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Niterói, março de 2022
Por mais que tentem nos convencer que existe educadores, mães, pais, familiares e a sociedade
diferença entre os cérebros de meninas e de como um todo a reprodução e o reforço desses
meninos, a verdade é que não existe nenhuma estereótipos. Quais as mensagens que estamos
comprovação biológica (ou científica, de qualquer passando para nossas crianças com nossas ações
maneira) que justifique a desigualdade social entre cotidianas? Quais são as expectativas que colo-
homens e mulheres. Então porque será que, em camos sobre elas? Todas essas questões foram
pleno século XXI, ainda vemos certos compor- debatidas nos nossos encontros e precisam estar
tamentos sociais sendo mais reproduzidos por constantemente no nosso radar.
meninas e outros mais reproduzidos por meninos?
Em uma das instituições, ouvimos que, nos
E, ainda, por que reproduzimos, enquanto educa-
últimos anos, tem se notado nas meninas uma
doras e educadores, esses padrões em nossas
postura mais combativa de injustiças. Uma das
salas de aula e espaços de trabalho?
professoras disse que: As meninas estão ganhan-
Começamos nossos encontros debatendo quais do espaço, estão se posicionando mais, elas não
diferenças podemos perceber entre os compor- deixam que diminuam elas, elas se colocam. E
tamentos de meninas e meninos. Falamos sobre que, quanto à autonomia sexual, as meninas não
a escolha das brincadeiras e dos esportes, sobre têm mais vergonha de dizer que estão sexualmen-
as diferenças no uso dos uniformes, sobre as di- te ativas, a preocupação da família hoje em dia
ferenças no material escolar e o cuidado ou não precisa ser mais em relação a como está sendo
com eles, sobre o uso da internet, etc. Muitos o ato, se elas têm se cuidado, etc.
exemplos citados pelas professoras e professo-
Ao ouvir essa constatação, também presente na
res são totalmente observáveis fora da escola e
fala de outras professoras e professores, acredi-
em outros círculos sociais – nas famílias, nas
tamos que a ampliação do discurso feminista nas
igrejas, nas pracinhas, etc. São tão comuns a
mídias e nas redes sociais tem colaborado para
todas e todos que nós acabamos usando certos
essa consciência. Por outro lado, ainda pensando
comportamentos para rotular meninas e meni-
na forma com que as meninas e adolescentes têm
nos como se essas fossem características que
se expressado no mundo, durante nossas oficinas,
já nascessem com eles.
uma das frases mais repetidas pelas professoras
Quantas vezes ouvimos e repetimos coisas e professores foi que as meninas são muito mais
como “ah, mas ela só gosta de brincar de boneca; sexualizadas que os meninos da mesma idade.
é dela mesmo”, ou, “quando meu filho pega o
Essa informação não nos impressionou; ao
ursinho de pelúcia da irmã, o pai brinca pergun-
contrário, ajudou a fortalecer o nosso argumento
tando se ele é gay”, ou ainda, “minha filha não
de que ainda que o discurso das mídias queira nos
pode usar saia porque não sabe ‘sentar direito’”,
fazer crer que muita coisa mudou na formação de
e outras frases que acabam tratando como se
meninas e meninos, e que “meninas podem estar
fosse verdade as histórias que ouvimos desde os
onde quiserem” e que “lugar de mulher é onde ela
tempos de nossas avós sobre como crianças e
quiser”, o que vemos, na prática, são meninas e
adultos devem se comportar. Histórias que nós,
mulheres “ocupando” as redes sociais e os palcos
que estamos comprometidas e comprometidos
de atrações musicais com atitudes que tem origem
com uma educação mais livre e uma sociedade
no fenômeno da adultização, da hipersexualização
mais justa, devemos evitar e desconstruir.
e da objetificação delas mesmas.
Sobre esses mitos que tentam padronizar o
Ainda sobre o uso das redes sociais pelas
comportamento de meninas e meninos, pensamos
crianças, adolescentes e jovens, os educadores
ser nossa responsabilidade, como educadoras e
perceberam que, na busca por conseguir likes e
obter seguidores, eles fazem o que podem, repro-
duzindo os padrões necessários para isso, e, ainda
que algumas adolescentes se sintam constran-
MAS, E A
DIFERENÇA FÍSICA?
gidas, são cobradas pela “audiência” a “mostrar
mais”. Na internet os meninos têm vergonha de
dizer que se preocupam com beleza, eles estão
mais preocupados em serem legais, divertidos, em
mostrar que estão em movimento, jogando bola,
sendo criativos, criando música. Já as meninas
se preocupam mais com autocuidado, tem uma
grande preocupação estética, precisam ser e estar
sempre bonitas e, de preferência, sensualizando
Mesmo que possam existir características físi-
- nos disse uma professora.
cas observáveis diferentes em meninas, meninos,
Levando esses relatos em consideração, pen- mulheres e homens, como, muitas vezes, força,
samos: o que estamos fazendo de diferente na elasticidade, grossura dos pelos, altura, peso,
criação de meninas e meninos que faz com que a etc., nada disso seria determinante para colocar
preocupação de crianças e jovens do sexo femini- homens como superiores e mulheres como um
no ainda seja a aparência e a busca por aprovação grupo secundarizado. O que é mais determinante,
masculina? Uma das frases que lemos e deba- pelo que pudemos observar, discutir e concluir, é
temos juntas durante as oficinas foi a seguinte: que educamos as nossas crianças de duas formas
diferentes, e que essas diferenças as hierarquizam.
Os estereótipos de gênero são tão profun-
Meninas são criadas para conseguirem bons ma-
damente incutidos em nós que é comum os
ridos e serem mães; e meninos para explorarem,
seguirmos mesmo quando vão contra nossos
perseguirem seus sonhos, e conseguirem esposas
verdadeiros desejos, nossas necessidades, nossa
que possam cuidar deles e de seus filhos.
felicidade. É muito difícil desaprendê-los, e por isso
é importante cuidar para que Chizalum [menina Na Cartilha por uma educação Não-Sexista
sobre quem ela escreve a carta] rejeite esses es- (2009), a Casa da Mulher Trabalhadora (Camtra)
tereótipos desde o começo. Em vez de deixá-la aponta que esses valores são absorvidos tão cedo
internalizar essas ideias, ensine-lhe autonomia. por meninas e meninos que, ao chegar na escola,
Diga-lhe que é importante fazer por si mesma e se eles já demonstram o que foram ensinados nos
virar sozinha (Chimamanda Ngozi Adichie - “Para seus pensamentos e comportamentos. Apesar
educar crianças feministas”, 2017). dessa publicação já ter mais de 10 anos, a situa-
ção que encontramos nos relatos das professoras
A partir daí, foi possível discutir (1) o que são
e professores não foi diferente.
“estereótipos de gênero”, e como eles são im-
postos a meninas e meninos, ao longo da socia- Desde os menores, os pequenininhos, com
lização; (2) o que é autonomia; (3) o que poderia dois ou três anos, já chegam aqui cheios de cer-
ser feito para criar meninas que “se virem por si tezas sobre como meninas e meninos devem se
mesmas”, e não vivam à espera de um “príncipe comportar e, muitas vezes, quando questionamos,
encantado”. Esses pontos foram importantes para depois precisamos lidar com os responsáveis, que
percebermos que não existe uma desigualdade vêm aqui nos cobrar, perguntando o que é isso
que nasce nos corpos de mulheres e homens; e que estamos ensinando pros filhos deles – nos
também que nós continuamos ensinando meni- conta uma das professoras que esteve em nossa
nas a cumprirem papéis sociais que favoreçam à formação e que lida com crianças de 0 a 6 anos.
superioridade de homens sobre mulheres.
Em outras instituições e em outros relatos
essa mesma preocupação aparece, a de serem
cobradas e cobrados por responsáveis que de-
sejam fazer a manutenção desses estereótipos,
muitas vezes pensando em outros espaços de
Desde os menores, convivência das crianças, como família e igreja,
com dois ou três por exemplo. Percebemos que, em geral, a ideia
anos, já chegam aqui fixa de que suas filhas ou filhos serão julgados
cheios de certezas e maltratados se não cumprirem os papéis se-
sobre como meninas xuais esperados pela sociedade é orientadora
e meninos devem da educação de muitos responsáveis. E eles têm
razão. Sabemos que a sociedade cobra, e muito,
se comportar
que esses padrões se repitam, mas acreditamos
NOSSA
também que, como educadores, temos o dever
de ser a “pulga atrás da orelha” das crianças e
jovens, aquela “voz amiga” no fundo da cabeça
METODOLOGIA
que diz “eu te escuto, eu te acolho e eu confio em
você”. Às vezes, achamos que fazemos as coisas
e dizemos as coisas no vazio, mas as pessoas
estão escutando e, lá na frente, o que fizemos vai
fazer sentido e vai fazer diferença – disse uma
das educadoras. Precisamos acreditar nisso.
A educação como prática da liberdade não tem • Questionar atitudes interpretadas como ma-
a ver somente com um conhecimento libertador, chistas, racistas ou preconceituosas;
mas também com uma prática libertadora na sala • Se comprometer a abandonar antigos hábitos;
de aula. Nessa frase de bell hooks fica explícita a • Incentivar meninas na prática de esportes
importância de transformar o conhecimento em e outras atividades desafiadoras ligadas ao
prática. Sabemos que nada disso é simples, que movimento do corpo e à autonomia corporal;
o caminho de olhar para si mesmo e questionar
• Observar-se a si mesmos com o intuito de não
as próprias práticas é árduo e cansativo, e que
reproduzir práticas opressoras e ensinar com
não existe uma forma apenas de pensar e agir
base no exemplo.
no mundo. Isto posto, acreditamos no exercício
de pensarmos em práticas que não reproduzam Também no mês de março, pedimos a algu-
violência, e trabalhamos com a realidade colocada mas mães que nos dissessem como fazem para
ali, a partir da perspectiva antissexista, antirra- lidar com os estereótipos sexuais impostos pela
cista e anti classista, levando em consideração sociedade e, percebendo que esse é um desafio
a vivência e o cotidiano de cada unidade escolar, contínuo, sem receita pronta, e de constante trans-
com suas diferenças e particularidades. formação, elas nos ajudaram a pensar em alguns
pontos orientadores, que podemos somar com o
Para esse exercício de transformação do am-
resultado das dinâmicas nas escolas. É também
biente de trabalho, realizamos como atividade
sobre isso o livro Para educar crianças feministas,
final das oficinas pedagógicas, como pode ser
de Chimamanda Ngozi. Ali, ela traz contribuições
observado no roteiro apresentado acima, uma
práticas, a fim de sistematizar ideias para uma
chuva de ideias, onde todos os profissionais foram
amiga que pediu seus conselhos, sobre como,
convidados a pensar em ações práticas para con-
em um mundo sexista, educar uma criança pelo
cretizar as reflexões e os debates. As sugestões
horizonte da liberdade é quase uma tarefa utópica,
que obtinham consenso entre as educadoras e
ou, nas palavras dela, uma tarefa imensa.
educadores foram coladas em um mural para que
possam ser relembradas e praticadas no dia a Agora eu também sou mãe de uma menininha
dia das escolas e projetos sociais. Algumas das encantadora e percebo como é fácil dar con-
ações escolhidas foram: selhos para os outros criarem seus filhos, sem
enfrentar na pele essa realidade tremendamente
• Tentar ao máximo unificar os uniformes;
complexa. Ainda assim, penso que é moralmente
• Trazer mulheres protagonistas nas artes, ciên- urgente termos conversas honestas sobre outras
cias, tecnologias, assim como trazer homens maneiras de criar nossos filhos, na tentativa de
que optaram por áreas de cuidado e educação; preparar um mundo mais justo para mulheres e
• Não propor “meninos contra meninas” na edu- homens. Minha amiga respondeu dizendo que iria
cação física, nem nas atividades dentro de sala; “tentar” seguir minhas sugestões. E, ao relê-las
• Não fazer filas separadas por sexo (pensar agora como mãe, eu também estou decidida a
em outras formas de separar – por idade, por tentar – ela diz.
altura, por ordem alfabética, etc.);
Nós também nos encontramos em uma utópica
• Abrir diálogo em relação à educação sexual no e imensa tentativa, mas, ficar paradas e parados
cotidiano da escola; não é uma possibilidade, num mundo onde as sub-
• Criar um espaço de escuta ativa, ao final das jetividades das crianças são moldadas por regras
aulas, para acolher demandas e conhecer limitadoras de suas potências e criatividades. A
melhor as alunas e os alunos; psicóloga Nay Macêdo, mãe de Marina e Melina,
• Oferecer brinquedos diferentes para as crian- ao compartilhar seu relato conosco lembra que é
ças, na tentativa de romper com estereótipos; praticamente impossível isentar crianças desses
estereótipos sexuais e é nessa perspectiva que crianças, além de tudo, não são as inventoras dos
compartilhamos esses relatos e essas experiên- estereótipos e que, por isso, é importante observar
cias que transcrevemos aqui. em nós esses padrões. Se queremos as mulheres
livres, capazes de construir seu próprio caminho,
Para lembrar sua filha de que ela pode e deve
precisamos nos enxergar desse jeito, como pes-
fazer escolhas, e que pode e deve praticar ativi-
soas capazes de agir no sentido da nossa própria
dades físicas e explorar a natureza, a técnica de
emancipação, bem como é necessário enxergar
enfermagem Tatiana Bernardo leva sua filha de 8
nos homens (e meninos) a capacidade de mudar
anos para acampar e conhecer espaços abertos,
e lutar contra o patriarcado.
respirar ar puro e ficar em paz – nas palavras
dela. Acreditamos que se movimentar em contato Ainda sobre a contribuição da psicóloga Nay
com outros seres vivos em ambiente externo, no Macêdo, é importante lembrarmos durante a árdua
meio do mato, auxilia meninas a conquistarem tarefa que é educar crianças, que quando julga-
coragem e consciência corporal, tão importantes mos a educação que uma mãe dá para suas filhas
para o desenvolvimento da autonomia. e filhos, reforçamos a existência de um instinto
materno e de uma forma certa e única de educar.
Brisa Kamulenge, uma cientista social e mãe de
um jovem de 17 anos e de uma menina de 6 anos, Como educadoras e educadores, também po-
diz que se arrepende de ter furado as orelhas da demos aprender com essa colocação. Educar é
filha dela e que hoje tenta oferecer possibilidades um trabalho enorme e não valorizado na socie-
para ela, apesar de, em muitos aspectos a menina dade em que vivemos. Com respeito, dignidade,
já se identificar com o universo da feminilidade. escuta e oportunidade podemos apresentar para
Entendemos que educar para a não-submissão é nossas crianças outros caminhos possíveis de
uma tarefa constante e que precisamos estar lá, serem seguidos. Precisamos nos conectar ver-
como suporte e sempre atentas, no momento em dadeiramente com nossas crianças, e quebrar o
que essas crianças estiverem dispostas a ques- mito de que existe apenas uma forma de educar,
tionar o papel que é esperado delas pelo mundo. reforçando padrões antigos e hábitos violentos.
Educação é uma descoberta cotidiana, e preci-
Para criar seu menino Caio, a advogada Iara
sa estar direcionada para a liberdade e para a
Amora tenta deixá-lo livre para escolher suas
emancipação.
roupas e brinquedos. Educar crianças para que
elas consigam experimentar livremente o que
desejam vestir, como e com quais brinquedos
gostam de brincar, sem se limitarem aos estereóti-
pos que repetimos na educação delas, é fortalecer
o autoconhecimento e a criatividade. Acreditamos Se queremos as
que desta forma ela desenvolve sua capacidade
mulheres livres,
de expressão e sua capacidade de se posicionar,
avaliar e escolher seus próprios caminhos. capazes de construir
A também advogada Roberta Eugênio nos
seu próprio caminho,
contou sobre os desafios cotidianos na educação precisamos nos
da sua filha, Maná, e relembrou da importância
de respeitar integralmente as crianças. Vê-las
enxergar desse jeito
como seres humanos que são capazes de fazer
escolhas e que precisam ter autonomia para fa-
zê-las. Nesse mesmo sentido, a comunicadora
e mãe de Nina, Mariana Amaral, afirma que as
• ADICHIE, Chimamanda Ngozi. Para educar
crianças feministas: um manifesto. Tradução:
Denise Bottmann. — 1a ed. — São Paulo:
Companhia das Letras, 2017
• CAMTRA. Por uma educação não sexista (carti-
lha) (2009). Disponível em: <https://camtra.org.
br/portfolio/por-uma-educacao-nao-sexista/>.
Acesso em: 15/03/2022
• hooks, bell. Ensinando a transgredir: a edu-
cação como prática da liberdade. Tradução:
Marcelo Brandão Cipolla. São Paulo: Editora
Martins Fontes. 2017
• LORDE, Audre. Irmã outsider. Tradução:
Stephanie Borges. — 1a ed. — Belo Horizonte:
Autêntica Editora, 2019
• SANTOS, Elisama. Educação não violenta: como
estimular autoestima, autonomia, autodiscipli-
na, resiliência em você e nas crianças. — 1a.
ed. — São Paulo: Paz e Terra, 2019