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36º Encontro Anual da Anpocs

GT n. 29 – Políticas Públicas

“Quanto Custa Ser Pescador Artesanal ou


Quanto Custa uma Política Pública?”

José Colaço Dias Neto


“Quanto Custa Ser Pescador Artesanal ou Quanto Custa uma Política Pública?”

José Colaço Dias Neto1

Introdução

A atividade da pesca artesanal tem merecido cada vez mais atenção de inúmeras
áreas de conhecimento acadêmico, científico e tecnológico devido às suas
características peculiares no quadro das profundas transformações pelas quais vem
passando não só o setor primário, mas toda a economia brasileira. A coexistência de
povoados de pescadores artesanais com estruturas metropolitanas em intensiva
expansão tem permitido uma reflexão sistemática e frutífera sobre questões suscitadas
pelo processo de mudança social. Por estes motivos, pesquisadores ligados a centros de
reconhecida excelência no campo das Ciências Sociais – e, em especial a Antropologia
– vêm dedicando ao assunto parte substantiva de sua produção acadêmica.

Esta comunicação visa apresentar os resultados de uma pesquisa etnográfica


realizada entre dois grupos de pescadores artesanais, sendo um no Brasil e outro em
Portugal. A pergunta que dirigiu a observação empírica, na maior parte do tempo, e que
se tornou, aos poucos, a grande questão de minha tese de doutoramento defendida
recentemente foi: por que, em geral, pescadores artesanais não seguem normas oficiais
de preservação ambiental tal como esperam gestores públicos e ambientalistas? Ao
longo do desenvolvimento da pesquisa julguei que a observação direta das práticas
pesqueiras, bem como do modo de vida daqueles que dedicam a tal ofício poderiam dar
boas pistas para esta problemática.

Inicialmente, gostaria de indicar os dois campos empíricos nos quais a


investigação foi desenvolvida. Em seguida, apresentarei, para cada caso, a natureza das
tensões entre pescadores artesanais e agências oficiais em torno do estabelecimento de
certo conjunto de normas que versam sobre a regulação da atividade de captura de
espécies aquáticas bem como sobre as formas apropriadas de uso de ecossistemas.

É necessário ressaltar que a pesquisa foi realizada a partir de uma abordagem


etnográfica, nos moldes da moderna Antropologia. A coleta dos dados, neste sentido,
foi realizada a partir de minha permanência intensiva no campo e a descrição

1
Antropólogo e Pesquisador do Núcleo Fluminense de Estudos e Pesquisas - NUFEP-INCT-InEAC/UFF.
apresentada é fruto de observação, de conversas informais com vários interlocutores e –
como não poderia deixar de ser – de interpretação.

Os campos empíricos e os objetos

A primeira área estuda está localizada no norte do estado do Rio de Janeiro.


Trata-se de Ponta Grossa dos Fidalgos. Um povoado de pescadores artesanais com
aproximadamente 2.000 habitantes, situado na margem norte da Lagoa Feia, dentre os
quais cerca de 350 vivem diretamente da captura de espécies aquáticas. O restante do
povoado – sobretudo as gerações mais velhas – encontra-se associada à pesca por seu
ingresso nas atividades de vendagem do pescado ou confecção de apetrechos. Parte da
população que não tem ligação direta com a pesca artesanal desempenha trabalhos na
região rural das fazendas ou usinas de cana de açúcar do município de Campos dos
Goytacazes.

A atividade da pesca artesanal ali desenvolvida é centenária e ainda no final da


década de 1930 o antropólogo Luis de Castro Faria produziu o primeiro registro
etnográfico do povoado nos moldes dos estudos de comunidade em voga a época. Em
2002, ou seja, cerca de sessenta anos depois, sob a coordenação do Prof. Arno Vogel na
Universidade Estadual do Norte Fluminense, um grupo de jovens estudantes, retomou o
material de Castro Faria e iniciou, naquele ano, uma etnografia atualizada da pesca
desenvolvida ali. Naquela época, eu era um estudante de Ciências Sociais ainda no
início do curso. O trabalho de campo iniciado no período acompanhou toda minha
formação como pesquisador – do bacharelado até o doutorado – configurando-se, dessa
forma, em uma pesquisa de longa duração, notadamente inspirada em figuras como
Victor Turner, Marcel Griaule e Raymond Firth, antropólogos que acompanharam por
décadas a vida social dos grupos que estudaram. Assim, alternei, sempre que possível,
ao longo destes anos, fins de semana e meses inteiros morando em Ponta Grossa a fim
de participar de maneira intensiva da vida do povoado e acompanhar as atividades de
captura de meus interlocutores mais próximos.

Desde o início da pesquisa a proximidade com os pescadores do lugar revelou


que a relação destes com o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos
Naturais Renováveis, o IBAMA, era marcada por tensões e constrangimentos.
A partir de meados da década de 1990, o IBAMA proíbe a pesca com o uso de
redes nos meses de novembro a março na região do norte-fluminense. A justificativa
para tal proibição, de acordo com funcionários do Instituto, é que este período cobre os
meses de reprodução da maioria das espécies aquáticas. Para além deste período, o
IBAMA também tem prerrogativa legal para proibir a captura, em qualquer época do
ano, caso identifique algum desequilíbrio ambiental que coloque em risco o consumo
humano de peixes contaminados por substâncias tóxicas2.

A instituição de um calendário ecológico único já há algum tempo vem


ocasionando tensões entre populações haliêuticas e o IBAMA. O problema, que
permanece latente durante o período de pesca liberada, manifesta-se claramente nos
meses cobertos pela proibição. E é sobre estas tensões, mais propriamente, que a parte
brasileira da etnografia irá se concentrar adiante. Justamente porque ela evidencia
formas contrastivas de representações sobre a natureza, bem como sobre seus usos tal
como praticados pelos grupos sociais.

A segunda área estudada está localizada na costa central portuguesa. Trata-se do


povoado da Carrasqueira, localizado no estuário do Rio Sado, no município de Alcácer
do Sal. Da capital do país até o povoado percorre-se uma distância de 110km ao todo. A
geração mais velha de carrasqueiros se divide entre atividades de captura de peixes e
mariscos e trabalhos agrícolas. Atualmente, a Carrasqueira não conta com mais de 600
habitantes, dentre os quais, cerca de 150 são pescadores. A pesca ali desenvolvida
possui algumas características bastante singulares, mas sem dúvida, a maior delas, é o
fato que de as companhas de pesca são constituídas por homens e mulheres ligados por
laços matrimoniais.

Entre os anos de 2010 e 2011, desenvolvi trabalho etnográfico na Carrasqueira


por conta de minha participação em um convênio internacional financiado pela Capes e

2
“Art. 1º - Estabelecer normas gerais e específicas para o período de proteção à reprodução natural dos
peixes (piracema) temporada 2005/2006, nas bacias hidrográficas do Leste, nos estados da Bahia, Espírito
Santo, Minas Gerais, Rio de Janeiro e São Paulo, excetuando-se das bacias hidrográficas dos rios São
Francisco e Paraná, contempladas por portarias de piracema específicas. Art. 2º - Fixar o período de 1 de
novembro de 2005 a 28 de fevereiro de 2006 para o defeso da piracema referenciadas no art 1º”. Usei
como modelo o texto da Instrução Normativa n. 47 de 2005. O mesmo texto vem sendo publicado
anualmente no modelo de Instruções ou Portarias com implicações na Região Norte Fluminense. Para
tanto, basta dizer que, não houve nenhuma alteração no que diz respeito ao calendário de proibição de
captura das espécies na Lagoa Feia até os dias de hoje.
para FCT (de Portugal). Acompanhei, in loco, as atividades pesqueiras durante quase
nove meses e morei no povoado de fevereiro a junho de 2011. Percebi, logo de início,
que os pescadores portugueses eram muito críticos em relação à atuação da Direção
Geral de Pescas e Aquicultura, a DGPA, no que diz respeito à regulamentação
profissional da atividade de captura e à Polícia Marítima, particularmente no que tange à
fiscalização a área do estuário do Sado.

A observação direta das práticas de pesca artesanal, nos dois casos, revelou
aspectos fundamentais da vida social de pescadores. Características encontradas nestes e
em outros povoados pesqueiros tais como observadas também em outros trabalhos de
natureza etnográfica. É possível elencar algumas delas nos quatro pontos a seguir:

1) Os pescadores artesanais, geralmente, têm uma percepção apurada do funcionamento


do ecossistema nos quais são ao mesmo tempo utentes e partícipes, devido ao exercício
cotidiano de suas atividades de captura. A partir de seus conhecimentos, que são
transmitidos informalmente de geração para geração, podem, desde que provocados,
descrever com detalhes os ciclos hidrológicos e meteorológicos que incidem sobre o
Estuário do Sado, bem como os aspectos de sua topografia submersa e o
comportamento das espécies aquáticas e não aquáticas3;
2) Os pescadores artesanais possuem um direito de uso do espaço pesqueiro baseado no
costume. Isto ocorre em praticamente todos os territórios de pesca que temos notícia.
Até onde percebi, na Carrasqueira não é diferente. É possível, portanto, identificar
aquilo que Marcel Mauss chamou de Fenômeno Jurídico4 na medida em que se
observam pescadores partilhando códigos de conduta que dizem respeito a direitos de
posse de determinados espaços configurando assim um uso exclusivo ou particularizado
dos recursos pesqueiros Neste sentido, questões de ordem moral estão em jogo todo o
tempo5;
3) Os pescadores artesanais se constituem como um grupo social no qual a incerteza e o
risco são características inerentes à sua profissão. Tal característica faz com que este
grupo administre a vida como um todo de maneira muito peculiar estabelecendo – em

3
Ver COLAÇO & VOGEL: 2005, para o caso da Lagoa Feia.
4
MAUSS: 2002.
5
COLAÇO, VALPASSOS & VOGEL: 2007, para o caso da Lagoa Feia e KANT DE LIMA: 2007, para
o caso de Itaipú-RJ.
muitas ocasiões – desacordo com certas expectativas engendradas por instituições ou
atores sociais que não conhecem detalhadamente o cotidiano da atividade pesqueira.
Tenho tentado discutir e entender suas noções de tempo (passado/presente/futuro), seus
conceitos de vida e morte (humana/animal/ambiental).
4) A reunião dos fatores supracitados, atualmente, quando não são reconhecidos pelo
Estados e seus órgãos administrativos pode ocasionar uma série de entraves na
promoção de Políticas Públicas voltadas para a preservação ambiental, além de gerarem
constrangimentos e tensões com populações que possuem estas formas de relação com a
natureza.

A descrição das atividades de captura evidenciou como pontagrossenses e


carrasqueiros se relacionam com o ambiente em que vivem e trabalham. Mais do que
uma atividade desempenhada para suprir sua subsistência material, a dedicação à pesca,
nos dois casos, revela, através da etnografia, um mundo repleto de significados
conferidos por aqueles que a praticam. Entretanto, esta weltanschauung, que, em muitos
aspectos, singulariza a existência destes grupos, quando confrontada com outras formas
de pensar e administrar a vida coletiva, encontra problemas.

Isto ocorre porque, para além do conjunto de normas organizadas localmente e


informalmente pelos pescadores, há também outro conjunto de normas que se abate
sobre carrasqueiros e pontagrossenses – ou sobre qualquer outro grupo social que exista
sob a égide de um Estado Nacional – aparece, na maioria dos casos, sob a forma de
regulamentações oficiais promovidas por diversos tipos de instrumentos jurídico-
administravos. Me interessei, portanto, em compreender, nos dois casos estudados, as
percepções que meus interlocutores tinham sobre as regulamentações oficiais que
incidiam sobre as regiões exploradas por eles.

O contraste entre suas percepções elaborada a partir dos dados etnográficos


coletados em cada uma das pesquisas, tem o modesto objetivo de entender como
pescadores artesanais no Brasil e em Portugal respondem a problemas de natureza
parecida. Dito de outro modo, a comparação pode mostrar em que medida
pontagrossenses e carrasqueiros se aproximam ou se distanciam, na qualidade de
pescadores artesanais, ao mesmo tempo em que torna mais visível a relação dos grupos
estudados com as políticas públicas e com os mecanismos regulatórios promovidos por
órgãos administrativos dos dois Estados Nacionais.
Algumas interpretações nativas
As primeiras visitas ao povoado de Ponta Grossa foram caracterizadas por muita
informalidade em relação aos procedimentos metodológicos. Naquela altura, além do
material produzido por Castro Faria, eu não tinha muitas informações sobre os
pescadores. Além do conhecimento de algumas etnografias realizadas em outras terras
de pescadores, o que marcou o período inicial do trabalho de campo foi, sem dúvida, a
ausência de questões formuladas a priori. Por isso, a postura mais razoável que poderia
ser adotada era deixar meus novos interlocutores relativamente à vontade para falarem
sobre os assuntos que mais os interessavam.

E, dentre vários assuntos, foi assim que ouvi as primeiras queixas e reclamações
sobre o IBAMA. Ainda sem entender do que elas se tratavam, as interpretações dos
pescadores acerca da atuação do órgão na região da Lagoa Feia evidenciavam que ali
havia algum tipo de problema. Conversas que tinham como temas as técnicas
pesqueiras, os ritmos de trabalho e a temporalidade das atividades haliêuticas associadas
às temporalidades do ecossistema lacustre, quase sempre evocavam a figura do órgão.
Escutei de muitos pescadores em diferentes situações relatos como:

“Aqui funciona é assim. Eles sempre acham que conhecem mais a


Lagoa do que o pescador”.

“Ao invés de nos deixar trabalhar em paz, porque aqui só tem


trabalhador, eles preferem passar e pegar tudo. Nossas redes, nossas
coisas, até mesmo nossos peixes”. Porque não vão fiscalizar os
grandes, ou os ricos? Não, eles querem o que é mais fácil. E vem
fiscalizar os pequenos. Somos pobres! Os pescadores aqui pescam
para alimentar as famílias”

“No período da pesca proibida, o IBAMBA anda esta Lagoa toda aí


atrás de nós. É como se nós estivéssemos cometendo um crime,
matando alguém. Eles nos abordam armados, como fazem com
criminosos. Ai, eu te pergunto? Tem criminoso aqui? Pesca virou
crime quando? Meu avô pescou aqui. Meu pai pescou aqui. Meus tios
também. E agora é crime pescar?”

“O meio-ambiente, às vezes, vem aqui e pega nós todos. Querem saber


se as redes são miúdas ou não. Se os peixes estão pequenos ou não.
Não tem muita conversa com eles. Eles chegam e levam tudo”.
Estas formulações foram coletadas ainda na fase inicial da pesquisa de campo
em Ponta Grossa. Elas foram o ponto de partida para o texto “Tempo(s) Ecológico(s):
Um relato das tensões entre pescadores artesanais e IBAMA acerca do calendário de
pesca na Lagoa Feia – RJ”, defendido no ano de 2007, como dissertação de mestrado.
Os anos de 2009 e 2010 foram, no entanto, particularmente relevantes para a pesquisa.
Após um período de quase dois anos sem frequentar o povoado pesqueiro, tive a
oportunidade de intensificar a etnografia sobre as percepções que os pontagrossenses
tinham do órgão para além daquelas apresentadas em Tempos(s) Ecológico(s). Durante
dois verões, nas ocasiões de minha estadia no povoado, acompanhei alguns de meus
interlocutores desempenhando suas atividades justamente nos períodos em que o
Instituto proíbe, para aquela região, a captura de espécies aquáticas com o uso de redes.

Para minha surpresa, naquela altura, o constrangimento que muitos pescadores


tinham – ao longo dos anos iniciais de pesquisa – de me levarem embarcado durante os
meses proibidos para a captura, deu lugar a convites formulados com tons de
naturalidade. Creio que esta mudança de postura deveu-se ao tempo em que me
dediquei ao trabalho de campo aliado à confiança construída ao longo dos anos de
trabalho em conjunto com eles.

A partir de 2009, portanto, além das conversas sobre o IBAMA, em terra, eu tive
oportunidades privilegiadas de observar, na Lagoa, as pescarias e os pescadores.
Aproveitei estas ocasiões para provocá-los sobre o porquê dos problemas com o órgão.
Uma das questões que mais dirigia a interlocução, enquanto estávamos embarcados, era:
por que eles não paravam as atividades de captura mesmo sabendo que eram proibidas
legalmente? Suas respostas eram de natureza variada. Mas, destaco abaixo, três
formulações que julgo representar os pontos de vista mais recorrentes sobre o assunto:

“Preciso alimentar meus filhos. Levar dinheiro para casa. Se eu parar,


quem vai fazer isso por mim? O IBAMA? Não espero”.

“Nesta Lagoa não falta peixe! Falta é pescador! Dos bons! Peixe,
sempre teve e sempre vai ter. Às vezes mais, às vezes menos. Dizem
por aí que vai acabar. É verdade que não temos mais robalos como
tínhamos antes. Ou tainhas destas grandes que vem do mar. Mas isso
não é culpa do pescador. Quem modificou esta lagoa toda aqui foram
os fazendeiros, colocando diques por todos os lados, como você já
viu! O peixe não vai acabar. E se acabar, também, paciência. Não
dizem que tudo vai acabar um dia? Até o mundo vai acabar, ué!”.

“Ninguém pode dizer o que fazer na Lagoa. Quem você acha que
manda na Lagoa e na natureza? Nós homens? Não! O meio-ambiente?
Também não! Quem manda é Deus. Ele é quem dá o peixe. É ele
quem inunda e seca isto tudo aqui. Então não é polícia ou IBAMBA
nem ninguém que vai dizer se eu posso pescar ou não. Eu sou
pescador e Deus sabe disso! Não sou bandido! E é isso que importa”.

As respostas coletadas nos últimos anos, quando tomadas em conjunto, não se


diferenciam muito daquelas reclamações proferidas no início da pesquisa. Entretanto,
uma análise mais detalhada dos dados sugere um padrão. Quando questionados, os
pescadores baseiam seus argumentos em três eixos os quais chamarei de 1) material, 2)
conhecimento e 3) divino.

As justificativas para a transgressão que se enquadram no eixo material


articulam uma ideia de necessidade ligada ao provimento de comida (peixe) ou dinheiro
(ganhos obtidos com as vendas do pescado) para a família. Mesmo pescadores que estão
cadastrados na Colônia e que, por este motivo, estão aptos a receberem o Seguro Defeso
em períodos nos quais a pesca está proibida pelo IBAMA, reclamam do baixo valor das
mensalidades quando comparadas ao ganho corrente da atividade. Outros reclamam do
atraso nos pagamentos “da Federal” que muitas vezes são iniciados – conforme pude
constatar em 2009 – dois meses após o início do Defeso. “Assim não posso parar, Zé!
Ninguém olha pelo pescador!”, disse-me um interlocutor experimentado.

O eixo do conhecimento é mais complexo. É formado por argumentos que


chamam a atenção para a figura do pescador como detentor de uma técnica ad hoc – um
saber profissional específico que o distingue até mesmo de outros colegas, e cujo sua
experiência e desempenho o credenciam para explorar os recursos disponíveis na Lagoa
em qualquer circunstância. “Ser pescador de verdade”, “ser pescador mesmo” ou “ser
pescador bom”, são percepções nativas associadas a esta ideia. É por isso mesmo uma
categoria identitária em constante disputa. Só um “pescador de verdade”, de acordo com
os pontagrossenses, conhece profundamente o ecossistema e por isso tem autoridade
para explorá-lo, mais do que qualquer outra pessoa ou entidade. As implicações deste
eixo serão retomadas mais à frente.
Próximo ao eixo do conhecimento, mas formulado em outras bases, está o
divino. Seus argumentos levam em conta que o provedor da Lagoa – e da vida em geral
– é Deus. Por isso mesmo, ninguém no plano intra-mundano tem autoridade para se
sobrepor à vontade divina. Nenhum indivíduo ou instituição administrativa podem estar
acima dela. Entretanto, para poder usufruir da provisão, o pescador tem que conhecer o
ambiente, as espécies aquáticas e as técnicas de captura. É como se “ser” pescador
artesanal – o que para muitos de meus interlocutores é considerado um dom – lhes
conferisse autoridade para que desempenhem suas atividades de captura como bem
entenderem. Assim como no eixo do conhecimento, uma categoria identitária é
acionada, mas neste caso, ela está associada a uma dimensão sobrenatural da vida que
os coloca mais perto de Deus, acima do IBAMA.

Para o caso Português, nos primeiros meses na Carrasqueira me preocupei em


estabelecer contato com os pescadores o mais rápido possível. Entendi logo que o fim
dos meses frios era o principal período de preparação para a temporada da pesca de
choco6. A observação das atividades em terra me aproximou – ainda que de modo
superficial – do universo da pesca artesanal no povoado. E, me aproximou também, das
avaliações que os pescadores faziam de suas próprias vidas.

Influenciado pelo problema de pesquisa trabalhado no Brasil, não perdia a


oportunidade de perguntar aos meus novos interlocutores sobre a existência de algum
tipo de proibição ou regulações que os impediam, em algum momento, de pescarem no
Sado. Para minha surpresa, sem muita precisão, a maioria dos carrasqueiros com os
quais conversei no início do trabalho de campo mencionava o período de proibição
estabelecido para captura de minhocas e algumas restrições à apanha de mariscos
quando, por qualquer motivo, eram considerados impróprios para o consumo pelas
autoridades portuguesas. Não havia, portanto, como no caso brasileiro, um período de
suspensão total das atividades de captura com o uso de redes que fosse estabelecido
anualmente.

6
Molusco marinho que procura as águas mais quentes do estuário do Sado, nos meses que marca a
primavera e o verão, para a reprodução.
Naquela altura, eu já tinha conhecimento que a região estuarina era coberta por
alguns dispositivos jurídicos7. E que dois deles, especificamente, tinham influência
direta na relação dos carrasqueiros com o ambiente. No texto da Reserva Natural do
Estuário do Sado, o Artigo 8º regulamenta, por exemplo, a caça das espécies nativas e o
Artigo 10º regulamenta o policiamento e a fiscalização na região que compreende os
conselhos de Setúbal, Alcácer do Sal, Grândola e Palmela. Já o Regulamento da Pesca
no Rio do Sado oficializa as artes permitidas, as formas de conservação e venda do
pescado, tipifica as embarcações e o número de seus tripulantes, regulamenta sistemas
de socorro e segurança marítima entre outras importantes ações.

Os pescadores com os quais travei relação no início da estadia portuguesa não


pareciam se incomodar com estas regulamentações. Entretanto, a experiência adquirida
na pesquisa entre os pontagrossenses, associada a outros casos estudados por
etnógrafos, me fazia desconfiar desta aparente passividade.

Ainda no final do ano de 2010 estabeleci interlocução com Zé Pedra. O pescador


dividia sua atenção entre o trabalho haliêutico e a administração do Café dos Pescadores
herdado do pai. Zé Pedra foi quem formulou, de modo veemente e sistemático, as
primeiras críticas aos órgãos portugueses envolvidos com a administração da pesca
artesanal:

“Já fostes tu em outras comunidades piscatórias na costa portuguesa?


Comunidades de pesca artesanal? Pois se fores, vais ver que não há
mais jovens a pescar... Só há velhos ou gente da minha idade
[quarenta e cinco anos]. Olha para cá, para a Carrasqueira. Só há um
jovem destes que ainda é pescador. É o Rodrigo [filho de Joaquim e
Minda]. A malta mais nova não quer saber mais disso. Eu tenho dois
filhos homens. O mais novo até gosta de ir ao máre comigo. Se queres
saber, eu não desejo o mesmo destino que o meu para ele. Quero que
ele estude e faça outros trabalhos. Ser pescador artesanal neste país?
Não há mais possibilidade! O governo nunca nos ajudou. Ao
contrário, parece até que querem acabar com a pesca nestas costas,
pá!”

7
São eles a Reserva Natural do Sado, Sítio Ramsar e Zona Especial de Conservação e a Regulamentação
para a pesca no Estuário do Sado.
Logo percebi que o pessimismo de Zé Pedra em relação ao futuro da atividade
encontrava eco nas palavras de vários outros interlocutores no povoado. De um modo
geral, os carrasqueiros avaliam que a pesca artesanal trouxe prosperidade econômica
para as gerações mais antigas – conforme a etnografia apresentada no Meio. Meus
interlocutores que se encontram na faixa etária acima dos cinquenta anos,
aproximadamente, acreditam que os anos mais lucrativos para aqueles que
desempenhavam trabalho no máre foram as décadas de sessenta e setenta.

A vida dedicada à faina sempre foi considerada dura, mas:

“(...) antigamente trabalhávamos tanto quanto hoje, porém,


ganhávamos mais. Estas vivendas todas foram erguidas com os
trabalhos nestes máres. Agora, se malta mais nova trabalhar no máre,
o que ira conseguir? É... está muito mais difícil ser pescador agora...”
Minda.

As dificuldades acerca do ingresso ou manutenção das camadas jovens no


ofício pesqueiros talvez seja o exemplo mais visível, para os carrasqueiros, de que a
continuidade da atividade está ameaçada. Em suas elaborações sobre o assunto, são
atribuídas a uma série de fatores que não podem ser pensados isoladamente. Tomadas
em conjunto, as reflexões evidenciam as condições nas quais se pratica a pesca artesanal
nos dias de hoje, ao mesmo em que tentam encontrar justificativas para seu suposto
declínio. Os fragmentos abaixo reúnem alguns dos argumentos mais utilizados por
pescadores e pescadoras com os quais conversei:

“Na vida de hoje em dia há muito mais gastos do que antigamente.


Hoje a malta mais nova quer ter tudo: computadores, telemóveis
[telefone celular], automóveis, tudo. Querem também mais dinheiro
para o lazer. Há muito mais o que fazer do que no meu tempo de
moço. Ou seja, há muito mais com o que gastar dinheiro”.

“Tudo está mais caro do que antigamente. Há mais inflação, mais


contas para pagar. Só não há mais dinheiro no bolso do pescador, não
é? Pelo contrário, aumentam todos os preços: dos combustíveis, dos
equipamentos, das artes, da manutenção. Já a valia do quilo, pelo
menos aqui na Carrasqueira, continua baixo. Quando aumenta,
aumenta devagarzinho, devagarzinho...”

“Se o pescador não andar com tudo certo, com todos os documentos
em dia, ele é multado pela Polícia Marítima. Os valores são altos,
estais a ver? Não é de brincadeira. E as metas? Se não cumprirmos as
metas deles, não podemos renovar nossas licenças. E ai como
fazemos? Porque trabalhar sem autorização é ilegal e podemos ser
multados por isso, não é?”

“Eles pensam que vida de pescador é fácil. Talvez porque nunca


tenham pescado! Nunca pescaram mesmo, afinal, estes políticos. Que
pegam nosso dinheiro, nos cobram impostos e eu, que sou pescadora
artesanal, que trabalho nestes mares, tenho que provar se sou
pescadora ou não para continuar a trabalhar no ano seguinte. Não acho
justo!”

Se, por um lado, os carrasqueiros julgam que as novas necessidades da “vida


moderna” – principalmente aquelas relativas ao consumo – não podem ser supridas
materialmente com os ganhos da pesca artesanal nas condições atuais, por outro,
segundo eles, o declino na atividade deve-se, em muito, à maneira como certos órgãos
do Estado administram o setor pesqueiro no país. Neste ponto, o estoque de queixas
sobre a atuação de órgãos como a Direção Geral de Pescas e Aquicultura, a DocaPescas
e a Polícia Marítima assemelham-se às reclamações dos pontagrossenses em relação ao
IBAMA. Assim como na pesquisa brasileira, embarcar com meus interlocutores foi de
extrema importância para observar, na prática, como lidavam com as regulamentações
oficiais e com a fiscalização na prática.

Mas, porque as avaliações de pescadores brasileiros e portugueses sobre a


atuação de órgãos administrativos, nos dois casos estudados, mostraram-se, comumente,
tão negativas como sugerem os relatos? O que existe na cosmologia e nas práticas
destes pescadores que torna tão difícil a aceitação de normas oficiais que afetam suas
atividades profissionais?
Quando a aplicação de leis e regulamentações que versam sobre a conservação
dos recursos naturais envolve as chamadas populações tradicionais8, estas não se
constituem como um receptor passivo de tal legislação e do controle oficial. Ao
contrário, em geral, as populações têm uma atitude ativa em relação à presença dos

8
No Brasil, a Política Nacional de Desenvolvimento Sustentável dos Povos e Comunidades Tradicionais
define a partir do Decreto n. 6.040, de fevereiro de 2007, estes grupos como “(...) culturalmente
diferenciados e que se reconhecem como tais, que possuem formas próprias de organização social, que
ocupam e usam territórios e recursos naturais como condição para sua reprodução cultural, social,
religiosa, ancestral e econômica, utilizando conhecimentos, inovações e práticas gerados e transmitidos
pela tradição”.
agentes conservacionistas principalmente quando estes não correspondem, por variados
motivos, às suas expectativas tal como vem sido demonstrado por uma ampla literatura
antropológica sobre o assunto9.
Ao não concordarem com normatizações que definem modos e limites para a
exploração de espaços considerados de relevância ecológica, tais populações, em geral,
criam estratégias atualizadas com seus interesses para lidar com estas contingências. As
avaliações sobre as normas bem como as repostas práticas dadas à atuação de órgãos
estatais que as formulam ou fiscalizam podem variar bastante de acordo com o contexto.
O que temos observado em contextos nacionais marcados por uma tradição política e
administrativa de característica centralizadora e hierarquizada – como no caso de
Portugal e Brasil – é que, historicamente, as normas jurídicas são formuladas em
instâncias aparentemente desconectadas das práticas que constituem os sentimentos
morais das sociedades. Portanto, a distância entre as normas [oficiais] e as práticas
[sociais] pode, em muitas situações concretas, gerar tensões, constrangimentos,
desacordos e conflitos entre grupos sociais estabelecidos e órgãos ligados à
administração da vida pública10.
Neste aspecto, os dois casos apresentados nesta tese têm características que os
aproximam. A publicação anual de uma Portaria Normativa que proíbe a pesca com o
uso de redes na região que compreende a Lagoa Feia tem sido realizada sem qualquer
tipo de consulta aos pescadores de Ponta Grossa dos Fidalgos ou de Quissamã. Por
outro lado, os dispositivos jurídicos que incidem sobre a região estuarina do Sado – a
Reserva Natural e o Regulamento de Pesca – também foram elaborados sem a
participação dos pescadores artesanais locais, de acordo com meus interlocutores
portugueses.
Frases como “o IBAMA está na Lagoa” ou “a DGPA não entende nada de
pescadores artesanais” atestam que meus interlocutores entendem, de algum modo, que
tais órgãos exercem influência sobre suas práticas haliêuticas. Os pescadores podem, em
sua maioria, não conhecer em detalhes as normas ou suas sanções. Mas, sem dúvida,
reconhecem a existência de mecanismos regulatórios. Pude observar tanto no caso

9
Cf: LOBÃO: 2010; FILGUEIRAS: 2008; PRADO 2006, MELLO & VOGEL: 2004; MOTA: 2003.
10
Cf: VIANA: 1974; FAORO: 1975; DA MATTA: 1976, 1985; KANT DE LIMA: 2000, 2005;
CARDOSO DE OLIVEIRA: 2002; LOBÃO: 2010; MOTA: 2004, 2009.
brasileiro quanto no caso português, como pescadores artesanais incorporam, ao seu
modo, tais mecanismos regulatórios em suas práticas profissionais.
Vejamos, portanto, como pescadores dos dois povoados elaboram suas ideias
acerca do [que entendemos como] mundo natural ou do ambiente ao qual estão ligados
pelo ofício. Seus relatos revelam uma sofisticada combinação de elementos capazes de
construir uma weltanschauung que só pode ser compreendida a partir do momento em
que nos afastarmos, ainda que provisoriamente, de nossas ideias mais elementares sobre
natureza, cultura e tempo. Uma descrição detalhada da cosmologia pesqueira pode
indicar em que termos, órgãos estatais, normatizações e mecanismos regulatórios são
percebidos por estes grupos.

Descrevendo a cosmologia pesqueira, ou do que o mundo é feito?


Na organização da vida social, muitos grupos podem atualizar, em suas próprias
categorias do pensamento, eventos ou instituições que, em principio, não fazem parte de
suas experiências práticas. Certos processos apenas podem ser entendidos como
“exteriores” à vida de uma coletividade, na medida em que o grupo social cria limites
mais ou menos definidos, sobre quem ele é e onde – fisicamente – ele vive. Se Lévi-
Strauss estiver certo, sua assertiva de que toda cultura é etnocêntrica, o processo de
interação social, sob variadas formas, é o motor através do qual estes limites são
estabelecidos11.

Um dispositivo analítico encontrado por Mello & Vogel no estudo sobre o


povoado de pescadores de Zacarias, no Rio de Janeiro, foi retomar, sob outra ótica, a
noção de bios [vida] e koinoein [ter algo em comum] formulado por Moebius – famoso
biólogo alemão do final do século XIX12. Em sua versão ecológica, o conceito ficou
conhecido na literatura como biocenose e ressalta as formas de vida em comum de seres
que habitam uma região particular. Ou seja, identifica a complexa articulação de
plantas, animais, micro-organismos e outros elementos num meio circunscrito que pode
ser, por exemplo, uma floresta, um estuário ou uma restinga.

A visão de um ecólogo sobre o meio ambiente natural hierarquiza os elementos


que o constituem, define suas propriedades e distingue seus objetos. Não é, neste

11
LÉVI-STRAUSS: 1976.
12
Cf: MELLO & VOGEL: 2004.
sentido, muito diferente do olhar que pescadores podem ter sobre mares, lagoas, ou
qualquer outro biótopo os quais conhecem a partir de sua experiência profissional. Mas,
diferente de um cientista, que usa as categorias de sua própria disciplina para identificar
e definir os elementos que podem, ou não, constituir a biocenose de um lugar, a
etnografia tem mostrado que pescadores artesanais formulam suas noções sobre o meio
ambiente a partir de analogias e associações extremamente complexas que extrapolam
as classificações ecológicas mais correntes.

É possível, portanto, admitir que grupos de pescadores artesanais, em geral,


formulem um conceito de Natureza como algo semelhante a uma comunidade de vida.
Teorizam, assim, sobre as formas de interação dos seres que a constituem, só que o
fazem em seus próprios termos. Os seres que habitam este universo nativo não podem
ser dispostos em categorias tradicionais da ecologia ou da biologia, simplesmente. Para
carrasqueiros e pontagrossenses há uma mistura entre os universos natural/social e
social/sobrenatural atualizada na percepção que têm da natureza e objetivada nas suas
práticas haliêuticas. A etnografia evidenciou que a identificação dos seres que compõem
a comunidade de vida, do ponto de vista, nativo incorpora impreterivelmente esta
mistura.

Esta percepção transcende a ideia da lagoa, por exemplo, como um ecossistema


fechado e equilibrado, e põe em evidência elementos com relações em permanente
processo de reformulação no qual se consideram os conhecimentos locais, as técnicas de
pesca e as relações sociais em torno desta atividade profissional. Ao fim e ao cabo, os
próprios pescadores se incluem como parte ativa desta comunidade de interação. A
tarefa da etnografia, neste sentido, foi descrever o que pescadores brasileiros e
portugueses dizem sobre o ambiente e aquilo que fazem com ele. Dito de outro modo, o
interesse foi entender que lugares ocupam os seres que habitam a comunidade de vida e
quais funções eles desempenham. O esquema abaixo sintetiza o conceito:
Pescadores
Artesanais Deus
Peixes

Outros
Animais
Flora

COMUNIDADE DE VIDA
(AMBIENTE FÍSICO + PRÁTICAS SOCIAIS)

ESTUÁRIO DO SADO LAGOA FEIA

Entidades
Sobrenaturais

Órgãos
Oficiais e
Agentes de Legislações
Fiscalização

“A pesca como um jogo”

Uma metáfora que ouvi muitas vezes durante o trabalho de campo no Brasil e
em Portugal caracteriza a pesca artesanal como um jogo. Desta máxima, derivam outras
associações. A ideia do jogo trás junto a definição de onde [em que lugar] ele é
praticado, quem são os participantes e quais são as regras.

“Isto é assim. É como um jogo mesmo. Eu posso ganhar e perder.


Ganho quando a pesca é boa. Ganho dinheiro posso comprar minhas
coisinhas, tudo direitinho. Perco quando a pesca é ruim. Isto não
significa que eu perca na vida. Não! No outro dia eu vou lá e ganho
novamente. Temos que nos acostumar como isso. A vida é como um
jogo. A vida na pesca também” (Alexandre, Carrasqueira)

“Só pode participar disto quem sabe! Quem conhece as regras! Digo,
quem conhece a pesca, a lagoa, os peixes e tudo. Quem sabe como é
fazer isto aqui todo dia. Porque hoje em dia, não é como no meu
tempo. Hoje o cara vem até a lagoa e acha que é pescador. Não é não!
Pescador tem que conhecer como as coisas funcionam. Tem que saber
sim!” (Dodô, Ponta Grossa dos Fidalgos).

“Acho mesmo que pescador é um bicho competitivo. Ao ponto de


furar o olho do outro! É! Ajuda só mesmo aqueles que pescam com
ele. Já ajudar os outros? Ah, isso é mais difícil. É como um time de
futebol. Você joga e ajuda seu time. Porque você quer na verdade
ganhar do outro time! Não é? Ninguém gosta de perder! (Neguinho,
Ponta Grossa dos Fidalgos).

O conjunto de etiquetas que organiza o acesso aos recursos pesqueiros, bem


como aos espaços mais propícios para a captura, estabelecem limites para a atuação dos
grupos de pesca ou companhas. Os pescadores conhecem seus princípios. Mas, de todo
modo, isto não significa que as mesmas sejam cumpridas à risca. Interpretações
ambíguas sobre as etiquetas e mesmo transgressões instrumentalizadas são motivos para
tensões e conflitos entre. É um jogo, portanto, porque há regras que devem ser
conhecidas e praticadas pelos envolvidos.

Mas, quem participa deste jogo? Primeiramente, os relatos apontam para um


jogo motivado pela disputa entre as companhas ou grupos de pesca. A competição se
estabelece a partir da combinação de três fatores: a quantidade do pescado, a
quantidade do mesmo e o desempenho do pescador. A quantidade de pescado é contada
em quilos ou em unidades. No caso de Ponta Grossa, a unidade é a caixa – engradado
de plástico, semelhante aos utilizados em feiras-livres que quando estão cheios de
peixes chegam a pesar vinte quilos. Já na Carrasqueira trata-se do latão que em seu
limite conta vinte e cinco quilos de pescado. A qualidade das espécies capturadas é um
fator de distinção neste jogo que pode ou não aparecer associada à quantidade. Na
Lagoa Feia, vinte quilos de robalo são mais valorizados do que quarenta quilos de
traíras ou acarás. No Sado, por sua vez, capturar dez quilos de linguados é mais
desejável do que quarenta quilos de charrocos. Em ambos os casos, a qualidade das
espécies atualiza a hierarquia dos peixes, de acordo com as avaliações locais que tem
como base o conhecimento empírico do funcionamento do mercado – tal como
apresentado no Meio, para o caso português. Tanto a quantidade quanto a qualidade,
como resultado das capturas, estão associadas ao desempenho do pescador como um
mestre do ofício. Entre os praticantes, apenas o exímio conhecedor das artes pesqueiras
tem habilidade suficiente para mobilizá-las com precisão e obter bons ganhos. O melhor
jogador, portanto, é aquele que melhor se desempenha no exercício da pesca artesanal.
Há, entretanto, uma característica associada ao desempenho: um bom pescador
só pode mobilizar técnicas que lhe deem bons resultados porque seus conhecimentos
são um dom. Deus, ou forças que estão além de do controle dos homens, são
responsáveis pelo funcionamento das coisas mundanas e pelo desempenho afortunado
dos pescadores. Quando um pescador de dons reconhecidos falha em alguma investida,
há a ideia comum de que a penúria é um ensinamento divino. Por isso, o pescador
experimentado deve ter calma e paciência para esperar outra nova oportunidade.

Este jogo não atualiza a competição apenas entre pescadores. A metáfora aponta
para outras direções e incorpora novos personagens. É comum que os pescadores falem
da relação entre eles e os órgãos estatais estabelecendo a mesma analogia:

“Ah, aqui é assim! É como gato e rato! Um jogo ou uma perseguição!


Se estou na Lagoa e escuto um motor [da lancha da fiscalização
ambiental] – motor de lancha, não estes do barco – a primeira coisa
que eu faço é me esconder nas tabuas [vegetação] até eles passarem.
Eles não podem me ver de longe por causa da cor do barco. Mas eu
escuto o motor e me adianto! Não sou bobo! É como gato e rato!”
(Ponta Grossa dos Fidalgos).

“Estamos sempre preparados, não é? Ninguém gosta de encontrar a


Polícia Marítima. Nem aqueles que estão com tudo certinho. Porque
eles sempre vão dizer que tem algo errado. É um extintor de incêndio
que não está no lugar certo, é uma vírgula no documento do barco”.
Prefiro não os encontrar. Quando sabemos por que sítios eles estão
andando, procuramos outro. São eles contra nós e nós contra eles,
fazer o que, não é mesmo?”(Carrasqueira).

Aqui, os pescadores constroem a ideia de que os agentes de fiscalização das


atividades são oponentes na medida em que percebem sua presença como algo negativo.
Precisam, desse modo, criar estratégias para evitar, o tanto quanto possível, os
encontros, no máre ou na Lagoa, com eles. Em Ponta Grossa, por exemplo, meus
interlocutores que não param suas atividades no período proibido pelo IBAMA, mudam
os horários de saída e chegada da pesca. Optam, na maioria das vezes, pela pesca
durante a madrugada, pois argumentam que “o IBAMBA” ou o “meio ambiente” não
anda pela Lagoa nestes horários: “Eles não conhecem isso aqui. Não é fácil navegar
nesta lagoa sem iluminação. Por isso, quando aparecem, é mais perto do início do dia.
Nunca de noite [madrugada].
Os carrasqueiros, por sua vez, acreditam que a Polícia Marítima está sempre em
desconfiança quanto às suas práticas, às condições nas quais se encontram os
equipamentos pesqueiros e aos documentos que permitem o exercício legal da
profissão. A maior parte dos carrasqueiros com os quais conversei faz questão de
afirmar que andam “sempre em dia” com as exigências da DGPA – as mesmas que são
fiscalizadas pela Polícia. Entretanto, pude observar estratégias formuladas pelos
pescadores para burlar algumas normas. Alguns pescadores utilizam a solheira com
malhagem inferior aos oitenta milímetros permitidos pelo Regulamento de Pesca. Mas
não o fazem em toda a extensão das redes. Intercalam, cuidadosamente, malhagem de
sessenta ou setenta milímetros com aquela permitida. Caso os agentes queiram
inspecionar o tamanho das malhas, os pescadores mostram apenas a parte do pano no
qual o tamanho é de oitenta milímetros.

“Eu as intercalo. Não uso tantos miúdos abaixo de 80 milímetros não.


Mas, se eu não fizer isto, corro o risco de fazer uma maré e voltar sem
nada. Isto é que não pode! Então faço assim. Eles são espertos
conosco. Por qualquer coisa aplica-nos logo uma coima [multa]
altíssima! Temos que ser espertos com eles também”. (Carrasqueira).

O campo no qual este jogo é disputado é, num caso, a Lagoa, e no outro, os


máres do Sado. Os jogadores são os pescadores e os agentes de fiscalização. Isto define
do ponto de vista dos pescadores, os limites físicos que constituem sua comunidade de
vida. E, além disso, sublinha alguns dos “seres” que estão em constante interação e cuja
movimentação está, sempre, afetada pelo outro nestes espaços.

Mas há outro elemento dotado de características especiais. Elemento este que é


também investido de agência, vontade e temperamento. Se o incorporamos na metáfora
do jogo – como fazem os pescadores – creio que seja possível elevá-lo ao estatuto de
jogador assim como os outros atores. Me refiro, aqui, ao peixe.

“O peixe sempre vence”

As percepções que os grupos humanos têm da vida animal e vegetal tem sido,
novamente, matéria de interesse para a Antropologia nas últimas décadas. Diferente de
abordagens antigas que reproduziam nos modelos nativos a distinção cartesiana entre o
que é humano e o que é animal, novas contribuições têm chamado a atenção para a
complementaridade destes dois domínios. Um bom exemplo disso é coletânea
organizada por Tim Ingold intitulada “O que é um animal?”. Em sua introdução, o
antropólogo assinala que:

“Todas as sociedades humanas, passadas e presentes, coexistiram com


populações de animais de uma ou várias espécies. Ao longo da
história, pessoas têm, de maneiras variadas, matado e comido animais
ou, em ocasiões mais raras, têm sido mortas por eles; ou incorporaram
animais em seus grupos como estimação ou cativos; utilizaram suas
observações da morfologia e do comportamento animal na construção
de seus próprios projetos para viver”13.

A pesquisa empírica entre pescadores revelou que a relação deste grupo com os
animais que compõem sua comunidade de vida é bastante complexa. Um exemplo disso
é que as características que definem os limites entre homem e animal são misturadas de
modo a dar ordem a este mundo. Traços daquilo que é comumente associado ao
comportamento humano indica, por exemplo, como se comportam certos peixes: “O
choco é tímido. Mas é esperto. Gosta de namorar. É como nós”, ou “A traíra é um
peixe tinhoso. Igual a mulher brava! Para pegar, temos que saber lidar com ela!”.

O inverso também ocorre. Quando características dos animais são utilizadas para
qualificar pessoas. “Adoro ameijoas. Adoro ameijoas novinhas. E todo homem tem que
ter suas ameijoas, não é mesmo? Os mariscos aparecem como referencias à mulher ou
aos órgãos genitais femininos. Em Ponta Grossa, quando alguém comenta “Ih! Lá vem
o morobá...” significa que se aproxima um homem considerado chato, ou que a sua
presença “contamina” o ambiente – já que o morobá é um peixe que não tem valor
comercial, é difícil de ser retirado da rede e ao nadar turva a água o que pode dificultar a
captura de outras espécies. O mesmo acontece com o charroco na Carrasqueira. A
espécie é considerada localmente como feia (semelhante a um sapo de grandes
dimensões) e praticamente não tem valor comercial. Observei muitos de meus
interlocutores se tratando por “charrocos” – um modo jocoso desqualificar o outro.

Há mais coisas envolvidas na relação entre pescadores e peixes. A interpretação


que pescadores fazem sobre o comportamento das espécies aquáticas as dota de uma

13
INGOLD: 2007, 129. Grifo meu.
agência especial. Acreditam que, assim como eles, os peixes estão constantemente
avaliando as situações e respondendo a estímulos dos mais diversos.

“Pensam por ai que cachorro é o bicho mais esperto do mundo, não é?


Mas o peixe é bicho sabido demais. É tão sabido que nem o homem
consegue domar ele. Sabe quando vai ser pego. Mas sabe também ser
esperto o suficiente para fugir. Assim mesmo como nós fazemos!”
(Doba, Ponta Grossa dos Fidalgos).

“Nós escutamos o motor deles [lancha do Batalhão Florestal]. Com o


peixe é igual: eles escutam nossos motores e se escondem. Se a água
estiver alta é pior ainda. Eles têm mais espaço para andar e se
esconder” (Neguinho, Ponta Grossa dos Fidalgos).

“Deus deu a inteligência para todo mundo. Tudo que habita aqui, pelo
menos eu penso assim, tem inteligência. Digo tudo que é vivo e se
movimenta, lógico! Uma pedra não é inteligente. Mas o peixe é. E
pode fazer da pedra sua casa, ou sua cama, ou esconderijo, ou pode
comer o limo que gruda nela. Todo peixe tem uma característica. Uns
são mais inteligentes outros menos. Mas todos são espertos para fugir
do pescador! O problema é que pescador é inteligente também! Ai,
vira uma disputa, né?” (Luiz, Ponta Grossa dos Fidalgos).

Os relatos dos pescadores associam características humanas ao comportamento


dos peixes. Traços dos dois universos – humano e animal – são misturados. Diferente
do biólogo, que acredita que o peixe responde a estímulos de modo instintivo, os
pescadores julgam que o comportamento das espécies assemelha-se aos seus porque
ambos, pescadores e peixes, são seres feitos da mesma natureza. As suas existências no
mundo têm origem nas mesmas fontes e participam cada um com suas qualidades, da
mesma comunidade de vida.

“Eu pesco porque eu tenho que comer e alimentar minha família. O


peixe também tem que comer. Faz a mesma coisa que eu. Ele vai
comer outros peixes ou outras comidas. Mas, ele igual a nós. Quando
ele come, cresce e cria outros peixes. Ele pode passar a vida toda sem
ser pescado. Ele pode vir a morrer de velho e não ser pescado. Ele vai
lutar pela vida dele e eu vou lutar pela minha. Isto é assim, sempre foi
assim e nunca vai mudar! É a lei das coisas.” (Joaquim, Carrasqueira).
Uma vez mais, a ideia da luta é vindicada, tal como no relato de Joaquim. Aqui
ela envolve o homem e o peixe. Na situação da pesca, os dois fazem parte do mesmo
mundo, pois ambos têm do ponto de vista dos pescadores, as mesmas qualidades.

Para o pescador, o peixe é um recurso, na medida em que sua venda nos


diferentes mercados é convertida em valores monetários. É, além disso, um alimento e,
neste sentido, é a forma mais básica de provimento alimentar das famílias de
pescadores. Por fim, o peixe é alguém com quem se estabelece uma interação mediada
pelo interesse da manutenção da vida. Um ente que deve ser respeitado – pois sem sua
existência também não existiriam pescadores – mas alguém que pode ser abatido numa
disputa considerada justa. O pescador lê e interage com o mundo, de acordo com seus
conhecimentos sobre ele. Para os pescadores, o peixe também “lê” o mundo e interage
com os outros elementos da comunidade de vida (outros peixes e outros pescadores, por
exemplo) com os mesmos aparatos14.

Uma fala de Zé Pedra, proferida na Carrasqueira, por ocasião de uma conversa


sobre o futuro do “meio-ambiente”, condensa a interpretação sobre a sinergia
estabelecida entre peixes e pescadores:

“Tu já pensaste numa coisa, Zé? Eu sou pescador. Pesco desde miúdo
e estes peixes não acabaram. Uma hora tem mais outra hora tem
menos. Mas não acabaram por certo. Todos falam por todos os lados
que os peixes estão a acabar. Enganam-se! Há peixes sim, senhor! O
pescador, por melhor que seja nunca vai pescar todos os peixes do
mundo. Nem todos os pescadores do mundo, caso trabalhassem em
conjunto, também não iam fazer isso. Quando tu vais ao máre e não
trazes nada, naquele dia, o peixe ganhou. Estais a ver? Na verdade,
tanto faz o gajo pescar vinte ou duzentos quilos. Nunca irá pegar
todos. No fim, o peixe sempre vence!”

Argumento semelhante foi elaborado por Dodô, na ocasião de uma pesca na


Lagoa Feia:

“Tem por aí muito mais peixes do que podemos pescar. E a vida de


pescador é assim: eu ganho e perco o tempo todo. Os peixes também.
Ganham ou perdem. É a vida mesmo. Já tive vezes que pescar doze

14
Um estudo de caso de abordagem perspectivista que, entre outros assuntos, discute elaborações
indígenas sobre o mundo social e animal pode ser encontrado em LIMA: 2005.
horas de anzol de bóia. Para pegar sabe quanto? Cinco quilos de traíra.
Sabe quem ganhou naquele dia? Não? Eu sei. O peixe ganhou! Porque
eu sabia que elas tavam lá num canto que eu sempre pesquei. Por que
justamente naquele dia não arrumei nada? Não mudou o vento, não
mudou a água. Nada! Ele [o peixe] foi mais esperto que eu.
Acontece!”

Se a pesca é um jogo, para meus interlocutores, em suas falas podemos destacar


seus principais participantes. São eles os próprios pescadores, os agentes de fiscalização
ambiental e os animas aquáticos, em especial, os peixes. Os três coletivos estão em
constante interação, animando, em conjunto com outros elementos, a comunidade de
vida da qual, cada um ao seu modo, faz parte. A metáfora do jogo aqui, tomada de um
modo mais específico, não sugere, de pronto, quem ganha ou quem perde – mesmo que
isto esteja no horizonte de todo jogador, em geral, e apareça, constantemente, na fala
dos pescadores. Me parece mais apropriado pensar o jogo em questão como um jogo de
linguagem – na medida em que ações das partes envolvidas comunicam, muito mais do
que resolvem as disputas15. É justamente a comunicação entre as partes que os aproxima
e os distancia, marcando assim, o balanço variável de suas relações.

Quanto Custa Ser Pescador Artesanal? “Custa” a transgressão das normas oficiais
de preservação ambiental

Atualizar a fiscalização ambiental nos termos de sua comunidade de vida não é


um exercício simples para os pescadores. A maioria com os quais convivi, nos dois
povoados, qualificam as regras oficiais que afetam as atividades de captura como
injustas, demasiadamente restritivas ou desencaixadas da realidade que conhecem. Tais
formulações, no entanto, os colocam diante de um problema: a transgressão.

Do ponto de vista prático, o desempenho das atividades de captura exige que os


pescadores reconheçam o perigo como uma condição inerente ao trabalho. Dele,
conforme demonstrado anteriormente, deriva um elenco de riscos que podem ou não ser
assumidos pelos praticantes deste ofício. Podem, por exemplo, optar por ir pescar,
mesmo em condições atmosféricas extramente desfavoráveis configuradas em

15
Conferir os comentários sobre os Jogos de Linguagem de Wittngenstein em TAYLOR: 2000.
tempestades ou ventanias muito fortes. Ao assumir este risco, por qualquer motivo, o
pescador sabe que está mais exposto a incidentes como naufrágio ou afogamento do que
quando pescar em dias considerados mais brandos.

O cálculo, neste caso, embute possíveis prejuízos com os equipamentos de


trabalho – sobretudo barcos, redes ou armadilhas. Além disso, é incorporado neste
cálculo o valor de sua própria vida, pois uma vez acometido por qualquer incidente
provocado pelas condições climáticas, o desfecho da situação pode ser trágico e fatal,
qual seja, a morte do pescador. Completam, portanto, as variáveis deste cálculo, a
responsabilidade que o pescador tem – ou não – com sua própria vida e para com a vida
daqueles que dependem dele direta ou indiretamente.

A escolha por pescar com redes entre os meses de novembro e fevereiro, na


Lagoa Feia, ou utilizar mais armadilhas do que o número determinado por lei, no
estuário do Sado, também estão na lista de riscos assumidos, mas seu cálculo implica
uma operação distinta da apresentada acima. Ao tomarem a decisão de pescar nos
períodos proibidos oficialmente ou usar artes consideradas ilegais, tanto
pontagrossenses quanto carrasqueiros sabem que podem ser pegos em flagrante pelos
agentes de fiscalização. Sabem também que o encontro indesejado pode acontecer de
modo relativamente inesperado, ainda que utilizem técnicas e estratégias para evitá-lo o
tanto quanto puderem. O desfecho de um encontro com o IBAMBA ou com os Polícias
não resulta, entretanto, na morte física do pescador. Os cálculos, neste caso, embutem os
constrangimentos morais da transgressão.

“Às vezes acontece mesmo. Nós todos sabemos que pode acontecer. A
gente faz de tudo para não ser pego. Mas, acontece. O meio ambiente
leva nossas coisas e fica dando sermão na gente. Dizendo que a rede
não pode ser esta, ou que você não pode pescar até o final do defeso.
Eles entendem disso? Entendem nada! Não tem um pescador ou
alguém que saiba andar nesta Lagoa, lá. Por isso, mesmo quando a
turma é pega por aí, passa um tempinho, e volta todo mundo pra
Lagoa de novo” (Pescador pontagrossense).

“Não somos bandidos nem malandros, pá. E ficamos ouvindo os


polícias falarem de como deve ser isto ou como deve ser aqui. É um
absurdo. Muitas vezes é por conta de uma vírgula no documento ou
uma licença que não ficou pronta. Mas eles não querem conversa.
Querem nos dizer o que fazer. E querem aplicar as coimas, claro!”
(Pescador carrasqueiro).

“É quando perdemos, né Zé[i]! Tu já sabes! Ninguém gosta de levar


coimas. Mas ninguém vai deixar de pescar também. Quando levas
uma coima passas um tempo assim meio preocupado... mais
cuidadoso, digo. Mas depois, com o tempo, volta tudo ao que era.
Porque eles vão continuar atrás de nós. E nós, mesmo quando estamos
no certo, não queremos encontrar com eles. Certos ou não, não
queremos, estais a ver. E a vida de pescador é esta mesmo que estais a
ver aqui. Mata-se um leão por dia! Se fizéssemos tudo como mandam
já não teria um pescador cá na Carrasqueira. Tu terias que ir a outro
sítio para fazer teu investigo”.

“Ninguém quer perder! Nem eles nem nós. Eles tentam fazer o deles.
Nós, fazemos nossa parte. Quem for menos habilidoso perde! Os
melhores pescadores, sem dúvida, perdem menos”. (Pescador
carrasqueiro)

Os pescadores entendem que serem pegos cometendo atos qualificados como


infrações, de acordo com normatizações do IBAMA ou da DPGA, faz parte dos
processos de interação inerentes ao mundo que experimentam quando participam da
comunidade de vida. Parece que pior do que as implicações jurídico-formais das
transgressões (notificações, aplicações de multa ou abertura de processos), aplicadas a
cada caso especificamente, os pescadores não gostam de “perder” para os fiscais.
Atualizam, neste sentido, a metáfora do jogador que não admite a derrota para um
adversário por mais qualificado que ele seja.

No caso português, os órgãos que administram a pesca artesanal local exercem


um controle mais forte deste setor do que no caso brasileiro. No que diz respeito à
fiscalização, por exemplo, pude observar que a presença da Polícia Marítima é uma
realidade objetiva no cotidiano dos pescadores estuarinos se comparada ao caso
analisado na Lagoa Feia. Há, entre os pescadores portugueses, demasiada preocupação
em seguir as normas emitidas pela DGPA – ainda que não concordem com a maioria
delas – como evidenciou a problemática em torno de minha licença para embarcar. Para
completar consideram que, uma vez autuados, dificilmente conseguem se livrar da
multa, o que talvez faça com que estes pescadores estejam mais atentos às exigências
legais que regem as atividades de captura.
Em Portugal também há bastante controle estatal sobre a venda do pescado
fresco16. Tal controle, de acordo com meus interlocutores, faz com que os pescadores
portugueses desenvolvam outras modalidades de venda, fora das lotas, pois julgam que
o sistema oficial de vendagem é quase sempre injusto devido aos baixos valores pagos
pelo quilo do pescado nestes leilões.

Ou seja, tanto na pesca propriamente dita, quanto na vendagem, os pescadores


portugueses têm que elaborar estratégias de transgressão das normas vigentes para
continuar desempenhando suas atividades profissionais de modo que ainda seja
rentável.

“Se o pequeno pescador não der seu próprio jeito, não será o governo
que vai ajudar-nos. Por isso temos que pescar muitas vezes de modo
clandestino, vender à candonga17, porque se não o pescador morre de
fome!” (pescador carrasqueiro).

16
Desde 1956, criada a partir de um Decreto de Lei, a Docapesca é uma empresa do setor empresarial do
Estado português que tem como objetivo a exploração comercial das atividades pesqueiras e portuárias.
Sua atuação se deu primeiro na capital Lisboa e depois, ao longo do tempo, em todo o país. Com o passar
dos anos, a Docapesca ficou responsável por explorar e incrementar o serviço de vendas de pescado em
praticamente toda costa portuguesa. Depois do 25 de Abril de 1974, a empresa teve a incumbência de
construir frigoríficos em entrepostos importantes no país com objetivo de estruturar a comercialização do
pescado. Da mesma década data a construção dos primeiros armazéns de vendas, ainda sobre a sigla SLV,
que significava Serviço de Lotas e Vendagens. Assim, a Docapesca adquiriu a exclusividade na prestação
de serviços da primeira venda – ou seja, a venda do peixe fresco recém-chegado dos mares ou rios – e a
exerce organizando um sistema de leilão. Os leilões são realizados nas Lotas, que são edificações
semelhantes a armazéns onde se encontram os funcionários da Docapesca, que organizam a atividade, os
pescadores e os compradores previamente cadastrados. Ao deixarem o pescado nas Lotas, além de
receberem os ganhos pela venda em leilão, os pescadores formalizam e quantificam sua produção para o
Estado. Isto tem implicações diretas com a renovação ou não das matrículas de mariscador bem como a
dos barcos de pesca local. Para ter o direito de exercer a profissão de mariscador, cada indivíduo tem que
vender na Lota, por ano, 2.000,00 euros em valor bruto. Para renovar a matrícula do barco, o proprietário
tem deixar em Lota, por ano, 6.000,00 euros em peixe. Com matrícula da embarcação em dia, o pescador
também pode solicitar ao Estado subsídios para a compra de óleo diesel, aquisição de novos motores,
incrementos nos barcos e outros materiais. Até o mês de janeiro de 2011, os descontos para os seguros
sociais, como a aposentadoria [reforma], por exemplo, eram feitos exclusivamente através da Lota. Eram,
assim, subtraídos 10% do valor bruto das vendas. Desde então, os pagamentos são feitos autonomamente,
por pescador independente da produção, com referência ao valor do salário mínimo português. Em Lota,
há mais descontos. A taxa de serviço para o uso do estabelecimento é de 4% para barcos com motor a
óleo diesel e 2% para barcos com motor à gasolina. Ambos taxados sobre os valores brutos das vendas. O
desconto para aqueles que são ligados à Associação é de 1%, valor que a Docapesca repassa para a conta
do grêmio16. Os compradores cadastrados para participarem dos leilões em Lota também são taxados em
9% no valor da compra.
17
Candonga é uma expressão da língua Kimbudu. Assim como ocorre em Angola, em Portugal ela
identifica negociações que são consideradas, por grande parte da sociedade nacional, clandestinas,
informais ou mesmo ilegais em alguma medida. Tal modalidade é encontrada em muitas regiões do país e
define distintas relações comerciais. Os bens trocados nestas relações são variados: ingressos para jogos
de futebol vendidos fora das bilheterias, entradas para concertos musicais vendidos fora das casas onde se
realizam ou bebidas e iguarias vendidas nas ruas depois do encerramento do comércio etc.
Já no caso brasileiro, tal como analisado em Ponta Grossa dos Fidalgos, a
fiscalização ambiental é bem menos ostensiva quando comparada ao que ocorre em
Portugal. Em períodos de proibição legal das atividades de captura, meus interlocutores
esforçam-se para evitar um possível encontro com os agentes. Julgam, na maioria dos
casos, que não estão fazendo nada de errado. Esta autoridade, segundo eles, é conferida
pelos anos de experiência dedicados à pesca. O IBAMA é percebido como uma entidade
onipresente que pode aparecer a qualquer momento e por isso os pescadores que fazem
a opção por não parar suas atividades assumem o risco de serem pegos. Na prática,
como descrito na Proa, os pescadores pontagrossenses tem manipulado com habilidade
as normatizações formuladas pelo IBAMA. Atualizam, em seus próprios termos e de
acordo com seus interesses, os calendários de pesca ao mesmo em tempo que
incorporam o órgão na comunidade de vida da qual fazem parte como sujeitos ativos.

Apontamentos finais ou, os “custos” da reprodução de um modo de vida através da


tragédia.
Michel Leiris em seu ensaio intitulado Espelho da Tauromaquia18 tenta tirar
implicações sobre a natureza humana refletindo sobre diversos aspectos dos chamados
jogos taurinos, tal como estes se configuram em alguns países da Europa. Em suas
palavras, o encontro, na arena, entre o homem (toureiro) e o animal (touro) é um
espetáculo revelador de dimensões ocultas de nossa subjetividade:

“(...) certos espetáculos violentos – como a tragédia, na qual tudo


gravita em torno de uma crise que deve intricar e destrinçar – ocupam
lugar de eminência; semelhantes a esses fatos privilegiados que
suscitam a ilusão de nos revelar a nossos próprios olhos, em virtude de
uma afinidade ou analogia secreta, eles tomam ares talvez com maior
intensidade que todos os outros, de experiências cruciais, de
19
revelações”.

Um dos elementos que constituem a tragédia, de acordo com Leiris, no caso da


tauromaquia, é o sacrifício. Ele não se refere ao sacrifício do animal, apenas. O autor

18
LEIRIS: 2001.
19
LEIRIS; 2001:13.
chama a atenção para sacrifício como risco imediato para a vida do oficiante, ou seja,
para o toureiro.

Guardados os devidos limites, creio que seja possível pensar as experiências


empíricas e objetivas as quais pescadores artesanais são submetidos nas ocasiões em
que realizam suas atividades de captura, como acontecimentos trágicos de contornos
semelhantes aos ressaltados por Leiris em sua análise. Temos a arena – que no caso do
estudo apresentado são, ao mesmo tempo, a Lagoa e o Estuário. Para os pescadores,
como atestam os relatos, a faina é percebida como oficio no qual o enfrentamento dos
mais diversos tipos de adversidades é uma característica predominante. E é na arena que
tudo acontece.

Enfrentar a Natureza é o primeiro dos desafios. Ela é dificilmente controlada


pelas mãos do homem. Seus ciclos podem ser parcialmente entendidos. Mas, de acordo
com os pescadores, ela atende, antes de tudo, à vontade de Deus – que é, muitas vezes,
imprevisível. A conjugação dos conhecimentos adquiridos na prática profissional e o
dom de ser pescador são elementos que, quando conjugados, conferem aos seus
oficiantes, relativo sucesso nas empreitadas. Relativo porque este enfrentamento é
considerado por eles, ao fim e ao cabo, desigual.

A comunidade de vida da qual pescadores artesanais fazem parte, na qualidade


de sujeitos ativos não é, de nenhum modo, equilibrada. Os elementos que a constituem
têm características comuns, mas suas formas de interação podem ganhar contornos que
beiram o desajuste e a desarmonia do todo. As situações de desequilíbrio desta
comunidade são explicadas pela agência que pescadores artesanais conferem aos
animais, às forças sobrenaturais e aos agentes de fiscalização. Seres com agência não
respondem a estímulos por impulsos, somente. São, antes de tudo, indivíduos dotados
de alguma reflexividade capaz de conectá-los ao mundo de modo ativo e inteligente.

Pescadores artesanais protagonizam em suas interações com o ambiente


pequenas tragédias cotidianas. O enfrentamento da natureza, que constitui a condição
maior para o desempenho do ofício ganha, no jogo contra o peixe, contornos mais
objetivos. Nesta dramatização agônica estabelece-se, portanto, uma luta pela vida. O
peixe deseja escapar de seu algoz. Usa os subterfúgios que lhe são disponíveis com o
objetivo de não ser capturado. Por seu posto, o pescador vê o peixe como seu
adversário. Tenta, a todo custo, ler seus movimentos e compreender suas vontades. Da
carne do peixe fará a sua carne e dos seus. Ambos lutam para manter seus corpos sãos.
O embate não tem desfecho prescrito. Um dia ganha o peixe. Noutro ganha o pescador.
Um fator os torna iguais: ambos anseiam fugir da morte – neste caso mais física do que
simbólica.

Ainda há outro enfrentamento. Este também evidencia a luta pela vida. Ou, pelo
menos a disputa versa sobre o modo de vida. De um lado, pescadores artesanais.
Homens e mulheres que tiveram seus corpos e seus espíritos esculpidos pelos anos
dedicados aos trabalhos haliêuticos. Que acessam o mundo através das expertises
conferidas pelo ofício. Que povoam o lugar que vivem e sobrevivem de um conteúdo
acessível somente aos indivíduos marcados pelas mesmas experiências sensíveis. Por
isso mesmo são capazes de produzir, coletivamente, direitos ou sentimentos morais que
revelam tanto suas coerências quanto suas ambiguidades.

Do outro lado os agentes de fiscalização ambiental. Seja quem sejam. São, como
pescadores, indivíduos esculpidos por suas próprias experiências. Não encarnam
normas, simplesmente. Porque normas podem ser seguidas ou não. Os agentes são
agentes. Interpretam, reinterpretam, reproduzem, elaboram e, às vezes, esquecem as
normas. São, nesta perspectiva, como peixes e pescadores. Mais do que normas, estes
homens trazem para o encontro o modo. O modo de vida. Não são normas e sim modo
de vida que encarnam. Certamente outro que não o dos pescadores. E é isto que está em
jogo. Pescadores estão, para eles, como o peixe está para o pescador. O objetivo do
embate não é a morte física do outro. Mas, nem por isso, seu resultado é mais sutil:
desejam impor-se e sobrepor-se.

A expectativa do enfrentamento é marcada por impaciências, incertezas e


imprevisibilidades. Ele pode acontecer ou não. Imaginativamente ele sempre acontece.
A ansiedade anima – dá movimento – aos corpos. Encontros desta natureza são trágicos
independente de quem vai morrer. Ou do quê vai morrer. A arena está pronta. São,
portanto, experiências cruciais de revelação. Morre o peixe ou o pescador? Morre,
talvez, o modo de vida dos pescadores artesanais.
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