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A sombra da razão

Prof. Dr. Leonardo Sartori Porto


A luz da razão produz sombra de origem inesperada. Sua causa não é a
opacidade do mundo, ou a interferência das emoções: é o próprio brilho da sua
luminosidade. Ao mesmo tempo em que no século XX a ordem racional provida pela
ciência e tecnologia foi celebrada pelos políticos, tanto no capitalismo quanto no
socialismo de estado, como o triunfo do homem sobre a natureza, a humanidade
submerge em duas devastadores guerras mundiais, delas emergindo para o terror
nuclear.
A anatomia desta sombra originou um dos livros de filosofia política mais
influente do século passado: “A dialética do esclarecimento” de Adorno e Horkheimer.
Estendendo a dialética do senhor e do escravo para a relação entre o homem e a
natureza, os autores afirmam que “toda a tentativa de romper as imposições da natureza
rompendo a natureza, resulta numa submissão ainda mais profunda às imposições da
natureza” (Adorno e Horkheimer, 1986, p.27). Na origem da razão encontra-se a
necessidade de dominar a natureza; entretanto, o próprio sucesso desta tarefa tornou a
razão um instrumento de dominação do homem sobre o homem, culminando na
produção de artefatos capazes de destruir toda a humanidade.
À sombra da razão, os sentimentos são a alternativa imediata, a fuga óbvia para
a armadilha criada pela necessidade de auto-preservação. Porém, “o irracionalismo (...)
isola o sentimento, assim como a religião e a arte, de tudo o que merece o nome de
conhecimento, e nisso como em outras coisas revela o seu parentesco com o positivismo
moderno (...)”(idem, p. 89-90). O culto aos sentimentos não elimina o risco da barbárie,
pelo contrário, o nazismo ensinou que a ilusão das massas só é obtida através de um uso
racional dos sentimentos: a propaganda política. Nem mesmo o apelo hedonista à
natureza rompe o círculo vicioso do esclarecimento: “o gozo torna-se objeto da
manipulação até desaparecer inteiramente nos divertimentos organizados”(idem, p.
101).
Na aurora do iluminismo político moderno, Thomas Hobbes, utilizando a
simetria das palavras latinas “ratio” e “oratio”, afirma que, movidos pela vanglória, os
homens trocam a razão pela linguagem, combinando palavras que não correspondem a
raciocínios efetivos – a linguagem separa-se do mundo (Elements of Law, in Hobbes,
1966, Cap. 5,§140). Também Hobbes é o primeiro filósofo a identificar razão com
cálculo: “quando alguém raciocina nada mais faz do que conceber uma soma total a
partir da adição de parcelas, ou conceber um resto a partir da subtração de uma soma
por outra” (Hobbes, 1983, cap. 5, p. 27). Três séculos mais tarde, Adorno e Horkheimer
descrevem a subsunção da linguagem à racionalidade instrumental: “enquanto signo, a
linguagem deve resignar-se ao cálculo; para conhecer a natureza, deve renunciar à
pretensão de ser semelhante a ela”( Adorno e Horkheimer, 1986, p. 31).
A independência da linguagem, sua neutralidade política, posta em dúvida desde
o início da modernidade por Hobbes, definitivamente refutada por Marx através do
conceito de ideologia, inspirador da “Dialética do Esclarecimento”, atinge seu oposto
nas polêmicas palavras de Barthes: “mas a língua, como desempenho de toda
linguagem, não é nem reacionária, nem progressista; ela é simplesmente: fascista; pois o
fascismo não é impedir de dizer, é obrigar a dizer” (Barthes, p. 14).
A sombra da razão - a barbárie - estende-se à linguagem, submetendo as infinitas
possibilidades das palavras aos limites estreitos da necessidade natural. Ou, se Barthes
estiver certo, a linguagem não precisa da ajuda da razão para tornar-se uma estrutura
fechada.
Investigar a origem desta odisséia negativa do esclarecimento implica recordar a
Escolástica e sua influência na filosofia moderna, pois embora esta seja o rompimento
com aquela, as teorias filosóficas modernas que sustentam uma fundamentação racional
para a política têm sua inspiração nas teorias morais e políticas de São Tomás de
Aquino e Francisco Suárez. Estes dois teólogos desenvolveram o conceito de “lei da
natureza” num sentido diferente do que é utilizado hoje. Para São Tomás, a lei da
natureza é a “participação das criaturas racionais na lei eterna” (Westerman, 1998, p.
26), que é a lei divina. Esta participação é possível porque Deus infunde nos homens a
luz da razão natural através da qual eles podem discernir o bem do mal.
O fundamento último da moralidade e da política, na compreensão tomista do
mundo, é a razão natural, aquela que nos foi ofertada por Deus. É uma razão pura ou
puramente arbitrária esta que Deus nos envia? A pergunta lembra aquela feita por
Sócrates a Eutifro: o justo é amado pelos deuses porque é o certo, ou é certo porque é
amado pelos deuses? Suárez, jesuíta espanhol que viveu no século XVI, pergunta se a
lei natural depende da vontade de Deus ou se a vontade de Deus é guiada pela lei
natural. Sua resposta imita a de Sócrates: se a lei natural foi derivada do puro arbítrio
divino, então Deus poderia ordenar que a humanidade o odiasse, o que seria um absurdo
(Cf. Haakonssen, 1996, p. 21). Em Suarez, o bem e o mal possuem um fundamento
racional absoluto, e esta concepção influenciará o surgimento do jus naturalismo de
Hugo Grotius e Samuel Pufendorf, que será a secularização do pensamento político
católico.
Luz eterna no interior da mente, a razão natural secularizada afasta-se da
doutrina católica e, seguindo um caminho mundano, chegará até o materialismo. Esta
surpreendente transição ocorre na obra de Thomas Hobbes, cuja ontologia tem um
princípio único: tudo é corpóreo, inclusive o espiritual. Mas o filósofo sabe que este
princípio cosmológico apresenta um problema: como determinar a identidade de um
homem, uma vez que o corpo muda radicalmente do nascimento até a vida adulta? Para
resolver esta aporia, ele apresenta uma solução original: a identidade é garantida pela
matéria e pelo movimento. No caso do homem, a identidade é garantida pelo
movimento de seu corpo que se inicia em seu nascimento e termina com a sua morte.
Segue-se, pois, que manter o movimento é manter a identidade. O que é manter
o movimento? É manter todas aquelas reações metabólicas que caracterizam a vida.
Logo, manter a vida é manter a identidade. Deste modo, Hobbes une analiticamente o
princípio biológico da sobrevivência com o princípio lógico da identidade. O resultado
desta união é o axioma de um longo teorema cujo resultado é a necessidade lógica de se
instituir o estado. Surge assim uma filosofia política inteiramente racional, uma vez que
guiada unicamente por princípios lógicos.
Hobbes não está sozinho neste projeto, ao longo dos séculos XVII e XVIII
desenvolveu-se na Grã-Bretanha um movimento filosófico conhecido como o
“racionalismo britânico” que tem como ponto comum basear a filosofia moral e política
exclusivamente na razão. Entre estes pensadores, além de Hobbes, temos outro filósofo
famoso, John Locke, e alguns pouco conhecidos: Ralph Cudworth, Samuel Clark e
William Wollaston.
A arte de manter estável este luminoso e transparente palácio político reside em
ter a mais sólida fundação possível: a lógica. Solidez corroída pela singela
argumentação de outro filósofo britânico: David Hume.
O filósofo escocês, em poucas palavras, questiona a capacidade dos princípios
lógicos por si mesmos determinarem os fins da ação humana:
Não é contrário à razão preferir a destruição de todo o mundo a um arranhão no meu dedo. Não é
contrário à razão escolher minha total ruína a fim de prevenir o menor desconforto de um
indiano ou de alguém que me seja totalmente desconhecido. (Hume, 1984, II, iii, 3, p. 463)
Afirmar duas proposições contraditórias pode ser considerado um desacordo
da razão consigo mesma, visto não ser necessária qualquer comparação com o mundo
para se perceber o absurdo de tal asserção, é algo que a razão pode fazer sozinha.
Contudo, como os exemplos de Hume ressaltam, a menos que se escolha algo
logicamente contraditório, que, por isto mesmo, escapa ao campo do possível, qualquer
escolha possível não atenta ao princípio de não-contradição. Ora, qualquer escolha
efetiva se dá no campo das possibilidades, logo, o princípio de não-contradição, por si
só, não pode selecionar o que quer que seja: as possibilidades são todas iguais perante
ele.
Se a razão opera exclusivamente através da lógica, não pode sozinha determinar
a vontade humana. Faltando-lhe esta capacidade, exclui-se a possibilidade de uma
fundação racional última para a política.
Na filosofia humeana, a razão é rebaixada à lanterna que ilumina o caminho
criado pelo extra-racional: os sentimentos. Epistemologia da afetividade, o conflito
entre razão e emoção sequer ocorre, pois ambas atuam em esferas distintas, o que não
impede que a razão seja “escrava das paixões”(idem, II, iii, 3, p. 462).
O império das paixões, embora sólido no que tange ao conhecimento humano e à
moralidade, não se sustenta na política, pois as emoções tornam os seres humanos
parciais – “não há tal paixão como o amor à humanidade enquanto tal nas mentes
humanas independente das qualidades pessoais, dos serviços ou da relação a nós
mesmos"( Ibid., III, ii, 1, p. 533) -, assim, a política irá se fundamentar no instinto de
sobrevivência: o que gera a sociedade não é um amor desinteressado pelos outros em
geral, mas o interesse próprio.
Por caminhos opostos, Hume e Hobbes chegam ao mesmo princípio fundador da
sociedade: a necessidade de cooperar para sobreviver. Porém, o caminho de Hume
exclui a razão como faculdade capaz de, por si só, descobrir este princípio. Esta
limitação repercute na filosofia política contemporânea, como se percebe no livro de
Michael Oakeshott, “O racionalismo na política”, onde a concepção da razão política
como a busca da perfeição e universalidade é substituída pela visão da racionalidade
como o “certificado que outorgamos a qualquer conduta que possa manter um lugar no
fluxo de simpatia, a coerência da atividade que integra um modo de vida”(Oakeshott,
2000, p. 130). Não existem princípios racionais de conduta independentes e externos à
própria conduta, e “a conduta ‘racional’ consiste em atuar de tal modo que se preserve e
possivelmente se incremente o idioma1 da atividade a que pertence a conduta”(idem,
p.123).

1
Oakshott definie idioma de uma conduta o “conhecimento de como comportar-se de maneira apropriada
às circunstâncias”(123).
Se concebermos o conjunto de regras práticas que surgem a partir de uma
atividade humana como a cultura da referida atividade, então caberia à razão apenas
compreender e legitimar a cultura política vigente: não estamos entrando numa via
expressa para o conformismo?
Razão insuficiente, sentimentos parciais: o próximo candidato a fundamento da
política, a cultura, parece não apresentar as virtudes críticas requeridas para tal tarefa.
No entanto, preenchendo as esperanças perdidas na revolução comunista, a vitória dos
movimentos em prol dos direitos das mulheres na segunda metade do século passado,
bem como o sucesso das políticas de afirmação das minorias nas últimas décadas,
originaram um novo movimento político, eventualmente chamado de
“multiculturalismo” ou de “políticas de identidade”.
Na odisséia do esclarecimento, a modernidade despe a razão de suas vestes
espirituais deixando-a na nudez de sua pretendida universalidade, mas a pós-
modernidade encarna a razão na cultura:
(...)o estágio da sociedade e cultura ocidental que agora estamos entrando – visto seja como a
terceira fase da modernidade ou como uma nova e distinta fase “pós-moderna” – obriga-nos a
reaproveitar valores do humanismo renascentista perdidos no auge da Modernidade. Até mesmo
no âmago da física do século XX, idiossincrasias das pessoas e culturas não podem ser
eliminadas. (Toulmin, 1992, p.199)
O intelectual renascentista, ainda que imbuído de espírito crítico, limita os
poderes da razão através de uma tolerância cética às distintas concepções culturais. Na
sociedade atual, o espírito de uma racionalidade supra-cultural deve ser substituído pelo
jogo do reconhecimento entre culturas de igual valor. E não se trata apenas do
reconhecimento dos direitos das mulheres e das minorais: é preciso mudar a forma de
perceber as diferenças, tarefa que começa na escola (Cf. Taylor, 1994, p. 65). “Educar
para uma sociedade multicultural” tem substituído o lema deweyano de “educar para a
democracia”, com a conseqüente substituição da epistemologia centrada no indivíduo
para a epistemologia social ( Cf. Alvin Goldman, “Education and social epistemology”,
in Rorty, 1998).
O arco-íris não produz sombra. As cores do multiculturalismo trazem a
promessa de uma razão que não projeta diante de si a sombra da barbárie da qual não
conseguiu escapar. Não há verdades universais, pois “a verdade não existe fora do poder
ou sem poder”(Foucault, 1985, p.12), o que existe são as negociações que as culturas
estabelecem entre si, processo no qual reconhecem o direito à alteridade.
O arco-íris, no entanto, diminui sua visibilidade com o aumento da proximidade.
Se não há princípio político que transcenda a particularidade cultural, então precisamos
apostar numa harmonia pré-estabelecida entre as culturas que possibilite a aceitabilidade
dos princípios básicos de convivência intercultural por todas. Infelizmente a história,
inclusive a atual, mostra que as chances de ganhar esta aposta são muito pequenas.
O pressuposto fundamental do multiculturalismo é o respeito à diversidade
cultural, mas o que o produz, uma vez que nem a razão, nem as emoções e tampouco a
particularidade de cada cultura pode cumprir esta tarefa?
Na política, os princípios universais têm o predicado da irredutibilidade: ao
investigarmos profundamente qualquer argumento político acabamos descobrindo
algum princípio universal como pressuposto. Se não quisermos voltar ao conceito
medieval de lei da natureza, então não nos resta outra alternativa senão apelar a um
suposto “bom senso político”. Não é um apelo incomum; Thomas Paine, um dos
idealizadores da democracia moderna, intitulou um dos seus principais livros de “Senso
comum” (Common Sense), onde apela ao senso comum para asseverar que é o governo
quem deve servir à sociedade, não o oposto. O defensor do multiculturalismo, quando
lhe argumentam que o racismo e o machismo, sendo culturas (ou constituintes
essenciais de algumas culturas), devem ser respeitados como qualquer outra cultura, o
que levaria a uma inconsistência fatal em sua concepção, pode apelar ao bom senso para
garantir que nem todas as culturas merecem respeito.
A simplicidade do apelo ao senso comum ou a verdades “óbvias” esconde a
fraqueza intrínseca a uma métrica baseada em algo tão vago. Apenas há dois séculos
atrás a escravidão era aceita pelo senso comum, não faz ainda um século que a
submissão feminina deixou de ser um simples fato da vida, e tão somente 29 anos nos
separam da descriminalização do ato homossexual na Escócia.
Podemos supor que estamos vivendo numa era de esclarecimento pós-moderno
na qual até mesmo o senso comum está mais humanizado; no entanto, quando
começamos a listar os princípios políticos “sensatos”, o direito à vida, à liberdade, ao
bem-estar, logo chegamos ao direito à propriedade privada, que, pelo menos desde o
marxismo, é bastante controverso. Mesmo o direito mais básico de todos, o direito à
vida, não está livre de controvérsia. Peter Singer, por exemplo, questiona a abrangência
deste princípio: por que deve se restringir apenas aos seres humanos (Cf. , Singer, 2006,
5º capítulo)? A resposta não é difícil apenas para o bom senso, também ou outros dois
candidatos a serem o fundamento da política, a razão e as emoções, não teriam uma
resposta unívoca.
Nossa jornada está nos levando em direção às paragens do ceticismo político, o
que não é um acidente. As querelas religiosas que ocorreram ao final do Renascimento
trouxeram de volta à vida política européia o ceticismo clássico, com a sua rejeição de
qualquer critério para definir o certo e errado, tanto em termos religiosos quanto morais
e políticos.
O ceticismo clássico, que tem como figura fundadora Pirro de Elis (aprox. 360 a
275 a.C.), surge na paisagem de profunda divergência teórica que caracteriza a filosofia
grega, onde num extremo há o ser imóvel, no outro, a pura mobilidade do ser.
Entendendo que o jogo do debate filosófico é de soma zero, os céticos desistem de
apostar em qualquer tese, adotam a suspensão de juízo (epoché) como método e a paz
de espírito (ataraxia) como fim.
No Renascimento, a postura cética foi usada pelos pensadores que, cansados dos
intermináveis debates religiosos iniciados por Lutero, escolhem a via do fideísmo.
Montaigne escreve: “(...)todos os raciocínios humanos são inertes e estéreis, e só tomam
forma na medida em que Deus, por meio da graça, lhes dá tal oportunidade e lhes
determina o valor” (Montaigne, 1996, V. 2, p 377). O ceticismo, quando aplicado à
moral e a política, tem um resultado que o pensador francês aceita, o conformismo: “na
vida comum procedem os pirrônicos como todo mundo.(...)acomodam-se às leis e ao
costumes e seguem a tradição das artes”2(Ibid., p. 423).
Lembrando que o fatalismo é a mera justificação do conformismo, não temos a
opção de entregar a política ao fortuito. Não existe, contudo, uma saída fácil para o
labirinto em que a busca pelos fundamentos da política nos colocou. Sequer podemos
voltar pelos nossos passos até os tempos onde a força dos argumentos valia muito
menos que o argumento da força. Embora sabendo que os argumentos são usados pelos
políticos para justificar sua liderança, não precisamos assumir a postura mandevilliana
de que todo discurso político é uma sutil estratégia de dominação: exorta-se nos
indivíduos a honestidade a fim de torná-los “úteis aos outros e dóceis, sendo a principal
finalidade garantir que os ambiciosos possam se beneficiar disto e governar um vasto
número de indivíduos com mais facilidade e segurança” (Raphael, 1991, p. 267). Pois,
como escreve Foucault, “é preciso admitir um jogo complexo e instável em que o
discurso pode ser, ao mesmo tempo, instrumento e efeito de poder, e também obstáculo,
2
No livro “Contra os moralistas”, Sexto Empírico escreve: “(...) o cético não vive segundo uma teoria
filosófica (pois, no que concerne a esta, ele ficaria sem agir), mas de acordo com a observação não
filosófica da vida é capaz de desejar certas coisas e recusar outras. E quando ele for impelido por um
tirano a cometer uma ação contra a sua vontade, ele escolherá isto e evitará aquilo, em conseqüência da
prenoção devida às suas leis e costumes ancestrais(...)”. ( Empiricus, 1948, p. 132-133(165-166).
escora, ponto de resistência e ponto de partida de uma estratégia oposta” (Foucault,
2005, V. 1, p. 96).
A crítica a razão feita por Adorno e Horkheimer não implica a sua recusa: “não
alimentamos dúvida nenhuma – e nisso reside nossa petitio principii – de que a
liberdade na sociedade é inseparável do pensamento esclarecedor” ( Adorno e
Horkheimer, 1986, p. 13). Não podemos imaginar que a falta de racionalidade irá nos
proteger dos desmandos da razão, visto que não é a razão em si que nutre a barbárie em
seu interior, é o seu uso como meio de sobrevivência, instrumento para sobrepujar a
nossa fragilidade diante da natureza. A concepção da racionalidade, todavia, não pode
deixar de levar em conta a observação de Hume sobre as limitações da razão pura no
campo da escolha moral e política. Observação que por ser o resultado de um raciocínio
a priori – as leis da lógica não podem determinar qual ação possível é a correta, pois
apenas discriminam a ação possível daquela que é impossível – é universalmente válida.
Da universalidade da restrição segue-se o caráter necessariamente particular da
racionalidade política.
No livro “Justiça de quem? Qual racionalidade?”, MacIntyre conclui que “cada
concepção particular de justiça requer como contrapartida alguma concepção particular
de racionalidade prática e vice-versa”(MacIntyre, 1987). Uma vez que toda concepção
de justiça ocorre no interior de um sistema político, o que vale para a justiça vale para a
política. A concepção política aristotélica estaria fundamentada numa razão prática
produzida no interior da polis; já a filosofia política de São Tomás de Aquino expressa a
visão de uma forma mais complexa de organização social e assim por diante. Por
vivermos numa sociedade planetária, a diversidade política de nossa época é única na
histórica, bem como as demandas das comunidades particulares – aqui entendidas com a
das mulheres, minorias étnicas, homossexuais, etc. O que resta de universal é o diálogo.
Contudo, mesmo a linguagem não é universal, porquanto seja no interior de uma
determinada cultura que os conceitos são aprendidos. Embora “democracia” tenha o
mesmo significado nominal na sociedade de hoje e na Grécia Clássica, é óbvio que a
maneira como entendemos este conceito hoje difere bastante da forma como foi
entendido naquela época. Sequer podemos dizer que as sociedades contemporâneas têm
a mesma compreensão da “democracia”. É apenas através da linguagem, entretanto, que
podemos construir pontes na diversidade cultural, a fim de estabelecer um território
comum para a negociação dos interesses de cada cultura.
Quando Barthes afirma que toda a língua é fascista, ele prova o oposto: a
ilimitada possibilidade de expressão que a linguagem nos confere. A língua não nos
torna livres, mas tampouco nos aprisiona.
Não encontramos na razão, nas paixões, e muito menos no interior de uma
cultura particular, o terreno comum onde poderíamos estabelecer um acordo entre as
diferentes concepções dos princípios políticos, uma vez que estaríamos disfarçando de
universal uma perspectiva meramente particular. A linguagem, por outro lado, possui
uma natureza intrinsecamente comunitária, na qual as regras surgem espontaneamente
na interação entre os falantes; nas palavras de Norman Malcolm: “o conceito de seguir
uma regra [da linguagem] implica uma comunidade de seguidores de regras”(Malcolm,
1986,p. 156). A intuição, com origem em Wittgenstein, é a de que a linguagem, que
abrange em si os limites do mundo3, não tem sua origem numa convenção, ou em algum
princípio universal e imutável, mas na interação entre aqueles que a criam. Inclusive a
verdade não está acima desta origem:
‘Então afirmas que é a concordância entre as pessoas que decide o que é verdadeiro e o que é
falso?’ – Verdadeiro e falso é o que os homens dizem, e é na linguagem que usam que eles
concordam. Não se trata de uma concordância de opiniões, mas de formas de vida.
(Wittgenstein, 1987, §241).
É como se a linguagem criasse a si mesma através de seus usuários. Suas regras
não são impostas, nem são o resultado de acordos – o arbitrário ocorre dentro da
linguagem -, elas se constituem no uso.
Não teria a linguagem a capacidade para trazer ao jogo político um ponto
comum a partir do qual todas as diferentes perspectivas pudessem negociar suas
diferenças?
Searle crê que a “generalidade da linguagem, dadas certas assunções do senso
comum sobre meus próprios interesses, gerará um forte altruísmo” (Searle, 2001, p.
168). Ele explica este processo a partir da simples proposição “Tenho dor”. Se ela tem
um significado para mim é porque tem um significado para os outros, ou seja, as
condições de verdade para a proposição “Tenho dor” são as mesmas, quer seja dita por
mim ou por outro. Esta proposição gera outra: “Preciso de ajuda, pois tenho dor”, cujas
condições de verdade valem para qualquer um que a pronuncie, então, se reconheço a
verdade desta proposição, reconheço a verdade da proposição geral: “X precisa de
ajuda, pois X tem dor”. E o filósofo conclui: “meu ponto é que a universalidade que nos
impele a sair do egoísmo para o altruísmo genuíno já está construída na universalidade
da linguagem”(ibid., p. 170).
3
“Os limites de minha linguagem significam os limites de meu mundo” (Wittgenstein, 1993, p. 245).
É claro que o mero reconhecimento da verdade de uma proposição não é
suficiente para nos impelir a agir, mas estabelece um critério geral para avaliar as
demandas das diversos atores envolvidos no jogo político. A generalidade deste critério
depende, como o exemplo do Searle demonstra, do reconhecimento das regras lógicas,
que são a condição de possibilidade do sentido.
Ensinar o diálogo efetivo, aquele onde as razões são ouvidas e avaliadas, nos
parece o caminho mais efetivo para se desenvolver uma consciência política pluralista.
Não se trata, é claro, da mera análise formal de argumentos, mas de uma investigação na
qual também o contexto social e histórico seja levado em conta, num debate onde não se
tenha medo do dissenso.

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