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1.

Fichamento parágrafo a parágrafo

1} Hannah Arendt inicia seu texto colocando a mentira como ferramenta necessária e
justificável do político, do demagogo e do estadista. A partir disso, faz uma série de
perguntas: o que isso significa para a política? E para a própria verdade? Qual a realidade
da verdade, se não tem espaço livre na política? “Não será a verdade impotente tão
desprezível como o poder que não dá atenção à verdade?”

2} Introduz o adágio “Faça-se justiça, embora pereça o mundo”. Usado por muito tempo
de maneira retórica. É com Kant que sua índole é contrariada: justiça como sagrado, um
valor acima de todos outros – “a justiça prevalecerá, mesmo que todos patifes do mundo
pereçam com ela”.

3} Discorda a autora da interpretação de Kant. Defende que o zelo pela existência vem
antes de qualquer princípio transcendental e qualquer princípio que transcenda a
existência pode ser colocado no lugar. Na verdade, substituindo-se por verdade o ditado
soa “ainda mais plausível”. A mentira “visto ser amiúde substituta de meios mais
violentos”, é instrumento relativamente inofensivo no arsenal da ação política.

4} Usa Heródoto para dizer que nenhum grupo humano poderia existir sem “dizer o que
é”, ou seja, buscar e dizer a verdade [daquilo que testemunharam].

5} Arendt adverte que o conflito entre moral e política, antigo e complexo, nada ganharia
com simplificação ou denúncia moral. Introduz, então, o mito da caverna de Platão, no
qual aqueles que perseguem e os que contam a verdade tinham consciência que seriam
ridicularizados, mas caso começassem a agir ativamente em função dessa verdade,
interferindo no curso do mundo, seriam, então, atacados. A isso, contrapõe Hobbes,
citando-o: “A verdade que não se opõe nem ao lucro nem ao prazer humano, é a todos
seres humanos bem-vinda”. Platão, para a autora, discordaria de que há alguma verdade
que seria bem-vinda a todos seres humanos. Porém Hobbes, ao contrário de Platão,
entendia que existem certas verdades que não importam a todos homens, não esbarrando
em interesses, por exemplo, sendo então, “livres”.

6} Arendt discorda do exemplo de Hobbes quanto a depender das forças e capacidade do


interessado, um axioma matemático poderia ser suprimido dos conhecimentos, dado que
o espírito humano seria capaz de reproduzir tal conhecimento, ainda que se queimassem
todos os livros de Geometria.
7} Recupera Leibniz para tratar do que a época moderna considerava verdade, quem
traçou uma distinção entre as verdadeis fatuais e as verdades racionais (verdades
matemáticas, científicas e filosóficas), distinção adotada por Arendt no texto. Cita, como
exemplo da fragilidade das verdades fatuais: a importância de Trotsky na Revolução
Russa, uma “verdade modesta”, e contrapõe a sua ausência nos livro didáticos de história
soviéticos.

8} Arendt usa termos de Hobbes para explicar sua perspectiva: a dominação quando
avança em direção à verdade racional, exorbita seu domínio, porém quando avança contra
a verdade fatual combate em seu próprio terreno, o qual está habituada. A verdade fatual,
que pode ser eliminada para sempre, é, portanto, mais frágil que as verdades racionais.

II

9} Argumenta a autora: o contrário de uma asserção racionalmente verdadeira é o erro ou


a ignorância, como nas Ciências Sociais, ou a ilusão e a opinião, como na Filosofia. Até
Hobbes, ninguém considerou a mentira deliberada como arma contra a verdade, a mentira
para além do individuo mentiroso. Arendt levanta uma hipótese ligada aos pecados
religiosos. Nenhuma religião, exceto Zoroastrismo, considerou a mentira para além do
“falso testemunho”. Localiza, dessa forma, a mentira como ofensa séria no ascenso da
moralidade puritana, combinada com a emergência da ciência organizada, fundada na
veracidade dos cientistas.

10} O conflito entre verdade e política é construído como a oposição entre dois modos de
vida: o do cidadão e o do filósofo. Este buscava as verdades eternas, que estabilizassem
os assuntos humanos, aquele, por outro lado, mantém flexíveis opiniões acerca dos
assuntos humanos, que estão em fluxo constante. O contrário da verdade, dessa maneira,
é a opinião e a ilusão. A autora conclui que é o “degradamento da opinião que conferiu
ao conflito sua pungência política, pois é a opinião, e a não a verdade, que pertence a
classe dos pré-requisitos indispensáveis a todo poder”. Arendt identifica, dessa maneira,
um antagonismo entre verdade e opinião: Para o poder ser exercido é necessária uma rede
de suporte de pessoas que compartilham da mesma opinião. Uma verdade, por outro lado,
que se pretenda absoluta, não necessitando dessa forma de apoio de opiniões, “atinge na
raiz mesma toda política e todos governos”. Essa oposição aparece em Platão, quando
aponta que a comunicação em forma de diálogo é adequado à verdade filosófica, enquanto
à comunicação em forma de retórica é usada pelo demagogo.
11} Esse conflito se limita até o início da época moderna. Em Hobbes, há uma
contraposição entre o “raciocínio sólido” e a “eloquência vigorosa”. No Iluminismo, o
conflito não existe e, se existe, tem ênfase deslocada: a verdade é inacessível, só temos
opiniões. Mesmo quando há júbilo nessa perspectiva, é patente a consciência da
fragilidade da razão humana. Cita Kant e Madison ao defender que a razão, reconhecendo
suas próprias limitações, se fortalece ao se associar a outros homens.

12} Contrapõe a esse argumento Spinoza: apesar de defender liberdade de expressão e


pensamento, não a exige. Considera a necessidade de comunicar-se e a incapacidade de
ocultar pensamentos como uma fraqueza a qual não pode ser exercida pelo filósofo. Kant,
por outro lado, acredita que a razão só é perfectível através da comunhão, do “uso
público” da razão.

13} A autora explica que, na esteira do raciocínio de Kant, o deslocamento da verdade


racional de um homem para a opinião pública, do coletivo, implica em um desvio de
“domínio em que nada conta, a não ser o raciocínio sólido” para uma esfera onde a “força
da opinião é determinada pela confiança do indivíduo no número dos que ele supõe que
nutram as mesmas opiniões”.

14} Conteporaneamente não há mais distinção entre verdade e opinião. Nem a verdade
da Igreja nem a do filósofo, interferem no mundo. Aquela devido à separação entre Igreja
e Estado e a segunda deixou de reclamar direitos. Pensando em termos de tradição, antigo
conflito, diz Arendt, parece resolvido e sua causa original, desapareceu.

15} Porém ainda há embate entre política e verdade, que possui aspectos e feições
semelhantes com esse antigo conflito. Há diversas opiniões sobre diversos assuntos,
porém se uma verdade fatual esbarra em interesses particulares (lucro ou prazer) há mais
hostilidade do que jamais houve. A autora não se refere aos segredos de estado, que
considera naturais, mas aos fatos amplamento conhecidos que, no entanto, são
considerados tabus no debate público. Diz também que tal fenômeno existe em governos
livros e em governos tiranicos, porém em governos livres a verdade fatual, que é tolerada,
se torna mera opinião. Dessa maneira, a verdade fatual, tão menos aberta à discussão que
a filosófica, pode sofrer semelhante destino: contradita por opiniões. Acredita a autora,
assim, que o tópico verdade vs opinião ainda é frutífero.

16}Traça um paralelo entre o contador da verdade, que vê seu fato transformado em


opinião, e o contador da verdade do mito de platão: quando traz de fora a verdade, tem
ela misturada na “diversidade dos modos de ver que são ilusão para ele”. O primeiro
contador da verdade está em desvantagem, na visão de Arendt, pois não pode se consolar
de ter retornado de uma viagem em que viu a verdade, se considerando como espécie de
estrangeiro no mundo do qual partiu. Se a verdade fatual desse contador, que foi vista e
testemunhada por muitos, não é aceita, surge a suspeita de que o homem é incapaz de
lidar, cabendo à política negar ou perverter verdades. A verdade de Platão, realizada na
solidão, transcende a maioria, de forma que quando passa para a “esfera pública” muda
de um modo de existência para outro.

17} A verdade fatual, diz a autora, é política por natureza. Só existe entre sujeitos, em
que muitos estão envolvidos e são testemunhas. Fatos e opiniões não são antagônicos,
pertencem ao mesmo domínio. Fatos informam opiniões, que podem divergir e ainda
serem legitimas no que respeita sua verdade fatual. A verdade fatual informa o
pensamento político assim como a verdade filosófica informa o pensamento filosófico.

18} Mas os fatos existem? Explica a autora que, por mais que a história entenda que não
é possível determinar fatos sem interpretações, há linhas divisórias claras entre fato,
opinião e interpretação.

19} Não há, contudo, poder político onisciente o suficiente para eliminar para todos uma
verdade fatual. Disso nasceria, então, a suspeita de que o domínio político estaria em
guerra total à verdade.

III

20} Todas as verdades são opostas à opinião no quesito de asseverar a validade. As


verdades percebidas e declaradas como tal estão além do acordo e do consentimento, são
coercivas. Arendt considera, dessa maneira, que a verdade, para a política, é uma força
coerciva que surgem fora do “reino político propriamente dito”.

21} Para governos despóticos, a verdade surge como competição coercitiva, para
governos que se assentam sobre consentimento e abominam a coerção, está em “estado
precário”. Fatos, coercivos que são, encerram o debate e o debate é a essencia da vida
política. Modos de pensamento e de comunicação que tratam com a verdade são
tiranizantes; a política, por outro lado, tem como característica levar em consideração a
opinião das pessoas.
22} O pensamento político é representativo, ou seja, alimenta-se da diversidade. Quanto
maior acesso a essa diversidade, melhor ponderada será a opinião. “Pensar em minha
própria identidade, onde efetivamente não me encontro”

23} Compara a opinião e a verdade quanto à sua transparência. Enquanto a opinião é


translúcida, a opinião mostraria opacidade.

24} Fatos existem ao acaso, poderiam ser como poderiam não ser, ou ser outra coisa. São
contingentes. Se, olhando para trás, os vemos como inevitáveis, isso é ilusão.

25} Dessa maneira, a verdade não é, per si, mais evidente que a opinião, sendo tão
vulnerável quanto. As testemunhas oculares “notoriamente não fidedignas” e documentos
que podem ser falsificados. No limite, se resolvem pela maioria, assim como a opinião.

26} As consequência ao contador da verdade fatual (em oposição ao contador da verdade


de Platão), podem ser ainda mais graves, pois atingem, mais que o contador, a verdade.
Arendt considera que a ação humana não consegue competir com a verdade, mas pode
competir com a “persuasividade inerente à opinião”.

27} Cita Sócrates a respeito da defesa de uma de suas asserções: “a justiça é melhor que
a injustiça”, na qual o filósofo critica seus opositores que já estavam convictos antes
mesmo do diálogo, de forma que a verdade da proposição não somente falhou em
persuadir o não convicto, como não conseguiu confirmar suas convições. Dessa maneira,
Sócrates defende que é melhor o homem estar em desavença com o mundo do que em
desavença consigo mesmo.

28} A respeito da última defesa de Sócrates, Arendt faz uma clivagem: pode ser
verdadeiro para o filósofo, mas para o cidadão “ser ativo e mais ocupado com o mundo e
a felicidade pública que com seu bem-estar” não é. Sobre isso, cita Maquiavel e
Aristóteles, que advertiam o uso de “preceitos éticos originários do homem no singular”.

29} A verdade filosófica concerne ao homem em sua singularidade, daí não ser política.
Caso ela seja erguida para sobrepôr todas opiniões, sofrerá derrota e será impotente. Caso
seja bem sucedida, isso será como uma vitória de pirro (vitória a custo altíssimo), pois
decerto que foi uma coincidência e logo a opinião que antes suportava essa verdade pode
mudar de rumo, ou seja, a verdade funcionou pois era como opinião.

30} Arendt compara duas pretensões de verdade a respeito da igualdade dos homens, uma
proferida por Jefferson e outra religiosa. Jefferson, ao declarar essa verdade, enfatiza que
ela vêm através de um consenso, ou seja, ganha força através da opinião; já a verdade
religiosa vêm de um ambiente externo, de forma que não tem consequência política.

31} As verdades filosóficas, embora não tenham consequência políticas diretas, diz a
autora, tem um impacto inegável sobre a conduta ética; da mesma maneira os
mandamentos religiosos. A única forma de persuasão que a verdade filosófica é capaz
sem perverter a si mesma é se tornando prática, ou seja, exemplo. Para justificar, usa
Kant, que fala sobre intuições quando nos deparamos com preceitos: se são conceitos
“teóricos”, as intuições são esquemas, se são conceitos práticos, são exemplos.

32} A transformação de uma verdade filosófica em ação é possível por meio da persuasão
do filósofo da Moral de convencer quanto sua exemplaridade. Possibilidade que existe
também às verdades racionais, não, contudo, as verdade fatuais.

IV

33} Arendt afirma que a marca que distingue a verdade fatual é ter como seu contrário a
falsidade deliberada, a mentira, e não o erro, ilusão ou opinião.

34} O fato adquire implicações políticas somente quando colocado em um contexto


interpretativo. Entretanto, a falsidade deliberada compõe-se uma ação, pois representa o
intuito de alterar um fato. Da mesma forma, o mentiroso age quando deliberadamente
confunde uma verdade fatual com uma opinião, método esse frequentemente empregado
por grupos subversivos a um público imaturo politicamente.

35} Conclui, assim, que o mentiroso é um homem de ação e, caso aquele que diz a verdade
fatual quiser desempenhar um papel político e persuadir precisará argumentar a favor
dessa verdade e torna-la plausível, atrelando-a a sua veracidade pessoal. Daí a dificuldade
do contador de verdades profissionais manter-se no âmbito político, ao contrário do que
ocorre com o mentiroso, que tem a vantagem de sempre estar em meio a ele. Arendt
defende que a capacidade de mentirmos, uma capacidade de ação, logo de transformação
do mundo, configura-se, dessa forma, como confirmação da liberdade humana. O
mentiroso político profissional superestima essa capacidade de liberdade e,
implicitamente, tolera a negação ou distorção mentirosa de fatos – formas de
manifestação daquela capacidade.
36} Consequentemente, a veracidade como não conduz à ações e transformações do
mundo e das circunstâncias, não é tida como virtude política; exceto quando uma
comunidade adere ao mentir organizado como padrão, transformando o mentir na inércia,
o que se quebrará quando alguém disser a verdade.

37} A liberdade para moldar os fatos do mentiroso permite que seus argumentos sejam
mais convincentes, pois podem ser moldados conforme a intenção do arguidor e
expectativas da audiência.

38-39} A autora chama atenção para o recente fenômeno da manipulação em massa de


fatos e opiniões. Define o quê tradicionalmente se entendia por mentira política como
relacionada a segredos de Estado e dados ou fatos ocultados, conquanto a mentira política
moderna, em contraste, lida eficientemente com coisas que em absoluto se constituem
segredos, mas são conhecidas praticamente por todo mundo. Essas mentiras políticas
modernas carregam um germe de violência, dado que tendem a destruir aquilo que negam,
sendo empregadas conscientemente pelos governos tirânicos.

40} A mentira política tradicional, diferentemente da moderna, referia-se apenas a


particularidades e nunca visava a iludir a todas as pessoas, mas apenas ao inimigo. Assim,
Arendt aponta duas limitações que restringiam o dano a verdade decorrente de uma
mentira tradicional e que não se verificam na forma de mentira política contemporânea.
A primeira limitação diz que, por tratar-se de uma mentira particular que preserva o
contexto geral dos fatos falseados, a mentira tradicional se mostrará eventualmente de
forma espontânea; a segunda limitação diz respeito a capacidade dos antigos
manipuladores de fatos, i. e. diplomatas e estadistas, de enganarem outros, mas não
acreditarem eles mesmos em suas mentiras.

41} A autora questiona a importância de reconhecer essas características atenuantes.


Responde indicando como tal auto-ilusão do mentiroso lhe serve como desculpa moral
para justificar sua mentira e além disso, dado que requerem um rearranjo completo de
toda trama factual para que se faça crível, o que impediria essas mentiras de substituírem
totalmente a realidade e fatualidade?

42} Para ilustrar a propensão de auto-ilusão do mentiroso, Arendt evoca uma anedota
medieval sobre um atalaia que soou o alarme de aproximação de inimigos para assustar a
cidade e acaba compartilhando do medo de seus semelhantes. Esse auto-engano também
assegura às vítimas da confiabilidade do mentiroso.
43} Apesar do preconceito moral corrente tender a ser mais severo com mentiras frias, i.
e., aquelas na qual o mentiroso ainda é capaz de distinguir a verdade da falsidade, e não
com mentirosos que se convenceram de suas mentiras, estas são piores, pois carregam a
capacidade de apagarem totalmente a verdade ocultada do mundo, inclusive para seu
próprio propagador, causando um dano irreversível à realidade.

44} A moderna manipulação de fatos, cujo perigo está nessa inteireza e finalidade
potencial, não é monopólio no mundo livre dos governos, mas empregada
sistematicamente por líderes e grandes organizações de interesses políticos e/ou
comerciais que, dessa forma, são capazes de iludir nações inteiras e não somente aos
oponentes ou inimigos.

45} Arendt conclui que automaticamente o esforço principal de enganados e enganadores


tenderá a perpetuar a imagem da propaganda mentirosa intacta, cuja integridade é mais
ameaçada por dissidentes que insistem em acusar as mentiras do que por inimigos
externos. A história contemporânea, indica a filósofa, está repleta de exemplos nos quais
os que diziam a verdade fatual eram tidos como mais perigosos que verdadeiros
adversários. Na Guerra Fria, por exemplo, inúmeras auto-ilusões foram praticadas por
ambos os lados e tornou-se patente a capacidade da mentira política moderna em
transformar uma questão externa, um conflito internacional ou intergrupal, em um
problema interno em palco na política doméstica.

46} Arendt ressalta, contudo, que devido a curta expectativa de vida de imagens nacionais
mentirosas e falseadas e ao atual sistema de comunicação mundial não há uma nação
grande o bastante capaz de tornar sua imagem falseada irrefutável. Para ilustrar essa
problemática e a impossibilidade no mundo contemporâneo de expansão da vida útil de
imagens políticas mentirosas, a autora indica como os sistemas de governo totalitários e
ditaduras de partido único, aqueles que seriam mais eficientes em uma sistemática
manipulação da realidade, mostram-se, ainda assim, incapazes de sustenta-la
indefinidamente. Isso devido não só ao aspecto prático do grande esforço continuado de
apagamento e substituição de realidade fatuais em registros históricos, como foi o caso,
por exemplo, em apagamentos e confiscos de discursos, escritos e referências a certos
membros do partido comunista soviético, mas também por essas falsificações conterem
em seu cerne indícios expressivos de seu caráter mentiroso. Este último, em longo prazo,
gesta um cinismo na sociedade manipulada, uma recusa a acreditar na verdade de
qualquer coisa, independente de quão bem foi estabelecida ou por quem. Em
consequência, essa manipulação da realidade afeta a maneira pela qual nos orientamos no
mundo real, pois prejudica nossa identificação e oposição entre o quê é verdade ou
falsidade.

47} Arendt postula, em seguida, que não há remédio para o problema de quebra da
contingência de toda realidade fatual efetuado pelo mentiroso, que se perde nas ilimitadas
possibilidades de manipulações proporcionadas pela mentira, e que finalmente acarretará
sua própria derrocada. Evocando uma afirmação de Montaigne, Arendt explica a
instabilidade e confusão que nascem da mentira, que é incapaz de sustentar por muito
tempo alguma plausibilidade, pois tendo muitas faces não têm jamais a solidez daquilo
que simplesmente é a verdade. Essa insegurança quando ao senso de direção e realidade
é extremamente comum, afirma, naquele que vivem sob governos autoritários.

48} Conclui, por conseguinte, que a afinidade da mentira com a política (ação e
transformação do mundo) limita-se a própria natureza do que é exposto à ação dos
homens. Assim, por via das mentiras, especialmente em países subdesenvolvidos, se
confunde o futuro – no qual há possibilidade de ação e transformação – ao passado e o
presente, e mina-se do âmbito político sua principal força e ponto de partida dando lugar
àquela confusão quanto a realidade.

49} Logo, Arendt conclui que o poder político é incapaz de produzir um substituto à
realidade fatual, que permanece segura no passado inalterável. Os fatos em sua
inflexibilidade e baixa transitoriedade mostram-se superiores ao poder político, que
enquanto transitório é pouquíssimo digno de confiança para efetivar permanências.
Assim, a atitude política diante de fatos deve se atentar para não os tomar por
desenvolvimentos necessários inevitáveis e tampouco os tentar mudar ou negar.

50} Define, à guisa de conclusão, do que tratará nesta última parte: a posição de quem
conta a verdade (que é exterior ao mundo político), bem como os riscos que ele e,
principalmente, a validade de sua verdade, correm.

51} Diz Arendt que o ponto de vista exterior ao político caracteriza-se como um dos
vários modos de existência solitária: “solidão do filósofo, isolameto do cientista e artista,
imparcialidade do historiador e do juiz, independencia do descobrir de fatos, da
testemunha e do relator”. Enquanto qualquer desses modos de vida pendurar, “não será
possível nenhum compromisso político e nenhuma aderência de causa.”

52} Arendt traça uma exceção ao caráter anti-político da verdade, algumas instituições
em que “ a verdade e a veracidade sempre constituiram o critério soberano da linguagem
e do esforço”: o poder judiciário e a universidade. Ambas, porém, dependem da “boa
vontade do governo”.

53} Essas instituições, refúgios da verdade, permanecem expostas ao poderio político e


social, porém suas funções aumentam as chances da prevalência da verdade. O domínio
público reconhece importância de homens e instituições do qual não tenham poder sobre.

54} Hoje as universidades não são percebidas em sua importância política, por conta da
profissionaldiade envolvida e devido aos resultados das ciências naturais, que trouxeram
benefícios para a sociedade. Porém, diz Arendt, são as humanidades eminentemente
políticas, pois lidam com a conservação da verdade. Daí aparece a importância da
imprensa em comunicar essa verdade: se, como na teoria do quarto poder, ela deveria ser
protegida de influência do poder governamental e pressão social de forma ainda mais
intensiva que no poder judiciário.

55} A realidade é maior e diferente do que a totalidade dos fatos. O contador da verdade,
dessa maneira, é um contador de histórias, dando sentido compreensível aos fatos,
momento em que perdem sua contingência. Arendt recupera Hegel ao afirmar que o
contador “efetiva a reconciliação com a realidade”, fim último do pensamento filosófico
e motor secreto da historiografia. O historiador transforma a matéria prima e sua função
é ensinar a aceitacão das coisas tal como são.

56} Localiza historicamente a busca pela verdade: ninguém antes de Homero tinha
buscado a imparcialidade, retratando não só os vencedores como também os derrotados.
O pai da história, Heródoto, acrescenta a objetividade.

57} Arendt assume a limitação de seu escopo de analise da política quando avaliada pela
perspectiva da verdade, não-política. Indica que a política e o mundo não se limitam a
antagonismos e mentiras e àqueles poderosos o suficiente. A verdade fatual entra em
conflito com a política somente no nível dos negócios cotidianos humanos: devemos
respeitar os limites dos fatos ao agir e modificar.
2. Construção do argumento:

Objetivos:

Hannah Arendt irá defender que a mentira é necessária e justificável à política.


Analisará o que isso implica à política, como a mentira se opõe a verdade e quando esta
terá, então, lugar na política.

Tese:

Uma vez que a mentira é defendida como, por natureza, mais política, pois mais
propensa à ação e transformação que a verdade, se mostra, também, justificável, quando
meio para evitar ações/complicações mais violentas. A verdade é política somente nas
instituições judiciárias e universidades.

Argumentação:

Parte I:

Arendt inicia o texto discordando de Kant quanto à transcendência do valor de


justiça a humanidade, que seria, para a autora, a do anseio de existência e ainda,
relacionando a Heródoto, da verdade – a busca por dizer o que é, narrar o que foi, como
foi visto.

Para evidenciar o contraste entre moral e política, Arendt evoca o mito da caverna
de Platão, que revela que aqueles dispostos a agirem e transformar o mundo a favor da
verdade reconhecida são atacados por aqueles que estão sob a égide da mentira.

Opõe, em seguida, a Hobbes quanto a possibilidade, conforme poderes e


capacidade do mentiroso, de suprimir uma verdade, tal como um axioma matemático, do
hall de conhecimentos humanos indefinidamente – o espírito humano eventualmente, o
encontraria novamente.

Utilizará no texto a distinção entre verdade fatual e verdade racional proposta pelo
filósofo moderno Leibnitz, e conclui como aquela se mostra, então, mais frágil que esta
e pode ser até eliminada para sempre, utilizando-se do exemplo da diminuição mentirosa
da participação de Trotsky na Revolução Russa, e recuperando, também, ideias de
Hobbes, quanto a natural capacidade da dominação política em corromper verdades
fatuais, que quando avança sobre às racionais, está exorbitando tal capacidade.
Parte II:

Argumenta a autora que o contrário de uma asserção racionalmente verdadeira é


o erro ou a ignorância, ou a ilusão e a opinião. Seguindo os caminhos de Hobbes, primeiro
a considerar a mentira como arma política contra a verdade, Arendt defende a hipótese de
que foi devido à ascensão da moral puritana e da veracidade científica institucionalizada
que a mentira adquiriu caráter tão ofensivo e avesso.

Analisa, em seguida, o antagonismo identificado entre verdade e opinião no


campo político. Para que haja poder é necessária uma rede de opinião que o suporte, essa
flexível aos assuntos humanos e não estática como a verdade. Contudo, tal conflito é
supera pelos pensadores modernos, que reconhecem limites à razão humana.

Utilizando-se do raciocínio de Kant, Arendt explica como a transferência de uma


verdade racional ao campo da opinião coletiva muda sua legitimidade do raciocínio sólido
para noção de se partilhar da mesma opinião que outros. Assim, aponta para a persistência
uma oposição entre verdade e política, pois essa pode transformar verdade fatuais que
esbarrem em interesses em meras opiniões. Entretanto, conclui, a verdade fatual é política
por natureza, dado que coletiva e dado que fatos informam opiniões e o pensamento
político. Porém, tendo em vista que, para a autora, não há poder político com domínio
suficiente que o torne capaz de apagar para todos um fato, de forma que se suspeita que
o político está sempre se fazendo em oposição a uma verdade.

Parte III:

Arendt inicia esta parte do texto defendendo como a verdade é vista como coerciva
na política, pois vem de fora dessa, independe de acordo e consentimento. A verdade
fatual encerra debates e opiniões, que alimentam a política. Porém, ainda assim, fatos são
tão frágeis a falseamentos como opiniões, aqueles poderiam ser como não ser, essas
dependem de amparo em diversidades.

Arendt opõe Maquiavel e Aristóteles a Sócrates. Os primeiros advertem para o


perigo de se transpor ao político preceitos éticos individuais, isto é, assumir que a
necessidade e bem-estar do coletivo estará em detrimento do pessoal para os cidadãos,
enquanto Sócrates defendia que é melhor estar em conflito com o mundo do que consigo
mesmo.
Finaliza demonstrando, ao evocar Kant, como verdades filosóficas não têm
consequências políticas, somente se assumem a forma de opinião, mas possuem,
entretanto, implicações na conduta ética humana.

Parte IV:

Arendt postulando como marca da verdade fatual a oposição a falsidade


deliberada, a mentira, não a opinião ou a ilusão. A mentira é, dessa forma, política pois
compõe-se ação, contém em si o intuito deliberado de alterar um fato, conquanto a
verdade fatual só é política se posta em um contexto interpretativo. Conclui-se, então, que
o mentiroso está naturalmente no campo político, e caso o contador de verdade queira
também estar deverá atribuir aos fatos plausibilidade com caráter pessoal persuasivo. Ela
aponta uma equiparidade manipulada por mentirosos políticos entre a capacidade de ação
da mentira e uma manifestação de liberdade humana, o que torna a mentira mais atrativa.
Consequentemente, a verdade não é tida como virtude política.

A autora contrasta a mentira política tradicional, limitada à segredos de Estado e


fatos ocultados e miradas para os inimigos, ao contemporâneo fenômeno de manipulação
em massa de fatos e opiniões que, todavia, seguem disponíveis à informação. Nesse
sentido, a mentira política atual carrega potencial violência, como combativa aquilo que
nega. Também oferece maior perigo de apagamento à verdade, posto que sua capacidade
de auto-ilusão contamina inclusive aos mentirosos e que ela busca falsear todo o contexto
do fato e não somente este, para que ela parece mais plausível. Justifica a importância de
sua análise por ser combativa aos esforços políticos mentirosos de substituição da
realidade fatual por falsidades e de se utilizarem da propriedade de auto-ilusão das
mentiras que contam como desculpa moral para as perpetuarem.

Por outro lado, Arendt argumenta que por maior que forem os esforços, não há
hoje Estado forte o suficiente, ainda que totalitário ou ditatorial, para perpetuar suas
mentiras nacionais ad infinitum, tanto pelo enorme gasto prático de apagamento como
pela característica de instabilidade da mentira, que trará por fim a verdade à superfície.
Ou seja, governos se revelam muito transitórios se comparados a estabilidade dos fatos,
atrelados ao passado: o poder político não é capaz de alterar completamente e
indefinidamente a realidade fatual por meio de mentiras.

Parte V:
Arendt diz assumir a posição solitária e externa à política quando analisa a
verdade, assim como quem a conta. Indica que a verdade é política, contudo, nas
instituições judiciárias e universidades, que a refugiam, mesmo que sob à guisa de
governos. As ciências humanas têm o dever e responsabilidade de salvaguardar a ligação
entre fatos e realidade.

3. Discussão

Concordamos com a tese defendida com Hannah Arendt, mas vemos algumas
possíveis limitações. A principal delas diz respeito ao seu pensamento eurocêntrico, posto
que localiza a preocupação a respeito da verdade fatual no mundo antigo grego e escrito.
Excluindo preocupações com a verdade advindas, por exemplo, da história oral ou do
mundo oriental, como a China antiga. As referências de filósofos por ela utilizadas,
limitam-se a europeus.

Nesse sentido acreditamos que Edward Said oferece um diálogo interessante pois
revelou os perigos do eurocentrismo e da construção identitária europeia baseada em
visões falseadas, voluntarias ou não, de outros povos e que para aqueles são tidas como
verdades.

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