeno caraterizado por um conjunto de dependências
(energética, alimentar, dos mercados financeiros, entre outros), com um elevado capital
diplomático e uma soberania negociada.

Ainda que se assuma a segurança alimentar enquanto desígnio estratégico do país, projetos
como o Empreendimento de Fins Múltiplos de Alqueva (vocacionado para a produção de
energia, a irrigação e o turismo), tem aberto a região do Alentejo às monoculturas e à entrada
de capitais para aquisição de solos no quadro da União Europeia, como Espanha, mas também
com origens externas, como o Chile e os EUA.

Ainda assim, na longa duração da Geografia Humana de Portugal, assinale-se um percurso


complexo que passa pela proteção dos solos, quer através da legislação (a Reserva Ecológica
Nacional e a Reserva Agrícola Nacional foram criadas logo após o 25 de abril de 1974, por
iniciativa de Gonçalo Ribeiro Telles), quer através de práticas de conservação e proteção deste
recurso. Por exemplo, o povoamento tradicional no Maciço Calcário Estremenho, uma região
cársica, evitava a construção e protegia o fundo das dolinas, precisamente onde se encontrava
o solo fértil.

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Esta gestão espontânea também produziu solos férteis onde estes não existiam. A apanha do
moliço e a sua aplicação nos solos arenosos da Ria de Aveiro é um exemplo. A produção de solo
com o recurso a socalcos na paisagem antrópica do vale do Douro, para produção de vinho, é
um outro estudo de caso a explorar.

Ainda assim, e na atualidade, para além da expansão das monoculturas intensivas, do efeito
sistémico dos incêndios florestais e do avanço dos processos de urbanização e
impermeabilização para fins variados, como o turismo, é também longa e complexa a dinâmica
de supressão e degradação dos solos.

Fontes:

AMWA (2015)

FAO (2023). https://www.fao.org/hunger/en

Banco Mundial (2023). https://datos.bancomundial.org/indicator/AG.LND.AGRI.ZS?end=2010

Kachika (2010).

Sassen (2014). Expulsions. Brutality and Complexiy in the Global Economy. Cambridge and
London: The Belknap Press of Harvard University Press (capítulos 2 e 4).

Citação:
Fernandes, João Luís J. (2023). Insegurança alimentar e solos- um tema em Geografia
Política e do Desenvolvimento. Unidade Curricular - Geografia Política e do
Desenvolvimento. Universidade de Coimbra: Departamento de Geografia e Turismo
(Faculdade de Letras).

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