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Resenha: Verdade e política (Hannah Arendt, 1967)

I- Neste capítulo, Hannah Arendt desenvolve uma pequena discussão a respeito do


estatuto da mentira no mundo moderno, precisamente a parte desse mundo reservada à esfera
coletiva, a política e poder. Movida pelos fatos em torno da Segunda Guerra Mundial, Arendt
verifica na tradição política ocidental que há uma estranha legitimidade à mentira como
instrumento necessário ao poder, fato este que coloca em xeque a “dignidade da verdade” no
domínio político, diz ela: “será da própria essência da verdade ser impotente e da própria
essência do poder enganar?” Isto é, afinal, a verdade é um valor vital para a comunidade,
como a justiça e a liberdade, sem as quais “se pode ir até recusar a pergunta de se a vida
valeria a pena ser vivida”. A partir dessas condições ficamos sabendo que por detrás do
paradoxo de se valer da mentira para a manutenção da vida coletiva o que de fato está em
jogo são os usos das narrativas em torno dos fatos históricos. Aliás, é justamente no introito
que o uso da história – “a condução de um assunto atual [...] no intervalo entre o passado e o
futuro” atravessa o texto. E é Heródoto a quem a autora recorre para tanto, o historiador cuja
premissa destaca “nenhuma persistência no ser podem sequer ser imaginadas sem homens
querendo testemunhar aquilo que é e lhes parece ser porque é”. Ora, se o que está em jogo é a
permanência no ser, não demora para que a sobrevivência do ser dedicado a dizer a verdade
entra em perigo, como alegava Platão ao dizer que “se lhes fosse possível pôr a mão num tal
homem... matá-lo-iam”.

Admitindo o caso por esse ângulo – e estabelecendo o pressuposto de que a política é


um meio para um fim – Arendt depreende a condição na qual a mentira é usada para
salvaguardar as “condições da procura da verdade”. Entre os autores que se dedicaram à
questão, ela nos colocar a par da ‘polêmica’ entre Kant, quem teria levado a cabo a ideia de
que a virtude, no caso, a verdade, deve ser praticada mesmo que disso resulte o
desaparecimento de “toda canalha do mundo” e Spinosa, que entende que nenhuma virtude
deve sacrificar a própria existência, pois “não existe lei mais alta que a sua própria
segurança”. Aliás, nesse ponto Arendt chama a atenção para o fato de que, ao contrário de
seus sucessores, Platão não fala de um “inimigo” em sua famosa alegoria na qual alguém
comunica aos seus que o mundo não é como elas o veem, ou seja, ou seja, não há uma crise
que justifique o “conflito que opõe os que dizem a verdade e os cidadãos...” na alegoria da
caverna. Na esteira do filósofo grego, vamos caminhando ao ponto em que a verdade ou é
ferina ao domínio público ou ela pode, quanõ não se opõe a nenhum interesse ou prazer, ser
bem recebida pela comunidade, como sugere uma das premissas colocadas por Thomas
Hobbes

II –

Começa aqui uma discussão histórica sobre o lugar da mentira na política. Nesse
trecho, Arendt coloca que o primeiro teste dessa relação foi feito no domínio não do fato, mas
da razão – o que podemos entender como domínio discursivo. A autora aponta que “a
falsidade deliberada, a vulgar mentira, desempenha seu papel no domínio dos enunciados de
fato, e parece significativo, ou melhor, bizarro que no longo debate que incide sobre o
antagonismo da verdade e da política, de Platão a Hobbes, aparentemente ninguém tenha
acreditado que a mentira organizada, tal como a conhecemos, pudesse ser uma arma
apropriada contra a verdade”.

Depreende-se daí que a verdade é um fato que se desestabiliza pela mentira


organizada, mas não pela mentira vulgar. Ambos os autores citados acima não se preocupam
com a mentira pura e simples,com o mentiroso “inofensivo”. A questão que fica é saber
quando a mentira organizada, “que domina a coisa pública”, começa a se articular. Teria sido
com os Estados Democráticos e de Direito, pegando o gancho do sentimento de ‘liberdade e
justiça’, ou mesmo com a ‘moral puritana’? Ora, logo a frente Arendt responde: “Foi apenas
com o surgimento da moral puritana, que coincide com o da ciência organizada, cujo
progresso deveria ser assegurado no terreno firme da confiança na absoluta sinceridade de
todos os sábios, que as mentiras foram consideradas infrações supremas”.

Assim sendo, logo entendemos que o surgimento do conflito entre verdade e política
opõe o modo de vida do filósofo ao do cidadão, isto é, o da doxa ao da episteme. A fluidez
das opiniões dos cidadãos opõe-se à imutabilidade das verdades eternas. “Daí resultou que o
contrário da verdade foi a simples opinião, apresentada como equivalente da ilusão, e é esta
degradação da opinião que dá ao conflito a sua acuidade política, porque a opinião, e não a
verdade, é uma das bases indispensáveis de todo o poder”. Isso parece hoje óbvio para nossas
democracias, mas para estados autocráticos nem tanto. Tanto o é que Arendt salienta que até
mesmo o mais tirano dos poderosos precisa do “apoio daqueles que são do mesmo parecer”.
Indo além, podemos ainda entender a situação como uma revanche do consenso sobre a
verdade, pois é o consenso, e não a verdade, que socorre ao poder.

“Além disso, a pretensão, no domínio dos assuntos humanos, a uma verdade absoluta,
cuja validade não necessita de apoio por parte da opinão, abala os fundamentos de qualquer
política e de qualquer regime”. E por isso Hobbes e Platão foram, por dizerem a verdade,
ameaçados, uma vez que o que alegavam (a verdade) incidia não sobre a verdade dos fatos,
mas sobre o consenso, daí Arendt falar em verdade de fato e verdade do domínio dos
enunciados do fato, isto é, do discurso. Agora mais atenta à época moderna, a autora nota a
sobrevivência da oposição entre verdade e opinião, porém outro agente interfere no debate: a
concepção de que a infinidade e riqueza do discurso humano fragiliza a noção de verdade, e
expressa, por outro lado, a limitação da razão humana na concepção do verdadeiro. É o
momento, então, em que novamente Kant (Crítica da razão pura) aparece para reconhecer
essa fragilidade, endossando algo de extrema valia para a discussão, “a razão do homem,
como o próprio homem, é tímida e circunspecta quando é abandonada a si própria; adquire
firmeza e confiança em proporção do número a que está associada”.

Passamos, na sequência, à diatribe entre Spinosa, para quem a razão humana é falível
e “todo homem é, por direito natural e imprescritível, senhor dos seus próprios pensamentos”,
e Kant, quem alegou que “o poder exterior que priva o homem da liberdade de comunicar
seus pensamentos, priva-o ao mesmo tempo da sua liberdade de pensar”. Ambas as citações
são um modo de colocar a questão do consenso e da verdade sob a ótica da razão. Seja como
for, é curioso notar, ainda em Kant, que a falibilidade da razão só venha a ser ‘consertada’ em
exposição às outras razões, seja para aqueles “que, ainda num estado de ‘tutela’, são
incapazes de se servir de seu pensamento ‘sem a direção de outras pessoas’, e também para o
‘letrado’, que tem necessidade de ‘todos aqueles que lêem a fim de examinar e comparar seus
resultados”. Nessa passagem, tanto a opinião, a doxa, o senso comum, quanto a ‘ilustração’, a
intelectualidade, estão em condições de igualdade quando à necessidade do parecer coletivo.

Temos aí a passagem da verdade como raciocínio solidão para a opinião, do singular


ao coletivo, como se houvesse uma diluição do raciocínio sólido na massa de opiniões que é
o cidadão. Esse pequeno desvio é importante porque nos traz finalmente ao ponto da seção:
“no mundo em que vivemos, os últimos traços deste antigo antagonismo entre a verdade do
filósofo e as opiniões expressas na praça pública desapareceram. Nem a verdade da religião
revelada, que os pensadores políticos do século XVII tratavam ainda como um obstáculo
maior, nem a verdade do filósofo revelado ao homem na solidão, influenciam os assuntos do
mundo”. Aqui, o ponto de Arendt é o de que nenhuma outra época tolerou tantas opiniões
diversas a respeito de fatos, alegando que “a verdade de fato, quando lhe sucede opor-se ao
lucro e ao prazer de um dado grupo, é hoje acolhida com hostilidade maior do que alguma
vez foi”.

Caminhando para o fim, Arendt faz uma constatação poderosa, questionando que o
que parece ser mais incômodo do que a verdade de fato ser censurada em regimes tirânicos é
as verdades de fato incômodas serem “toleradas nos países livres, mas ao preço de serem
muitas vezes, consciente ou inconscientemente, transformadas em opiniões – como se fatos
como o apoio de Hitler pela Alemanha ou o desmoronamento da França diante dos exércitos
alemães em 1940, ou a política do Vaticano durante a Segunda Guerra Mundial, não fossem
da ordem da história, mas da ordem da opinião. (E, por óbvio, as condições da democracia
burguesa interferem aqui). O problema da verdade e da opinião se torna um problema de
primeira hora na medida em que a passagem da verdade dos fatos para as opiniões coloca em
disputa não dois modos de vida em comum, mas “a própria realidade comum e afetiva”. É
assim que, para fechar, volta à alegora da caverna, na qual o filósofo volta de uma viagem
solitária alegando que a realidade é ilusão, que a verdade não está aqui, e vê sua verdade
dissolvida nas opiniões que desperta. Mas, diferentemente da postura do filósofo, a condição
colocada por Arendt é a de suspeitar “que é talvez da natureza do domínio público negar ou
perverter toda espécie de verdade, como se os homens fossem incapazes de se entender com a
sua inflexibilidade obstinada”.

Feitas essas constatações, a autora alega ainda que “os fatos são a matéria das
opiniões e as opiniões inspiradas por diferentes interesses e diferentes paixões, podemos
diferir largamente e permanecer legítimas enquanto respeitarem a verdade de fato. A
liberdade de opinião é uma farsa se a informação sobre os fatos não estiver garantida e se não
forem os próprios fatos o objeto do debate”.

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