Você está na página 1de 9

EMPERAIRE, Laure (org.) (2021). Gerar, cuidar e manter a diversidade biológica.

In:
CUNHA, Manuela Carneiro; MAGALHÃES, Sônia Barbosa; ADAMS, Cristina. Povos Tradicionais
e Biodiversidade no Brasil. São Paulo: SBPC, p. 18-57.1

Kátia Simone Araújo Costa2

Esta resenha objetiva compartilhar a importância das pesquisas interculturais, tecidas por
muitas mãos, em conexões interdisciplinares, reunindo uma pluralidade de práticas e saberes
tradicionais, ecológicas e científicos. O texto nos convida a uma reflexão e debate/proposição
sobre a elaboração do manejo da biodiversidade pelas populações locais e a sociobiodiversidade
em suas imbricações junto a conservação e ao sistema de sustentabilidade cultural e ecológica
das formas de uso da biodiversidade em coprodução colaborativa de construção de conhecimento
científico e tradicional obrigam a rever conceitos hegemônicos que pareciam consolidados, tendo
em vista influenciar novos diálogos entre práticas locais e políticas públicas que direta e
indiretamente venham favorecer os territórios tradicionais em sua complexidade socioecológico.

O texto se apresenta estruturado por meio de temas como fio condutor para leitura e
debate como o manejo do fogo e da pesca, terminologias, inovações, bioeconomia e
agrobiodiversidade. Dessa forma, além da introdução o artigo se apresenta por meio de um tema
central e subtemas: Agrobiodiversidade e roças; A agrobiodiversidade: entre roças e florestas; Um
processo dinâmico: incorporações e seleções contínuas; A amplitude da agrobiodiversidade dos
povos indígenas e nas comunidades locais; Os usos da agrobiodiversidade: na minha roça, tem
de tudo; Agrobiodiversidade singulares: da escala regional a escala doméstica; A produção da
diversidade; Os espaços – tempos da agrobiodiversidade; e Recomendações.

Agrobiodiversidade e roças

A agrobiodiversidade presente nos biomas brasileiros no contexto de agricultores


tradicionais aponta para o manejo de um acervo agrobiológico de umas 475 espécies de várias
origens, americanas ou outras. Assim, os sistemas agrícolas tradicionais e indígenas, seguem as
seguintes característica: de cunho tradicional presentes no território brasileiro (agricultura de
queima e pousio, de toco, de vazante, de esgoto, etc.), se dá pela alta diversidade florística
associadas a múltiplos arranjos entre atividades produtivas (cultivo, pecuária, caça, colheita,
extrativismo...) e dos direitos costumeiros de acesso à terra, como fundos de pasto na caatinga,

1
Esta resenha faz parte das discussões sobre a Sociobiodiversidade da disciplina Sociobiodiversidade,
agricultura familiar e desenvolvimento rural (PPGMADER 1854) Tópicos Especiais em Sociobiodiversidade
(PPGPCTS 0017). Ministrada pela Profa Dra Janaína Deane de Abreu Sá Diniz.
2
Mestranda pelo Programa de Pós-Graduação em Sustentabilidade junto a Povos e Territórios Tradicionais
(MESPT) – UnB.
faxinais no sul do país, retiros em Roraima, entre outros. Já as agriculturas ameríndias se
apresentam pela queima e pousio, porém com variações importantes, é o de um acesso livre à
terra sujeito a autorização da autoridade costumeira.

O sistema de propriedade ao se referir ao reconhecimento da diversidade das agriculturas


indígenas e tradicionais, a nível de legislação nacional temos os seguintes instrumentos jurídicos:
o Decreto nº 6.040/2007 (BRASIL, 2007), bem como o Decreto nº 3.551/2000 que permite seu
reconhecimento como bem cultural de natureza imaterial. Porém, a dimensão produtiva das
agriculturas indígenas e quilombolas é reconhecida nas políticas agrícolas, contudo na categoria
genérica da agricultura familiar, conforme a Lei nº 11.326/2006 complementada pela Lei nº
12.512/2011 (BRASIL, 2006, 2011).

Principais características da agricultura familiar: é fundamentalmente responsável pela


manutenção de reservatórios de recursos citogenéticos e na manutenção da diversidade dos
agroecossistemas. Tradicionalmente são formas de produzir recursos e de manejar o espaço
herdadas do passado; estão em contínua interação com seus ambientes ecológicos e
socioeconômicos, e são altamente dinâmicas, incorporando inovações e experimentações.
Incluídas as tradicionais, representa 84% dos estabelecimentos agrícolas, ocupa 24% das terras
agrícolas e contribui com 70% dos alimentos do país; o papel ecológico e sociocultural dessas
agriculturas tradicionais é amplamente desconhecido; assume importância na produção nacional e
na soberania alimentar das populações; repousam sobre práticas e saberes locais, são de baixo
uso de insumos externos e são adaptadas as condições ecológicas locais (CUNHA;
MAGALHÃES; ADAMS, 2021).

O expansionismo do agronegócio, embora concentrado em apenas uma dezena de plantas


(soja, cana-de-açúcar, milho, laranja, café, algodão, arroz, feijão, tabaco, trigo), detém
reconhecimento de alto valor econômico, em comparação ao manejo do acervo agrobiológico
desenvolvido pela cultura da agricultura família, cujo papel marginal lhe é atribuído nos circuitos
econômicos nacionais, apesar de sua diversidade biológica ser bem maior e visível na paisagem
com seus agroecossistemas ou nos pequeno mercados locais. Ainda que, percebida pelas
autoridades públicas como um anacronismo ou um arcaísmo agrícola, as agriculturas tradicionais
são portadoras de soluções no atual contexto de grave crise ambiental e revisão de paradigmas
hegemônicos de produção agrícola.

As autoras (CUNHA; MAGALHÃES; ADAMS, 2021), apontam alguns desafios promovidos


pelas relações de poder entre as formas de saber e de atuar sobre a agrobiodiversidade como
central e fragiliza a transmissão dos saberes tradicionais desde a educação das crianças até os
programas de extensão rural. A educação básica e os serviços de extensão rural – saberes
agrotécnicos padronizados são descritos como desafios, pois se apresentam descontextualizados
perpassando por questões de ordem pedagógica como currículo que não contempla seus
referenciais culturais, e administrativa com calendário escolar desconexo, não levando em conta a
dinâmica das atividades agrícolas, ocasionando consequências diversas em muitos casos
irreversíveis no processo de ensino e aprendizagem.

Um outro ponto importante em destaque são as pressões fundiárias exercidas sobre os


territórios tradicionais, os quais têm desestruturado ou mesmo aniquilado muitas agriculturas
tradicionais em decorrência dos monocultivos e das degradações ambientais.

A agrobiodiversidade: entre roças e florestas

Temos aqui a cultura do cultivo de plantas domesticadas e não domesticas em roças, cuja
configuração está associada a biodiversidade, a sociobiodiversidade, bem como ao conjunto dos
conhecimentos ancestrais e manejos ecológicos locais, da mesma forma a manutenção da
diversidade dos agroecossistemas em interação com ambiente florestal, portanto estabelecendo
um sistema agroflorestal dinâmico. De modo que, os processos indígenas empregados na
domesticação (ou familiarização) local de plantas tendem a favorecer a conservação da
biodiversidade, a manter a tradição alimentar e, sobretudo, a exemplo dos Kuikuro a “valorizar a
diversidade de morfotipos ou etnovariedades em suas roças, mais do que a seleção de um único
tipo específico, como ocorre nos processos de melhoramento genético profissional de plantas”
(CUNHA; MAGALHÃES; ADAMS, 2021, p. 23).

Um processo dinâmico: incorporações e seleções contínuas

Esta abordagem enfatiza marcadores de nossa história agrícola, informando as diferentes


e diversas procedências, nacional e transnacional, de um conjunto de plantas cultivas por meio de
suas origens, incluindo a diáspora africana: americanas (mandioca, amendoim, batata-doce,
papaia, cabeça, certas espécies de cara ou algodão, etc.), pantropical (a cabeça, Lagenaria
siceraria), contribuições africanas (o quiabo, Abelmoschus esculentus; o inhame-de-são-tomé,
Dioscorea alata; o feijão-de-corda, Vigna unguiculata; o arroz vermelho Oryza glaberrima...), da
Oceania (bananas e cana-de-açúcar principalmente, jaca...), da Asia (arroz Oryza sativa, manga,
cítricos, gergelim, tamarindo, gengibre, fruta-pão, noni, rambutan...).

O controle, incorporações e seleções contínuas, do que é cultivado e do que não e


cultivado, ocorre desde o início do século XVI, um demarcador da lógica de
adaptação/colonização que prevalece sobre os recursos locais, conformando o equilíbrio
econômico mundial hoje como ao longo da história. Tal controle se constituiu pela incorporação
dos conhecimentos científicos em agronomia e botânica, mobilizados pela administração colonial
para uma exploração econômica do território via agricultura. Assim, as pressões de seleção,
voluntarias e/ou involuntárias, humanas e/ou naturais, continuam a modificar as plantas
introduzidas e dão lugar a novas variedades localmente adaptadas.
No decorrer dessa jornada agrícola ocorreram fluxos de plantas e saberes associados,
promovidos por diferentes agentes como as sociedades cientificas, missões religiosas,
comerciantes, e pelos movimentos migratórios como dos nordestinos na Amazonia durante o
período da borracha.

Especificamente no que se refere a agrobiodiversidade, as autoras (CUNHA;


MAGALHÃES; ADAMS, 2021), destacam a contribuição das populações tradicionais para sua
conservação, visto serem muito superior ao do mero acervo de plantas de origem local. Na escala
nacional, os bancos de germoplasma incorporam também muitas fontes externas: estima-se que
metade dos recursos fitogenéticos, incluindo uma importante proporção de plantas forrageiras,
normalmente empregadas na formação de pastagens, provem de outros países.

A amplitude da agrobiodiversidade dos povos indígenas e nas comunidades locais

A variedade de plantas cultivadas pelas populações locais estende-se a vários biomas


brasileiros, abrangendo conjuntos de espécies (no sentido taxonômico ou vernáculo) cujos
contornos e nomes variam de acordo com grupos culturais a partir de suas territorialidades e/ou
ecológicas, um marcador da especificidade local da agrobiodiversidade. Essa composição permite
que cada agricultora ou agricultor maneje um conjunto de plantas com características únicas e
cuja diversidade responde as suas necessidades e assegura a estabilidade do seu sistema de
produção.

Assim, os corpus de espécies cultivadas são identificadas desde o nome vernacular até a
estrutura genética, de modo que a reprodução e adaptação de populações de plantas cultivadas
se apresentam diretamente relacionada a tal estrutura, em que diversidade de nomes usados
pelas populações locais para suas variedades reflete em grande parte sua diversidade genética.

Apesar das populações indígenas e tradicionais serem responsáveis por um amplo leque
de plantas cultivadas e saberes a elas associados, e, portanto, relacionados a produção de
recursos fitogenéticos, observa-se que os mesmos ainda não estão plenamente integrados nem
nas políticas de conservação dos recursos fitogenéticos, nem nas políticas agrícolas. Em paralelo
temos os censos agrícolas, sobretudo a pouca visibilidade aos cultivos tradicionais.

Diante do exposto (CUNHA; MAGALHÃES; ADAMS, 2021, p. 31),

Os valores culturais e identitários das agriculturas tradicionais, expressos


através desses saberes, práticas e formas especificas de relacionamento
com a natureza, passam despercebidos e as políticas públicas as
enquadram apenas nas suas dimensões produtivas. Porém, desde os
últimos dez anos desenha-se uma visão mais ampla dessas agriculturas
que integram suas ancoragens culturais.
Embora a amplitude da agrobiodiversidade dos povos indígenas e nas comunidades locais
seja evidente, sua valorização se encontra desprestigiada em relação as políticas públicas. Por
outro lado, a publicação da extensa lista e a inclusão de todos os biomas representa um
considerável avanço mesmo que as formas de comercialização aconselhadas pouco dão
visibilidade aos recursos e aos sistemas alimentares locais.

Como exemplo temos a recente Portaria no 284 (BRASIL, 2018) menciona 83 espécies a
serem incorporadas no Programa de Aquisição de Alimentos (PAA), na Política de Garantia de
Preços Mínimos para os Produtos da Sociobiodiversidade (PGPMBio), da Companhia Nacional de
Abastecimento (CONAB), e no Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE). Cabe
destacar, que apesar do caráter obrigatório do PNAE e do PAA as prefeituras e suas secretarias
pela complexidade administrativa e financeira da legislação e pelos jogos locais de poder,
encontram dificuldade para implementar as politicas ora citadas.

Agrobiodiversidade é, portanto, composta pela diversidade das plantas cultivadas e pelo


patrimônio cultural material e imaterial mantidos por praticas e saberes tradicionais. No entanto, a
agrobiodiversidade encontra ameaças de perda de diversidade ligadas a vários fatores
evidenciados nos textos, a saber as evidencias do sistema agrícola tradicional no Rio Negro, que
segundo (CUNHA; MAGALHÃES; ADAMS, 2021), perpassa pelo desenvolvimento de uma
agricultura indígena periurbana, mudanças alimentares, sistema de escolarização que não
considera as formas tradicionais de transmissão dos saberes, entre outros.

Tais evidências impulsionaram, no ano de 2007, a Associacao das Comunidades


Indigenas do Medio Rio Negro (ACIMRN) a encaminhar ao Instituto do Patrimonio Historico e
Artistico Nacional (IPHAN), uma solicitação de registro do sistema agricola regional como
Patrimonio Cultural Imaterial, conforme o Decreto no 3.551/2000. A proposta se articulou com a
Federacao das Organizacoes Indigenas do Rio Negro (FOIRN) e a Associacao Indigena de
Barcelos (ASIBA) e, em 2010, o Sistema Agrícola Tradicional do Rio Negro foi registrado como
patrimônio imaterial, inscrito no livro dos saberes.

Após o notável êxito indígena em ser o primeiro sistema agrícola tradicional do Brasil a ser
reconhecido como patrimônio imaterial, outros movimentos sociais seguiram seus passos. Em
2018, foi reconhecido o Sistema Agrícola Tradicional Quilombola do Vale do Ribeira, registrado no
mesmo livro (ISA, 2018). Em marco de 2020 foi reconhecido o Sistema Agrícola Tradicional dos
Apanhadores de Sempre-Vivas da Serra do Espinhaço (MG) como Sistema Importante do
Patrimônio Agrícola Mundial (SIPAM) – em inglês Globally Important Agricultural Heritage Systems
(GIAHS) – no âmbito da Organização das Nações Unidas para a Alimentação e Agricultura (FAO).
Portanto, tais políticas agroculturais asseguram um certo reconhecimento nas escalas nacionais e
internacionais da importância dos aportes dos povos indígenas e das comunidades locais a
agrobiodiversidade brasileira e a segurança alimentar nacional.
Os usos da agrobiodiversidade: na minha roça, tem de tudo

Este tópico apresenta os tipos de usos das plantas cultivadas em ambientes de roças e
capoeiras para além das plantas alimentares, ampliando o cultivo para outras finalidades de cunho
medicinal e/ou de forte valor simbólico. Esses ambientes também fornecem recursos não
cultivados ou não manejados: são áreas de atracão de caca, de coleta de plantas medicinais, de
forrageiras ou outras.

Dito isso, vamos as classificações dos principais grupos de uso das plantas, por vezes
entrelaçados: 1) alimentícias, 2) cultivadas pelas suas propriedades químicas (medicinal,
cosmética, ictiotóxica, tintorial, psicoativa, etc.; 3) físicas (recipientes, fibras, etc.) ou ainda 4)
imateriais (protetoras, de guarda, estética, etc.) o que não impede que a grande maioria das
plantas, qualquer seja seu tipo de uso, combine valores materiais e imateriais.

Vejamos em síntese as quatros categorias:

1) Plantas alimentares formam a categoria central das plantas cultivadas e se dividem


em pelo menos dois grandes grupos de plantas que mobilizam praticas diferentes: a) há as
plantas que são “repassadas” sob a forma de estacas, brotos ou filhos de uma antiga roça para
uma nova (são as plantas de propagação vegetativa) e há aquelas cujas sementes são
conservadas no geral fora da roça para o próximo plantio (são as plantas de multiplicação
sexuada).

O primeiro grupo e constituído principalmente por plantas de tubérculos ou de rizomas


ricos em fécula tendo como espécie emblemática a mandioca (Manihot esculenta) em várias
regiões do Brasil. Essa abrange dois grandes conjuntos de variedades, as amargas, que passam
por um complexo processo de detoxicação com a eliminação de ácido cianídrico antes do
consumo, e as mansas, que podem ser consumidas simplesmente cozidas. Entre os dois, há um
gradiente de toxicidade.

Um segundo conjunto de plantas alimentícias abarca plantas reproduzidas por sementes,


como amendoins e feijões, leguminosas cujo cultivo se estende por todo o Brasil. Nesse contexto,
as árvores frutíferas são também uma categoria importante devido a sua contribuição para a
alimentação, muitas vezes a das crianças, e ao seu papel, no caso das arvores de maior porte,
como marcador fundiário.

2) As de propriedades químicas de modo geral, tanto no contexto ameríndio (Yanomami,


Guarani-Kaiowa...) como tradicional (ribeirinhos, geraizeiros, pequenos agricultores...), a maioria
das plantas medicinais vem da flora espontânea, seja do Cerrado, da Caatinga, da Mata Atlântica
ou da Floresta Amazônica. Nessa categoria observa-se um forte recorte de gênero pela presença
das mulheres, em especial as parteiras, sobretudo por sua finalidade medicinal. Os “remédios
caseiros” de uso frequente ficam próximos as casas. A categoria planta medicinal está muitas
vezes entrelaçada com a das plantas rituais particularmente no rico contexto afro-brasileiro.

Cabe destacar, entre as plantas de propriedades químicas, estão aquelas que dão
corantes vermelhos como o urucu (Bixa orellana) ou o carajiru (Fridericia chica) de alto valor social
e destinado a ornamentações rituais. Os frutos do jenipapeiro (Genipa americana), as vezes
cultivado, dão uma tinta preta para pinturas corporais. O pequi (Caryocar sp.) do Cerrado e
cultivado pelo alto teor de gordura nos frutos nos pomares dos Kuikuro sendo um elemento central
de festas e rituais. As tintas obtidas das sementes do urucu ou das folhas do carajiru resultam
com frequência de misturas com seivas ou resinas de outras plantas adjuvantes.

3) As de propriedades físicas a flecha (Gynerium sagittatum) cujo caule portador da


inflorescência e usado, entre diferentes etnias indígenas, para fazer flechas. A cuia e o cuiupi e
outras variedades de Crescentia cujete são cultivados em quintais amazônicos por seus frutos
utilizados como recipientes, como a cabeça ou jamaru cujo cultivo está sendo abandonado no Rio
Negro, mas que se encontra em outras regiões do Brasil. Plantas de fibras como o algodão com
diferentes variedades coloridas, os curauas, o sisal também estão presentes em pequena escala
nas agriculturas locais. Espécies como o olho-de-pombo ou a conta-de-lagrima são cultivadas
pelas suas sementes coloridas apreciadas para fazer colares. Certas espécies também podem ser
cultivadas para integrar ou constituir instrumentos musicais, chocalhos, maracas, apitos.

4) As de propriedades imateriais são cultivadas pelas suas funções protetoras e


simbólicas, atribuída relevância de resistência ou poder a pessoa que as usa ou que é alvo desse
uso. Todavia a complexidade dos usos xamânicos das plantas vai muito além desse breve
comentário e coloca em cena propriedades compartilhadas entre o vegetal, o animal e o humano.
Incluindo nessa categoria há um conjunto de plantas ornamentais, emergente resultante de um
modelo urbano e de intensa circulação de plantas na escala global e nacional. Agricultores
tradicionais incorporam de modo crescente plantas ornamentais em torno da casa. A escolha das
plantas pode revelar também, no caso de migrantes, laços com as regiões de origem.

A produção da diversidade

A diversidade de variedades manejada nas rocas responde a exigências de


sustentabilidade do sistema produtivo de forma integrada entre o cultivado e o silvestre permitindo
produções diversificadas, inseridas em um extenso calendário onde se combinam variedades de
ciclos longo e curto, considerando sua complexidade estrutural e funcional que permite enfrentar,
em certa medida, tanto a heterogeneidade espacial e temporal do ambiente quanto os choques
repetidos das mudanças climáticas, de certa forma se observa uma confluência com os modelos
promovidos pela agroecologia.
O modelo de ampla circulação de planas se difere segundo as configurações estruturais
entre as populações tradicionais, variando segundo a estrutura identificada. Em comunidades
quilombolas, a circulação das plantas parece mais restrita que no contexto indígena do Rio Negro.
O modelo de conservação dos Yanesha, na Amazonia peruana, e centrado sobre os curanderos,
ou pajés.

A questão do manejo em seu funcionamento coletivo merece destaque ao considerar a


abordagem de gênero, sobretudo ao cultivo da mandioca e do milho no Rio Negro, um marcador
sensível entre as relações sociodiversidade e diversidade biológica, incide o interesse das
mulheres, as donas de roça, expressão que alia as características de competência, autoridade e
responsabilidade sobre as atividades agrícolas, são as especialistas das agrobiodiversidade. O
manejo das manivas (mandioca), e das outras plantas, está embasado em um corpus teórico de
saberes expresso nos discursos e concretizado nas práticas. As mandiocas são representadas
como sujeitos, e não como objetos, elas são criadas e não apenas plantadas.

As relações entre sociodiversidade e diversidade biológica são percebidas pela rede


parental do cultivo das manivas, há uma circulação de sementes ou de mudas preferencialmente
entre mulheres, de mãe para filha, as frutíferas circulam principalmente entre os homens. As
plantas e seus nomes, se constituem assim em vetores de memorias e de afetos. Não é a terra
que é transmitida entre as gerações, mas as plantas. Sejam mandiocas ou outras plantas, as
circulações desenham corredores [agro]biológicos terrestres ou fluviais. Inovações são também
incorporadas, novos morfotipos, plantas da floresta ou de outros ambientes integram os sistemas
agrícolas em uma lógica sempre movida pelo interesse e pela diversidade. Assim, as plantas
cultivadas formam um bem coletivo, ainda que de manejo individual, porém certas etapas do
manejo da agrobiodiversidade assumem um caráter coletivo.

Cabe destacar, as plantas frutíferas e palmeiras plantadas no entorno da casa ou na roça


são, no geral, de propriedade masculina. De forma similar as outras plantas, a circulação do
germoplasma é livre, mas os pés e suas produções pertencem aos homens da família, crianças,
jovens ou adultos.

O tema sobre a circulação de plantas na se esgota a questão de gênero, há restrições


quantos aos usos xamânicos entre especialistas. Apesar de os dados expostos serem bastante
genéricos, desenha-se uma diversidade de concepções sobre os direitos relacionados as plantas
cultivadas como entidades vivas sejam objetos de cuidados, objetos de circulação ou fontes de
recursos.

Por outro lado, desde os anos 2000, novas formas de intervenção das associações locais
ou dos poderes públicos sobre a circulacao das sementes desenham redes que paulatinamente
vem desmontando o parentesco enquanto articulador fundamental das trocas de sementes,
estabelecendo novos sistemas de circulacao da diversidade através das feiras de sementes ou de
articulações entre conservação in situ e ex situ.

Dentre os grupos de processos de produção e conservação da diversidade, cabe ressaltar:


processo de domesticação pela incorporação de plantas não cultivadas no acervo das cultivadas;
produção de sementes ligado ao aproveitamento, seja a “captura” e a “amplificação” de morfotipos
raros, obtidos via mutações ou cruzamento não dirigido via recombinação genética; e por fim
conservação de variedades. Nesse sentido, produzir e conservar a diversidade de plantas
cultivadas repousa nos conhecimentos especializados sobre a multiplicação da planta.

Além disso, há as variedades locais que foram perdidas pelas comunidades, a exemplo do
pohypej, em função de políticas agrícolas dos anos de 1970, e recuperadas nos anos de 1990 nos
bancos de germoplasma da Embrapa.

A vulnerabilidade da agrobiodiversidade aponta em direção ao fenômeno de perda sob a


influência de mudanças de origem ambiental e sociopolítica. Configurações variáveis dependendo
do contexto, concorrem para essa perda: um desestimulo para a conservação das variedades
ligada as mudanças alimentares, ao mercado, a presença crescente de referenciais urbanos, a
perda de fertilidade do solo resultante da pressão fundiária, as políticas agrícolas e ambientais
que impõem suas regras aos sistemas tradicionais, e questões culturais como a da transmissão
dos saberes agrícolas aos jovens, pouco interessados por essa atividade. A expansão do
mercado formal das sementes, hoje acessíveis mesmo em lugares distantes dos grandes centros,
gera também um risco de substituição do material fitogenético tradicional.

Você também pode gostar