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DESENVOLVIMENTO
E MEIO AMBIENTE
RESUMO A Reserva Extrativista Marinha do Pirajubaé (RESEX) situa-se na zona urbana de Florianópolis, capital do
estado de Santa Catarina – Brasil, e tem no bivalve conhecido como berbigão (Anomalocardia brasiliana) o
seu principal recurso pesqueiro. Por meio de 100 acompanhamentos diários da atividade extrativista realizados
em 2005, este trabalho descreve a estrutura e a dinâmica da pesca do berbigão, apresentando o histórico de
seu manejo. A captura foi realizada com a draga de mão, conhecida como “gancho”, por 22 homens e quatro
mulheres, predominantemente no período matutino e sob lâminas d’água entre 20 e 50 cm. Em média, cada
extrativista varreu 469,2 m2 e capturou 270,5 kg de berbigões vivos por dia de pesca, totalizando 888,6 t produ-
zidas na RESEX em 2005. Mais de 97% dos indivíduos capturados superaram o tamanho mínimo legalmente
estabelecido (20 mm de comprimento). Entretanto reduções expressivas nos comprimentos e na abundância do
recurso ocorreram ao longo do tempo. A maior parte da captura foi comercializada com poucos compradores e
na forma cozida e “desconchada”. As medidas de manejo atuais incluem limitações no número de extrativistas
e no número de dias e horários de pesca/semana, distância mínima entre as barras de ferro do gancho, tamanho
mínimo de captura, rotação espaço-temporal das áreas de pesca e o informe estatístico da produção. Apesar
do grande volume de conhecimento científico e tradicional acumulado na área, e das medidas de manejo em
vigor, construídas participativamente, a sustentabilidade da explotação do berbigão e da RESEX como um
todo é constantemente ameaçada por fortes pressões de ordem administrativa, social, econômica, ambiental
e burocrática. Neutralizar essas ameaças representa um dos principais desafios a serem enfrentados nessa
importante unidade de conservação federal do Sul do Brasil.
Palavras-chave: dinâmica pesqueira; socioeconomia; pesca artesanal; Anomalocardia brasiliana; RESEX.
ABSTRACT The Marine Extractive Reserve of Pirajubaé (MER) is located in the urban area of Florianópolis city (capital
of Santa Catarina State, Southern Brazil), and has the bivalve known as “berbigão” (Anomalocardia brasi-
liana) as its main fishing resource. Based on 100 daily surveys carried out during 2005, this paper describes
170 PEZZUTO, P. R.; SOUZA, D. S. e. A pesca e o manejo do berbigão (Anomalocardia brasiliana) (Bivalvia: Veneridae) ...
Echternacht, 1999; Souza, 2003; Nandi, 2005; Schiavo, pluvial de origem antrópica existentes ao longo de suas
2010), fisiologia alimentar (Resgalla & Piovezan, 2009), margens (Schettini et al., 2000).
fecundação, assentamento e produção de sementes em
laboratório (Righetti, 2006), contaminação por metais
pesados (Silveira, 2007), caracterização da pescaria e
dinâmica de biomassa do recurso (Pezzuto et al., 2002;
Souza, 2007), avaliação da eficiência e seletividade do
gancho (petrecho usado na captura do berbigão) (Pezzuto
et al., 2010), influência de variáveis abióticas sobre o
recrutamento (Dal Pozzo, 2010), relação da espécie com
o sedimento e estrutura metapopulacional dos vários
bancos desse molusco existentes nas baías Norte e Sul
da Grande Florianópolis (Rosso, 2012).
Desenvolvido no escopo do mesmo programa de
monitoramento ambiental, o presente trabalho descreve a
estrutura e a dinâmica da pesca do berbigão na RESEX do
FIGURA 1 – Localização da Reserva Extrativista Marinha do
Pirajubaé e sintetiza as principais estratégias de manejo
Pirajubaé, Florianópolis, Santa Catarina, Brasil.
da pescaria implementadas desde sua criação. Os resul-
tados são confrontados com os cenários observados em
outras áreas do litoral brasileiro, onde o recurso também Antes do início dos trabalhos, em dezembro de
é explotado, e com as principais pressões enfrentadas por 2004, os objetivos e a metodologia a serem emprega-
essa unidade de conservação federal, situada em plena dos no estudo foram apresentados e discutidos com os
zona urbana da capital do estado de Santa Catarina. extrativistas durante reunião convocada pela chefia da
RESEX do Pirajubaé, para obtenção do consentimento
esclarecido dos participantes. Extrativistas que não esti-
2. Metodologia veram presentes à reunião foram previamente abordados
no campo com o mesmo objetivo. Todos os extrativistas
A RESEX do Pirajubaé está localizada no lado abordados consentiram com a realização do trabalho.
interno da Ilha de Santa Catarina (27o22’ – 27o50’S e Os dados foram obtidos entre 15 de março e 20 de
48o25’ – 48o35’W), na margem leste da Baía Sul (Fi- novembro de 2005, totalizando 100 dias de trabalhos de
gura 1). Dos 1.444 ha pertencentes à unidade, cerca campo, determinados ao acaso. Em cada dia foi efetuado
de 240 ha se referem a uma extensa planície de maré o acompanhamento da pescaria do berbigão com um ex-
onde se desenvolve a captura do berbigão (Pezzuto & trativista, quantificado o número de pescadores atuantes
Echternacht, 1999). Ela é localmente subdividida em e obtidos dados ambientais.
dois setores adjacentes denominados Baixio Principal Todas as amostragens tiveram início no período
(ou Banco A) e Praia da Base (ou Banco B) (Figura 1), matutino. Nos dias em que não houve pesca (sobretudo
cujos sedimentos possuem, respectivamente, percentuais por questões climáticas desfavoráveis), as observações
médios de areia de 78% e 88% e diâmetros médios de se mantiveram até o final da manhã, sendo a ausência de
1,95 e 2,45 fi (Rosso, 2012). A área é influenciada pelo pescadores devidamente registrada na planilha de campo.
aporte do rio Tavares, que deságua na margem sudeste Quando houve atividade de pesca, as observações se
do Baixio Principal, após drenar parte do manguezal de estenderam até que o último extrativista deixasse o local.
mesmo nome. Além disso, a RESEX é cercada por regi- O acompanhamento detalhado da pescaria foi realizado
ões urbanizadas, recebendo também aporte de água doce, com apenas um extrativista por dia, de acordo com o
nutrientes e sedimentos de diversos pontos de drenagem seguinte protocolo:
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espécies pelágicas ou se ocuparam de outras atividades
não relacionadas ao mar ao longo do ano e, nos meses
quentes, dedicaram-se à extração do berbigão em função
do aumento na demanda do produto e como forma de
complemento de renda.
TABELA 1 – Dimensões e tempo de uso dos ganchos utilizados pelos extrativistas da Reserva Extrativista Marinha do Pirajubaé (Florianópolis/
SC), entre 15 de março e 19 de novembro de 2005.
O deslocamento entre os ranchos de pesca e os rasos. No total, 20 bateiras foram observadas na pescaria,
bancos de berbigão foi comumente efetuado por meio sendo dez equipadas com motores de combustão de 4HP.
do uso de embarcações denominadas “bateiras” (Figura As demais utilizavam vela ou verga (bambu com cerca
3), construídas artesanalmente por pessoas da comuni- de 2-3 m de comprimento, utilizado para impulsionar a
dade ou pelos próprios extrativistas. São embarcações embarcação no fundo da baía).
de pequeno porte (cerca de 4 m de comprimento total), O número de pescadores por bateira foi reduzido
fabricadas em madeira, apreciadas pela resistência e fácil (entre uma e duas pessoas), consequência provável do
manutenção, e caracterizadas por possuírem fundo chato, seu pequeno porte e da expressiva quantidade de berbi-
favorecendo a flutuabilidade e a navegação em ambientes gão transportada diariamente. Além das bateiras, 26%
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dos pescadores também utilizaram embarcações de maior além de otimizar o rendimento diário dos extrativistas, o
porte denominadas “botes” (Figura 3). Esta embarcação uso dos botes contribuiu para reduzir os naufrágios das
apresenta maior estabilidade em mares revoltos, em bateiras em condições adversas de mar. Cabe destacar
função de não possuir fundo chato, de ser equipada com que a prática de “pegar carona” (ser rebocado) com os
motores de no mínimo 11HP, e de apresentar maiores botes para ir ou voltar da RESEX foi comum entre os
dimensões (5 a 6 m de comprimento total). Sua aplicação pescadores, principalmente: a) quando a pescaria ocorria
foi distinta das bateiras. Em função da dificuldade de em áreas mais distantes dos ranchos (como na Praia da
ingressar nas áreas rasas sobre os baixios, os botes foram Base), e/ou b) quando o mar se tornava revolto, difi-
utilizados exclusivamente para auxiliar no reboque das cultando a navegação e o retorno para terra firme. Essa
bateiras e/ou no transporte da captura desde os bancos de prática quase sempre ocorreu entre amigos, parentes ou
berbigão até os ranchos de pesca. Pôde-se observar que, parceiros comerciais.
FIGURA 3 – Embarcações utilizadas pelos extrativistas da Reserva Extrativista Marinha do Pirajubaé. Acima, bateiras movidas à vela (esq.)
e verga (dir.). Abaixo, bote rebocando bateiras (esq.) e bateira movida a motor (dir.). Fotos: Daniel Silva e Souza.
TABELA 2 – Estimativas de esforço de pesca e captura na explotação do berbigão Anomalocardia brasiliana na RESEX do Pirajubaé (Flo-
rianópolis/SC) durante o ano 2005. Os pesos se referem a peso úmido de berbigão com concha. * Valores de captura anual não
são médias, mas valores totais.
A pescaria foi realizada em distintas fases, como centração de bivalves no local e identificar a melhor
descrito a seguir: direção para realizar os arrastos.
a. seleção do local de pesca: tem por objetivo avaliar b. arrasto: constitui a fase de explotação propria-
a abundância do recurso em determinados locais da mente dita e caracteriza-se pela realização do ar-
RESEX, de modo a decidir onde investir o esforço de rasto horizontal do gancho por meio do sedimen-
pesca. É executada na chegada ao baixio e ao longo to, denominada pelos pescadores de “ganchada”.
do dia de pesca. Consiste na obtenção de amostras O fim de cada arrasto é determinado pelo próprio
de sedimento (com as mãos) ou na realização de um pescador em função do volume de material cap-
arrasto de curta duração que permita avaliar a con- turado. Duas formas básicas de arrastos foram
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identificadas: i) arrastos em zigue-zague: tipo mensões superiores ao gradeamento permanecem no
mais frequente, consiste na realização de arrastos interior do gancho. Esse processo é realizado durante
ortogonais às laterais das bateiras. Nestes, o pescador e ao final das ganchadas, e sua frequência depende
inicia a operação num bordo da embarcação, puxa o do volume de material acumulado e do nível de água
gancho em linha reta até determinada distância e retor- presente no baixio. Quando a profundidade é inferior
na paralelamente à ganchada anterior. Essa operação a 10 cm, a lavagem é efetuada jogando-se água sobre
é repetida de maneira sequencial formando, ao final, o gancho com o auxílio de cuias, enquanto o gancho
uma área dragada com formato aproximadamente é movimentado verticalmente pelo pescador.
retangular (Figura 4). Esse tipo de arrasto garante o
d. acondicionamento da captura: consiste em armaze-
aproveitamento total do terreno selecionado para a ex-
nar o berbigão obtido em cada arrasto para seu poste-
tração; ii) arrastos aleatórios: é praticado por poucos
rior transporte à terra firme. Essa fase é executada ao
pescadores. Nele o extrativista utiliza os pés descalços
final de cada ganchada e após a lavagem, e varia de
para “sentir” a abundância do recurso no sedimento
pelo tato e selecionar o trajeto do arrasto. Esse tipo acordo com o nível da maré. Quando a lâmina d’água
de arrasto tem início em um bordo da embarcação, tem entre 20 e 50 cm (considerada uma condição
porém seu trajeto não possui um padrão definido favorável de maré), o acondicionamento é efetuado
(lembrando um traçado aleatório), uma vez que o diretamente nas bateiras (Figura 3). Por outro lado,
pescador direciona o equipamento de modo a seguir quando a profundidade é inferior a 20 cm (considera-
as maiores concentrações do recurso no ambiente. da uma condição desfavorável), engradados plásticos
(popularmente conhecidos como “ralos”) e sacos de
estopa são utilizados para auxiliar no acondiciona-
mento dos berbigões capturados. Isso ocorre pois,
nessa situação, as bateiras permanecem encalhadas,
não podendo ser deslocadas para as proximidades da
área de finalização dos lances. Assim, os ralos são
colocados a uma determinada distância das embarca-
ções (Figura 4), e os pescadores executam os arrastos
entre os dois pontos, ora despejando a captura na
bateira, ora nos engradados plásticos. Esse sistema
implica interromper os arrastos em zigue-zague sem-
pre ao final de cada linha reta. O material capturado a
cada duas ou três ganchadas é transferido para sacos
de estopa, que são recolhidos quando condições
favoráveis de maré se restabelecem.
FIGURA 4 – Marcas típicas das ganchadas em “zigue-zague”
realizadas na Reserva Extrativista Marinha do Pirajubaé. Notar o
“ralo”, engradado plástico utilizado para acondicionar a captura 3.3. Esforço, captura e composição de tamanhos
durante períodos de maré excepcionalmente baixa, como na foto.
Foto: Daniel Silva e Souza.
Em um dia de pesca, o esforço médio individual
c. lavagem do gancho: etapa destinada a selecionar a atingiu 12 ganchadas, correspondentes a uma área
captura retida, ocorre mediante movimentos pendu- varrida total de aproximadamente 469,2 m2. A captura
lares do gancho efetuados com o aparelho total ou média por indivíduo chegou a 24,5 kg/ganchada e 270,5
parcialmente submerso. Por meio da lavagem, apenas kg/dia de pesca (Tabela 2). A partir desses valores e do
os berbigões, cascalhos e outros organismos com di- conhecimento do número médio de pescadores atuando
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caso da comercialização do produto descascado, são
6 ainda realizadas as seguintes etapas:
4
b. cozimento: geralmente efetuado em fogões à lenha,
2 pelo próprio pescador.
0
0 2 4 6 8 10 12 14 16 18 20 22 24 26 28 30 32 34 36 38 40 42 44 46 c. “descasque”: separação manual da carne, executada
Comprimento da concha (mm) em mesas montadas nos ranchos ou no quintal das
casas dos pescadores. É executado por quatro a cinco
FIGURA 5 – Distribuição de frequência relativa do comprimento da
concha (em mm) dos berbigões capturados comercialmente na RESEX pessoas, na maioria mulheres, que podem ou não ser
do Pirajubaé entre julho de 1989 e junho de 1994 (adaptado de Tremel, aparentadas do pescador. São geralmente contratadas,
2001) e entre março e novembro de 2005 (presente trabalho). recebendo por quilograma de berbigão descascado.
d. armazenamento da carne em sacos plásticos e poste-
rior congelamento em freezers, até a comercialização.
3.4. Características econômicas da pescaria: e. comercialização: a venda do produto in natura foi
beneficiamento e comercialização a menos frequente, sendo destinada a empresas que
comercializavam o berbigão com outros municípios
Praticamente toda a produção teve como objetivo e estados. Apenas um pescador vendeu o berbigão in
a comercialização. De maneira esporádica, mulheres e natura diretamente para consumidores finais residen-
crianças foram observadas retirando berbigões com as tes em Florianópolis. Nesse caso específico, a venda
mãos para consumo próprio. Na maioria, eram pessoas foi realizada sempre por encomenda, e a frequência
provenientes de localidades próximas, sem permissão de idas do pescador à RESEX (nunca superior a uma
para captura, que ingressavam na RESEX sozinhas ou ou duas vezes por semana) foi determinada pelas
acompanhadas dos pescadores que utilizavam ganchos. quantidades previamente negociadas. No caso da
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comercialização do produto para empresas, apenas que praticamente toda a sua captura seria negociada ao
moluscos frescos (capturados no mesmo dia da final da pescaria. O preço pago pelo quilo da carne do
comercialização) e com comprimentos de concha berbigão variou entre R$ 5,00 e R$ 6,00.
superiores a 28-30 mm eram aceitos pelo comprador. A negociação do berbigão descascado com a pessoa
Sua negociação era efetuada mediante encomendas física também foi realizada por meio de encomendas
esporádicas, direcionadas a um grupo fechado de semanais e da efetivação do pagamento mediante entrega
cinco extrativistas, e que também se dedicavam à do produto, embora em alguns casos tenha-se verificado
comercialização do produto descascado. A comer- o adiantamento do pagamento (facilidade reservada
cialização in natura apresenta algumas vantagens apenas para alguns fornecedores mais antigos). Contudo,
como a simplificação do processamento, a melhor por se tratar de um comércio local, os preços praticados
qualidade do produto, que era capturado no mesmo foram sempre inferiores àqueles obtidos nas negociações
dia da comercialização, e a maior possibilidade de com a empresa, variando entre R$ 3,50 e R$ 5,50.
fiscalização do tamanho mínimo de captura. Entre- Independente do comprador (empresa ou pessoa
tanto existiam alguns entraves que impediam o maior física), o valor pago pelo produto descascado, a quan-
desenvolvimento dessa forma de comercialização, tidade negociada e a frequência das encomendadas
como a dificuldade encontrada pelas empresas com- acompanharam as leis de mercado, sofrendo variações
pradoras em adquirir licenças dos órgãos competen- temporais. A maior demanda pelo berbigão e os melhores
tes para a comercialização do produto in natura; e, preços ocorreram na primavera e no verão. No inverno,
principalmente, a reduzida abundância de organismos além de ter menores preços, a negociação do produto
maiores que 28-30 mm. pela pessoa física também passou a ser realizada com
apenas três ou quatro fornecedores.
A comercialização do produto descascado cons-
A existência de compradores preferenciais para o
tituiu a categoria mais frequente, tendo sido praticada
produto de determinados extrativistas estabeleceu uma
por mais de 90% dos extrativistas. Praticamente toda
dinâmica própria de negociação no interior da RESEX:
a produção foi negociada com apenas dois comprado-
pescadores impossibilitados de comercializar suas cap-
res: uma empresa de pesca da região, que comprava o
turas com a empresa procediam de duas formas distintas:
produto para beneficiá-lo e vendê-lo principalmente
i) vendiam suas capturas diretamente para a pessoa
em São Paulo; e uma pessoa física, que comprava o
física; ou ii) vendiam suas capturas para os extrativistas
produto para revendê-lo em peixarias de Florianópolis,
autorizados a comercializar com a empresa, que, nesse
que eram de sua propriedade. Diferentemente do pro-
caso, operavam como atravessadores. O procedimento
duto in natura, os berbigões descascados apresentaram
adotado por cada pescador dependia basicamente do
dimensões variáveis e podiam permanecer estocados
preço estabelecido para o produto por cada um dos
em freezers por várias semanas até a comercialização.
compradores, ao longo do ano. Nas ocasiões em que o
Durante o período de estudo, a empresa de pesca foi
volume encomendado a um único pescador era elevado
responsável pela compra de quase todo o berbigão
(superior a 200 kg de carne nos meses de maior de-
descascado proveniente da RESEX. A negociação foi
manda), inviabilizando a sua captura no intervalo entre
realizada por meio de encomendas semanais, efetuadas
visitas sucessivas da empresa, ocorria a subcontratação
diretamente na comunidade, com um grupo fechado de
de outros pescadores para o cumprimento dos compro-
seis pescadores. O recolhimento do produto foi efetuado
missos comerciais.
semanalmente mediante o envio de um caminhão que,
Da mesma forma, em função da cota individual
na mesma ocasião, procedia ao pagamento das capturas
máxima de captura diária estabelecida pela instrução
recolhidas na última visita. Na oportunidade, fazia-se a
normativa em vigor na época do estudo (Tabela 3),
nova encomenda, mantendo um ciclo contínuo ao longo
verificou-se um pequeno mercado interno de compra e
do ano, de modo que os pescadores tinham a certeza
venda do excedente da produção, principalmente, nos
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TABELA 3 – Principais elementos do manejo da pesca do berbigão Anomalocardia brasiliana na RESEX do Pirajubaé, presentes nas suas
diferentes fases e/ou atos normativos.
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para a captura da espécie, como a “redinha” ou “puçá” lâmina d’água ocorrendo, predominantemente, durante
em Mangue Seco, Pernambuco (Brandão et al., 2010), as marés baixas de sizígia (Martins & Souto, 2006; Dias
o “carrinho” na Paraíba (Nishida et al., 2006), ou dragas et al., 2007; Freitas et al., 2012). Tal fato, provavelmen-
de arrasto relativamente parecidas aos ganchos, usadas te, apresenta relação direta com o método de catação
na Tapera, em Florianópolis, Santa Catarina (Gaspar et manual, o qual demanda níveis de água muito reduzi-
al., 2011). dos ou exposição aérea total do substrato. De maneira
Embora não se disponha de testes comparativos contrária, o gancho e outros aparelhos de arrasto, como
específicos realizados no país, a literatura sugere que os utilizados na Tapera (Gaspar et al., 2011), aumen-
nenhuma dessas formas de captura apresenta poder tam a autonomia do pescador, possibilitando seu uso
de pesca similar ao dos ganchos. Na explotação de em condições mais variadas de maré. Segundo Tremel
Cerastoderma edule em Portugal, Gaspar et al. (2003) (2001), antes da introdução do gancho em Florianópolis,
compararam os rendimentos obtidos com a “draga de a captura do berbigão também era efetuada por catação
mão” (aparelho similar ao gancho) e com a “faca de manual e apenas durante as marés baixas, quando o
mariscar”, uma espécie de espátula utilizada para cavar baixio permanecia emerso. Os resultados do presente
o sedimento e depositá-lo em um saco de malha onde os estudo mostram que, atualmente, as capturas ocorrem
bivalves são selecionados. Os autores concluíram que a em lâminas d’água entre um e 79 cm de altura, embora
draga apresenta um rendimento cinco vezes superior à haja evidente preferência por profundidades entre 20 e
faca, permitindo a explotação de uma área significativa- 50 cm. Apesar da maior flexibilidade de uso em distintas
mente maior na mesma unidade de tempo. Tremel (2001) condições ambientais, o peso e a rudeza do equipamen-
reporta que, antes da introdução do gancho na região hoje to, a postura inapropriada do corpo e o preparo físico
compreendida pela RESEX, o preenchimento de uma lata necessário para operação do gancho tendem a limitar
de 18 litros com berbigões demandava mais de uma hora a participação de mulheres na atividade e também o
de catação manual. Com o novo equipamento, a mesma número de dias de pesca por semana, além de provocar,
quantidade era atingida em poucos minutos, explicando a médio e longo prazo, severos problemas na coluna dos
a opção pelo emprego do aparelho na captura comercial extrativistas (Ribas, 2014).
da espécie. Embora os rendimentos na pesca possam ser Os ganchos aqui analisados apresentaram dimen-
influenciados não apenas pela eficiência do petrecho, sões maiores do que as evidenciadas no início da pescaria
mas também pela abundância natural do recurso e por na RESEX (Tremel, 2001). Ao comparar os rendimentos
questões ligadas ao processamento e à comercialização, obtidos por homens e mulheres utilizando ganchos de
os rendimentos registrados por outros autores, (p.ex. 3,2 diferentes volumes internos, Souza (2007) concluiu,
kg de carne/pescador.dia na catação manual efetuada contudo, que ganchos maiores não necessariamente
na Reserva de Desenvolvimento Sustentável Ponta do implicam maiores capturas por ganchada, sugerindo que
Tubarão, Rio Grande do Norte (Dias et al., 2007) e 210 o aumento das dimensões do aparelho não produz resul-
kg in natura/pescador.dia com o uso da draga empregada tados eficazes em termos de incremento nos rendimentos
na Tapera (Gaspar et al., 2011), não alcançam aqueles individuais da pesca. Por outro lado, o espaçamento
obtidos com o gancho na RESEX, com média de 270 kg médio do gradeamento também se alterou ao longo dos
in natura/pescador.dia. Contribuem para isso a grande anos, variando de 8 mm, quando da introdução do equi-
abundância do recurso na RESEX (Rosso, 2012) e a pamento na região, para 13 e 15 mm, entre 1989 e 1996,
elevada eficiência do aparelho que é capaz de remover e retornando aos 13 mm após 2004, devido às limitações
do sedimento e reter, em uma única passagem sobre o impostas pelas medidas de ordenamento vigentes a par-
substrato, 69% dos indivíduos com tamanhos superiores tir de então (Tabela 3). Apesar do espaçamento médio
ao mínimo legal (Pezzuto et al., 2010). constatado em 2005 ter sido ligeiramente inferior ao
Vários trabalhos também ressaltam que a captura previsto na legislação (12,4 mm), isso não prejudicou a
do berbigão no litoral brasileiro é limitada pela altura da seletividade da pescaria, visto que praticamente todos os
184 PEZZUTO, P. R.; SOUZA, D. S. e. A pesca e o manejo do berbigão (Anomalocardia brasiliana) (Bivalvia: Veneridae) ...
família ou por pessoas aparentadas, não sendo observada, 185,4 t. Após esse período, o monitoramento estatístico
contudo, partilha das capturas diárias entre a tripulação, de produção foi interrompido, praticamente coincidindo
mesmo entre pais e filhos. Isso talvez por causa de uma com o período de desestruturação da reserva ocasionada
característica intrínseca da pescaria, a individualidade. pelas obras de construção da Via Expressa Sul. Entretan-
Quando dois pescadores vão fazer um cerco, por exem- to, com base em informações disponibilizadas por Carmo
plo, as capturas advindas de tal atividade são fruto do et al. (2002) e pelo presente estudo, estima-se que as
trabalho em equipe (Diegues, 2004). Entretanto, quando capturas de berbigão teriam aumentado para 1088,6 t em
dois pescadores vão pescar berbigão, cada um usa “o seu 2001 e atingido 888,6 t em 2005 (Tabela 2), a despeito
gancho” e captura “o seu pescado”. Embora a atividade da grande redução da área de extração ocasionada pela
ainda tenha sido realizada por grupos familiares, em dragagem de parte do Baixio Principal durante as obras
muitos casos foi observada a contratação, por parte dos (Pezzuto & Echternacht, 1999). Além disso, enquanto na
pescadores, de mão de obra adicional para a captura do época de fundação da reserva a explotação comercial do
recurso, cozimento e descasque, especialmente quando a berbigão era realizada por somente 15 pescadores ao lon-
demanda pelo produto foi elevada. Tal fato acarretou um go de dois dias por semana e respeitando quotas diárias
aumento na divisão de trabalho e o surgimento da ocupa- de captura, em 2005 foram identificados 26 extrativistas
ção de descascador de berbigão, antes inexistente, e que em atividade, número praticamente igual ao número de
hoje motiva, dentro da própria RESEX, debates quanto ao licenças previstas na norma em vigor, que também não
seu reconhecimento ou não como uma categoria adicional limita a captura diária individual e ainda possibilita as
de extrativista (Ribas, 2014). operações de pesca durante quatro dias da semana. As
A comercialização preferencial do berbigão na consequências da desestruturação do sistema de manejo
forma desconchada e o emprego de terceiros para o des- adotado nos anos iniciais da reserva e do incremento do
casque, conforme relatado no presente estudo, continuam esforço de pesca e das capturas podem ser constatadas
ocorrendo nos dias atuais (Ribas, 2014), sendo que o não apenas nos depoimentos coletados recentemente por
produto ainda vem mostrando uma gradativa valorização Ribas (2014), que demonstram a percepção dos pesca-
ao longo do tempo. Em 2012, segundo os extrativistas, dores quanto à queda na abundância do estoque, como
o preço médio do berbigão desconchado atingia R$ também na extrema redução dos tamanhos dos organis-
12,00 o quilo. Já os preços apurados em 2005, quando mos capturados em 1989-1994 e em 2005 (Figura 5). A
corrigidos para o mesmo ano-base de 2012 por meio do situação de crise no estoque e na pescaria do berbigão foi
Índice de Preços ao Produtor Amplo (IPA) da Fundação comprovada por Pezzuto (2012), que evidenciou, após
Getúlio Vargas, corresponderiam a valores entre R$ 5,46 15 anos de monitoramento biológico-populacional do
e R$ 9,36, indicando uma apreciação real do produto recurso na RESEX, quedas expressivas e contínuas de
entre 128 e 220% no período. Esse fato é confirmado biomassa nos dois baixios, comparáveis àquelas obser-
pelo depoimento de um dos extrativistas que iniciou vadas no auge da fase de impacto direto da obra da Via
as atividades na RESEX em 2003 (Ribas, 2014, p. 31 Expressa Sul sobre o recurso.
e 32): “Logo o berbigão subiu o preço, mas começou a Antes da obra, todo o berbigão explotado na
diminuir a quantidade. Por quê? Porque começou a dar RESEX era escoado por meio de uma microempresa
dinheiro. [...]. Então caiu muito a produção lá dentro da de propriedade do então presidente da AREMAPI
reserva, caiu bastante a produção do berbigão e subiu (Associação dos Extrativistas da Reserva Extrativista
o preço. Eu digo pra eles: a nossa sorte é que o preço Marinha do Pirajubaé), que revendia o produto também
recompensa, equilibra. Quer dizer, equilibra o nosso para uma única empresa, que, por sua vez, o exportava
lado – mas não da reserva“. preferencialmente para São Paulo (Tremel, 2001). Exis-
Dados estatísticos oficiais compilados por Souza tiam, portanto, três atores principais na reserva: (a) uma
(2007) revelam que, entre 1989 e 1998, as capturas anu- empresa compradora da produção oriunda da reserva;
ais do recurso na área da RESEX variaram entre 70,2 e (b) um extrativista habilitado a comercializar o berbigão
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