Você está na página 1de 13

RESERVAS EXTRATIVISTA MARINHA DO LITORAL AMAZONICO:

UM INSTRUMENTO DE (RE)AFIRMAÇÃO DO SENTIMENTO DE


PERTENCIMENTO PELOS TERRITÓRIOS TRADICIONAIS DE PESCA
JOSINALDO REIS DO NASCIMENTO1

Resumo
A presente reflexão geográfica foi desenvolvida nos territórios das reservas extrativistas marinha de:
Tracuateua; Caeté-Taperaçu; Arai-Peroba e Gurupi-Piriá. A implementação destas UC’s ocorreu a
partir de 2005, e desde então representa uma forte estratégia de arranjo institucional para o manejo
participativo dos recursos pesqueiros. A presente investigação cientifica apresenta uma reflexão acerca
das ações sociais dos pescadores e pescadoras que culminaram na reconfiguração dos seus territórios
tradicionais de trabalho e de reprodução dos modos de vida em reservas extrativistas marinha. As
coletas de dados ocorreram no período de fevereiro de 2017 a maio de 2019, conduzidas por métodos
qualitativos como: entrevistas em profundidade, semiestruturadas e observação participante. A
institucionalização dos territórios tradicionais de pesca em RESEX marinha se deu em meio a uma
série de conflitos socioambientais que proporcionaram a estas populações tradicionais formar uma rede
solidária de cooperação e articulação social, que contribuiu também, na reafirmação do sentimento de
identidade e reestabeleceu relações socioespaciais peculiares, o que simultaneamente contribuíram
como os processos permanentes de geração de conhecimentos. Neste contexto, o V-ENEAM ocorrido
na cidade de Bragança-PA em 1995, contribuiu para estabelecer novas redes entre os pescadores e
pescadoras entre si, e com os dos municípios vizinhos, alguns saíram de lá inquietos e fortalecidos, o
que proporcionou a criação de unidades de mobilização que ajudaria na correlação de forças políticas
e simbólicas entre os pescadores e pescadoras artesanais versus Estado e os empresários do setor
pesqueiro em uma luta desigual. Contudo, a articulação e o apoio dos sujeitos ditos “de fora”, foi um
elemento de coesão crucial para oficialização destes territórios em favor dos pescadores e pescadoras
artesanais. As RESEX Marinha, de fato estabeleceram novos marcos regulatórios para conservação
do ecossistema manguezal desta faixa litorânea, freando a expansão da carcinicultura, e tem mantido
um embate constante com a pesca industrial, sobretudo com aquelas frotas que possuem licença para
captura de peixes diversos com rede de arrasto de fundo na plataforma continental amazônica. Neste
contexto, está em curso um processo de adaptação à estas novas estruturas de poder e governança
tecidas nos territórios tradicionais de pesca, e estas formas, são edificadas em elementos da natureza,
que acabam exercendo um papel crucial nas relações sociais e contribuindo para compreensão e
adaptação à gestão compartilhada por estes pescadores e pescadoras. Na atualidade, este novo
quadro político institucional de Ascenção de governos que visivelmente diminui os espaços coletivos
de discussões, evidenciam cada vez mais a necessidade constante de reorganizações coletivas para
que esses grupos sociais possam defender seus territórios e seus modos de vida, majoritariamente
ligada a extração dos recursos pesqueiros.
Palavras-chave: RESEX Marinha; Identidade; Territórios; Ações socias.

Abstract
The present geographical reflection was developed in the territories of the marine extractive reserves
of: Tracuateua; Caeté-Taperaçu; Arai-Peroba and Gurupi-Piriá. The implementation of these CUs
occurred in 2005, and since then represents a strong strategy of institutional arrangement for
participatory management of the fishery resources. The present scientific investigation presents a
reflection about the social actions of the fishermen and fishermen that culminated in the reconfiguration
of their traditional territories of work and reproduction of the ways of life in marine extractive reserves.
Data collection took place from February 2017 to May 2019, conducted by qualitative methods such as:

1
Biólogo, docente do IFPA Campus Bragança. Doutorando do Programa de Pós-Graduação em
Geografia Humana da Universidade de São Paulo. DINTER USP/UNIFESSPA. Membro dos Grupos
de Pesquisa: Educação, Trabalho, Tecnologia, Humanidades e Organização Social (ETTHOS) e
Estudos Socioambientais Costeiros (ESAC). e-mail de contato: josinaldo.reis@ifpa.edu.br
in-depth interviews, semi-structured interviews and participant observation. The institutionalization of
traditional fishing territories in marine RESEX occurred in the middle of a series of socio-environmental
conflicts that allowed these traditional populations to form a solidary network of cooperation and social
articulation, which also contributed to the reaffirmation of the sense of identity and reestablished socio-
spatial relationships peculiarities, which simultaneously contributed as the permanent processes of
knowledge generation. In this context, V-ENEAM, which took place in the city of Bragança-PA in 1995,
contributed to establish new networks between fishermen and fisherwoman among themselves, and
with those of neighboring municipalities, some of them left there uneasy and strengthened, which of
units of mobilization that would help in the correlation of political and symbolic forces between fishermen
and artisanal fishers versus state and the fishing industry entrepreneurs in an unequal struggle.
However, the articulation and support of the so-called "outsiders" was a crucial element of cohesion for
the officialisation of these territories in favor of artisanal fishermen and fisherwoman. The RESEX Marine
has in fact established new regulatory frameworks for the conservation of the mangrove ecosystem of
this coastal strip, stopping the expansion of shrimp farming, and has maintained a constant struggle
with industrial fishing, especially with those fleets that have license to catch several fish with net trawling
on the Amazonian continental shelf. In this context, a process of adaptation to these new structures of
power and governance woven in traditional fishing territories is underway, it is these forms, they are built
on elements of nature that end up playing a crucial role in social relations and contributing to
understanding and the management shared by these fishermen and fisherwoman. At present, this new
institutional political framework of Governments' ascension that visibly diminishes the collective spaces
of discussions, increasingly evidence the constant need for collective reorganizations so that these
social groups can defend their territories and their ways of life, mostly linked to extraction of fishery
resources.
Key- Words: Marine RESEX; Identity; Territories; Social actions

1- Introdução
A presente reflexão geográfica foi desenvolvida no litoral nordeste do estado
do Pará, em um recorte da microrregião bragantina, nos territórios das reservas
extrativistas marinha de Tracuateua; Caeté-Taperaçu; Marinha Arai-Peroba e Gurupi-
Piriá (Figura 01).
Esta faixa costeira é formada por paisagens dominadas predominantemente
pelo ecossistema manguezal, drenado por diversos rios e furos e que formam
reentrâncias nas extensas áreas estuarinas, apresentando uma grande abundância e
diversidade da biota aquática, o que assegura uma alta produtividade pesqueira
(FERNANDES, 2003; ISAAC-NAHUM et al., 2006).
De acordo com Isaac-Nahum & Ferrari (2017), nos últimos anos a pesca,
principalmente a industrial têm aumentado os esforços de captura nas proximidades
da costa, e este crescimento tem afetado negativamente os estoques pesqueiros, a
implementação de RESEX marinha a partir de 2005, apresenta-se como uma forte
estratégia de arranjo institucional de regulamentação participativa de manejo dos
recursos pesqueiros.
Desta forma, pretende-se fazer uma reflexão acerca das ações sociais2 dos
pescadores e pescadoras que culminaram na reconfiguração dos seus territórios
tradicionais de trabalho e de reprodução de seus modos de vida em RESEX marinha.
2- Discussão
A articulação pró-RESEX chega ao litoral amazônico na década de 1990 e
traz consigo reivindicações que têm promovido tanto os processos contínuos de
recomposição e reconfiguração dos territórios tradicionais quanto as reafirmações de
suas territorialidades (TEISSERENC & TEISSERENC, 2016).
É estes novos elementos que levam Glaser & Oliveira (2004) a intitularem as
Reservas Extrativistas Marinhas de RESEX de “segunda geração”, definição em que
os contextos políticos, organizacionais e institucionais aparecem diferenciados das
reservas extrativistas criadas em terras amazônicas no final da década de 1980. O
sentido ecológico, neste caso, é extrapolado e nota-se um sentido social diferente:
O caso das reservas extrativistas marinhas foi um outro momento deste
reconhecimento, pois esses territórios não eram mais apenas constituídos de
terras, mas também de águas - rios, lagos, mares, estuários - e a legislação
nacional é frágil (ainda hoje) frente a estas novas questões de
reconhecimento consuetudinário em territórios aquáticos. Por outro lado, os
povos que vivem nestes locais definem, classificam e se representam nestes
lugares com muita legitimidade e conhecimento sobre os complexos
processos de pertencimento e reconhecimento destes territórios, pelos quais
preservam suas (re) produções socioculturais, econômicas, políticas e
ambientais, estabelecendo suas próprias formas de manutenção de natureza
e cultura, ambiente e sociedade (BUCCI, 2009, p.20).

Concretamente, a institucionalização dos territórios tradicionais de pesca do


litoral nordeste do estado do Pará em RESEX Marinha demostra nitidamente que
contribuiu para uma melhor compreensão dos processos coletivos de luta do
pescadores e pescadoras, (re)construindo seus modos de vida, sistemas de manejo
e de conservação dos recursos pesqueiros, em meio a uma rede de cooperação e
articulação social recheada de conflitos socioambientais, o que implicou, na
reconfiguração dos seus territórios tradicionais de pesca, reafirmando, portanto,
relações socioespaciais peculiares, apresentando-se como um instrumento motivador
de mudanças sociais, Wever et al., (2012) é propulsor da (re)afirmação do sentimento

2
Um ato ou conjunto de atos que levam em conta as ações e reações dos indivíduos ou “agentes” em
sociedade. Os indivíduos agem considerando o comportamento dos outros, e é assim orientado em
seu curso para um ato coletivo como resultante social (WEBER, 1979).
de pertencimento pelo território. Demonstrando ainda como, que efetivamente, tem
colaborado para conservar a faixa de manguezal da região e seus atributos
ecológicos, freando o avanço da carcinicultura, cujos efeitos devastadores a este
ecossistema na região nordeste do país já eram conhecidos em todo o Brasil.
3- Metodologias
A coleta de dados ocorreu durante o período que se estendeu de fevereiro de
2017 a maio de 2019, usando método de pesquisa qualitativa, por meio de entrevistas
em profundidade, semiestruturadas e observação participante (BONI & QUARESMA,
2005).
Ao longo deste período, em situações diversas, foram realizadas 20
entrevistas em profundidade e registrada a história de vida (HV) das principais
lideranças envolvidas nos processos de criação e de cogestão das RESEX Marinha
em questão. Foram coletadas informações importantes para inquirir sobre os
processos que motivaram a atuação e o envolvimento dos pescadores e pescadoras,
principalmente das lideranças, nas ações sociais que convergiram para criação e
consolidação de RESEX Marinha em seus territórios de pesca.
Figura 01 – Localização das Reservas Extrativistas Marinhas da microrregião bragantina, lócus
especifico da análise. Organizada pelo autor.

4- Resultados
A institucionalização dos territórios tradicionais de pesca em RESEX marinha
se deu em meio a uma série de acontecimentos que vão desde ideias de território de
uso comum; a redemocratização do país; perpassando pelos desdobramentos da
Conferência das Nações Unidas sobre o Meio Ambiente e Desenvolvimento (Rio-92)
e por último, porém não menos importante, a necessidade de estabelecer marcos
regulatórios para conservação mais efetiva dos manguezais da região, algo que
pudesse “conter” a expansão desordenada da pesca industrial e da carcinicultura em
áreas estuarinas, ambas que vinham, especialmente do nordeste brasileiro sob a
égide da forma de reprodução capitalista hegemônica.
As ideias de os territórios de uso comum se difundiram na região, inicialmente
através de uma articulação entre o Movimento dos Pescadores do Estado do Pará
(MOPEPA)3 e Centro Nacional de Populações Tradicionais (CNPT/IBAMMA) e
posteriormente com a Universidade Federal do Pará (UFPA), Empresa de Assistência
Técnica e Extensão Rural do Estado do Pará (EMATER/PA), os Sindicatos dos
Trabalhadores e Trabalhadoras Rurais (STTR) e Comissão Pastoral do Pescadores
(CPP).
Estas instituições foram fundamentais para o entendimento, adaptações e
difusão do conceito desta modalidade de unidade de conservação, principalmente
entre as lideranças comunitárias: “a gente tinha uma parceria muito grande com o
CNPT, era o órgão ligado ao MMA, Ministério do Meio Ambiente. Através da nossa
parceria eu conheci o projeto da reserva”. Relações estas que contribuíram para
ocasionar processos permanentes de geração de conhecimentos, com bem elucidou
Freire, (1987), de forma simultânea de “ação e reflexão e ação”.
Obviamente, que estes processos e concepções conservacionistas ganharam
potência entre os técnicos do CNPT/IBAMA, após as discussões ocorridas durante a

3
O Movimento dos Pescadores do Estado do Pará (MOPEPA) é a representação paraense do
Movimento Nacional dos Pescadores (MONAPE) (POTIGUAR-JÚNIOR, 2007).
Rio-92 e seus reflexos verberaram nos anos seguintes, como até hoje muito do que
foi discutido na conferência permanece atual. Certamente, não sou o primeiro a
observar tais conexões, que contribuiu para a intensificar as discussões acerca de
alternativas que pudessem viabilizar a conservação dos ecossistemas dos
ecossistemas tropicais, dentre eles o manguezal, sobretudo, através de modelos que
vislumbrasse a participação das populações humanas que utilizam historicamente
seus recursos para reprodução dos seus modos de vida.
Nesta perspectiva, alguns debates começam ocorrer na região bragantina
com maior intensidade a partir de setembro de 1995, quando a cidade de Bragança
sediou o V Encontro Nacional de Educação Ambiental em Áreas de Manguezal (V-
ENEAM). Vale ressaltar que o V-ENEAM, além de trazer em seu cerne debates acerca
da conservação, produção e impactos socioambientais em áreas de manguezal,
carregava sobretudo, novas ideias, estabeleceu novas redes entre os pescadores e
pescadoras (marisqueiras e tiradores de caranguejo) das comunidades de Bragança
entre si, e com os dos municípios vizinhos que participaram do encontro, para alguns
que foram ouvidos nesta pesquisa, tiveram talvez, o primeiro contato com tais
conceitos, com pesquisadores e estudantes, debatendo seus modos de vida, mas
vistos sob outro ângulo, aquilo que para eles já se tornará pautas corriqueiras, agora
eram vistos por eles como o centro das discussões com/pelos os pesquisadores e
acadêmicos.
É sob tais pressupostos, inéditos para região, o encontro provavelmente
contribuiu para que alguns pescadores e pescadoras saíssem inquietos e fortalecidos:
“a gente começou a visualizar que a gente poderia fazer uma reserva de pesca, um
território nosso”, afirmou um dos pescadores que estava no evento e que colaborou
com a pesquisa ao expor sua impressão do evento.
Tudo isso nos leva a associar a contribuição de intelectuais neste processo,
tanto os “de dentro” quanto os “de fora”, com destacou Porto-Gonçalves (1999) ao
refletir sobre a territorialidade seringueira. Aqui também, cada um aparece lançando
mão do prestígio que acreditam possuir no campo político-simbólico das ações
sociais, justamente porque se é “de fora”, sobretudo quando se é da universidade, há
um imaginário que estes sujeitos carregam consigo elementos novos para contribuir
com a luta.
Vale ressaltar, que naquele momento a correlação de forças políticas e
simbólicas que estava em curso, era entre os pescadores artesanais versus Estado e
os empresários do setor pesqueiro, uma luta desigual pelo reconhecimento dos seus
territórios tradicionais de pesca, e a articulação e o apoio dos sujeitos ditos “de fora”,
foi um elemento de coesão crucial para oficialização destes territórios em favor dos
pescadores artesanais. O que é compreensivo, haja visto, que a conquista de um
território “significa articulação social, conflitos, cooperação, concorrências e coesões”
(SAQUET, 2009, p.88).
Neste sentido, quero destacar que parte dos pesquisadores do projeto
Mangrove Dynamics and Management-MADAM, visivelmente contribuíram para
ampliar esta compreensão, já que a experiência dos pesquisadores da área
socioeconômica do projeto ao perceberem que a ideia de RESEX marinha vinha se
tornando o principal instrumento canalizador dos anseios por regulamentação dos
seus territórios, rapidamente encontraram um “canal” por onde pudesse fluir estas
pretensões, e aliaram-se aos interesses das organizações coletivas destes
pescadores, contribuindo entre outras coisas para qualificar o debate entre as
lideranças e ampliar a capilaridade das ideias entre as comunidades pesqueiras,
sobretudo as de Bragança (GLASER et al., 2005).
É importante registrar que se fazia necessário conseguir a adesão dos
municípios envolvidos, e politicamente a ideia não avançava, muito em função do
“governo do Estado, através da SECTAM, por exemplo, não era favorável, pois
considerava a criação dessas unidades uma intervenção da união” (SILVA-JUNIOR,
2013, p.46). Dentre as prefeituras dos municípios envolvidos, o executivo da cidade
de Bragança exerceu papel crucial na mobilização social e burocrática, sobretudo
através da Secretaria Municipal de Economia e Pesca (SEMEP), que agilizou o
processo de solicitação para criação das RESEX, que se encontrava parada nas
entranhas burocráticas dos órgãos estatais por cerca de dez anos: “ai foi todo um
processo que durou 10 anos, o primeiro momento ficou engavetado lá em Brasília. Só
no governo Lula, no dia 20 de maio de 2005 foi que ele sancionou as 4 reservas aqui
da região”.
Sem entrar aqui no mérito do grau de ruptura política entre as instituições
federais e estaduais, sobretudo aquelas diretamente ligadas ao meio ambiente, vale
registrar que na visão dos nossos interlocutores, as instituições estaduais, com
exceção da EMATER, pareciam orientadas a desarticular a movimentação dos
pescadores, como me relatou uma liderança: “a SEMA do Estado nunca contribuiu
pra nada..., só fazia atrapalhar. A gente marcava uma reunião ela ia desmarcava, a
gente chegava na comunidade estava desmarcada”.
Por isso, é importante destacar, os mecanismos alternativos que foram
criados em meio a esta adversidade política para fomentar os debates sobre RESEX
nas comunidades pesqueiras e nas organizações coletivas dos pescadores, como foi
relatado por alguns técnicos do CNPT/IBAMA ouvidos durante a pesquisa: “Mas
ninguém do Estado queria saber de conversar com pescador, de dialogar.... aí a gente
teve que tipo camuflar os nossos objetivos de ajudar a criar RESEX”. Isso revela os
traços centrais da articulação do movimento Pró-RESEX marinha na região
bragantina.
Em última análise, o que instigava este pensamento contrário era o modelo
de desenvolvimento que estava em curso no Estado do Pará naquele momento, que
tinha como norteador principal o projeto do Macrozoneamento Ecológico-Econômico
do Estado do Pará (MacroZEE)4.
Sob tais premissas de obrigatoriedade impostas pelo arcabouço legal, o
executivo estadual buscava ordenar o desenvolvimento econômico do Pará, focando
no discurso do desenvolvimento sustentável, focado em um economicismo
visivelmente pautado na reprodução capitalista hegemônica, estimulando fortemente

4
Macrozoneamento Ecológico-Econômico do Estado do Pará (MacroZEE) aprovado pela Assembleia
Legislativa do Estado do Pará (ALEPA) em 2005, vinha a compor o Programa de Zoneamento
Ecológico-Econômico (MacroZEE), que fora criado via Decreto Federal nº 99.193/90, entretanto,
somente a partir de 2000 é que o PZEE passou de fato a integrar a o planejamento central. No estado
do Pará, com a premissa de incentivar o desenvolvimento das atividades econômicas de bases
manejáveis, a redução dos conflitos fundiários, bem como contribuir com a diminuição do
desmatamento ilegal, o MacroZEE passou a ser o principal instrumento da política de ordenamento
territorial do Estado (FARIAS et al., 2016).
o desenvolvimento vertical de cadeias produtivas diretamente ligadas a exploração
dos recursos naturais, sobretudo as cadeias produtivas minerais e agroflorestais.
Além disto, para fortalecer os setores agroindustriais, o Estado buscava estabelecer
parcerias, principalmente com os agentes privados, com intuito de “horizontalizar” os
processos de inovações tecnológicas, seguindo as premissas estabelecidas no Art. 3°
do Decreto Federal nº 4.297, de 10 de julho de 2002.
Formando um novo padrão de expansão sociogeográfico, como exemplificado
por Porto-Gonçalves (2018), que pretendia aqui expandir as áreas de carcinicultura
para o litoral amazônico, contudo para isso, também teria que, de alguma maneira,
interferir no arcabouço jurídico-institucional que regulamentava a questão ambiental
no país, o que nos leva a associar a afirmação: “a RESEX era contra o
desenvolvimento do Estado”.
Estas discussões faziam referências a legislação ambiental brasileira que
regula empreendimentos com potencial impacto ambiental e prevê uma rede
institucional de controle e fiscalização de seu cumprimento, em áreas de reserva
extrativista (RESEX), de acordo com o SNUC, estas prerrogativas inviabilizam estes
tipos de empreendimentos particulares pretendidos em seu entorno, como expressa
no Art. 18.
Neste embate, em alguns dos municípios estudados aqui, a articulação social
e coesões criadas pelos pescadores como os sindicatos de trabalhadores rurais se
configuraram como ancoras fundamentais nestas unidades de mobilização5,
sobretudo, funcionando como difusor e mobilizador importante das ideias
conservacionistas que o modelo de RESEX carregava: “aqui nós tinha o Carlinho do
sindicato que era parceiro nosso, do sindicato rural. Nós tivemos esta parceria na
mobilização”.
Um traço que me permite concluir que esta participação mais efetiva dos
sindicatos de trabalhadores rurais na luta dos pescadores, está ligada os embates

5
Este conceito de unidades de mobilização refere-se à aglutinação de interesses específicos de grupos
sociais não necessariamente homogêneos, que são aproximados circunstancialmente pelo poder
nivelador da intervenção do Estado – por meio de políticas desenvolvimentistas, ambientais e agrárias
– ou das ações por ele incentivadas ou empreendidas, tais como as chamadas obras de infra-estrutura
(ALMEIDA, 2004, p.10).
pelo controle das colônias de pescadores6 que emergiu ainda na década de 1980,
onde os pescadores artesanais não se sentiam representados pela instituição, e se
formou um levante nacional pelo controle político das colônias de pescadores, este
movimento culminou entre outras coisas, o que posteriormente foi denominado de
“Movimento Constituinte da Pesca” (MORAES, 2001).
Na tentativa, então, de explicar a contribuição direta dos sindicatos de
trabalhadores rurais nos processos de reconfiguração dos territórios tradicionais de
pesca do litoral do Estado do Pará em RESEX Marinha, elucidou ao seu modo um dos
pescadores ouvidos durante a pesquisa: “as colônias de pescadores, na verdade não
‘nus’ representava, as pessoas eram nomeadas pelo ministério para ocupar o cargo
de presidente. Ai... logicamente isso daí não ‘nus’ representava”.
Além dos sindicatos de trabalhadores rurais, a universidade e os movimentos
sociais ligados a pesca, agora a igreja católica através da Comissão Pastoral dos
Pescadores (CPP), contribuiu para ampliar as redes solidárias de apoio contra o
modelo desenvolvimentista em curso naquele momento, compondo as ditas unidades
de mobilização na luta pelo reconhecimento oficial dos territórios tradicionais de
pesca.
Estes processos sociais participativos constroem/moldam os territórios e suas
territorialidades, como destacou Teisserenc & Teisserenc (2014) ao analisar outros
contextos na Amazônia, no qual evidenciaram (re)organização dos territórios,
alicerçados numa perspectiva participativa.
5- Conclusões

6
As colônias de pescadores do Brasil, têm sua gênese a partir de 1919 por iniciativa da Marinha de
Guerra. Nesta época, o país, apesar de possuir um vasto litoral e uma grande diversidade de águas
interiores, importava parte considerável dos peixes que eram consumido, e alicerçado no discurso de
fomentar a produtividade pesqueira, aliado ao de defesa da soberania nacional, já que ninguém melhor
que os pescadores, que empiricamente detêm os “segredos” do mar. Sentimento que cresceu após a
primeira guerra mundial, aumentou o interesse do Estado em defender a costa brasileira. Desde então
as colônias de pescadores estiveram sob a tutela do Estado, estando os pescadores artesanais sob o
controle e dominação política de órgãos governamentais, primeiro da Marinha e depois Ministério da
Agricultura. As colônias eram definidas como agrupamento de pescadores ou agregados associativos.
Para poder exercer oficialmente a atividade pesqueira, os pescadores eram obrigados a se matricular
nas colônias. Até então, as relações instituídas entre pescadores e Estado se caracterizavam pelo
paternalismo e pelo assistencialismo. A partir da promulgação da Constituição Federal de 1988, os
pescadores artesanais conquistaram avanços no que tange aos direitos sociais e políticos, quando as
colônias de pescadores, através do artigo 8º foram equiparadas aos sindicatos de trabalhadores rurais,
recebendo a configuração sindical (MORAES, 2001).
A institucionalização dos territórios tradicionais de trabalho e de reprodução do
modo de vida dos pescadores e pescadoras artesanais do litoral nordeste do estado
do Pará em RESEX Marinha, de fato estabelecer novos marcos regulatórios para
conservação do ecossistema manguezais desta faixa litorânea, o que visivelmente
contribuiu para frear a expansão da carcinicultura para o litoral norte do Brasil e tem
mantido um embate constante com a pesca industrial, sobretudo aquelas frotas que
possuem licença para a captura de “peixes diversos” com rede de arrasto de fundo na
plataforma continental amazônica.
Há em curso um processo de adaptação às “novas” estruturas de poder e
governança tecidas nos territórios tradicionais de pesca, é estas formas, são ainda,
edificadas de maneira personificada em elementos da natureza, que acabam
exercendo um papel crucial nas relações sociais e contribuindo para compreensão do
território e o estabelecimento de normas de manejo por estes pescadores e
pescadoras.
As territorialidades presentes nas RESEX marinhas aqui analisadas, se referem
as formas tradicionais do uso dos recursos pesqueiros e de reprodução social,
contudo, coexiste no território formas de reprodução capitalista, como pesca industrial
como a qual alerta Silva et al (2014), que visivelmente destoam das compreensões
sociocultural edificadas em elementos da natureza:
Pela proximidade de atuação da frota industrial permissionada para
peixes diversos, com áreas de atuação da pesca artesanal costeira, o
estudo sugere uma avaliação dos impactos sociais, econômicos e
biológico em atividades tradicionais de pesca (curral de pesca, pesca
de emalhe, pesca de espinhel e pesca de linha e etc.) realizadas por
muitas comunidades ao longo de várias cidades e vilarejos da
microrregião do Salgado paraense ( Silva et al., 2014, p.51).
Contudo, vale destacar que ambas atividades impactam o meio ambiente,
guardando suas devidas proporções e percepções do espaço onde e como as suas
técnicas de extração dos recursos são efetuados. Neste caso em especial, como se
trata de territorialidades que atuam simultaneamente no espaço e no tempo, uma
prejudica de maneira direta a permanência da outra, o que pode explicar as
reivindicações entorno de um território “exclusivo” para pesca artesanal.
Vale destacar, que a análise do território, “deve ser trabalhado sempre a partir
de sua perspectiva temporal, já que envolve profundas transformações ao longo da
história” (HAESBAERT & LIMONAD, 2007, p.50). Na atualidade, a reprodução social
dessas comunidades e populações tradicionais, inclusive outras como: quebradeiras
de coco, quilombolas e indígenas, encontram-se ligadas cada vez mais a dificuldades
de reconhecimento de direitos, cidadania, identidade e cultura, agora mais que nunca
com ascensão de um governo de extrema direita, a perspectiva temporal na análise
das lutas por reconhecimento de territórios torna-se mais relevante.
Este novo quadro político institucional agravam os problemas e evidenciam a
necessidade de reorganizações coletivas para que esses grupos sociais possam
defender seus modos de vida, majoritariamente ligada a extração de recursos
pesqueiros, por isso suas organizações tornam-se cada vez mais fundamentais para
garantir a conservação destes territórios de uso comum institucionalizado a partir
deste acúmulo de lutas sociais registrados aqui: “pra mim, essa política de reserva...
veio principalmente para garantir a nossa área de pesca. Pra nós pescador essa é a
maior garantia de futuro. Agora as pessoas respeita mais nós aqui da maré”.
6- Referências Bibliográficas
ALMEIDA, Alfredo W. B. Terras tradicionalmente ocupadas: processos de
territorialização e movimentos sociais. Revista brasileira de estudos urbanos e
regionais, v. 6, n. 1, p. 9, 2004.
BONI, Valdete; QUARESMA, S. J. Aprendendo a entrevistar: como fazer entrevistas
em Ciências Sociais. Em Tese, v. 2, n. 1, p. 68-80, 2005.
BRASIL. Diário Oficial da União- Seção 1. Lei Nº 9.985, de 18 de julho de 2000. Institui
o Sistema Nacional de Unidades de Conservação da Natureza.
http://www.mma.gov.br/areas-protegidas/sistema-nacional-de-ucs-snuc. Acesso em
03 maio 2019.
BUCCI, Tiago M. Implementação da Reserva Extrativista Marinha Do Corumbau-Ba:
relações de atores e processos de mudanças. Tese de Doutorado. Dissertação
apresentada ao Programa de Pós-graduação em Desenvolvimento Regional e Meio
Ambiente da Universidade Estadual de Santa Cruz, 2009.
FARIAS, Monique H. C. S.; BELTRÃO, N. E. S.; SANTOS, C. A.; CORDEIRO, Y. E.
M. Zoneamento Ecológico-Econômico do Estado do Pará: fundamentos e
potencialidade. Revista Geográfica Acadêmica, v. 10, n. 1, p. 17-26, 2016.
FERNANDES, Marcus E. B (Org.) Os Manguezais da Costa Norte Brasileira Vol. II.
Maranhão: Fundação Rio Bacanga, 2003.
FREIRE, Paulo. Pedagogia do oprimido. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987.
GLASER, Marion; CABRAL, Neila; RIBEIRO, Adagenor Lobato. Gente, ambiente e
pesquisa: manejo transdisciplinar no manguezal. UFPA/NUMA, 2005.
GLASER, Marion; OLIVEIRA, R. S. Prospects for the co‐management of mangrove
ecosystems on the North Brazilian coast: Whose rights, whose duties and whose
priorities?. In: Natural Resources Forum. Blackwell Publishing Ltd., p. 224-233, 2004.
ISAAC-NAHUM, Victoria J.; FERRARI, S. F. Assessment and management of the
North Brazil Shelf Large Marine Ecosystem. Environmental Development, v. 22. p.
97–110, 2017.
ISAAC-NAHUM, Vitoria Judith; ESPÍRITO-SANTO, Roberto Vilhena; SILVA, Bianca
Bentes; CASTRO, Bianca de; SENA, André Luiz. Diagnóstico da pesca no litoral do
Estado do Pará. In: ISAAC-NAHUM, V. J; HAIMOCICI, M.; MARTINS, A. S;
ANDRIGUETTO, J. M. A pesca marinha e estuarina do século XXI: recursos,
tecnologias, aspectos socioeconômicos e institucionais. Belém: UFPA, 2006.
p.11-40.
MORAES, S. C. Colônias de pescadores e a luta pela cidadania. In: Congresso
Brasileiro de Sociologia, 10, 2001, Fortaleza. Sociedade e Cidadania: novas utopias
– Programas e Resumos. Fortaleza, 2001. p. 91-99.
PORTO-GONÇALVES, Carlos W. A Territorialidade Seringueira: geografia e
movimento social. GEOgraphia, v. 1, n. 2, p. 67-88, 1999.
PORTO-GONÇALVES, Carlos W. Amazônia: encruzilhada civilizatória tensões
territoriais em curso. Rio de Janeiro: Editora Consequência, 2018.
POTIGUAR-JÚNIOR, Petrônio L. T. Desvelando o invisível: os movimentos sociais na
pesca e suas ações no estuário do Pará. Bol. Mus. Para. Emílio Goeldi. Ciências
Humanas, Belém, v. 2, n. 3, p. 51-62, 2007.
SAQUET, Marcos Aurélio. Por uma abordagem territorial. In: SAQUET, M. A.;
SPOSITO, E. S. Territórios e territorialidades: teorias, processos e conflitos. São
Paulo-SP. Expressão Popular, 2009. p. 73-94.
SILVA, Lins E. O.; ARAÚJO, K. C.; CINTRA, I. H. A. Sobre a pesca industrial para
peixes diversos na plataforma continental amazônica. Revista Brasileira de
Engenharia de Pesca, v. 7, n. 2, p. 34-53, 2014.
SILVA-JUNIOR, Sebastião Rodrigues. Participação e relações de poder no Conselho
Deliberativo da Reserva Extrativista Marinha de Caeté-Taperaçu, Bragança-PA. Tese
de doutorado. PPGSA/IFCH/UFPA. Belém-PA, 2013.
TEISSERENC, Maria José de Aquino & TEISSERENC, Pierre. Dinâmicas territoriais
e socioeconômicas na Amazônia brasileira. In: TEISSERENC, M. J. A.; SANT'ANA
JÚNIOR, H. A.; ESTERCI, N. (Orgs.). Territórios, mobilizações e conservação
socioambiental. EDUFMA: São Luís-MA, 2016. p.31-60.
TEISSERENC, Pierre & TEISSERENC, Maria José. Território de ação local e de
desenvolvimento sustentável: efeitos da reivindicação socioambiental nas ciências
sociais. Sociologia & Antropologia, v. 4, n. 1, p. 97, 2014.
WEBER, Max. Economia e sociedade: fundamentos da sociologia compreensiva.
Brasília: Ed. UnB, Vol.1, 1994.
WEVER, Lara; GLASER, M.; GORRIS, P.; FERROL-SCHULTE, D. Decentralization
and participation in integrated coastal management: Policy lessons from Brazil and
Indonesia. Ocean & coastal management, v. 66, p. 63-72, 2012.

Você também pode gostar