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GT n. 29 – Políticas Públicas
Introdução
A atividade da pesca artesanal tem merecido cada vez mais atenção de inúmeras
áreas de conhecimento acadêmico, científico e tecnológico devido às suas
características peculiares no quadro das profundas transformações pelas quais vem
passando não só o setor primário, mas toda a economia brasileira. A coexistência de
povoados de pescadores artesanais com estruturas metropolitanas em intensiva
expansão tem permitido uma reflexão sistemática e frutífera sobre questões suscitadas
pelo processo de mudança social. Por estes motivos, pesquisadores ligados a centros de
reconhecida excelência no campo das Ciências Sociais – e, em especial a Antropologia
– vêm dedicando ao assunto parte substantiva de sua produção acadêmica.
1
Antropólogo e Pesquisador do Núcleo Fluminense de Estudos e Pesquisas - NUFEP-INCT-InEAC/UFF.
apresentada é fruto de observação, de conversas informais com vários interlocutores e –
como não poderia deixar de ser – de interpretação.
2
“Art. 1º - Estabelecer normas gerais e específicas para o período de proteção à reprodução natural dos
peixes (piracema) temporada 2005/2006, nas bacias hidrográficas do Leste, nos estados da Bahia, Espírito
Santo, Minas Gerais, Rio de Janeiro e São Paulo, excetuando-se das bacias hidrográficas dos rios São
Francisco e Paraná, contempladas por portarias de piracema específicas. Art. 2º - Fixar o período de 1 de
novembro de 2005 a 28 de fevereiro de 2006 para o defeso da piracema referenciadas no art 1º”. Usei
como modelo o texto da Instrução Normativa n. 47 de 2005. O mesmo texto vem sendo publicado
anualmente no modelo de Instruções ou Portarias com implicações na Região Norte Fluminense. Para
tanto, basta dizer que, não houve nenhuma alteração no que diz respeito ao calendário de proibição de
captura das espécies na Lagoa Feia até os dias de hoje.
para FCT (de Portugal). Acompanhei, in loco, as atividades pesqueiras durante quase
nove meses e morei no povoado de fevereiro a junho de 2011. Percebi, logo de início,
que os pescadores portugueses eram muito críticos em relação à atuação da Direção
Geral de Pescas e Aquicultura, a DGPA, no que diz respeito à regulamentação
profissional da atividade de captura e à Polícia Marítima, particularmente no que tange à
fiscalização a área do estuário do Sado.
A observação direta das práticas de pesca artesanal, nos dois casos, revelou
aspectos fundamentais da vida social de pescadores. Características encontradas nestes e
em outros povoados pesqueiros tais como observadas também em outros trabalhos de
natureza etnográfica. É possível elencar algumas delas nos quatro pontos a seguir:
3
Ver COLAÇO & VOGEL: 2005, para o caso da Lagoa Feia.
4
MAUSS: 2002.
5
COLAÇO, VALPASSOS & VOGEL: 2007, para o caso da Lagoa Feia e KANT DE LIMA: 2007, para
o caso de Itaipú-RJ.
muitas ocasiões – desacordo com certas expectativas engendradas por instituições ou
atores sociais que não conhecem detalhadamente o cotidiano da atividade pesqueira.
Tenho tentado discutir e entender suas noções de tempo (passado/presente/futuro), seus
conceitos de vida e morte (humana/animal/ambiental).
4) A reunião dos fatores supracitados, atualmente, quando não são reconhecidos pelo
Estados e seus órgãos administrativos pode ocasionar uma série de entraves na
promoção de Políticas Públicas voltadas para a preservação ambiental, além de gerarem
constrangimentos e tensões com populações que possuem estas formas de relação com a
natureza.
E, dentre vários assuntos, foi assim que ouvi as primeiras queixas e reclamações
sobre o IBAMA. Ainda sem entender do que elas se tratavam, as interpretações dos
pescadores acerca da atuação do órgão na região da Lagoa Feia evidenciavam que ali
havia algum tipo de problema. Conversas que tinham como temas as técnicas
pesqueiras, os ritmos de trabalho e a temporalidade das atividades haliêuticas associadas
às temporalidades do ecossistema lacustre, quase sempre evocavam a figura do órgão.
Escutei de muitos pescadores em diferentes situações relatos como:
A partir de 2009, portanto, além das conversas sobre o IBAMA, em terra, eu tive
oportunidades privilegiadas de observar, na Lagoa, as pescarias e os pescadores.
Aproveitei estas ocasiões para provocá-los sobre o porquê dos problemas com o órgão.
Uma das questões que mais dirigia a interlocução, enquanto estávamos embarcados, era:
por que eles não paravam as atividades de captura mesmo sabendo que eram proibidas
legalmente? Suas respostas eram de natureza variada. Mas, destaco abaixo, três
formulações que julgo representar os pontos de vista mais recorrentes sobre o assunto:
“Nesta Lagoa não falta peixe! Falta é pescador! Dos bons! Peixe,
sempre teve e sempre vai ter. Às vezes mais, às vezes menos. Dizem
por aí que vai acabar. É verdade que não temos mais robalos como
tínhamos antes. Ou tainhas destas grandes que vem do mar. Mas isso
não é culpa do pescador. Quem modificou esta lagoa toda aqui foram
os fazendeiros, colocando diques por todos os lados, como você já
viu! O peixe não vai acabar. E se acabar, também, paciência. Não
dizem que tudo vai acabar um dia? Até o mundo vai acabar, ué!”.
“Ninguém pode dizer o que fazer na Lagoa. Quem você acha que
manda na Lagoa e na natureza? Nós homens? Não! O meio-ambiente?
Também não! Quem manda é Deus. Ele é quem dá o peixe. É ele
quem inunda e seca isto tudo aqui. Então não é polícia ou IBAMBA
nem ninguém que vai dizer se eu posso pescar ou não. Eu sou
pescador e Deus sabe disso! Não sou bandido! E é isso que importa”.
6
Molusco marinho que procura as águas mais quentes do estuário do Sado, nos meses que marca a
primavera e o verão, para a reprodução.
Naquela altura, eu já tinha conhecimento que a região estuarina era coberta por
alguns dispositivos jurídicos7. E que dois deles, especificamente, tinham influência
direta na relação dos carrasqueiros com o ambiente. No texto da Reserva Natural do
Estuário do Sado, o Artigo 8º regulamenta, por exemplo, a caça das espécies nativas e o
Artigo 10º regulamenta o policiamento e a fiscalização na região que compreende os
conselhos de Setúbal, Alcácer do Sal, Grândola e Palmela. Já o Regulamento da Pesca
no Rio do Sado oficializa as artes permitidas, as formas de conservação e venda do
pescado, tipifica as embarcações e o número de seus tripulantes, regulamenta sistemas
de socorro e segurança marítima entre outras importantes ações.
7
São eles a Reserva Natural do Sado, Sítio Ramsar e Zona Especial de Conservação e a Regulamentação
para a pesca no Estuário do Sado.
Logo percebi que o pessimismo de Zé Pedra em relação ao futuro da atividade
encontrava eco nas palavras de vários outros interlocutores no povoado. De um modo
geral, os carrasqueiros avaliam que a pesca artesanal trouxe prosperidade econômica
para as gerações mais antigas – conforme a etnografia apresentada no Meio. Meus
interlocutores que se encontram na faixa etária acima dos cinquenta anos,
aproximadamente, acreditam que os anos mais lucrativos para aqueles que
desempenhavam trabalho no máre foram as décadas de sessenta e setenta.
“Se o pescador não andar com tudo certo, com todos os documentos
em dia, ele é multado pela Polícia Marítima. Os valores são altos,
estais a ver? Não é de brincadeira. E as metas? Se não cumprirmos as
metas deles, não podemos renovar nossas licenças. E ai como
fazemos? Porque trabalhar sem autorização é ilegal e podemos ser
multados por isso, não é?”
8
No Brasil, a Política Nacional de Desenvolvimento Sustentável dos Povos e Comunidades Tradicionais
define a partir do Decreto n. 6.040, de fevereiro de 2007, estes grupos como “(...) culturalmente
diferenciados e que se reconhecem como tais, que possuem formas próprias de organização social, que
ocupam e usam territórios e recursos naturais como condição para sua reprodução cultural, social,
religiosa, ancestral e econômica, utilizando conhecimentos, inovações e práticas gerados e transmitidos
pela tradição”.
agentes conservacionistas principalmente quando estes não correspondem, por variados
motivos, às suas expectativas tal como vem sido demonstrado por uma ampla literatura
antropológica sobre o assunto9.
Ao não concordarem com normatizações que definem modos e limites para a
exploração de espaços considerados de relevância ecológica, tais populações, em geral,
criam estratégias atualizadas com seus interesses para lidar com estas contingências. As
avaliações sobre as normas bem como as repostas práticas dadas à atuação de órgãos
estatais que as formulam ou fiscalizam podem variar bastante de acordo com o contexto.
O que temos observado em contextos nacionais marcados por uma tradição política e
administrativa de característica centralizadora e hierarquizada – como no caso de
Portugal e Brasil – é que, historicamente, as normas jurídicas são formuladas em
instâncias aparentemente desconectadas das práticas que constituem os sentimentos
morais das sociedades. Portanto, a distância entre as normas [oficiais] e as práticas
[sociais] pode, em muitas situações concretas, gerar tensões, constrangimentos,
desacordos e conflitos entre grupos sociais estabelecidos e órgãos ligados à
administração da vida pública10.
Neste aspecto, os dois casos apresentados nesta tese têm características que os
aproximam. A publicação anual de uma Portaria Normativa que proíbe a pesca com o
uso de redes na região que compreende a Lagoa Feia tem sido realizada sem qualquer
tipo de consulta aos pescadores de Ponta Grossa dos Fidalgos ou de Quissamã. Por
outro lado, os dispositivos jurídicos que incidem sobre a região estuarina do Sado – a
Reserva Natural e o Regulamento de Pesca – também foram elaborados sem a
participação dos pescadores artesanais locais, de acordo com meus interlocutores
portugueses.
Frases como “o IBAMA está na Lagoa” ou “a DGPA não entende nada de
pescadores artesanais” atestam que meus interlocutores entendem, de algum modo, que
tais órgãos exercem influência sobre suas práticas haliêuticas. Os pescadores podem, em
sua maioria, não conhecer em detalhes as normas ou suas sanções. Mas, sem dúvida,
reconhecem a existência de mecanismos regulatórios. Pude observar tanto no caso
9
Cf: LOBÃO: 2010; FILGUEIRAS: 2008; PRADO 2006, MELLO & VOGEL: 2004; MOTA: 2003.
10
Cf: VIANA: 1974; FAORO: 1975; DA MATTA: 1976, 1985; KANT DE LIMA: 2000, 2005;
CARDOSO DE OLIVEIRA: 2002; LOBÃO: 2010; MOTA: 2004, 2009.
brasileiro quanto no caso português, como pescadores artesanais incorporam, ao seu
modo, tais mecanismos regulatórios em suas práticas profissionais.
Vejamos, portanto, como pescadores dos dois povoados elaboram suas ideias
acerca do [que entendemos como] mundo natural ou do ambiente ao qual estão ligados
pelo ofício. Seus relatos revelam uma sofisticada combinação de elementos capazes de
construir uma weltanschauung que só pode ser compreendida a partir do momento em
que nos afastarmos, ainda que provisoriamente, de nossas ideias mais elementares sobre
natureza, cultura e tempo. Uma descrição detalhada da cosmologia pesqueira pode
indicar em que termos, órgãos estatais, normatizações e mecanismos regulatórios são
percebidos por estes grupos.
11
LÉVI-STRAUSS: 1976.
12
Cf: MELLO & VOGEL: 2004.
sentido, muito diferente do olhar que pescadores podem ter sobre mares, lagoas, ou
qualquer outro biótopo os quais conhecem a partir de sua experiência profissional. Mas,
diferente de um cientista, que usa as categorias de sua própria disciplina para identificar
e definir os elementos que podem, ou não, constituir a biocenose de um lugar, a
etnografia tem mostrado que pescadores artesanais formulam suas noções sobre o meio
ambiente a partir de analogias e associações extremamente complexas que extrapolam
as classificações ecológicas mais correntes.
Outros
Animais
Flora
COMUNIDADE DE VIDA
(AMBIENTE FÍSICO + PRÁTICAS SOCIAIS)
Entidades
Sobrenaturais
Órgãos
Oficiais e
Agentes de Legislações
Fiscalização
Uma metáfora que ouvi muitas vezes durante o trabalho de campo no Brasil e
em Portugal caracteriza a pesca artesanal como um jogo. Desta máxima, derivam outras
associações. A ideia do jogo trás junto a definição de onde [em que lugar] ele é
praticado, quem são os participantes e quais são as regras.
“Só pode participar disto quem sabe! Quem conhece as regras! Digo,
quem conhece a pesca, a lagoa, os peixes e tudo. Quem sabe como é
fazer isto aqui todo dia. Porque hoje em dia, não é como no meu
tempo. Hoje o cara vem até a lagoa e acha que é pescador. Não é não!
Pescador tem que conhecer como as coisas funcionam. Tem que saber
sim!” (Dodô, Ponta Grossa dos Fidalgos).
Este jogo não atualiza a competição apenas entre pescadores. A metáfora aponta
para outras direções e incorpora novos personagens. É comum que os pescadores falem
da relação entre eles e os órgãos estatais estabelecendo a mesma analogia:
As percepções que os grupos humanos têm da vida animal e vegetal tem sido,
novamente, matéria de interesse para a Antropologia nas últimas décadas. Diferente de
abordagens antigas que reproduziam nos modelos nativos a distinção cartesiana entre o
que é humano e o que é animal, novas contribuições têm chamado a atenção para a
complementaridade destes dois domínios. Um bom exemplo disso é coletânea
organizada por Tim Ingold intitulada “O que é um animal?”. Em sua introdução, o
antropólogo assinala que:
A pesquisa empírica entre pescadores revelou que a relação deste grupo com os
animais que compõem sua comunidade de vida é bastante complexa. Um exemplo disso
é que as características que definem os limites entre homem e animal são misturadas de
modo a dar ordem a este mundo. Traços daquilo que é comumente associado ao
comportamento humano indica, por exemplo, como se comportam certos peixes: “O
choco é tímido. Mas é esperto. Gosta de namorar. É como nós”, ou “A traíra é um
peixe tinhoso. Igual a mulher brava! Para pegar, temos que saber lidar com ela!”.
O inverso também ocorre. Quando características dos animais são utilizadas para
qualificar pessoas. “Adoro ameijoas. Adoro ameijoas novinhas. E todo homem tem que
ter suas ameijoas, não é mesmo? Os mariscos aparecem como referencias à mulher ou
aos órgãos genitais femininos. Em Ponta Grossa, quando alguém comenta “Ih! Lá vem
o morobá...” significa que se aproxima um homem considerado chato, ou que a sua
presença “contamina” o ambiente – já que o morobá é um peixe que não tem valor
comercial, é difícil de ser retirado da rede e ao nadar turva a água o que pode dificultar a
captura de outras espécies. O mesmo acontece com o charroco na Carrasqueira. A
espécie é considerada localmente como feia (semelhante a um sapo de grandes
dimensões) e praticamente não tem valor comercial. Observei muitos de meus
interlocutores se tratando por “charrocos” – um modo jocoso desqualificar o outro.
13
INGOLD: 2007, 129. Grifo meu.
agência especial. Acreditam que, assim como eles, os peixes estão constantemente
avaliando as situações e respondendo a estímulos dos mais diversos.
“Deus deu a inteligência para todo mundo. Tudo que habita aqui, pelo
menos eu penso assim, tem inteligência. Digo tudo que é vivo e se
movimenta, lógico! Uma pedra não é inteligente. Mas o peixe é. E
pode fazer da pedra sua casa, ou sua cama, ou esconderijo, ou pode
comer o limo que gruda nela. Todo peixe tem uma característica. Uns
são mais inteligentes outros menos. Mas todos são espertos para fugir
do pescador! O problema é que pescador é inteligente também! Ai,
vira uma disputa, né?” (Luiz, Ponta Grossa dos Fidalgos).
“Tu já pensaste numa coisa, Zé? Eu sou pescador. Pesco desde miúdo
e estes peixes não acabaram. Uma hora tem mais outra hora tem
menos. Mas não acabaram por certo. Todos falam por todos os lados
que os peixes estão a acabar. Enganam-se! Há peixes sim, senhor! O
pescador, por melhor que seja nunca vai pescar todos os peixes do
mundo. Nem todos os pescadores do mundo, caso trabalhassem em
conjunto, também não iam fazer isso. Quando tu vais ao máre e não
trazes nada, naquele dia, o peixe ganhou. Estais a ver? Na verdade,
tanto faz o gajo pescar vinte ou duzentos quilos. Nunca irá pegar
todos. No fim, o peixe sempre vence!”
14
Um estudo de caso de abordagem perspectivista que, entre outros assuntos, discute elaborações
indígenas sobre o mundo social e animal pode ser encontrado em LIMA: 2005.
horas de anzol de bóia. Para pegar sabe quanto? Cinco quilos de traíra.
Sabe quem ganhou naquele dia? Não? Eu sei. O peixe ganhou! Porque
eu sabia que elas tavam lá num canto que eu sempre pesquei. Por que
justamente naquele dia não arrumei nada? Não mudou o vento, não
mudou a água. Nada! Ele [o peixe] foi mais esperto que eu.
Acontece!”
Quanto Custa Ser Pescador Artesanal? “Custa” a transgressão das normas oficiais
de preservação ambiental
15
Conferir os comentários sobre os Jogos de Linguagem de Wittngenstein em TAYLOR: 2000.
tempestades ou ventanias muito fortes. Ao assumir este risco, por qualquer motivo, o
pescador sabe que está mais exposto a incidentes como naufrágio ou afogamento do que
quando pescar em dias considerados mais brandos.
“Às vezes acontece mesmo. Nós todos sabemos que pode acontecer. A
gente faz de tudo para não ser pego. Mas, acontece. O meio ambiente
leva nossas coisas e fica dando sermão na gente. Dizendo que a rede
não pode ser esta, ou que você não pode pescar até o final do defeso.
Eles entendem disso? Entendem nada! Não tem um pescador ou
alguém que saiba andar nesta Lagoa, lá. Por isso, mesmo quando a
turma é pega por aí, passa um tempinho, e volta todo mundo pra
Lagoa de novo” (Pescador pontagrossense).
“Ninguém quer perder! Nem eles nem nós. Eles tentam fazer o deles.
Nós, fazemos nossa parte. Quem for menos habilidoso perde! Os
melhores pescadores, sem dúvida, perdem menos”. (Pescador
carrasqueiro)
“Se o pequeno pescador não der seu próprio jeito, não será o governo
que vai ajudar-nos. Por isso temos que pescar muitas vezes de modo
clandestino, vender à candonga17, porque se não o pescador morre de
fome!” (pescador carrasqueiro).
16
Desde 1956, criada a partir de um Decreto de Lei, a Docapesca é uma empresa do setor empresarial do
Estado português que tem como objetivo a exploração comercial das atividades pesqueiras e portuárias.
Sua atuação se deu primeiro na capital Lisboa e depois, ao longo do tempo, em todo o país. Com o passar
dos anos, a Docapesca ficou responsável por explorar e incrementar o serviço de vendas de pescado em
praticamente toda costa portuguesa. Depois do 25 de Abril de 1974, a empresa teve a incumbência de
construir frigoríficos em entrepostos importantes no país com objetivo de estruturar a comercialização do
pescado. Da mesma década data a construção dos primeiros armazéns de vendas, ainda sobre a sigla SLV,
que significava Serviço de Lotas e Vendagens. Assim, a Docapesca adquiriu a exclusividade na prestação
de serviços da primeira venda – ou seja, a venda do peixe fresco recém-chegado dos mares ou rios – e a
exerce organizando um sistema de leilão. Os leilões são realizados nas Lotas, que são edificações
semelhantes a armazéns onde se encontram os funcionários da Docapesca, que organizam a atividade, os
pescadores e os compradores previamente cadastrados. Ao deixarem o pescado nas Lotas, além de
receberem os ganhos pela venda em leilão, os pescadores formalizam e quantificam sua produção para o
Estado. Isto tem implicações diretas com a renovação ou não das matrículas de mariscador bem como a
dos barcos de pesca local. Para ter o direito de exercer a profissão de mariscador, cada indivíduo tem que
vender na Lota, por ano, 2.000,00 euros em valor bruto. Para renovar a matrícula do barco, o proprietário
tem deixar em Lota, por ano, 6.000,00 euros em peixe. Com matrícula da embarcação em dia, o pescador
também pode solicitar ao Estado subsídios para a compra de óleo diesel, aquisição de novos motores,
incrementos nos barcos e outros materiais. Até o mês de janeiro de 2011, os descontos para os seguros
sociais, como a aposentadoria [reforma], por exemplo, eram feitos exclusivamente através da Lota. Eram,
assim, subtraídos 10% do valor bruto das vendas. Desde então, os pagamentos são feitos autonomamente,
por pescador independente da produção, com referência ao valor do salário mínimo português. Em Lota,
há mais descontos. A taxa de serviço para o uso do estabelecimento é de 4% para barcos com motor a
óleo diesel e 2% para barcos com motor à gasolina. Ambos taxados sobre os valores brutos das vendas. O
desconto para aqueles que são ligados à Associação é de 1%, valor que a Docapesca repassa para a conta
do grêmio16. Os compradores cadastrados para participarem dos leilões em Lota também são taxados em
9% no valor da compra.
17
Candonga é uma expressão da língua Kimbudu. Assim como ocorre em Angola, em Portugal ela
identifica negociações que são consideradas, por grande parte da sociedade nacional, clandestinas,
informais ou mesmo ilegais em alguma medida. Tal modalidade é encontrada em muitas regiões do país e
define distintas relações comerciais. Os bens trocados nestas relações são variados: ingressos para jogos
de futebol vendidos fora das bilheterias, entradas para concertos musicais vendidos fora das casas onde se
realizam ou bebidas e iguarias vendidas nas ruas depois do encerramento do comércio etc.
Já no caso brasileiro, tal como analisado em Ponta Grossa dos Fidalgos, a
fiscalização ambiental é bem menos ostensiva quando comparada ao que ocorre em
Portugal. Em períodos de proibição legal das atividades de captura, meus interlocutores
esforçam-se para evitar um possível encontro com os agentes. Julgam, na maioria dos
casos, que não estão fazendo nada de errado. Esta autoridade, segundo eles, é conferida
pelos anos de experiência dedicados à pesca. O IBAMA é percebido como uma entidade
onipresente que pode aparecer a qualquer momento e por isso os pescadores que fazem
a opção por não parar suas atividades assumem o risco de serem pegos. Na prática,
como descrito na Proa, os pescadores pontagrossenses tem manipulado com habilidade
as normatizações formuladas pelo IBAMA. Atualizam, em seus próprios termos e de
acordo com seus interesses, os calendários de pesca ao mesmo em tempo que
incorporam o órgão na comunidade de vida da qual fazem parte como sujeitos ativos.
18
LEIRIS: 2001.
19
LEIRIS; 2001:13.
chama a atenção para sacrifício como risco imediato para a vida do oficiante, ou seja,
para o toureiro.
Ainda há outro enfrentamento. Este também evidencia a luta pela vida. Ou, pelo
menos a disputa versa sobre o modo de vida. De um lado, pescadores artesanais.
Homens e mulheres que tiveram seus corpos e seus espíritos esculpidos pelos anos
dedicados aos trabalhos haliêuticos. Que acessam o mundo através das expertises
conferidas pelo ofício. Que povoam o lugar que vivem e sobrevivem de um conteúdo
acessível somente aos indivíduos marcados pelas mesmas experiências sensíveis. Por
isso mesmo são capazes de produzir, coletivamente, direitos ou sentimentos morais que
revelam tanto suas coerências quanto suas ambiguidades.
Do outro lado os agentes de fiscalização ambiental. Seja quem sejam. São, como
pescadores, indivíduos esculpidos por suas próprias experiências. Não encarnam
normas, simplesmente. Porque normas podem ser seguidas ou não. Os agentes são
agentes. Interpretam, reinterpretam, reproduzem, elaboram e, às vezes, esquecem as
normas. São, nesta perspectiva, como peixes e pescadores. Mais do que normas, estes
homens trazem para o encontro o modo. O modo de vida. Não são normas e sim modo
de vida que encarnam. Certamente outro que não o dos pescadores. E é isto que está em
jogo. Pescadores estão, para eles, como o peixe está para o pescador. O objetivo do
embate não é a morte física do outro. Mas, nem por isso, seu resultado é mais sutil:
desejam impor-se e sobrepor-se.
LEIRIS, Michel. Espelho da Tauromaquia. São Paulo: Cosac & Naify, 2001.
LÉVI-STRAUSS, Claude. Raça e História. In: Antropologia Estrutural II. Rio de Janeiro:
Tempo Brasileiro, 1976.
LIMA, Tânia Stolze. Um Peixe Olhou pra Mim. Reflexões sobre o perspectivismo em
uma cosmologia Tupi. São Paulo/Rio de Janeiro: ISA/Editora Unesp/NuTI, 2005.
MELLO, Marco Antônio da Silva & VOGEL, Arno. Gente das Areias: Sociedade,
História e Meio Ambiente no Estado do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: EdUFF,
2004.
MOTA, Fábio Reis. Cidadão em Toda Parte ou Cidadãos à Parte? Demandas de
direitos e reconhecimento no Brasil e na França. Tese de doutorado apresentada
ao Programa de Pós-Graduação em Antropologia da Universidade Federal
Fluminense (PPGA-UFF). Niterói. 2009. (O trabalho em sua versão integral
encontra-se disponível para consulta na biblioteca do Instituto de Ciências
Humanas e Filosofia da Universidade Federal Fluminense/ICHF/UFF).
________. Nem muito mar, nem muita terra. Nem tanto negro, nem tanto branco: uma
discussão sobre o processo de construção da identidade da comunidade
remanescente de quilombos na Ilha da Marambaia/RJ. Dissertação de mestrado
apresentada ao Programa de Pós Graduação em Antropologia e Ciência Política
da Universidade Federal Fluminense. Niterói. 2003. 164p. (O trabalho em sua
versão integral encontra-se disponível para consulta na biblioteca do Instituto de
Ciências Humanas e Filosofia da Universidade Federal Fluminense/ICHF/UFF).
PRADO, Simone Moutinho. Da Anchova ao Salário Mínimo. Uma etnografia sobre
injunções de mudança social em Arraial do Cabo. Niterói: Eduff, 2002.