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SER HUMANO É SER NA LINGUAGEM


[AULA INAUGURAL DO CURSO DE LETRAS DA UNIVERSIDADE DE BRASILIA, PROFERIDA EM 19 DE SETEMBRO DE 2023

Marcos Bagno

Agradecimentos
Quero agradecer o convite que me foi feito pelas colegas da diretoria do Instituto de
Letras, as professoras Sandra Rocha e Gladys Quevedo, para falar aqui hoje. Estou de
licença este ano, num projeto de pós-doutorado, mas interrompi com alegria as atividades
do projeto para vir falar com vocês.

Em especial, quero agradecer ao meu pai, Alaor Bagno, que está aqui sentadinho na
primeira fila e fez questão de vir me ouvir falar. Muito do que sou hoje devo a ele, ao
exemplo dele — não só a formação intelectual, que ele sempre incentivou, mas
principalmente a formação ética e política que deu a mim e às minhas irmãs e meus
irmãos. Meu pai nunca abriu mão de suas convicções políticas e ideológicas, sofreu
perseguição durante a ditadura, teve de responder a um processo, do qual, felizmente,
saiu absolvido. Eu nunca deixo de agradecer a ele por tudo, mas hoje aproveito este
momento para fazer um agradecimento público aqui na UnB, uma universidade da qual
ele sempre se orgulhou muito.

Introdução
Antes de começar, quero dar um aviso. Ao longo de toda a minha fala, vou usar sempre
o feminino para designar as pessoas em geral, incluindo eu mesma. É proposital, é para
causar estranhamento. Primeiro, porque a população do curso de Letras é
majoritariamente feminina, de modo que os homens têm de se conformar em serem
minoria. Em segundo lugar, e para comprovar tudo o que eu vou dizer a seguir, ser
humano é ser na linguagem, e ser na linguagem é empregar a linguagem como
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instrumento transformador da sociedade, e nossa sociedade machista, sexista e misógina


precisa urgentemente ser transformada.

Estou muito feliz de estar aqui para falar às estudantes e aos estudantes que acabam de
ingressar no curso de Letras da Universidade de Brasília, uma universidade com uma
presença importante na história do Brasil e na história da educação no Brasil. Fiz boa
parte da minha graduação na UnB e pude ter professoras e professores que marcaram
minha formação intelectual e profissional. Muito do que aprendi aqui me vale até hoje
nas coisas que faço, e sou muito grata à UnB por isso.

O fato de vocês estarem numa universidade pública merece muitas congratulações, e de


estarem na Universidade de Brasília, mais ainda. É muito importante vocês terem
consciência de que a universidade é pública, mas não é gratuita, porque ela é financiada
por toda a sociedade, que paga, e paga caro, para sustentar a enorme e custosa estrutura
que é uma universidade. Cada pessoa que estuda numa universidade pública deve assumir
a responsabilidade política e social de preservar e defender essa universidade, que
pertence a toda a sociedade, sociedade que, repetindo, é quem paga por ela. Uma vaga
numa universidade pública tem de ser levada a sério, respeitada e nunca tratada com
leviandade. Cada uma de vocês está ocupando um lugar que muitas outras pessoas
desejariam ocupar. Peço que vocês tenham sempre isso em mente.

Por que devemos respeitar a trajetória particular da Universidade de Brasília? A UnB foi
criada em 1962 com um projeto altamente inovador, pautado por uma educação
democrática e democratizadora do saber. Dois anos depois, no entanto, com o golpe que
instituiu a ditadura militar no Brasil, a UnB viu seu projeto educacional inovador ser
desmantelado, desmontado, demolido. Seus principais idealizadores foram Darcy Ribeiro
e Anísio Teixeira, dois dos nomes mais importantes da intelectualidade brasileira.
Perseguido pelo regime militar, Darcy Ribeiro se exilou. Anísio Teixeira, por sua vez,
teve uma morte até hoje não esclarecida, mas com fortes indícios de ter sido mais um dos
muitos assassinatos cometidos pela ditadura. Quando estudei na UnB, ainda no período
ditatorial, o reitor era um militar, cujo nome nem quero pronunciar. Comprometido
integralmente com o regime, impôs uma repressão violenta a todo tipo de manifestação
em favor da democratização da vida universitária. Várias vezes, tivemos de suportar a
presença da polícia no campus, chamada para intimidar o corpo docente e discente. Esse
período tenebroso já acabou, mas, como cantava Gal Costa em 1968, “é preciso estar
atento e forte”, porque as ameaças autoritárias estão sempre à espreita.

O Diretório Central dos Estudantes da UnB se chama Honestino Guimarães, e vocês que
estão chegando agora precisam saber por que o DCE tem esse nome. Honestino
Guimarães, estudante de geologia, foi uma das vítimas da repressão da ditadura. Por causa
de sua militância no movimento estudantil, Honestino foi preso por quatro vezes. Depois
de sua quarta prisão, no ano de 1973, ele desapareceu. Seu atestado de óbito só foi
entregue à família em 1996, vinte e três anos depois, e, ainda assim, incompleto: no
documento, não constava a causa da morte. Honestino foi assassinado aos 28 anos.
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Por isso, as pessoas que hoje em dia, dentro desta universidade e fora dela, que se dizem
saudosas da ditadura e acreditam que é preciso prender, torturar e matar pessoas que
pensam diferente delas merecem todo o meu nojo, minha aversão, minha repugnância
absoluta. Como escreveu o dramaturgo alemão Bertolt Brecht, “a cadela do fascismo está
sempre no cio”, e por isso temos de estar o tempo todo em alerta e de prontidão para
impedir que essa cadela no cio possa parir seus filhotes assassinos. E que essa cadela
esteja, de preferência, inelegível e encarcerada em prisão de segurança máxima e
incomunicável, junto com as aberrações que conseguiu parir.

Ainda sobre a importância da UnB, é preciso lembrar que foi uma das primeiras
universidades brasileiras a instituir as cotas raciais, uma ação afirmativa que, junto com
os programas de ampliação do acesso à universidade dos dois primeiros governos do
presidente Lula, modificou profundamente o perfil do nosso alunado, que tem
pressionado as instituições de ensino superior para que saiam de sua inércia e aprendam
a lidar com a diversidade.

Esta é a Universidade de Brasília, patrimônio de todas nós.

Feita essa longa introdução, vamos à nossa conversa de hoje: Ser humano é ser na
linguagem.

SER HUMANO É SER NA LINGUAGEM


A linguagem é a marca registrada, o selo de exclusividade, o traço distintivo da espécie
humana. Outros animais também desenvolveram sistemas complexos de comunicação,
como as abelhas, os pássaros, os golfinhos e os macacos, mas nenhum deles é tão
sofisticado, maleável, flexível, plástico e poderoso quanto a linguagem humana, e isso,
sem dúvida, porque somos dotados de um cérebro que, segundo muitas cientistas, é a
coisa mais complexa existente no universo.

Nenhuma forma de linguagem animal permite a seus usuários fazer referência não só ao
aqui-agora, mas também ao que já foi, ao que supostamente virá a ser e ao que nunca foi,
nem será. Além disso, somente a linguagem humana permite a abstração, a simbolização
mais radical possível, como a criação de mundos imaginários e de entidades
transcendentais, como os espíritos e as divindades, tão poderosamente criadas pela
linguagem que conseguem levar bilhões de pessoas a acreditar que essas entidades
existem de fato, fora da linguagem. Por isso, podemos afirmar que Deus existe, porque a
existência de Deus depende da existência da linguagem, é uma existência na linguagem,
e Deus é uma grande figura de linguagem, a maior de todas as metáforas concebidas pela
imaginação humana. Acreditar ou não nessa metáfora está no direito de cada pessoa,
assim como está no meu direito não acreditar nela.

Sendo a linguagem assim, não admira que, desde os primórdios da civilização, os seres
humanos, já fixados em ambientes urbanos e podendo dedicar seu tempo a outros afazeres
além da busca de alimento e da defesa de suas vidas, tenham se dedicado a refletir sobre
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essa capacidade fabulosa que permite a uma pessoa produzir determinados sons pela boca
e ser compreendida por outra pessoa, que recebe e processa esses sons atribuindo sentido
a eles. Como é possível? Assim, a investigação em torno da linguagem é tão antiga quanto
a civilização e, sem dúvida, teve papel fundamental na própria estruturação da vida em
sociedade, vida cada vez mais complexa à medida que, graças também à linguagem, as
façanhas tecnológicas e o acúmulo de conhecimento iam avançando em progressão
geométrica.

A linguagem está dentro e fora de nós. Ser humano é ser na linguagem porque, fora da
linguagem, não existe humanidade. O famoso dito cartesiano “penso, logo existo” pode
ser substituído por “falo, logo existo”, porque até para pensar precisamos da linguagem.

O ambiente em que nós nos movemos é linguagem, o ar que respiramos é linguagem, e


isso porque nós temos essas palavras, ambiente e ar, para designar o ambiente e o ar, e
nós só nos sentimos seguras no mundo quando temos nomes para dar às coisas. O
anônimo nos apavora, temos muito medo do sem-nome. Alguns filósofos chegam mesmo
a dizer: não temos acesso direto à realidade, porque, entre nossa percepção e a realidade
empírica, existem os nomes, que servem de conexão entre nossa percepção e as coisas no
mundo. Será?

Nossa relação com a linguagem é parecida com a relação dos peixes com a água: ser peixe
é ser na água, fora da água, o peixe não existe. Mas a nossa relação com a linguagem é
ainda mais radical, porque, como eu disse, a linguagem não está apenas fora de nós, tal
como a água está fora do peixe — a linguagem também está dentro de nós, é um
componente da nossa biologia, faz parte do nosso corpo, é uma faculdade cognitiva, está
embutida em nosso cérebro.

Esse vaivém entre o dentro e o fora é que me leva a fazer a seguinte afirmação: tudo o
que existe para nós é feito de linguagem. Olhem para esta sala. As cadeiras em que nos
sentamos são feitas de linguagem, assim como o piso, as paredes, a tinta que cobre as
paredes, esta mesa é feita de linguagem, nossas roupas, nossos óculos, nossos brincos e
anéis, os telefones que algumas pessoas neste momento devem estar manuseando, as
mensagens que aparecem no telefone, as coisas de que são feitos esses telefones, os
carros, os ônibus, as bicicletas e o metrô que nos trouxeram para cá, tudo isso é feito de
linguagem, a linguagem é a matéria-prima de tudo isso. Por quê? Porque para essas coisas
existirem foi necessário que existisse primeiro a interação verbal entre as pessoas que
produziram essas coisas.

Uma cadeira é feita de madeira e… linguagem. Uma pessoa pode, sozinha, produzir uma
cadeira, mas ela só pode fazer isso sozinha porque alguém, algum dia, falou para ela como
se constrói uma cadeira. Hoje em dia, muitas operações de produção, especialmente na
indústria, são realizadas por máquinas, por robôs, mas essas máquinas e esses robôs
também são feitos de linguagem, porque alguém precisou programá-los para produzir
coisas. Não é por outro motivo que chamamos de linguagem o conjunto de operações que
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permitem a programação das máquinas, dos robôs, dos computadores, dos telefones
celulares.

Por causa dessa dialética do dentro e do fora, a linguagem sempre tem de ser observada
de dois pontos de vista: o do indivíduo, por dentro, e o da sociedade, por fora. Como
escreveu o velho Aristóteles, “o homem é um animal político”. A mulher também, viu,
Aristóteles? O termo político aqui tem a ver com a pólis, com a cidade-Estado da Grécia
antiga, cidade que era, portanto, uma comunidade, uma sociedade. Um animal político,
então, é aquele que vive em sociedade, porque fora da sociedade não existe política. Por
sua vez, o poeta inglês John Donne, escreveu, no século 16: “Nenhum homem é uma ilha”
— nenhuma mulher também é uma ilha, viu, John Donne? Ou seja, ninguém vive em
isolamento absoluto, todas nós estamos juntas e misturadas em sociedade. Por isso eu
disse que é preciso observar a linguagem do ponto de vista do indivíduo e da sociedade.
Algumas teorias linguísticas se concentram no estudo da linguagem no indivíduo, outras
se concentram no estudo da linguagem em sociedade, mas nenhuma delas pode deixar de
reconhecer a importância dessa dupla abordagem.

No que diz respeito ao indivíduo, a linguagem é algo tão intrinsecamente natural, é um


dado tão dado que, na maior parte do tempo, as pessoas não se preocupam em refletir
sobre a linguagem, não exprimem curiosidade a respeito do fato de serem capazes de falar
e de escutar e entender o que as outras pessoas dizem. Os seres humanos normais — ou
seja, os não linguistas — não formulam questões do tipo: “Por que é que eu falo?”, “como
é que eu sou capaz de falar?”, “por que é que eu faço uns barulhos com a boca e as pessoas
que ouvem esses barulhos conseguem entender o que estou dizendo?”, “quais são os
processamentos mentais e articulatórios que me permitem falar e entender o que as outras
pessoas falam?”.

Falar é mais ou menos parecido com respirar, ver, andar, dormir, sonhar etc. Todas nós
respiramos, a maioria de nós vemos e andamos, todas nós dormimos, mas só algumas
pessoas são capazes de explicar como e por que respiramos, como e por que vemos,
andamos, dormimos e sonhamos. Assim também é que nós falamos — seja oralmente ou
por meio de sinais —, mas só algumas pessoas conseguem, ou tentam conseguir, explicar
como e por que falamos.

Mas a linguagem é tão complexa que as explicações que damos para ela são sempre
parciais, incompletas, provisórias, e decorrem muito mais de teorias e especulações, no
bom sentido da palavra, do que de experimentos empíricos. A linguagem é como o
horizonte: o horizonte está ali, distante, diante dos nossos olhos, mas por mais que nós
avancemos em direção a ele, ele continua ali onde está, longe de nosso alcance.

Vou contar uma historinha, que algumas de vocês já devem ter ouvido. É uma fábula
indiana.

Era uma vez seis homens cegos que se achavam muito sábios, com uma inteligência
superior à das pessoas comuns e por isso eram muito arrogantes. Esses homens cegos,
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porém, nunca tinham estado na presença de um elefante. Algumas pessoas então


resolveram trazer um elefante para perto deles, e eles começaram a apalpar o bicho. O
cego que passou as mãos pela tromba disse: “O elefante é um tipo de serpente”. O que
apalpou uma das pernas do elefante disse: “O elefante é como o tronco de uma palmeira”.
O cego que pegou na orelha do bicho declarou: “O elefante é um grande leque”. Aquele
que tateou a longa e grossa presa pontiaguda afirmou: “O elefante é uma espécie de arma
perfurante”. O cego que pegou na cauda disse: “O elefante é um tipo de corda”. E o que
apalpou um dos flancos do animal disse: “O elefante é como uma montanha que se
move”…

A sabedoria tradicional indiana diz que essa parábola ilustra o acesso sempre parcial e
restrito que nós, seres humanos, temos à Verdade, ao conhecimento total e absoluto das
coisas dos mundos visível e invisível. Só conseguimos apreender pedaços da Verdade,
por isso temos de ser sempre humildes diante dela e reconhecer nossa ignorância.

Eu gosto de ilustrar com essa fábula o acesso parcial e restrito que nós, linguistas, temos
desse elefante magnífico que é a linguagem. O filósofo cristão santo Agostinho escreveu:
“O que é o tempo? Se não me perguntam, eu sei. Se me perguntam, eu não sei”. Ora, se
nos perguntarem: “O que é a linguagem?”, podemos responder da mesma maneira.
Estudamos, analisamos, descrevemos as línguas… mas… o que é uma língua?

Mesmo assim, nós, linguistas, muitas vezes agimos como os seis homens cegos da fábula
indiana e temos muito orgulho das nossas teorias, dos nossos métodos de investigação,
das descobertas que já fizemos e das que achamos que vamos fazer. Mas esse nosso
orgulho e presunção desmoronam, vêm abaixo quando estamos na presença de uma
criatura que nos deixa perplexas, espantadas, de boca aberta. Sabem quem é essa criatura?
Não, não é um elefante. É uma criança entre quatro e cinco anos de idade.

Uma criança entre quatro e cinco anos dotada da capacidade de se exprimir oralmente (o
caso das crianças surdas é diferente), essa criança já domina à perfeição sua língua
materna ou mais de uma língua, se viver desde pequena num ambiente em que várias
línguas diferentes são faladas. Essa criança já sabe os nomes de muitíssimas coisas, já
exprime seus sentimentos e suas sensações, fala do passado, do presente e do futuro,
utiliza com a maior naturalidade os pronomes pessoais, conhece o nome das pessoas que
vivem ao seu redor, usa a linguagem para simbolizar, para fazer birra, para mentir, para
conquistar afeto, para se referir ao mundo, para falar de coisas que não existem, para fazer
abstrações, para inventar histórias etc. etc. etc. Se quiséssemos colocar no papel todo o
conhecimento linguístico que ela tem e tudo o que essa criança é capaz de fazer com a
linguagem, o resultado seria um livro com muitas centenas de páginas, aliás, vários livros
com centenas de páginas, e ainda assim faltariam páginas.

De onde vem essa capacidade impressionante? Qual é esse mistério? É um mistério que
persegue há milênios as pessoas que se debruçam sobre o fenômeno da linguagem. E é
um mistério que permanecerá, porque tudo o que conseguimos fazer é estudar e tirar
conclusões parciais desse elefante-linguagem. Ao contrário do elefante da fábula indiana,
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que é feito de carne e osso e pode ser apalpado, o elefante-linguagem é feito… sabe-se lá
do quê: de ondas elétricas? De impulsos e pulsações do cérebro? De sinapses e conexões?
De plasmas e ectoplasmas?

É claro que estou exagerando. A linguística é uma ciência que, desde o século 19, tem
feito grandes avanços no entendimento do que é e de como funciona a linguagem humana.
Com os impressionantes progressos da tecnologia, hoje podemos realizar pesquisas e
experimentos extremamente sofisticados, e as perspectivas futuras são ainda mais
promissoras, incluindo a assim chamada “inteligência artificial”, que é artificial, sim, mas
inteligência… há controvérsias.

O fato é que a linguística, principalmente, faz a gente ver as coisas de modo diferente, faz
a gente observar e avaliar os fenômenos de linguagem de outra perspectiva, fora do senso
comum. Por exemplo, aquilo que a maioria das pessoas classifica de “erro” é, para nós
linguistas, uma mina de ouro para a pesquisa. Quando milhares de pessoas começam a
usar algum elemento da língua de forma diferente de como era usado pela geração
anterior, isso significa que aquele setor da língua está passando por uma mudança, e a
mudança de hoje é uma pista para imaginar como a língua provavelmente será no futuro.

Vejam só este exemplo divertido: num dicionário publicado na década de 1950, encontrei
essa pérola: “A forma pego, como particípio passado do verbo pegar, só é empregada no
Brasil por pessoas incultas”. Não é uma delícia? Hoje, qualquer dicionário vai trazer, sem
comentários, as formas pêgo ou pégo como particípio irregular do verbo pegar, ao lado
da forma regular pegado. E esse uso se tornou tão normal que muitas pessoas chegam
mesmo a achar que dizer “já devolvi o livro que eu tinha pegado na biblioteca” é uma
forma errada… mas não é. Hoje em dia, muita gente torce o nariz quando escuta algo
como “foi bom você ter trago os exames”, mas quem garante que daqui a cinquenta anos
a forma trago não será considerada perfeitamente correta? Na perspectiva da linguística,
que vai na direção contrária do senso comum, o “erro” de hoje pode ser o “acerto” de
amanhã.

Essa visão contrária ao senso comum também é, infelizmente, um dos motivos pelos quais
a linguística é entendida de forma deturpada: “vocês linguistas são defensores do vale-
tudo”, “vocês acham lindo que as pessoas falem tudo errado”, “vocês são os esquerdistas
da língua” e outras coisas do tipo que circulam por aí, especialmente na boca e na pena
das pessoas que vivem de apresentar programas de televisão ou canais do YouTube dando
dicas de como falar certo e não errar mais. Para cada canal produzido por alguém com
boa formação científica na área das Letras existem vinte e cinco outros apresentados por
gente que ouviu o galo cantar mas não sabe onde, nem se era mesmo um galo ou um
urubu afônico.

A linguística, repito, nos faz ver os fatos de língua de outros ângulos, de pontos de vista
diferentes dos do senso comum. Na verdade, é assim com todas as ciências.
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Por isso, atenção, vocês que estão chegando agora no curso de Letras! Não alimentem a
ilusão, muito comum, de que agora, finalmente, amém, vocês vão aprender “gramática”,
vão aprender a falar e escrever “certo”, e coisas assim. Não vão. Se vocês tiverem dúvidas
nessa área, vão estudar, comprem várias gramáticas normativas, formem grupos de
estudos com as colegas, peçam ajuda às professoras, leiam o que tem sido produzido a
respeito disso por muita gente boa. Porque aqui vocês vão ter acesso a outras formas de
observar e estudar a língua, formas muito mais ricas e importantes, e infinitamente mais
interessantes do que a velha e inútil distinção entre o certo e o errado. Vocês vão estudar
muita gramática, isso vão, vocês vão ter de comer gramática com farinha e rapadura, mas
vão estudar a gramática cientificamente, criticamente, como um produto cultural, como
um discurso portador de uma ideologia linguística, e não como um livro sagrado que tem
de ser reverenciado e seguido à risca. Vocês também vão aprender outras gramáticas, e
não só a gramática tradicional, a gramática normativa. Vão aprender que o funcionamento
da língua, os fatos da língua podem ser analisados com muitos outros instrumentos
teóricos, cada um mais interessante que o outro e muito mais refinados do que os da
gramática tradicional.

Se me pedissem para definir a palavra linguista, eu diria o seguinte: “Linguista é a pessoa


que quer saber o que as outras pessoas sabem, mas não sabem que sabem”. Vou repetir
para vocês anotarem: “Linguista é a pessoa que quer saber o que as outras pessoas
sabem, mas não sabem que sabem”. Como eu disse antes, nós sabemos respirar, ver,
ouvir, dormir etc., mas não sabemos como fazemos isso, e é a pessoa especializada que
vai nos explicar. Da mesma forma, nós falamos (ou sinalizamos) sem saber como se faz
isso, e é tarefa da linguista nos explicar, ou tentar encontrar meios para explicar essa nossa
capacidade. Essa maravilha que uma criança de quatro-cinco anos sabe, mas não sabe que
sabe.

Acabamos de ver a linguagem no plano do indivíduo. Mas se o indivíduo não é uma ilha
e é um animal político, temos de ver a linguagem também no plano social. E aqui os fatos
e fenômenos são igualmente fascinantes.

A língua ou as línguas empregadas numa comunidade, numa sociedade, num território,


num país estão sempre sujeitas a todo tipo de investimento político, no sentido mais
amplo do termo político, ou seja, como já vimos antes, no sentido das complexas teias de
relações que os membros de uma sociedade mantêm entre si. E que relações são essas?

Antes de tudo, são relações de poder. Todas as comunidades humanas são


hierarquizadas. Não existe comunidade humana em que todos os membros gozem dos
mesmos direitos e tenham os mesmos deveres. A utopia comunista é isso mesmo, uma
utopia, e justamente por isso ela deve estar sempre no nosso horizonte, ou pelo menos no
horizonte das pessoas que não cultivam o ódio. Essa utopia deve guiar as ações das
pessoas que tentam tecer e manter laços de solidariedade social, de combate às
desigualdades e injustiças, mas sempre conscientes de que a sociedade igualitária perfeita
é contrária à própria natureza da espécie humana, assim como é da natureza humana ter
esperança e lutar por ela. Se até as formigas têm rainha, operárias e soldadas, que dirá os
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seres humanos. O lema da Revolução Francesa — liberdade, igualdade e fraternidade —


foi logo traído pelo seu maior expoente, Napoleão Bonaparte, que, sob pretexto de levar
a ideologia revolucionária para o resto da Europa, se autoproclamou imperador e enterrou
o ideal da Revolução. E uma revolução que inventou a guilhotina nunca ia ser capaz de
promover a liberdade, a igualdade e a fraternidade.

As sociedades humanas são hierarquizadas, sim, não são igualitárias.Nem por isso,
porém, devemos desistir de lutar por sociedades cada vez mais democráticas, em que as
relações de poder estejam sob o controle limitador de instrumentos sociais coletivamente
construídos. Todo abuso de poder tem de ser repudiado e democraticamente julgado, para,
se for o caso, ser condenado.

As relações de poder são tramadas já dentro de casa, no interior da família ou de outras


formas de organização dos núcleos primários das comunidades. Dentro desses núcleos,
existe alguém que manda e outros alguéns que obedecem ou devem obedecer. Nas
sociedades patriarcais, que infelizmente têm sido a imensa maioria das organizações
sociais humanas há milênios, é o homem quem manda, comanda e desmanda. Numa
sociedade doentiamente injusta, desigual e violenta como a brasileira, é o homem branco
heterossexual (de fato ou de fachada) quem detém todas as armas, armas metafóricas ou
armas de fogo mesmo, além do poder econômico. O poder e o dinheiro circulam nas mãos
dos homens. Se uma mulher, especialmente uma mulher negra, ousar levantar um pouco
que seja a cabeça e questionar essas relações de poder, o risco de ser simplesmente
eliminada é altíssimo. Aí estão Marielle Franco e Mãe Bernadete Pacífico como vítimas
dessa tragédia. E quantas mulheres brancas e principalmente negras são vítimas diárias
de uma estrutura social entranhadamente machista, sexista, racista e feminicida?

Todas essas relações de poder, para o bem e para o mal, se constroem pela linguagem.
Algum homem branco falou para outro homem branco assassinar Marielle. E, sem
dúvida, foi algum homem branco que falou e deu a ordem para a execução de Mãe
Bernadete.

A linguagem é, portanto, o elemento fundador das nossas relações sociais. No caso das
línguas, elas podem, e são, objeto de vários tipos de ações políticas, chamadas
precisamente de políticas linguísticas. São políticas linguísticas que determinam, por
exemplo, qual língua ou quais línguas faladas num território receberão o rótulo de língua
oficial ou oficiais. E qual língua ou quais línguas terão o seu uso proibido e reprimido.

No caso do Brasil, por exemplo, a Constituição afirma que o português é a língua oficial
do país, ainda que em nosso território existam mais de duzentas línguas indígenas e várias
outras línguas usadas diariamente por imigrantes ou descendentes de imigrantes. O caso
da maioria dos países africanos é ainda mais complexo. Em praticamente todo país
africano, existem dezenas, às vezes, centenas de línguas faladas pela população, e a coisa
mais comum é que uma pessoa nascida e criada na África seja capaz de falar três, quatro,
cinco ou mais línguas. No entanto, as línguas oficiais, da administração e do ensino, são
as línguas dos ex-colonizadores: português, francês, inglês e espanhol. As elites africanas,
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elites masculinas é claro, que lideraram os movimentos de independência mantiveram a


política linguística colonial, até como forma de conquistar o poder e dominar a vida
pública, estimulando os conflitos étnicos criados pelos colonizadores e que, desde então,
têm marcado o continente. Na maioria dos países africanos, o domínio da língua oficial,
língua do ex-colonizador, é restrito a uma pequena parcela da população, que usa esse
conhecimento linguístico para se preservar no
poder. Basta um exemplo: em Moçambique,
ex-colônia portuguesa, menos de 20% da
população consegue se exprimir
satisfatoriamente em português, enquanto o
restante emprega as mais de vinte línguas
faladas no país. As crianças que entram na
escola em Moçambique são obrigadas a
receber uma educação transmitida numa
língua que para elas é de fato uma língua
estranha e estrangeira.

O próprio nome que se dá a uma língua deriva de uma política linguística. Há duzentos
anos, se discute, por exemplo, se a língua majoritária da população brasileira deve
continuar a se chamar português ou se já seria o caso de se chamar brasileiro. Essa é uma
questão muito menos linguística do que política. Aliás, de linguística mesmo não tem
quase nada. Posso provar e comprovar com dados concretos que já é o caso de chamarmos
nossa língua de brasileiro, mas essa decisão depende das relações de poder dentro da
nossa sociedade, e dentro dessas relações nós, linguistas, não temos nenhum poder. Se
algum dia o Congresso Nacional aprovar uma lei definindo o nome da língua como
brasileiro, a questão estará decidida, queiram ou não os gramáticos, as e os linguistas, as
professoras e os professores, as membras e os membros da Academia Brasileira de Letras
etc. (Em tempo: o feminino membra existe, está dicionarizado, assim como presidenta,
aliás, que não é invenção de esquerdista-petista-comunista.)

Em todo o mundo, existem duas situações linguísticas bem conhecidas com relação aos
nomes das línguas. A primeira é a de línguas muito diferentes entre si, mas que recebem
um mesmo nome. É o caso, por exemplo, do que se chama “árabe”. Um falante de árabe
marroquino não vai conseguir se fazer entender por um falante de árabe saudita e vice-
versa se cada um usar sua variedade particular de “árabe”. Seria algo como uma falante
de português querer se comunicar com uma falante de romeno usando o português.
Português e romeno são línguas da mesma família, mas são sistemas linguísticos muito
diferentes. O que acontece é que as diferentes variedades de árabe têm um status cultural
inferior com relação ao chamado “árabe clássico”, aquela língua em que foi redigido,
1.400 anos atrás, o livro sagrado do islamismo, o Corão. Justamente por ser a língua do
texto sagrado é que esse “árabe clássico” se tornou objeto de estudo, ensino e de
reverência. Só ele é digno do status de “língua”.
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Coisa muito parecida aconteceu durante mil anos com o latim. Durante muito tempo
depois da queda do Império romano, no século 5, o latim continuou sendo a única língua
digna de estudo e de ensino, a única em que eram redigidos os textos filosóficos,
religiosos e científicos, até pelo fato de ser a língua da Igreja. Nas terras do antigo
Império, começavam a surgir e a se firmar línguas derivadas do latim, mas já muito
diferentes dele. Só a partir do Renascimento, lá pelos séculos 15 e 16, é que as línguas
vernáculas como o francês, o inglês, o português e o espanhol, se tornaram os idiomas do
governo, da justiça, da literatura e da ciência, e também as línguas das investidas
coloniais. O latim então foi o “árabe clássico” da Europa durante séculos a fio. A
transformação das línguas derivadas do latim em línguas autônomas, com nome próprio
e status político próprio, não aconteceu no caso das muitas variedades de “árabe”, mais
de trinta, faladas em mais de 20 países na África e no Oriente Médio. Temos aqui então
modos de falar muito diferentes, mas que recebem um mesmo nome.

A outra situação é o contrário da primeira: línguas muito próximas, às vezes idênticas,


que recebem nomes diferentes. De novo, a motivação é política, cultural, religiosa. O caso
mais conhecido hoje em dia é o da língua que durante muito tempo foi chamada de servo-
croata e que hoje recebe nada menos do que quatro nomes: bósnio, croata, montenegrino
e sérvio. A tal ponto que é comum as pessoas se referirem a ela como “a língua BCMS”.
Até a década de 1990, existiu um país chamado Iugoslávia. Esse país era uma federação
formada por seis repúblicas, algo como países dentro de um país: Eslovênia, Sérvia,
Croácia, Bósnia-Herzegovina, Montenegro e Macedônia. A Eslovênia e a Macedônia têm
línguas próprias, diferentes do servo-croata. Quando a federação iugoslava implodiu,
essas seis repúblicas se tornaram países independentes e, para marcar sua independência
política, em cada país onde se fala servo-croata foi tomada a decisão política de chamar
a língua com o nome de cada um dos países, e é por isso que uma mesma língua recebe
quatro nomes diferentes. A rivalidade entre sérvios e croatas é histórica, tem a ver
principalmente com religião: os sérvios são majoritariamente cristãos ortodoxos,
enquanto os croatas são católicos romanos. Ora, as diferenças entre essas quatro “línguas”
são parecidas com as diferenças entre, por exemplo, a fala goiana e a fala pernambucana,
ou seja, a intercompreensão é total. Mas o simbolismo do nome da língua tem enorme
peso cultural, político e ideológico.

No nosso caso brasileiro, como eu disse, a “questão da língua”, formulada logo depois da
independência, ainda não se resolveu. Existem duas línguas diferentes com o mesmo
nome e que deveriam receber nomes diferentes? Ou existe uma língua única, com duas
variedades que devem receber o mesmo nome? No caso específico do meio acadêmico,
já faz algumas décadas que vem se firmando o termo português brasileiro, que aparece
no título de diversas obras especializadas e que indica, pelo menos no ambiente científico,
o reconhecimento das profundas diferenças existentes entre o português daqui e o
português de lá, isto é, de Portugal.

Outro fenômeno sociológico decorrente das relações de poder estabelecidas pela


linguagem é a discriminação e o preconceito linguísticos. Uma vez que uma língua é
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declarada oficial, ela passa a ser o objeto único do ensino institucionalizado. Ninguém no
Brasil pode escolher uma escola onde a língua de ensino seja o guarani, o pomerano, o
tikuna ou o japonês, embora sejam línguas usadas diariamente por muitas pessoas. A
disciplina escolar se chama língua portuguesa ou português, e a escola é obrigada a
oferecê-la a suas alunas e alunos. E não só isso: todas as demais disciplinas, inclusive as
línguas estrangeiras, têm de ser ensinadas em português — ninguém espera aprender
matemática em italiano, biologia em alemão, inglês em coreano ou química em hebraico.

A definição da língua oficial como língua de ensino implica outra política linguística,
aquela que tenta definir qual vai ser o modelo de língua a ser ensinado. Toda língua
humana é inevitavelmente heterogênea, isto é, as pessoas e os grupos sociais não falam
a língua da mesma maneira, a variação é a regra, é o estado natural de qualquer língua.
Se a sociedade é heterogênea, se tem gente de todo tipo, tamanho e cor, a língua,
evidentemente, também só pode ser heterogênea. Até mesmo a fala individual é variável:
eu não falo da mesma maneira com a minha aluna e com a reitora da universidade. Mas
o multilinguismo e a variação social da língua sempre foram considerados como
“problemas” ou “ameaças” a uma utópica “unidade nacional”.

A solução encontrada para isso tem sido a formulação de uma norma linguística, um
modelo que tenta uniformizar a língua, uma forma idealizada de uso da língua que possa
se sobrepor à variação. No caso brasileiro, essa norma é uma construção sociocultural
muito problemática. Entre outros problemas, ela se inspira no uso de escritores
consagrados, é um modelo de língua literária. Em teoria, então, ela só deveria servir para
a produção de textos escritos, mas sua obediência também é cobrada na fala espontânea,
o que é um absurdo. Além disso, essa norma tenta impor usos naturais para as portuguesas
e os portugueses, mas não para nós, brasileiras. Essa norma, em grande medida, despreza
os usos mais autênticos do português brasileiro, incluindo os usos das camadas
dominantes da sociedade. Daí a crença infundada de que ninguém no Brasil fala bem
português, nem mesmo as pessoas mais instruídas. Toda e qualquer pessoa nascida e
criada no Brasil diz tranquilamente que vai no cinema ou que viajou para São Paulo, mas
a norma-padrão afirma que o certo é dizer “vou ao cinema” e “viajei a São Paulo”, porque
é assim que se diz em Portugal. Também é absolutamente normal dizer “A Sandra? Ih,
eu conheço ela há muito tempo”, mas a norma-padrão diz que o certo é “eu a conheço há
muito tempo” ou mesmo “eu conheço-a há muito tempo”. Quem aqui nunca teve de lidar
com as regras e sub-regras da bendita-maldita colocação pronominal? Nós somos o único
povo que eu conheço que tem de se esforçar para aprender a usar os pronomes oblíquos,
enquanto em outros lugares, incluindo Portugal, as gramáticas simplesmente descrevem
os usos que as pessoas fazem desses pronomes. Um intelectual brasileiro do início do
século 20 disse que a questão da colocação pronominal é uma “sacrossanta bobagem”,
mas infelizmente esse falso problema continua atormentando cada uma de nós que tem
de escrever em nossa própria língua.

Quais são as consequências dessa grande fratura, desse fosso que separa a língua
autêntica, realmente usada por todas as pessoas, incluindo as classificadas como “cultas”,
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e a norma-padrão, muitas vezes anacrônica e essencialmente conservadora que aparece


nas gramáticas?

Uma das consequências é o que podemos chamar de esquizofrenia linguística, e de fato


esse termo aparece em muitas obras dedicadas ao estudo das relações entre língua e
sociedade, às vezes também com o nome técnico de esquizoglossia. Também é possível
falar de insegurança linguística. O que é isso? É o dilema em que a maioria das pessoas
se encontra, puxada por um lado pela norma-padrão conservadora, na qual a pessoa não
se reconhece, e puxada por outro lado por sua intuição linguística, pelo seu conhecimento
da língua que, como já vimos, começou a se firmar aos quatro-cinco anos de vida. Como
a norma-padrão convencional é contra-intuitiva, uma das consequências é a crença, o
mito na verdade, de que “português é muito difícil” ou “o português é uma das línguas
mais complicadas do mundo”.

Como pode ser difícil e complicada uma língua que uma criança de quatro-cinco anos
domina perfeitamente? É que nessa situação esquizofrênica, o nome “português” não se
refere ao nosso conhecimento intuitivo e tranquilo da língua, mas é aplicado a esse
conjunto de regras e exceções que constitui a norma-padrão descrita e prescrita nos livros
chamados gramáticas.

Outra consequência social negativa dessa situação, como eu disse, é a discriminação e o


preconceito linguísticos. As pessoas das camadas sociais dominantes, pessoas
essencialmente brancas, que puderam ter acesso a uma educação de qualidade,
conseguiram aprender, com maior ou menor grau de competência, aquela norma-padrão
tradicional. De posse desse conhecimento, elas se julgam no direito de considerar “feia”
e “errada” a fala das outras camadas da população. No fundo, no fundo, o preconceito
linguístico é, de fato, um preconceito social: o uso da língua é mais um dos vários
instrumentos de controle empregados para manter as divisões e hierarquias sociais. Eu
falo bonito, eu falo certo, por isso posso ocupar profissões de prestígio e cargos de
comando. Você que é pobre e fala errado não pode ter nada disso.

Essa foi uma acusação feita durante muito tempo ao presidente Lula: como é que vamos
pôr na presidência um ex-torneiro mecânico, nordestino, sem curso superior e que fala
tudo errado? Ora, o que estava (e está) em jogo é, na verdade, o fato de Lula ser,
precisamente, um ex-torneiro mecânico, nordestino, sem curso superior e que,
principalmente, tenta levar adiante um programa voltado para reduzir minimamente que
seja a injustiça e a desigualdade que configuram há séculos a sociedade brasileira. Lula é
o avesso total de todos os outros homens que governaram o Brasil antes e depois dele.
Mas, como disse o grande Darcy Ribeiro, que dá nome a este nosso campus universitário,
as classes dominantes brasileiras são as mais perversas do mundo: elas odeiam
visceralmente os pobres, elas não abandonam por nada a mentalidade escravocrata
embutida em seu DNA, querem a todo custo manter a grande maioria da população na
pobreza ou mesmo na miséria mais abjeta. Por isso, eu digo que o preconceito linguístico
é de fato um preconceito social, um preconceito contra as pessoas pobres e,
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consequentemente, é um racismo linguístico, uma vez que a grande maioria da nossa


população pobre é preta ou parda.

Como é fácil perceber, falar de língua e de linguagem é falar de sociedade, de estrutura


social, de política, de economia, de cultura, de relações de poder, e por aí vai. Tentar
estudar a língua como se ela fosse uma coisa-em-si, um “organismo vivo”, como se fosse
possível arrancar a língua da boca das pessoas para ser analisada em laboratório
asseptizado, é algo que se pode qualificar de quimera, isto é, como define o dicionário
Houaiss, “produto da imaginação, sem possibilidade de realizar-se;
absurdo, fantasia, utopia”. A linguagem é um dado biológico do indivíduo, mas ela só se
realiza na interação social, foi inventada pelos seres humanos para que pudessem
interagir, criar e manter conexões entre os indivíduos, os grupos e as comunidades. A
linguagem foi a maior tática de sobrevivência elaborada pela espeçie humana.

A complexa rede de conexões entre língua, indivíduo e sociedade é que fez nascer, no
campo maior da linguística, uma série de disciplinas ou interdisciplinas: sociologia da
linguagem, sociolinguística, psicolinguística, neurolinguística, filosofia da linguagem,
antropologia linguística, linguística computacional, linguística histórica, linguística
forense, análise do discurso, ecolinguística, pragmática linguística, análise da
conversação, linguística textual, para não mencionar os diversos ramos da linguística
aplicada. E tudo isso junto e misturado com as disciplinas que se dedicam ao estudo da
estrutura das línguas, ou seja, fonética, fonologia, morfologia e sintaxe, além da
semântica, que estuda o significado das expressões linguísticas.

Estamos aqui para dar as boas-vindas às estudantes e aos estudantes que acabam de
ingressar na vida universitária. E imagino que na cabeça de vocês tenha uma cigarra
insistente, como todas as cigarras, apitando uma pergunta: “Para que serve o curso de
Letras?”.

A vocação natural do curso de Letras é a formação de professoras e professores, seja de


língua materna, seja de língua estrangeira, seja de português como segunda língua — e a
UnB se destaca entre as universidades brasileiras por ter uma graduação em português do
Brasil como segunda língua.

Mas uma pessoa formada em Letras pode também atuar em outras frentes, além do ensino.
Por exemplo, a tradução, e nós temos a sorte de estar numa das poucas universidades
brasileiras que oferecem uma graduação em tradução. Sou suspeita para falar de tradução,
porque sou viciada em traduzir, não tem nada que me dê tanta alegria e me fascine tanto
quanto essa impossibilidade possível de conexões e atritos entre duas ou mais línguas.
Comecei a traduzir profissionalmente quarenta anos atrás, ainda no início da minha
graduação, e fiz minhas primeiras traduções justamente para a Editora da UnB. De lá para
cá já foram mais de 120 livros traduzidos, de cinco línguas diferentes, para vocês verem
porque me digo sou suspeita para falar de tradução.
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Existem também outras atividades que uma pessoa formada em


Letras pode exercer. Ao lado da tradução, existe também a
interpretação, que pode ser simultânea ou consecutiva, e que exige
formação específica e muita prática. Na mesma área de atuação,
podemos citar a legendagem e a audiodescrição. Ainda nesse
campo, temos de mencionar a importantíssima interpretação de
língua de sinais, e a UnB também faz parte do conjunto de
universidades brasileiras que têm uma licenciatura em Libras, a
língua brasileira de sinais. A formação em Letras pode abrir o
caminho para que a pessoa se dedique a trabalhos editoriais, como revisão, preparação de
textos, editoração, copidesque etc. E, claro, oferece pistas para quem quiser se dedicar à
crítica literária. E mais que isso: como qualquer curso universitário, especialmente na
área das humanidades, o curso de Letras nos faz adquirir uma constelação de
conhecimentos gerais e específicos, uma formação para a vida, uma cultura humanística,
mesmo que a pessoa acabe enveredando por outras atividades profissionais. Se ser
humano é ser na linguagem, então uma formação em Letras nos torna ainda mais capazes
de compreender o que é ser humano e o que é O ser humano.

Quem entra no curso de Letras vai se deparar com uma série de temas interessantes,
cativantes e importantes, questões fundamentais para o entendimento de quem somos.
Por exemplo:

• Existem línguas “primitivas” e línguas “desenvolvidas”? Se existem, quais os


critérios para qualificar umas e outras?
• A língua que a gente fala modela nosso modo de ver o mundo ou é o contrário:
nosso modo de ver o mundo modela nossa língua? Ou uma coisa não tem nada a
ver com a outra?
• Existem línguas mais fáceis e mais difíceis? Fáceis para quem? Difíceis para
quem?
• Quem fala mais: os homens ou as mulheres? O que significa “falar mais”? Falar
mais do quê?
• É possível ou mesmo necessário elaborar uma linguagem inclusiva ou uma
linguagem neutra? Como? Por quê?
• Existem “erros” no uso da língua ou se trata de formas diferentes e igualmente
válidas de usar a língua?
• Como e por que as línguas mudam? Se toda língua dá conta de simbolizar o
mundo e permite a interação entre falantes, por que tem de mudar?
• A mudança é para pior, para melhor, ou nenhum dos dois?
• Por que as línguas são diferentes, se a espécie humana é uma só?
• Qual a relação entre a língua e o inconsciente? Quais as conexões entre linguagem
e psicanálise?
• Existem de fato línguas mortas? Ou quem morre são todos os falantes de uma
língua?
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• Quais as relações entre pensamento e linguagem? Quem vem primeiro, as


palavras ou as ideias?
• Faz sentido falar da “lógica” de uma língua?
• Fala e escrita são radicalmente diferentes ou têm mais semelhanças do que
diferenças?
• Em que pé estão as ferramentas automáticas de processamento da linguagem,
como por exemplo as ferramentas de tradução automática? Elas podem
desempenhar todas as tarefas atribuídas tradicionalmente às pessoas?
• Quais as conexões entre linguagem e inteligência artificial?
• Quantas línguas existem no mundo? Quais os critérios para fazer esse cálculo?
• De onde vem o sentimento de que algumas línguas são mais “bonitas” do que
outras? Por que, por exemplo, eu acho o italiano a língua mais bonita do mundo?
Tem alguma coisa de racional nisso?
• Como proteger uma língua da extinção? Quais políticas linguísticas podem
contribuir para a preservação e continuação de uso de uma língua?
• O que está implicado no ensino de línguas? É preciso “ensinar gramática”?
• O que constitui um “sotaque”? Por que alguns sotaques gozam de prestígio e
outros são estigmatizados?
• Existe algum lugar onde se fala melhor a língua ou isso é só um mito cultural?
• É possível falar de “fidelidade” na tradução? Quais os limites da traduzibilidade?
• Quais fenômenos socioculturais, políticos e econômicos levaram o inglês a se
tornar a língua hegemônica no mundo de hoje?
• Como as crianças adquirem a língua?
• Qual a origem dos distúrbios da fala, como a dislexia, a afasia, a gagueira e outros?
Esses distúrbios têm cura?
• A pessoa que não saber ler nem escrever é menos inteligente?
• Como as línguas nascem? Qual a origem da linguagem humana? Desde quando
os seres humanos falam?

Finalmente, e para dar um destaque especial, é preciso falar da literatura. É tanta coisa
que se pode dizer sobre a literatura que mal dá para começar. E a própria pergunta “o que
é literatura?” já daria para muitas horas de discussão. Como linguista e escritora, me
sinto muito à vontade nesses dois grandes campos em que se divide a área das Letras. Às
vezes, essa divisão acaba se tornando incompreensão, como se existisse uma obrigação
de exclusividade: o que eu faço é linguística, o que você faz é literatura. Não precisa ser
assim. Se a literatura é a arte que tem a linguagem como matéria-prima, então a linguística
tem muito o que contribuir para o estudo literário. E se a literatura representa um uso da
língua particular e socialmente marcado, os estudos literários têm muito a contribuir para
os estudos linguísticos.

Mas, de novo, atenção! Vocês que estão ingressando no curso de Letras não alimentem a
ilusão de que vão finalmente entender Machado de Assis e quem sabe até Guimarães
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Rosa. Nem, muito menos, que vão se tornar escritoras! O que se chama literatura na
universidade vai muito além daquela lista de “clássicos da língua” e “estilos de época”
que nos foi apresentada durante nosso percurso escolar. Machado de Assis e Guimarães
Rosa, evidentemente, são objetos de estudo no campo da literatura, mas também entram
nele muitas outras manifestações da atividade literária de indivíduos e de grupos sociais.
A literatura marginal, a literatura oral, a literatura que agora se produz em diferentes
mídias e nas redes sociais, a literatura de outros países de língua portuguesa, a literatura
que dá voz aos grupos marginalizados e oprimidos da sociedade, a literatura centrada nas
relações raciais, a literatura queer, a literatura feminista, a literatura da música, e de toda
a música, do hip-hop e do rap ao samba e à ópera clássica, a literatura popular, as práticas
literárias das diferentes comunidades e de diferentes povos… enfim, um sem-número de
coisas, fatos e objetos que se apresentam a nós nas múltiplas formas de linguagem que
podem ser chamadas de literatura. Esperem só para ver!

Por fim, é com grande alegria e votos de boa sorte que dou as boas-vindas a todas vocês,
a todos vocês, na esperança de que possam se apaixonar pelos estudos da linguagem, essa
linguagem que, não custa repetir, faz de cada uma de nós aquilo nós somos. Obrigada!

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