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MESTRADO DE FILOSOFIA
MARCOS KAYSER
Introdução
Hobbes escreve em meio à guerra civil inglesa. Tanto vida pública como privada
estão imersas no conflito configurando um paradoxo que se estende aos nossos dias:
por que deflagrar uma guerra, por em risco a vida e destruir-se precocemente, se o
maior desejo do homem é escapar do maior dos males: a morte? E a pergunta que
segue: como alcançar a paz num palco de sucessivos conflitos? Uma das primeiras
conclusões de Hobbes é que o estado de total liberdade e igualdade, no qual todos
podem tudo, inclusive se invadirem mutuamente já que possuem as mesmas
potencialidades, precisa ser ainda nesta vida superado.
“…a felicidade desta vida não consiste no repouso de um espírito satisfeito, pois não
existe o finis ultimus (fim último) nem o summum bonum (bem supremo) de que se
fala nos livros dos antigos filósofos morais. E ao homem é impossível viver quando
seus desejos, tal como quando seus sentidos e imaginação ficam paralisados. A
felicidade é um contínua progresso do desejo, de um objeto para outro, não sendo a
obtenção do primeiro outra coisa senão o caminho para conseguir o segundo.”
(Leviatã, XI, p.91)
Os objetos são bons porque eles são úteis e eles são desejados por essa razão. A
busca de um novo bem é busca de algo útil à manutenção do movimento e na
medida que se acumula uma quantidade de bens, incrementa-se uma quantidade
correspondente de poder. O incremento do poder de um indivíduo implica o
decréscimo de poder do outro.
Quanto mais bens um indivíduo obtém, menos o outro tem. Temos uma relação
muito mais econômica do que fraterna. O ser humano não é naturalmente social, não
é por natureza um animal político com tendência a uma comunhão. Sob esta idéia
poderíamos pensar que o homem não é por natureza cristão. Uma eventual tristeza
diante da desgraça do outro é motivada mais pelo medo do que um sentimento de
amor pelo próximo:
“Assim, não buscamos a sociedade naturalmente e por si própria, mas sim para que
possamos dela receber alguma honra ou lucro.” (De Cive, I, 30)
“Toda a sociedade é portanto, ou para o lucro, ou para a glória; isto é: não tanto por
amor de nossos próximos quanto pelo amor de nós mesmos.” (De Cive, I, 31)
“Portanto tudo aquilo que é válido para um tempo de guerra, em que todo homem é
inimigo de todo homem, o mesmo é válido também para o tempo durante o qual os
homens vivem sem outra segurança senão a que lhes pode ser oferecida por sua
própria força e sua própria invenção.” (Leviatã, XIII, p109)
Hobbes entende assim que numa sociedade controlada por um Estado absoluto, que
se impõe pela ameaça do medo da punição e pela esperança da recompensa, o lobo
transforma-se em cidadão. Todavia, a psicologia hobbesiana não deu muita atenção
para os desejos reprimidos deste cidadão.
Apesar das obras ditas sociais de Freud não merecerem o mesmo entusiasmo
dedicado por seus analistas aos demais escritos, os mais atentos, ou melhor, os mais
interessados perceberão o quanto para Freud era pertinente a extensão de suas
teorias da psique do indivíduo para o contexto social. Na medida que o exterior,
mais especificamente, o outro, intervém no indivíduo, como modelo e também como
adversário, seria no mínimo imprudente ignorá-lo.
Coincidindo com Hobbes, como propósito da vida humana, Freud identifica a busca
intensamente do prazer, evitando a dor, concluindo que a vida se define pelo
princípio do prazer2. Princípio geral que domina o funcionamento do aparelho
psíquico do indivíduo desde o início de sua vida. Todos desejam ser felizes:
“… os homens não são criaturas gentis que desejam ser amadas e que, no máximo,
podem defender-se quando atacadas; pelo contrário, são criaturas entre cujos dotes
instintivos deve-se levar em conta uma poderosa quota de agressividade. Em
resultado disso, o seu próximo é, para eles, não apenas um ajudante potencial ou um
objeto sexual, mas também alguém que os tenta a satisfazer sobre ele a sua
agressividade, a explorar sua capacidade de trabalho sem compensação, utilizá-lo
sexualmente sem o seu consentimento, apoderar-se de suas posses, humilhá-lo,
causar-lhe sofrimento, torturá-lo e matá-lo. Homo homini lupus.” (Mal Estar na
Civilização, p133)
“A vida humana em comum só se torna possível quando se reúne uma maioria mais
forte do que qualquer indivíduo isolado e que permanece unida contra todos os
indivíduos isolados. O poder dessa comunidade é então estabelecido como ‘direito’,
em oposição ao poder do indivíduo, condenado como ‘força bruta’. A substituição
do poder do indivíduo pelo poder de uma comunidade constitui o passo decisivo da
civilização.” (Mal-Estar na Civilização, p.115)
Se, por um lado, as restrições viabilizam a vida em sociedade, trazem, por outro,
sérias implicações à organização psíquica do ser humano. O homem se constitui
como ser social, aprisionado a um dilema que parece insolúvel. No estado de
natureza tinha uma liberdade ilimitada, sem nenhum valor, uma vez que um
indivíduo livre podia colocar em risco a vida do outro sobre o qual avançava e
também a sua própria vida, bastando esbarrar num indivíduo mais forte à sua frente,
diante do qual decaía. No estado de sociedade o Estado como entidade reguladora,
mantém uma certa ordem, às custas de restrições às liberdades individuais. Freud
identifica que, por conta dessa liberdade perdida, o ser humano estará
permanentemente em conflito com a própria civilização, reconhecendo que cada
revolução, cada impacto que a humanidade experimenta, é uma tentativa de externar,
e superar, esse conflito, essa inquietação. E, é assim que se dá evolução da
civilização:
Conclusão
Em suma, é preciso manter no homem acesas as chamas do desejo (Eros) sem que
elas o consumam e se generalizem em guerra (Tanatos), e, para isso, é preciso
limitar sem suprimir. Ao mesmo tempo as condições de possibilidade para a paz
passam pelo auto-domínio que só pode ser conquistado através do desenvolvimento
de uma ética da responsabilidade. Na onda do individualismo possessivo, seria
dizer: o homem precisa se conscientizar que sua felicidade depende da felicidade do
outro. Meu egoísmo precisa ser solidário com o egoísmo do outro.
Bibliografia
BOBBIO, Norberto. Thomas Hobbes. Tradução de: Carlos Nelson Coutinho. 6. ed.
Rio de Janeiro: Campus, 1991.
HOBBES, Thomas.Os Elementos da lei natural e política. São Paulo: Ícone Editora,
2002.
RIBEIRO, Renato Janine. Ao Leitor sem medo – Hobbes escrevendo contra o seu
tempo. São Paulo: Brasiliense, 1984.
2 Atividadepsíquica que tem por objetivo evitar o desprazer (aumento das tensões) e
proporcionar o prazer (redução das tensões).
3 Força contrária à pulsão de vida que tende dissolve-la e remeter o indivíduo a seu
estado inorgânico original
4 Freud no Mal Estar na Civilização, p. 109, cita: “a palavra civilização descreve a
soma integral das realizações e regulamentos que distinguem nossas vidas das de
nossos antepassados animais e que sermos a dois intuitos: o de proteger os homens
contra a natureza e o de ajustar os seus relacionamentos mútuos.”
5 Conforme Laplanche e Pontalis, pressão ou força energética que faz o organismo
tender para um objetivo, cuja fonte está numa excitação corporal
6 Conforme David E. Zimerman, ainda persiste a clássica definição de que o ego
(eu) é a principal instância psíquica, funcionando como mediadora, integradora e
harmonizadora entre as pulsões do id (isso), as exigências e ameaças do superego
(supereu) e as demandas da realidade exterior. Entende-se por id uma fonte de
energia psíquica, um reservatório de pulsões quase todas inconscientes.