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Dimensões da Humanização

Filosofia, Psicanálise, Medicina

MÓDULO 2
MODERNIDADE E PÓS-MODERNIDADE

AUTORIA

Professores:
Claudia Murta e Fernando Pessoa

Alunos:
Alcinei Rocha; Anancir Burkhardt; Erick Morgan; Lino Pedroni Jr.; Olímpio Gavi;
Osmar Schultz; Ricardo Miranda; Vitor Cei Santos

Filosofia, Psicanálise, Medicina -1-


APRESENTAÇÃO

Refletindo sobre a relação entre a humanização e a desumanização no Módulo


1, chegamos à conclusão de que a partir da modernidade tornou-se vitoriosa e
hegemônica a proposição do homem como máquina. Vimos que a modernidade pensa
o ser humano numa via de subjetividade estritamente racional que somente na Ciência
seria plenamente desenvolvida. Isso se tornou causa de desumanização, pois o homem,
pensado somente como máquina-racional, é balizado pelo único valor da eficácia
técnico-científica, perdendo todos os valores que o humanizavam. Essa perda de valores
trouxe conseqüências nefastas para a história do Ocidente que provocaram uma reação
contra o pensamento moderno e seu projeto mecanicista de humanidade.
A pós-modernidade é marcada por esse pensamento, embora se caracterize muito mais
por um protesto do que realmente por um movimento com propostas efetivas. A única
proposta efetivamente pós-moderna é a tentativa de recuperação de valores absolutos
que foram liquidados pela modernidade. Essa proposta se faz representar pelo holismo,
que procura uma “união cósmica” entre Deus(es), homens e a natureza. O holismo
surge como uma proposta de humanização tentando resgatar valores buscados quase
que aleatoriamente entre filosofias orientais e idealizações cósmico-panteístas, através
das quais o homem poderia supostamente recuperar o sagrado e, por conseguinte, algum
sentido diante da ausência de valores. É, então, que do homem-máquina moderno
passamos à proposta do homem-deus pós-moderno. Dessa passagem é que trataremos
neste módulo, buscando refletir como o termo humanização é trabalhado no contexto
do movimento pós-moderno.

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INTRODUÇÃO

A partir da ciência moderna, o homem se torna máquina, tanto em sua ação social,
quanto em sua ação particular. A ciência nos levou ao conhecimento da técnica e
assim – ainda que, para com esta, tenhamos nos submetido aos seus ditames – tivemos
condições para nos lançarmos em aventuras no macro e no microcosmo.
Há a prevalência da técnica concebida pelo homem sobre o próprio homem. A
crítica contemporânea tem como enfoque a matematização do conhecimento como
afastamento do homem da sua essência humana, a ponto de o homem se deixar dominar
pela sua própria invenção.
Desde o período pós-guerra (segunda guerra mundial), há o domínio do mercado
sobre toda a humanidade. Pode-se levar em conta que o capitalismo faz parte também
do advento científico e que o mercado é o principal meio de circulação do comércio.
O homem mantendo a fé em uma ciência imediatista, que lhe traz comodidades e
soluções dinâmicas para problemas antes insolúveis, tem dificuldade de abrir mão de
tais conquistas.
Segundo o filósofo Martin Heidegger (1889-1976), o utilitarismo exacerbado da
modernidade converte em destino o acontecimento de que o mundo supra-sensível,
as idéias, Deus, a lei moral e a civilização, perdem sua força construtiva e se anulam.
O homem assume a postura de detentor dos conhecimentos para a produção de
tecnologias. Esse fato é acompanhado por um esquecimento do sagrado, tendo, como
conseqüência, a implantação do divino no próprio homem. O homem passa a ocupar o
lugar de Deus. Não existe mais ética, nem moral. Não existe mais o ser nas produções e
nas concepções do homem.
A pós-modernidade, como período que sofre as conseqüências dos construtos teóricos
e práticos da modernidade, não consegue diferir muito desta, se apresentando somente
como uma modernidade de cara nova, mantendo o sujeito no esquecimento. Detêm-
se o saber e o poder, mas não o porquê da aplicação dos saberes. É possível se fazer um
homem novo, mas para quê? É esse o referido utilitarismo exacerbado: as coisas são
feitas puramente pela sua utilidade, sem que haja uma reflexão a respeito do sujeito
nesse contexto. Os objetos são criados e o sujeito não tem mais importância – daí todas
as catástrofes e guerras às quais estamos tão acostumados na contemporaneidade.
“Deus está morto! Deus continua morto! E nós o matamos!” 1 – essa frase de Nietzsche
é comumente apontada como a causa da morte de Deus, enquanto que, na verdade, ela
1
NIETZSCHE, F. A Gaia Ciência. Trad. P. C. de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2001.
Aforismo 125.

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só fez constatar um fato já ocorrido − a humanidade matou Deus. Diante desse aforismo
de Nietzsche, Heidegger levanta a questão: “Como podemos reinventar o sagrado?” É
preciso um substituto para a figura de Deus. A resposta aparece na implantação de Deus
nos homens. Deus é o próprio homem que se vê capaz de tudo, enredando por caminhos
perigosos, tornando-se, ele o homem, seu próprio inimigo. Ele se vê suficientemente
poderoso para não respeitar nenhuma regra, nem a si mesmo.
Não foram os ateus que mataram Deus, mas aqueles que tentaram racionalizá-Lo – a
razão matou o sagrado. Os grandes valores como o sagrado, a ética, a moral, as leis,
estão se anulando, deixando de existir diante do homem-deus.
Em relação ao homem e ao objeto, a questão não consiste em religá-los, mas, sim,
em jamais separá-los um do outro. Essa cisão é, não só, marca da modernidade, mas,
também, essencialmente, uma marca da civilização ocidental. Na modernidade, o que
há é o objeto sem sujeito, propiciando a existência de “criminosos anônimos” – tudo
sendo feito sem que haja um sujeito para essas ações.
O século XX, século do homem-peça, do “homem novo” que se encapsula em uma
política trágico-econômica que distribui os seus pedaços; ainda que sua fala venha
iludir, dizendo estar cavalgando em direção de sua unidade – globalizando-o.
Como se promove, então, esse triunfo do capitalismo e do mercado mundial? Somente,
mediante a criação desse “homem novo”, este em que já está incluída a noção de matéria
e materialismo: onde a vida do espírito é produzida e determinada pela matéria, onde as
verdades não são absolutas, mas relativas aos fatos da matéria.
A conseqüência primeira de um projeto tão audacioso como o do “homem novo” só pode
culminar, é claro, na produção de um “homem desumanizado” que tem a força de lançar
no seu próprio centro o veneno de sua própria negação.
Tendo em vista fatos como os da degeneração do homem que, ora vem deixando-se
consumir, e não mais consumindo, frente aos ditames de uma “Técnica”, que mais fome
e sede tem de corpos/mentes desumanizados, tal degeneração é acrescentada de um
certo “Sagrado” que este ente desumanizado visa a fazer manifestar. Alguns seguimentos
de linhas de pensamento surgidos na contemporaneidade se tomam como cicerones da
humanidade na árdua busca pela metafísica, ocultada pela ciência moderna em uma
caverna escura e afastada de tudo o que é humano.
A música Ouro de Tolo (Raul Seixas) critica os “valores” capitalistas pós-modernos:

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Eu devia estar contente Eu devia estar feliz pelo Senhor
Porque eu tenho um emprego Ter me concedido o domingo
Sou um dito cidadão respeitável Pra ir com a família ao Jardim Zoológico
E ganho quatro mil cruzeiros Dar pipoca aos macacos
Por mês Ah! Mas que sujeito chato sou eu
Eu devia agradecer ao Senhor Que não acha nada engraçado
Por ter tido sucesso na vida como artista Macaco praia, carro, jornal, tobogã
Eu devia estar feliz Eu acho tudo isso um saco
Porque consegui comprar um Corcel 73 É você olhar no espelho
Eu devia estar alegre e satisfeito Se sentir um grandessíssimo idiota
Por morar em Ipanema Saber que é humano, ridículo, limitado
Depois de ter passado fome por dois anos Que só usa dez por cento de sua
Aqui na Cidade Maravilhosa Cabeça animal
Ah! Eu devia estar sorrindo e orgulhoso E você ainda acredita que é um doutor, padre ou
Por ter finalmente vencido na vida policial
Mas eu acho isso uma grande piada Que está contribuindo com sua parte
E um tanto quanto perigosa Para nosso belo quadro social
Eu devia estar contente Eu que não me sento
Por ter conseguido tudo o que eu quis No trono de um apartamento
Mas confesso abestalhado Com a boca escancarada cheia de dentes
Que eu estou decepcionado Esperando a morte chegar
Porque foi tão fácil conseguir Porque longe das cercas embandeiradas que
E agora eu me pergunto: E daí? separam quintais
Eu tenho uma porção de coisas grandes No cume calmo do meu olho que vê
Pra conquistar, e eu não posso ficar aí parado Assenta a sombra sonora de um disco voador

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DESENVOLVIMENTO

O século XX
O século XX tem a marca do triunfo do capitalismo e do mercado mundial. É a
vitória da economia em todos os sentidos do termo: o capital, como economia das
paixões sem razão do pensamento. É o século liberal.

Alain Badiou, em seu seminário, no Collège International de Philosophie, do ano


universitário de 1999-2000, sob o título “O Século”, reflete sobre a marca do século XX.
Ele acrescenta que o início do século teve um início excepcional; um século prodigioso
em invenções, criatividade e rupturas. Um século, segundo o autor, comparável ao da
Renascença florentina. Nesse sentido, ele nos faz lembrar de alguns marcos do século
XX: Mallarmé publica “Um lance de dados...” que se torna o manifesto da escrita
contemporânea; Einstein inventa a relatividade restrita; Freud publica “A interpretação
dos Sonhos”; Schoenberg funda a possibilidade da música tonal; Lênin cria a política
moderna; Proust escreve o essencial de “A busca do tempo perdido”; a partir dos
ensinamentos das obras de Frege e Russell, Wittgenstein e alguns outros desenvolvem a
filosofia da linguagem; Picasso e Braque quebram a lógica pictural; entre outros tantos
prodígios.
Logo após, em 1914, inicia-se um período de guerras que não pode ser pensado sem
referência ao momento anterior das conquistas coloniais. Para Badiou, existe algo no
furor das guerras dos anos trinta que retorna à primeira guerra, à guerra das trincheiras,
e também às conquistas coloniais. Enfim, para Badiou, no século XX, a política torna-se
tragédia.
PROJETO MODERNO
• A partir de um certo momento, o século foi dominado pela idéia de mudar o
homem, de criar o homem novo.
• A criação do homem novo exige que o homem antigo seja destruído.
O projeto é tão radical que não se conta mais, a partir de sua realização, a
singularidade das vidas humanas, leva-se em conta apenas o material. Um
pouco como, retirados de sua harmonia tonal ou figurativa, os sons e as formas
fossem, para os artistas da arte moderna, materiais cuja destinação se deve
reformular. Ou como os signos formais destituídos de toda idealização objetiva,
projetavam as matemáticas em direção a um acabamento mecanizado. O

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projeto do homem novo é, nesse sentido, um projeto de ruptura e de fundação
que sustenta, na ordem da história e do Estado, a mesma tonalidade subjetiva
que as rupturas científicas, artísticas, sexuais do início do século. É então
possível sustentar que o século foi fiel ao seu prólogo. 2
Seguindo esta análise de Badiou, podemos perceber que no próprio projeto moderno
estavam incluídas as causas de sua decadência e rejeição, pois a idéia de mudança no
homem, com sua conseqüente desumanização, inclui na noção de homem, a noção
de matéria e materialismo, cujas implicações já foram levantadas. Poderíamos, nesse
sentido, chamar o projeto moderno de projeto Frankenstein. Tendo em vista a criação
do homem novo evidenciada por Mary Shelley. O Frankenstein de Mary Shelley cria o
homem novo que o aterroriza e do qual ele foge. O horror do criador se manifesta pelo
fato de não saber o que fazer de sua criação. Nas palavras de Mary Shelley:
[...] Ninguém, a não ser os que já a experimentaram, pode imaginar a sedução
da ciência. Em outros tipos de estudos vai-se até onde os outros foram antes
de nós, e nada mais há para se conhecer; mas quando se trata da ciência o
terreno é inesgotável para as descobertas e maravilhas. [...]
Um dos fenômenos que havia atraído particularmente minha atenção era a
estrutura do corpo humano e, na verdade, de qualquer ser dotado de vida.
Muitas vezes eu me perguntava de onde provinha o princípio da vida. Era uma
questão ousada e que sempre foi considerada um mistério; no entanto, com
quantas coisas não nos poderíamos familiarizar se a covardia ou a displicência
não impedissem nossas pesquisas? [...] Após dias e dias de incríveis trabalhos
e fadigas, consegui descobrir a causa da criação e da vida; mais ainda, tornei-
me capaz de conferir vida à matéria morta.[...]
[...] Quando me vi com aquele poder tão espantoso em minhas mãos,
hesitei longo tempo quanto à maneira de empregá-lo. Embora eu possuísse
a capacidade para conferir a vida, preparar uma estrutura para recebê-la,
com toda a complexidade de nervos, músculos e vasos, ainda constituía uma
tarefa de inconcebível dificuldade e trabalho. No início, fiquei na dúvida se
devia criar um ser como eu, ou um mais simplesmente organizado; porém
a minha imaginação, demasiado exaltada pelo meu primeiro sucesso, não
permitia que eu duvidasse da minha capacidade de dar vida a um animal
tão complexo e maravilhoso quanto o homem. O material que eu tinha à
minha disposição naquela época mal me parecia adequado para uma tarefa
tão árdua. Preparei-me para uma série de reveses; era possível que minhas
experiências sofressem constantes frustrações, e por fim minha obra podia
2
BADIOU, A . Le siècle. Curso do ano universitário de 1999/2000 oferecido no Collège
Internationale de Philosophie em Paris.

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sair imperfeita, mas quando eu pensava no progresso que todos os dias se faz
nas ciências e na mecânica, eu me sentia encorajado a esperar que minhas
tentativas pelo menos lançassem os alicerces do sucesso futuro. Nem podia
eu admitir quaisquer argumentos sobre a impraticabilidade do meu plano
grandioso e complexo. Foi assim pensando que iniciei a criação de um ser
humano. A extrema pequenez das partes representava um grande obstáculo
a minha pressa e assim resolvi, contrariamente à minha primeira intenção,
fazer o ser de uma estatura gigantesca, isto é, com cerca de 2,40 metros de
altura, e proporcionalmente largo. Depois de ter tomado essa resolução e de
haver despendido em escolher e reunir meus materiais, comecei.
Ninguém pode conceber a variedade de sentimentos que me lançavam
para a frente, como um furacão, no primeiro entusiasmo do sucesso. A
vida e a morte se me apareciam como limites ideais que eu primeiro devia
transpor, para lançar uma torrente de luz em nosso mundo de trevas. Uma
nova espécie me abençoaria como seu criador e sua origem; muitas criaturas
felizes e excelentes passariam a dever sua existência a mim. Nenhum pai
podia reclamar a gratidão de um filho tão completamente quanto eu a
daquelas criaturas. Assim refletindo, achei que, se eu fosse capaz de animar
a matéria inerte, eu poderia no decorrer do tempo (embora agora o julgue
impossível) restituir a vida os corpos aos quais a morte, houvesse destinado à
decomposição. [...]
[...] Foi numa sombria noite de novembro que eu contemplei a realização de
minha obra. Com uma ansiedade que quase tocava as raias da agonia, tomei
dos instrumentos que estavam a minha volta, a fim de que eu pudesse infundir
uma centelha de vida na coisa inerte que jazia aos meus pés. Era já quase
uma hora da madrugada; a chuva batia tristemente nas janelas, e minha vela
estava quase consumida quando, ao lusco-fusco da luz bruxuleante prestes a
extinguir-se, vi abrir-se o baço olho amarelo da criatura. Ela respirava com
dificuldade, e um movimento convulsivo agitava seus membros.
Como posso descrever minhas emoções ante aquela catástrofe, como reescrever aquela
ruína que eu, com esforço infinito e zelo, havia tentado formar? 3

Para pensar...

Ao associarmos o horror do personagem Frankenstein diante de sua criação com


o horror das guerras que, na análise de Badiou, manifesta-se como conseqüência
do projeto moderno, podemos colocar em questão o valor do projeto moderno
enquanto tal?

3
SHELLEY, M. Frankenstein. Porto Alegre: L&PM, 1997. p.50-56.

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O projeto moderno foi ruim? E, sem ele, o que resta?
Segundo Badiou, a condenação do projeto moderno coincide com a possibilidade
técnica, em último sentido financeira, de mudar a especificidade do homem. Um tipo de
mudança que não corresponde a nenhum projeto. Não tendo mais o projeto Frankenstein,
nós podemos criar seres humanos a partir de clones. Isso acontece, segundo Badiou, no
automatismo das coisas.

Nós passamos da ordem do projeto àquela do automatismo do aproveitamento.


O projeto terá matado muito. O automatismo também, e ele continuará, mas
sem que ninguém possa nomear um responsável. Convenhamos, por razão,
que o século XX foi ocasião de vastos crimes. “Acrescentamos que não acabou,
pois aos criminosos nomeados sucedem os criminosos anônimos”. 4
O filósofo, Jorge Alemán, encaminha suas reflexões sobre o tema em questão, no mesmo
sentido de Alain Badiou. Para Alemán, “a imbricação do mercado capitalista com a
correspondente expulsão da subjetividade efetuada pela ciência, que finalmente conclui
na “Técnica”, realiza um movimento que não respeita nada nem ninguém”.5 Jorge
Alemán inclui, em suas considerações, a categoria do respeito. A falta de respeito é,
para ele, a falta da distância simbólica que implica o conceito psicanalítico de castração.
Para ele, os signos do movimento de desaparecimento do respeito são os procedimentos
de homogeneização; o desaparecimento da memória; o declínio da imagem paterna; o
aumento do racismo; a globalização. Em suas palavras:
Não há religião nem retorno à tradição alguma, nem nenhum projeto de
emancipação construído com os elementos típicos da modernidade que possa
voltar a reeditar e recompor a distância que se destruiu [...] Não tem nenhum

4
Id. Frankenstein. Porto Alegre:L&PM,1997.

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fundamento a restaurar ou a recuperar, nenhum pai que volte a instaurar e
impor as insígnias do respeito. 6
Pela falta dos elementos que possam recuperar a distância perdida, as saídas
contemporâneas são as generalizações dos princípios de regulação que possam
proporcionar algum consolo. Esses princípios de regulação tentam controlar os efeitos
da tecnociência mediante paliativos humanitário médico-religiosos. Na ordem do
pensamento contemporâneo, Alemán vaticina que, vai se tornando evidente um
movimento que configura e pode ser denominado como “giro religioso”. Esse movimento
tem, para esse autor, a marca da pós-modernidade definida, por ele, da seguinte forma:
Entende-se por pós-modernidade, uma dobra moderna, uma torção na modernidade
tardia, donde os relatos da modernidade já não podem transformar nem curar a
mesma, daquilo que tem desencadeado a Técnica.

O que é o “giro religioso” que marca a pós-modernidade?


Partindo de um documento elaborado pelo Vaticano, podemos acompanhar a
tematização do giro religioso na contemporaneidade proposta por Jorge Alemán e
situá-lo, em sua manifestação mais marcante, no movimento denominado “Nova
Era”. O texto elaborado pelo Vaticano7 aponta os elementos a partir dos quais se pode
reconhecer a “Nova Era”.

Características da “Nova Era”


• A Nova Era seduz por responder às necessidades para as quais as instituições
estabelecidas manifestaram-se incapazes.
• É uma busca da sacralização dos valores da cultura contemporânea.
• Desvalorização do patriarcado e celebração dos valores femininos.
• Valorização da espiritualidade e religiões antigas e orientais de maneira
descompromissada com as bases das mesmas.
• Valorização de experiências sobrenaturais e paranormais.
• Reconhecimento da autoridade espiritual de sua própria experiência interior.

5
ALEMAN LAVIGNE, J. & LARRIERA SANCHES, S. El inconsciente : existencia y diferencia
sexual. Síntesis : Madrid, s/d., p. 70.
6
Ibid. p . 72.
7
CONSEIL PONTIFICAL DE LA CULTURE e CONSEIL PONTIFICAL POUR LE DIALOGUE
INTERRELIGIEUX - JÉSUS-CHRIST LE PORTEUR D’EAU VIVE: Une réflexion chrétienne sur le
«Nouvel Âge». Texto capturado na Internet.

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• Sincretismo de elementos esotéricos e seculares.
• Rejeição da modernidade e dos valores da cultura ocidental.
• Primeiros símbolos da “Nova Era” são o festival de Woodstock em 1969 e o
musical Hair com a música emblemática – Aquarius.
• Tendo surgido de um movimento contra cultural nos anos 60 e 70, perdeu seu
caráter revolucionário e político.
• Rede fluida de adeptos cuja aproximação é pensar globalmente e agir
localmente.
• Oferece a chave das correspondências entre todos os elementos do universo
que permitem aos indivíduos modularem a tonalidade de suas vidas e de estarem
em perfeita harmonia com os outros seres humanos e com o cosmos.
• Nessa ótica, a doença e o sofrimento são a conseqüência de um comportamento
contra a natureza. A harmonia com a natureza elimina tais problemas.
• Existe uma grande variedade de terapias holísticas, das quais algumas se
inspiram de antigas tradições culturais, religiosas ou esotéricas, ou teorias
psicológicas desenvolvidas nos anos 1960-70. A Nova Era faz publicidade de
uma larga gama de práticas tais como a acupuntura, a homeopatia, a hipnose,
as massagens e diferentes tipos de técnicas corporais, a meditação e a vidência,
as terapias nutricionais, os tratamentos psíquicos, diferentes tipos de medicina
das plantas, a cura pelos cristais, os metais, a música ou as cores, as terapias de
reencarnação e enfim os programas e os grupos de realização de si. A proposta
é de encontrar a fonte da cura em nós mesmos, nos colocando em contato com
nossa energia interior ou cósmica.
• Procura da totalidade buscando ultrapassar toda forma de dualismo.
• A revolução científica moderna é criticada por sua tendência à fragmentação,
ao mecanicismo e ao materialismo.
• O holismo impregna todo o movimento da Nova Era com sua procura por
uma unidade, consciência ecológica e a idéia de uma rede global.
• A matriz essencial do pensamento Nova Era reside na tradição esotérico-
teosófica, uma tradição largamente difundida nos círculos intelectuais europeus
nos séculos XVIII e XIX. Nessa visão de mundo, os universos visíveis e
invisíveis são religados entre eles por uma série de correspondências, analogias
e influências, entre microcosmo e macrocosmo, entre os metais e os planetas,

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entre os planetas e as diferentes partes do corpo humano, entre o cosmos visível
e os reinos invisíveis da realidade.
• A alquimia, a magia, a astrologia e os outros ramos do esoterismo tradicional
são, na Nova Era, completados por elementos da cultura moderna, tais como
a procura das leis de causalidade, o evolucionismo, a psicologia e o estudo das
religiões.
• A Nova Era não é propriamente uma religião, mas podendo se interessar ao
chamado “divino” como uma associação informal e não através de uma estrutura
religiosa organizada. Os elementos que congregam esse interesse religioso são
manifestos nos seguintes pontos: o cosmos é um todo orgânico animado por uma
energia assimilada ao espírito ou alma; existe a crença na mediação espiritual;
na existência de uma consciência eterna anterior e superior a todas as religiões
e culturas.
• Os seres humanos participam da divindade cósmica a partir de níveis de
consciência diferentes e criam sua própria realidade. Cada indivíduo é uma fonte
criadora do universo. O reconhecimento da consciência universal sintoniza o
ser humano na unidade do cosmos.
• Na nova era, Deus não é nem transcendente, nem pessoal. Ele não é criador,
mas uma energia impessoal imanente ao mundo, com o qual ela forma uma
unidade cósmica: Tudo é Um. Esta unidade é monista e panteísta. Deus é o
princípio da vida, espírito ou alma do mundo, a soma total da consciência
existente no universo.
• Não há alteridade entre Deus e o Mundo. O Mundo, ele mesmo divino,
segue um processo evolutivo que vai da matéria inerte à consciência superior
e perfeita. O Mundo é eterno e auto-suficiente. O futuro do Mundo depende
de uma dinâmica interna que é necessariamente positiva, e que leva à unidade
divina de tudo o que existe. Deus e o Mundo, a alma e o corpo, a inteligência e
o sentimento, o céu e a terra formam uma só imensa vibração de energia.
• Tudo está religado no universo. Em si, cada parte é uma imagem da totalidade.
Na grande rede, todos os seres estão intimamente ligados, formam uma única
família com diversos graus de evolução. Cada homem é um holograma, uma
imagem da criação inteira, onde cada elemento vibra com a sua própria
freqüência.
• A Nova era partilha com um certo número de grupos influentes no plano
internacional o objetivo de suplantar as religiões particulares para dar lugar a

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uma religião universal capaz de unificar a humanidade. Nesta mesma perspectiva
caminham os esforços de algumas instituições para formular uma ética global,
um quadro ético que refletiria a natureza global da cultura, da economia e da
política contemporâneas.
Ao seguirmos as pontuações feitas pelo texto do Vaticano ao discurso vigente na
contemporaneidade, podemos perceber que, tal como afirmam Badiou e Alemán, a
contemporaneidade apresenta um discurso frouxo, ou melhor, sem nenhum projeto,
a partir do qual as soluções apontadas – entre elas, o giro religioso – apresentam-se
apenas como paliativos ilusórios e inócuos diante do horror. Sendo que a eficácia só se
manifesta do lado da técnica a serviço do poderio econômico em favor, como aponta o
texto do Vaticano, da Globalização. Alain Badiou, em seu livro sobre a ética, enuncia
que, na nossa contemporaneidade, a ética tornou-se nada mais que um discurso piedoso
que visa a fazer valer os “direitos do homem”. Em suas palavras:
Que pode então vir a ser esta categoria [discurso piedoso] se pretendemos
suprimir, ou mascarar, seu valor religioso, conservando o conjunto abstrato
de sua constituição aparente (“reconhecimento do outro”, etc.)? A resposta
é clara: escalda-gatos. Discurso piedoso sem piedade, suplemento de alma
para governos incapazes, sociologia cultural substituída, pelas necessidades
do sermão, incendiando a luta de classes. [...] Separada da pregação religiosa
que poderia lhe conferir ao menos a amplitude de uma identidade “revelada”,
a ideologia ética é apenas a última palavra do conquistador civilizado: “seja
como eu, e eu respeitarei a sua diferença”.8

O Giro-Religioso e a Nova Era ( Novo Aeon9)


• A tecnociência aliada ao capitalismo não deixou espaço para mais nada. Tudo é
regulado pelo capitalismo.
• O Giro Religioso é um simulacro da metafísica que busca recuperar o mito e
a religião, a fim de superar o domínio da técnica capitalista. Contudo, torna-se
apenas mais uma arma do sistema – o espiritual a serviço do capital.
• O Giro-Religioso busca um holismo – interação entre homens, Deus e
Natureza.

8
BADIOU, A. L’éthique: essai sur la conscience du mal. Paris : Hatier, 1993. p. 24 e25.

9
Aeon é uma palavra de origem grega, também traduzida como Aion ou Eon, que apresenta o
sentido de “era, duração indefinida”. Cf. As Aventuras de Raul Seixas na Nova Era Pós-Moderna.
Disponível em:<http://pensadores.blig.ig.com.br.htm>. Acesso em 20 de out.2003.

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O risco de um pensamento holista é favorecer uma passividade contemplativa
diante dos discursos fechados. O pensamento holista se funda num erro metafísico
já descoberto há milênios pela tradição filosófica ocidental. Ora, a unidade e a
totalidade jamais se coadunam, posto que toda realidade se baseia no fato de que
a unidade é sempre unidade de uma multiplicidade, e nunca de uma totalidade
– isto é, como o todo poderia ser um todo de si mesmo? Isto seria um uno, e não
um todo: isto não seria nada. A unidade, isto que compõe a realidade, é originada
pela diferença entre os seres, pela multiplicidade das existências, e não pela sua
totalidade. Ou seja, é pela multiplicidade que os diferentes seres se relacionem, e
não é por uma totalidade cósmica que os unifique.
• A Nova Era transvalora o sagrado, que se torna humano.
• Com a morte de Deus, que era o fundamento do real, o homem perde seu
referencial. Tudo perde o sentido.
• Raul Seixas anuncia o Novo Aeon em sua música homônima:

Novo Aeon
(Raul Seixas/Cláudio Roberto/Marcelo Motta)
O sol da noite agora está nascendo Já que é assim, baseado em que você pune
Alguma coisa está acontecendo Quem não é você?
Não dá no rádio nem está Ao som da flauta da mãe serpente
Nas bancas de jornais No para-inferno de Adão na gente
Em cada dia ou em qualquer lugar Dança o bebê
Um larga a fábrica, outro sai do lar Uma dança bem diferente
E até as mulheres dita escravas Querer o meu não é roubar o seu
Já não querem servir mais Pois o que eu quero é só função de eu
Ao som da flauta da mãe serpente Sociedade Alternativa
No para-inferno de Adão na gente Sociedade Novo Aeon
Dança o bebê É um sapato em cada pé
Uma dança bem diferente Direito de ser ateu ou de ter fé
O vento voa e varre as velhas ruas Ter prato entupido de comida que ce mais gosta
Capim silvestre racha as pedras nuas É ser carregado ou carregar gente nas costas
Encobre asfaltos que guardavam Direito de ter riso, de prazer
Histórias terríveis E até direito de deixar, Jesus sofrer
Já não há mais culpado nem inocente
Cada pessoa ou coisa é diferente

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Desencantamento
Segundo Hilton Japiassu, em seu livro, “A crise da Razão e do saber objetivo: as ondas
do irracional”, a ciência moderna surge como forma de desencantamento do mundo,
através do reducionismo das leis mecanicistas, entretanto permanece algo oculto, sem
explicação racional. Para este autor, podemos perceber que os filósofos do século XVIII
convertem a razão numa espécie de divindade capaz de apreender o universo e de
subordiná-lo às necessidades humanas.
O erro do Ocidente foi o de hipostasiar a razão a fim de apropriar-se dela, como se não
fosse relação e regulação da relação com o outro: Não possui o universal por privilégio
insigne.
Por que alguns cientistas contemporâneos escolhem o caminho da mística para
suas considerações sobre a ciência?
Para acompanharmos esse questionamento vamos seguir as considerações de Hilton
Japiassu, ainda em seu livro, “A crise da Razão e do saber objetivo: as ondas do
irracional”, que pergunta: por que o tarô, a vidência, a astrologia, a cristalografia, a
piramidologia são consideradas ou rotuladas de irracionais? Respondendo que é pelo
fato de não se conformarem aos modelos ou critérios da cientificidade, principalmente
da racionalidade e da objetividade.
O atual movimento de irracionalismo e misticismo é composto por pessoas cada vez
mais “inseguras” e sem “referenciais” quanto ao futuro.
Esse movimento se opõe à atitude reducionista que explica tudo na natureza a partir
de cadeias causais de fenômenos físicos. O reducionismo ao extremo pode conduzir a
um monismo materialista. A prática do reducionismo nas pesquisas científicas, ao se
converter em uma metafísica materialista ingênua, será tão mistificadora quanto as
crenças espiritualistas.
Segundo Japiassu, por que tantos cientistas, até ontem “racionalistas” convictos,
convertem-se hoje em ardorosos defensores das “ciências ocultas”, paralelas ou
alternativas, conquistando uma audiência cada vez mais expressiva e fazendo
adeptos nos meios intelectuais?
Em épocas de crise há sempre um público ávido de respostas para seus problemas
angustiantes.
Freqüentemente, tais explicações ou respostas usam a vulgarização científica.
O ponto comum entre a ciência e o misticismo é o questionamento que se refere
“à origem de”, pois mexe com as inquietações metafísicas humanas e as angústias
existenciais, principalmente nesses momentos de crise onde faltam referências, tudo

Filosofia, Psicanálise, Medicina - 15 -


está disperso e tenta-se fazer um todo.
A contra-cultura dos anos 60 do século passado pode ser interpretada como um
renascimento do romantismo e com ele o ressurgimento de diversas formas de ocultismo
e de misticismo.
Novo Monismo Totalizante
1. Há uma unidade do mundo: “União Cósmica”
2. Há uma unidade do homem em relação a si mesmo
3. Há uma unidade das culturas

Figura: Nossa
Senhora da Penha
- Attilio Colnago
- 1999.

A preferência atualmente pelo misticismo e pelo esoterismo orientais ocorre por serem
religiões e tradições estrangeiras ao Ocidente e distanciadas de nossa cultura. Assim
exercem menos coerções e exigem muito menos compromissos pessoais e comunitários.
Aparentemente, há uma enorme liberdade, cada indivíduo se sente completamente à
vontade para agir do modo como bem entender.
O pós-moderno se manifesta no plano das atitudes vitais, das experiências de vida
caracterizadas como resistências de distanciamento do projeto de desenvolvimento
tecnocientífico, cultural-artístico, e político-econômico proposto pela modernidade
racionalizadora, burocratizante, administradora, produtivista e consumista.

Filosofia, Psicanálise, Medicina - 16 -


Características do pensamento pós-moderno

Não acredita mais numa Razão fundadora;


Não acredita mais nos grandes relatos;
Não acredita mais no projeto da modernidade e de seu modo de vida
desenvolvimentista, competitivista e funcionalista;
Busca de uma Nova Aliança entre o racional e o irracional.

O pensamento pós-moderno corre o risco de defender um “ingênuo pluralismo


neoliberal”, efetivando a aliança entre a técnica e o capital.

Duas novas questões, nos traz Hilton Japiassu:


Essas novas formas “psicoterapêuticas”, “científicas” ou paracientíficas, semi-oficiais
ou esotéricas, “materialistas” ou “religiosas” são realmente eficazes para transformar
suas vidas e provocar nelas a “revolução interior”?

Ou será que não lhes fornecem apenas algumas “receitas” ou “macetes” meio
científico, meio filosófico para que possam “viver” melhor, se “sentir” bem consigo
mesmos, se suportarem um pouco melhor, chegarem ao tal “autoconhecimento”,
num mundo ou numa sociedade mais ou menos insuportáveis, mas nos quais se vêem
obrigados ou condenados a se inserirem e a viver?

A filosofia individualista do “cada um” tem levado cada indivíduo, no mundo “pós-
moderno” a “dar-se uma religião” ou a “fabricar sua própria religiosidade”. O estudo
é substituído pelos testemunhos ou depoimentos de experiências. Em sociedades
tecnologicamente atrasadas, esse culturalismo suscita o “fundamentalismo” religioso.
Nas sociedades pós-modernas, ele se dissolve no “consumismo”. Constata-se que o
progresso do individualismo é proporcional ao crescimento do conformismo.

Para pensar...
Por que a reação pós-moderna aos efeitos nefastos da técnica se mostra crivada
de ilusões que só encobrem os avanços ainda mais nefastos da própria técnica em
comunhão com o capital?

Filosofia, Psicanálise, Medicina - 17 -


A sabedoria dos modernos
Partindo desse questionamento, retomamos a oposição de pensamentos entre dois
filósofos contemporâneos que mantêm um diálogo aberto diante do momento em que
vivemos na nossa atualidade. De um lado, André Comte-Sponville apresenta-se como
materialista e, do outro, Luc Ferry apresenta-se como humanista.10

Materialismo Humanismo

Para o materialista a sabedoria começa por Para o humanista, mesmo de um ponto de


uma crítica das ilusões da transcendência. vista laico e agnóstico, a transcendência
continua a ser o problema principal da
humanidade.

Luc Ferry explora a idéia de transcendência a partir do termo “Sagrado”. Partindo dessa
idéia, ele a define “como aquilo pelo qual, se necessário, poderíamos sacrificar as nossas
vidas”. Assim, no seu entender, é na hipótese do risco de morte que experimentamos
valores que nos parecem, superiores à nossa existência – transcendentes.
O humanista propõe que:
A indignação nos leva a sacralizar;
É sagrado, o que se pode profanar;
Sagrado é o limite que não se pode ultrapassar sem entrar na esfera do mal.
Alain Badiou, em seu livro sobre “A Ética”, aponta que, em nossa contemporaneidade,
depois da decadência do marxismo revolucionário e das figuras de engajamento
progressista, há um retorno à velha doutrina dos direitos humanos. Para Badiou, quando
os defensores da ideologia ética contemporânea proclamam o retorno ao homem e aos
seus direitos, eles estão debochando do mundo. A ética dos direitos humanos subordina
a identificação do sujeito ao reconhecimento universal do mal que lhe é feito, definindo
o homem como vítima. A barbárie sendo refletida apenas em termos de “direitos
humanos” denega que:
Trata-se sempre de uma situação política, apelando para um pensamento
prático-político, e da qual existe na situação, sempre, atores autênticos −,
ela é percebida, do alto de nossa paz civil aparente, como o incivilizado que
exige do civilizado um intervenção civilizadora. Ora, toda intervenção em
nome da civilização exige um desprezo primeiro da situação inteira, vítimas
compreendidas.11
10
COMTE-SPONVILLE, A & FERRY, L. Sabedoria dos Modernos. São Paulo: Martins Fontes,
1999.
11
BADIOU, A. L’éthique: essai sur la conscience du mal. Paris : Hatier, 1993. p. 14-15.

Filosofia, Psicanálise, Medicina - 18 -


O Materialista crê no real que não vale nada
Para o materialista, André Comte-Sponville, a relação com o sagrado não passa de
uma ilusão. Segundo o materialista, a vida do espírito é produzida e determinada pela
matéria. As verdades não são absolutas, são relativas aos fatos materiais. Ser materialista
é pensar que não existe mundo inteligível, nem Deus transcendente, nem alma imortal.
O materialismo é um ateísmo até as suas últimas conseqüências. Ser materialista é
pensar sob o horizonte da morte, é pensar que toda vida é um efeito da matéria não
viva. Para o materialista não tem nenhum princípio absoluto de valores.

Humanismo Materialismo
• Os avanços do humanismo impõem • O materialista questiona a
a tarefa filosófica de reapropriação da divinização do humano;
verdade do discurso religioso; • O que a religião disse de mais forte é
• A transcendência é uma realidade que o homem não é Deus;
cuja origem nos escapa, o que • Esse humanismo tem todos os
legitima a falar em “mistério”; defeitos da religião sem ter sua
• O sagrado aparece no homem riqueza.
independente da sua vontade.

O que se pode dizer ainda sobre o humano?


Em sua “Carta sobre o Humanismo”,12 Heidegger anuncia que o ponto central do
humanismo situa-se na ação de cuidar para que o homem não seja des-humano, situado
fora de sua essência. Este alerta esclarece-se tendo em vista as questões que foram
levantadas até este momento, incluindo dentre elas o próprio humanismo do “homem-
Deus” difundido na nossa contemporaneidade. Heidegger vai ao cerne da questão e
pergunta:

Em que consiste a humanidade do homem?


Segundo ele, todo humanismo se funda em uma espécie de metafísica. No entanto,
historicamente, a metafísica pensa o homem a partir de sua animalidade e não de sua
humanidade. Para Heidegger, a metafísica fecha-se à noção essencial de que o homem
somente desdobra o seu ser na sua essência enquanto recebe o apelo do ser. No seu
entender, aquilo que o homem é, a sua essência reside na sua ex-sistência (em alemão:
Dasein). O Dasein é o lugar (Da) de acontecimento do ser (sein), isto é, o homem é o
único ente que compreende o sentido do ser.
12
HIDEGGER, M. Carta sobre o humanismo. Lisboa: Guimarães, 1985.

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A frase: “o homem ex-siste”, não responde à pergunta se o homem é real ou não,
mas responde à questão da “essência” do homem.
Para Heidegger, só podemos atingir a dimensão da verdade do ser quando compreendemos
o homem a partir de sua ex-sistência para podermos, então, perceber como o ser
requisita o homem. É o esquecimento do ser que aponta para a decadência do homem.
O materialismo e a metafísica anunciam isso.
A essência do materialismo não consiste na afirmação de que tudo é matéria.[...] A
essência do materialismo esconde-se na essência da técnica; sobre esta não há dúvida,
muito se escreve, mas pouco se pensa. A técnica é, em sua essência, um destino
ontológico-historial da verdade do ser, que reside no esquecimento. 13
Assim, se quisermos manter o humanismo, devemos inseri-lo na própria verdade
do ser.
“Humanismo” significa, agora, caso nos decidamos a manter a palavra: a essência
do homem é essencial para a verdade do ser, mas de tal modo que, precisamente
em conseqüência disso, não importa o homem simplesmente como tal.

“Deus está morto!” F. Nietzsche


Fernando Pessoa*

13
Ibid. p . 67.
*
Professor do Departamento de Filosofia da Universidade Federal do Espírito Santo.

Filosofia, Psicanálise, Medicina - 20 -


Nietzsche caracteriza o niilismo moderno com a frase: “Deus está morto”. Esta
caracterização, antes de ser uma mera afirmação atéia, indica a perda do princípio
transcendente de organização da realidade como conseqüência da interpretação
histórica do valor da existência. O niilismo nasce da descrença nos valores supremos
que, como um nada (nihil), se estende velando o sentido da existência do homem
ocidental. Tal processo ocorre com o desgaste e conseqüente falência dos valores de
verdade, do bem e do belo que sempre nortearam a interpretação da realidade a partir do
paradigma do supra-sensível. A morte de Deus indica a perda da credibilidade no supra-
sensível como sendo o fundamento de organização do real e, com isso, a ausência de um
princípio transcendente norteador da ação (praxis) humana. Diante desta ausência de
Deus, o homem se coloca no lugar de Deus, fundando em sua própria consciência toda
a possibilidade do real. Pensamento herdado de Dostoiévski, a morte de Deus constitui
para Nietzsche o fundamento do niilismo moderno.
Na obra Os demônios, Fiódor M. Dostoiévski constrói o indivíduo moderno universal no
personagem Kirílov:

Concebendo a vida como sofrimento e terror diante da morte, Kirílov diz que o novo
homem é aquele que, tendo vencido o sofrimento e o terror e alcançado a indiferença de
viver ou não, torna-se ele mesmo Deus por fazer de sua própria vontade o princípio da
sua ação: “Se Deus existe, tudo é Sua vontade e fora de Sua vontade nada posso. Se ele

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não existe, tudo é minha vontade e sou obrigado a manifestar minha própria vontade”.
Kirílov se suicida para provar que toda realidade se funda na própria vontade daquele
que venceu o sofrimento e o terror diante da morte. O suicídio lógico de Kirílov é a
demonstração objetiva de que Deus morreu e que toda a realidade se funda na vontade
consciente do eu penso.14
Vencer o sofrimento e o terror significa abolir o princípio transcendente que mensura a
praxis, para tornar a vontade humana, o eu da sua consciência, o fundamento absoluto
de toda ação e, conseqüentemente, de toda realidade. Neste movimento, o homem
nega a força de sua tradição cultural para afirmar-se soberano e universal; a liberdade
torna-se livre arbítrio.
Abolir o princípio transcendente que mensura a praxis significa perder os valores
da tradição que conferem a identidade de cada cultura. Deste modo o homem,
desenraizando-se de sua tradição, é projetado na universalidade moderna sem um
princípio ético que normatize a sua praxis. Fundado apenas no eu de sua consciência,
diante da dialética do desejo e da dominação, da sua volúpia de sede do mar, o homem
desertifica o mundo tornando-o uma única aldeia global, império ideológico da praxis
absoluta. Deste modo o Ocidente moderno se universaliza sem um sentido ético que
organize a sua existência. A falta de sentido à praxis acaba por desviá-la de suas próprias
necessidades numa vontade hipertrofiada que, paradoxalmente, acaba não querendo
nada, característica do niilismo ético.
Oscilando entre a euforia e o tédio do desenvolvimento, o homem moderno
ampliou de tal forma o horizonte de sua liberdade que agora se encontra
perdido na vastidão do nada. Lima Vaz interpreta esta situação como o uso
ilimitado da liberdade que todavia desconhece as razões de ser livre. Este
modo de ser se funda na disjunção entre ética e civilização no Ocidente
moderno e caracteriza a nossa época como uma civilização sem ética: “Nossa
civilização, no seu desígnio e no seu efetivo operar universalizante, permanece
uma civilização sem ética”.15

14
Ver artigo do Prof. Gilvan Fogel, Dostoievski: voluntarismo = niilismo, publicado na Revista Sofia n.
0, do Departamento de Filosofia da UFES.
15
DE LIMA VAZ, H. C. Ética e Civilização. In: Síntese Nova Fase n. 49, abril-junho de 1990, p. 13.

Filosofia, Psicanálise, Medicina - 22 -


LEITURAS RECOMENDADAS

ALEMAN, J. Jacques Lacan e o debate pós-moderno. Buenos Aires: Ediciones Del


Seminario, 2000.
COMTE-SPONVILLE, A & FERRY, L. Sabedoria dos Modernos. São Paulo: Martins
Fontes, 1999.
DELACAMPAGNE, C. História da Filosofia no séc. XX. Rio de Janeiro: Zahar,
1997.
DUSSEL, E. 1492: O encobrimento do Outro (a origem do mito da modernidade).
Trad. Jaime A. Clasen. Petrópolis: Vozes, 1993.
HEIDEGGER, M. Carta sobre o Humanismo. Lisboa: Guimarães, 1985.
______________. Ensaios e Conferências. Petrópolis: Vozes, 2002.
______________. La Frase de Nietzsche: “Dios ha muerto”.Trad. Helena Cortés y
Arturo Leyte. In: Caminos De Bosque. Madri: Edaf, 1996.
______________. Ser e Tempo. Trad. Márcia S. Cavalcante. Petrópolis: Vozes, 2002.
HUXLEY, A. Admirável Mundo Novo. São Paulo: Globo, 2003.
JAPIASSU, H. F. A crise da razão e do saber objetivo. São Paulo: Letras & Letras,
1996.
JUNG, C. G. Aion: estudos sobre o simbolismo do si-mesmo. Petrópolis: Vozes,
1998.
NIETZSCHE, F. A Gaia Ciência. Trad. Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia
das Letras, 2001.
_____________. La Voluntad de Poder. Trad. Aníbal Froufe. Madri: Edaf, 2000.
PASSOS, S. Raul Seixas por ele mesmo. São Paulo: Martin Claret, 2003.
SEIXAS, R; NOVA, M. A Panela do Diabo. Coordenação geral: Liminha. São Paulo:
Warner Music, sem data.
SEIXAS, R. Krig-ha Bandolo. Coordenação geral: Roberto Menescal. São Paulo:
Philips, 1973.
_________. Novo Aeon. Coordenção geral: Mazola. São Paulo: Philips, 1975.
SHELLEY, M. Frankenstein. Porto Alegre: L&PM, 1997.

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SITES RECOMENDADOS E DISPONÍVEIS EM:

<http://www.clerus.org> acessado em: FEV/2005


<http://www.vatican.va/roman_curia/pontifical_councils/interelg/documents/rc_pc_
interelg_doc_20030203_press-conf-new-age_po.html> acessado em: MAR/2005
<http://www.heidegger.org> acessado em: FEV/2005
<http://pensadores.blig.ig.com.br> acessado em: FEV/2005
<http://personales.ciudad.com.ar/M_Heidegger/index.htm> acessado em: FEV/2005
www.pucsp.br/~filopuc/verbete/heidegge.htm> acessado em: MAR/2005
<http://educaterra.terra.com.br/voltaire/cultura/heidegger.htm> acessado em: MAR/
2005
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<http://www.nietzscheana.com.ar> acessado em: FEV/2005
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<http://www.culturabrasil.org/nietzsche.htm> acessado em: MAR/2005
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<http://www.cacp.org.br/> acessado em: MAR/2005
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<http://www.novaera.org/> acessado em: MAR/2005
<http://www.livrarianovaera.com.br/> acessado em: MAR/2005
<http://www.redenergia.com.br/Planck/Holismo.htm> acessado em: MAR/2005
<http://www.holoalternativo.com/Holismo.html> acessado em: MAR/2005

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AVALIAÇÃO

Como os discursos na contemporaneidade abrem espaços para que possamos


falar em humanização?

Filosofia, Psicanálise, Medicina - 25 -

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