Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
1
Oakshott definie idioma de uma conduta o “conhecimento de como comportar-se de maneira apropriada
às circunstâncias”(123).
Se concebermos o conjunto de regras práticas que surgem a partir de uma
atividade humana como a cultura da referida atividade, então caberia à razão apenas
compreender e legitimar a cultura política vigente: não estamos entrando numa via
expressa para o conformismo?
Razão insuficiente, sentimentos parciais: o próximo candidato a fundamento da
política, a cultura, parece não apresentar as virtudes críticas requeridas para tal tarefa.
No entanto, preenchendo as esperanças perdidas na revolução comunista, a vitória dos
movimentos em prol dos direitos das mulheres na segunda metade do século passado,
bem como o sucesso das políticas de afirmação das minorias nas últimas décadas,
originaram um novo movimento político, eventualmente chamado de
“multiculturalismo” ou de “políticas de identidade”.
Na odisséia do esclarecimento, a modernidade despe a razão de suas vestes
espirituais deixando-a na nudez de sua pretendida universalidade, mas a pós-
modernidade encarna a razão na cultura:
(...)o estágio da sociedade e cultura ocidental que agora estamos entrando – visto seja como a
terceira fase da modernidade ou como uma nova e distinta fase “pós-moderna” – obriga-nos a
reaproveitar valores do humanismo renascentista perdidos no auge da Modernidade. Até mesmo
no âmago da física do século XX, idiossincrasias das pessoas e culturas não podem ser
eliminadas. (Toulmin, 1992, p.199)
O intelectual renascentista, ainda que imbuído de espírito crítico, limita os
poderes da razão através de uma tolerância cética às distintas concepções culturais. Na
sociedade atual, o espírito de uma racionalidade supra-cultural deve ser substituído pelo
jogo do reconhecimento entre culturas de igual valor. E não se trata apenas do
reconhecimento dos direitos das mulheres e das minorais: é preciso mudar a forma de
perceber as diferenças, tarefa que começa na escola (Cf. Taylor, 1994, p. 65). “Educar
para uma sociedade multicultural” tem substituído o lema deweyano de “educar para a
democracia”, com a conseqüente substituição da epistemologia centrada no indivíduo
para a epistemologia social ( Cf. Alvin Goldman, “Education and social epistemology”,
in Rorty, 1998).
O arco-íris não produz sombra. As cores do multiculturalismo trazem a
promessa de uma razão que não projeta diante de si a sombra da barbárie da qual não
conseguiu escapar. Não há verdades universais, pois “a verdade não existe fora do poder
ou sem poder”(Foucault, 1985, p.12), o que existe são as negociações que as culturas
estabelecem entre si, processo no qual reconhecem o direito à alteridade.
O arco-íris, no entanto, diminui sua visibilidade com o aumento da proximidade.
Se não há princípio político que transcenda a particularidade cultural, então precisamos
apostar numa harmonia pré-estabelecida entre as culturas que possibilite a aceitabilidade
dos princípios básicos de convivência intercultural por todas. Infelizmente a história,
inclusive a atual, mostra que as chances de ganhar esta aposta são muito pequenas.
O pressuposto fundamental do multiculturalismo é o respeito à diversidade
cultural, mas o que o produz, uma vez que nem a razão, nem as emoções e tampouco a
particularidade de cada cultura pode cumprir esta tarefa?
Na política, os princípios universais têm o predicado da irredutibilidade: ao
investigarmos profundamente qualquer argumento político acabamos descobrindo
algum princípio universal como pressuposto. Se não quisermos voltar ao conceito
medieval de lei da natureza, então não nos resta outra alternativa senão apelar a um
suposto “bom senso político”. Não é um apelo incomum; Thomas Paine, um dos
idealizadores da democracia moderna, intitulou um dos seus principais livros de “Senso
comum” (Common Sense), onde apela ao senso comum para asseverar que é o governo
quem deve servir à sociedade, não o oposto. O defensor do multiculturalismo, quando
lhe argumentam que o racismo e o machismo, sendo culturas (ou constituintes
essenciais de algumas culturas), devem ser respeitados como qualquer outra cultura, o
que levaria a uma inconsistência fatal em sua concepção, pode apelar ao bom senso para
garantir que nem todas as culturas merecem respeito.
A simplicidade do apelo ao senso comum ou a verdades “óbvias” esconde a
fraqueza intrínseca a uma métrica baseada em algo tão vago. Apenas há dois séculos
atrás a escravidão era aceita pelo senso comum, não faz ainda um século que a
submissão feminina deixou de ser um simples fato da vida, e tão somente 29 anos nos
separam da descriminalização do ato homossexual na Escócia.
Podemos supor que estamos vivendo numa era de esclarecimento pós-moderno
na qual até mesmo o senso comum está mais humanizado; no entanto, quando
começamos a listar os princípios políticos “sensatos”, o direito à vida, à liberdade, ao
bem-estar, logo chegamos ao direito à propriedade privada, que, pelo menos desde o
marxismo, é bastante controverso. Mesmo o direito mais básico de todos, o direito à
vida, não está livre de controvérsia. Peter Singer, por exemplo, questiona a abrangência
deste princípio: por que deve se restringir apenas aos seres humanos (Cf. , Singer, 2006,
5º capítulo)? A resposta não é difícil apenas para o bom senso, também ou outros dois
candidatos a serem o fundamento da política, a razão e as emoções, não teriam uma
resposta unívoca.
Nossa jornada está nos levando em direção às paragens do ceticismo político, o
que não é um acidente. As querelas religiosas que ocorreram ao final do Renascimento
trouxeram de volta à vida política européia o ceticismo clássico, com a sua rejeição de
qualquer critério para definir o certo e errado, tanto em termos religiosos quanto morais
e políticos.
O ceticismo clássico, que tem como figura fundadora Pirro de Elis (aprox. 360 a
275 a.C.), surge na paisagem de profunda divergência teórica que caracteriza a filosofia
grega, onde num extremo há o ser imóvel, no outro, a pura mobilidade do ser.
Entendendo que o jogo do debate filosófico é de soma zero, os céticos desistem de
apostar em qualquer tese, adotam a suspensão de juízo (epoché) como método e a paz
de espírito (ataraxia) como fim.
No Renascimento, a postura cética foi usada pelos pensadores que, cansados dos
intermináveis debates religiosos iniciados por Lutero, escolhem a via do fideísmo.
Montaigne escreve: “(...)todos os raciocínios humanos são inertes e estéreis, e só tomam
forma na medida em que Deus, por meio da graça, lhes dá tal oportunidade e lhes
determina o valor” (Montaigne, 1996, V. 2, p 377). O ceticismo, quando aplicado à
moral e a política, tem um resultado que o pensador francês aceita, o conformismo: “na
vida comum procedem os pirrônicos como todo mundo.(...)acomodam-se às leis e ao
costumes e seguem a tradição das artes”2(Ibid., p. 423).
Lembrando que o fatalismo é a mera justificação do conformismo, não temos a
opção de entregar a política ao fortuito. Não existe, contudo, uma saída fácil para o
labirinto em que a busca pelos fundamentos da política nos colocou. Sequer podemos
voltar pelos nossos passos até os tempos onde a força dos argumentos valia muito
menos que o argumento da força. Embora sabendo que os argumentos são usados pelos
políticos para justificar sua liderança, não precisamos assumir a postura mandevilliana
de que todo discurso político é uma sutil estratégia de dominação: exorta-se nos
indivíduos a honestidade a fim de torná-los “úteis aos outros e dóceis, sendo a principal
finalidade garantir que os ambiciosos possam se beneficiar disto e governar um vasto
número de indivíduos com mais facilidade e segurança” (Raphael, 1991, p. 267). Pois,
como escreve Foucault, “é preciso admitir um jogo complexo e instável em que o
discurso pode ser, ao mesmo tempo, instrumento e efeito de poder, e também obstáculo,
2
No livro “Contra os moralistas”, Sexto Empírico escreve: “(...) o cético não vive segundo uma teoria
filosófica (pois, no que concerne a esta, ele ficaria sem agir), mas de acordo com a observação não
filosófica da vida é capaz de desejar certas coisas e recusar outras. E quando ele for impelido por um
tirano a cometer uma ação contra a sua vontade, ele escolherá isto e evitará aquilo, em conseqüência da
prenoção devida às suas leis e costumes ancestrais(...)”. ( Empiricus, 1948, p. 132-133(165-166).
escora, ponto de resistência e ponto de partida de uma estratégia oposta” (Foucault,
2005, V. 1, p. 96).
A crítica a razão feita por Adorno e Horkheimer não implica a sua recusa: “não
alimentamos dúvida nenhuma – e nisso reside nossa petitio principii – de que a
liberdade na sociedade é inseparável do pensamento esclarecedor” ( Adorno e
Horkheimer, 1986, p. 13). Não podemos imaginar que a falta de racionalidade irá nos
proteger dos desmandos da razão, visto que não é a razão em si que nutre a barbárie em
seu interior, é o seu uso como meio de sobrevivência, instrumento para sobrepujar a
nossa fragilidade diante da natureza. A concepção da racionalidade, todavia, não pode
deixar de levar em conta a observação de Hume sobre as limitações da razão pura no
campo da escolha moral e política. Observação que por ser o resultado de um raciocínio
a priori – as leis da lógica não podem determinar qual ação possível é a correta, pois
apenas discriminam a ação possível daquela que é impossível – é universalmente válida.
Da universalidade da restrição segue-se o caráter necessariamente particular da
racionalidade política.
No livro “Justiça de quem? Qual racionalidade?”, MacIntyre conclui que “cada
concepção particular de justiça requer como contrapartida alguma concepção particular
de racionalidade prática e vice-versa”(MacIntyre, 1987). Uma vez que toda concepção
de justiça ocorre no interior de um sistema político, o que vale para a justiça vale para a
política. A concepção política aristotélica estaria fundamentada numa razão prática
produzida no interior da polis; já a filosofia política de São Tomás de Aquino expressa a
visão de uma forma mais complexa de organização social e assim por diante. Por
vivermos numa sociedade planetária, a diversidade política de nossa época é única na
histórica, bem como as demandas das comunidades particulares – aqui entendidas com a
das mulheres, minorias étnicas, homossexuais, etc. O que resta de universal é o diálogo.
Contudo, mesmo a linguagem não é universal, porquanto seja no interior de uma
determinada cultura que os conceitos são aprendidos. Embora “democracia” tenha o
mesmo significado nominal na sociedade de hoje e na Grécia Clássica, é óbvio que a
maneira como entendemos este conceito hoje difere bastante da forma como foi
entendido naquela época. Sequer podemos dizer que as sociedades contemporâneas têm
a mesma compreensão da “democracia”. É apenas através da linguagem, entretanto, que
podemos construir pontes na diversidade cultural, a fim de estabelecer um território
comum para a negociação dos interesses de cada cultura.
Quando Barthes afirma que toda a língua é fascista, ele prova o oposto: a
ilimitada possibilidade de expressão que a linguagem nos confere. A língua não nos
torna livres, mas tampouco nos aprisiona.
Não encontramos na razão, nas paixões, e muito menos no interior de uma
cultura particular, o terreno comum onde poderíamos estabelecer um acordo entre as
diferentes concepções dos princípios políticos, uma vez que estaríamos disfarçando de
universal uma perspectiva meramente particular. A linguagem, por outro lado, possui
uma natureza intrinsecamente comunitária, na qual as regras surgem espontaneamente
na interação entre os falantes; nas palavras de Norman Malcolm: “o conceito de seguir
uma regra [da linguagem] implica uma comunidade de seguidores de regras”(Malcolm,
1986,p. 156). A intuição, com origem em Wittgenstein, é a de que a linguagem, que
abrange em si os limites do mundo3, não tem sua origem numa convenção, ou em algum
princípio universal e imutável, mas na interação entre aqueles que a criam. Inclusive a
verdade não está acima desta origem:
‘Então afirmas que é a concordância entre as pessoas que decide o que é verdadeiro e o que é
falso?’ – Verdadeiro e falso é o que os homens dizem, e é na linguagem que usam que eles
concordam. Não se trata de uma concordância de opiniões, mas de formas de vida.
(Wittgenstein, 1987, §241).
É como se a linguagem criasse a si mesma através de seus usuários. Suas regras
não são impostas, nem são o resultado de acordos – o arbitrário ocorre dentro da
linguagem -, elas se constituem no uso.
Não teria a linguagem a capacidade para trazer ao jogo político um ponto
comum a partir do qual todas as diferentes perspectivas pudessem negociar suas
diferenças?
Searle crê que a “generalidade da linguagem, dadas certas assunções do senso
comum sobre meus próprios interesses, gerará um forte altruísmo” (Searle, 2001, p.
168). Ele explica este processo a partir da simples proposição “Tenho dor”. Se ela tem
um significado para mim é porque tem um significado para os outros, ou seja, as
condições de verdade para a proposição “Tenho dor” são as mesmas, quer seja dita por
mim ou por outro. Esta proposição gera outra: “Preciso de ajuda, pois tenho dor”, cujas
condições de verdade valem para qualquer um que a pronuncie, então, se reconheço a
verdade desta proposição, reconheço a verdade da proposição geral: “X precisa de
ajuda, pois X tem dor”. E o filósofo conclui: “meu ponto é que a universalidade que nos
impele a sair do egoísmo para o altruísmo genuíno já está construída na universalidade
da linguagem”(ibid., p. 170).
3
“Os limites de minha linguagem significam os limites de meu mundo” (Wittgenstein, 1993, p. 245).
É claro que o mero reconhecimento da verdade de uma proposição não é
suficiente para nos impelir a agir, mas estabelece um critério geral para avaliar as
demandas das diversos atores envolvidos no jogo político. A generalidade deste critério
depende, como o exemplo do Searle demonstra, do reconhecimento das regras lógicas,
que são a condição de possibilidade do sentido.
Ensinar o diálogo efetivo, aquele onde as razões são ouvidas e avaliadas, nos
parece o caminho mais efetivo para se desenvolver uma consciência política pluralista.
Não se trata, é claro, da mera análise formal de argumentos, mas de uma investigação na
qual também o contexto social e histórico seja levado em conta, num debate onde não se
tenha medo do dissenso.
Referências bibliográficas: