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Keyword: nature conservation; ethnoconservation; peoples and traditional communities; traditional knowledge
Desenvolv. Meio Ambiente, v. 50, Diálogos de Saberes Socioambientais: desafios para epistemologias do Sul, p. 116-126, abril 2019. 118
naturais como condição para sua reprodução ocidental e são símbolos claros da separação entre cul-
cultural, social, religiosa, ancestral e
tura e natureza e que, por isso, não fazem sentido nas
econômica, utilizando conhecimentos,
inovações e práticas, gerados e transmitidos cosmologias dos povos e comunidades tradicionais.
pela tradição. Lévi-Strauss, em O Pensamento Selvagem,
enfatiza a atitude e espírito científico dos povos indí-
Por outro lado, conhecimento tradicional pode genas ao afirmar que, para elaborar técnicas muitas
ser definido como o saber e o saber-fazer, a respeito do vezes complexas, que permitem cultivar sem terra
mundo natural, sobrenatural, produzidos pelos povos ou sem água, transformar grãos ou raízes tóxicas em
e comunidades tradicionais, transmitidos oralmente de alimentos, há uma atitude científica, uma curiosidade
geração em geração. Para muitas dessas sociedades, assídua e alerta, uma vontade de conhecer pelo prazer
sobretudo as indígenas, existe uma interligação orgâ- de conhecer, pois apenas uma fração das observações
nica entre o mundo natural, o sobrenatural e a orga- e experiências podia fornecer resultados práticos
nização social. Nesse sentido, para estes dois últimos e imediatamente utilizáveis (1976). Lévi-Strauss
termos, não existe uma classificação dualista, uma afirma, portanto, que existem dois modos diferentes
linha divisória rígida entre o “natural” e o “social”, de pensamento científico, não em função de estágios
mas sim um continuum entre ambos. Assim, Descola desiguais de desenvolvimento do espírito humano,
(1997) sugere que para os achuar da Amazônia, a flo- mas dois níveis estratégicos em que a natureza se
resta e as roças, longe de se reduzirem a um lugar de deixa abordar pelo conhecimento científico: um
onde se retiram os meios de subsistência, constituem aproximadamente ajustado ao da percepção e ao da
o palco de sociabilidades diversas em que convivem imaginação e outro deslocado, como se as relações
seres humanos, seres sobrenaturais e os animais e necessárias, objeto de toda ciência, pudessem ser
plantas. Para muitos povos indígenas, os humanos atingidas por dois caminhos diferentes, sendo um
podem se tornar animais e estes converterem-se em próximo da intuição sensível e o outro mais deslocado
humanos. Nesse sentido, ainda segundo Descola, (1989, p. 30). Michael Balick & Paul Cox (1996) têm
as cosmologias indígenas amazônicas não fazem posição semelhante ao afirmar que o conhecimento
distinções ontológicas entre humanos, de um lado, e tradicional indígena e o científico ocidental partem
um grande número de animais e seres sobrenaturais, dos mesmos princípios epistemológicos.
de outro. O autor enfatiza a ideia de interligação entre William Balée, em Fooprints of the Forest
essas espécies, ligadas umas às outras por um vasto (1993), enfatiza também uma outra diferença rele-
continuum, governada pelo princípio da sociabilidade, vante entre o pensamento científico moderno e o
no qual a identidade dos humanos, vivos ou mortos, tradicional. Enquanto o primeiro é comunicado a
das plantas, dos animais e dos espíritos é completa- partir da escrita, o segundo utiliza a oralidade. Nesse
mente relacional e, portanto, sujeita a mutações. sentido, o conhecimento tradicional somente pode ser
É, portanto, essencial ter-se em conta que interpretado dentro do contexto da cultura em que ele
conceitos como os de “natureza selvagem”, “ecos- é gerado. Para Balée, é a escrita e os mecanismos a ela
sistema”, “ecorregiões”, promovidos pelas ONGs associados que explicam por que a botânica lineense
multinacionais da conservação, pertencem à ciência permite a identificação de mais de 30.000 espécies
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Nesse sentido os seres vivos, em sua diversi- reservas futuras para mineração, hidroelétricas e ao
dade, participam, de uma ou outra forma, do espaço final, “privatizados”, como manda o manual neolibe-
domesticado ou pelo menos identificado, seja como ral hoje vigente no Brasil. Talvez seja por isso que as
domesticado, seja como não domesticado, mas co- grandes entidades conservacionistas internacionais e
nhecido. Eles pertencem a um lugar, um território governos associem de forma tão íntima a conservação
enquanto lócus em que se produzem as relações da biodiversidade e as áreas protegidas vazias de seus
sociais e simbólicas. habitantes tradicionais e de sua cultura.
A biodiversidade usualmente definida pelos Apesar dos avanços internacionais no reconheci-
cientistas é fruto exclusivo da natureza, não per- mento da importância dos conhecimentos tradicionais
tence a lugar nenhum senão a uma teórica teia de como é feito em vários artigos da CDB, em particular
inter-relações e funções, como pretende a teoria dos no artigo 8j, que trata da repartição dos benefícios
ecossistemas. No fundo, o conhecimento da biodi- decorrentes do uso desses saberes por empresas, ain-
versidade tido como exclusivo da ciência, e aí reside da existe, para alguns, a dúvida se uma comunidade
um dos graves problemas no mundo moderno em que analfabeta e socialmente marginalizada, como os
parcela importante das descobertas científicas é feita pescadores artesanais, possa ter um conjunto de prá-
em laboratórios de empresas multinacionais. Para ticas e saberes úteis para a conservação. No entanto,
que esse conhecimento se produza sem interferência o estudo clássico do antropólogo John Cordell entre
dos outros homens, o cientista necessita, usualmente, os pescadores artesanais do sul da Bahia é um exem-
de um não lugar, um parque nacional ou uma outra plo de como comunidades pobres e marginalizadas
área de proteção que não permite a presença humana, conseguiram sistemas de apropriação dos recursos
incluindo a presença daquelas populações tradicionais pesqueiros baseados no conhecimento e práticas
que colaboraram para que aquele pedaço de seu ter- tradicionais complexas (Cordell, 1983).
ritório se mantivesse preservado. O parque nacional Muitas das instituições governamentais do meio
acaba representando um hipotético mundo natural ambiente são controladas por cientistas naturais que
primitivo, intocado, mesmo que grande parte dele já consideram ser o conhecimento científico ocidental
tenha sido manipulada por populações tradicionais como a única base para o estabelecimento de manejo
durante gerações, criando paisagens mistas de flo- costeiro. A partir desse pressuposto equivocado, eles
restas já transformadas e outras que raramente são impõem sistemas de manejo frequentemente baseados
visitadas para as operações de caça, coleta etc. Esses em dados biológicos incompletos, trazendo conse-
espaços florestados assim constituídos são paisagens, quências negativas para a pesca. Instala-se então um
em grande parte resultante da ação humana. Uma confronto entre os saberes, o científico moderno e o
política conservacionista equivocada que transforma tradicional, ao invés de uma colaboração frutí-fera.
esses lugares em não lugares, com a expulsão das po- Na base desse conflito está, sem dúvida, a questão do
pulações tradicionais pode estar abrindo espaço para poder associado ao conhecimento científico, sendo
que esses não lugares se tornem o domínio de pesquisa este último utilizado pelo governo para justificar
das multinacionais ou de convênios entre entidades muitas de suas intervenções em áreas social e am-
de pesquisa nacionais e internacionais, criados como bientalmente frágeis.
[…] o conhecimento tradicional, com seu O conceito de manejo das ciências naturais tam-
enfoque diacrônico, ao contrário da ciência
moderna com sua análise sincrônica, tem uma bém é distinto do etnomanejo, do manejo realizado
importância grande para a conservação. Mas pelas tradições tradicionais. A definição apresentada
como o conhecimento tradicional está intima- do manejo científico, dos ecossistemas que se en-
mente ligado à prática e às crenças, é mais
difícil de se explicar esse saber no âmbito da
contra no Glossário de Ecologia, da Aciesp (1987), é
ciência ocidental (p. 155). sintomática nesse sentido:
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orientação de tais programas deve garantir ambiental líquida maior que a existente nas chamadas
que os valores intrínsecos das áreas naturais
condições naturais primitivas, em que não existe
não fiquem alterados, para o desfrute das
gerações futuras. presença humana.
Para esse autor, a questão transcende a distinção
Fica claro nessa definição que existe somente habitual entre preservação e degradação, na medida
o manejo chamado “científico”, dentro dos parâme- em que, ao contrário da preservação, o manejo im-
tros da ciência cartesiana e reducionista, baseada em plica em interferência humana. Num ecossistema
“teorias ecológicas sólidas”. Seria importante que se manejado, algumas espécies podem se extinguir
definisse o que são teorias ecológicas sólidas num como resultado dessa ação, ainda que o efeito total
domínio científico em que as teorias da conservação dessa interferência possa resultar num aumento real
mudam rapidamente. Veja-se, por exemplo, a teoria da diversidade ecológica e biológica de um lugar es-
dos refúgios, que serviu de base, na década de 70- pecífico ou região. Balée mostrou como, no caso dos
80, para o estabelecimento de parques nacionais na ka'apor, existe um manejo tradicional indígena que
Amazônia, que se transformaram, eles mesmos, em resulta num aumento de espécies de determinados
verdadeiras ilhas de conservação e que depois pas- habitats, ainda que esse resultado não tenha sido bus-
sou ao desuso. Hoje se fala em corredor ecológico cado intencionalmente. Esse autor, assim como outros
como forma de se resolver a fragmentação da mata (Gomez-Pompa, 1992), indica que os povos indígenas
e a insularização das unidades de conservação, esta não só têm um conhecimento aprofundado dos di-
resultante, em parte, da aplicação da teoria dos refú- versos habitats e solos em que ocorrem as espécies,
gios. Os programas de “corredores ecológicos”, um como também os classificam com nomes distintos.
dos financeiramente mais bem dotados do Brasil e Eles também manipulam esses ambientes e sua flora
aplicados em outras partes do mundo pelas mesmas e fauna, por meio, inclusive, de práticas agrícolas,
ONGs conservacionistas internacionais antes men- como a do pousio, que acabam resultando numa maior
cionadas, não têm sido devidamente avaliados pela diversidade de espécies nesses habitats manipulados
sociedade brasileira em sua complexidade ecológica, do que nas florestas consideradas nativas.
mas sobretudo social e política (Diegues, 1996). Finalmente, é importante se afirmar que essa
Para esse manejo científico, exige-se, por exem- sociobiodiversidade é, em grande parte, resultado dos
plo, o “conhecimento profundo do ecossistema”, conhecimentos e práticas realizados nos territórios
mesmo quando se sabe que as informações científicas onde os grupos tradicionais produzem também seu
necessárias não são facilmente disponíveis e que os li- modo de vida.
mites dos ecossistemas variam segundo a formação de
cada cientista, seja ele biólogo, pedólogo, botânico etc. 4. Novos critérios para seleção de áreas
Para a etnociência, o manejo é realizado tam- críticas para a conservação
bém pelas populações tradicionais indígenas e não
indígenas. Para Balée (1993), esse manejo implica
Finalmente, um outro aspecto que mostra a
na manipulação de componentes inorgânicos ou or-
divergência dos enfoques sobre as estratégias de
gânicos do meio ambiente, que traz uma diversidade
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bom e mau uso dos recursos naturais. De acordo com fórum de comunidades tradicionais do litoral norte de
Godelier (1984), no interior das relações materiais São Paulo e sul-fluminense e o fórum de comunidades
com a natureza existe um aspecto não material que tradicionais do Vale do Ribeira, em São Paulo, que
unifica as três funções do conhecimento: represen- reúnem povos indígenas, comunidades quilombolas
tar, organizar e legitimar as relações sociais e com e caiçaras. A nível federal estão representados na
a natureza. Para se entender o processo material de Comissão Nacional de Povos e Comunidades Tradi-
produção é essencial, portanto, levar-se em conta os cionais, criada em 2006 e hoje transformada em um
mitos e símbolos usados tanto pelas comunidades Conselho Nacional de Povos e Comunidades Tradi-
que vivem da mata quanto do mar para representar cionais, respon-sáveis principalmente pela aplicação
esses ambientes e os seres que aí vivem. O processo da Política Nacional de Desenvolvimento Sustentável
de produção tradicional incorpora elementos simbóli- dos Povos e Comunidades Tradicionais (2007).
cos que atuam não sobre a natureza em si, mas sobre A maioria desses movimentos hoje se concentra
as forças sobrenaturais que garantem uma colheita na luta pelo controle de seu território ou parte dele
abundante ou pesca proveitosa e, por vezes, castigam contra as ameaças de expropriação a que estão sujei-
aqueles que são demasiadamente ambiciosos. Os tos, à sua cultura, ao seu modo de vida tradicional,
territórios, tanto marítimos quanto florestais, além contando com o apoio jurídico do Ministério Público
de comportarem áreas de uso comum, trabalhados Federal e da Defensoria Pública, de ONGs socioam-
pela ação coletiva, exibem marcas (pedras submersas, bientais, de institutos de pesquisa e ensino.
certas árvores, terras em pousio, cemitérios, capelas) O estabelecimento de áreas protegidas sobre
que demonstram a antiguidade da ocupação e que são territórios pertencentes a comunidades litorâneas
reconhecidas por todos os moradores como sinais de também afetou negativamente o modo de vida dos
uso ancestral e pilares da memória coletiva. pescadores artesanais. Muitas dessas áreas nas re-
No Brasil, a questão dos territórios tradicionais giões costeiras eram e são habitadas por pescadores
e a apropriação social de seus recursos somente há artesanais que desenvolveram formas específicas de
pouco tempo vêm recebendo atenção por parte dos apropriação dos recursos do mar. Frequentemente,
pesquisadores. Uma das razões é que muitos deles as matas associadas aos ecossistemas litorâneos
são tratados como espaços vazios ainda que sejam conservaram-se em bom estado não porque foram
habitados por comunidades tradicionais, socialmente transformadas em parques nacionais, mas sobretudo
invisíveis até recentemente. Somente há pouco tempo porque eram habitadas por essas comunidades tradi-
esses grupos sociais tornaram-se socialmente mais cionais. Ainda assim, a legislação brasileira pressu-
visíveis, quando começaram a se organizar e resistir põe a expulsão desses pescadores artesanais de seus
às expulsões de seus territórios. É o caso dos se-rin- territórios ancestrais.
gueiros, quebradeiras de coco-babaçu, pescadores
artesanais, entre outros, que se or-ganizaram como
associações e movimentos, tais como o Conselho
Nacional dos Seringueiros, o Movimento de Pescado-
res e pescadoras (MPP), diversos fóruns, tais como o
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