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Unidades de conservação como estratégia de gestão territorial dos recursos


naturais

Article · December 2009


DOI: 10.5212/TerraPlural.v.3i2.241260

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2 authors:

Maria do Socorro Ferreira da Silva Rosemeri Melo e Souza

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DOI: http://dx.doi.org/10.5212/TerraPlural.v.3i2.241260

Unidades de conservação como estratégia de gestão territorial dos


recursos naturais

Conservation units as a territorial management strategy for


natural resources

Maria do Socorro Ferreira da Silva


Rosemeri Melo e Souza
Universidade Federal do Sergipe

Resumo: No Brasil, as Unidades de Conservação (UCs) são utilizadas enquanto meca-


nismos de gestão territorial para proteger os recursos naturais que restaram ao país após
um intenso processo de depleção. Para compreender as relações existentes nas UCs faz-
se necessário um resgate teórico acerca da categoria de análise geográfica, o território,
considerado como instrumento de exercício de poder. Nessas relações, observa-se o
envolvimento de atores inseridos nos espaços territoriais legalmente protegidos, gerando
o processo contínuo de territorialização-desterritorialização-reterritorialização. Aqui,
prevalecem as relações de poder estabelecidas pelos grupos dominantes nem função
das áreas detentoras de maior biodiversidade mundial como o Brasil.

Palavras-chave: Biodiversidade. Unidades de conservação. Gestão territorial.

Abstract: Conservation Units (CUs) are tools for territorial management in Brazil to
protect natural resources that have been spared from the country’s intense process of
depletion in the past. To understand the functioning of these Conservation Units it is
necessary to develop a theory that investigates analytically the geographical category
of territory that is regarded as an instrument for the exercise of power. Here, the par-
ticipation of actors can be observed in the continuous process of desterritorialization-
territorialization-reterritorilization in spaces that are legally protected. In these spaces
power relations are established by hegemonic groups that are controlling the areas of
the greatest biodiversity in the world, as it is the case in Brazil.

Keywords: Biodiversity. Conservation units. Territorial management.

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MARIA DO SOCORRO FERREIRA DA SILVA; ROSEMERI MELO E SOUZA

INTRODUÇÃO propagado.
Com relação ao capital interno, há evi-
O Brasil encontra-se no alto da lista de dências de que essas áreas estão sendo
países detentores de maior biodiversida- reservadas para mais adiante atenderem as
de mundial. Conforme Copabianco et al. necessidades do agronegócio, neste caso,
(2002) até 2002, o país abrigava cerca 10,8% como estoque de terras para o avanço da
de espécies de plantas com semente, 17,2% atividade agrária.
de mamíferos, 15% de anfíbios, e 10,7% Contudo, apesar da importância dos re-
de peixes de todo o mundo. Dentre essas cursos biofísicos, os impactos ambientais,
espécies cabe ressaltar que muitas delas como o desmatamento, as queimadas, a
são endêmicas, ou seja, são restritas a uma contaminação dos solos, do ar e dos recur-
determinada área. sos hídricos, colocam em risco a conserva-
Notadamente, diante desse potencial ção dos ecossistemas naturais. Mesmo após
de biodiversidade o país passa a chamar a criação de espaços territoriais protegidos,
a atenção dos países do Norte que neces- como as UCs, percebe-se a contínua deple-
sitam de matéria-prima para atender às ção desses ambientes. Nessa ótica, pode-se
necessidades da indústria da biotecnolo- dizer que o desenvolvimento humano da
gia. Dessa forma, políticas de conserva- sociedade capitalista sem destruir a base
ção dos recursos naturais, tanto na esfera biológica é sem dúvidas um grande de-
internacional como nacional, são criadas safio que será enfrentado no decorrer do
em função dos territórios considerados século XXI.
como “megadiversos”, os quais possuem No Brasil, os espaços territoriais demar-
juntos cerca de 70% da diversidade bio- cados, com a função de proteção dos recur-
lógica mundial. Dessa forma, o país tem sos naturais e/ou culturais, as primeiras
a responsabilidade de proteger várias áreas protegidas foram criadas em 1861, as
de suas espécies, ecossistemas naturais e Florestas da Tijuca e das Paineiras. Em 1961
processos biológicos que tornam o planeta a Floresta da Tijuca recebeu a denominação
habitável. de Parque Nacional do Rio de Janeiro pelo
Após o reconhecimento das falhas Decreto Nº 50.923, de 6/07/1961, e em 1967
apresentadas na utilização dos produtos teve o nome alterado para Parque Nacio-
químicos da indústria da agricultura e de nal da Tijuca pelo Decreto Nº 60.183, de
medicamentos, a biodiversidade passa a 8/02/1967 (BRASIL, 2004). Apesar dessa
ser vista como fornecedora de matéria- preocupação com a proteção dos recursos
prima para suprir tais necessidades, assim naturais a primeira UC foi instituída le-
como para a acumulação de capital conti- galmente apenas em 1937, sob forma de
nuada, e o controle sobre os mercados e Parque Nacional.
os recursos naturais (SHIVA, 2005). Nessa Num contexto histórico, as áreas de
análise, fica evidente tanto o interesse dos proteção do país passaram por momentos
países desenvolvidos em reservar parcelas distintos, tendo como marco a criação do
dos territórios detentores de biodiversi- Código Florestal em 1934. Atualmente os
dade para interesses futuros. Assim, não espaços protegidos encontram-se inseridos
se pode descartar a hipótese dessas UCs nas UCs estabelecidas pelo Sistema Nacio-
estarem sendo criadas como mecanismo de nal de Unidades de Conservação – SNUC
alienação do território, para mais adiante (Lei no 9985, de 18 de julho de 2000), que
serem utilizadas com outros interesses as dividem em dois grupos, as UCs de
e não para as gerações futuras, como é Proteção Integral que tem como objetivo

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a preservação da natureza, admitindo-se de Unidades de Conservação (SNUC) há


apenas o uso indireto dos recursos natu- uma necessidade de resgatar o conceito
rais, com exceção dos casos previstos na de território à luz da categoria de Milton
referida Lei; e as de Uso Sustentável com o Santos, que considera território como uma
objetivo básico de compatibilizar a conser- extensão apropriada e usada. Num sentido
vação da natureza com o uso sustentável mais restrito o território é um nome políti-
de parcela dos recursos naturais existentes co para o espaço de um país. Já o sentido
nesses espaços. de territorialidade é o de “de pertencer
No primeiro grupo, encontram-se cin- aquilo que nos pertence”, nesse sentido o
co categorias: Estação Ecológica, Reserva território usado como sinônimo de espaço
Biológica, Parque Nacional, Monumento geográfico (SANTOS; SILVEIRA, 2001).
Natural e Refúgio de Vidas Silvestres; e o Ainda na análise de Santos e Silveira
segundo é composto por sete categorias: (2001), o território enquanto questão cen-
Área de Proteção Ambiental (APA), Área tral na história da humanidade constitui-se
de Relevante Interesse Ecológica, Floresta como um pano de fundo na perspectiva
Nacional (FLONA), Reserva Extrativista, de interpretação das diversas etapas e
Reserva de Fauna, Reserva de Desenvol- do momento atual de cada país. Sendo
vimento Sustentável e Reserva Particular assim, para compreender os modos de
do Patrimônio Natural (RPPN). regulamentação faz-se necessário anali-
Entre os fatores que justificam e moti- sar a forma de distribuição do trabalho
vam a criação e implementação de UCs es- em cada momento histórico, o que nos
tão a perda da biodiversidade biológica; a remonta a questão da compreensão da
vulnerabilidade para extinção de espécies; divisão territorial do trabalho que envolve
a degradação e fragmentação de hábitats; a repartição do trabalho vivo dos lugares
argumentos éticos relacionados à manu- e a distribuição do trabalho morto e dos
tenção das espécies; e o valor econômico recursos naturais que consequentemente
direto ou indiretamente relacionado à ma- norteia a repartição do trabalho vivo.
nutenção da biodiversidade. No entanto, Nesse sentido, a divisão territorial do
esses espaços territoriais são permeados de trabalho dita as regras via hierarquia entre
conflitos de ordem política, legal e sócio- os lugares, redefinindo constantemente a
econômica-ambiental que vem dificultado capacidade agir das instituições, firmas
à administração desses territórios. e pessoas. Em outras palavras, o uso do
Nesse sentido, o presente trabalho faz território, a territorialidade, é definido
uma abordagem crítica e discursiva sobre pela implantação de infra-estrutura, pelo
as Unidades de Conservação consideradas dinamismo da economia e da sociedade.
como principal estratégia territorial para a Dessa forma, Santos e Silveira (1987; 1997
proteção dos recursos naturais. apud SANTOS; SILVEIRA, 2001) com-
plementam que a configuração do espaço
geográfico se dá através do movimento da
O PAPEL DA ANÁLISE população, da distribuição da agricultura,
DO TERRITÓRIO PARA A da indústria e dos serviços e do arcabouço
CONSERVAÇÃO DOS RECURSOS normativo.
NATURAIS Na análise de Vallejo (2009), o conceito
de território possui diferentes abordagens
Para compreender os sentidos e impli- que dependem da ciência que o está utili-
cações das categorias do Sistema Nacional zando. Nas Ciências Políticas, por exem-

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plo, o território está intimamente ligado à um meio de influenciar e controlar pesso-


formação do Estado; na Antropologia, é as, coisas e relações sociais. Trata-se do
muito utilizado em relação às sociedades exercício de territorialidade, onde pessoas
tradicionais, em que os vínculos espaciais e recursos são controlados em função de
são bastante pronunciados. Já na Geogra- uma área.
fia, caracterizada como a ciência de inte- Godelier (1984 apud DIEGUES; NOGA-
gração entre o espaço físico e os processos RA, 1999) traz algumas reflexões acerca do
sociais, o território não poderia deixar de território, principalmente quando analisa
ser uma categoria geográfica das mais im- os tipos de culturas e comunidades tradi-
portantes a serem analisadas (VALLEJO, cionais. A noção de território é um elemen-
2009). O espaço é anterior ao território, to de grande relevância na relação entre
pois o ator territorializa o espaço. Dessa populações tradicionais e a natureza. Nes-
forma, para Naranjo (2000 apud VALLEJO, se sentido, o autor define território como
2009), “o território é um espaço geográfico uma porção da natureza e espaço sobre o
ocupado por um ser ou conjunto de seres, qual uma sociedade reivindica e garante
sobre o qual se manifestam as relações de a todos, ou a parte dos membros, direitos
sobrevivência e reprodução”. estáveis de acesso, controle e uso sobre os
A discussão do conceito de território recursos naturais existentes. Sendo assim,
no estudo das UCs apresenta várias pos- esse recorte espacial, do mundo natural,
sibilidades de análise, tanto no aspecto fornece ao homem os meios de subsistên-
do “mundo natural” quanto nas questões cia, de trabalho e de produção, de produzir
relacionadas à sociedade, seja ela geral, ou os aspectos materiais das relações sociais.
comunidades sociais. Na análise do estudo Conforme Diegues e Nogara (1999), o ter-
das comunidades tradicionais a noção de ritório dessas populações é diferente das
território é influenciada pela experiência sociedades urbanas, pois é descontínuo,
de vida, uma vez que a principal fonte marcado por vazios aparentes, o que sem
de recursos é oriunda da natureza. As ex- dúvida os torna mais frágeis, no sentido
periências das comunidades tradicionais mais restrito, no processo de desterritoria-
são precursoras das práticas atuais de lização dessas comunidades.
conservação de recursos naturais através Haesbaert (2003) complementa a análi-
de unidades de conservação, evidenciando se, enfatizando que a produção do espaço
uma prática territorial (VALLEJO, 2009). sempre envolve a desterritorialização e a
Trata-se, portanto, do que Santos e Silveira re-territorialização, ou seja, na dinâmica do
(2001) chamam de território usado, sinôni- território sempre haverá a vida e a morte
mo de espaço geográfico. Dessa forma, a dos territórios, onde a vida social é vista
categoria de análise não é o território em como um movimento de territorialização-
si, mas o território usado. desterritorialização-reterritorialização.
Na abordagem “funcional-estratégica” Nessa visão, as populações tradicionais
de território como espaço em que se exerce são exemplos claros, pois estiveram por
domínio político, consequentemente con- muito tempo enraizadas num determinado
trolo do acesso (HAESBAERT, 2003). Dessa espaço territorial de onde retiravam seus
forma, o conceito de território se aplica às sustentos, porém, após a transformação
Áreas Protegidas, mais especificamente as desse espaço em UC de Proteção Integral
UCs, uma vez que o recorte espacial, que foram desterritorializadas passando a fa-
define uma fronteira, media uma relação zer parte de um aglomerado de exclusão.
de poder que efetivamente torna essa área Nessa ótica, a tendência é de que os mais

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fracos sejam os principais atingidos. de interesses distintos.


A criação de espaços legalmente pro- As empresas globais necessitam de
tegidos é vista como uma importante condições territoriais para sua produção
estratégia de controle do território, pois e regulação. Diante do processo de globa-
estabelece limites e dinâmicas de uso e lização econômica, o espaço nacional é or-
ocupação. O controle e os critérios de uso ganizado para servir às grandes empresas
aplicados nas UCs são atribuídos em fun- e por isso pagam um preço, tornando-se
ção da valorização dos recursos naturais fragmentado, incoerente, anárquico para
existentes nas localidades, ou pela neces- todos os demais atores. Dessa forma, as
sidade de proteger biomas, ecossistemas empresas interessadas em determinados
e espécies raras ou ameaçadas de extinção espaços territoriais, influenciam nações
(MEDEIROS, 2006). e lugares, entretanto, para funcionarem
Em termos legais, o SNUC define UCs criam ordem para si mesmas e desordem
como “espaço territorial e seus recursos para os outros países (SANTOS; SILVEI-
ambientais, incluindo as águas jurisdi- RA, 2001).
cionais, com características naturais rele- Nesse sentido, as empresas possuem
vantes, legalmente instituído pelo Poder interesses diversos que comumente ge-
Público com objetivos de conservação e ram conflitos entre grupos dominantes
limites definidos, sob regime especial de antagônicos em busca dos “territórios da
administração, aos quais se aplicam ga- conservação”. Por um lado, os interessa-
rantias adequadas de proteção” (BRASIL,
dos em explorar o potencial biodiverso
2000).
desses territórios para atender à indústria
Conforme Santos (1988), o mundo é
farmacológica, apoiando e incentivando a
organizado em subespaços articulados à
elaboração e manutenção de políticas de
lógica global. Santos e Silveira (2001, p.
conservação para os ecossistemas naturais.
255) acrescentam que “a lógica das gran-
E por outro lado, os que necessitam desses
des empresas, internacionais e nacionais,
territórios para o avanço do agronegócio,
constitui um dado da produção política
advogando em favor da a redução das
interna e da política internacional de cada
país”. Nesse contexto, a gestão do território Áreas de Reserva Legal, por exemplo.
caracteriza-se pelas relações de poder dos Diante do exposto, e da situação das
grupos sociais na busca pela satisfação de UCs no Brasil, duas questões retornam
seus interesses num determinado espaço ao tema central nesta análise: será que os
territorial, neste caso, dotado de biodiver- verdadeiros interesses pelos territórios
sidade. detentores de biodiversidade não estão
Como exemplo desse controle descrito sendo mascarados, e esses espaços estão
temos a Convenção sobre a Diversidade sendo poupados para as necessidades da
Biológica, um instrumento político inter- indústria farmacológica? Ou estão sendo
nacional, que será analisado mais adiante, utilizados como reserva/estoque para ex-
o qual influenciou na criação do Sistema pansão do agronegócio, num mundo onde
Nacional de Unidades de Conservação no a discussão gira em torno da produção de
âmbito nacional. Assim, pode-se dizer que energia e combustível a base de vegetais?
há um retalhamento dos espaços naturais, Não seria por essa última questão que de
onde os territórios detentores de potencial fato não se tem tanto interesse na gestão
de biodiversidade passam a ser controla- efetiva desses espaços legalmente prote-
dos pelos grupos dominantes em função gidos?

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BIODIVERSIDADE E que muitas delas jamais serão conhecidas


CONSERVAÇÃO DA NATUREZA pela humanidade. Escobar e Pardo (2005)
acrescentam que as florestas tropicais pas-
Para Albagli (2001), a proteção da sam a ser cenários de novos impulsos de
biodiversidade possui diferentes atores formas de desdobramentos do processo de
com motivações distintas. As corporações monopolização capitalista.
transnacionais, principalmente nos setores No passado. a biodiversidade, enten-
fármacos e de defensivos agrícolas defen- dida como diversidade de formas de vida
dem a preservação do patrimônio genético - plantas, animais, microorganismos - era
para suas explorações biotecnológicas. tida como base para a sobrevivência de
Os grupos e organizações ambientalistas comunidades pobre. Entretanto, desde o
atuam na perspectiva da proteção dos re- século passado a idéia de biodiversidade
cursos naturais pelo seu valor intrínseco, tem-se configurado, no contexto mun-
embora em alguns casos deixem dúvidas dial, como a base ecológica para a vida e,
quanto aos reais interesses externos nesses sobretudo como o “capital natural” para
territórios biodiversos. Os bancos multila- dois terços da humanidade que investe na
terais, pressionados pela opinião pública biodiversidade como forma de produção
internacional para a conservação da biodi- para desenvolver as atividades agrícolas,
versidade passam a utilizá-la como critério pesqueiras, de saúde e produção de uten-
e requisito básico para o financiamento sílios. Dessa forma, as indústrias globais
de projetos a serem desenvolvidos, como encontram na biodiversidade fontes de
na Amazônia, por exemplo. Já o governo matéria-prima como alternativa para su-
brasileiro, no plano discursivo, aceita e prir as falhas apresentadas nas antigas
divulga a importância da biodiversidade tecnologias químicas (SHIVA, 2005).
para o desenvolvimento regional com Na agricultura, após o reconhecimento
bases sustentáveis da região. As comuni- das falhas apresentadas no controle de
dades extrativistas são convencidas de que pragas, via produtos químicos, a utilização
a conservação dos ecossistemas é condição de pesticidas de origem vegetal vem se
básica para sua própria sobrevivência. E difundindo cada vez mais, viabilizando
as comunidades tradicionais se conscien- investimentos neste ramo industrial. Já no
tizam que seus conhecimentos biogené- setor de saúde, a indústria farmacêutica
ticos da região são fundamentais para o ocidental passa a utilizar o princípio de
aproveitamento econômicos dos recursos plantas, aderindo ao sistema da medicina
existentes naquele território. indiana e chinesa (SHIVA, 2005).
O desmatamento da floresta amazôni- Conforme Alonso (2005), a indústria
ca, ocorrido na metade da década de 1980 farmacêutica e alimentar mundial depen-
levou as questões relacionada a floresta dem dos recursos naturais para continuar
para o centro do debate ecológico mun- suas investigações e adquirir maior nú-
dial, nascendo assim, o próprio conceito mero de produtos. Como resultado dessa
de biodiversidade. Nesse momento, o dependência, tem-se a constante pressão,
mundo atentava-se para a importância das principalmente para salvaguardar os in-
florestas tropicais, as quais detinham em vestimentos no setor da biotecnologia.
seu território os habitats mais ricos em es- Dessa forma, os conhecimentos das
pécies do planeta, entretanto, devido o alto populações tradicionais, como exemplo in-
grau de desmatamento, corriam o maior dígenas, são explorados, princípios ativos,
risco de extinção (SANTOS, 2005), sendo destinados a combate e cura de doenças,

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são descobertos, principalmente pelos genéticos iriam desempenhar na econo-


países detentores de tecnologia, os quais mia do futuro. Essas evidências foram
têm lutado pelos direitos de propriedade discutidas antes da Eco-92, onde os países
intelectual associados ao comércio entre desenvolvidos advogavam a favor do livre
países, com soberania para as multinacio- acesso aos recursos genéticos, defendendo
nais. a idéia que a biodiversidade pertence a
Evidentemente, o conhecimento das po- todos, portanto não é propriedade de nin-
pulações tradicionais tem sido a chave para guém (SANTOS, 2005).
tal descoberta. Segundo Rafi (1994 apud A biopirataria é tida como o processo
ALONSO, 2005), através de observações, de patentear frações e produtos da biodi-
as empresas farmacêuticas constataram versidade, com base nos conhecimentos
que a prospecção biológica é viabilizada das populações indígenas. Porém, o paten-
quando três comunidades utilizam a mes- teamento dos produtos além de negar as
ma substância com fins medicinais. inovações e criatividades acumuladas das
Entretanto, os novos sistemas de paten- populações tradicionais transformam-se
tes e os direitos de propriedade intelectual em instrumentos de enclausuramento dos
ameaçam apropriar-se dos recursos e pro- bens intelectuais e biológicos capazes de
cessos de conhecimentos vitais dos países tornar a sobrevivência possível. Contudo,
do Sul, resultando sem dúvidas em mo- se a biopirataria não for barrada, só restará
nopólio para as empresas do Norte, onde aos povos dos países em desenvolvimento
as patentes estão no centro do novo colo- se submeterem à compra de suas próprias
nialismo (SHIVA, 2005). Jameson (1991 sementes e os seus medicamentos a preços
apud SANTOS, 2005, p. 127) complementa, elevados impostos pelas empresas globais
destacando que “a colonização tem efeitos que manipulam a indústria da biotecnolo-
devastadores sobre a política, as lutas de gia e farmacêutica (SHIVA, 2005).
resistência e os anseios de emancipação”. Assim, fica claro o domínio dos países
Nessa análise, devido ao aporte fi- do Norte em relação à biodiversidade dos
nanceiro e político, os países do Norte, territórios dos países do Sul. Configura-se
proporcionaram o surgimento de novas dessa maneira, uma disputa acirrada, no
tecnologias, como a biotecnologia, aumen- âmbito da política internacional face ao
tando ainda mais o controle sobre os mer- controle pela biodiversidade, situação em
cados mundiais e dos recursos naturais, que certamente os países detentores de
influenciando nas políticas globais face capital e tecnologia sempre dispõem de
ao controle territorial dos países deten- privilégios no tocante a temática apresen-
tores de biodiversidade. Trata-se de um tada. Trata-se, portanto da versão moderna
novo tipo de colonialismo, onde os países do colonialismo, o biocolonialismo.
do Sul, detentores da maior biodiversi- Conforme Santos (2005), o Brasil de-
dade do planeta, continuam a ser meros fendeu a tese de que o acesso aos recursos
fornecedores de matérias-primas, como naturais deveria ser regulamentado por
em tempos passados. Vale ressaltar que acordo, a critério do país que dispõe ter-
o conhecimento tradicional permanece à ritorialmente dessa biodiversidade, tendo
margem dessa relação e nem ao menos é como base o princípio do direito soberano
reconhecido. do Estado sobre os recursos existentes
Nesse momento, os avanços da tecno- em seu território. Sendo assim, para que
ciência, mais específico da biotecnologia, os recursos genéticos passassem a ser
mostram a importância que os recursos patrimônio mundial, deveria haver uma

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transferência de biotecnologia visando fa- A CDB é o mais importante tratado


vorecer a conservação desse patrimônio. internacional sobre diversidade biológica,
Nessa ótica, já que o direito à proprieda- do qual o Brasil é signatário, acatando,
de intelectual é fato consumado, nada mais portanto seus princípios e determinações,
justo que parte dos lucros resultante do devendo segui-los e implementá-los.
favorecimento da propriedade intelectual Esse tratado foi assinado pelo Presidente
fosse repassada para os países detentores da República durante a Conferência das
de biodiversidade. Nações Unidas sobre Meio Ambiente e
Desenvolvimento (CNUMAD) em 1992;
ratificada pelo Congresso Nacional, pelo
UNIDADES DE CONSERVAÇÃO Decreto Legislativo nº 2/94, em 1994; e
COMO ESTRATÉGIA DE GESTÃO promulgada através do Decreto nº 2.519,
TERRITORIAL DOS RECURSOS em 1998 (BRASIL, 2006). Nesse tratado, os
NATURAIS países signatários se comprometem a re-
cuperar e restaurar ecossistemas degrada-
Diante da crise ambiental, anunciada dos, promover a recuperação de espécies
como crise mundial, evidenciada princi- ameaçadas mediante, entre outros meios,
palmente a partir da década de 1970, os a elaboração e implementação de planos e
especialistas debruçaram-se sobre a cria- estratégias de gestão.
ção de um instrumento internacional que Para Inoue (2009), existe uma separação
tratasse da Conservação da Diversidade entre dois conjuntos de literaturas, uma
Biológica planetária. focada nos aspectos internacionais-globais
As iniciativas se desenvolveram duran- e outra nos aspectos locais-regionais. Dessa
te a década de 1980, sendo que em 1992, forma, dificulta-se a visão integrada sobre
durante a Eco-92, 150 países adotaram a a questão da biodiversidade.
convenção global que entra em vigor em A autora acrescenta ainda que nas tenta-
1993. Dessa forma, a CDB se configura tivas de análise, as dimensões global e local
num marco político, portanto, devendo ser acabam se separando. Entretanto, as duas
seguida pelos países signatários (BENSU- são interligadas, uma vez que para atingir
SAN; BARROS; BULHÕES et al, 2006). a proteção global da biodiversidade há
O Decreto Legislativo n° 2, de 1994, uma dependência de ações locais. Allbagli
aprova o texto sobre a Convenção sobre (1998 apud INOUE, 2009) destaca que os
Diversidade Biológica (CDB), que tem maiores desafios rumo à implementação
como objetivo a utilização sustentável de da CDB encontram-se exatamente na es-
seus componentes e a repartição justa e fera local, onde comumente as estratégias
equitativa dos benefícios derivados da rumo a proteção ainda são insuficientes
utilização dos recursos genéticos, mediante diante do grau de ameaça existente nesses
o acesso adequado aos recursos genéticos espaços legalmente protegidos.
e a transferência adequada de tecnologias Yearkey (1996 apud GUILHERME,
pertinentes, levando em conta todos os 2007) apresenta outras duas formas de
direitos sobre tais recursos e tecnologias, interferência dos atores globais, além dos
e financiamento adequado (BRASIL, 1994). tratados e convenções em regimes globais,
No âmbito da convenção um sistema ade- as Organizações Não Governamentais
quado de UCs é considerado o pilar central (ONGs) que advogam sobre a globalização
para o desenvolvimento de estratégias dos problemas ambientais e as Empresas
nacionais de preservação da diversidade e Autoridades Locais. Em sua análise as
biológica. ONGs globais, como Amigos da Terra,

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Greenpeace e WWF, são responsáveis mecanismos que lhes assegurem a justa


pela maioria das campanhas globais e remuneração pelo acesso aos recursos ge-
conscientização, arregimentação de grupos néticos e aos conhecimentos tradicionais, a
de atuação e poder de barganha e veto repartição equitativa aos benefícios oriun-
para dotação internacional em programas dos do uso desses recursos (BENSUSAN;
próprios ou de interesse ambiental, gra- BARROS; BULHÕES et al, 2006).
dualmente foram se incorporando na par- Ainda na idéia dos autores, a CDB
ticipação e representação em organismos apresenta baixo nível de implementação,
internacionais de formulação de políticas devendo assim, encontrar formas mais
globais que interferem localmente. eficientes rumo à proteção dos recursos
Para Dobson (1990 apud GUILHERME, naturais. Entre as causas que obscurecem
2007), é simplesmente falsa a idéia de que o futuro, estão o desequilíbrio do grau
seja interesse geral a luta por uma socieda- de implementação dos três principais
de sustentável e igualitária, pois uma par- objetivos da CDB, a saber: a conservação,
cela decisivamente influente da sociedade o uso sustentável da biodiversidade e a
tem interesse material de prolongar a crise repartição dos benefícios oriundos do uso
ambiental, sobretudo, por que há dinheiro dos recursos genéticos por determinados
envolvido na administração. Portanto, a países. Dessa forma, pode-se dizer que
idéia de considerar essas pessoas como as inovações apresentadas na CDB se di-
parte do engendramento de uma mudança luíram devido a falta de implementação
social profunda é utópica. contínua.
As UCs fazem parte do regime global de O Brasil está entre os 17 países mega-
biodiversidade, entendido como o conjun- diversos, sendo o primeiro neste ranking,
to de elementos balizadores normativos e o qual reúne 70% das espécies animais e
cognitivos, ao redor dos quais interagem vegetais catalogadas no mundo, destacan-
os atores, produzindo, do global ao local, do-se ainda por agrupar entre 15 e 20% da
decisões, ações e dinâmicas de troca de biodiversidade mundial e o maior número
recursos e de conhecimento sintonizados de espécies endêmicas do planeta (DRUM-
com a CDB. MOND; ANTONINI, 2006).
No mundo contemporâneo, as UCs Esses dados justificam os olhares e
vêm se constituindo numa das principais interesses constantes dos países do Norte
formas de intervenção governamental, para com os territórios biodiversos do
visando reduzir as perdas da biodiversi- Brasil, assim como para com outros países
dade face à degradação ambiental imposta considerados megadiversos. Sendo assim,
pela sociedade (desterritorialização das fica evidente, que jamais países iriam
espécies da flora e fauna). No entanto, se reunir, em conferências mundiais em
esse processo vem sendo acompanhado busca de alternativas para a proteção dos
por conflitos e impactos decorrentes da recursos naturais, se não por interesses
desterritorialização de grupos sociais nas potencialidades que esses recursos
(tradicionais ou não) em várias partes do oferecem, principalmente para atender as
mundo (VALLEJO, 2009). necessidades da indústria biotecnológica,
Evidentemente, não se pode deixar de que acima de tudo gera recursos financei-
destacar os interesses dos países do Norte ros para esses países.
na obtenção dos recursos naturais para a A criação de UCs, na perspectiva de
fabricação de produtos, como medicamen- proteção dos recursos naturais, é utiliza-
tos e cosméticos. Vale ressaltar a preocu- da, pelos países detentores de tecnologia
pação dos países do Sul em estabelecer e capital, como estratégia de controle de

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espaços territoriais dotados de potencial direitos de propriedade intelectual. Fica


de biodiversidade. No cerne dessa questão, evidente o poder da CDB em função da
esses países continuarão no controle do divulgação dessa perspectiva globalocên-
mercado mundial de produtos agrícolas e trica em prol dos países do Norte.
farmacêuticos além dos recursos naturais Diante do exposto, algumas análises são
que estão sendo resguardados, geralmente dignas de nota. A primeira está atrelada ao
em áreas protegidas, na desculpa que aten- poder desses países em dominar os terri-
derão as necessidades das futuras gerações tórios dos países detentores de biodiver-
em suprir suas próprias necessidades. sidade, a exemplo do Brasil, onde grande
Para ilustrar tal importância Crucible parte dos biomas foi devastada e o que
Group II (2001, apud ALONSO, 2005), restou vem sendo transformada em UC,
destaca que na década de 1990, o setor de de forma que os recursos naturais fiquem
produtos bioindustriais diretamente liga- resguardados, obviamente como reserva
dos à agricultura, à produção de alimentos para apropriação do capital externo para
e à saúde se consolidaram na economia atender a demanda da indústria farma-
global concentrando gigantescas corpora- cêutica estimada em bilhões de dólares
anuais.
ções transnacionais, onde as dez maiores
Na segunda análise, os espaços terri-
empresas de agroquímicos controlaram
toriais são reservados para o aumento da
91% do mercado global deste setor; as
área destinada à produção agrícola. Obvia-
dez maiores companhias de sementes
mente, após a criação da Lei de Gestão de
obtiveram um controle entre 25% e 33%
Florestas Públicas para Produção Sustentá-
do mercado mundial; e as empresas far- vel, a qual prevê a liberação de concessões
macêuticas responderam por 36% do total das florestas públicas para pessoas jurídi-
desse mercado. cas (Lei nº 11.284/2006) e da especulação
Na análise de Escobar e Pardo (2005), em torno do debate sobre a modificação
os recursos naturais são usados numa do Código Florestal para reduzir a área
perspectiva globalocêntrica, onde a bio- de Reserva Legal da Amazônia para 30%,
diversidade é produzida pelas instituições confirma-se a idéia de que esses espaços
dominantes, como o Banco Mundial e as territoriais estavam sendo poupados para
organizações não governamentais ambien- atender às necessidades descritas anterior-
talistas dos países do Norte apoiadas pelos mente, sobretudo, do agronegócio. Neste
países do G-8. Essas empresas, objetivando contexto, os territórios das UCs são usados
manter o controle dos recursos naturais, estrategicamente como estoque para novos
oferecem subsídios para conservação e avanços do agronegócio. Assim, o slogan
uso sustentável desses recursos nas mais do desenvolvimento sustentável é utiliza-
variadas escalas, internacional, nacional e do pela mídia, sobretudo para mascarar as
local. Em contra partida, sugerem meca- reais evidências.
nismos para a utilização desses recursos,
principalmente com relação à investigação
científica, a conservação in situ e ex situ, ao AS PRIMEIRAS ESTRATRÉGIAS
planejamento nacional da biodiversidade DE PROTEÇÃO DOS RECURSOS
e ao estabelecimento de mecanismos de NATURAIS
apropriação para a compensação e utili-
zação econômica, sobretudo em troca dos A idéia de proteger recortes territoriais

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UNIDADES DE CONSERVAÇÃO COMO ESTRATÉGIA DE GESTÃO TERRITORIAL DOS RECURSOS NATURAIS

remonta à própria história da humanidade. no Brasil e nos países subdesenvolvidos,


Há evidências de que há milhares de anos é considerado pelas literaturas como um
os povos já reconheciam valores especiais. dos principais instrumentos de estratégia
Dessa forma, esses povos tomavam me- para a proteção da natureza. Esse modelo
didas para proteger determinados sítios originou-se nos Estados Unidos, tendo
geográficos, principalmente, quando se como marco a criação do Parque Nacional
tratava de animais sagrados, água pura, de Yellowstone em 1872, e expandiu-se
plantas medicinais e matéria-prima (MIL- para o Canadá e países da Europa, con-
LER, 1997 apud MORAES, 2004). Nesse solidando-se como um padrão mundial,
contexto, os registros mais antigos docu- principalmente após a década de 1960,
mentam que os povos da Índia tinham a quando o número e a extensão de espaços
preocupação de proteger os peixes e outros protegidos ampliaram-se pelo mundo. A
animais, assim como as áreas de florestas concepção do modelo deriva da concentra-
(MORAES, 2004). ção de áreas protegidas com o objetivo de
No Brasil, apesar da primeira área de proteger a vida selvagem ameaçada pelo
proteção ter sido institucionalizada em avanço da civilização urbano-industrial
1937, com a criação do Parque Nacional (CÉSAR; PAULA; GRANDO JUNIOR et
Itatiaia, no Rio de Janeiro (CÉSAR; PAU- al, 2003).
LA; GRANDO JUNIOR et al, 2003), há Para Brito (2000 apud Moraes, 2004), as
registros históricos indicando que a coroa bases para a criação do Parque Nacional
portuguesa e o governo Imperial realiza- de Yellowstone foram os fatores cênicos e
ram iniciativas de proteção, de gestão e históricos, além do potencial de lazer para
controle dos recursos naturais, com o obje- a população urbana, porém num enfoque
tivo de garantir o controle sobre o manejo, que iria tornar-se símbolo para o manejo
principalmente, da madeira e da água. Du- de UCs criadas posteriormente em várias
rante o Império, D. Pedro II, o imperador partes do mundo.
ordenou que as fazendas devastadas para Na análise de Vallejo (2009), o conceito
o plantio do café fossem desapropriadas de parque nacional como área natural, sel-
e replantadas. vagem, foi empregado nos Estados Unidos
O desmatamento ao longo do período após o extermínio quase total de comuni-
colonialismo comprometeu os estoques dades indígenas e a expansão para o oeste.
hídricos que serviam para abastecer parte Além da proposta de reservar grandes
do Rio de Janeiro. Assim, há indícios que áreas naturais para fins de recreação para
as primeiras áreas protegidas tenham sido a população urbana que vinha crescendo
criadas em 1861, as Florestas da Tijuca e rapidamente, havia uma preocupação de
das Paineiras com a finalidade de resguar- tornar o Yellowstone uma região reservada
dar os recursos hídricos daquela região e proibida de ser colonizada, ocupada ou
(DRUMMOND, 1997; BARRETO FILHO, vendida segundo as leis americanas. En-
2004 apud MEDEIROS, 2006). Em 1961, tretanto, não se considerou que os índios
através de Decreto passou a ser chamada americanos tinham vivido em harmonia
de Parque Nacional de Rio de Janeiro e com a natureza por milhares de anos. Para
em 1967, em virtude de confusões acerca os preservacionistas americanos, todos os
da nomenclatura foi novamente alterada, grupos sociais eram iguais e a natureza
passando a chamar-se Parque Nacional da deveria ser mantida intocada das ações
Tijuca (IBAMA, 2004). negativas da humanidade.
Entretanto, o modelo de UCs adotado Dessa forma, o modelo americano

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MARIA DO SOCORRO FERREIRA DA SILVA; ROSEMERI MELO E SOUZA

acabou se espalhando pelo mundo numa existentes nesses territórios, assim como
perspectiva dicotômica entre “povos” e foram responsáveis pela proteção desses
“parques”. Partindo-se do princípio de espaços durante muito tempo.
que a presença humana é sempre devas- Dessa forma, na análise de Haesba-
tadora para a natureza, pois deixaram de ert (2003), a desterritorialização aparece
considerar os diferentes estilos de vida das como o inverso de territorialização, e se
chamadas “populações tradicionais” exis- concretiza no processo de desapropriação
tentes em outros países como na América do espaço social, trazendo como consequ-
do Sul e África. ência a multiplicação dos aglomerados de
Para Diegues (1993) essa postura pre- exclusão, trata-se, portanto, de espaços
servacionista adotada nesse modelo de sobre os quais os grupos sociais dispõe
parques nacionais acabou resultando em de menor controle e segurança, material
conflitos que envolveram as populações e simbólica.
extrativistas, pescadores e índios nos pa- Sendo assim, o território como disputa
íses subdesenvolvidos, onde a realidade entre grupos antagônicos tem levado à
era completamente diferente da existente desterritorialização dos mais fracos, neste
nos Estados Unidos. caso representados pelas populações tradi-
O problema gerado pela reprodução cionais e não-tradicionais que viviam nas
do modelo americano na criação de UCs UCs, sobretudo nas categorias de Proteção
no Brasil manifesta-se em conflitos junto Integral, antes da sua criação.
às populações tradicionais que viviam no
interior desses espaços territoriais que pas-
saram a ser legalmente protegidos numa UNIDADES DE CONSERVAÇÃO
visão preservacionista. Essas comunidades NO BRASIL
possuíam culturas e práticas que caracteri-
zam dependência da natureza, que, sobre- A Lei 9985/2000, do SNUC, estabelece
tudo guardam profundo conhecimento, a critérios e normas para a criação, implan-
começar pelo seu território, mantido por tação e gestão das UCs. Porém, pode-se
várias gerações (DIEGUES, 1994 apud dizer que UCs não estão integradas de
MORAES, 2004). políticas de desenvolvimento e uso da
Vallejo (2009) complementa, ressaltando terra em nível regional, representando em
que essa forma de intervenção estatal na sua criação uma drástica intervenção do
criação territórios protegidos, também foi poder público sobre a sociedade regional
responsável pelo processo de desterrito- e/ou local, que geralmente desconsidera os
rialização de vários grupamentos sociais, demais interesses em jogo. Mesmo que as
tradicionais ou não, que lá viviam antes da unidades sejam efetivamente implantadas,
criação das unidades de conservação. sua simples criação, com a conseqüente
Evidentemente, com o processo de des- redefinição do acesso aos recursos naturais
territorialização desses povos, consequen- da área, gera insegurança e instabilida-
temente, essas populações tendem a ser de, fazendo com que, em alguns casos, o
reterritorializadas em outras localidades, território de muitas delas seja dilapidado
notadamente, longe de suas raízes histó- antes que sejam implantadas de fato, ou
ricas/culturais, causando grandes perdas mesmo que as comunidades residentes no
para as UCs, principalmente, quanto à local permaneçam em situação de indefi-
propriedade intelectual, visto que essas nição por longos anos, impossibilitadas de
populações conhecem de fato os recursos reorganizar satisfatoriamente suas vidas

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UNIDADES DE CONSERVAÇÃO COMO ESTRATÉGIA DE GESTÃO TERRITORIAL DOS RECURSOS NATURAIS

(CÉSAR; PAULA; GRANDO JUNIOR et envolvidos nos processos de tomada de


al, 2003). decisões. Já os proprietários que possuem
Entretanto, apesar de todo o aparato títulos legais dificultam tais negociações
legal sobre os recursos naturais, um dos em função da especulação imobiliária,
grandes desafios para a administração das exigindo altas indenizações que comu-
UCs está relacionado ao tipo de desenho de mente ultrapassam aos valores do mercado
uma UC que inclui além de seu tamanho imobiliário.
e forma, a existência de zonas de amorte- Na análise de Medeiros (2006), apesar
cimento e de conexões entre elas e outras no inegável avanço que proporcionou à
áreas naturais. Nesse sentido, um desenho questão de áreas protegidas do país, o
inadequado pode gerar problemas deriva- SNUC, não conseguiu atingir plenamente
dos da fragmentação de habitats e da insu- sua pretensão inicial de criação de um sis-
larização. A ligação entre os ecossistemas tema que pudesse integrar, por meio de um
naturais possibilitam entre elas o fluxo de único instrumento, a criação e gestão das
genes e o movimento da biota, facilitando diferentes tipologias existentes no país. É
tanto a dispersão de espécies como a reco- notória no país a evidência de dificuldades
lonização das áreas degradadas, além de existentes em função das disputas cada vez
promover a manutenção de populações mais acirradas entre grupos que atuam
que necessitam de áreas mais extensas para ou têm interesse nas áreas de proteção no
a sua sobrevivência (BENSUSAN, 2006). país.
Não obstante, existem outros obstáculos Para Kolecom (2004 apud COHEN,
que vêm dificultando a gestão desses es- 2007), a edição da lei do SNUC foi um
paços territoriais, podendo-se citar entre grande avanço, no sentido de ter unifor-
eles: o problema da desapropriação de mizado a questão, no entanto, não basta
propriedades particulares; a permanência mera existência da lei para que os pro-
das populações consideradas tradicionais blemas existentes sejam resolvidos. Seria
e não-tradicionais nas UCs de Proteção necessário também garantir a efetiva par-
Integral; a aplicação das restrições de uso ticipação da sociedade, de modo a imple-
dos recursos naturais para as comunidades mentar e até melhorar a própria legislação.
locais, no caso das unidades de uso dire- Diegues (1993) acrescenta que é preciso
to; a superposição das UCs com reservas também melhorara as condições de vida
indígenas, áreas militares; a extração ina- das populações tradicionais, sem afetar a
dequada dos recursos naturais; e a falta de relação mais harmoniosa com a natureza.
conectividade entre as unidades. A conservação custa caro, não somente em
A gestão de UCs implica na análise da fiscalização, criação de infra-estrutura, etc.,
forma de apropriação desses territórios. mas em investimentos sócio-econômicos
Assim, entre os entraves mais difíceis e culturais que beneficiem populações
de serem solucionados na administração tradicionais.
dessas unidades encontra-se a questão A gestão e o gerenciamento das UCs fe-
fundiária, pois a maioria das pessoas, que derais encontram-se sob administração do
se dizem “donos das terras”, não têm do- Instituto Chico Mendes de Conservação da
cumentos que comprovem a posse legal Biodiversidade, ICMBio, as UCs estaduais
das mesmas. Esse impasse impede que sob responsabilidade das Secretarias Es-
os órgãos gestores possam conceder as taduais do Meio Ambiente, as municipais
devidas indenizações. Outro quesito é que pelas Secretarias Municipais, e as RPPNs
essas terras, geralmente estão sob domínio pelos proprietários.
de grandes latifundiários, comumente Em 2004, apenas 10,54% da área terri-

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torial do Brasil era coberta por UCs, o que zonas, Acre, Amapá, Roraima, Rondônia,
representava 101.4974.971 hectares. Deste Tocantins e parte do Maranhão) possuía
total, 6,34% estavam distribuídas nas cate- até 2009, 286 UCs, cerca de 20% do seu
gorias de uso indireto, Proteção Integral, território, sob a administração federal,
e 3,53% nas de Uso Sustentável (ISO, 2004 estadual e municipal (INSTITUTO SO-
apud BENSUSAM, 2006). CIOAMBIENTAL, 2009), totalizando 299,
Em 2005 o país contava com 914 UCs, incluindo as 13 RPPNs.
distribuídas nas categorias do SNUC, o Do total de UCs existentes em 2007
equivalente a 111.612.388 hectares, ad- na Amazônia Legal, 183 eram de Uso
ministradas pela espera federal e esta- Sustentável e 104 de Proteção Integral.
dual considerado um número modesto Conforme Borges, Iwagana, Moreira e
tamanho ao potencial da biodiversidade Dugigan (2007), os governos estaduais
existente. A criação de UCs de Proteção e usam como estratégia a criação de UCs
Integral e de Uso Sustentável encontram- de Uso Sustentável, uma vez que gera
se equilibradas, sendo 478 unidades terri- menos conflitos entre o poder público e
toriais de Proteção Integral e 436 de Uso as populações locais. A criação de áreas
Sustentável. de Proteção Integral implica na remoção
Porém, quando se analisam as esferas de populações locais e gastos do poder
federal e estadual, com relação à área, público em indenizações para as desa-
percebe-se que o governo estadual inves- propriações, aumentado, dessa forma, os
tiu mais em UCs de Uso Sustentável com conflitos nesses recortes espaciais.
44.397.707 hectares, destacando-se a cria- Quanto aos conflitos existentes na ad-
ção de APAs em todo o país, consideradas ministração esses territórios na Amazônia
mais próximas de um mecanismo para Legal, pode-se destacar: a) a sobreposição
ordenamento de uso da terra (RYLANDS; de áreas entre as UCs e outras áreas da
BRANDON, 2005). A criação de UCs de união como as terras militares, as reser-
Uso Sustentável tem gerado menos con- vas garimpeiras, as áreas indígenas e os
flitos com as populações tradicionais ou assentamentos agrícolas; b) a falta de infra-
não-tradicionais, uma vez que é permitida estrutura, mesmo para unidades criadas
a utilização direta de parte dos recursos há muito tempo; c) a falta de recursos
naturais existes. Já o governo federal in- humanos capacitados; e, d) a falta de re-
veste mais em UCs de Proteção Integral,
cursos financeiros (BORGES; IWANAGA;
apesar de 111 contra 367 estaduais, a área
MOREIRA et al, 2007).
das unidades federais é muito maior, com
Para que as UCs cumpram os objetivos
28.245.729.
para os quais foram criadas, é necessário
Com relação às RPPNs, conforme dados
pensar não somente na gestão interna
do IBAMA (BRASIL, 2009), em 2009 o país
desses espaços, mas sim em buscar al-
contava com 500 unidades, distribuídas
ternativas para minimizar os problemas
em 471.907,17 ha, sob administração de
externos que afetam diretamente as unida-
seus proprietários particulares. Entre os
des, uma vez que as pressões que ocorrem
Estados destacam-se com maior número
no entorno dessas áreas se apresentam
de RPPNs em seu território, Minas Gerais
com 82, e com menor número Sergipe e de fora para dentro, sendo assim, a visão
Roraima, ambos com três unidades dessa do gestor das unidades deve envolver os
categoria. Na Região Nordeste o Estado da territórios circunvizinhos que de alguma
Bahia se destacava com 75 unidades dessa forma possam comprometer a proteção
natureza. desses ecossistemas.
A Amazônia Legal (Mato Grosso, Ama- Contudo, não basta apenas multiplicar

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UNIDADES DE CONSERVAÇÃO COMO ESTRATÉGIA DE GESTÃO TERRITORIAL DOS RECURSOS NATURAIS

a quantidade de unidades no país, a exem- bindo o acesso aos recursos naturais dis-
plo do Estado de Sergipe que possuía até poníveis para as populações tradicionais
2009, quinze UCs, sendo seis de Proteção e de entorno, e nas de Uso Sustentável
Integral e nove de Uso Sustentável. O que limitando o uso territorial. Nesse sentido,
mais tem despertado a atenção neste cená- a política de conservação é feita sob égide
rio, é que no intervalo de 2004-2009 foram do Estado ou de um agenciamento para
criadas seis unidades, e mais três estão interesses do grande capital.
em processo de criação. No entanto, esses Apesar do avanço significativo das polí-
espaços territoriais apresentam os mais ticas referentes aos espaços protegidos do
variados problemas que vem dificultando país, é notório que apenas a existência dos
a gestão e o gerenciamento desses “espaços instrumentos, do sistema e das instituições
legalmente protegidos”, tais como: a falta responsáveis não garante sua efetividade
de política florestal estadual; a inexistência e eficiência. Para a gestão territorial des-
de plano de manejo em todas as unidades; sas áreas, faz-se necessário a introdução
a falta de regularização fundiária; a falta de mecanismos mais sólidos e perenes de
de infra-estrutura administrativa e opera- planejamento e financiamento. A falta de
cional; a falta de profissionais qualificados planejamento a curto, médio e longo prazo
via concurso público; os mais variados e o aporte de recursos, financeiros e huma-
impactos ambientais provocados pelas nos, estão entre os principais entraves na
populações de áreas circunvizinhas e por consolidação efetivas das áreas protegidas
grandes empreendedores; as ocupações no país, mas a questão fundiária, sem dúvi-
desordenadas em áreas de risco ambien- das, encontra-se no âmago dessa questão,
tal; a especulação imobiliária; e a falta principalmente por envolver relações de
de realização de programas de educação poder no uso do território.
ambiental. Dessa forma, torna-se necessário estabe-
Nesta análise, ficam alguns questiona- lecer com mais precisão a integração das
mentos, como por exemplo, para que criar áreas protegidas com as várias escalas de
tantas unidades, num curto intervalo de planejamento e gestão do território, atual-
tempo, se as que foram criadas encontram- mente reconhecidas através de mosaicos e
se permeadas de problemas que dificil- dos corredores ecológicos. Apesar da exis-
mente serão resolvidos? A quem perten- tência do SNUC, na prática as experiências
cem as terras onde as UCs foram e estão e os resultados são pouco satisfatórios.
sendo criadas? Quais os interesses que Pode-se dizer que o SNUC não conseguiu
estão em jogo, uma vez que há unidades contemplar definitivamente uma solução
que foram criadas há quase 20 anos, e, no para os problemas de baixa integração e
entanto não dispõe ao menos de plano de gerenciamento das áreas protegidas (ME-
manejo? O que deve ser protegido, o que DEIROS, 2006).
pode ser utilizado e para quem usufruir? Há necessidade do fortalecimento da
Será que não é para reservar as terras para política de conservação, que englobe todas
atenderem as necessidades do agronegócio as áreas protegidas, como: as terras indí-
num futuro bem próximo? Essas e outras genas, reservas legais e as áreas de preser-
questões também estão inseridas na histó- vação permanente; além da importância
ria da maioria das UCs do país. de estabelecer a conectividade entre os
As relações de poder estabelecidas nes- espaços protegidos; e através da criação de
ses territórios são explícitas, pois o Estado corredores ecológicos e de novas UCs. Para
passa a controlar os recursos naturais, no Bensusan (2006), existem outros requisitos
caso das UCs de Proteção Integral, proi- fundamentais neste processo, tais como:

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planejamento global do sistema; definição do mercado capitalista, configurando-se


de critérios para seleção de novas UCs; assim uma nova forma de controle terri-
resgate da importância das categorias do torial, o biocolonialismo.
SNUC; fortalecimento da pesquisa cientí- Neste cenário, a disputa acirrada pelos
fica nesses espaços; democratização nos territórios dotados de biodiversidade tam-
processos de consulta pública previstas bém têm gerado conflitos que envolvem
no SNUC; fortalecimento de programas de diferentes atores. Dê um lado, os donos do
conservação em áreas particulares; apoio grande capital internacional, com interes-
e respeito às comunidades tradicionais; se na proteção desses espaços, sobretudo
construção coletiva na solução dos con- devido ao seu potencial para atender à
flitos locais; capacitação continuada dos demanda da indústria farmacêutica e de
gestores e dos membros das UCs; geração cosméticos. Por outro lado, os donos do
de benefícios nesses espaços para a comu- capital interno, interessados em resguardar
nidade local; e a busca de parcerias com a esses territórios como reserva de terras
comunidade local na perspectiva de uma para expansão do agronegócio. Neste con-
gestão participativa. texto, sempre haverá as comunidades que
dispõem de menor poder de barganha nes-
ta disputa, as populações tradicionais, que
CONSIDERAÇÕES FINAIS são retiradas das UCs de Proteção Integral.
Portanto, ficam evidentes as relações de
Diante do processo de ocupação desen- poder estabelecidas nessas áreas protegi-
freado e do uso predatório dos recursos das, em prol dos grupos dominantes.
naturais, porções do território dotadas de A criação de UCs, principalmente do
biodiversidade são reservadas na perspec- grupo de Proteção Integral, vem sendo
tiva de uma gestão territorial adequada. acompanhada pelo processo de desterrito-
Porém, não se pode deixar de ressaltar, rialização dos mais fracos, as populações
os interesses dos países do Norte nesses tradicionais, que são obrigadas a deixar
territórios, Assim, há evidências de que esses espaços que antes ajudavam a pro-
esses territórios vêm sendo reservados teger. Porém, a administração vem sendo
como garantia aos anseios do agronegócio. marcada pelo descaso constante por parte
Nesse contexto, políticas de conservação, das autoridades responsáveis.
na escala internacional e nacional, foram Já as UCs de Uso Sustentável também
criadas, com o intuito de resguardar esses apresentam os mesmo problemas de
recortes espaciais, criando-se as Unidades gestão, tendo como desafio estabelecer
de Conservação, como principal mecanis- quais os recursos naturais que podem ser
mo de conservação da natureza. utilizados, quem deve utiliza-los e quanta
Há evidências de que os países desen- dessa utilização é sustentável. Enquanto
volvidos vêm controlando os territórios não se encontram mecanismos eficientes
dotados de recursos naturais, considerados para resolução de tais questões, os atores
como fonte de matéria-prima para a indús- envolvidos, principalmente as populações
tria da biotecnologia, como a biogenética, a tradicionais e locais, continuarão esperan-
indústria de alimentos e de produtos agrí- do por uma gestão eficiente que atenda aos
colas. No âmago desta questão, a criação de seus anseios e o das gerações futuras.
UCs, com o objetivo de proteger parcelas Dessa forma, apesar das UCs serem
dos recursos naturais para as futuras ge- consideradas como um instrumento estra-
rações é utilizada como mais uma faceta tégico de gestão territorial pode-se dizer

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que o país ainda tem um longo caminho tucionais; estabelecimento de parcerias


a percorrer, visto que essas áreas conti- entre os órgãos estatais e as organizações
nuam relegadas aos mesmos problemas da sociedade civil; valorização do conheci-
históricos de administração e gerencia- mento tradicional; utilização dos recursos
mento. Nessa ótica, faz-se necessário novos naturais pelas populações tradicionais e
olhares rumo a minimização dos conflitos comunidades locais; e a realização de pro-
políticos, legais, econômicos, territoriais, gramas de educação ambiental.
sociais, culturais e ambientais que vem Outra estratégia importante é a criação
dificultando a gestão desses espaços. de comitês de gestão participativa com
Para alcançar a minimização dos con- atuação de representantes dos diversos
flitos, na perspectiva de uma gestão parti- segmentos da sociedade, tais como: do
cipativa, é necessário o envolvimento dos ICMBio, das Secretarias Estaduais do
atores que possuem interesses na conser- Meio Ambiente, do Conselho de Meio
vação dessas áreas. Nessa perspectiva, é Ambiente Estadual, dos Comitês de Bacias
necessário repensar nos desenhos das UCs Hidrográficas, das Prefeituras Municipais,
de forma que impeça a fragmentação e o dos setores produtivos, das instituições
isolamento da área, de modo a que a socie- técnico-científica e dos conselhos de comu-
dade civil possa participar de forma ativa nidades com a finalidade buscar soluções
na busca de alternativas para minimização, tanto para os conflitos internos como para
tanto dos problemas internos como exter- os externos, uma vez que exercem profun-
nos desses espaços, uma vez que também das pressões sobre os ecossistemas.
exercem fortes pressões sobre as unidades. Somente por meio de iniciativas dessa
Nessa análise, a participação efetiva dos natureza poder-se-á pensar em dar aos
moradores locais, é fundamental para espaços territoriais legalmente protegidos
apontar pressupostos objetivando o uso e a finalidade para os quais foram criados,
ordenamento desses territórios. sejam eles de Proteção Integral ou de Uso
Para implementação de fato das UCs in Sustentável.
locu, vários desafios, rumo a uma gestão
participativa e gerenciamento efetivo,
devem ser enfrentados, tais como: fortale- REFERÊNCIAS
cimento da política de ordenamentos ter-
ritorial dos recursos naturais englobando ALBAGLI, Sarita. Amazônia: fronteira geopolítica
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Recebido em 24/07/2009
Aceito em 20/12/2009

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