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Análise e Crítica
da Filosofia do Direito Natural
1. Em meu livro Kritik der sogenannten praktischen Erkenntnis (19331 tentei mostrar que a própria concepção de um
conhecimento prático (por exemplo, tal como á postulado na filosofia moral e jurídica corrente) contém uma contra-
dição lógica que se reflete, por sua vez, nas duas categorias nas quais se apresenta o conhecimento prático, a
saber, a idéia do bem e a idéia do dever. A filosofia do direito natural está concebida predominantemente segundo a
categoria do bem. Ver também parágrafo 70.
302 - Alf Ross
• É forçoso que a ojeriza do empirista Alf Ross à metafísica se refira è metafísica tradicional de raizes gregas (ciência
das causas primeiras, no dizer de Aristóteles), levada ao clímax por Platão e o Estagirita, cristianizada, mais tarde,
principalmente pela patrística e a escolástica e conduzida à sua expressão mais sofisticada, consumada e extrema-
da no sistema de Hegel. Por certo Ross não deve se referir à metafísica enquanto tal ou indagação sobre o ser
lontologia), a não ser que desconhecesse ou propositalmente ignorasse o existencialismo de pensadores ateus como
Jean-Paul Sartre e Martin Heidegger (Sein undZeit foi publicado em 1927), para os quais os conceitos de absoluto
e eterno eram totalmente estranhos e inviáveis. A propósito, quanto ao assunto metafísica no direito é oportuno e
proveitoso ler a obra Fenomenoíogia Existencialdo Direito ■Crítica do Pensamento Jurídico Brasileiro, de Jeannette
Antonios Maman, publicada pela Edipro. IN. TJ
Direito e Justiça - 303
8. Charles Grove Haines, The Rem ai o f Natural Law Concepts (1930) apresenta um bom estudo do tema. Ver também
Julius Stone, Province and Function o f Law (1946-50), cap. IX; W. Friedmann, Legal Theory (2* ed., 1949), cap. IX.
9. Foi Cordell Hull, mais tarde Secretário de Estado dos Estados Unidos durante a Segunda Guerra Mundial que a partir de
1907 lutou a favor da implantação do imposto de renda e finalmente teve Sxito ao conseguir que se introduzisse a
necessária emenda constitucional. Ver Cordell Hull, Memoirs, 1 9 4 8 ,1,48-50,58-61, 70-71.
Direito e Justiça - 309
10. United States v. Lovett, 328 U.S. 3 03,31 9 (1946), cf. Bemard Schwartz, American Constitutiona!Law (1955), 212.
3 1 0 -Alf Ross
11. Cf. A lf Ross, Towards a Realistic Jurisprudence 11946), cap. II, p. 1-2.
Direito e Justiça -311
12. Ver, por exemplo, Pufendorf, Le droit de ia nature et desgens (tradução de Barbeyrac), Livro XIII, cap. I, seções 1 e
2. Segundo Pufendorf, relação entre o direito natural e o positivo pode ser descrita mais plenamente da seguinte
maneira: o direito natural não basta para assegurar a paz em virtude da fraqueza e natureza pecaminosa do ser
humano. É por isso que por meio do contrato social os seres humanos se submetem a um governo que tem autorida-
de para sancionar leis e fazer com que sejam cumpridas pela força. Em virtude do contrato e do principio de direito
natural que prescreve o cumprimento do convencionado, as leis positivas adquirem sua validade natural, isto é,
fazem-se obrigatórias, também aos olhos de Deus. Entretanto, o que lhes confere plena força ante os tribunais civis
é a autoridade do soberano. Possuem esta força independentemente de seu conteúdo. Somente no caso do direito
positivo carecer de um regra é que o direito natural a proporcionará. 0 conteúdo do direito positivo (direito civil)
consiste primordialmente nos princípios fundamentais do direito natural, de cuja observância depende a vida pacífi-
ca comunitária entre os seres humanos. Mas nas normas do direito positivo (códigos civis) esses principios surgem
mesclados a regras sancionadas para o benefício ou conveniência do estado individual e também com muitas
formalidades para a implementação técnica dos princípios. 0 direito positivo (direito civil) compreende, portanto, o
direito natural (justiça), benefício ou conveniência e positividades nuas e cruas. Pufendorf, op. cit., Livro I, cap. VI,
seção 12; Livro II, cap. III, seção 11; Livro VII, cap. I, seção 13; Livro VII, cap. II, seção 7; Livro VIII, cap. I, seções
1-2. Conseqüentemente, a política enquanto doutrina acerca do conveniente, distingue-se nitidamente da moral (e
do direito) como doutrina acerca do válido e do racional. Ver Livro I, cap. II, seção 4.
13. Isto vale, ao menos, para o direito natural como doutrina jurídica. A posição foi diferente nas teorias especificamente
políticas que ao incluir no contrato social cláusulas referentes a certos direitos de liberdade (Locke), ou ao atribuir
ao contrato social uma nova interpretação (Rousseau) adquiriram um conteúdo revolucionário. Assim, Locke foi,
também, o pai ideológico da Revolução norte-americana como foi Rousseau o da francesa.
Capítulo XII
A Idéia de Justiça
Não pode ser visto como injusto, tendo, ao contrário, que ser um
dos requisitos da justiça haver distinções de maneira tal que as vanta-
gens e as cargas, os direitos e os deveres, sejam distribuídos levando-
se em conta as circunstâncias condicionantes. Os casados e os soltei-
ros, os maiores e os menores, os criminosos e os cidadãos respeitadores
da lei não podem ter o mesmo jurídico. O requisito de igualdade
encerra unicamente a exigência de que ninguém, de forma arbitrária e
sem razão suficiente para isso, seja submetido a um tratamento que
difere daquele que se dá a qualquer outra pessoa.
A exigência de igualdade deve ser compreendida, portanto, num
sentido relativo, isto é, como uma exigência de que os iguais sejam
tratados da mesma maneira. Isto significa que, como um pré-requisi-
to para a aplicação da norma de igualdade e com independência dela,
é preciso que haja algum critério para determinar o que será conside-
rado igual; em outras palavras, a exigência de igualdade contida na
idéia de justiça não é dirigida de forma absoluta a todos e a cada um,
mas a todos os membros de uma classe determinados por certos
critérios relevantes. Em conformidade com isso, as diversas formula-
ções de justiça para grupos ou contextos diversos incluem - além da
idéia de igualdade - um padrão de avaliação, que deve ser aplicado
como um pré-requisito à definição da categoria cujos membros de-
vem ser tratados com igualdade. Alguns poucos exemplos servirão
para ilustrar este ponto.4
4. Cf. Perelman, Dela justice (1945), 16 e segs., de onde foram extraidos os exemplos citados aqui.
316 - Alf Ross
* Cumpre frisar que, na prática, ao longo da história das sociedades humanas, essas teorias obviamente predominaram,
especialmente no seio das chamadas sociedades civilizadas, seja em regimes políticos francamente totalitaristas,
absolutistas ou despóticos, seja veladamente, mas de fato, em formas de governo ditas "democráticas", das quais
são exemplos atuais as tantas "democracias de direito e de direita" • mais escassas no tempo de Ross • particular-
mente no bloco fragilizado dos países de terceiro mundo, tristes e patéticas hipossuficiências na globalização,
chamadas, segundo o artificioso eufemismo (pretensamente otimista) dos novos títeres, de "economias emergen-
tes". Ocioso dizer que a recente hegemonia política e econômica dos E.U.A. no planeta consolidou essa situação, na
qual o Brasil se destaca como grande coadjuvante. Quanto a Platão, ver os diálogos A República e As Leis, ambos
publicados por esta Editora. IN. T.)
5. Ver o capítulo Justiça totalitária em K. R. Popper, The Open Society andits Enemies, I, 74 e segs.
3 1 8 -Al f Ross
I
Direito e Justiça - 323
pode-se dizer que têm interesse nisso. Não haveria então limites para
o interesse de alguém, podendo-se, sim, dizer que todos estão ilimi-
tadamente interessados em tudo que pode ser vantajoso para eles.
Isto pode parecer exagerado e ninguém pensaria em invocar o inte-
resse dos depositantes em obter mais do que seus depósitos, sim-
plesmente porque o conceito de interesse que efetivamente maneja-
mos nos raciocínios jurídico-morais não é o conceito sugerido. A nin-
guém ocorreria defender o interesse dos clientes em obter mais do
que seus depósitos, já que tal pretensão pareceria totalmente
injustificada. Mas, isto significa que o próprio conceito de interesse
está juridicamente qualificado; não abarca todos os desejos ou preten-
sões imagináveis, mas apenas aqueles que estão justificados. E isto
significa, ademais, que o conceito de interesse pressupõe a existência
de um ordenamento jurídico, e que a ponderação dos interesses não
pode ser um princípio do qual deriva tal ordenamento jurídico.
Assim, Nelson se equivoca quando pensa que pode extrair a su-
prema norma de ação ou o princípio de todo direito de uma pondera-
ção de interesses dados, de um conteúdo preciso determinável. A de-
terminação dos interesses dentro de um limite definido pressupõe ne-
cessariamente um ordenamento jurídico já existente, para distinguir
entre interesses que estão justificados e aqueles que não estão. Esse
ordenamento jurídico só pode ser o direito natural, que se manifesta
num conjunto de direitos ( subjetivos naturais. O interesse justi-
ficado é o que surge de um direito subjetivo natural. E assim também
o princípio de justiça de Nelson se resolve numa tautologia: a justiça
consiste em satisfazer aqueles interesses que estão justificados.
A segunda objeção se refere à ponderação dos interesses (justifi-
cados). Como assinalamos, devemos descartar a técnica de disfarçar
essa ponderação imaginando que todos os interesses afetados são
próprios do sujeito-agente e se perguntando se, com base em tal
suposição, ele agiria da mesma maneira. Por trás dessa ficção se
oculta a idéia de que os interesses em jogo devem ser ponderados de
forma objetiva, isto é, sejam quais forem os sujeitos desses interes-
ses, e seja qual for sua força motivadora efetiva. O próprio Nelson
fala do interesse genuíno ou bem entendido determinado pelo valor
objetivo dos benefícios correspondentes. A ponderação se transfor-
ma, assim, na realidade, não numa prova de força entre as forças
motivadoras de interesses diferentes, mas numa ponderação de be-
nefícios relativa a um padrão objetivo de valores predeterminados.
326 -Alf Ross
14. Como Otto Brusiin, Über die Objektivitãt der fíechtssprechung (1949), 25-26.
15. H. Leyret, LesJugementsduPrésident Magnaud(1900); ver também François Gény, Méthoded'interpretation (1919),
II. 278 e segs.
332 - Alf Ross
O Utilitarismo e a Quimera
do Bem-Estar Social
2. Bentham começa sua principal obra, An Introduction to the Principies o f Morais and Legislation (impressa em 1780 e
publicada em 1789) com as seguintes palavras: "A natureza colocou a humanidade sob o governo de dois amos
soberanos, a dor e o prazer. Cabe a eles somente indicar o que devemos fazer, bem como determinar o que faremos.
Por um lado, o padrão do certo e do errado, por outro, a cadeia de causas e efeitos, estão presos ao seu trono".
Direito e Justiça - 337
a mim o causa a mim ou a outros. O mesmo peso tem que ser atribuído
ao prazer dos demais tanto quanto ao meu próprio e uma ação que é
vantajosa para os outros deve ser preferida a uma ação que é vanta-
josa para mim, mas apenas em menor grau.
É evidente que tal princípio não pode ser extraído do axioma
do prazer, mas se opõe diametralmente à afirmação de que, em seu
conjunto, as pessoas se comportam de forma egoísta. Como outros prin-
cípios éticos, possui o caráter de uma exigência suprema ou de uma
validade específica, em conflito com os impulsos de nossos sentidos. Tal
como os postulados do direito natural, deve buscar seu fundamento na
natureza razoável do ser humano e sua justificação numa intuição inte-
lectual. Na realidade, se aproxima muito da formulação de Nelson do
princípio de justiça (parágrafo 64). Ordena-me vencer minhas inclina-
ções egoístas e agir sem consideração das pessoas, ou da maneira que
agiria se todos os interesses afetados por minha ação fossem meus.
Entretanto, não se deve desprezar a diferença que existe entre o
utilitarismo e o direito natural. A crítica de Bentham da consciência
moral e jurídica e sua exigência de que uma ação seja julgada se-
gundo os seus efeitos de fato, constituem passos de valor perma-
nente para uma teoria realista. Bentham se equivoca ao crer que a
consciência moral e jurídica é dirigida por um único princípio racional,
de acordo com o qual o julgamento dos efeitos de uma ação pode ser
reduzido a um simples cômputo de máximos relativos a somas
quantitativamente iguais.
8. Isto explica o colossal papel que desempenhou o utilitarismo na teoria econômica durante o século XIX e até os
nossos dias.
9. Através da teoria da utilidade marginal, já desenvolvida com completa clareza em Bentham e que, mais tarde, tornou-
se parte principal da doutrina econômica do valor, a distribuição adquiriu uma certa importância derivada. Segundo
essa teoria, a distribuição igual dos bens produzirá a maior soma de prazer. Mas, ainda de acordo com essa elabora-
ção da teoria, a distribuição do próprio prazer continua sendo algo sem importância. Cf. Ross, op. cit., 136.
Direito e Justiça - 341
10. Também fora da esfera da economia é possivel que surjam problemas que podem ser formulados em termos de um
cálculo de quantidades homogêneas.
11 A exposição precedente se ateve ao utilitarismo sob sua forma original formulada por Bentham. Em Bentham as linhas
de pensamento aparecem com maior clareza, já que no desenvolvimento ulterior do utilitarismo se produziu uma fusão
dos elementos puros do utilitarismo com elementos do direito natural e do idealismo. Cf. Ross, op. cit., cap. V, 5-8.
342 - Alf Ross