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A CRÍTICA ECOFEMINISTA AO PARADIGMA DO DESENVOLVIMENTO: A

NECESSIDADE DE REPENSAR A RELAÇÃO HUMANA COM A NATUREZA

Tânia A. Kuhnen1

Resumo: O paradigma do desenvolvimento, aliado a um sistema capitalista e patriarcal, leva a natureza a uma situação
de esgotamento. Nesse sistema de relações, a natureza é continuamente concebida como um recurso a ser dominado e
explorado. No Brasil, especificamente, o desenvolvimentismo agrícola é justificado por políticas econômicas de
exportação de commodities do agronegócio. Neste artigo, defende-se a incompatibilidade entre o agronegócio
desenvolvimentista, que adota a monocultura mecanizada de larga escala, e a preservação da natureza e de comunidades
humanas tradicionais. Propõe-se, a partir do ecofeminismo, a necessidade de rever as relações entre seres humanos e
natureza, de forma a priorizar modos de vida mais integrados ao meio ambiente, com promoção de justiça social e de
gênero. Este trabalho, de cunho investigativo teórico-filosófico e bibliográfico, procura oferecer uma reflexão crítica
sobre a perspectiva de desenvolvimento por trás da justificação do agronegócio que se contrapõe às atividades
protagonizadas por mulheres nas formas de cooperativismo e associativismo, visando à preservação ambiental e a
manutenção de comunidades tradicionais. Para tanto, recorre-se às autoras ecofeministas que abordam questões
ambientais urgentes, a exemplo de Carolyn Merchant, Vandana Shiva, Maria Mies e Marti Kheel, com o fim de lançar
um olhar mais acurado sobre as crescentes práticas humanas de apropriação do ambiente natural para obter o controle
de suas partes.

Palavras-chave: Desenvolvimento. Ecofeminismo. Meio Ambiente. Gênero. Mulheres.

Introdução

Recentemente, o Brasil ratificou o Acordo de Paris que prevê o compromisso com a redução
da emissão de gases de efeito estufa por todos os países signatários. Conforme o Ministério do Meio
Ambiente (21016), o Brasil acordou uma série de compromissos, entre os quais merece destaque
para 2025 a redução das emissões de gases de efeito estufa em 37% abaixo dos níveis de 2005. Para
alcançar tal contribuição, o país se comprometeu com o aumento da participação de bioenergia
sustentável na geração de energia, bem como com a restauração e reflorestamento de 12 milhões de
hectares de florestas e a redução do desmatamento.
Assumir tal posicionamento, no entanto, possui um caráter controverso à medida que o país
se destaca nacional e internacionalmente pela exportação de commodities resultantes do
agronegócio. Ao mesmo tempo em que se firma um compromisso internacional na pretendida
Contribuição Nacionalmente Determinada (2016) de respeitar direitos humanos, particularmente os
direitos das comunidades vulneráveis, como populações indígenas e comunidades tradicionais,
promovendo ainda ações sensíveis ao fator gênero, justifica-se e apoia-se política e
economicamente o desenvolvimento de novas fronteiras agrícolas, a exemplo da região do
Matopiba, que compreende áreas dos estados do Maranhão, Tocantins, Piauí e Bahia, cobertas em

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Professora Adjunta na Universidade Federal do Oeste da Bahia (UFOB). Membro dos grupos de pesquisa: Corpus
Possíveis: Educação, Cultura e Diferenças; e Gestão, Inovação e Desenvolvimento, ambos vinculados à UFOB.

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grande parte pelo bioma do Cerrado e no qual se produzem sobretudo grãos destinados à exportação
como soja e milho. A região que perpassa esses quatro Estados tem se destacado pelos elevados
índices de desmatamento. Ainda nesse sentido, a pressão recente por medidas políticas de
ampliação da exploração da natureza através da redução de áreas de conservação2, pela legalização
da posse de terra para grileiros na Amazônia (MP 759), pela possibilidade de aquisição de terras
cultiváveis de grande porte por capital estrangeiro (PL 4.059/2012), associadas à falta de
demarcação das terras indígenas, medidas de repressão e controle de comunidades indígenas e
quilombolas, a exemplo da proposta de ‘organização social’ de tais coletivos (Portaria 546), que
ameaçam seus direitos constitucionais. Todo esse quadro de priorização dos interesses de ruralistas
e do agronegócio coloca em questão os compromissos assumidos no Acordo de Paris.
O cenário controverso permite ainda levantar uma perspectiva crítica em relação ao próprio
sentido do termo “desenvolvimento”, quando se trata da produção de alimentos pelo sistema de
agricultura mecanizada e tecnológica de larga escala, que muitas vezes acaba por assumir a forma
de um empreendimento bélico cujos interesses e objetivos se sobrepõem à natureza e às formas de
vida tradicionais. Procura-se defender neste artigo a incompatibilidade entre o agronegócio da
monocultura desenvolvimentista e a preservação da natureza e de formas de vida humana de
comunidades tradicionais. Propõe-se, ainda, a partir da perspectiva ecofeminista, a necessidade de
rever as relações entre seres humanos e natureza e a importância da preservação de certos modos de
vida mais integrados ao meio ambiente, que promovam a justiça social e de gênero.
O presente artigo tem cunho investigativo teórico e bibliográfico e procura oferecer uma
reflexão crítica acerca da perspectiva de desenvolvimento por trás da justificação da atividade do
agronegócio. Não é objetivo aqui defender o potencial desenvolvimentista associado ao uso
conservacionista dos espaços naturais. Desde uma perspectiva crítico-filosófica, fundamentada em
autores que teorizam sobre questões ambientais urgentes, busca-se lançar um olhar mais acurado
sobre determinadas práticas humanas de crescente expropriação da natureza com o fim de obter o
controle de suas partes. Para ilustrar a argumentação desenvolvida, serão trazidas informações sobre
a região do Oeste Baiano, onde o bioma do Cerrado e a vida de comunidades tradicionais
encontram-se ameaçados em decorrência da expansão do agronegócio.

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As Medidas Provisórias 756 e 758, que previam a redução de limites da Floresta Nacional de Jamanxim e do Parque
Nacional de Jamanxim, áreas de preservação no Oeste do Pará, e também do Parque Nacional de São Joaquim, em
Santa Catarina, foram recentemente vetadas pelo presidente Michel Temer em decorrência da pressão de ONGs
ambientalistas. No entanto, a região amazônica permanece em risco, pois o Congresso Nacional pode propor novas
medidas de redução de áreas protegidas por meio da criação de legislação para isso.

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O paradigma desenvolvimentista e a dominação da natureza

O paradigma desenvolvimentista tecnológico baseado na perspectiva eurocêntrica do


iluminismo e expandido por intermédio do modelo econômico liberal contemporâneo é
intrinsecamente excludente. Conforme afirma Mies (1993), o desenvolvimento apregoado como
ideal de vida boa na sociedade patriarcal e capitalista tem beneficiado historicamente determinados
grupos sociais e excluído outros. Embora se venda a ideia de que todas as sociedades ainda
‘atrasadas’ podem alcançar esse desenvolvimento à medida que seguem a via da industrialização,
do progresso tecnológico e da acumulação de capital adotada majoritariamente nos países do Norte,
sabe-se que tal promessa fascinante configura-se como um mito, pois, o padrão de produtividade e
consumo dessas sociedades pressupõe a externalização dos custos, o que inviabiliza a extensão
desse modelo para todas as partes do mundo.
Mas os países do Sul, pontua Mies (1993), necessitam acreditar no mito do desenvolvimento
catching up e confiar no alcance dos padrões do Norte para que deem continuidade à sustentação
desse sistema que implica, geralmente, a exploração da força de trabalho e da natureza no âmbito
interno. O trabalho das mulheres em condições subumanas na indústria têxtil dos países do Sul é um
exemplo da impossibilidade do desenvolvimento igual para todos. E o que se apregoa como sendo
uma parceria de produção, que acaba gerando emprego em tais países, é, na verdade, um modelo de
coerção e violência, visto que ao sistema econômico de tais países muitas vezes não resta outra
opção do que ceder às pressões do mercado externo.
Esse sistema de mercado mundial dominante, continua Mies (1993), voltado para o lucro e o
crescimento infinitos, não pode ser mantido sem a exploração das colônias exteriores e interiores,
visto que sequer internamente ao países chamados de desenvolvidos, realizou-se a promessa da vida
boa para todos. A natureza, as mulheres e outras pessoas, a exemplo dos imigrantes, continuam
garantindo a manutenção da estratégia de desenvolvimento que privilegia o patriarca, branco e
europeu, a quem se destina o privilégio do consumo dos produtos exclusivos. Aos demais, resta o
desejo de alcançar tal consumo, vivendo ou não nas sociedades da abundância.
A origem da concepção de uso e abuso da natureza em favor do desenvolvimento e da
satisfação de interesses de grupos humanos dominantes remonta à modernidade, quando do
surgimento da ciência moderna e da visão mecanicista de mundo que, segundo Merchant (1998),
transformou a visão de natureza: antes compreendida como uma força produtora e geradora de vida,
a natureza foi reduzida a meras partículas inertes, movidas apenas por forças externas, a ser
dissecada, ordenada e transformada em recurso de produção econômica. A visão dualista cartesiana

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passou a ver a natureza como oposta ao humano e à cultura, mais especificamente, à razão
masculina ordenadora, a quem caberia dominar e controlar a natureza – essa força desconhecida e
ameaçadora ao poder do homem.
Ao ser aproximada da natureza pelo homem, a mulher, que também foi avaliada como
contendo em si algo de não racional e descontrolado, passou a ser um espaço de invasão,
dominação, exploração e controle. Isso é representado pela caça às bruxas na Europa, período
nomeado por Mies (1993a) de ‘holocausto das mulheres’, que continuou até a época do Iluminismo
(séc. XVIII), quando teve lugar a romantização e a fragilização da mulher. Conforme pontua a
autora, “parece que as mulheres de vida real, fortes e independentes, tinham primeiro de ser
fisicamente destruídas e subjugadas, antes que os homens da nossa classe burguesa pudessem criar
um novo ideal romântico de mulher” (MIES, 1993a, p.178).
Em momento mais recente, tem-se o que Shiva (1993) denomina de ‘masculinização da
terra-mãe’, quando a natureza já profundamente ameaçada passa a ser objeto das políticas de
proteção e controle dos Estados patriarcais a serviço dos interesses econômicos e políticos
transnacionais que buscam inclusive impor as medidas de controle ambiental sobre as regiões
florestais e biomas dos países do Sul. A integração global e a crescente liberdade do capital são
promovidos em detrimento da não liberdade para empreender das comunidades locais. O papel do
Estado passa a ser o de fornecer os recursos naturais, infraestrutura e proteção de patentes a
empresas transnacionais, como no caso das sementes agrícolas, restringindo o acesso à natureza às
comunidades locais, muitas vezes por meio da legislação de proteção ambiental. Os coletivos locais,
cada vez mais comprimidos e fragmentados, terminam por concorrer no acesso à natureza que ainda
lhes resta e são pulverizados à medida que seus laços orgânicos com a terra são destruídos. O
resultado é uma dupla eliminação da diversidade: da pluralidade de formas de vida humanas e da
biodiversidade não humana.
As próprias políticas de conservação e preservação da natureza emergem à medida que o
esgotamento da natureza se intensifica. Kheel (2008) aponta que esse ethos termina por perpetuar a
predação e a destruição de modo controlado, sustentando uma visão dualista e hierárquica entre
natureza e seres humanos. Mesmo com tais políticas prevalece uma visão instrumental do meio
ambiente natural, que prioriza seu valor material e estético, quando se refere à questão da
preservação da biodiversidade, por exemplo, sem reconhecer o valor em si das formas de vida não
humanas. A natureza ainda é compreendida como um todo ‘selvagem’, uma força estranha e
irracional a ser convertida em algo materialmente valioso para os seres humanos, em algo civilizado

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por meio do processo colonizador. Mas o ‘selvagem’, lembra Mies (1993a), sofre o impacto direto
do processo estrutural violento da modernização. A ‘boa mulher’ e o ‘bom selvagem’ são corpos,
fontes de matérias primas para a produção ascendente do capitalismo. A ‘terra virgem’, a ‘terra
vazia’ e o ‘território de ninguém’ adquirem valor à medida em que se rendem ao progresso. As
mortes de humanos e não humanos que perpassam o caminho do progresso são justificadas como
necessárias para colocar as terras a serviço da produtividade.
Quando a destruição do homem branco colonizador se torna preeminente, o sistema
patriarcal propõe sua ética da correção dos danos causados pelo masculino dominador como parte
do processo civilizatório. Conforme destaca Kheel (2000), trata-se da ética heroica, que chega
somente após o dano ter sido causado, com a proposta de restringir as ações de indivíduos de forma
a controlar seus efeitos destrutivos sem que precisem ser coibidas por completo. Mas a estrutura da
dominação permanece intacta: os homens podem continuar a dispor de outras vidas menos valiosas
que as deles, desde que os estragos sejam ordenados por eles de modo a manter o controle, ou a
conservar o suficiente para o uso posterior.
Esse paradigma desenvolvimentista da dominação que leva ao esgotamento da natureza se
expande de forma cada vez mais intensa no Oeste Baiano, ameaçando o bioma do Cerrado e
afetando a vida das populações tradicionais locais. O cenário desenvolvimentista da região é
essencialmente colonizador, uma vez que o proprietário das grandes extensões de terra é o homem
branco e estrangeiro que chega para se apropriar dos espaços e gerar a ‘riqueza’ que os locais, na
perspectiva do olhar colonizador, não sabem produzir. O ruralista colonizador vem acompanhado de
toda uma estrutura bélica de produção tecnológica desconhecida pelos povos tradicionais da região:
as sementes de grande produtividade, os maquinários de última geração, os sistemas eficientes de
produção associados a produtos químicos de grande potencial de destruição. Toda essa estrutura vai
sendo empregada sem limitação até que o alarme do esgotamento soe mais alto e algumas medidas
de contenção para que se possa continuar dispondo da natureza e se beneficiando da terra sejam
necessárias.
A realização anual da feira do agronegócio na região, a Bahia Farm Show, é o centro
econômico de todo esse processo da expansão agrária. Em 2017, a Associação de Agricultores e
Irrigantes da Bahia (Aiba), a Associação Baiana dos Produtores de Algodão (Abapa) e o Instituto
Aiba (IAiba), realizaram a 13º edição do evento. Uma breve análise das imagens utilizadas nos
cartazes de divulgação do evento permitem facilmente perceber que a atividade do agronegócio no
Oeste da Bahia é exercida pelo homem branco desbravador. É o homem branco, estrangeiro e

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colonizador, como observa Mies (1993a), que vive a procura do que deve ser destruído, que precisa
‘penetrar’ na terra ‘virgem’ e abri-la à civilização branca, que desempenha essa atividade. Nas
imagens dos cartazes do evento, vários desses patriarcas, de diferentes idades, aparecem em
destaque. O sertanejo local não é o homem do agronegócio e sua forma de vida é completamente
excluída desse espaço juntamente com suas famílias. A população local, de pardos, negros e
indígenas, não é considerada adequada para representar a imagem ideal do proprietário agrícola
bem-sucedido.
Em recente evento realizado na Universidade Federal do Oeste da Bahia (UFOB), a VII
Jornada de Geografia do Oeste Baiano (2017), na mesa com o tema “A questão da água no Oeste
da Bahia”, evidenciou-se como a linguagem empregada nos órgãos oficiais do Estado também
reflete a lógica da instrumentalização da natureza, sem colocar em questão as consequências do
desenvolvimentismo agrícola. A água definida como bem público na Constituição Federal de 1988
é constantemente referida como um “recurso hídrico” à disposição dos humanos e para seus
interesses. O discurso sobre as águas baseia-se no potencial dos sistemas aquíferos e bacias
hidrográficas para dar continuidade às atividades humanas. Embora a lei exclua a possibilidade de a
água ser privada, o uso da vazão privada dos rios e a prática de outorga de exploração da água em
poços sem controle para irrigação é a regra na região. Aventa-se a possibilidade da cobrança pelo
uso dessa água, mas essas estratégias de regulamentação de uso não revertem a lógica da dominação
e da exploração. São formas falsas de controle do Estado que aprofundam e legitimam a
apropriação e exploração das partes da natureza.
Para a órgão nacional responsável pela ‘gestão’ da água, a Agência Nacional das Águas
(ANA), um problema referente ao uso da água só começa a existir quando a natureza se torna
incapaz de repor a quantidade de água que dela é expropriada. Enquanto o Aquífero Urucuia,
entendido meramente como uma ‘reserva hídrica’, manter a estabilidade por meio da recarga
através das chuvas, a atividade do homem do agronegócio no Oeste da Bahia continua a ser
executada sem qualquer questionamento. A preocupação do órgão oficial é com o correto
dimensionamento entre a oferta de água (reservas e disponibilidade) e a demanda pelo seu uso, algo
que se acredita que a ciência e a tecnologia podem resolver, por meio de estratégias artificiais de
recarga, por exemplo, mesmo sem considerar o processo de mudança ambiental que atinge o bioma
local em razão do agronegócio. Dessa forma, a água é analisada de modo desintegrado da natureza,
isolada de sua inter-relação com as diferentes formas de vida que compõem o ciclo ambiental do
bioma. A ‘gestão’ da água sob responsabilidade da ANA ocorre, portanto, separada da ‘gestão’

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ambiental sob supervisão do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais
Renováveis (IBAMA).
Em suma, essa prática desenvolvimentista de apropriação e expropriação da natureza tem
levado à extinção o Cerrado em muitas regiões próximas a rede fluvial que abastece a toda a região,
podendo comprometer a absorção de água pelo solo e o reabastecimento do Aquífero Urucuia. O
que se depreende dessa discussão, é que a monocultura está em direta contraposição à existência do
Cerrado e a preservação da natureza. Há uma incongruência profunda entre a ideia da sustentação
da biodiversidade e a manutenção da continuidade da monocultura tecnicizada por meio de
monitoramentos e regulamentações do poder público. O sistema de produção crescente do
agronegócio não é compatível com a preservação ambiental, o que implica a necessidade de
rompimento do paradigma desenvolvimentista e exige, por conseguinte, mudanças nos padrões de
alimentares de consumo da maior parte das populações urbanas, levando a um maior envolvimento
humano com o meio ambiente natural.

Ecofeminismo, mulheres e outras relações com a natureza

A abordagem ecofeminista tem mostrado que o processo de dominação da natureza é parte


do sistema capitalista patriarcal mundial, associado à ideia de modernização, progresso tecnológico
e desenvolvimento. Em diferentes partes do mundo, no entanto, muitos sujeitos – destacando-se os
movimentos organizados por mulheres – têm percebido que esse tipo de desenvolvimento restringe
seus benefícios a alguns. A literatura ecofeminista destaca o protagonismo de mulheres na luta
ecológica, que ocorre devido à percepção de uma vinculação entre a ameaça a formas de vida e
organização humanas e a destruição do meio ambiente. Tais movimentos organizados de mulheres
têm se dado conta da relação entre a violência patriarcal contras as mulheres e outros indivíduos que
não correspondem ao perfil do homem masculino branco e a dominação da natureza tendo em vista
sua exploração para o acúmulo do capital em detrimento da destruição de modos de vida de
coletivos locais tradicionais. Shiva e Mies (1993) pontuam que apesar das diferenças culturais
presentes nas diferentes partes do mundo, “as mulheres superam as diferenças e apelam ao sentido
de solidariedade que considera essas diferenças enriquecedoras das suas experiências e lutas, em
vez de acentuar as fronteiras” (SHIVA e MIES, 1993, p. 14). Considerando esse contexto, a
abordagem ecofeminista de Shiva e Mies (1993) vem resgatar a perspectiva da agricultura de
subsistência, que reconhece os limites do planeta enquanto entidade de sustentação da vida.

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No Brasil, o próprio Guia Alimentar da População Brasileira (2014) chama a atenção para a
importância da agricultura familiar enquanto elemento fundamental para garantir a segurança
alimentar e nutricional, indo além do simples acesso a qualquer alimentação. Apesar da redução da
fome no Brasil, as deficiências de nutrientes ainda são prevalentes em grupos vulneráveis da
população, como indígenas, quilombolas, crianças e mulheres que vivem em áreas vulneráveis. Isso
implica também uma reflexão sobre o processo de produção e distribuição de alimentos que, na
proposta do guia, deve priorizar a agricultura orgânica de pequeno porte, com enfoque na economia
local, a fim de assegurar que a produção de alimentos ocorra em consonância com o respeito a
direitos fundamentais e a promoção da justiça social. Esse modelo agrícola é capaz de produzir uma
variedade alimentar, favorecer formas mais solidárias de viver, contribuir para promover a
biodiversidade e reduzir o impacto ambiental da produção e distribuição de alimentos.
Nos países em desenvolvimento, conforme pontua Shiva (1993a), conta-se com um papel
muito importante das mulheres na produção e processamento alimentares, embora esse aspecto
permaneça invisível, pois o conhecimento das mulheres é negligenciado. Grande parte das mulheres
constrói sua identidade e garante sua sobrevivência por meio da agricultura e de atividades com ela
relacionadas. Ao tratar da atividade das mulheres na Índia rural, Shiva (1993a) destaca a
participação das mulheres nos ciclos produtivos, desconstruindo a ideia de que seriam simples
‘donas de casa’. São elas que detém o conhecimento das diversas etapas da produção e das épocas
mais adequadas para sua realização em consonância com os ciclos da natureza.
Na contramão dessa proposta e a partir da perspectiva desenvolvimentista do agronegócio,
as atividades produtivas tradicionalmente desenvolvidas por muitos povos locais passam a ser
desvalorizadas e classificadas como atividades de ‘baixa produtividade’, uma vez que não geram
commodities valorizados no mercado interno e externo (MIES, 1993). O modo de vida dessas
pessoas não é reconhecido como trabalho produtivo. Tal entendimento pressupõe que uma
determinada região só se torna produtiva quando explorada com recursos tecnológicos para garantir
a máxima extração do potencial da terra no menor tempo. Nesse contexto, abre-se cada vez mais
espaço para a livre expansão do agronegócio em detrimento da agricultura de subsistência,
negando,-se, como pontua Shiva (1993a, p. 301), “a liberdade às trabalhadoras rurais para produzir,
processar e consumir alimentos de acordo com as necessidades ambientais, econômicas e culturais”.
Aos poucos, a produção de alimentos torna-se um projeto de concentração de poder nas mãos dos
interessados na agroindústria. As políticas domésticas e internacionais de incentivo ao agronegócio

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e as empresas transnacionais do setor agrário que controlam a produção e distribuição de alimentos
atestam esse fato.
Todavia, essa abordagem desenvolvimentista não representa um desenvolvimento autêntico
para todos, humanos e formas não humanas de vida. Antes, trata-se de um ‘des-envolvimento’, isto
é, uma falta de envolvimento com a natureza e um distanciamento dos ciclos de vida naturais,
considerados um impedimento para a perspectiva acelerada da produção do agronegócio. Se um
semente de milho crioula leva quatro meses para gerar novas sementes que podem ser plantadas
para dar continuidade ao ciclo da vida, a semente geneticamente modificada gera um produto a ser
comercializado em apenas três meses. Mas, é uma semente criada em laboratório, separada da
natureza, que já nasce morta e sem liberdade. É a expressão de uma natureza cujo valor é medido
apenas como objeto de apropriação, de recurso que pode ser transformado em rendimento
monetário. Conforme pontua Shiva (1993b, p. 45), a colonização da semente vê a natureza como
um entrave e, à semelhança da colonização do corpo da mulher, “lucros e poder passam a estar
intimamente associados à invasão de todos os organismos biológicos”.
Os povos tradicionais do Oeste da Bahia, por outro lado, produzem para a subsistência a
partir de seu próprio conhecimento e adaptam seus sistemas alimentares à variabilidade e
disponibilidade dos ciclos de alimentos e da natureza como um todo, respeitando inclusive os ciclos
de chuvas do bioma Cerrado e a disponibilidade da água sem interferir nos sistemas de recarga dos
rios e aquíferos. Assim, a o controle do uso da água pelo Estado só se faz mister diante da
existência de grandes propriedades de terra dedicadas ao agronegócio. As práticas dos povos locais
dispensam as políticas fragmentadas de ‘gestão’ da natureza pelo Estado, pois veem-se como um
elemento parte da natureza que necessita se adequar aos entreciclos da biodiversidade. Porém, o
conhecimento dos povos territoriais não é levado em consideração; é sempre a ciência como um
discurso de poder que precisa dar legitimidade a um discurso de uso reproduzido pelo Estado que
favorece aquele que vem de fora para tornar a região ‘produtiva’.
O mesmo Oeste da Bahia que preconiza atividades de elevado impacto ambiental sobre o
Cerrado é também espaço de resistências, quando comunidades locais se dão conta de que o alegado
desenvolvimento regional implica seu empobrecimento, a retirada das condições de sua
sobrevivência, quando não a expulsão de suas terras. Nega-se lhes o acesso à natureza com a qual
permanecem integrados numa relação de proximidade, rompendo as simbioses estabelecidas por
meio da aprendizagem dos antepassados. Neste momento, há diferentes comunidades tradicionais –
Cachoeira, Marinheiro, Área de Salú, Cacimbinha, Gatos e Aldeia – com seu livre deslocamento

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limitado pela construção de cercas, guaritas com vigias armados de um condomínio do agronegócio
que se estabeleceu na foz do Rio Preto, nos limites entre os Estados da Bahia e Tocantins. O
documentário recentemente lançado Gerações Geraizeiras (2017) mostra justamente a luta dos
povos locais contra a prática exploratória, destrutiva e violenta do agronegócio, que ameaça todas as
vidas parte de um ecossistema, incluindo as humanas.
Seguindo na direção contrária da atividade bélica do agronegócio, mulheres organizadas em
cooperativas e associações, que, por meio de atividades extrativistas mantém-se mais integradas ao
ecossistema local, enquanto contribuem para o sustento de suas famílias, resistem às investidas dos
homens do agronegócio. Isso torna claro que a garantia da autonomia e de vida digna para muitas
mulheres de comunidades tradicionais está vinculada à própria preservação do meio ambiente. E,
nesse sentido, mulheres e natureza estão situadas do lado mais fraco dos dualismos hierárquicos de
dominação. Um exemplo de resistência às práticas destrutivas do agronegócio pode ser encontrado
na associação de mulheres da comunidade de Cacimbinha, que executa trabalhos manuais a partir
da coleta extrativista do capim dourado. Todavia, com os cercamentos realizados pelas fazendas, o
acesso das mulheres a grandes regiões para coleta de capim tem sido dificultado.

Considerações finais

A perspectiva desenvolvimentista aplicado à atividade agrícola tem levado à deterioração


abrangente de ecossistemas, uma vez que compreende a natureza como um mero instrumento ou
objeto a ser explorado em favor de interesses econômicos prioritários de determinados grupos
humanos. Com isso, dá-se continuidade à visão mecanicista que concebe a natureza como uma
simples matéria a ser invadida, explorada, controlada e dominada pelo homem para seu benefício.
Essa abordagem prejudica também diferentes comunidades humanas, transformando seus modos de
vida tradicionais e mais harmoniosos com o ambiente natural em entrave para o desenvolvimento,
além de promover relações de separação e distanciamento da natureza. Nega-se a possibilidade de
perceber uma continuidade entre as diferentes formas de vida, humanas e não humanas, e sua inter-
relação simbiótica. Essa compreensão de desenvolvimento termina por favorecer determinados
grupos sociais ao passo que outros perdem o direito de viver seus modos de vida tradicionais e,
inclusive, sua autonomia e segurança alimentar e nutricional. Tal processo encontra-se em plena
evolução no Oeste Baiano com a expansão do agronegócio nas últimas décadas.
Ao mesmo tempo, comunidades tradicionais, muitas delas com atividades de subsistência
desenvolvidas por mulheres, resistem à lógica desenvolvimentista patriarcal e capitalista, pois não

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tratam a natureza como mero recurso, oposto aos humanos, a ser dominado. Mantêm-se na
contramão do ‘des-envolvimento’ com suas formas de vida mais integradas à natureza, preservando,
de fato, a biodiversidade.
Com base nesse contexto controverso de um desenvolvimento econômico prejudicial à
natureza e a diversas populações humanas locais e tradicionais, é preciso repensar em que medida
assinar o Acordo de Paris ao mesmo tempo em que se mantém o apoio político e econômico
incondicional ao agronegócio pode, realmente, garantir a proteção da natureza. Tal acordo termina
por se constituir em mais uma falsa estratégia de proteção e preservação do meio ambiente natural à
medida que não se questiona a expansão da ideia desenvolvimentista como o único caminho viável
para a humanidade.
Se preservar a natureza ou os diferentes biomas e ecossistemas existentes é o que se almeja,
então será preciso redirecionar as relações humanas com o mundo natural de modo a promover um
maior envolvimento com a natureza e a construção de relações éticas e de respeito com as mais
diversas formas de vida, humanas e não humanas, para além da visão simplificada da natureza
como um recurso à disposição do uso de grupos humanos.

Referências

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brasileira. 2. ed. Brasília: Ministério da Saúde, 2014.

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MIES, M. O dilema do homem branco: a procura do que deve ser destruído. In: MIES, M; SHIVA,
V. Ecofeminismo. Lisboa: Instituto Piaget, 1993a, p. 175-212.
______, M. O mito do desenvolvimento catching-up. In: MIES, M; SHIVA, V. Ecofeminismo.
Lisboa: Instituto Piaget, 1993, p.77-94.

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Seminário Internacional Fazendo Gênero 11 & 13 th Women’s Worlds Congress (Anais Eletrônicos),
Florianópolis, 2017, ISSN 2179-510X
SHIVA, V. A masculinização da terra-mãe. In: MIES, M; SHIVA, V. Ecofeminismo. Lisboa:
Instituto Piaget, 1993, p. 145-154.
_______, V. GATT, agricultura e mulheres do terceiro mundo. In: MIES, M; SHIVA, V.
Ecofeminismo. Lisboa: Instituto Piaget, 1993a, p. 301-319.
SHIVA, V; MIES, M. Introdução: porque escrevemos este livro juntas. In: MIES, M; SHIVA, V.
Ecofeminismo. Lisboa: Instituto Piaget, 1993, p. 9-34.

The ecofeminist critique of the development paradigm: the need to rethink human relation
with nature

Astract: The development paradigm allied to a capitalist and patriarchal system leads nature to a
state of exhaustion. In this system of relations nature is continuously conceived as a resource to be
dominated and exploited. In Brazil, specifically, agricultural development is justified by economic
policies that support the exportation of commodities put together by agribusiness. In this paper, we
defend the incompatibility between developmental agribusiness, which adopts mechanized
monoculture and large scale agriculture, and the preservation of nature and traditional human
communities. Based on ecofeminism, we proffer the necessity of reviewing our relationship with
nature in order to prioritize ways of life that promote social and gender justice and are more
integrated to the environment. Through a theoretical-philosophical and bibliographical research it is
aimed in this work to offer a critical reflection on the perspective of development. Aforementioned
perspective is placed behind the justification of agribusiness and it is opposed to the activities
carried out by women in forms of cooperativism and associativism, which aims at environmental
preservation and traditional communities maintenance. Therefore, we call upon ecofeminist writers,
who address urgent environmental issues, such as Carolyn Merchant, Vandana Shiva, Maria Mies
and Marti Kheel, in order to get a closer look at the growing human practices of appropriation of the
natural environment to control its parts.
Keywords: Development. Ecofeminism. Environment. Gender. Women.

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Seminário Internacional Fazendo Gênero 11 & 13 th Women’s Worlds Congress (Anais Eletrônicos),
Florianópolis, 2017, ISSN 2179-510X

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