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Populações tradicionais da Amazônia e

artigo
territórios de biodiversidade

Jairo Fernando Pereira Linhares

Resumo Abstract
A região Amazônica possui a maior bio- The Amazon region has the greatest bio-
diversidade do planeta e está ameaçada diversity of the planet, and is threatened
por atividades econômicas que não con- by economic activities that do not match
dizem com a sua vocação regional, mui- its regional vocation, although in recent
to embora, nas últimas décadas, tenha se decades, stepped up the search for alter-
intensificado a busca por alternativas natives to contain the devastation, se-
para conter a devastação, buscando-se eking is known as the traditional popula-
conhecer como as populações tradicio- tions of the Amazon have developed their
nais da Amazônia desenvolveram seus management systems to maintain biologi-
sistemas de manejo para manutenção da cal diversity. Therefore, it is necessary to
diversidade biológica. Assim sendo, se understand, first of all, who are these pe-
faz necessário entender, antes de tudo, ople called “traditional” and issues related
quem são essas populações ditas “tradi- to their rights and, especially, the demar-
cionais” e as questões relacionadas aos cation of their territories. To explain the
seus direitos e, sobretudo, à demarcação close relationship that people have with
de seus territórios. Para explicar a rela- the traditional Amazonian ecosystem,
ção estreita que as populações tradicio- addressed the following procedures: do-
nais mantêm com o ecossistema Amazô- mestication of plant species, speciation,
nico, são abordados os seguintes proces- formation of soil man, besides the techni-
sos: domesticação de espécies vegetais, que of cutting and burning.
especiação, formação de solos antrópi-
cos, além da técnica de corte e queima.

Palavras chave Keywords


populações tradicionais; território; sistema indigenous; territory; manager system;
de manejo; biodiversidade; Amazônia biodiversity

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1. INTRODUÇÃO Contrária a essa tendência, a Amazônia
tem sido, desde o final dos anos de 1980,
A Amazônia abrange a maior biodi- um imenso laboratório de políticas e pro-
versidade do planeta. Os números exatos jetos que, de uma forma ou de outra, ten-
são controvertidos porque até hoje pou- tam compatibilizar a presença dos habi-
cas espécies foram estudadas. As estimati- tantes com algum tipo de procedimento vi-
vas sobre o número de plantas na Amazô- sando à conservação dos ecossistemas em
nia divergem entre cinco e trinta milhões que eles vivem (ESTERCI, 2002), e à me-
(ABRANTES, 2002). Grande parte dessa ri- dida que aumentam os conhecimentos so-
queza está ameaçada por atividades eco- bre a natureza e a cultura, tende-se a ver as
nômicas que não condizem com a vocação paisagens como produtos da co-evolução
regional (exploração sustentável dos re- humana e natural (DIEGUES; ARRUDA,
cursos naturais). A ausência de uma políti- 2001). Um exemplo disso é a qualidade da
ca de desenvolvimento rural aliada ao flu- ocupação indígena. Suas áreas, em geral,
xo migratório para a região é incompatível são as de cobertura florestal mais preserva-
com a necessidade de preservação e con- da, mesmo nos casos em que a devastação
servação dos recursos florestais. (VEIGA; ambiental tenha se expandido ao seu redor
EHLERS, 2003), muito embora nas últimas (DIEGUES; ARRUDA, 2001).
décadas, tenha se intensificado a busca por Dentro da perspectiva de buscar alter-
alternativas para conter a devastação dos nativas para o desenvolvimento da região
recursos naturais, bem como, por sistemas amazônica, Abrantes (2002) coloca como
de manejo sustentáveis para manutenção uma questão central para o uso sustentável
da diversidade biológica (ALBUQUERQUE, dos recursos naturais na região Amazôni-
2005). Portanto, hoje existe um consen- ca. A compatibilização dos interesses das
so que do ponto de vista econômico, so- indústrias de base biotecnológica e os inte-
cial e ambiental, é aconselhável manter a resses das populações tradicionais detento-
cobertura florestal na Amazônia (ALIER, ras do conhecimento, da seguinte forma.
2007). Assim sendo, formas de manejo sus- Neste contexto de um mundo globaliza-
tentável dos ecossistemas têm sido propos- do, o uso econômico sustentável da incal-
tas ao longo do tempo. No entanto, mui- culável riqueza da biodiversidade da Ama-
tas delas caracterizam-se pela desvincula- zônia se constitui num dos grandes desa-
ção das populações humanas que habitam fios dessa imensa região, tanto no proces-
tradicionalmente nesses diversos ecossiste- so de aproveitamento da vocação regional
mas (ALBUQUERQUE, 2005). Um exemplo com base na exploração sustentável dos
disso são as criações de unidades de con- recursos naturais por meio da tecnologia,
servação de uso restritivo, que na sua pró- como na agregação de valor aos produ-
pria concepção preconizam o deslocamen- tos. A questão que aflora é a seguinte: co-
to de grupos humanos que dependem di- mo fazer valer a riqueza da biodiversidade
retamente da exploração de recursos na- não só para a indústria da biotecnologia,
turais. O que se têm mostrado ineficazes, mas também para as populações tradicio-
tanto para o atendimento das necessidades nais que a conservam, utilizam e cultivam?
das populações humanas quanto para con- (ABRANTES, 2002, p. 15)
servação dos recursos naturais em questão.

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Sendo assim, os conhecimentos das co- Para Léna (2002, p. 18) existem outras
munidades tradicionais, ainda que produ- dificuldades para a categoria “populações
zidos localmente, são objeto de discussão tradicionais”:
global, como, afinal de contas, também seu A categoria “populações tradicionais” for-
próprio destino (CASTRO, 2000). Portanto, mada por vários grupos humanos (quilom-
se faz necessário entender quem são essas bolas, ribeirinhos, jangadeiros, sertanejos,
populações ditas “tradicionais”, e as impli- indígenas, etc.) constituem ambigüidades,
cações que essa terminologia suscita nos pois misturam categorias nativas, sociológi-
variados aspectos da vida desses grupos cas e políticas. Essas ambigüidades dificul-
humanos, sobretudo nos seus campos de tam a definição de políticas adaptadas. Sen-
luta. Para finalmente entender o corpus e a do assim, certas populações parecem ter um
práxis que determinam a sua relação com estatuto bem definido hoje, como é o caso
o ambiente, e os interesses envolvidos. das populações indígenas, dos seringueiros e
dos quilombolas, outras nem tanto, como é
2. POPULAÇÕES TRADICIONAIS: ambigüida- o caso dos ribeirinhos. São construções ela-
des conceituais e implicações práticas boradas para fins jurídicos.

Partimos do pressuposto de que o con- Além do mais, Léna (2002) chama a


ceito de “populações tradicionais”, desen- atenção para uma questão de ordem prá-
volvido pelas ciências sociais e incorpora- tica: O debate não é puramente acadêmi-
do ao ordenamento jurídico, somente po- co, na medida em que implica a presença
de ser compreendido com base na interfa- ou ausência de cobertura jurídica. A ca-
ce entre biodiversidade e sociodiversidade tegoria “populações tradicionais” permi-
(SANTILLI, 2005, p. 124). te cobrir as populações que não consegui-
Segundo Santilli (2005), a categoria ram vender sua imagem e afirmar politica-
“populações tradicionais” já é relativamen- mente sua identidade. A partir da segunda
te bem aceita e definida entre os cientistas metade dos anos 1970, a categoria “popu-
sociais e ambientais. Muito embora, faça lações tradicionais” passou a configurar-
considerações a respeito das dificuldades se como identidades coletivas que, a prin-
conceituais encontradas nesta definição: cípio, apresentavam um comportamen-
Ainda que alguns antropólogos apontem to de resistência às agressões a seus inte-
as dificuldades geradas pela forte tendên- resses, mas logo se tornaram propositivas
cia à associação com concepções de imobi- (SANT’ANA JÚNIOR, 2004).
lidade histórica e atraso econômico e con- No presente trabalho consideraremos
siderem o conceito “problemático” em face os termos: populações tradicionais, socie-
da forma diversificada e desigual com que dades tradicionais, comunidades tradicio-
os segmentos sociais se inserem na Ama- nais, ou ainda, comunidades locais, como
zônia socioambiental, a categoria “popula- possuidores de uma mesma conotação. As-
ções tradicionais” tem sido bastante reco- sim sendo:
nhecida em sua dimensão política e estraté- Utiliza-se neste estudo a noção de “socieda-
gica. (p. 124-125) des tradicionais” para definir grupos huma-
nos diferenciados sob o ponto de vista cul-
tural, que reproduzem historicamente seu

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modo de vida, de forma mais ou menos iso- pamentos de indivíduos da mesma espécie
lada, com base na cooperação social e rela- que possuem uma convivência organizada.
ções próprias com a natureza. Essa noção As sociedades são constituídas de vários
refere-se tanto a povos indígenas quanto a grupamentos mais ou menos duráveis. Cul-
segmentos da população nacional, que de- turas são os modos específicos ou padrões
senvolveram modos particulares de existên- que regem a convivência e a sobrevivência
cia, adaptados a nichos ecológicos específi- social por um tempo mais ou menos pro-
cos (DIEGUES; ARRUDA, 2001, p. 27). longado (VIERTLER, 2002, p. 12).

3. A PRODUÇÃO DO CONHECIMENTO De posse desses conceitos, podemos en-


TRADICIONAL tender a forma como os conhecimentos tra-
dicionais foram socialmente construídos.
Os conhecimentos tradicionais são pro- Assim sendo, o conhecimento tradicional é
duzidos e gerados de forma coletiva com definido como o conjunto de saberes e prá-
base em ampla troca e circulação de idéias ticas a respeito do mundo natural e sobre-
e informações transmitidas oralmente de natural transmitido oralmente, de geração
uma geração a outra (SANTILLI, 2005). em geração (DIEGUES; ARRUDA, 2001).
Portanto, de acordo com a definição apre- Captar o universo de significados de
sentada. O conhecimento tradicional não uma cultura exige, portanto, um esforço
se restringe aos organismos, mas inclui incessante de compreensão dos fenômenos
percepções e explicações sobre a paisagem, a partir dos referenciais e categorias nati-
geomorfologia, e a relação entre diferentes vas (CAMPOS, 2002).
seres vivos com o ambiente físico (ALBU- No entanto, um dos critérios mais im-
QUERQUE, 2005). portantes para a definição de culturas ou
Desta forma, para melhor entendimento populações tradicionais, além do modo de
das questões relativas às populações tradi- vida é, sem dúvida, o reconhecer-se como
cionais e, por conseguinte, ao conhecimen- pertencente àquele grupo social particular
to tradicional associado a esses grupos hu- (DIEGUES; ARRUDA, 2001).
manos, Viertler (2002), faz referência aos Este sentimento de pertencimento a
determinantes do comportamento huma- uma cultura ou população tradicional fi-
no e inclui a determinante sócio-cultural, e ca deste modo, mais compreensível a par-
que, por conseguinte, acaba nos remetendo tir da assimilação dos conceitos de socie-
a compreensão dos conceitos de Sociedade dade e cultura definidos anteriormente
e de Cultura, da seguinte forma: por Viertler.
Dentro da perspectiva antropológica, Homo Escobar (2005) nos dá ciência que:
sapiens desenvolve um tipo de comporta- A questão do “conhecimento local” – em
mento que, além de determinantes biológi- especial, do conhecimento dos sistemas
cos, demográficos, fisiológicos, e psicológi- naturais – também tem sido abordada nos
cos, possui determinantes sócio-culturais. últimos anos de várias óticas (cognitivo,
Tais determinantes sócio-culturais nos re- epistemológica, etnobiológica e, de manei-
metem a dois conceitos básicos nas ciên- ra mais geral, antropológica) e em conexão
cias sociais: o conceito de sociedade e o com uma variedade de temas, desde as ta-
conceito de cultura. Sociedades são agru- xonomias primitivas e a conservação da

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biodiversidade, até a política de territoriali- tura vegetal na Amazônia, além de ter sido
dade e os movimentos sociais (p. 138). extensa e intensa, teve início com a chega-
da dos primeiros grupos de caçadores-co-
Em se tratando do aspecto cognitivo, é letores há 11 mil anos, no mínimo (MAGA-
importante ter noções sobre as representa- LHÃES, 2008).
ções ou idéias coletivas que predominam Com isolamento relativo, essas popula-
em cada comunidade humana a respeito da ções desenvolveram modos de vida parti-
vida em geral, do corpo humano, do am- culares que envolvem grande dependência
biente natural e social (VIERTLER, 2002). dos ciclos naturais, conhecimento profun-
De acordo com Diegues e Arruda (2001), do dos ciclos biológicos e dos recursos na-
é importante analisar o sistema de repre- turais (DIEGUES, 1996). Colaborando com
sentações, símbolos e mitos que essas po- essa afirmativa, Magalhães (2008) explana
pulações constroem, pois é com ele que a respeito da importância dos estudos ar-
agem sobre o meio natural. É também com queológicos para comprovação destas des-
essas representações mentais e com o co- cobertas na Amazônia:
nhecimento empírico acumulado que de- Nos últimos anos, a arqueologia tem provado
senvolvem seus sistemas tradicionais de que grandes populações indígenas viveram
manejo (DIEGUES; ARRUDA, 2001). principalmente ao longo dos maiores rios da
Portanto, sistemas locais de conheci- região, às margens de suas várzeas, até o pe-
mento e manejo são algumas vezes enrai- ríodo imediatamente anterior à conquista eu-
zados em religiões e sistemas de crença. ropéia. Por causa disso, devemos considerar
Bosques sagrados, por exemplo, são por- que o resultado dos manejos então pode ter
ções de florestas que são reservadas por ra- sido muito mais veemente e amplo do que
zões religiosas (PIMBERT; PRETTY, 2000). se imagina. Assim, é possível que a seleção e
Na concepção mítica das sociedades pri- as florestas manejadas possam ter alcançado
mitivas e tradicionais existe uma simbiose uns 60% dos 6,5 milhões de km² da composi-
entre o homem e a natureza, tanto no cam- ção atual da floresta úmida Amazônica.
po das atividades do fazer, das técnicas e
da produção, quanto no campo simbólico Não obstante, num ecossistema mane-
(DIEGUES, 1996). jado, algumas espécies podem se extin-
guir como resultado dessa ação, ainda que
4 . FORMAÇÃO E MANEJO DOS o efeito total da interferência possa levar a
ECOSSISTEMAS ANTROPOGÊNICOS um aumento real da diversidade ecológi-
AMAZÔNICOS, TERRITÓRIOS DE ca e biológica de um lugar específico ou de
BIODIVERSIDADE uma região (DIEGUES; ARRUDA, 2001).
De acordo com Clement e Junqueira
Estudos etnográficos em países tropi- (2008, p. 43)
cais descobrem uma quantidade de prá- Nesses locais existiam, sobretudo, recur-
ticas – significativamente diferentes – de sos da flora úteis para caçadores e coleto-
pensar, relacionar-se, construir e experi- res. No início, a ocupação de tais sítios era
mentar o biológico e o natural (ESCOBAR, passageira, destinada ao aproveitamen-
2005). Estudos recentes vêm mostrando to de recursos sazonais, como frutas, raí-
que a influência do homem sobre a cober- zes, peixes ou caça. Os antigos habitantes

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também procuravam fibras, madeiras ou se o processo de domesticação (CLEMENT;
pedras para fabricar ferramentas de caça, JUNQUEIRA, 2008).
pesca, coleta e processamento de alimen- Para melhor entendimento sobre o pro-
tos. Com o tempo, em cada acampamen- cesso de domesticação, Valle (2002, p. 130)
to foram sendo acumuladas espécies úteis esclarece:
através do descarte de sementes. Algumas A domesticação é o processo de seleção di-
eram do próprio local. Outras vinham de rigida pelo homem em que se privilegiam
longe. Aos poucos, esses ecossistemas an- características quantitativas e qualitativas
tropogênicos foram se tornando cada vez de interesse da espécie humana (produtivi-
mais atraentes, permitindo períodos de ha- dade, uniformidade, armazenamento, etc.)
bitação mais longos. em detrimento do sucesso reprodutivo exi-
gido na seleção natural. Este processo tor-
Como exemplo da formação de ecossis- nou-se uma linha evolutiva e, não raramen-
temas antropogênicos na floresta Amazô- te, também de especiação bastante peculiar.
nica, podemos fazer referência à gênese dos Algumas espécies sofreram alterações tão
castanhais silvestres (DUBOIS, 1996, p. 83). profundas nos aspectos morfológicos, gené-
Os castanhais silvestres são florestas, ticos e citológicos em relação aos seus an-
onde as castanheiras ocorrem em grande cestrais durante o processo de domestica-
número – quase exclusivamente – na forma ção, que as colocam na categoria de uma
de árvores altas. Dominantes e emergen- nova espécie, como é o caso do milho, man-
tes. A castanheira-do-brasil precisa de mui- dioca, batata e outras.
ta luz para germinar e crescer. Portanto, em
florestas ainda não tocadas pelo homem, à Mais adiante Clemente; Junqueira (2008,
regeneração natural da espécie é muito di- p. 48) explanam:
fícil e só se dá em clareiras abertas pela ca- Uma das mudanças mais profundas provo-
ída de árvores velhas. Os castanhais silves- cadas pelos povos pré-colombianos na pai-
tres nasceram, de fato, com a ajuda dos ín- sagem da Amazônia foi a criação dos solos
dios e da cutia. Os índios plantavam casta- antrópicos – terra preta e terra mulata. [...]
nhas em seus roçados abertos na mata ou, Em geral os solos da Amazônia são ácidos,
pelo menos, localizavam suas roças perto muito pobres em nutrientes [...] Em contras-
de castanheiras em idade de frutificar pa- te, os solos antrópicos são muito mais fér-
ra facilitar, com a ajuda da cotia, a rege- teis [...]. Certamente as populações pré-co-
neração natural da castanheira nessas cla- lombianas também reconheciam as quali-
reiras cultivadas. Essa estratégia emprega- dades da terra preta, desenvolvendo práti-
da por diversas comunidades indígenas da cas específicas de agricultura e manejo da
Amazônia foi descrita a partir de um estudo vegetação associadas a esses solos. [...] Es-
feito em área dos índios Kokama, no médio ses “laboratórios caseiros”, foram propícios
Solimões (região de Tefé Amazonas). para a experimentação indígena [...]. Ou-
Quando as populações indígenas se de- tras espécies podem ter se beneficiado das
ram conta de que estavam cercadas por es- condições particulares dos solos antrópicos,
pécies úteis, mas de características muito mesmo não sendo introduzidas pelo homem
variáveis, começaram a selecionar as me- [...]. Espécies úteis, domesticadas, ou de in-
lhores plantas para propagar, iniciando- teresse para o homem eram mantidas no

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sistema. As indesejáveis eram eliminadas te dos recursos naturais aí existentes que
[...] (CLEMENT; JUNQUEIRA, 2008, p. 48). ela deseja ou é capaz de utilizar (GODELIER,
1984 apud DIEGUES, 1996, p. 83).
Desta forma, os povos indígenas do-
mesticaram pelo menos 47 espécies frutí- O conceito de território deve ser com-
feras na Amazônia. Por isso, a Amazônia preendido à luz da interpretação antropo-
se destaca no mapa mundial das frutas, e lógica como o espaço necessário à repro-
cujo cultivo sempre é incluído entre as al- dução física e cultural de cada povo tradi-
ternativas para o desenvolvimento susten- cional, considerando as formas diferencia-
tável da região. (CLEMENT, 2008). das de uso e apropriação do espaço territo-
Analisando as últimas descobertas cien- rial (SANTILLI, 2005, p. 140).
tíficas, Magalhães (2008, p. 38) deduz que: Para Miranda (2006),
Tais pesquisas têm revelado que boa O lugar, pois, assume grande importância no
parte das florestas atuais, entre elas aque- que concerne à formação de esquemas cog-
las até então consideradas virgens, pode nitivos particulares – relacionados à cultu-
ser o resultado do manejo humano e não ra, à natureza e à ecologia, pois, na tentativa
da evolução natural. Ou seja, parte signi- de compreender as relações que se proces-
ficativa das paisagens florestais amazôni- sam em sua própria realidade, os homens,
cas seria um artefato cultural, resultado enquanto agentes sociais atribuem diferen-
de uma ação cultural com forte influência tes sentidos e significados às coisas que, por
na seleção, distribuição e até na evolução sua vez, revelam um conhecimento baseado
de espécies. em experiências vivenciadas localmente pe-
Para rematar o entendimento sobre a los grupos aos quais pertencem (p. 193).
influência das populações tradicionais na
composição da biodiversidade, Diegues e Muito embora Litlle (2002, p. 6) aponte
Arruda (2001) finalizam da seguinte for- para a dificuldade do Estado brasileiro em
ma. Conclui-se, então, que a biodiversidade reconhecer a existência desses territórios,
pertence tanto ao domínio do natural como pela seguinte razão:
do cultural, mas é cultura, como conheci- A existência de outros territórios dentro do
mento, que permite às populações tradicio- Estado-nação sejam eles as autoproclama-
nais entendê-la, representá-la mentalmen- das “nações” ou “nacionalidades”, ou terri-
te, manuseá-la, retirar suas espécies e colo- tórios sociais [...], representa um desafio pa-
car outras, enriquecendo-a, com freqüên- ra a ideologia territorial do Estado, particu-
cia (DIEGUES; ARRUDA, 2001, p. 33). larmente para sua noção de soberania [...].
Prosseguindo, Diegues cita Godelier: O Estado brasileiro teve e tem dificuldade
Um elemento importante na relação en- em reconhecer os territórios sociais dos po-
tre populações tradicionais e a natureza, é vos tradicionais [...]
a noção de território que pode ser definido
como uma porção da natureza e espaço so- Muito embora valha destacar que os
bre o qual uma sociedade determinada rei- avanços tecnológicos conseguidos pelas
vindica e garante a todos, ou a uma parte de sociedades modernas, particularmente na
seus membros, direitos estáveis de acesso, área de biotecnologia e da engenharia ge-
controle ou uso sobre a totalidade ou par- nética, a questão da soberania passa a ad-

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quirir uma nova conotação para os países de espécies a fim de obter recursos é uma
em desenvolvimento (ABRANTES, 2002). idéia que sempre existiu e que sobreviveu
Além do mais, as conseqüências do não em exemplos ao redor do mundo, em vá-
reconhecimento dessas áreas pelo Estado rios ecossistemas (VIVAN, 1998). Um fa-
brasileiro, em grande medida, comprome- tor importante que precisa ser considera-
tem a manutenção dos modos de vida des- do é que nas regiões tropicais as práticas
sas populações tradicionais, além de acar- agrícolas e o manejo dos recursos natu-
retar implicações à conservação dos ecos- rais não são atividades isoladas, uma vez
sistemas manejados ancestralmente por es- que a primeira é baseada na segunda (AL-
ses grupos humanos. O território depen- CORN 1984, 1989; PERONI 2004 apud AL-
de não somente do tipo de meio-físico ex- BUQUERQUE, 2005).
plorado, mas também das relações sociais Os sistemas de manejo locais são ge-
existentes (DIEGUES, 1996). Desta forma, ralmente voltados para as necessidades
podemos concluir que: da população local e, freqüentemente, au-
A organização do espaço é social, pois obe- mentam sua capacidade de se adaptar às
dece a formas particulares de manejo dos circunstâncias sociais e ecológicas dinâmi-
recursos naturais. Os mesmos são utiliza- cas (PIMBERT; PRETTY, 2000). Um siste-
dos para a reprodução social e cultural dos ma de manejo muito utilizado pelas popu-
agrupamentos humanos, concomitantes à lações tradicionais Amazônicas, mas tam-
reprodutibilidade das percepções e repre- bém as populações tradicionais nordesti-
sentações do que é denominado mundo na- nas é a chamada “roça de toco”, “agricul-
tural (NODA, S. N; NODA. H.; MARTINS, tura itinerante”, ou ainda, “agricultura de
2006, p. 184). derrubada e queima”. A agricultura itine-
rante ou agricultura de derrubada e quei-
Logo, o processo de ocupação huma- ma é um sistema comum de uso da terra
na das áreas geográficas denominadas de que alterna períodos de pousio1 com curtos
“comunidades”, assume uma dimensão di- períodos de cultivo intensivo.
ferenciada por serem as áreas um cenário As comunidades tradicionais praticam
onde paisagens são estruturadas a partir do pousio de curta duração somente em so-
cotidiano de trabalho de seus moradores los de boa fertilidade natural. Os pousios
(NODA, S. N.; NODA. H.; MARTINS, 2006). de longa duração mantidos em áreas de so-
Portanto, espaços ditos tradicionais, e po- los pobres são possíveis somente em zonas
pulações ditas tradicionais que foram por ainda pouco habitadas (DUBOIS, 1996).
longo tempo relegado, estão agora valori- Portanto, a baixa fertilidade natural dos
zados por algumas de suas particularidades solos explica porque as comunidades tradi-
biológicas ou culturais (ROBERT, 2002). cionais da Amazônia praticam pousios de
Por outro lado, tentar entender a di- longa duração (DUBOIS, 1996), muito em-
nâmica de ciclos climáticos e da sucessão bora, a “roça de toco”, enquanto prática de

1. Pousio: São as etapas envolvidas na agricultura itinerante: corte da cobertura vegetal, secagem, quei-
ma da vegetação, cultivo, abandono da área, novo desmatamento e assim, sucessivamente (Ferraz Jú-
nior, 2004).

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manejo encontra-se em esgotamento, vis- da economia de mercado, pela desorgani-
to que, a densidade populacional de uma zação ecocultural, seja por substituição por
forma geral, tem aumentado significativa- outros sistemas de produção que requerem
mente na região, com isso, comprometen- insumos externos ao invés dos produzidos
do o tempo de pousio, e a sustentabilidade localmente (DIEGUES 1996).
ambiental e social do agroecossistema. Como exemplo de influência externa
Colaborando com essa afirmativa, San- que fragiliza a ética de conservação de so-
chez (1982 apud FERRAZ JÚNIOR, 2004, p. ciedades tradicionais, pode-se citar a mu-
73), afirma: dança da matriz tecnológica na agricultu-
A agricultura itinerante praticada por pe- ra familiar associada ao crédito, da seguin-
quenas populações em áreas isoladas, com te forma:
limitado contato com a economia de mer- O potencial criativo latente dos agricul-
cado, não deve ser confundida com a agri- tores familiares é obscurecido como resul-
cultura itinerante em desequilíbrio, pratica- tado da introdução de pacotes tecnológicos
da nas regiões de fronteiras agrícolas. Nes- – insumos industriais caros, inadequados e
sas áreas a alta pressão populacional induz exógenos – associados aos subsídios finan-
ao encurtamento do período de pousio, com ceiros que asseguram a rentabilidade arti-
resultados nefastos para a produtividade e ficial. A adoção indiscriminada de tecnolo-
para o ambiente. gias gera insustentabilidade, ao não consi-
derar as especificidades e os requerimen-
No entanto, é imperioso lembrar que, se tos tecnológicos locais e territoriais (JARA,
a agricultura itinerante não tivesse sido de- 2001, p. 27).
senvolvida pelos indígenas, não existiriam Portanto, se faz necessário, que os ban-
formações de castanhais na Amazônia, ou cos e secretarias de agricultura locais, re-
de outras espécies com necessidades fisio- conheçam as particularidades ambientais
lógicas semelhantes. Portanto, as técnicas e sociais, aproveitando os sistemas de ma-
e práticas de manejo utilizadas por algu- nejo locais.
mas populações locais podem ser ecologi-
camente sustentáveis, quando respeitam 5. CONSIDERAÇÕES FINAIS
a complexidade e delicadeza dos ecossis-
temas (ALBUQUERQUE, 2005). Muito em- Desta forma, conclui-se que, qualquer
bora, existam sociedades tradicionais que modelo de desenvolvimento para a re-
têm uma ética de conservação fragiliza- gião Amazônica baseado no uso susten-
da por influências externas ou até que não tável dos recursos naturais, é necessário
possuem qualquer tradição de conserva- levar em consideração as populações tra-
ção. Há as que, na sua submissão ao mer- dicionais e os seus respectivos sistemas
cado, encontram-se marginalizadas, des- de manejo, que em grande medida con-
valorizadas e em intenso processo de de- tribuíram para formação de ecossistemas
gradação (NORDI, 2006). Assim sendo, diferenciados, e até mesmo em alguns ca-
Diegues (1996), esclarece. Em muitos ca- sos, por processos de especiação e domes-
sos, sistemas tradicionais de manejo alta- ticação de espécies (frutíferas principal-
mente adaptados a ecossistemas específi- mente), que figuram como uma das alter-
cos caíram em desuso, seja pela introdução nativas econômicas mais promissoras pa-

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ra a região. A garantia do território des-
sas populações como já foi ponderado, é
de fundamental importância para a ma-
nutenção da biodiversidade. Portanto, as
indefinições jurídicas que o termo “popu-
lações tradicionais” pode suscitar, devem
ser mitigadas, para que esses povos ob-
tenham as condições necessárias para a
manutenção dos seus modos de vida, e,
por conseguinte da biodiversidade.

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Nota sobre o autor da natureza intocada. São Paulo: HUCITEC /
NUPAUB – USP, 1996.
Engenheiro Agrônomo, mestrando em Sus-
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