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Protestantismo Tupiniquim

Gedeon Alencar 

A rte Editorial
São Paulo / 2007
Capítulo IV '

 A Democracia Brasileira tem *


uma “Marca Batista”?

O protestantismo tem alguma contribuição concreta e visível


ao país? Alguma marca, como a religiãa católica, indígena ou
cultos afro? Se tiver, por que isto é tão pouco notado? Basta
 pe ns ar em du as áre as: mú sic a clássic a e alfa betiza ção. Em tod as
as orquestras sinfônicas deste pa ís temos evangélicos e, se a taxa
de alfabetização brasileira fosse medida em uma de nossas
igrejas, mesmo n as mais periféricas, seria q uase zero. O qúe filmes
como Central do Brasil, Orfeu, Cidade de Deus, Deus é Brasileiro,
Carandiru  (e, também O  Aut o da Compadecida,  se considerarmos
o papagaio do Chicó, que se "converteu" ao protestantismo),
 Am are lo Ma nga, Con tra Todos   têm em comum? Em todos eles
existem personagens evangélicos. Coadjuvantes, mas presentes.
Repetindo um chavão: cinema é metáfora. Então, o que significa
esta metáfora sobre o protestantismo? Não me atrevo a decifrá-
la,' mas arrisco um palpite: no Brasil ninguém escreve, fala,
 pes qu is a ou fi lm a so br e po br es, fa ve la do s e m arg in ai s sem
tropeçar com evangélicos. Isto é bom ou ruim? Talvez as duas
coisas. No primeiro momento fomos totalmente marginalizados,
agora estamos nos tornando coadjuvantes. Pelo menos na
cul tura 66, pois na política já som os (?) ato r principal.

66 “Gilberto Freyre afirmou que a influênci a protestante nas letras ou em qualquer das
artes nacionais foi nula ou, quando muito (o que considera uma limitação), manifestou-
se no campo m enos criador da gramática e da filol ogia” (Waldo César, 1973:8).
Pr o t e s t a n t i s m o Tupiniquim A D emocra cia B r a s il e i r a t e m u ma “M a r c a Ba t i s t a ”?

Teologicamente democratas?  Antes da democra cia brasileira, existiam os batistas.

Existem três sistemas de gestão eclesiólógica67: a episcopal,  No Brasil, de sd e 188268, em pleno Im pério de D. Pe dro II, os
que se caracteriza pela pessoa do bispo e/ou papa; o tipo  ba tis tas - ho m en s, mulhe res , jove ns e velho s, bran co s, pre tos,
 presbiteriano , que se caracteriza pela presença de um grupo eleito mulatos, mamelucos, empresários, operários, agricultores,
de presbíteros ou líderes; e, por fim, a categoria congregacional, analfabetos, doutores, pobres e ritos - exercem a "democracia
que se caracteriza pela liderança não de uma pessoa ou grupo,  pl en a" qu an do a pa rtic ip aç ão po lítica da pop ula çã o é pífia.
mas pela autonomia do mesmo. Ou seja, em tese, o sistema Apen as hom ens letrad os vot avam 69. >
episcopal é monárquico; o presbiteriano, aristocrata; o  No final do sécu lo XIX, tem os, no Brasil, três den om ina çõe s
congregacional, democrático. Parodiando, se democracia é o representativas: presbiteriana, metodista-e batista. Excluo da
 po de r do po vo exercid o po r ele, um a igr eja bat ist a é co mpo sta e análise a luterana, pois é uma igreja étnica.
dirigida pela própria. Em tese. A presbiteriana fez opção pela elite. Boanerges Ribeiro (1981),
Historicamente, os episcopais (católicos e anglicanos) foram em seu livro "Protestantismo e cultura", analisando o primeiro jomal
çnais propensos a regimes monárquicos; os presbiterianos evangélico,  Im prensa Evangé lica,  fundado em 1864, diz que a
umbilicalmente ligados ao nascimento e consolidação da  pro du ção é "e ndere çad a às elites". O pro jeto excl usivo é d edica do
aristocracia burguesa, e os.congregacionais (batistas), no à educação (Gomes, 2000). Educação tecnológica (Wèber), pois se
náscedouro dos movimentos sociais resultantes da Reforma o povo saísse da ignorância (analfabetismo, religiosidade po pular,
Protestante, são filhos e causadores da democracia moderna.  baixa tecn ologia = catolicismo) enc ont rari a, no pro tes tantismo , a
Qu teologicamente, em sua literalidade, o tal do "sacerdócio modernidade e o progresso. Daria, então, para conciliar? Difícil,
universal dos crentes". Não existe um sacerdote para dirigi-lo até porque, como diz Niebuhr (1992:33-34), "o presbiterianismo,
(episcopal) ou mesmo representá-lo (presbiteriano). Os desde seus primórdios, fracassou na satisfação das necessidades
camponeses alemães acreditaram tanto nesta teoria que quiseram religiosas ou éticas do povo, é evidente. Com o calvinismo em
 pô r em práti ca, ma s h av ia alg un s príncip es no me io do cam inh o toda parte, ele suspeitava do homem comum. (...) O
sendo abençoados por Lutero. Mas, como diriam os  pre sb ite ria nism o era int ele ctu alista , auto rit ári o e aris tocrático ".
companheiros, a luta continua! E seria muito complicado para senhores e escravos, ambos
Ressalvas: no século XVI, a monarquia era, por natureza,  pre d es ti n ad os, fa la re m em ig u ald ad e. W eb er , fa la n d o do s
absolutista e não democrata, assim como a aristocracia. Hoje, calvinistas, usa as seguintes expressões: "aristocracia espiritual"
não é necessariamente assim. Inglaterra, Suécia, Arábia Saudita (85), "aristocracia dos eleitos" (93). Não deixa de ser uma boa
e Burundi são exemplos de monarquias democratas e ditaduras  pe rg un ta : qu ais as (in )com pa tib ili da de s en tre pr ed es tina çã o e
despóticas. É simplismo, portanto, reduzir os conceitos: democracia? Isso explica, em parte, a dificuldade que os
episcopal-monarquia-não democracia; idem, b atista-povo-  presbiter ian os tiv era m em ad eri r à lu ta em prol da em anc ipa ção
democracia. Hoje temos anglicanos anti-monarqu ia e democratas dos escravos no EUA (Paiva, 2003:89).
(a Inglaterra anglicana é melhor prova disto) e batistas anti-
68Os anglicanos chegaram em 1810, os luteranos em 1823, os congregacionais em
democratas. A direita americana que o diga. 1855, os presbiterianos em 1859, os episcopais em 1890. ACongregação Cristado
Brasil e Assembléia de Deus, em 1910 e 1911, respectivamente.
67Sistema de ges tão ou natureza teológica da eclésia? Iss o é assunto de ciência política 69A s mulheres só entram no processo eleitoral a partir de 1932. Em 1940, a taxa de
ou de teologia? Agrupamento Místico ou Gmpo Social? analfabetismo brasileiro era de 56,2% (Fausto, 1992:393,570) ,

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Pr o t e s t a n t is m o Tupiniquim A D emocra cia B r a s il e i r a t e m u m a “M a r c a Ba t i s t a ”?

A Igreja Metodista nasceu com caráter evangelístico fim, no exercício da democracia num a terra em que a democracia
arminianista de, em tese, alcançar todos em todos os lugares. "é um lamentável mal-entend ido", como assinala Sergio Buarque
Antianglicana, antiestatal, é, no primeiro m omento, u ma quebra de Holanda. Ora, mas enquanto as CEB's fazem isto a partir da
de status na conservadora sociedade inglesa, portanto, décadá de 1970, há cem anos a Igreja Batista já fazia - senão
antiaristocrata. Como nos ensina Weber, todo grupo religioso exatamente, algo parecido. Vejamos, num país em que as
nasce efervescente, iconoclasta, carismático, mas no decorrer do mulheres não votavam, pouquíssimas estudavam ou
tempo se burocratiza. Neste processo de institucionalização, se
trabalhavam, as mulheres membros de Igrejas Batistas desde o
"episcopaliza". Talvez, no século XIX, tenha sido a igreja mais.
século XIX já-participam de assembléias para decidir o destino
afetada pela questão da èscravatu ra, algo, aliás, que "di vidiu todas
da su a   cong regação 73. Por que, e ntão, esse pro tagon ism o
as denom inações" (Reily, 1993:38). Sua ênfase na santid ade pessoal
democrático nãõ os acompanhou na alteração da sociedade
terminou por exacerbar o pecado social e não suas conseqtiênciaá
(Niebuhr, 1992:48). No Brasil é quantitativamente insignificante.  brasile ira ?
Resta, então, a Igreja Batista para influenciar este país.
A Igreja Batista, por su a tradição dem ocrática, sua autonom ia Pentecostalismo das massas & comissão política
eclesial, sua organização social de efetiva participação de seus  No séc ulo XX, ob riga to ria m en te, é necessá rio se pe ns ar no
ntembros poderia - e deveria - ter produzido alguma m arca na  pe nte co st al is m o. Prá tica re li gio sa que nu nca qui s m u d ár o
democracia brasileira? Esta denominação teve e ainda tem uma mundo, mas sair dele. Excluo de minha análise a Congregação
forte expressão nos EUA. É inegável a importância dessa Cristã do Brasil, pois ela nasce como uma igreja étnica,
denominação pa ra a construção da dem ocracia americana. Muito ultracalvinista e absolutamente apolítica. Poderia ser
mais do qu e um a igreja batista, o "estilo batista", ou a autonom ia  perfe ita mente justi fic ada pe la p roi biç ão aos est ran geiro s d e atu ar
local da cidade e Estado, se torna parâmetro da Federação  pol iticam ent e. N a Co ngreg ação, se ag rava po r serem italianos.
Am ericana 70. Mas me recu so, nes te texto, a fazer com parações  N o en ta n to , os it a li an o s - fa sci sta s ou an arq u is ta s - sã o
entre Brasil e EUA. Essa síndrome Brasil & EUA é um paralelo componentes fundamentais no nascimento do sindicalismo
que mu itos já fizeram e há um a vasta literatu ra sobre a questão,  brasil eiro . Resta, ent ão, a As sem blé ia de Deus.
desde Freyre e Holanda71. A mim neste momento não interessa,
até porque creio que isso é muito mais prob lema que solução. O Segundo dados parciais do Censo 2000, a Igreja Assembléia
desafio é pensar a Igreja Batista Brasileira, sem pensar nos EUA, de Deus te m oito m ilhões e cem mi l mem bros, 'ou 31 % dos vinte
até o pde isto for possív el72. e seis milhões de evangélicos no Brasil. É a maior denominação
 pr ot es ta nt e brasile ira , Co mo igreja in stituc io na l, pe rd e ap en as
Muito se fala na influência das CEB's (Comunidades Eclesiais
 pa ra a C atólica. Nascid a em Belém do Pará, em 1911, a pa rti r d a
de Base) no processo dem ocrático, na articulaç ão das bases sociais
dissidência em uma Igreja Batista, foi fundada por dois
 pa ra um a leitu ra bíb lica co m prom etida com a realid ad e e, po r 
imigrantes suecos, Gunnar Vingren e Daniel' Berg. Em duas
70Dentre uma vasta literatura sobre o assunto basta lembrar do clás sico  A De mo cra cia décadas alcançou o país, acompanhando o processo migratório
 Ame rican a,  de AToc queville, em que ele chama atenção para o caráter associativista norte-nordestino, causado, naquele momento, pela crise da
comunitário da nação americana, onde as denominações eram registradas como
“associações”. Bellah (1999) fala explicitamente da influência batistana democracia
americana, dentre outros. 73A P esquisa Nov o Nasc imen to  (Fernandes, 1998:63-64, especialmente tabelas 21 e 22)
71 Casa Grande e Senzala,  publicado em 1933 e  Ra íze s d o B rasi l,   em 1936 chama atenção ao fato de que 53% dos evangélicos participam de alguma atividade
72DaMatta (1997), Sachs (88), Souza (99), dentre outros tratam desta questão. administrativa de sua igreja. E os batistas são os campeões com 66% de presença.

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P r o t e s t a n t is m o Tupiniquim A D e m o c r a c i a B r a s il e i r a t e m u m a “M a r c a Ba t i s t a ”?

 bo rr ac ha (F au sto, 1999). Sem lig aç õe s es tr an ge ir as co mo as e efeito que a Com issão Política da AD e su as pretensas diretrizes
demais denominações protestantes, e, portanto, sem têm para seus membros? O mesm o que um comunicado da CNBB
financiamento e estratégia de um a matriz, a Assembléia de Deus  par a os catól ico s: nen hum . É m er o di sc ur so . Uma te nta ti va
nasceu brasileira   (Alencar, 2000). Até porque em 1911, a Igreja canhestra de uma liderança que há muito tempo foi atropelada
Católica celebrava missas em latim, as igrejas Luterana e e ultrapassada pela dinâmica do grupo, mas ainda não percebeu.
Adventista, cultos em alemão, e a Igreja Anglicana e todas as Ou não quer perceber. Insiste, porém, em (tentar) faturar
demais denominações protestantes num "teologuês" anglo-  politi cam ent e. Na pe sq ui sa re alizad a em 1994, pe lo ISER no Rio
saxônico. Até mesmo a única igreja pentecostal da época, a de Janeiro, encontramos os seguintes percentuais entre os
Congregação Cristã do Brasil, celebrava seus cultos em italiano. assembleianos: 37% votam em candidatos evangélicos, 43% que
Periférica, simples e marginal, cresceu entre pobres. Ela não tenham boas idéias políticas e 19% em qu em traga melhorias.
optou pelos pobres. Ela é uma igreja de pobres. Portanto, na A Comissão Política é uma p ropos ta da CGADB - Convenção
marginalidade. Categorização que, pelo viés marxista, apenas Geral da Assembléia de Deus no Brasil. Convenção Geral no
comprovava a "alienação religiosa". No entanto, esta natureza  pap el, po rq ue a A D é u m cong lomera do de Mi nis térios (grup os
de pobre e simples sempre foi vista internamente como "marca de igrejas autônomas e semi-autônomas) dispersos, diversos e,
da escolha divina". Como disse o apóstolo Paulo: "Deus escolheu em alguns lugares, divergentes. Qual o ponto comum que as
as coisas fracas deste mu ndo para co nfundir as fortes; as cousas ADs têm no Brasil? O nome, apenas. AD é formada hoje por
humildes, e as desprezadas, e aquelas que não são, para reduzir um a sériq,de grupos díspares que não têm nenh um contato entre
a nada as que são". Texto muito repetido pelos assembleianos, si. Há divergências inconciliáveis, lutas de poder viscerais. Note-
este discurso, para consumo interno, é por demais convincente se bem: nunca hou ve um a dissidência na AD no Brasil por algum a
e satisfatório. E isto, ao longo dos anos, reforçou sobremaneira questão teo lógica ou algo similar. Toda s as crises, lutas e divisões
sua militância aguerrida. Sua síndrome de marginal. na AD do Brasil foram lutas de poder (Alencar, 2000).
"Quando o cabra vira crente, vira logo cidadão. Ergue a Pergunte a um çaiólico quem é o presidente da CNBB.
cabeça, até parece que tem estudo!" Esta é uma frase síntese, Pergunte a um assembleiano quem é o presidente d a CGADB. E
 prof eri da po r u m agric ultor , n a pesq uisà da antro pó loga Reg ina nem precisa ir ao interior do Amazonas, na periferia de São
 N ov ae s (1 97 9.1 36 ), em q u e el a d efi n e a co n v ers ão de Paulo se encontrará um assembleiano militante, há anos servindo
assembleianos cortadores de cana, no interior do Pernambuco, na igreja e que não sabe quem é o presidente da denominação e
como "dignidade recomposta apesar da deterioração visível de não te m conh ecimen to d a Com issão Política74. E mesm o que este
suas condições de vida". Pena q ue "os escolhidos de Deus" (este membro quisesse, obedientemente, seguir suas diretrizes nunca
é o titulo de seu livro) não transformem esta "dignidade tomaria conhecimento das mesmas. Elas são publicadas na
recomposta" em modelo de vida para todos os assembleianos  Revista Obreiro, e no jo rnal oficial, o Mensageiro da Paz.  Este último
no país inteiro, mas é proposta de um grupo isolado. com uma tiragem de cem mil exemplares para oito milhões de
' No venta anos depois, a Assembléia de Deus não é mais a membros. . ,
mesma - ou pelo menos a liderança. Grande, poderosa, rica, "a Qual a marca da AD? Ela sempre foi uma igreja feita de gente
maior do país" agora quer dar as cartas, principalmente, na que está próxima de gente; de povo que é povo para o próprio
 polític a. Mas chega com atras o e pa tin an do mu ito . Cr iou um a
Comissão Política para "orientar" seus membros. Qual o poder  74Constatei isso pessoalmente em uma AD em Ribeirão Pires, na grande São Paulo.

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Prot estanti smo Tupiniquim A D emocra cia B r a s il e i r a t e m u m a “M a r c a Ba t i s t a ” ?

 pov o. É mig ra nte cu id an do de mi gr an te, fa velado cu idan do de Ética Protestante e o "Espírit o" do Capitalismo  (Weber, 2004), capítulo
favelado, pobre falando para pobre. Expandiu-se sem dinheiro segundo A idéia de profissão do Protestantismo Ascético,   ponto 1 -
do exterior, por isso nunca acumulou patrimônio. Nasceu pobre Os Fundamentos Religiosos da Ascese Intramundana,   onde Max
e permaneceu assim durante décadas. Aliás, esta foi a natureza Weber analisa as "seitas batistas". Muito do que será colocado a
do pentecostalismo: coisa de pobre. Nascido entre negros seguir, poderia ser aplicado a quase todas as denominações
(desnecessário dizer, pobres) foi perseguido pelas denominações evangélicas, o próprio W eber cham a atenção a isto (138), mesmo
tradicionais e Igreja Católica, muito mais por racismo (a mesma que sua análise seja específica das chamadas "seitas batistas". E
razão da perseguição aos cultos afro) do que por razões teológicas. antes de prosseguir, precisamos entender seu conceito de "seita"
Mas cresceu. Cresceu muito e alcançou outras classes. "Todas as e "igreja". A aplicação weberiana se dá, primeiro, num a conotação
igrejas dos pobres cedo ou tarde se transformam em igrejas de  políti ca, e, se gu nd o, sociológica.
classe média" (Nieburh, 1992:41). A liderança assembleiana está  Naturalmente os batistas sempre repudiaram a designação de "seita".
sendo acua da pela atuação da Igreja Universal do Reino de Deus. (...) Em nossa terminologia, entretanto, elesformam uma "seita", não
E é esta "iurdinização" do neopentecostalismo que está dando a apenas porque lhes falta qualquer   relação com o Estado. (...) tal
 pauta. Princ ipa lmente, na políti ca. Afinal,' se a Igreja Católica fez comunidade só podia ser organizada v oluntariamente como uma seita
opção pelos pobres, os pobres fizeram opção pelo pentecostalismo. e não compulsoriamente como uma Igreja (Weber, 2004:242-3, nota
Já o neopentecostalismo fez opção pelos empresários! 173, grifos nossos).
A AD, de forma prática, tem alguma contribuição à Igreja é um agrupamento tradicional ligado ao Estado; seita
democracia brasileira - até porque, em sua origem, é é um grupo voluntário, aguerrido, sectário, exclusivo e,
congregacional? Nas Ditaduras do Estado Novo e Militar, em invariável, de contestação. Weber, quando se refere à Igreja,
1964, não se pronunciou a favor ou contra. Isto aconteceu muito fala da Católica, Anglicana e Luterana - todas igrejas estatais.
mais por sua natureza marginal do que por opção ideológica, As seitas são, portanto, os grupos de contestação não ligados às
mas, convenhamos, qualquer grupo calado numa ditadura é Igrejas Estatais. Como dirá Troeltsch, "se nasce na igreja e se
contado a favor. Esta igreja só acordo u na Constituinte de 1986, adere à seita". Igreja, portanto, é um estado de acomodação
lutando em prol do nome de Deus no preâmbulo. Posteriormente, social até porque é beneficiada pela mesma. Seita é grupo
alguns de seus deputados se destacam na CPI dos Anões do separatista que se recusa a concessões e opta pelo isolamento.
Orçamento/ como acusados e cassados. Em 2004, elegeu 22
deputados federais. Resta esperar. 1. A democracia batista é uma farsa.
Diversas vezes tenho ouvido esta acusação nos meios
 A democracia brasileira tem uma “ marca batista” ? evangélicos. O sistema congregacionâl é mise-en-scéne   em que a
igreja vota democraticamente  no que o pastor (ou a família influente
da Igreja) quer75. Não creio que, de forma genérica, seja tãó
Por que, então, cobrar da Igreja Batista uma contribuição
simples assim. Até porque existem democracias e democracias,
concreta à democracia brasileira, se não é encontrada nas demais
 be m com o ba tis tas e batistas . Igrejas como a Cat ólic a e AD, em
igrejas evangélicas? Porque este é único grupo que advoga para seu "episcop alismo vitalício"76, dentre outras, ne m tentam
si a natureza democrática.  Então a pergunta é: este protagonismo
democrático alterou a sociedade brasileira? 75Bastian (1 994:123 -130), inc lui os batistas, em sua análise do caráter personalístico
do protestantismo.
Apresentarei, a seguir, algumas hipóteses sobre esta questão. 76E sta é a típica estrutura eclesia l assem bleiana (Alencar, 2000) , apesar do Pr. José
Algumas são observações minhas; outras da leitura do clássico Wellington dizer que é a AD é congregacional (Revista Eclésia, 51, fev/2000).

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'P rot estanti smo Tupiniquim A D emocrac ia B r a s il e i r a t e m u m a “M a r c a Ba t i s t a ”?

disfarçar. A "revelação" é dada exclusivamente ao "dono" da eleita como a questão fundamental, como se explicar a
Igreja e vamos em frente. A Inquisição existe, inclusive, para  pa rti cip aç ão ba tis ta em ou tros luga re s e pe río dos?
lembrar isto. Nada é discutido, conversado, avaliado ou votado. Particularmente creio que a participação de batistas e
O pacote está pronto. Única opção: obedecer. assembleianos nas Ligas Camponesas Nordestinas, nas décadas
 N um a igre ja co ng re ga ci on al , po r m ai s que te nh a al gu m a de 1950 e 1960, foi um ac idente de percurs o e não um a alteração
manipulação (e sempre terá, pois pode ser congregação de da caminhada dessas igrejas. Cartaxo Rolim (1995) identifica no
 ba tistas , ma s nã o é de anjos), no mínim o exi ste a po ssibili da de  pr otes ta ntism o br asile iro (su a an álise é m ais pa rtic ul ar men te do
de todo s falarem . Ex pressa r a opinião. D iscutir. V otar77. Ou,  pe nte costa lismo ) alg o qu e ele ch am a de "m en ta lid ad e sac ral"; a
como dirão alguns, manobrar. O uvi de um líder batista a seguinte religião apolítica dos brancos americanos. Fica a pergunta: se
expressão: democracia representativa mimética. nossa versão protestante de pentecostal e batista fosse dos
negros americanos teríamos outra postura?
2. O modelo social é o passado e não o presente. Os batistas, no Brasil, não produziram nem um movimento
 A estrita alienação do mundo, ou seja, de todo intercurso desnecessário social ou qualquer personagem parecido com um Martin Luther
com pessoas leigas, juntamente com a mais estrita bibliocracia, no King. Por quê? Por outro lado, os cinco deputados federais do
sentido de se tomar a vida das primeiras gerações de cristãos como PT são todos ba tista s78. Isto significa o quê? N ão c usta lem brar,
modeloforam os resultados para as primeiras comunidades batistas, como fez Niebuhr, que a propensão para o martírio dos grupos
este princípio de alienação do mundo nunca desapareceu inteiramente, sectários não resiste à segunda e terceira geração. Nisto, aliás,
enquanto permaneceu vivo o velho espírito (Weber, 2004:132). está a diferença entre os neopetistas e a Heloisa Helena.
Isto, aliás, poderia ser dito de diversas outras denominações
evangélicas. O modelo, em tese, é o da Igreja Primitiva. O 4. A separação entre Igreja & Estado se tomou Igreja & Sociedade.
comunismo cristão dos primeiros séculos vem embalsamado em Uma vez que estas comunidades (batistas) nada queriam ter a ver com
utopismo e muito sonho. E pára. No jogo entre saudosismo e os poderes políticos e com seu procedimento, disto visi velmente resultou
atuação, o placar fica de 10 x 0. a penetração ascética na vida profissional (...) Toda a sutil e consciente
racionalidade da conduta batista foi assim orientada para vocações
3.  A exacerbação do indivídu o. apolíticas (Weber, 2004:136-139).
Apesar dos batistas serem herdeiros do liberalismo inglês A marca de nascimento do movimento batista era a ênfase
(Locke), por causa da influência americana, sua fé é subjetiva na separação entre Igreja e Estado. Historicamente uns dos
grupos mais batalhadores da autonomia da sociedade civil foram
com valores pré-modernos. A pretensa "celebração do
indivíduo", com o ser social autônomo e construtor de uma os batistas79. Aliás, nesse ideal é qu e es tá sua orige m e existência.
Reforma Protestante é um grito de liberdade contra a corrupção
sociedade democrática, dá lugar a uma religiosidade de fins
individuais. Esta é a síntese da tese de Israel Belo Azevedo da Igreja (Estatal) Católica, e para aprimorar esta liberdade
(1996). Penso que é pouco como explicação, apesar do respeito surg iram a Igrejq .Anglicana, na Ing laterra, e Lu terana na
que nutro pelo autor citado. Há muitas outras questões. Mesmo
78 Gilmar Machado (MG), Henrique Afon so (A C), Walter Pinheiro (BA), Wasny
77Essa é a síntese da tese de doutorado em sociologia de Alesandre Brasil Fonseca, (DF), Zicç Brozeado (AC).
defendida recentemente na USP. Apesar de ter assistido sua defesa não tiv e acesso 79S ei que historicamente isto é simplismo. Há muitas questões políticas, econômicas e
ao seu texto. Apesar desta simplificação, espero estar fazendo justiça a seu trabalho. teológicas envolvidas nisso. N ão poss o aprofundar todas as nuances. Fica o registro.
P r o t e s t a n t i s mo Tupiniquim A D emocrac ia B r a s il e i r a t e m u ma “M a r c a Ba t i s t a ”?

Alemanha e demais países nórdicos. Contra a antiga Igreja  po r Tocqueville. No entanto , al gu ns mo vim en tos socia is, de sde
Estatal, novas estatais. o século XIX, já aconteceram no Brasil, como, por exemplo, a
Os anabatistas - o PSTU da época? - queriam romper com Proclamação da República e Abolição dos Escravos. Mas, como
toda e qualquer ligação com o poder estatal. Absoluta separação dizem, estes movimentos não foram produzidos e
da igreja - autônoma, local, congregacional - em relação ao  pr otag on iz ad os pe la po pu laçã o orga niza da ; ,e tu do nã o pa ssou
Estado. Ora, nessa luta criou-se um abismo entre este de uma acomodação da elite. E isto, de alguma forma, reforça
agrupamento voluntário (com características sectárias) e a minha suspeita.
sociedade em sua totalidade. Pois, se em sua origem os
anabatistas protestavam com armas e dando a vida na guerra A Igreja Batista, se não tem nenhum acordo com a elite
em prol, inclusive, da democracia e de uma reforma agrária, também não está na liderança protagonizadora dos m ovimentos
hoje os batistas americanos boicotam a  Disne y World,  em protesto sociais. O que, então, justificaria sua postura alheia ao mundo
contra o  Dia Gay.   É avanço ou retrocesso que o  Mi ck ey M ou st   bra si le ir o ? Seu m ode lo é o e st il o de v id a do m is si on ári o
tenhá menos batistas em sua companhia? americano. Neste caso, na sua totalidade branco, classe média,
Se formos identificar, no entanto, uma figura símbolo da luta escolarizado, com postura asséptica de militância política. Para
 pel os dir eit os civis no séc ulo XX» o nom e d o P as tor M aftin Lu ther uma igreja que está se formando na zona urbana com sintomas
King é inquestionável. Militante por ser pastor batista ou por de classe média é um casamento ideal. Antes de acusar a Igreja
ser negro? Entre nós, porém, nada parecido aconteceu. E, pelo Batista desse adesismo e deslumbramento com os EUA é bom
andar da carruagem, não vai acontecer. lembrar, como bem frisa Sodré (1976), que esta síndrome acontece
em todo o país, em diversas aéreas, principalmente no cinema.
5. O escatologismo milenarista.
 N es se pon to há em pa te ab so lu to co m o pen te cos ta li sm o 7.  A fun ção da igreja não é, afinal,   em-direitar o mundo?
assembleiano, e talvez esta seja a questão mais facilmente
De Pedro Álvares Cabral a Frei Beto, a Igreja Católica sempre
 jus tifica da. O pentec ostal ism o mod er no su rg e no fin al do séc ulo
XIX e se consolida nas primeiras décadas do século XX. Período esteve ao lado do poder. O Núncio Apostólico que o diga. A
áureo entre a I e II Guerra Mundial com o perigo nuclear  prim eira mis sa, as capit anias he re ditária s, o pa dr oa do , o Cristo
rondando como espectro. Redentor, a Catedral em Brasília, sem esquecer do imoralíssimo
A soteriologia de cada grupo religioso determina sua visão laudêmio servem de atestado. Há alguns Helders Câmaras de
de mundo, é a síntese de outro texto clássico de Weber (1996b).  pla ntã o pr otes tand o junto ao pú bli co e n ão realizan do ne nh um a
Ou seja, se creio que o mundo será destruído irreversivelmente alteração interna. Protestante não protesta, prega; não reivindica,
e nada poderá, ou deverá mudar, no que alguns chamam de ora; não faz greve de fome, jejua; não d istribuí panfle to, evangeliza;
"teologia do quanto pior melhor", por que tentar alterá-lo? não faz passeata, marcha para Jesus. Até nota, mas nos "indicados
Algumfe democracia, nenhuma democracia ou total ditadura faz  po r De us" qu e, coinc ide nte me nte , são afi lha dos do pasto r.
alguma diferença? Não. A mansão no céu, sim. A Igreja Evangélica, na me sma escola da católica, não é nad a
diferente. Desde os "acatólicos súditos da Rainha", em 1810,
6. Yes, nós temos batistas: modelo de vida americano.
até o bispo Rodrigues, todos deram aprovação ao Governo. Os
 N ão te m os ne st e m om en to , ai nd a, um a "s oc ie da de civil" que não deram foi porque o Governo não pediu, por absoluta
organizada, algo já presente na sociedade americana analisada desimportância dos mesmos. Mas estavam disponíveis. Era o
64
P r o t e s t a n t i s mo Tupiniquim A D e m o c r a c i a B r a s il e i r a t e m u ma “M a r c a Ba t i s t a ”?

Gal. Figueiredo chamar que o Pr. Faninni batia continência80.' 8. Democracia seletiva.
Idem para demais pastores. Fernando Collor foi eleito pelos  As igrejas da burguesia tenderam a aceitar algum tipo de governo
evangélicos (Pierucci, 1996)81 e, em ple no impeachment,  ainda representativo que garanta a liberdade e a responsabilidade individuais,
continuava tendo apoio da maioria. Também tivemos nossos mas que também levante barreiras contra os abusos da democraciaplena
Helders Câmaras, obviamente menores sem nenhuma (Niebuhr, 1992.61).
visibilidade na mídia. E, como o Outro, também não efetuaram Será que é viável lutarmos por um grupo definitivamente
alteração interna. democrático em todos seus aspectos? E se a patuléia levar a sério
A esquerda tam bém contribuiu muito. Seu discurso anárquico, a possibilidade de democracia plena de fato, como ficam as
de contestação da auto ridade, de liberação sexuaV luta de hierarquias de poder? Como é que fica uma família batista, em
classes, tem muitas incompatibilidades com a pauta das igrejas. que na Assembléia Ordinária da Igreja, todos votam
Qual de no ssas editoras evangélicas publicou as obras d e Willian  pa rita riam en te em toda s as qu es tões da cong rega çã o, mas em
Wilberforce (abolicionista inglês), Abraham Kuyper, Martin casa... Então, convenhamos que, em algumas questões ou
Luther King ou Desmund Tutu? Estes dois últimos, inclusive, territórios, deve-se ter votos paritários, noutras nem tanto.
 pr em ia do s com o N obel da Pa z e só sab em os de sua s existências Pode-se numa assembléia congregacional até decidir-se qual o
 pe la im pr en sa sec ular . Ziel Mac ha do (1997:109) cham a ate nçã o  pa sto r e seu salári o, ma s o t exto do serm ão ele escolhe. Ou §eja,
 pa ra o fato de qu e a o bra evangelístic a d e Finn ey n os é con hec ida, a igreja não escolhe o texto do sermão, mas o sermão.
mas sua obra de dimensão social foi "esquecida". Em Cristo, não há judeu nem grego, nem escravo nem livre, nem
' O texto do Ziel, a começar pelo título, é muito otimista; talvez macho nem fêmea. .
 pe la da ta em qu e foi pr od uz id o (1997). At ua lm en te, na era pós- , Onde está a paridade, cara pálida? Se ainda somos um m undo
caiofabiana, pós-teologia integral, a maré está mais para uma racista, xenófobo, sexista, classista, elitista, preconceituoso? E
atuação corpora ti vista. Basta o lhar os, nom es do M anifesto de isto não é "privilégio" da Igreja Batista, da AD ou da sociedade
Apoio ao Lula no segundo turno. Pastores que, em eleições  bra sile ira. O m un do é ass im. Se mp re foi. Con tin ua rá sen do.
 pa ss ad as , sa ta ni za ra m -n o, ag or a na ce rtez a da eleiç ão co m a Alguém lembra a história em que deveríamos mu dar o m undo
esquerda se tomando governo, o apóiam. O que não faz o poder com os valores de Cristo? Mas isto é outra história. E outro
de concessão de rádios e TVs. Surpresa? Nenhuma. Govemo, texto.
seja ele qual for, deve ser apoiado e em-direitado.
Modernos, superamos inclusive aquele texto em que Deus
separará alguns à direita e outros à esquerda. É   m uito poderosa
esta igreja brasileira. Ninguém mais está à direita ou esquerda,
todos estão mesmo é diante do Trono.

80Jimmy Carter, em sua v isita ao Brasil, e vitou se encontrar com lideranças batistas
pelo apoio que elas davam a ditadura militar (Freston, 1993:62 ).
81Esp ecialmente o cap. 8 , 0 Envo lvim ento d os Pe nte cos tais na Ele içã o de Col lor , pp.
193-210, trata da questão.

66 67
Capítulo V * 4 4'

 A Construção do WASP82 4
Tupiniquim

A religião só poderáfala r ao povo de nossa época se conseguir dizer uma


 palavra transcendente e, portanto, julgadora e transformadora.  De
outra forma, não será mais do que mera colaboradora do que se aceita
comumente, serva da opinião pública, exercendo posições de tirania tão
terríveis como as de qualquer ou tro tifano. M as se nossa religião puder 
transcender tudo isto, em que direção deverá se mover?   (Tillich,
1992:204, grifo nosso).

O cenário não p oderia ser .melhor: um prog ram a83 24 horas


no ar em prol de crianças deficientes, com transmissão nacional
em diversos canais reunindo os principais personagens do
cenário político, jornalístico, artístico. Então a contribuição
evangélica também se faz presente. O Grupo  Di vina Inspiração,
liderado por um jogador de futebol e doublé de cantor gospel se
apresenta. Mas a câmera insiste em focalizar a Carla Perez,
seminua, sambando e cantarolando a música do grupo, que no
refrão diz o seguinte: "o homem carnal vive o que vê, o homem,
espiritual erê no que não vê!".   Sintomático, nãó?
Pode-se ter leituras diferentes deste episódio: 1. Otimista: o
evangelho de fato venceu neste país, pois hoje nada mais pode
acontecer sem que a presença evangélica se faça sentir, seja no
cenário político, atlético, artístico ou empresarial; 2. Pessimista:
o evangelho vulgarizou-se tanto que a presença não faz nenhum a
82A expressão wasp - branco, anglo saxôn io, protestante, é um paradigma da cultura
branca/protestante norteamericana. Seu uso p ode ser visto com ofensa ou elo gio ao
que pretendemos estabelecer como o ethos da cultura protestante brasileira.
83Teleton em 1999.
Pr o t e s t a n t i s mo Tupiniquim A Construção do WASP Tupiniquim

diferença porque foi cooptado pelo mu ndo /"in dú stria cultural"84. um imbróglio sem tamanho: a motivação dos portugueses
 N em Weber ne m Batisd e im ag in ar am o gr au de "r ot in iz aç ãod o colonizadores é levar a mensagem do evangelho para salvar
carisma" ou "domesticação do sagrado" que os protestantes culturas pagãs (na visão católica, a indígena e, posteriormente,
 br as ile iro s co ns eg ui ra m atingir. a afro), mas os missionários evangélicos têm o mesmo objetivo.
E, paia estes, culturas p agãs são a indígena, a afro - e a católica.
Uma nega a outra, que é negada pela seguinte. "É   por isso que
1. A histórica (não) relação da cultura brasileira com o protestantism o.
os primeiros convertidos no Brasil passaram a "não viver",
A relação entre evangelho e cultura brasileira é conflituosa.
 p o rq u e ro m p e ra m co m a c u lt u ra. P assa ra m a se r pess oas
Serve de consólo saber que isto não é um problema tupiniquim
"estranhas " (Mendonça, 1997:100). "O rompim ento com ag endas •
mal resolvido por incompetência, mas durante séculos isto tem
e praxes do catolicismo romano é tão radical e irreversível que
sido grav e e emblemá tico em toda s as cultu ras85. A começar pe la
a suspensão da com unhão evangélica raram ente leva o fiel punido
Igreja Primitiva nos Atos dos Apóstolos.
de volta às velhas práticas" (Ribeiro, 1981:159).
A estada de Pedro na casa de Cornélio, contra sua própria
Com esta performance, todo o ethos protestante  foi construído
vontade, é paradigm ática. Ele não quer iri porque sua cultura
em termos de negação da sexualidade, da atuação política, da
racista (religiosa) lhe proíbe contato com "gentios", e, apesar
 pa rti cipa çã o a rtístic a, do inc en tiv o a o la zer , da vi da na soc ied ad e
da revelação, suas primeiras palavras são de "justjficativa"
 brasi le ir a . Com o diz F e rn an d es (19 77) , o p ro te sta n te te m
(negativa) e não de mensagem propositiva do evangelho. Como
o Espírito Santo sabia que ele jamais faria um apelo de salvação  pre conc eit o de ser social; se r social é ser "m ur tdan o". O cha vão
à platéia, manifestou-se e não o deixou terminar sua mensagem. repetido é: "Não somos deste mundo". A conversão é, objetiva
Pedro retom a calado e não divulga sua incursão cultura l suspeita. e subjetivamente, incentivada e requerida em demonstração de
aversão "às coisas do murtdo" e total separação do tudo o que
a)  A cultu ra da negação.  Tornamos-nos conhecidos pelo que
 po ssa pa rece r m un da no .
somos p roibid os86. Sabemos, po r nossa tradição , d que não
 pod em os fa ze r, do que nã o pode m os part ic ip ar, o qu e nã o O protestante não quer transformar o mundo, quer sair dele
 po de mos com er, bebe r etc. - me sm o que , às vez es, nã o sai bamo s (César, 1973:28). E, se a música é imoral, a arte apelativa, o
exatamente o porquê. O protestantismo brasileiro, e também cinema desaconselhável, a literatura não-edificante, é porque
latinoamericano, são essencialmente anticatólicos, pois os tudo que é produ zido no m undo tem a mancha do pecado. Enfim,
missionários protestantes tiveram que lutar com muita  pr od uç ão do pe ca do pa ra co nsum o de pecadores.
 pe rs eg uiçã o po r um espa ço na cu ltur a lat ina , já es tab elec ida e Uma vez que o homem é criatura de Deus, parte de sua cultura
nascida do encontro da indígena, portuguesa e afro. Aqui temos é rica em beleza e bondade. Pelo fato de o homem ter caído,
toda a sua cultura (usos e costumes) está manchada pelo pecado
84Expressão, cunhada pelos teóricos da Es cola de Frankfurt, em 1947, em publicação e parte dela é de inspiração demoníaca. Parágrafo 10° do Pacto
chamada  Di alé tic a do llumin istno.   De inspiração marxista, esta teoria fez uma de Lausanne.
critica ao capitalismo pela mercantilização do lazer. (Adorno, 1999)
85Há inúmeros trabalhos - prós e contra - sobre esta problemática, principalmente em O Pacto de Lausanne é um documento teológico, portanto
missiologia. Como obra síntese, remeto a  Evan gelh o e Cult ura -  vol. 3 - Série tem uma natureza dogmática. Ser contra o etnocentrismo da
Lausanne, Abu Editora e Visão Mundial, SP, 1985. evangelização colonialista é ótimo, mas como delimitar o que
86Cf. Gondim (1998),  É proib ido - o que a Bíbli a permi te e a Igr eja pro íbe  (Ed. Mundo
Cristão). O livro originalmente se chamaria “Usos e Costumes na Igreja”,   mas,
seja "inspiração" diabólica? É fácil ser coptra o que, em tese,
estrategicamente a editora mudou de nome, isto, é óbvio, lhe aumentou o sucesso. todos são: sacrifício cultual de crianças e viúvas, mutilação de

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P r o t e s t a n t i s mo Tupiniquim A Co n s t r u ç ã o d o   WASP Tupiniquim

adolescentes ou prostituição cultual: Mas, temos diversas outras Duas perguntas: 1. a música apesar de cantada e dançada pelas
mahifestações sociais que, para alguns é de "inspiração" multidões em horá rio nobre na TV, arrastou, como conseqüência,
demoníaca e para outros apenas cultural. milhões de pessoas para o Candomblé? 2. Qual música gospel/
Conquanto dogma da teologia evangélica (que não é o caso evangélica já teve a mesma repercussão?
de discutir aqui, ainda mais com a problemática "inspiração É interessante como no meio protestante foram sacralizadas
demoníaca"), sociologicamente a pergunta é: se a produção algumas man ifestações artísticas (música90 e literatura), mas
cultural mundana é de "inspiração demoníaca", então o mundo satanizadas  outras (dança, moda, cinema). Aqui fica patente a
evangélico tem sua própria produção? Há algo, no mínimo, dificuldade que o protestante tem de lidar com o corpo (dança,
evangélico underground ? Sim e não.  pint ur a, es cu ltu ra ) e su a dis po siç ão (ap ena s) pa ra as coi sas do
Cinema zero87, artes plásticas zero88, teatro zero89, literatura "espírito" (poesia, música, literatura).
há alg uma coisa e na música mu ita produção. M esmo assim, nossa "O  Império das Festas e as Festas do Império",  capítulo décimo do
literatura, ainda é um tanto "esotérica" - lida apenas por um extraordinário livro da antropóloga Lilian Schwarcz (1998), é
grupo de "iniciados". Num universo de milhões de membros, uma minuciosa descrição da s procissões e festas cívicas religiosas
qual livro no Brasil que já vendeu mais de um'milhão de da época de D. Pedro II. Ela reproduz textos de estrangeiros
exemplos, salvo raras excessões? No mun do evangélico, qualquer que, na época, estavam trabalhando ou apenas visitando o país.
livro que ultrapasse a casa de 10 mil exemplares é considerado Invariavelmente as descrições são pejorativas, racistas e
best-seller.   Resultado: a produção artística evangélica é, reprovativas, pois as festas "beiram o ridículo". Em tempo: as
lamentavelmente, um tanto "confidencial" - só conhece quem faz. descrições são de missionários protestantes, dentre eles Henry
Um bom exemplo da influência afro é a música "Canto da Koster, que chegou ao Brasil em 1809, e Daniel K idder, que esteve
Cidade", interpretada por Daniela Mercury. Sucesso nacional, aqui entre 1836 até 1842. N ada mu ito diferente da visão de Lutero
fez milhões de brasileiros dançar e cantar. Dentre as frases da (1989:289), em sua recomendação à nobreza alemã, que deveria
música há umá que diz: "eu vou -para o Candomblé pela cidade". suprimir as festas, feriados e romarias para que assim o povo
tivesse mais tempo para trabalhar. A festividade popular
87 “Cabra marcado para morrer”,  um film e de Cláudio Coutinho, talvez seja o único
filme feito no Brasil sobre evangéli cos. C onta a extraordinária/falida participação dos
 pr om ov e a ale gria, alegria co mbin a com be bida , be bida comb ina
batistas e assembleianos nas Ligas Camponesas abortadas pelo Golpe de 1964. Não com licenciosidade. Então, para o protestante, tanto na época
há nenhum livro de história de uma dessas denominações que se reporte a esse fato. como agora, é mais conveniente proibir que correr o risco. .
88Existem muitos livros, galerias, esculturas, museus de arte católica e afro. Nenhum  b)  A cultura da acomodação91. A   Reforma Protestante proclama
protestante.
89A pe ça “O pagador de promessas”, de Dias Gomes, escrita em 1960, já foi realizada a liberdade individual, o "sacerdócio universal dos crentes"
no teatro, cinema ( Palm a de Our o  em Cannes em 1962), peça radiofônica, minissérie (Lutero) e é, juntam ente com outros processos sociais, causadora
de TV è ópera. É um símbolo do sincretismo afro-católico. A peça tem catolicismo, da modernidade. Ora, esta liberdade individual vem substituir
umbanda, prostituição, levante popular, corrupção policial, capoeira, agricultor, a tutela religiosa medieval que mantinha o homem preso, mas
traição. Quando algo parecido acontece no mundo evangélico? Seria injusto não
fazer um registro para o enorme esfor ço que alguns têm feito em relação ao teatro
no meio protestante. Há diversos livros, cursos e até mesmo um encontro nacional. 90 Pinheiro, 1998.
Já assisti aqui em São Paulo até mesmo uma peça evangélica num teatro secular 91 A expressão cunhada por Leon ildo C ampos (1999:375), m as também tematizada
com tudo o que teatro deve ter: cenografia, iluminação, direção, texto e bons atores. ainda em 1973, por Procópio Carmago (1973:145): “ O Protestantismo passa
No m ais é o amadorismo de sempre. Mas a minha questão é: qual peça evangélica  pref ere nci alm ent e a ad ota r ati tud es de ma ior aco mod açã o ao “eth os ” cat ólic o
que deixou marca na cultura brasileira? Ainda não foi feita.  pre dom inam ent e n a c ultu ra bras ilei ra" .

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P r o t e s t a n t i s mo Tupiniquim A Co n s t r u ç ã o d o   WASP Tupiniquim

comodamente lhe dava segurança, lhe dava respostas, decidia sensacionalista quan do um crente rouba , pa stor principa lmente 94.
 po r ele e, era, po rta nto, resp on sá ve l e cu lp ad a po r se us atos. O Positivamente, a igreja (que tem dinheiro) se prom ove na telinha.
confessionário, a penitência e a indulgência lhe aliviam a alma. A igreja é poderosa para avançar em qualquer espaço e ninguém
O protestantismo, na perspectiva weberiana, "desencantou o  po de im pe dir95. E stá se co ns truind o a versão brasile ira do wasp
mundo". O homem agora é livre e só. tupiniquim. É o jeito de ser evangélico brasileiro.
Essa propensão racional protestante (Weber) se identificando A título de registro, até 1999, no sábado pela manhã na
como a "religião do livro", na expressão de Bastide, com Manchete havia o Programa M ovime nto Pentecostal, realizado pela
doutrinas, credos e instituições explicadas para o homem, aten de maior denominação evangélica do país e, logo após, o Conexão
a necessidade deste novo ser moderno: o mundo conforme sua Gospel  produzido por uma gravadora. Um representava o
imagem e semelhança. A racionalidade moderna exige, o discurso secular de uma instituição com milhões de adeptos e
 pr ot es ta nt ism o te m 92.  pr op os ta de eva ngelizaç ão; o o utr o, um a estra tégia de mar ke tin g
Daí a produção teológica é "socialmente condicionada"-  p a ra v e n d e r se u s a rti sta s. Q u a l, p o rta n to , a d if e re n ç a e
(Richa rdson, 1958:34)93, as instituiçõ es at rela das ao po der; à similaridade entre os dois? E mais, tem alguma importância esta
 prátic a rel igios a co nd ize nte com o status,   o ritmo - do branco/
(in)diferença? A evangelização/artistas da denominação/
rico/hegemônico - é sacramentado. Entre mortos, feridos e
gravadora afinal não é uma prestação de serviço/produto que
convertidos, o Ocidente se "cristianiza", a América Latina é
colonizada (para glória de Deus), e o Brasil é o maior (?) país está sendo colocado no mercado à procura de fiéis/
consumidores?
católico do mu ndo, o maior (?) país espírita do mun do e o maior
(?) país pentecostal do mundo.'
c)  A cult ura da assim ila çã o. A   pergunta é difícil de ser • Um problema grave: o telespectador não-evangélico
respond ida: a Igreja Evangélica assimilou a TV ou foi a TV quem consegue diferenciar?
assimilou a Igreja Evangélica? Parece que ambas se decifraram. • Mais grave ainda: algum telespectador não-èvangélico
Ou inversamente à lógica da esfinge, que se não é decifrada é assiste a esses programas?
devorada, ambas estão se devorando. Essa antropofagia mútua,
como no casó do grupo de pagode gospel Divina Inspiração,
2. “Camalização gospel": o protestan tismo brasileiro produzi ndo cultura.
também pode ser vista de formas distintas.
Tillich, na obra já citada, desenvolve um conceito chamado
 Neg ativam en te, a TV f olc lorizo u a I greja , o u p ejo rat ivam en te,
"princípio protestante" que, de maneira simplificada, pode ser
só a focaliza para divulgar seus erros. A imprensa faz alarde
explicado como a capacidade que o protestantismo tem - ou
92Tillich (1992) diz que, dentre outras, esta é uma das causas do su cesso da psicaná teria - de se renovar sempre que um determinado grupo se
lise nos países protestantes: 1. O rigorismo moral que lhe aflige com a culpa e 2. a institucionaliza. Há sempre uma "santa" insurgência ou uma
ênfase na religião do indivíduo. Durkheim (1964) também explora a questão do "efervescência sagrada" que não se deixa domar. Como não sou
maior número de suicíd ios entre protestantes.que católicos, cf. O suicídio  (1964).
E sobre a ética e racionalidade individual o con hecido livro de Max Weber, A éti ca
 pro tes tan te e o e spí rit o do capi tali smo  (2004). 94A “esperança” é que se tome comum, como ficou o caso de deputados evangélicos,
93 O docetismo teoló gico é contemporâneo do dualismo filosófico . A doutrina dos pois ai já não teria tanta divulgação assim; d eixa de ser fator jornalístico.
“Dois Re inos” junto com a disputa de poder da Igreja versus Estado, e a “teologia 95Por mais boa vontade que se tenha em relação a esta teoria positiva, é difícil entender
da prosperidade”, surgem nos tempos de neoliberalismos ec onômicos. Coincidên (?), como demonstração de força da Igreja Evangélica, por que ela não ocupa os
cia ou “produção socialmente condicionada”? horários nobres em canais camp eões de audiência?

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P r o t e s t a n t i s mo Tupiniquim A Con strução do WASP Tupiniquim

teólogo, não preciso definir teologicamente o que venha a ser O TRIÂNGULO RITUAL PROTESTANTE

isso. Penso (sociologicamente) algo que se insurge dentro do DESFILE DO DIA DA


FESTAS INTERNAS MARCHA P ARA JESUS
rotineiro ou institucionál e provoca alterações de rota. Certo ou BÍBLIA
errado, não devo qualificar. Como diria Weber, é o carisma se espaço público espaço privado dos templo s espaço público
rotinizando. rito diurno rito noturno rito diurno
Roberto DaMatta (1990), em Carnavais, Malandros e Heróis, ritual de ordenamento; não
idem idem
reivindicatório
explica o Brasil a partir de um conceito que ele chama de triâng ulo
celebra ção de um livro celebração de uma efemeridade celebração d a...?
ritual. Na sua teoria ele estabelece dois tipos de ritos: o rito de
povo e autoridades juntos povoe autoridades
reforço e o rito de inversão.   O primeiro, organicamente, serve de idem
mas separados misturados
( r e ) o í d e n a m e n t o d o m u n d o , ( r e ) a f i r m a ç ã o d ó p o d e r , da
uniformização, roupa uniformização, roupa adequada sem padronização,
autoridade, dentro da formalidade e com seus atores bem adequada qualquer roupa
definidos. O segundo, o da inversão, é o espaço da histórico histórico ' modism o importado '
informalidade , da "suspe nsão ética". Num extrem o está o Desfile centralidade no andar e centralidade no cantar e
Militar de Sete de Setembro e n'outro o Carnaval. centralidade no falar e cantar
cantar dançar
O carnaval promovendo a igua ldade e a supressão de fronteiras, e contingência gestual contingência gestual incontingência gestual
as festas cívicas e religiosas promovendo sua  glorificação e manu
tenção. (...) Os rituais religiosos partem de Igrejas e locais sagrados,
econômico) tem muito mais importância. Nela acontecem
 pretendendo ordenar o mundo de acordo com os valores que ali são
atualmente grandes manifestações artísticas, políticas e
articulados como os màis básicos (1997:82,83, grifo nosso).
econômicas. Nenhuma religiosa. E isto não é coincidência.
Usando este referencial teórico, elaborei, apesar dos riscos,
Os evangélicos, minoria marginal, não têm platéia e razão
uma analogia.
 pa ra de sfi lar de m on str an do po de r, po rq ue nã o tê m po de r. N o
 No triângulo ritual protestante,  os desfiles do Dia da Bíblia
entànto, ensaiaram alguma forma de desfile. Tímidos e
correspondem à versão militar do Sete de Setembro, as festas
esteticamente pobres, eles se iniciam em 1948, na primeira
internas às procissões e festàs de padroeiros católicos, e o
celebração do  Dia da Bíblia   e nascimento da SBB - Sociedade
Carnaval à  March a para Jesus. Há encontros e desencontros nessa Bíblica-do Brasil96.
analogia, mas valem muito pelo que dizem ou deixam de dizer.
Mas note-se bem, o desfile do  Dia da Bí blia   é ordeiro,
a) As  procissões versus desfiles do Dia da Bíblia.  A Igreja Católica
exclusivista, dividido em pelotões (lembra alguma correlação?),
é a "dona " do país, as procissões (uma inva são do espaço público),
não reivindicatório, não-contestador e absolutamente
 po rtan to, re af irmam su a hege mon ia e seu po de rio . Ac rescen te-
se que, quanto menor a cidade, maior será a importância dessa "racionalista e asséptico": é a celebração de um livro! N ada mais.
manifestação: 1) na cidadezin ha nun ca acontece nada significativo Pois se até então o protestantismo brasileiro manteve essa cara
e que transtorne sua normalidade; 2) a procissão sairá ou anglo-saxônica ou de american way oflife,  e estava longe da típica
termin ará no "centro d a cidade" - n a Igreja Matriz. A localização esculhambação brasileira, agora temos a  Marcha para Jesus - ou
da igreja não é mera coincidência. Também não é coincidência  Jesus day,  já que estamos falando do gospel.
que ela tenha perdido importância numa cidadg grande. Em São
Paulo, por exemplo, a Avenida Paulista (símbolo do poder  96Revista “A Bíblia no Brasil”, n° I, janeiro-março de!949, SBB, Rio de Janeiro.

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P r o t e s t a n t i s mo Tupíniquim A Construção do WASP Tupíniquim

3)  A pasteurização  gospel: "s erva da opinião pública?"   (Tillich). No Adorno e Horkheimer se escandalizaram com a perversão
Canta Rio  de 1999, que eu assisti, "o maior festival de música que o capitalismo efetuou na arte e no lazer. O que diríamos
gospel", segundo os organizadores, uma rep órter sai entrevistando sobre o que aconteceu com o "louvor a Deus"? Mas por que
os participantes (diversos dizem já terem participado dos festivais exigir da.música gospel   uma instrumentalidade de Bach, Handell
anteriores) e nenh um deles sabe conceituar o que venha ser música ou letra de Camões ou Cecília Meireles? Este preciosismo de
gospel.   Daí, coincidentemente, a repórter encontra o diretor- exigência clássica pode ser mero pedantismo, até porque muito
' produtor-musical-gospeZ e ele explica. Ou tenta. Por qu e não avi sou do que hoje é considerado clássico na música e poesia, quando,
antes, cara pálida, então é isto? Uma mistura de demagogia foi produzido não passava de algo absolutamente popular -
oportunista com amadorismo artístico? Mozart e Sheakespeare que o digam. Castelo Forte,   de Lutero,
era música popular de sua época e foi entendida por todos,
São músicas inspiradas por D eus? Aceita a "inspiração divina" ,
mesmo os analfabetos. Samba, originalmente, era música do
quem é que vai ser responsabilizado pela mediocridade m usical
morro, de negro e pobre, e foi rejeitada pelas igrejas
e a imbecilização das letrinhas? (e nada de falar de conteúdo
 pr ot es ta nt es 97, m ui to mais p or racism o q ue po r r az õe s te ológ icas.
teológico porque é pedir muito). Se os grupos mundanos(?) têm Tocar atabaque jamais foi aceito por sua identificação com a
apelação pomô-musical (se você notou, não existe mais música macumba, mas toca-se no piano as músicas de Mozart, sem
com duplo sentido, agora elas têm sentido explícito), as lembrar que ele, bêbado, compunha nos prostíbulos, rodeado
evangélicas têm uma apelação simplista-musical. O que é mais de meretrizes.
 peca mi noso? 4)  A "carlaperenização" da cultu ra brasileira: o simulacro que-virou
Vale citar um trecho longo de Adorno (1999:90) escrito em modelo.
1938: Lembro de um jornalista português fazendo a cobertura do
 Regressivo é, contudo, também o papel que desempenha a atual música Carnaval de 98 falando que tinha feito Uma reportagem sobre a
de massas na psicologia de suas vítimas. Estes ouvinte s não somente Tiazinha, mas não estava conseguindo explicar sua "importância"
são desviados do que é mais importante, mas confirmados na sua  pa ra se us pa tríc ios, ora poi s. E nó s br as ile iros , ai nd a temos a
necessidade neurótica, independente de como suas capacidades musicais ousadia de contarmos piadas de português!
se comportam em relação à cultura especificadamente musical de etapas Por que programas.como Ratinho, Gugu e Linha Direta são
sociais anteriores. A sua adesão entusiasta às musicas de sucesso e aos campeões de audiência? Porque a população gosta de sangue e
bens de cultura depravados enquadra-se no mesmo quadro de sintomas sexo. Patologicamente deslumbra-se com a miséria. O mercado
dos rostos, de que já não se sabe sefoi o film e que os tirou da realidade, dita a programação. Por que as gravadoras produzem o que
ou a realidade do filme; (...) junta mente com o esporte e o cinema, a está aí? Porque há público consumidor. Estamos tendo uma
música de massas e o novo tipo de audição contribuem para tomar  "carlaperenização" da cultura brasileira? Nada contra a pessoa,
impossível o abandono da situação infant il geral. mas ela, ou muito mais seu estilo, se torna " parad igm a cultural".
 N o ma scu lin o, o id ea l é o j og ad or de fut eb ol - en qu an to Ge túl io
Adorno está se referindo à produção artística pós-guerra que saiu da vida para entrar na história, os jogadores saíram da
desempenhará um papel fundamental de alíviç» para o caos de sua escola para entrar na riqueza. Semi-analfabetos, mas ricos; não
época, no entanto, vendo o "estado infantil (1999:89) presente vê-
se que sua crítica ainda é pertinente. As músicas são assim porque 97Aubreé (1996) chama atenção para o fato de que os protestantes rejeitam os instru
as pessoas gostam ou as pessoas gostam porqu e só isto é produzido? mentos de percussão, o que, na sua,opinião, é a base de nos sa musicalidade.

78 79
Prot estanti smo Tupiniquim A Co n s t r u ç ã o d o   WASP Tupiniquim

leram um só livro, mas a imprensa fala deles diariamente; não, legalidade. Atualmen te, o que parece é. Pois, valorativamente,
carregam malas, mas cartões de crédito. Ora, se a fina flor de não precisa ser em integridade e /o u totalidade, basta parecer.
vips, globetes, chiques & famosos, numa caricatura neocolonialista Parecer é real, é verdadeiro. Portanto, a "carlaperenização"
chamada Credicard Hall, "a maior casa de espetáculo da América não apenas parece, é. O que está sendo mostrado como
Latina", vaia as duas vacas sagradas da MPB, João Gilberto e evangélico/cultural, não apenas parece evangélico, é
Caetano Veloso, não se pode exigir nada dos rappers do Carandiru. evangélico. Porque se não for, é o que existe de mais hipócrita
Razões teológicas e/o u espirituais? Aceito a inspiração divina, do mundo, ou èntão o "verdadeiro evangelho" está escondido
o desejo de evangelizar, a vocação levita, a rçnún cia à profissão (?). O que não livra da catástrofe igualmente.
 par a a de dic ação ao minist ério do lou vor, mas o mer ca do nã o 3. Há diversos textos de teólogos e cientistas sociais condenand o
conta? (Gondim, 1998) (por razões diferentes) o sincretismo do chamado
Isto é um modelo de simulacro. É o fantasma que vira neopentecostalismo. É de "inspiração demoníaca" o uso de
realidade. Naquele estilo: vale a pena ver de novo. Algo que os folha de arruda, sal grosso, atabaque, mas não a música de
teólogos chamam de "contextualização"; os cientistas sociais de Mozart ou Tchaikovsky?
"aculturação" ou "sincretismo"; os crentes mais espirituais de 4. Em 1982, por ocasião do  Rock in Rio,  houve uma campanha de
"mundanização"; os crentes mais modernos de "estratégias oração no Brasil contra o evento. Na sua terceira versão em
gospel", e u estou chamando de "carlaperenização da cultura 2001, um grupo gospel,   Oficina G3, participou da abertura.
 br as ile ir a" . Quem assimilou quem?
Retornando a Tillich, qual palavra transcendente, julgadora e
transformadora   há no gospel   hoje? Isso também poderia ser
 p e rg u n ta n d o , p o r exem plo , p a ra as m e n sag e n s, p a ra os
congressos, para as denominações, inclusive?
Considerações finais ou o exercício filosófico (irresponsável)
de apenas fazer perguntas:
1, O que incomoda afinal em ver a Carla Perez sambando e
cantarolando a música gospel? É a ambigüidade de não saber
se o protestantismo venceu (marcando presença em rede
nacional) ou se foi vencido (a música evangélica sendo
consumida como qualquer produto)? E bpm não ser apressado
em acusar a música - só a música - de ter sido profanada
neste "mercado de bens simbólicos" (Bourdieu), porque
mensagens, livros, até mesmo "bênçãos" são vendid as ao gosto
do freguês. Mas como diz a música "O homem carnal vive o
que vê...";
2. Estamos vivendo na cultura do simulacro. Antes se dizia:
 par ec e, mas nã o é. O fe no m eno ló gi co ti nh a val or ap en as
aparente. Hoje o aparente tem força de real; tem validade e

8o
Capítu lo VI }

Neopentecostalismo e sua *
 Adequação Cultural

 A igreja âe crente, a loja de umbanda e a academia de musculação são


os três símbolos metropolitanos da civilização brasileira.
Reginaldo Prandi (1991:259)
 Assim , se no Natal vamos sempre à Missa do Galo, no dia 31 de
dezembro vamos todos à praia vestidos de branco, festejar nosso
orixá ou receber bons fluidos da atmosfera de esperança que lá se
 forma. Somos todos mentirosos? Claro que não! Somos, isso sim,
 profundamente religiosos.
DaM atta (1987:117)

É fácil, muito fácil mesmo, criticar o neopentecostalismo por


seu sincretismo e suas práticas culturais religiosas modernas,
como se todos os demais segmentos cristãos fossem
absolutamente "puros". A religião cristã não é originalmente
"pura", pois é deriva da do judaísmo e com grande influência da
cultura helénica (Green, 1998, Kee, 1983 e Boff, 1982). Portanto,
tudo não passa de um processo de adequação cultural, ou como
a missiõlogia denomina, "contextualização do evangelho". A
questão grave e profunda é: por que podemos contextualizar
valores culturais judaicos, anglo-saxônicos, norteamerica nos (de
ricos, brancos, do wasp),  mas não de africanos, indígenas,
nordestinos (de pobres)?
Para Lutero, foi fácil "contextualizar" o evangelho para
 benefí cio dos pr íncipe s ale mã es, mas im possível fa ze r o me sm o
 pa ra os ca mpo ne se s98. Como fo ra m plen am en te co nd en áv eis o
sincretismo e a "perversão" dos pentecostais, no início do século
XX, em m isturar neg ros e brancos p ara as celebrações. Pior ainda:
98Algo, aliás, què Weber (1998:348) percebe na combinação entre luteranismõ e o,
poder principesco. (
. P r o t e s t a n t i s mo Tupiniquim  N e o p e n t e c o s t a l i s m o e Su a A d e q u a ç ã o Cu l t u r a l

com mulheres na liderança. Enfim, errado apenas o sincretismo manifestações afro, particularmente a umbanda e o candomblé,
dos outros. também são .fenômenos urbanos (Prandi, 1991).
Atenção: aqui o que não estou dizendo é mais importante do Uma explicação repetida por diversos autores para aceitação
que o que estou dizendo. Explico. Não estou dizendo, nem social urbana do candomblé é sua falta de exigência de membresia
insinuando, que o cristianismo não é a revelação vinda de Deus. e compromisso religioso dos adeptos, aliás "consumidores"
Estou afirmando (lembra da história do anão nos ombros de (Prandi, 1991). Mas isso também poderia ser a causa do,
gigantes?), junto com diversos autores, bem m ais importantes que crescimento do n eopentecostalismo n o Brasil: uma religião liberal
eu, que o cristianismo recebeu - e recebe ainda hoje - influências nos costumes, com espaços eticamente mais elásticos, onde a
culturais em todas as épocas e lugares. classe média, que ironicamente é também a mais atraída para o
Candomblé, pode se sentir "bem" sem o policiamento típico das
A hipótese central deste capítulo é que o neopentecostalismo
igrejas pentecostais e o conservadorismo das chamadas igrejas
é a expressão mais brasileira dó protestantismo. Aviso aos
tradicionais (Campos, 1999; Mariano, 1999).
navegantes: não estou afirmando que o neopéntecostalismo está
Por que o pentecostalismo, antes religião de pobres, negros
certo ou errado. Afirmo apenas que, pelas características
e marginais periféricos, agora atinge a classe média? Porque a
apontadas a seguir (algo que evidentemente, não esgota o
classe méd ia só olha para cima. Anódina, que r a todo custo subir
assunto), ele é a expressão que mais se aculturou. Ou de outra
na vida, transpondo seu estado intermediário para um superior.
forma, o neopentecostalismo é o espaço religioso onde o potencial Quer riqueza e poder, daí carimbar o passaporte para a  Revista
secularizante do protesta ntism o" se manifestou com maior força. Caras, Miami, o Céu (?).
Poderia ser diferente?
O filósofo Renato Jan ine (2000), em seu livro  A Sociedade contra
1. Crescimento numérico. É mais "adequado" e por isso cresceu o social,  diz que o brasileiro está sempre sonhando com a "sorte
mais que as outras expressões religiosas? Neste caso, os cultos grande"; e nasce dessa mentalidade mágica imediatista a
afros deveriam também ter crescido, no mínimo, em paridade dificuldade da ação social e construção de um espaço público.
com o pentecostalismo. Peter Fry (1975) faz um a pe rgun ta crucial Somos persistentemente messiânicos. Estamos sempre à espera
em "Duas respostas à aflição: Umbanda e Pentecostalismo"   - ambas de um milagre; em suma, a questão brasileira é a "necessidade
as manifestações religiosas são respostas, mas por que uma de laicização" (Couto, 2000:80).
 pessoa é at ra íd a po r um a e po r ou tr a não, ou po r qu e ad er e a 2 . 0 neopentecostalismo é a cara do Brasil sincrético.  Fr esto n (1995),
esta e não àquela? em sua palestra no  I Congresso da AEV B   em Brasília, onde a
Todas as análises sobre o pentecostalismo, desde a década temática do dia era ética, fez uma grave denúncia de que, em
de 1960, justificam seu crescimento como resultado do processo ríome do crescimento, adesão de diversos grupos e
de urbanização, industrialização e anomia social (Souza, 1969). enriquecimento dos mesmos, estava se pondo em risco o próprio
 No en tanto, isso ta m bé m po de ria se rv ir com o exp licação pa ra o movimento. Daí, ele inventou a roda: quanto mais a igreja cresce,
crescimento, menor e/ou maior, dos cultos‘afros. As mais ela fica parecida com a sociedade na qual está inserida. Básico.
Ricardo Mariano (1998), num texto presunçosamente
99 Sobre o potencial secularizante do protestantismo, remeto aos clás sicos de Peter
Berger,  A c ons tru ção s oc ial d a r eal ida de  (1978) e O dossel sagrado - elementos
"profético", insinua que o protestantismo que está crescendo e
 pa ra uma teo ria soc iol ógi ca da rel igiã o   (1985). Uma visão filosófica do tema se tornando hegemônico, perdeu as marcas originais se
encontra-s e em Tamas (199 9), particularmente o cap. IV. . aculturando de tal forma que deixou de ser "protestantismo".

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P r o t e s t a n t i s mo Tupiniquim  N e o p e n t e c o s t a l i s m o e Su a Ad e q u a ç ã o C u l t u r a l

Bobagem. Este protestantismo, ou seja lá o nome que sé dê ao do amor. Mas o limite é tênue. O casamento matuto "precisa"
mesmo, é nossa construção possível. Nem melhor nem pior do ter algo de transgressor. A noiva deye estar grávida, o noivo
que nós mesmos, mas a nossa cara. Independente do juízo de deve fugir ou ter outra mulher, o padre bêbado, o delegado
valor que se faça dessa expressão religiosa chamada subornável. Aliás, toda a brincadeira, não só da quadrilha, só
 pentecostalismo moderno,  ela é o que existe de mais entranháv el na tem graça exatamente por seu caráter transgressor. Tudo bem
cultura brasileira. Mal ou bem é um a designação teológica (muito que, dependendo, do ambiente, é fácil montar uma quadrilha,
acostumada a dogmatismo e juízo) de que estamos longe. mas isso é outra história.
Apesar do caráter antiafro do neopentecostalismo, ou mais Talvez o neopentecostalismo esteja criando o samba do
 pa rticul ar m en te de algu m as igre jas, é e sta expr essão q ue re sgata teólogo doido, pois, em tese, toda religiosidade sincrética é
os instrumentos de percussão. As igrejas tradicionais sempre tolerante, menos ela. Ela é antiafro. Freud explica (desculpem,
tiveram total desconexão musical com o Brasil. Música "sacra" mas o chavão é inevitável). Você odeia è acusa no outro o que
 pa ra essas, se m pr e foi ap en as o qu e vi nh a da Eur op a e EUA. lhe é mais caro. Ultrapassando este psicologismo barato, talvez
Posteriormente, o pentecostalismo também se manteve longe como W eber analisa em seu clássico Ética protestante e o "espírito" 
da música brasileira. A Congregação Cristã tem um "purismo" do capitalismo,  as conseqüências das posturas religiosas nem
de permitir apenas instrumentos clássicos e a AD optou pela sempre se concretizam nas suas motivações originais. As
"Banda de Música", numa versão militarizada do evangelho.
"afinidades eletivas" provocam resultados não necessariamente
Portanto, toda nossa riqueza de instrumentos de percussão
esperados e causam uma boa confusão, tanto interna como
sempre foi "satanizada" por todas as expressões protestantes.
externa. Externa porque se tipifica como um grupo que antes
Aubré (1996:85) cham a atenção pa ra isso, inclusive, por ser "um a
sofria perseguição religiosa, mas agora rico e poderoso efetua a
das bases da originalidade musical brasileira". Mas o
 pe rs eg ui çã o ao ri di cu la ri za r as de m ai s ex pr es sõ es re lig iosa s.
neopentecostalismo, atualmente, com seus grupos de pagode e
similares, resgatou a percussão. Identificar teologicamente determinadas entidades como
demônios é uma coisa, expor as pessoas na televisão relatando
Chegou às minhas mãos um convite que é um primor de
 pr ob le mas pessoais de seus ca samen tos ou de su a se xu alidad e é
inculturação:  Arraial Gospel; com forró, fogueira, tapioca, baião de
outra bem diferente. Desde menino, em minha vida de
dois, bolo de milho, fogos e uma quadrilha. Não pude participar
assembleiano, vi possessão e expulsão de demônios, m as a regra
e minha principal curiosidade ficou no ar: tinha simpatia na
fogueira? A Igreja Católica que se cuide, pois os evangélicos pelo na AD é: demônio manifesto é expulso, sem nenhum show ou
Brasil inteiro aderiram às Festas Juninas, aliás, uma AD, no Rio exposição de pessoas.
de Janeiro, originalmente, neste período realiza a "Festa Jesuína"! A confusão interna se dá porque o neopentecostalisrrío usa
Festas Juninas são manifestações culturais que juntam a os mesmos elementos dos cultos afro. Ora, o objetivo é a
religiosidade católica, daí os santos celebrados, com nossas desqualificação, mas na med ida em q ue se usa esses elementos -
origens agrícolas; são celebrações de agradecimento aos santos sal grosso, folha de arruda -, admite-se, no mínimo, que eles
 pe la s sa fr as . N est e ca so , q u a nd o re ali za da s em am bie nte s têm a lgum pod er. Então, ironicamente, isso serve de legitimação.
urbanos seculares elas já perdem seu caráter sacro e agrícola. Além de, absurdamente, ser uma apropriação indébita. É como
Como, então, evangélicos podem realizar tais celebrações? se descobríssemos que um terreiro de candomblé realiza santa
Podem ter músicas, comidas típicas, danças, brincadeiras, correio ceia, ou usa textos de Calvino e Lutero em suas celebrações.

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3. Samba, futebol e carnaval.   Mesmo de forma estereotipada, reacionários, continuam cantando Mozart virando nariz p ara o
esse trinômio é marca registrada desse "país tropical abençoado samba e satanizando o carnaval.
 po r De us" (D aM atta, 1990, 1997: Ortiz, 1985). DaM atta chega , 4.  A Marcha para Jesus: "carnavalização  gospel". A Marcha é-a
inclusive, a falar do trinômio "um band a, futebol e caranval" como cara do neopentecostalismo moderno: desordenada, lúdica,
matriz brasileira - e porque não: "pentecostalismo, futebol e diversificada, liberal nos costumes (bem ao contrário da
carnaval"? Já que o trinômio brasileiro é be m flexível, se fala em ordenação do desfile do  Dia da Bíblia),  não precisa afirmar alguma
"samba, futebol e cerveja", "cerveja, futebol e mulher" etc. coisa. A Marcha seria um rito de reforço ou rito de inversão ? Na
Poderíamos especular que, para algumas denominações teoria teológica (a Marcha se propõe à evangelização) seria um
 bra sileir as, po de ria ser: " Maçon aria, educação e li turg ia ", "Música, rito de reforço,   mas na sua prática festiva e liberal como se
reunião e Tio Sam".  Esta não é umá obra de ficção, qualquer apresenta, se inserem características de inversão:  pode tudo e
semelhanç a com pessoa s e / ou instituições não é mera cabem todos. Está mais para Carnaval do que desfile de Sete de
coincidência. Setembro. O que é a  Marcha para Jesus ? É a  Marcha PAR A Jesus, é
Pergunta-se: quais afinidades eletivas (Weber) teria o óbvio. A favor de que e/ou contra o quê? É melhor não pedir
 pr ot es ta nt is m o com o sa mba , fu te bo l e o ca rn av al? At é en tã o razões teológicas, porque "a galera está a fim de louvar".
nenhuma, mas agora com o neopentecostalismo, começa a ter. Entendeu? Inclusivista, nela cabem todos (todas as denominações
 Nos anos 70, a brasilidadefoi concebida, como estando ancorada numa que queiram participar), de qualquer forma (roupa social,
república de malandros na qual o carnaval ocuparia a posição culminan  be rm ud a, bon é) e se m n en hu m estilo. À " im ag em e sem elh ança"
te. Esta rica interpretação antropológica nos proporciona entreve r a car- do participante: cada um montando seu "kit evangélico"
navalização da existência como uma marca básica do nosso imaginá (Amorese, 1995).
rio, no qual a festa, como a ritualização do social, se inscreve de modo Como ela foi instrumentalizada por um a denominação (para
 fundamental (Birman, 2001:146, grifo no original).  benef íci o pr óp rio, ob viam en te), as de m ai s tê m di ficu ld ad e de
aderir ou se envolver. Mas não temos certeza de que outra, em
É necessário cuidado para não ter preconceito positivo ou seu lugar, faria diferente. Talvez instrumentalizasse diferente.
negativo em relação a essas realidades. No início d.o século, o Resultado: a Marcha se tomou demonstração de força dé um
 pe ntec ostalis mo é a lvo de m ui to pre conc eit o, ta nto p elas de mais grupo e, neste caso, passa a ser  Marcha pára Jesus.
igrejas evangélicas como pela academia e as razões não eram, Já que a  Marcha é   ambígua, e pode parecer exagero falarmos
como se podia esperar, teológicas ou científicas, mas racistas. em câma valização, o que dizer dos assum idos desfiles de Escolas
Pentecostalismo é uma manifestação religiosa de negro e pobre,' de Samba evangélicos? Ora, procissão e desfile combinam no
nasce entre ex-escravos, algo bem próximo da perseguição ordenamento,  e ordenamento combina com religião. Já carnaval
efetuada aos grupos afros, tanto no Brasil como em demais evangélico é, por natureza, uma contradição em termos. Até
 paí ses . Sam ba, futeb ol e c ar na va l ta mbé m j á foi coisa de po br e e  po rq ue o ca rn av al ev an gé lic o é de um am ad or ism o sing ular .
negro. "Malandros" nos morros do Rio de Janeiro eram Paupérrimo. Um pastiche mal engendrado, porque precisa ser
chegados ao samba, a elite gostava de música clássica - algo igual - para concorrer - sendo diferente; pois quanto mais
muito próximo ao que acontecia nas igrejas tradicionais. A conseguir ser carnaval mais deixará de ser evangélico. Quanto
diferença é que o país se atualizou, o morro desceu e tomou os mais autêntico carnaval pior para ele, pois ficará próximo do
estádios, as gravadoras e a avenida. Os protestantes, clássicos e real carnaval, e perde sua razão "evangelística" de ser. Se for 

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Prot estanti smo Tupiniquim  N e o p e n t e c o s t a l i s m o e Su a A d e q u a ç Ao Cu l t u r a l ,

 pa ra brincar o carnaval   (note o verbo associado automaticamente que os três símbolos me tropolitanos d a civilização brasileira sãó
ao carnaval, algo para que DaMatta chama atenção, 1990:67), a "igreja de crente, a loja de u mba nda e a acade mia de aeróbica"
 por qu e brinc ar(!) de evangelizar(sz'c) no ca rn av al ? N ão seria (1996:259) na mais perfeita exemplificação do mundo moderno
uma tentativa suicida? DaMatta diz que o carnaval "é a e hedonista. O prazer de viver bem consigo mesmo, em desfrute
glorificação das coisas que ocorrem da cintur a para baixo"   (1990:96, do corpo, da riqueza para benefício próprio, que na tradição
grifo no original). Mas não há no protestantismo nenhuma  pur it an a se mpre foi ne ga da e co nd en ad a, ag or a é co mpo ne nte
"teologia da cintura para baixo"; toda teologia é cerebral, para importante da teologia da prosperidade. Weber (1996:120)
ser pensada e realizada racionalmente. Da "cintura para baixo" lembra a aversão que o ascetismo protestante tem pelo esporte,
há, dentre outras coisâs, sexo, mas este está na categoria da em sua valorização única do trabalho. No pe nteco stalism o,
negação. Sexo é "apenas" uma atividade normal no casamento, originai, este ideal ainda persiste: Simon Lungren, missionário
e "glorificação" só para coisas espirituais. sueco, lembra com orgulho que, ao se converter em 1916,
Pelo sim, pelo não, a tentativa evangélica de "brincar/ abandonou o atletismo e jogou fora suas medalhas. Atualmente,
evangelizar" no carnaval é uma demonstração concreta da esporte se tomou uma ferramenta evangelística. Mais que isso,
adesão cultural. Neste caso, o protestantismo em nada altera temos hoje uma "teologia do corpo saudável"; um 'encontro, até
(não há juízo nesta palavra, estamos usando alterar   no Sentido então improvável da academia (de ginástica) com a igreja.
de modificar)  a cultura, mas apenas assimila.
Dia 8 de abril de 2001, domin go pela manhã, no Rio de Janeiro,
Richardson Halverson, capelão do Senado americano, disse: 38 graus, fui ao culto na Catedral Mundial da Fé.  Um grandioso
 No início, a igreja era um grupo de homens e mulheres centrados no  pr éd io com ar co nd icion ad o, som ide al, be rçár io fu nc iona nd o,
Cristo vivo. Então, a igreja chegou à Grécia e tomou-se uma filosofia. estacionamento em perfeito uso, orientadores em todas as portas
 Depois, chegou até Roma e tomou-se um a instituição. Em seguida, à dando informações e facilitando lugares. A platéia, masculina e
Europa, e tomou-se uma cultura. E finalmente, chegou à América,e feminina, de bermuda, chinelo de dedos, camiseta cavada,
tornou-se business. dançando e recebendo a benção - um ambiente confortável e
Aqui, do lado de baixo do Equador, onde não existe pecado, libertário. Na mesma manhã, peguei um táxi correndo e fui à
ela se tornou a "Igreja Cristã do Jeitinho". Pergunta-se: essa Assembléia de Deus, sede do Ministério de São Cristóvão - era
adequação cultural é de "inspiração" diabólica ou o "princípio a Santa Ceia Geral onde todas as igrejas e congregações do
 pro te st ante " ti llic hi ano re ss urg in do e al te ra ndo as m atr iz es Ministério estavam reunidas. Casa lotada, todos os homens-
 br as ile ira s? ' /
5.  Adeq uaçã o da teologia do corpo.  Nunca houve antes algum sobre isto e quando cita é apenas para condenar o uso. Outra observação importan
grupo pr otestante que, oficialmente em seus órgãos de imprensa, te é que a IURD, apesar de sua imensa membresia feminina, não tinha mulheres na
. liderança, falando na TV ou es crevendo no jornal.' Enquanto nas publicações e
falasse positivamente do lazer ou dos cosméticos, numa postura programa de TV da AD (ela falava, na época, do programa  Movi ment o Pen tecost al),
hedonista - daí o. ineditismo da Folha Universal100.  Prandi diz tinha mulheres escrevendo e apresentando. Pouco tempo depois, o programa da AD
saiu do ar e nos programas da IURD e jornais, as. mulheres apareceram agora não
100Devo esta observação a socióloga Maria das Dores que, numa exposição oral na apenas como “endemoninhadas”. Coincidência? Cheguei, posteriormente, a pergun
USP, em 1998, chamou a,atenção para esta questão. Aliás, sua fala era uma analogia tar para um bis po iurdiano se a igreja reconhecera isto, daí a oportunidade para as
entre a Folha Univ ersa l, da IURD, e o Me nsa geir o da Paz , da Assembléia de Deus. mulheres. Disse-me que as mulheres sempre tiveram o devido lugar na igreja e não
O primeiro como modelo de liberalismo, o outro, conservadorismo. A  Folh a  “in seria por causa da crítica de uma soc iólog a que a IURD mudaria. Não tiro a razão do
centiva” o  Men sag eiro  “condena”. Na medida em que, a  Fol ha   ensina o uso de bispo, mas o aparecimento de mulheres (repito, não apenas possessas) na telinha
cosmétic os, dá conselh os sobre vestidos e roupa de praia, o Me nsa geir o  jamais fala iurdiana não deix a de ser um “atrativo” para sua imen sa clientela femin ina.


P' r o t e s t a n t i s m o Tupiniquim  N e o p e n t e c o s t a l i s m o e Sua A d e q u a ç ã o Cu l t u r a l

obreiros de paletó e gravata, calor insuportável, e um desfile de que isto é marketing de artista em final de carreira para voltar à
avisos, cânticos de conjuntos, duetos, coral de senhoras, e mídia com um "público de cabresto". Aderir à "indústria do
 pa la vra s do s pas to re s - um am bi en te au st er o e co ns er va do r. testemunho" é a forma mais simples (?) de encher as burras de
Poderia exemplificar também com as liturgias das igrejas dinheiro. Penso que, isto é um julgamento muito grave que eu
tradicionais: enfadonhas, repetitivas e completamente distantes não me atrevo a fazer. Mas não podemos escapar do conceito
da informalidade brasileira. Neste país de "rito frouxo", como de "religião como espetáculo". Tudo hoje é midiático e a vida é
 be m s intetiz a H ol an da (1999:151), e c om " av er sã o ao r itu alism o" , uma realidade imagética. Um reality show   com diversas cenas.
toda nossa pretensão de liturgia é simulacro anglo-saxônico. Portanto - Deus me perdoe a blasfêmia -, o culto, o testemunho
Resultado: nem somos autênticos protestantes latinos, nem são apenas algumas das cenas. O corpo, sadio e feliz, é
austeros britânicos reverentes. fundamental para implementação do show.  Perdão, do culto.
Para um visitante de primeira viagem, qual reunião ele vai E como esta adequação da teologia do corpo não tem limites,
achar mais "confortável", na hipótese de um retomo?
há na praça um CD gospel  chamado de "Bonde do Ungidão"
 N es se asp ecto , o n e o p e nte c o st a li sm o é e xpre ss ão m ai s uma paródia do Bonde do Tigrão. A música é igual, m uda apenas
aculturada que já tivemos neste país. A Igreja Universal é a letra. Como ouvi apenas o CD, fiquei curioso para saber como
 par ad ig m a da cu ltura do self-service  religioso, do que Prandi as "popozudas" e os "tigrões", devem fazer a coreografia
chama de "religião pa ga" e prestação d e serviço religioso (1995).
"ungida".
E se ela e~suas congêneres não chegam à "glorificação da cintura
 pa ra baixo" (DaM atta ), se rv em com o leg itim açã o. Como exp licou 6.  Indep endên cia inst ituc ional.  São igrejas que surgiram de form a
o Pr. Wesley Bandeira, da Comunidade Sara a Nossa Terra: autônoma, na maioria das vezes, como um projeto pessoal. Nem
calvinistas, nem arminianistas, nem trinitarianistas, nem
As pessoas têm idéia de que ser evangélico é fazer muitos sacrifícios.
 Não há sacrifícios, é liberdade total. (...) A maior parte das igrejas renovadas, nem pentecostais. Nenhuma dessas tradições ou
. ■ prega, primeiro, a mudança de comportamento, depois promete o amor  talvez com uma mistureba a la Brasil de   todas elas. Algo assim
de Deus. Aqui, é o contrário, Deus está em primeiro lugar e recebe todo teologicamente hermafrodita.
mundo. Até porque Jesus vivia rodeado de ladrões e prostitutas101. Atenção: "projeto pessoal" não é indicado como menosprezo
Sabonetes, perfumes, óleos, músicas, são todos vendidos ou desqualificação, afinal nenhuma igreja nasceu como projeto
como qualque r outro p roduto . Então, o culto, a oração, a benção, do coração ou revelação expressa de Deus, apesar de algumas
idem. A questão é que se o cliente/fiel não ficar plenamente insistirem nesta falácia. Até as seculares, tradicionais e
satisfeito com o "produ to", não poderá se dizer ludibriado po r respeitáveis denominações nasceram - também - a partir de um
"propaganda enganosa" e reclamar no Procon, Delegacia do  projeto, sonh o e o bra d e u m a pessoa . O u d ivisão. E vide nte mente,
Consumidor ou Conar. Então a criação de um "Procon que o Zezinho da Vila Vintém que se atreve a fundar uma igreja
Espiritual", como sugeriu o historiador Ziel Machado, numa é "herege", "rebelde", "divisionista do Corpo de Cristo", o que
 pa le str a no ICEC, ser ia uma . bo a pr ovidência.  jam ais diría mos de Luter o, Ca lvi no ou Wesley .
Esta seria, então, a razão porque vips,   ricos, famosos e A questão básica para essas novas igrejas é: como elas não têm
emergentes estão aderindo? Já ouvi em um debate, alguém dizer  tradição podem fazer qualquer coisa. Ouvi u m pastor batista americano
dizer que há um provérbio entre eles que diz: "Qual a definição
101R evista da Folha, 24 /06/01, p g. 20. de eterno? Etemo é tudo o que começa numa igreja batista".

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P r o t e s t a n t is m o Tupiniquim  N e o p e n t e c o s t a l i s m o e Sua Ad e q u a ç ã o Cu l t u r a l

 N um a es ca la hie rá rq uic a, por ex em pl o, co mo a da Ig reja "liderança carismática" (Weber), que a despeito da tradição ou
Presbiteriana, uma questão é discutida no Presbitério local, sobe' denominação, imprime sua idiossincrasia. Holanda diz que uma
ao Sínodo e vai até o Supremo Concílio. E neste processo m uitos das características mais marcantes da cultura brasileira, além de
dogmas são lembrados, confissões Consultadas, muitas leis nossa cordialidade,  é a "cultura da personalidade" (1999:32).
aplicadas e decide-se a partir da tradição  da Igreja. Numa1dessas Apenas perguntas: será'que a Presbiteriana seria a mesma
igrejas mode rnas, o líder carismático (Weber) decide, "inspirado sem a existência de José Ma nuel d a Conceição, Boanerges Ribeiro,
 po r D eus", e a coisa se realiz a. De u c erto ? Vira pa dr ão "sag ra do ".
Caio Fábio? A Assembléia de Deus sem o Emílio Conde, Paulo
Modelo a ser imitado pelas concorrentes. Deu errado? Bate-se a
Macalão e José Wellington? A Batista seria a mesma sem o
 po eir a, e, n o próx im o mo men to, t em -se no va "revela ção". E n ão
Fannini? A Betesda sem o Gondim? A Renascer sem o Estevan?
é mera coincidência que nesses tempos neoliberais tenhamos uma
Pois até a Igreja Católica no Brasil seria diferente se não fosse
 pro d/üção des ca rt áve l de esp ir it uali dade, ou al go sim ila r. A
um P aulo Arns e um H élder Câmara. Lembremos que a cúpula
indústria cultural mandou lembranças.
da Igreja apoiou o golpe militar e continuaria apoiando se não
Assistindo a um desses programas evangélicos na TV vi o
fossem alguns acidentes e alguns "profetas desviados da
apresentador convocar o povo para uma nova "campanha de
trad ição "104. Idem pa ra grup os eva ngélicos.
oração da sexta-feira forte", da seguinte maneira: "Prestem
atenção, nós vamos fazer uma coisa que ninguém fez! Ninguém  N a As sem blé ia de De us, foi o "p ur ismo" de Em ilio Co nd e e
fez ainda! O Missionário recebeu a revelação de Deus para u ngir o "nacionalismo" de Macalão que impediram-na de ter atuação
o dedão do pé! Prestem atenção, ninguém fez isto! Venha para a  p o lí ti ca e est abele cer um a e str u tu ra ecl esi ás ti ca nacio nal,
Campanha nesta sêxta-feira forte...". Básico. Funcionou? Se já  po ssi bilit an do o surg im en to do "caciquis mo ", ocasiona ndo seu
existisse o "Procon Espiritual" saberíamos. esfacelamento nos chamados "Ministérios" (Alencar, 2000). Na
7. Personalismo versus hierarquia.  No Brasil, casa/r ua e público/ Batista, o apoio à ditadura se deu-pela conveniência do Fannini
 pr iv ad o nã o são área s dis tin tas , ma s co mple me nta res - na pior receber um a concessão de pro gram a de TV (Freston, 1993). Ora,
acepção da pa lavra (DaMatta, 1990,1997). O limite entre o legal se isto aconteceu em igrejas seculares com todo o peso da
e o ilegal, o cidadão e o margirtal, a pessoa e o indivíduo, é tradição para norteá-las, o que não poderia acontecer no
nossa m aior "a traç ão", o u em po rtug uês claro, nosso "jeitinh o"102. "pentecostalismo autônomo?"
 N es sa "d ia lé tica da m al an dr ag em ", na ex pr es sã o de A nton io Lutero é "maior" que a Igreja Luterana, Calvino é "maior"
Cândido, todos os valores são relativizados. Até onde isso que a Presbiteriana, Wesley é "maior" que a Metodista. Assim
contaminou o protestantismo? como no Brasil, RR Soares é "maior" que a Igreja Internacional;
Será que as denominações - seculares e tradicionalistas - Edir Macedo, "maior" que a Universal; Faninni, "maior" que a
também não foram atingidas pela síndrome do "sabe com quem Batista, Gondim é "maior" que a Betesda, assim como Caio Fábio
está fala nd o? 103"   (DaMatta, 1990). Há muito personalismo ou
104E ste discurso católico de apoio aos pobres e ser contra o governo está mais para
acidente de percurso que sua própria natureza. Desd e Constantino, passando pelo
102Uma discussão da relação evangelho e o  jei tin ho  brasileiro é feita por Lourenço fascismo na Itália, a ditadura do Estado No vo com Getúlio até os militares em 64
Stélio Rega, em  Dan do um jei to no jeiti nh o  (2000). Conquanto sua preocupação sempre teve apoio institucional da Igreja. A Catedral de Brasília, originalmente, foi
(dogmática) teológica seja exclusivamen te de condenação. Não há mérito, segundo construída ecumênica. A Igreja Católica a recebeu de “presente” e a tradição, a
Rega, nesta faceta cultural brasileira. família e a propriedade agradecem penhoradamente. Hoje não é muito diferente - o
103Na dúvida de que isto aconteceu, veja a análise arrasadora que João Dias Araújo Núnc io Apostólico que o diga. Há alguns grupos de plantão para reclamar e m asca
(1972) faz da Igreja Presbiteriana em  Inqu isiç ão s em fogue ira s. rar a atuação ofi cial da Igreja.

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P r o t e s t a n t i s mo Tupiniquim  N e o p e n t e c o s t a l i s m o e Su a A dequa ção Cu l t u r a l

era "m aior" que a Presbiteriana105 (Essa, inclusive, foi uma ,das "medalhões, aqueles que não nasceram, foram fundados". Por
razões dos seus problemas). eles próprios.
O temperamento centralizador de Caio Fábio não pode ser 8.  Big Brother Gospel.  De início, é bom lem brar: isto não é uma
desconsiderado nesse processo. Como ele mesmo afirma: "não tara tupiniquim ou sintoma de nosso subdesenvolvimento
sou tirano, não sou despótico, dialogo, converso, mas quando eu me cultural. É mania mundial. Aliás, mais uma peça da tal
convenço de alguma coisa em alguma direção eu não tenho nenhitm globalização. Idéia holandesa originálme nte, alastrou-se por este
 problema de to mar a decisão, assumir a responsabilida de e arcar com as mundão como praga. Todos querem olhar pelo buraco da
conseqüências”.  Assim, quando seguro de suas decisões, à equipe fechadura. É a curiosidade inerente da natureza humana.
.de Vinde   só restava obedecer-lhe e segui-lo, pois, como afirma Portanto, esta briga entre Globo e SBT pelos direitos autorais
um ex-assessor direto, "quando ele decide, está decidido”  (Fonseca, (será que a briga não faz parte do marketing?) é apenas cena.
1998:95, grifo no original). Deveríamos, de fato, pagar royalties  para Eva, pois, na falta de
A igreja evangélica brasileira é uma instituição de grandes comadres ou concorrentes, ficou a tricotar com a serpente.
 pe rson ali da de s. O qu e há de er ra do nis to? Em tese na da . Aliáis,
O fascínio que o outro - seja lá o que ou quem for - nos
uma igreja que não tem uma figura carismática (e mais uma vèz
 p ro vo c a é in d is c u tí v e l. N u m psi colo gis m o bara to : so m os
é bom lembrar: o conceito não é da teologia pentecostal, mas da
sociologia weberiana) não se desenvolve. Não cresce. Terá muita (a)traídos pelos erros de nossos semelhantes porque nos
dificuldade de agregar pessoas em torno de idéias, estilos, identificamos neles. Simples, adoramos condenar o que mais
tradição. E a liderança, seja lá qual for, é imprescindível para gostamos; de outra forma, somos extremamente severos com
seu desenvolvimento. Por mais tradição secular que a Igreja determinados errps. Dos outros.
Católica tenha, ela precisa do Papa, uma figura carismática Adicione-se à esta espetacularização da natureza mórbida os
essencial em seu agregamento. Ele, como qualquer outro líder interesses dos fabricantes de móveis, edredons (o tudo explícito
religioso, é símbolo de tudo o que esta igreja quer e precisa ter. aborta a fofoca), carros, produtos diversos numa disputa
Idem para nossos pastores. Repito: isso, em si, nada tem de milionária na TV - e então o show  se completa. Quem é o grande
errado. Religião precisa, mais do que qualquer outro fenômerío,  ben efi cia do, afin al? A re de de TV, os an un cia nte s, as cobaia s de
de símbolos. O problema é que alguns destes símbolos, além de artista, a patuléia assistente. Todos ganham (?). A rede de
representarem o ideal religioso do grupo, significam também televisão e os anunciantes têm apenas um objetivo: faturar. É a
outras coisas... lógica do quanto pior melhor. Eles, então, descobriram o mapa
Ora, se um ministério como o de Caio Fábio, que, durante da mina: o melhor do pior!
algum tempo foi a grande referência evangélica, era As cobaias que se prestam a isso estão (apenas) querendo
 perso nalístico, qu an to ma is um a igr eja au tôno ma , sem tra diç ão , uma oportunidade de aparecer. Pelado, vestido, tramando,
à imagem e semelhança de seu do no/fun dado r. São instituições, dando rasteira e golpes, exibindo bíceps e nádegas. E daí? Se
 po r conse qüê ncia, on de a pe rson alid ad e é ma is im po rta nt e qu e cada cria da ninhada humana tem direito a quinze minutos de
'a hierarquia. O protestantismo, portanto, como DaMatta fama, isto sendo em rede nacional por uma quarentena de dias,
(1990:191) analisa a sociedade brasileira, é formado por  apenas valoriza o conjunto da obra. O "artista" se valoriza na
hora de assinar o contrato e a publicação vende mais porque a
105 Uma análise da “liderança carismática” de Caio Fábio foi feita pelo soc iólogo
Alexandre Brasil Fonseca (1998). "peça" já é conhecida.

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Pr o t e s t a n t i s m o Tupiniquim  N e o p e n t e c o s t a l i s m o e Su a A dequa ção C u l t u r a l

Já a patuléia telespectadora fica salivando como os é um bom exemplo da adeq uação cultural do neopentecostalismo.
cachorrinhos do Pavlov. Ensandecida, quer sangue, suor e  N o ca m inho la rg o - o caminho da perdição  -, está o cinema, o
lágrimas. E sexo. Porque pimenta nos olhos dos outros é ponto teatro, o cassino, as festas, pessoas (muitas) bem vestidas com
no Ibope. Se Roma tinha seus shows de gladiad otes e os medievais chapéus, luvas, casacos, cartolas, guarda-chuvas etc. Muitos
a queima dos hereges em pr aça pública, nós hoje temos os reality enfeites. No jargão evangélico: muita vaidade. Muito espaço.
shows.  Charles Darwin deve estar batendo palmas, sua teoria da Repetindo, o caminho é largo. Uma grande porta de entrada
evolução está sendo confirmada. Não precisamos de estádios com uma faixa de Bem-Vindo. No prédio do teatro tem uma
ou fogueiras para matar hereges' ou nos divertirmos. Somos frase: "Profanação do domingo", uma das grandes ênfases de
modernos. Moderníssimos. Usamos internet, TV, teologia em décadas passadas.
sofisticadíssimos sistemas de comunicação; elegemos quem  N o ou tro lado, no caminh o estre ito - o caminho da salvação -,
 p er de ou qu em ga nh a pór tele fo ne , em ai l e di ve rs os ou tr os templos, casas de oração, tendas, pessoas (poucas) vestidas sem
 ba la ng an dã s ele trônicos. N a era da cib ern ética, no ssa tec nol ogi a ostentação, com muita simplicidade, nenhum sinal de festas ou
a serviço do golpe, da trama, da rasteira no concorrente, da "coisas mundanas". Nem precisa dizer que não há nenhum
armação, do ciúme, da dissimulação, do falsear, da
cinema, teatro ou jogo. do lado de cá. Ao lado de todos os
instrumentalização das amizades e das pessoas é bem superior.
 pr éd io s, ep isód ios e at itud es ex ist em ve rsícul os bíb licos par ã
Evoluímos. E os cachorrinhos de Pavlov agradecem
"fundamentar" a aprovação (caminho estreito), ou condenação
 pe nh or ad am en te . E pe ns ar qu e tu do isto aind a po de piorar ...
(caminho largo), dos mesmos.
Uma sugestão (apenas sugestão): que tal um big brother gospel?
Por mera especulação: como seria atualmente o quadro "Dois
Convenhamos, nada mais gospel que o brother, e nada m ais brother 
Caminhos"   em sua versão gospel? O cinema-, o teatro, a dança, as
que o gospel; é a fome com a vontade de comer. Como diria o
sábio artista Alexandre Frota: " Br ot he r , seria uma parada  be las ro up as , as fes tas , os m ui to s enfei tes, todo s m ud ara m de
maneira!" O critério de seleção não seria a vulgarida de de bíceps lado, estão (também) no "caminho estreito". Aliás, agora, por
e nádegas, mas, digamos, algo mais teológico: um calvinista, causa da multidão que aderiu, tiveram que "alargar" a estrada
um arminianista, um pentecostal, um tradicional, um renovado,  pa ra cabe r ta nt a gente... D e for ma ic ono grá fic a, sejamos sinc eros,
um unicista, um trinitarista, um ecumêmico, um gedozista. Seria não dá para retratar atualmente o caminho largo e o estreito.
uma boa oportunidade de sabermos, afinal, quem são os big e os  N ão há , pelo men os na estética, ne nh um a dif erença. Re ssa lva
chart brothers.  Realmente. Marketeiros a postos, patrocinadores seja feita: o cassino não mudou de lado. Ainda.
é que não faltam: óleo sagrado, sal grosso santificado, rosa Foram as coisas qúe mudaram de lado ou foram as pessoas?
ungida. E as competições? Prefiro não falar, mas tenho diversas Apesar de estarmos falando do neopentecostalismo, isso não
em mente. Daria uma audiência... atinge apenas este grupo. Nas chamadas igrejas tradicionais
9. Quadro "Os dois caminhos".   Um quadro muito antigo, também houve mudança de costumes. Os jornais batista,
den om inad o de "Dois Ca min hos" 106, talvez a única repr esenta ção metodistas e presbiterianos, nas primeiras décadas do Século
artística da época, e mesmo assim, rejeitada por muitas igrejas, XX, condenav am o cinematógrafo, o baile, a vaida de, o trabalho
que fosse realizado no domingo - dia do Senhor - e tudo o que
106O modelo que disponho não tem registro de editora nem data, me parece uma leitura na época se considerava "mundano". Repito: as coisas mudaram
iconográfica do livro “O Peregrino”, de John Bunyan (1628-88), até porque os
desenhos são idênticos. de lado ou foram as pessoas?

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P r o t e s t a n t i s mo Tupiniquim

Em 1987, trabalhei como assessor de Recursos Humanos de Capítulo VII ' 


uma rede de supermercados em Fortaleza, realizando entrevistas
com novos funcionários. A éntrevista tinha um roteiro e uma  A Instrumentalização do Poder 4
das questões era sobre o lazer do candidato. Certa vez entrou
em minha sala uma moça que, pelo cabelo e vestimentas, Divino: Analogia entre a Ética
"adivinhei" que era assembleiana ou algo similar. Quando Neopentecostal e a
 per gu nt ei sob re laz er ela se as su sto u e re petiu :
- Lazer? Candomblecista1 1107

- Sim, eu respondi profissionalmente, mas já sabendo que


aquilo não iria terminar bem. Como você preenche seu tempo
de lazer? Quais são suas diversões? Segundo o questionário da O espaço de interlocução que assim se estabeleceu
entrevista: praia, cinema, tevê... ela interrompeu minha lista e entre os pentecostalismos (...) e os cultos de possessão
respondeu secamente:  fa z parte do processo de construção e de transformação
- Eu não tenho lazer, eu sou crente! constante que sofrem tantos u ns quantos outros,
na medida em que se encontram relacionados entre si
 No dia 22 de de ze mbr o de 2001, ap en as 14 anos depois, no
diferentes formas ao longo dos anos.
 pro gr am a de TV Vitória em Cristo,  o pastor assembleiano Silas
Birman (1996:93, grifo nosso)
Malafaia fez uma longa reportagem no navio Esplendor dos Mares.
Foi a divulgação de um "cruzeiro evangélico" peias praias
Lembro-me como se fosse hoje: um artigo publicado no
nordestinas com direito a saunas, piscinas, salão de beleza,
 Men sag eiro da Paz,   jornal oficial da Assembléia de Deus, fazia
esportes e, segundo o pastor, "reuniões para deleite espiritual".
uma denúncia grave de que um cientista tinha comparado o
Amém.
 pe nt ec os ta lism o co m a um ba nd a. D ura nt e di as e m es es ou vi
Repito: as pessoas mudaram de lado ou foram as coisas? muitas pregações na igreja em que se vociferava contra esta
O gospel,  portanto, poderia ser acusado de estrangeirismo?  blasfê mia. Po ss iv el men te , pe la da ta , de ve te r sid o o ar tigo já
Talvez pudéssemos resumir assim: citado de P eter Fry e G. Howe ,  Duas respostas à aflição: umbanda e
- O primeiro grupo legalmente (imigração) não podia  pentecostalism o,  pub licado em 1975. O jornalista assembleiano leu
influenciar e não tentou; muito mal o artigo - se é que leu - pois a analogia do Fry nada
- O segundo (missão), pensava que podia e tentou apenas na tem de blasfematório, é apenas uma tentativa de explicação. Por
educação; , que algumas pessoas optam pelo pentecostalismo, mas outras,
- O terceiro (pentecostal), sabia que não devia e não tentou; nas me smas condições sociais, fazem outra opção? Aliás, mesmo
sem ter este objetivo, o artigo termina por ser elogioso ao
- E o quarto (neopentecostal) acha que já conseguiu.
107 Uma versão em espanhol -  La Inst rum enta lizac ión D el P od er Div ino: An alog ia
entre la Ética Neopentecostal y la C andomblecista  (pgs. 159-1 74) - des te texto foi
publicadaem 2003, em Concepción, Chile, pela Comunidade de Educación Teológica
 Ecumên ica Latinoam erica y Car ibena -  CETELA e A sociación Teológica Ecumênica
Del Tercer Mundo - AS ETT, como com pilação das palestras da Re d Latin oamer i-
 can a de E stúd ios Pen teco ste s,  realizadas na Costa Rica.

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