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COMUNIDADES RURAIS x VISIBILIDADE SOCIAL

Carolina Vanetti Ansani1


Gilmara Rodrigues Casagrande2
Waldicleide de França Santos Gonçalves3

Resumo:

O presente artigo pretende apresentar a síntese interdisciplinar de olhares


multifacetados sobre projetos de pesquisas em áreas distintas, quais sejam: educação,
linguagem e política, das discentes do Programa de Mestrado Interdisciplinar em Ciências
Humanas, da Universidade Federal dos Vales do Jequitinhonha e Mucuri-UFVJM. Ressalta-se
que os argumentos aqui apresentados partiram de discussões que pretendiam encontrar eixos
comuns sobre os projetos, ou seja, uma síntese capaz de conectar e, portanto, permitir a
interdisciplinaridade. Para tanto, partimos do pressuposto de que “o fio que une as pedras”4,
seria as comunidades rurais e a sua luta constante por visibilidade, direitos e cidadania.

Palavras-chave: Comunidades rurais. Lutas sociais. Visibilidade. Cidadania.

1.Introdução

O presente artigo pretende apresentar a síntese interdisciplinar de olhares


multifacetados sobre projetos de pesquisas em áreas distintas, quais sejam: educação,
linguagem e política, das discentes do Programa de Mestrado Interdisciplinar em Ciências
Humanas, da Universidade Federal dos Vales do Jequitinhonha e Mucuri-UFVJM.
Ressalta-se que os argumentos aqui apresentados partiram de discussões que
pretendiam encontrar eixos comuns sobre os projetos, ou seja, uma síntese capaz de conectar
e, portanto, permitir a interdisciplinaridade das pesquisas em: “Programas/projetos de
1 Bióloga, graduada pela Universidade Federal de Viçosa. Mestranda no Programa de Pós Graduação strictu
senso da UFVJM, na linha de pesquisa: Educação, Cultura e Sociedade.

2 Professora graduada em Letras e Língua Espanhola pela Universidade Estadual de Montes Claros-
UNIMONTES. Mestranda do Programa de Pós Graduação strictu senso da UFVJM, na linha de pesquisa:
Linguagem, Cultura e Sociedade.

3 Advogada. Graduada em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais. Mestranda do
Programa de Pós Graduação strictu senso da UFVJM, na linha de pesquisa: Política, Cultura e Sociedade.

4 FERNANDES, Eliana; GUIMARÃES, Flávio; BRASILEIRO, Maria do Carmo (ORGS). O fio que une as
pedras: A pesquisa interdisciplinar na pós-graduação. São Paulo: Ed.Biruta, 2002.
escolarização de sujeitos de comunidades campesinas do Vale do Jequitinhonha”; “Produção
artística/intelectual dos indígenas Xacriabás” e “Políticas públicas capazes de implementar
direitos humanos às comunidades quilombolas da zona rural de Serro/MG”.
Vislumbramos que o caminho da interdisciplinaridade enriquece e amplia não apenas
os resultados das pesquisas, bem como transforma o objeto e os próprios pesquisadores
envolvidos. A interdisciplinaridade supera os processos de apropriação rompendo com
tradições de modo a descortinar novos sentidos.
Isso significa afirmar que cada disciplina movimenta-se diante de um determinado
horizonte e de seus pré-juízos (incluímos aqui os referenciais teóricos e os jargões linguísticos
de cada área de conhecimento).
Esses pré-juízos são caracterizados por Gadamer (1999, p.281) como “a realidade
histórica de seu ser”, e confirmam a premissa de que “a realidade dada é inseparável da
interpretação” (GADAMER, 2002, p.391). Pois bem, no jogo interdisciplinar não se negam as
bases epistemológicas ou metodológicas de cada jogador, mas as expomos a uma autocrítica
em prol de um esforço de nova operacionalização.
Esse é um caminho possível, mas não previsível, da fusão de horizontes das
pesquisas interdisciplinares. Essa fusão não se dá na origem do processo, mas se constrói
durante o momento em que questionamos as nossas próprias verdades disciplinares sob o
olhar de outros paradigmas, como um diálogo de fronteiras que elabora uma nova forma de
transitar através e com essas diferenças.
Diante desta fusão de horizontes, percebemos que o território rural como ambiente de
disputa entre grandes empreendimentos, fazendeiros e comunidades tradicionais apresentava-
se como um primeiro eixo em comum das pesquisas.
A história da ocupação territorial brasileira, realizada com fins extrativistas,
desalojou e dizimou indígenas, trouxe mão-de-obra africana escravizada para o país e teve por
base legal a concessão de terras a partir das capitanias hereditárias e sesmarias.
As pequenas comunidades de agricultores camponeses se estabeleciam dentro dessas
sesmarias, em áreas permitidas pelos donos, ou em áreas de pouco interesse por parte dos
fazendeiros. Da mesma forma as comunidades indígenas foram sendo comprimidas a zonas de
resistência, fosse pela dificuldade ambiental, como florestas mais densas, barreiras
geográficas, ou pelo pouco interesse em ocupação de determinados locais. Os
afrodescendentes como forma de resistência também estabeleceram comunidades isoladas
quando fugiam do cativeiro, e após a Lei de Terras passaram a ocupar locais marginais onde
poderiam se estabelecer (OLIVEIRA, 2001; NOZOE, 2006).
Dentro do recorte do presente artigo, é necessário frisar que as "comunidades rurais"
compreendem uma diversidade de identidades (geraizeros, vazanteiros, arrendatários,
meeiros, coletores de flores, indígenas, quilombolas, assentados, sem-terra, reassentados, etc),
entretanto, partindo da proposta interdisciplinar dos projetos de pesquisa em questão, nosso
segundo eixo em comum consiste em questionar os rumos das identidades quilombolas,
indígenas e de campesinos pertencentes ao meio rural.
Vislumbramos ainda que o desenvolvimento urbano no Brasil se deu de forma lenta,
visto que a base da economia sempre fora agrícola. No entanto, em meados do século
passado, com a implantação de programas de desenvolvimento industrial e territorial, inicia-se
o investimento em infraestrutura que interconectasse regiões isoladas do país, tendo seu ápice
no final do século XX, em que ocorre em poucas décadas uma inversão da proporção de
habitantes urbanos e rurais no país (RIBEIRO, 2007; SERVILHA, 2012).
Neste contexto, as políticas modernizantes, a exemplo de todas as políticas de
desenvolvimento adotadas anteriormente, levavam em conta aspectos e parâmetros que
beneficiavam apenas as camadas superiores do estrato social (grandes latifundiários,
empresários e empresas). A lógica de modernização capitalista adotada acabou então por
aprofundar as desigualdades sociais e regionais (RIBEIRO, 2007; SERVILHA, 2012).
Por outro lado, a amplificação do ideal de modernidade, que tinha por base a lógica
de produção capitalista também possibilitou a percepção nas camadas subalternas da noção de
direitos, organização e luta política. Fato é que historicamente, camponeses, indígenas ou
quilombolas necessitaram desenvolver as mais variadas formas de resistência e valorização,
em razão da insistente e cruel invisibilidade frente a políticas públicas e/ou sociais.
Portanto, o terceiro e último ponto interdisciplinar do presente artigo, exsurge pelas
lutas históricas dessas comunidades, demandando políticas públicas capazes de assegurar-lhes
e implementarem direitos individuais e coletivos, que reconheçam e efetivem a sua cidadania,
visto que historicamente excluídos e marginalizados pela sociedade e pelo Estado Moderno.

2. O território rural em questão

O território rural é aquele espaço em que se colocam desde latifundiários, empresas


agrícolas, pequenos agricultores familiares, camponeses, proletários rurais e comunidades
tradicionais. Como todo território, é um espaço em que se apresentam forças e interesses,
muitas vezes em sentidos distintos, conforme descrito por Fernandes (2014):
O território é um espaço apropriado por uma determinada relação social que o
produz e o mantém a partir de uma forma de poder. Esse poder, conforme afirmado
anteriomente, é concedido pela receptividade. O território é ao mesmo tempo uma
convenção e uma confrontação. Exatamente porque o território possui limites, possui
fronteiras, é um espaço de conflitualidades. (FERNANDES, 2014, s/n).

É interessante salientar que o território constitui-se então, não só como um espaço


geográfico, mas também abarca diversas dimensões sociais e políticas. E dentre as
multidimensões do território rural percebe-se uma vasta diversidade de grupos marginalizados
e seus esforços para a sobrevivência e melhoria na qualidade de vida.

Esses povos e comunidades por muito tempo foram obrigados, por força do Estado,
ou por força do poder econômico e político a se conformar em subsistir em áreas onde não
havia interesses maiores. Nesse processo de expulsão encontram-se as grilagens, as
concessões florestais, as unidades de conservação, empreendimentos de mineração, dentre
outros.

No Estado de Minas Gerais esse processo é fruto da política nacional


desenvolvimentista de Juscelino Kubistchek e ganha mais força durante o período militar
(SERVILHA, 2012, p. 37-38). Essa política tinha por proposta a busca por uma integração do
Estado, pressupondo dois processos indissociáveis: a coesão territorial e a identidade coletiva.
Para tanto, levanta-se a necessidade de uma apropriação simbólica do 'sertão mineiro', a ser
ocupado por novas práticas sócio espaciais para fins de sua incorporação a um processo de
reordenamento de território do Estado em construção.

E ao contrário do que se acredita, que essa expansão da globalização capitalista


levaria a uma homogeneização das características sócio espaciais dos territórios, ocorreu uma
amplificação das desigualdades regionais, segundo novas lógicas, interesses e mecanismos de
controle e integração, fruto de grupos hegemônicos via Estado (SERVILHA, 2012, p.38-40).

Mas essas movimentações não foram passivas. Houveram embates, mobilizações,


que dependendo do período se deram de forma mais ou menos violentas (OLIVEIRA, 2001.
p. 190-194). E como resultado formaram-se diversas organizações, desde sindicatos a
movimentos sociais, ONG's que lutaram para dar maior visibilidade à essas populações em
busca de garantias e conquistas de direitos (RIBEIRO, 2007; DAYRELL, 2011)

Uma conquista vultuosa em termos de direitos fundamentais formalizou-se com a


Constituição da República de 1988, que garante a titulação das terras ocupadas por
comunidades remanescentes de quilombos, além das políticas nacionais para os povos e
comunidades tradicionais, bem como as políticas nacionais de agroecologia, programas de
apoio a produção familiar, programas de educação do campo, entre outros.

3. Quais são as identidades do campo?

Tanto as comunidades camponesas quanto as comunidades tradicionais, dada a


conjuntura da modernidade/pós-modernidade neste mundo inevitavelmente globalizado,
sofrem processos modernizantes, visto que o indivíduo vivencia novas formas de se relacionar
e negociar, em decorrência do crescimento e da aceleração de redes econômicas e culturais
desenvolvidas pelos sistemas do mercado mundial.

Neste sentido, as influências da globalização, perpassam efetivamente toda e


qualquer região, seja ela qual for, afetando as formas de vestir, comer, o gosto musical, até o
uso da língua, as danças típicas, enfim, transformando a identidade e a “cultura” das
comunidades campesinas.

Não obstante a realidade globalizante, as comunidades rurais ainda sofrem com a


estigmatização formulada pelo discurso moderno, que os coloca como representantes do
atraso, do arcaico e da improdutividade.

Stuart Hall (1992) ao discutir sobre a identidade na pós- modernidade reflete sobre
um fenômeno denominado por ele de tradução:

(…) Este conceito descreve aquelas formações de identidade que atravessam e


intersectam as fronteiras naturais, compostas por pessoas que foram dispersadas para
sempre de sua terra natal. Essas pessoas retêm fortes vínculos com seus lugares de
origem e suas tradições, mas sem a ilusão de um retorno ao passado. Elas são
obrigadas a negociar com as novas culturas em que vivem, sem simplesmente serem
assimiladas por elas e sem perder completamente suas identidades. Elas carregam os
traços das culturas, das tradições, das linguagens e das histórias particulares pelas
quais foram marcadas. A diferença é que elas não são e nunca serão unificadas no
velho sentido, porque elas são, irrevogavelmente, o produto de várias histórias e
culturas interconectadas, pertencem a uma e, ao mesmo tempo, a várias "casas" (e
não a uma "casa" particular).

Ressalta-se que as pessoas pertencentes a essas culturas híbridas têm sido obrigadas a
renunciar ao sonho ou à ambição de redescobrir qualquer tipo de pureza cultural "perdida" ou
de absolutismo étnico. Elas estão irrevogavelmente traduzidas. A palavra "tradução", observa
Salman Rushdie, "vem, etimologicamente, do latim, significando "transferir"; "transportar
entre fronteiras". Escritores migrantes, como ele, que pertencem a dois mundos ao mesmo
tempo, "tendo sido transportados através do mundo, são homens traduzidos" (Rushdie, 1991).
Eles são o produto das novas diásporas criadas pelas migrações pós-coloniais. Eles devem
aprender a habitar, no mínimo, duas identidades, a falar duas linguagens culturais, a traduzir e
a negociar entre elas. As culturas híbridas constituem um dos diversos tipos de identidade
distintivamente novos produzidos na era da modernidade tardia (Hall, 2003, p. 84).

Com essa nova era diaspórica é possível não mais dizer de que ponto surgiu a cultura
e como ela se define, pois a globalização tem o poder de redefini-la a cada instante. Sobre
esse assunto, Stuart Hall, expõe que:

É importante ver essa perspectiva diaspórica da cultura como uma subversão dos
modelos culturais tradicionais orientados pela nação. Como outros processos
globalizantes, a globalização cultural é desterritorializante em seus efeitos. Suas
compressões espaço-temporais, impulsionadas pelas novas tecnologias, afrouxam os
laços entre a cultura e o “lugar”. (HALL, 2009, p.36)

O local da cultura é conhecido, porém não é mais possível dizer de sua origem, pois
esse processo globalizador fez a dispersão de seu significado e de sua particularidade. Em
decorrência da globalização, a cultura passou por uma disseminação de informações, de
mensagens, de modos de vida, para um processo de hibridização. Nesse processo de
hibridização, Hall postula que, 

As culturas emergentes que se sentem ameaçadas pelas forças da globalização,


diversidade e hibridização, ou que falham no projeto de modernização, podem se
sentir tentadas a se fechar em torno de suas inscrições nacionalistas e construir
muralhas defensivas. A alternativa não é apegar-se a modelos fechados, unitários e
homogêneos de “pertencimento cultural”, mas abarcar os processos mais amplos – o
jogo da semelhança e da diferença – que estão transformando a cultura no mundo
inteiro. (HALL, 2009, p.45)

Com a hibridização, as mudanças foram rápidas, todos passaram por um processo de


adaptação, renovação e aprendizagem, e no âmbito da cultura não foi diferente, visto que a
rápida circulação de informações, avanços tecnológicos fizeram as práticas culturais se
modificarem, se misturarem e consequentemente fragilizarem “as identidades”.

Silva afirma que não podemos nos esquecer dos reais motivos que levaram o
surgimento de uma cultura Hibrida. Assim, ele afirma que:

Não se pode esquecer, entretanto, que a hibridização se dá entre identidades situadas


assimetricamente em relação ao poder. Os processos de hibridização analisados pela
teoria cultural contemporânea nascem de relações conflituosas entre diferentes
grupos nacionais, raciais ou étnicos. Eles estão ligados a histórias de ocupação,
colonização e destruição. Trata-se, na maioria dos casos, de uma hibridização
forçada. (SILVA, 2000, p. 87).

De acordo com os autores, a hibridação não ocorreu de maneira natural, mas através
de um processo forçado devido à colonização. Fato é que essa inserção/colonização
desenvolveu uma nova maneira de “fazer cultura”, novas perspectivas que não as destruíram,
porém permitiu-lhes o desenvolvimento de seres distintos, híbridos e plurais por excelência.

Podemos ressaltar que alguns autores veem o processo da globalização como algo
que descaracterizou “a cultura”, tendo em vista que esta deixou de ser particular e local para
se tornar pública e global. Afetando assim, significativamente, as identidades dos povos e
nações. Outros já veem o processo de mudança como algo natural e inevitável, pois segundo
estes não houve destruição das culturas, mas sim uma ressignificação, uma nova maneira de
perceber o mundo na era moderna.

Portanto, as identidades do campo são e serão híbridas e ressignificadas, tais como as


identidades “urbanas” e/ou modernas, por consequência do processo globalizador, entretanto
isto não as inferiorizam ou as descaracterizam enquanto identidades campesinas, quilombolas
ou indígenas, ao contrário, acentua suas especificidades culturais, visto que suas práticas terão
símbolos e significados distintos daqueles “homogeneizados”.

4. A diversidade cultural e a ressignificação da cidadania

A problemática das diferenças culturais decorre da diversidade e complexidade


humana, expressando-se na linguagem, na forma de vestir, nas tradições, nos valores
cultuados, nas religiões, nas variações pelas quais as sociedades se organizam e partilham
suas tarefas; como interagem com o meio ambiente, dentre tantos outros aspectos pelos quais
se pode compreender e reconhecer a convivência humana.

Segundo João Martins Bertaso (pag.14, 2013), a sociedade brasileira se caracteriza


por sua diversidade cultural,
(…) composta de um conjunto plural e diversificado de grupos étnicos, que a faz
multicultural, tanto pela herança pluralista dos povos indígenas, quanto pelas
imigrações intercontinentais provenientes de diversos grupos étnicos europeus,
africanos e asiáticos. Cada qual com sua dinâmica de crenças, valores, tradições
culturais, convicções religiosas e artísticas, identidades e práticas sociais específicas
que formam hoje o complexo acervo das práticas sociais com as quais convivemos.

A diversidade cultural torna compreensível, assim, a realidade multicultural em que


vivemos, de modo especial, seus desafios que vão se multiplicando em um mundo que oscila
entre a unidade que tende à homogeneização, que vem na esteira da globalização, e a
pluralidade que implica respeito à alteridade, às diferenças e à necessidade de interação entre
as culturas e os mais diversos grupos, a fim de se estabelecer maneiras recíprocas de convívio
e respeito mútuo.

Importante destacar a distinção feita por Stuart Hall (2003, p.52-3) entre
multicultural e multiculturalismo:

O primeiro é uma expressão qualitativa, que descreve as características sociais e os


problemas de governabilidade apresentados por qualquer sociedade na qual
diferentes comunidades culturais convivem e tentam construir uma vida em comum,
ao mesmo tempo em que retêm algo de sua identidade ‘original’. Já o termo
‘multiculturalismo’ é substantivo, referindo-se a “às estratégias e políticas adotadas
para governar ou administrar problemas de diversidade e multiplicidade gerados
pelas sociedades multiculturais” e, acrescenta que descreve vários processos e
estratégias políticas inacabadas.

Boaventura de Souza Santos e João Arriscado Nunes (2003) referem que os termos
multiculturalismo, justiça multicultural, direitos coletivos, cidadania plurais são utilizados
para tratar as questões que envolvem diferença e igualdade, “entre a diferença de
reconhecimento da diferença e a redistribuição que permita a realização da igualdade”.

Os autores apontam que o multiculturalismo surgiu como uma designação para


traduzir “a coexistência de formas culturais ou de grupos caracterizados por culturas
diferentes” nas sociedades modernas e transformou-se num “modo de descrever as diferenças
culturais em um contexto transnacional e global”. Na mesma esteira definem que o
multiculturalismo emancipatório está baseado no reconhecimento da diferença, no direito à tal
diferença e na possibilidade de coexistência ou construção de uma vida comum, que
ultrapasse os mais variados tipos de diferenças.

Considerando o passado de invisibilidade das comunidades rurais, temos que “a


cidadania carece de ressignificação quanto ao seu conceito, a fim de viabilizar-se como um
instituto inclusivo, de autorrespeito, de respeito e reconhecimento aos diferentes, para que
possa tornar-se uma proposta participativa de envolvimento social, onde os direitos, os
deveres e as responsabilidades se articulem e se complementem”. (BERTASO, 2013, pag. 15)

Para o mesmo autor, a cidadania há que ser compreendida na sua dimensão


paradoxal. As duas principais dimensões de cidadania, a jurídica e a política, vão
incorporando novas significações. A dimensão jurídica se sustenta na pretensão de uma
sociedade justa e que comporta formas desejadas de reconhecimento individual e coletivo.
(...) Já a dimensão de potencial político está associada às lutas sociais. A primeira legitima o
exercício dos direitos, tendendo a garantir, redistribuir e incorporar os avanços sociais,
inclusive aqueles de natureza simbólica e material. A dimensão política funciona como um
conjunto de condições de lutas daqueles que estão excluídos e/ou esquecidos socialmente,
sempre que as formas de vida tornam intoleráveis caracterizando um quadro de indignidade.
(BERTASO, 2012, p. 16)

Assim, podemos verificar que a cidadania pode ser concebida como um movimento
político e social continuado, um processo em permanente potência de libertação das opressões
sociais, ou então perderá seu sentido.

Bertazo (2012), corrobora com este movimento, asseverando que os “cidadãos


atores dos direitos humanos, civis, políticos, sociais, culturais e solidários implicam
reconhecimento de que todos os humanos almejam igual dignidade como condição de
realizar sua felicidade”. (...) A cidadania realizando a dignidade de todos e de cada um resulta
numa sociedade de proteção e inclusão”.

As legislações estabelecidas em torno das comunidades tradicionais são fruto de


extensas elaborações do movimento negro e do movimento indígena em torno de direitos
específicos, da mesma maneira que leis e programas específicos para comunidades de
camponeses e pequenos agricultores familiares representam conquistas históricas de minorias
“colonizadas”.

Em síntese, percebemos que há nas últimas décadas uma movimentação das camadas
“subalternas” no sentido de garantir o acesso a direitos individuais e coletivos, bem como aos
chamados “direitos humanos” tão propagados e instituídos no processo modernizador do país,
entretanto, as especificidades destas minorias vulneráveis são enfatizadas a fim de garantir seu
reconhecimento formal/legal, bem como material/substancial, resistindo deste modo, às
tensões homogeneizadoras que historicamente firmavam desigualdades sociais, políticas e
econômicas.

5. Considerações Finais

Verificamos que o exercício da interdisciplinaridade é difícil e complexo, mas nunca


deixa de ser recompensador. É difícil aceitar as limitações das disciplinas no entendimento de
questões e na elaboração de linhas reflexivas mais complexas. A linguagem que cada
disciplina possui, seus métodos, que são fruto de suas constituições enquanto disciplinas,
também se apresentam como dificultadores na produção de sínteses.

No processo de elaboração de sínteses para a elaboração deste artigo, passamos por


etapas importantes, desde o estranhamento inicial, em que não se via, a princípio, um caminho
para a síntese, passando por dificuldades no entendimento de conceitos comuns a serem
utilizados, até culminar numa intensa troca de conteúdos e leituras que, além de permitirem a
produção de uma elaboração comum – o presente artigo – enriqueceu sobremaneira as três
linhas de pesquisa específicas.

No processo de interdisciplinaridade focamos em temas que se permitiram dialogar,


pois tratavam de eixos comuns dos três projetos ou pontos marcantes, quais sejam:
comunidades rurais, lutas por territórios, políticas de modernização, busca incessante por
visibilidade, direitos e cidadania. Esse processo histórico de lutas e busca de direitos
demonstra o papel social e político que esses indivíduos têm assumido na sociedade.

Como argumentado, muito se discute a perda de identidade como fruto de


desterritorização, pela influência da globalização, ou da diáspora, da hibridização cultural
e/ou do multiculturalismo, entretanto, apesar das tentativas de homogeneização do mercado
mundial, apesar das diversas influências “estrangeiras”, modernizantes e dos processos de
mudanças sofridas pelas comunidades objeto do presente recorte, podemos afirmar que o que
houve foi um processo de ressignificação cultural, e que as mudanças são como afirma
Azibeiro (2003, p.93) apud Bhabha (2003): “[...] construções histórico-culturais, que
decorrem da relação de poder, nas quais os diferentes grupos sociais, particularmente os
subalternos, podem redescobrir e reconstruir o valor positivo de suas culturas e experiências
específicas, ressignificando-as”.

A guisa de conclusões, ressaltamos que as perspectivas de cada linha de pesquisa


fundiram-se na síntese apresentada, na medida em que passaram a corroborar com os eixos
em comuns e acrescentar a partir de olhares distintos, complexos e profundos as suas
contribuições sobre os eixos, permitindo-nos enriquecer os horizontes e acima de tudo,
encontrar “os fios que unem as pedras”.

6. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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