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II –
Começa aqui uma discussão histórica sobre o lugar da mentira na política. Nesse
trecho, Arendt coloca que o primeiro teste dessa relação foi feito no domínio não do fato, mas
da razão – o que podemos entender como domínio discursivo. A autora aponta que “a
falsidade deliberada, a vulgar mentira, desempenha seu papel no domínio dos enunciados de
fato, e parece significativo, ou melhor, bizarro que no longo debate que incide sobre o
antagonismo da verdade e da política, de Platão a Hobbes, aparentemente ninguém tenha
acreditado que a mentira organizada, tal como a conhecemos, pudesse ser uma arma
apropriada contra a verdade”.
Assim sendo, logo entendemos que o surgimento do conflito entre verdade e política
opõe o modo de vida do filósofo ao do cidadão, isto é, o da doxa ao da episteme. A fluidez
das opiniões dos cidadãos opõe-se à imutabilidade das verdades eternas. “Daí resultou que o
contrário da verdade foi a simples opinião, apresentada como equivalente da ilusão, e é esta
degradação da opinião que dá ao conflito a sua acuidade política, porque a opinião, e não a
verdade, é uma das bases indispensáveis de todo o poder”. Isso parece hoje óbvio para nossas
democracias, mas para estados autocráticos nem tanto. Tanto o é que Arendt salienta que até
mesmo o mais tirano dos poderosos precisa do “apoio daqueles que são do mesmo parecer”.
Indo além, podemos ainda entender a situação como uma revanche do consenso sobre a
verdade, pois é o consenso, e não a verdade, que socorre ao poder.
“Além disso, a pretensão, no domínio dos assuntos humanos, a uma verdade absoluta,
cuja validade não necessita de apoio por parte da opinão, abala os fundamentos de qualquer
política e de qualquer regime”. E por isso Hobbes e Platão foram, por dizerem a verdade,
ameaçados, uma vez que o que alegavam (a verdade) incidia não sobre a verdade dos fatos,
mas sobre o consenso, daí Arendt falar em verdade de fato e verdade do domínio dos
enunciados do fato, isto é, do discurso. Agora mais atenta à época moderna, a autora nota a
sobrevivência da oposição entre verdade e opinião, porém outro agente interfere no debate: a
concepção de que a infinidade e riqueza do discurso humano fragiliza a noção de verdade, e
expressa, por outro lado, a limitação da razão humana na concepção do verdadeiro. É o
momento, então, em que novamente Kant (Crítica da razão pura) aparece para reconhecer
essa fragilidade, endossando algo de extrema valia para a discussão, “a razão do homem,
como o próprio homem, é tímida e circunspecta quando é abandonada a si própria; adquire
firmeza e confiança em proporção do número a que está associada”.
Passamos, na sequência, à diatribe entre Spinosa, para quem a razão humana é falível
e “todo homem é, por direito natural e imprescritível, senhor dos seus próprios pensamentos”,
e Kant, quem alegou que “o poder exterior que priva o homem da liberdade de comunicar
seus pensamentos, priva-o ao mesmo tempo da sua liberdade de pensar”. Ambas as citações
são um modo de colocar a questão do consenso e da verdade sob a ótica da razão. Seja como
for, é curioso notar, ainda em Kant, que a falibilidade da razão só venha a ser ‘consertada’ em
exposição às outras razões, seja para aqueles “que, ainda num estado de ‘tutela’, são
incapazes de se servir de seu pensamento ‘sem a direção de outras pessoas’, e também para o
‘letrado’, que tem necessidade de ‘todos aqueles que lêem a fim de examinar e comparar seus
resultados”. Nessa passagem, tanto a opinião, a doxa, o senso comum, quanto a ‘ilustração’, a
intelectualidade, estão em condições de igualdade quando à necessidade do parecer coletivo.
Caminhando para o fim, Arendt faz uma constatação poderosa, questionando que o
que parece ser mais incômodo do que a verdade de fato ser censurada em regimes tirânicos é
as verdades de fato incômodas serem “toleradas nos países livres, mas ao preço de serem
muitas vezes, consciente ou inconscientemente, transformadas em opiniões – como se fatos
como o apoio de Hitler pela Alemanha ou o desmoronamento da França diante dos exércitos
alemães em 1940, ou a política do Vaticano durante a Segunda Guerra Mundial, não fossem
da ordem da história, mas da ordem da opinião. (E, por óbvio, as condições da democracia
burguesa interferem aqui). O problema da verdade e da opinião se torna um problema de
primeira hora na medida em que a passagem da verdade dos fatos para as opiniões coloca em
disputa não dois modos de vida em comum, mas “a própria realidade comum e afetiva”. É
assim que, para fechar, volta à alegora da caverna, na qual o filósofo volta de uma viagem
solitária alegando que a realidade é ilusão, que a verdade não está aqui, e vê sua verdade
dissolvida nas opiniões que desperta. Mas, diferentemente da postura do filósofo, a condição
colocada por Arendt é a de suspeitar “que é talvez da natureza do domínio público negar ou
perverter toda espécie de verdade, como se os homens fossem incapazes de se entender com a
sua inflexibilidade obstinada”.
Feitas essas constatações, a autora alega ainda que “os fatos são a matéria das
opiniões e as opiniões inspiradas por diferentes interesses e diferentes paixões, podemos
diferir largamente e permanecer legítimas enquanto respeitarem a verdade de fato. A
liberdade de opinião é uma farsa se a informação sobre os fatos não estiver garantida e se não
forem os próprios fatos o objeto do debate”.