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Gaia Scientia (2014)

Volume Especial Populações Tradicionais: 189-198


Versão Online ISSN 1981-1268
http://periodicos.ufpb.br/ojs2/index.php/gaia/index

Apropriação e proteção dos conhecimentos tradicionais no Brasil: a


conservação da biodiversidade e os direitos das populações tradicionais
Christinne Costa Eloy¹, Danielle Machado Vieira2, Camilla Marques de Lucena2 e
Maristela Oliveira de Andrade3
1
Docente do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia da Paraíba, Campus Cabedelo, Brasil.
2
Doutoranda em Desenvolvimento e Meio Ambiente (PRODEMA), Universidade Federal da Paraíba,
Centro de Ciências Exatas e da Natureza, Departamento de Sistemática e Ecologia.
3
Docente da Universidade Federal da Paraíba, Centro de Ciências Humanas Letras e Artes E-mail:
andrademaristela@hotmail.com

Resumo
O reconhecimento da importância do conhecimento tradicional por parte da ciência tem favorecido o avanço da
tecnologia através da bioprospecção realizada pelos países mais desenvolvidos. Neste sentido, a transferência do
conhecimento de populações tradicionais inseridas em países em desenvolvimento, como o Brasil, para grandes
empresas multinacionais tem sido denunciada como biopirataria. Este artigo propõe uma reflexão crítica em torno da
apropriação dos conhecimentos tradicionais e dos esforços empreendidos pelo Brasil para sua proteção, considerando
seu papel para conservação da biodiversidade e os direitos das populações guardiães desse conhecimento. Para
identificar os problemas relativos à salvaguarda do conhecimento tradicional e das populações detentoras, com o
objetivo de ajudar a evitar a privatização e restrição de seu uso será feito um exame sobre a legislação relevante
especialmente do Brasil e da dimensão teórica e conceitual relativas ao conhecimento tradicional.
Palavras chave: Apropriação intelectual,conhecimento tradicional,conservação da biodiversidade.

Resumen Abstract
La propiedad y protección de los conocimientos The scientific recognition of the importance of
tradicionales en el Brasil: la conservación de la traditional knowledge has favored the advance of the
biodiversidad y los derechos de las poblaciones technology of bioprospection in the most developed
tradicionales.El reconocimiento de la importancia de countries. The transfer of traditional knowledge from
los conocimientos tradicionales por parte de la developing countries has been denounced as
ciencia ha favorecido el avance de la tecnología a biopiracy. This paper puts forward a critical
través de la bioprospección realizada por los países reflection on the appropriation of traditional
más desarrollados.En este sentido, la transferencia de knowledge and on the efforts made in Brazil to
los conocimientos de las poblaciones tradicionales protect this knowledge – reflection that emphasizes
inserta en los países en desarrollo, como Brasil, a las the rights of the populations which owns it as well as
grandes empresas multinacionales ha sido its contribution to the conservation of biodiversity.
denunciadas como biopiratería.Este artículo propone The paper aims at identifying the problems related to
una reflexión crítica sobre la apropiación de los the safeguard of this asset belonging to traditional
conocimientos tradicionales y de los esfuerzos populations with a view to helping prevent its
realizados por Brasil para su protección, teniendo en privatization and the ensuing restriction of its use. To
cuenta su papel para la conservación de la achieve this, the paper examines the relevant
biodiversidad y los derechos de las poblaciones legislation of several countries, especially Brazil, and
guardianes de este conocimiento. Para identificar los the theoretical and conceptual dimensions of
problemas relativos a la protección del conocimiento traditional knowledge.
tradicional y de las poblaciones titulares, con el fin de Keywords: Intellectual appropriation, traditional
ayudar a evitar la privatización y la restricción de su knowledge, biodiversity conservation.
uso será echo un examen de la legislación pertinente
especialmente del Brasil y de la dimensión teórica y
conceptual en relación a el conocimiento tradicional.
Introdução
Palabras clave: Propiedad intelectual, conocimiento
tradicional, conservación de la biodiversidad. O conhecimento tradicional ou
conhecimento local constitui um patrimônio
das populações tradicionais, transmitido

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pela oralidade através de processos intelectual, uma vez que se trata de um


intergeracionais, que apresenta saber coletivo. A quem pertence então o
peculiaridades em virtude de sua formação conhecimento? De quem é o direito sobre
ser favorecida pela relação de proximidade ele?
dessas populações com a riqueza da Com isso, cabe questionar a
biodiversidade. responsabilidade dos pesquisadores que
Conhecimento tradicional é um acessam o conhecimento tradicional, uma
conceito relativamente recente, embora esta vez que a partir deles são estabelecidas
190 forma de conhecimento tenha origem patentes, em favor dos próprios
remota, uma vez que resulta da relação pesquisadores assim como de empresas.
entre humanos com a natureza e Para compreender melhor o tema,
abiodiversidade que o cerca. Antes mesmo faz-se necessário entender a diferença entre
do desenvolvimento da tecnologia como conhecimento tradicional e conhecimento
conhecemos hoje, o homem já se utilizava científico e as implicações do diálogo entre
de recursos biológicos a seu favor, fosse eles.
para alimentação, abrigo ou para tratar de
ferimentos e sintomas físicos indesejáveis. Conhecimento tradicional e
Assim, curandeiros, benzedeiras, conhecimento científico:
pajés, rezadeiras – termos utilizados para possibilidades de diálogo
designar os “especialistas” das
comunidades tradicionais que detêm o A expressão “conhecimento
conhecimento sobre o uso de plantas e tradicional” está impregnada de sentidos e,
ervas para práticas medicinais e ou preparo por se tratar de termo ainda recente na
de poções mágicas – trazem um literatura, apresenta várias denominações,
conhecimento que vem sendo transmitido embora a maioria se mostre imprecisa, não
desde tempos imemoriais até os dias atuais. havendo, portanto, um consenso entre os
Embora tenha estado distante da teóricos da área sobre seu real
interferência científica, esse conhecimento significado.Além de possuir múltiplos
passou recentemente a ser visto com mais conceitos, o conhecimento tradicional
atenção por pesquisadores que, atualmente, também é designado por vários termos, que
buscamatravés deleo acesso a informações se associam em geral ao tipo de
que levariam anos de pesquisa em comunidade detentora, tais como:
laboratórios para serem “descobertas”. “Conhecimento Local” (LK, Local
As comunidades, que se utilizam do Knowledge), “Conhecimento Ecológico
conhecimento tradicional, desempenhamum Tradicional” (TEK, Traditional Ecological
papel fundamental para a conservação da Knowledge), “Conhecimento Indígena”
biodiversidade, uma vez que vários desses (LK, Indigenous Knowledge),
recursos tem-se mantido até os dias de hoje, “Conhecimento Ecológico e Sistemas de
devido às práticas sustentáveis que elas Manejo Tradicionais” (TEKMS, Traditional
empregam. Entretanto, a privatização desse Ecological Knowledge and Management
conhecimento para formulação de novos Systems), “Conhecimento dos Habitantes
produtos para o mercado por grandes Rurais” (Rural Peoples Knowledge),
empresas representa lucros altíssimos, em “Conhecimento dos Produtores” (FK,
detrimento das populações usuárias desse Farmers Knowledge) e “Conhecimento
conhecimento. Além disso, cabe destacar Comunitário” (Community Knowledge).
que o acesso a esses novos produtos pelas Entretanto, tais termos apesar de serem
populações tradicionais, tem como distintos abordam o mesmo significado
repercussão a substituição dos produtos (Rahamn 2000).
naturais/artesanais bem como as práticas de Cabe ainda acrescentar o
manejo e uso dos mesmos, provocando a Conhecimento Tradicional Associado ao
obsolescência do conhecimento tradicional patrimônio genético, reconhecido pelo
e seu consequente desaparecimento. marco legal internacional - Convenção da
Por outro lado, o acesso ao Diversidade Biológica – CDB (1992), o
conhecimento tradicional suscitou várias qual requer a permanência de comunidades
questões acerca do direito de propriedade tradicionais em seus territórios, uma vez

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que este conhecimento só pode ser mantido sempre está sujeito a modificações, além de
se sua população detentora tiver garantida ser cumulativo, ou seja, adaptado com base
sua ligação com o território e, nas experiências do passado.
principalmente, se o ambiente estiver Em resumo, o conhecimento das
conservado. populações locais e indígenas é cumulativo,
O conceito legal de conhecimento empírico, possui carga tática, se constrói
tradicional surgiu a partir do art. 7º, II da socialmente e se expande oralmente entre
Medida Provisória nº 2.186 de 2001, que os membros da comunidade ou entre os
191 afirma que os conhecimentos tradicionais membros de uma geração a outra (Castelli e
constituem-se na informação ou prática Wilkinson 2002).
individual ou coletiva de comunidade É importante salientar que, apesar
indígena ou de comunidade local, com do conhecimento “popular” surgir da
valor real ou potencial, associada ao experiência circunstancial, ou seja, ser
patrimônio genético. caracterizado como um conhecimento
O autor Heringer (2007)descreve assistemático e ametódico, o mesmo não
conhecimento tradicional como patrimônio deve ser menosprezado ou desvalorizado,
comum de um grupo social que possui pois tal conhecimento pode ser considerado
qualidade disseminada e, por pertencer a como a base do saber, principalmente por
toda comunidade, todos devem ganhar os tersurgido antes mesmo de a ciência existir
benefícios de sua exploração. Já Batista (Rampazzo 2005).
(2005) acrescenta queo conceito se remetea Em contraste, para Leite (2006) o
todos os conhecimentos empíricos (não conhecimento científico,além de extenso, se
escrito), costumes, crenças, rituais, mitos e configura como uma união de saberes
práticas que são passados de geração para baseados na experiência, que deriva de
geração e, além disso, as pessoas que detêm atividades de pesquisa,e é composto por
tal conhecimento vivem em contato direto duas vertentes - a tática (que provém da
com a natureza. experiência e da estrutura cognitiva, sendo
De acordo com a OMPI assim, subjetiva) e a explícita (que provém
(Organização Mundial de Propriedade do conhecimento tático e é externa ao
Intelectual),criada a partir do Tratado de indivíduo).
Estocolmo (1967), o conhecimento Simplificando o conceito,Gil
tradicional é caracterizado em obras (1999) compara conhecimento comum e
literárias, artísticas e científicas como conhecimento científico indicando que este
invenções, desenhos, marcas, se diferencia daquele por estar sujeito a
descobrimentos científicos, nomes e verificações.Este conceito encontra-se
símbolos, informações não divulgadas e reforçado por Garcia (1997) quando
outras concepções que sãobaseadas na defineque o conhecimento científico, para
tradição. ser reconhecido como tal, necessita que sua
Comegna (2006) relata que, apesar comprovação seja efetivada, demonstrada e
do conhecimento tradicional ser gerado no experimentada.
passado, se mantém em desenvolvimento, O conhecimento científico pode ser
que vai ocorrendo de geração em geração, susceptível a testes por ser composto de
ou seja, ele não para, pois está sempre se dados próximos e que são perceptíveis por
modificando e sendo adaptado mediante a instrumentos ou pelos sentidos, isto é, o
ocasião. Além disso, tal conhecimento pode conhecimento científico visa à objetividade
ser adotado por alguns indivíduos membros em que as conclusões que são aderidas de
do grupo ou pertencer a todos os um determinado experimento ou estudo
indivíduos, ou seja, ser um conhecimento podem ser testadas por outro membro da
comunitário como, por exemplo, o comunidade científica. Contudo, apesar da
conhecimento de remédios caseiros que ciência visar ser neutra, precisa, rigorosa e
vários idosos das comunidades possuem. objetiva, há teorias que são contraditórias
Outro autor que também adere a um porque, antes de tudo, ela é “conduzida”
conceito similar é Nijar (1996), que o pelo homem, que tem seus projetos e
define como um conhecimento objetivos(Rampazzo 2005).
desenvolvido de forma coletiva e que

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Segundo Rahman (2000), o medicação, em rituais religiosos e também


conhecimento científico é objetivo, como utensílios de caça e pesca, são pistas
sequencial (baseado naquele lugar e sobre substâncias que podem, por exemplo,
naquele tempo) e digital (teórico). ser potencialmente interessantes e terem
Portanto, antes do conhecimento grande valor na indústria farmacêutica e
científico ser utilizado e testado pela biomédica. Sendo assim, a proteção dos
comunidade científica ele passa por conhecimentos tradicionais tem sido um
algumas etapas que se resumem em: assunto bastante relevante nos últimos anos,
192 aplicação de métodos confiáveis, revisão tratado internacionalmente por diversas
crítica através dos membros da organizações mundiais como a Organização
comunidade, para então ser considerado das Nações Unidas para a Educação, a
como conhecimento científico, ser Ciência e a Cultura – UNESCO, o
publicado e, consequentemente, Programa das Nações Unidas para o Meio
disponibilizado aos cientistas que possamse Ambiente – PNUMA, a Organização
utilizar dos métodos e realizar novas Mundial de Propriedade Intelectual – OMPI
experiências (Leite 2006). e a Organização Mundial do Comércio –
Cunha (1999) reafirma a diferença OMC. Esse despertar do interesse
entre conhecimento tradicional ou saber internacional pela riqueza e diversidade dos
local como prefere denominar e o conhecimentos tradicionais associados,
conhecimento científico, com base em requer em contrapartida uma seara de
Lévi-Strauss em Pensamento Selvagem proteção legal para que se evite tanto a
(1962): “a diferença entre ciência biopirataria como a tomada de posse das
tradicional e ciência do tipo ocidental que terras dos povos detentores desses
existe e é enfatizada não residiria nas conhecimentos.
operações intelectuais envolvidas, mas nos Organizações indígenas têm sido
objetos a que se aplicam, conceitos no caso criadas, sendo mobilizadas para gerir e
da grande ciência, propriedades sensíveis da negociar seu patrimônio relativo ao
ciência tradicional.” Conhecimento Tradicional Associado,
Assim, é que através da abstração buscando se destacar dos demais grupos
como atributo do pensamento científico, detentores deste conhecimento.Entre elas a
que ocorre a formulação do conceito e Coordinadora das Organizaciones Indígenas
através dele a construção de uma linguagem de la Cuenca Amazónica – COICA propõe
própria e inacessível, criando obstáculos ao em suas lutas para estabelecer posições
diálogo entre o conhecimento tradicional e claras, adotando estratégias como
o conhecimento científico. Além disso, é representação, mediação e aliança. Para
inegável a assimetria entre os dois tipos de Árvelo-Jiménez(2004):“Alguns países,
conhecimento, especialmente quando a como o Peru e Equador parecem ser os mais
apropriação deste conhecimento para o bem preparados para lidar com o modo de
desenvolvimento da biotecnologia depende ter exemplos de metas a cumprir através de
do estabelecimento de patentes e direitos mobilização etnopolítica”.
intelectuais, sem que as populações que No Brasil, devido à riqueza de
conservam este conhecimento tenham nossa biodiversidade e conhecimentos
quaisquer direitos de participação nos associados dos povos tradicionais, a
elevados lucros extraídos destes produtos. Constituição Federal de 1988 passou a
proteger o patrimônio histórico, ambiental,
Legislação brasileira e a proteção do genético e cultural nos artigos 215 e 216,
conhecimento tradicional além do inciso II, do art. 225, com o
objetivo de promover a proteção dos
Os saberes dos povos tradicionais, conhecimentos seculares e até mesmo
hoje batizados de “conhecimentos milenares das comunidades tradicionais,
tradicionais” oferecem um “atalho” para a tomando como alvo, principalmente, os
comunidade científica que trabalha povos indígenas. A história constitucional
principalmente no setor da biotecnologia. contemporânea no que diz respeito à
As relações com as plantas, utilizadas por proteção do patrimônio cultural, fez com
essas comunidades na sua alimentação, que esta trouxesse ao texto constitucional

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de 1988, a conceituação e a proteção das práticas geradas e transmitidas pela tradição


terras indígenas, definindo-as no § 1°, do protegidos pelo Decreto 6040 2007 que
art. 231, da seguinte maneira: instituiu a Política Nacional.
Os quilombolas também são
“São terras tradicionalmente titulares do direito de propriedade definitivo
ocupadas pelos índios as por eles do território que habitam, sendo esses
habitadas em caráter permanente, as direitos assegurados da mesma forma como
utilizadas por suas atividades aos povos indígenas, independendo da
193 produtivas, as imprescindíveis à demarcação, expedição de títulos ou de
preservação dos recursos ambientais quaisquer atos administrativos neste sentido
necessários a seu bem-estar e às (Gewehr 2010).
necessárias a sua reprodução física e Desta forma, o consentimento para
cultural, segundo seus usos, a exploração destas áreas (até certo ponto
costumes e tradições”. protegidas) deve ser prévio e informado,
inclusive no que diz respeito à repartição de
Para explicar o conceito dessas benefícios, toda vez que se tratar de
terras indígenas explicitadas na conhecimentos de povos tradicionais que
Constituição Federal de 1988, Dantas envolvam recursos genéticos oriundos de
(2003), diz que: tais áreas (Santilli 2003).
Porém para Bensusan (2003) o
“A Constituição Federal brasileira consentimento prévio informado,
de 1988, nos § 1°, do Art. 231, define instrumento consagrado pela Convenção
a categoria jurídica em que sobre Diversidade Biológica, em „anuência
consistem as terras indígenas, como prévia‟, ainda não ter sido conceituado
aquelas tradicionalmente ocupadas legalmente, o que abre possibilidades de
pelos índios, habitadas em caráter interpretações subjetivas. Além do mais, no
permanente, utilizadas para suas caso de “relevante interesse público”, a
atividades produtivas, medida provisória faculta a dispensa desta
imprescindíveis à preservação dos anuência.
recursos ambientais necessários a A Medida Provisória n° 2186-16 de
seu bem-estar, necessárias à 23 de agosto de 2001, teve o objetivo de
reprodução física e cultural, segundo destinar um regramento legal à proteção dos
seus costumes e tradições.” conhecimentos tradicionais em face dos
perigos iminentes decorrentes da
Então, os povos indígenas estão bioprospecção, que vem a ser um método
assegurados a viverem em suas terras, ou uma forma de localizar, avaliar e
desenvolvendo seus conhecimentos explorar a diversidade de vida existente em
tradicionais em contato íntimo com o meio determinado local, legalmente. Seu objetivo
ambiente e protegidos da exploração, seja principal é a busca de recursos genéticos e
de que forma isso possa ocorrer. Sendo bioquímicos para fins comerciais tendo
assim, os territórios indígenas são bens da sempre como objetivo a conservação para
união, possuindo estes o direito de uso que não se esgote o recurso almejado, não
exclusivo sob o território, a teor do art. 231, devendo ser confundido com a biopirataria,
§ 2° e 3°, da Constituição Federal. O que pode ser conceituada como a
legislador há muito já vinha delineando os exploração, manipulação, exportação de
direitos de proteção a esses povos recursos biológicos, com fins comerciais,
tradicionais, porém em muitos casos, em contrariedade às normas da Convenção
confundindo o direito público que lhes é sobre Diversidade Biológica, de 1992,
conferido, como é o caso da Lei nº 6.001, promulgada pelo Decreto nº 2.519, de 16 de
de 19 de dezembro de 1973, conhecida março de 1998.
como o Estatuto do Índio (Souza Filho Para Juliana Santilli, "A Medida
2004).Os direitos indígenas são ainda Provisória nº 2.186-16/2001 regula o acesso
reconhecidos pela Convenção 169 da OIT e a utilização dos recursos biológicos e
de 1989 ao lado das populações tradicionais genéticos e dos conhecimentos tradicionais
que igualmente têm seu conhecimento e associados separadamente, estabelecendo

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instrumentos e exigências legais distintas visando sua aplicação industrial ou


para ambos: autorização de acesso e de de outra natureza;
remessa de amostra de componente do VII - bioprospecção: atividade
patrimônio genético e autorização de acesso exploratória que visa identificar
a conhecimento tradicional associado." componente do patrimônio genético e
(Santilli 2005). No projeto de lei da informação sobre conhecimento
senadora Marina Silva, a operacionalização tradicional associado, com potencial
da proteção do patrimônio genético seria de uso comercial;
194 feito por uma entidade com representantes XIII - Contrato de Utilização do
de diferentes segmentos sociais. Entretanto Patrimônio Genético e de Repartição
o governo atuou de forma autoritária ao de Benefícios: instrumento jurídico
criar através da Medida Provisória sem esta multilateral, que qualifica as partes,
representação ampliada e como organização o objeto e as condições de acesso e
governamental, o Conselho de Gestão do de remessa de componente do
Patrimônio Genético através da medida patrimônio genético e de
provisória, com a finalidade deimplementar conhecimento tradicional associado,
a política de acesso a recursos genéticos e bem como as condições para
conhecimentos tradicionais repartição de benefícios;
associados(Bensusan 2003).
Assim, devemos apresentar os A legislação em questão é o
conceitos constantes da referida legislação, principal instrumento para se resguardar os
aplicáveis à questão da proteção dos conhecimentos tradicionais no Brasil.
conhecimentos tradicionais e que estão Assim, visualiza-se que a Medida
presentes no artigo art. 7°, incisos II, III, V, Provisória é um marco no direito protetivo
VII e XIII, traçando a linha principal de das comunidades tradicionais, notadamente
abrangência da medida provisória. quando o viés de proteção é externado
desde a proteção dos Direitos de
Art. 7º. Além dos conceitos e das Propriedade Intelectual até a repartição
definições constantes da Convenção equitativa dos lucros, além do treinamento
sobre Diversidade Biológica, dos nativos envolvidos, para que possam ter
considera-se para os fins desta o acesso e participem ativamente da difusão
Medida Provisória: fiel e, portanto, comprometida de seus
II - conhecimento tradicional conhecimentos (Gewehr 2010). Ainda nesse
associado: informação ou prática contexto, Santilli sintetiza os objetivos da
individual ou coletiva de comunidade referida Medida, ao dizer que:
indígena ou de comunidade local,
com valor real ou potencial, "O objetivo da legislação deve ser
associada ao patrimônio genético; garantir que as patentes e os demais
III - comunidade local: grupo direitos de propriedade intelectual
humano, incluindo remanescentes de não se oponham aos objetivos da
comunidades de quilombos, distinto Convenção sobre Diversidade
por suas condições culturais, que se Biológica, e os direitos intelectuais
organiza, tradicionalmente, por coletivos dos detentores de
gerações sucessivas e costumes conhecimentos tradicionais sejam
próprios, e que conserva suas respeitados e garantidos. O
instituições sociais e econômicas; importante é que a lei garanta
V - acesso ao conhecimento expressa e eficazmente tais direitos,
tradicional associado: obtenção de independentemente da criação ou
informação sobre conhecimento ou não de tais registros – estes, em
prática individual ou coletiva, qualquer hipótese, deverão ter
associada ao patrimônio genético, de sempre natureza declaratória, e o
comunidade indígena ou de acesso e a utilização das informações
comunidade local, para fins de neles disponíveis deverá sempre
pesquisa científica, desenvolvimento respeitar os direitos intelectuais
tecnológico ou bioprospecção,

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coletivos dos povos tradicionais" utilizariam dessas “descobertas científicas”


(Santilli 2005). em benefício próprio ou de uma minoria.
A generalização da propriedade
Nesse sentido, o artigo 8°, que trata privada sobre a biodiversidade, ou seja, a
da proteção ao conhecimento tradicional privatização da natureza, vista como algo
associado e o artigo n° 25, que trata dos separado do homem, segundo Porto-
benefícios decorrentes da exploração Gonçalves (2012), é peça chave na
econômica de produto ou processo constituição do capitalismo, uma vez que
195 desenvolvido a partir de amostra do restringe o acesso aos bens ou recursos
patrimônio genético ou de conhecimento naturais.
tradicional associado, da Medida Provisória Tem-se praticado livremente, como
n° 2186-16/2001, se juntam ao artigo 7° afirma Porto-Gonçalves (2012), a
para dar o tom ao que foi mencionado pela etnobiopirataria, já que o que está sendo
autora. coletado é o conhecimento sistematizado e
Finalmente, de acordo com Gewehr construído por povos locais, através de sua
(2010), o Brasil enquanto signatário da cultura, não apenas o espécime vegetal ou
Convenção sobre Biodiversidade, em muito animal. O mesmo autor denuncia que o
inovou ao editar a Medida Provisória nº interesse das grandes empresas
2.186-16, a qual além de marco referencial farmacêuticas em impor regras mais
na proteção dos direitos de propriedade restritas para obter patentes está centrado
individual dos conhecimentos tradicionais em desconfigurar os sistemas de saúde
associados traz inúmeras especificações de autônomos dessas comunidades,
como devem ser resguardados e procedidos transformando-os em novos consumidores
os meios necessários à efetiva participação obrigatórios de produtos farmacêuticos.
dos detentores destes conhecimentos, na Em relação à globalização, Santos e
repartição dos benefícios econômicos Alencar (2010) traçam um paralelo entre
proporcionados pela exploração de esse processo e a apropriação da
matérias-primas e segredos contidos na biodiversidade, mostrando como os países
historia cotidiana destes povos. desenvolvidos subjugam os
Entretanto, Árvelo-Jiménez (2004) subdesenvolvidos ou em desenvolvimento,
adverte sobre a questão indígena, pois que são considerados à margem da
acredita que a adaptação entre indígenas e economia mundial, mas que trazem uma
as culturas externas não é possível, uma vez vasta riqueza natural que é largamente
que o sistema social indígena está em explorada em “benefício” desta economia.
conflito direto com os sistemas jurídicos e A natureza, para o capitalismo, passa a ser
políticos ocidentais.Aliás, esta diferença no tratada apenas como um recurso.
sistema de pensamento foi destacada por Em relação ao desenvolvimento
Lévi-Strauss e já mencionada aqui econômico, vários autores usam a ilustração
anteriormente. da divisão do mundo em Norte – países
ricos e desenvolvidos tecnologicamente - e
Apropriação do conhecimento Sul – países pobres, subdesenvolvidos e/ou
tradicional: biopirataria, em desenvolvimento – onde existe uma
etnobiopirataria e bioprospecção. relação de exploração histórica que se
perpetua até os dias de hoje, revestida de
É notável o quanto a legislação uma relação comercial de troca de
internacional e brasileira tem corrido contra tecnologia por recursos naturais (Nunes e
o tempo a fim de resguardar o Tybusch 2013,Santose Alencar 2010,Lima
conhecimento tradicional e seu direito de 2003, Shiva 2001).
propriedade. Direito esse que surge com a Shiva (2001) traz uma comparação
globalização, influenciada pelo capitalismo, muito significativa dessa apropriação com
afinal “propriedade” sobre o conhecimento os processos colonizadores do passado,
pode representar uma armadilha, uma vez mostrando que o arcabouço que os delineia
que o acesso ao conhecimento de é o mesmo: a exploração dos detentores de
populações tradicionais poderia estar tecnologia em detrimento dos que ainda tem
restrito a alguns pesquisadores que se acesso aos recursos naturais. A autora

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enfatiza que resistir à pirataria, ou seja, à afastadas nem retiradas da comunidade que
apropriação indevida da biodiversidade lhe deu origem. Atualmente, a apropriação
seria: tem sido legitimada pelo próprio direito.
“...resistir à colonização final da Além disso, a busca da proteção à
própria vida – do futuro da evolução biodiversidade deve amparar o
como também do futuro das tradições conhecimento tradicional não apenas como
não-ocidentais de relacionamento fonte de conhecimento em si, mas também
com e conhecimento da natureza. É como aliada à conservação da
196 uma luta para proteger a liberdade biodiversidade por trazer implícito o
de evolução de culturas diferentes. É conceito de sustentabilidade. Ora, se esse
a luta pela conservação da conhecimento permanece até os dias de
diversidade, tanto cultural, quanto hoje e somente existe porque se baseia no
biológica.” (Shiva 2001). uso dessa biodiversidade, é inegável afirmar
que as populações locais que dele se
Nesse processo de resistência, há utilizam representam papel fundamental
que se levar em consideração o que vem para a conservação. O reconhecimento do
sendo imposto pelos países desenvolvidos. valor das tradições e práticas sustentáveis
A legislação internacional tem fomentado dos povos tradicionais caminha junto com a
as patentes de forma que a proteção da conservação dos recursos naturais que lhe
biodiversidade está à margem do lucro. dão origem.
Nunes e Tibusch (2013) trazem um O desafio é proteger esse
alerta no tocante ao sistema de patentes, conhecimento, não para que permaneça
afirmando que: restrito a um pequeno grupo, mas para que
“os recursos coletados e o possa dialogar com o conhecimento
conhecimento das comunidades científico, superando a relação assimétrica,
tradicionais locais caem no domínio uma vez que ambas as formas de
privado e exclusivo dos detentores conhecimento, ainda que distintas, devem
dos direitos de propriedade ser consideradas como complementares. A
intelectual, ou seja, à disposição de apropriação do conhecimento tradicional
empresas multinacionais da área de precisa ser revista e leis reformuladas a fim
biotecnologia, prejudicando, de que o conhecimento tradicional possa
inclusive, o desenvolvimento de estar aliado à conservação, assim como
comunidades locais.” sejam assegurados direitos de repartição
dos benefícios às populações detentoras
Considerações finais dele, e o poder público estar atento às
investidas do poder econômico em
Com a premissa da importância da privatizar a natureza a qualquer custo.
pesquisa científica acercados
conhecimentos tradicionais, pesquisadores Referências
do mundo inteiro tem buscado esse
conhecimento, apropriando-se dele por ÁRVELO-JIMÉNEZ N. 2004. Kuyujani
meio de Leis internacionais que amparam Originario: The Yekuana Road to the
seu patenteamento. Essas leis que se Overall Protection of Their Rights as a
baseiam no desenvolvimento econômico People. In: FINGER JM E SCHULER
mundial, privilegiam poucos detentores de P. Poor People’s Knowledge:
tecnologia e trazem prejuízo para os Promoting Intellectual Property in
detentores do saber tradicional, construído e Developing Countries, Washington:
transmitido geração após geração. The World Bank, p. 37-51.
A legislação brasileira tem buscado BATISTAJL. Conhecimentos
proteger o conhecimento das comunidades Tradicionais: Estudos Jurídicos das
tradicionais, embora ainda falte muito a ser Legislações e Convenções no âmbito
resgatado. Esse conhecimento é um Nacional e Internacional.Monografia
elemento chave no sentido de indicar a do curso de Direito. Belém: UFPA,
direção para novas descobertas. No entanto, 2005, 71p.
essas “descobertas” não podem ser

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BENSUSAN N. 2003. Breve histórico da conceitual.Dissertação de Pós-


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