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Revista de Filosofia

Salvador, v. 1, n. 2, dez. de 2020


Trabalhos de Filosofia Geral II
ISSN: 2675-8385
PUBLICAÇÃO

Universidade do Estado da Bahia


Departamento de Educação – Campus I
Curso de Licenciatura em Filosofia

EDITORAÇÃO E DIAGRAMAÇÃO

Flávio Rocha de Deus

CAPA E FOTOGRAFIAS

Ana Amélia R. Souza


(@urbanovoyeur2)

Anãnsi: Revista de Filosofia / Universidade do Estado da Bahia.

Disponível na internet: revistas.uneb.br/index.php/anansi

Curso de Licenciatura em Filosofia – UNEB/Campus I. – v. 1, n.2 (2020) – Salvador:


Departamento de Educação I / UNEB, 2020. Semestral. ISSN: 2675-8385. 1. Periódico.
2. Filosofia 3. Universidade do Estado da Bahia. 4. Departamento de Educação –
Campus I.

Rua Silveira Martins, 2555, Cabula. CEP: 41.150-000 - Salvador – BA


E-mail: revistaanansi@uneb.br
UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA
José Bites de Carvalho (Reitoria)

DEPARTAMENTO DE EDUCAÇÃO - CAMPUS I


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Alex Sandro Leite (Coordenação)

CENTRO ACADÊMICO DE FILOSOFIA


Simone Borges dos Santos (Coordenação)

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Flávio Rocha de Deus (UNEB)
Luciano Costa Santos (UNEB)

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María Magdalena Becerra (UChile, Chile)
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Salvador, 2020
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Profª. Dra. Bruna Fracolla Bloise (UFBA)
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Prof. Dr. Eduardo David de Oliveira (UFBA)
Profª Dra. Elizia Cristina Ferreira (UNILAB)
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Prof. Dr. Valério Hillesheim (UNEB/UCSAL)
Prof. Dr. Vinícius dos Santos (UFBA)

Anãnsi: Revista de Filosofia, Salvador, 2020. a teia é sempre maior do que parece...
ISSN: 2675-8385
#sumário .
Editorial “Filosofar em tempos de pandemia globalitária” ............................... 07
Luciano Costa Santos, Universidade do Estado da Bahia.

/artigos. .

Raça, corpo e existência: uma leitura pós-colonial em Fanon .......................... 14


Rafael Borges da Silva Vitorio, Universidade do Estado da Bahia.

Da biopolítica à necropolítica: veredas decoloniais entre Michel Foucault e


Joseph-Achille Mbembe .......................................................................................................... 27
Renan Vieira de Santana Rocha, Universidade Federal da Bahia.
Wesley Barbosa Correia, Instituto Federal da Bahia.
Jeane Saskya Campos Tavares, Universidade Federal do Recôncavo da Bahia.

A infralinguagem de Bruno Latour e o problema da comensurabilidade nos


estudos interculturais ............................................................................................................. 49
Mateus Rodrigues Santos, Universidade de Brasília.

A bifurcação Natureza/Cultura e o correlacionismo radical em Gender


Hurts: a feminist analysis of the politics of transgenderism ............................... 64
Kelle Cristina Pereira da Silva, Universidade de Brasília.

As diversas acepções de Accent: Rousseau e Les Dictionnaires d’autrefois


……………………………........................................................................................................................ 83
Nilton Marlon Antônio, Universidade Federal do Paraná.

Alex Honneth e a Teoria do Reconhecimento: breves considerações


introdutórias acerca de Hegel, Mead e Winnicott ................................................... 93
José Claudio de Sousa da Silva, Universidade Estadual do Ceará.
/ ensaios. .

Filosofía y Arte desde el Abismo: Una mirada desde el Sur Global ……… 105
Carlo Zarallo Valdes, Universidade Federal de Santa Catarina.

Morrendo de rir: a (falta de) graça da existência visibilizada em Coringa,


de Todd Phillips ........................................................................................................................ 113
Carlos Allencar Sérvulo Rezende-Pereira, Universidade Federal do Rio de Janeiro.
João Víctor Moreira Gonçalves, Universidade Federal do Rio de Janeiro.

Ensaio Introdutório à filosofia de Nicolai Hartmann .......................................... 131


Otávio S.R.D. Maciel, Universidade de Brasília.

/ traduções. .

Como é possível a Ontologia Crítica? de Nicolai Hartmann ............................... 159


Tradução de Felipe Augusto Romão e Otávio S.R.D. Maciel, Universidade de Brasília.

As Tradições da Ciência, de Alfred N. Whitehead ..................................................... 213


Tradução de Rafael Ferreira Martins, Universidade de Brasília.

"A língua é um pássaro em suas mãos" Discurso de Toni Morrison, Nobel de


Literatura, 1993 .......................................................................................................................... 225
Tradução de Simone Borges e Alan Sampaio, Universidade do Estado da Bahia.
A propaganda ameaça a democracia? Um debate entre Edward Bernays e
Ferdnand Lundberg, 1938 ...................................................................................................... 233
Tradução de Flávio Rocha de Deus, Universidade do Estado da Bahia.

/ resenhas. .

Sim, Fanon, novamente, no Brasil, principalmente: Pele negra, máscaras


brancas (2020) .......................................................................................................................... 243
Flávio Rocha de Deus, Universidade do Estado da Bahia.
Editorial

Editorial
Filosofar em tempos de pandemia globalitária

Em março deste ano de 2020, em meio à pandemia de Covid-19, o governo


federal emitiu portarias confirmando posição assumida desde o ano passado, no
sentido de reduzir o investimento em programas acadêmicos de Ciências Humanas,
com a alegação de que é preciso focar em áreas que gerem “retorno imediato ao
contribuinte”, tais como medicina, engenharia e veterinária.
Antes de questionar que perfil de “contribuinte” tem em vista o governo
federal, e qual sua autoridade epistemológica para decidir sobre os campos de
conhecimento a serem priorizados ou preteridos, lembremos que uma das portarias,
do Ministério da Ciência, Tecnologia, Inovações e Comunicações (MCTI), exclui as
Ciências Humanas das prioridades de projetos de pesquisa no Conselho Nacional de
Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPQ); ao passo que a outra, da
Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES), ligada ao
Ministério da Educação (MEC), altera regras para concessão de bolsas de pesquisa, de
modo a reduzir os subsídios aos cursos de Humanas. Para que se tenha uma ideia do
que isto representa, somente a área que abrange Antropologia e Arqueologia perdeu
cerca de 20% de bolsas de mestrado e pouco mais de 10% de doutorado, justamente
dois anos depois do incêndio que arrasou o Museu Nacional (o maior Museu de
História Natural da América Latina), e num momento de nossa história republicana no
qual a sanha do capital privado nunca esteve tão à vontade para atropelar os interditos
legais à invasão de territórios indígenas e quilombolas.
Deixando bastante claro o critério pragmático de legitimação epistemológica
que lhe serve de base, o texto da portaria do MCTI prioriza o investimento nas
tecnologias classificadas como: estratégicas (de tecnologia espacial a segurança
pública), habilitadoras (inteligência artificial), de produção (indústria, agronegócio,
serviços) e de desenvolvimento sustentável e qualidade de vida (a exemplo de saúde e
saneamento básico). Com a priorização desses tipos de tecnologias, a portaria federal
mostra que o “contribuinte” de sua especial consideração está inserido no sistema de
mercado e na sociedade contratualizada, seja como dono da produção, mão de obra

Anãnsi: Revista de Filosofia, Salvador, v. 1, n. 2, 2020.


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Editorial

especializada ou consumidor. O “retorno imediato” exigido da produção científica pelo


governo federal significa, portanto, que a injeção de dados proporcionada pelo
subsistema acadêmico deve assegurar o melhor funcionamento possível do sistema de
mercado regulado pelo grande capital, ainda que isto implique na pauperização crônica
de uma massa subempregada ou na sumária exclusão de um “exército de reserva” de
desempregados, os quais, porque economicamente des-validos, não contam para a
ordem estabelecida e, por consequência, não deveriam receber o benefício de nenhum
tipo de conhecimento acadêmico crítico bancado com dinheiro público. Seria um
contrassenso, para o sistema social fundado na desigualdade de acesso a direitos e
bens, financiar uma área do conhecimento que viesse a contribuir para sua
transformação.
Logo depois da manifestação do governo brasileiro em favor do corte na área de
Ciências Humanas, ainda em 2019, sobrevieram de diversos lados contundentes
respostas da comunidade acadêmica, das quais uma das mais significativas foi o
manifesto organizado pela Gender International, rede de pesquisadores de gênero e
sexualidade, que tem entre seus principais filiados a filósofa e escritora Judith Butler.
Neste manifesto, subscrito por intelectuais de Harvard, Cambridge, Berkeley, e de
instituições brasileiras como USP e UFRJ, entre outras, argumenta-se que: a educação
não pode prender-se a resultados imediatos, constituindo um investimento nas futuras
gerações; as economias contemporâneas não requerem apenas técnicos especializados,
mas cidadãs e cidadãos com formação de amplo espectro; numa sociedade
democrática, a avaliação da serventia do conhecimento não deve ser determinada
pelos mandatários do poder político, sem interlocução com a comunidade acadêmica;
por fim, as ciências humanas e sociais não são um luxo reservado aos mais ricos, uma
vez que a compreensão da sociedade é uma exigência elementar do exercício da
cidadania.
Para além da face bizarra do atual governo brasileiro – terraplanista, teocrático,
miliciano –, não se pode perder de vista que o assédio contra as Ciências Humanas e
Sociais e, mais amplamente, contra a Educação mesma, corresponde a uma lógica de
poder intrínseca ao modelo ultraliberal de sociedade que há anos vinha ensaiando a
retomada do espaço público. Numa palavra, o totalitarismo de mercado é incompatível
com o exercício do pensamento reflexivo e crítico, quer constitua para seu
representante governamental uma caricatura neofascista, um político profissional de
perfil light, um pseudo juiz ou um astro televisivo vestido de filantropo. Pouco importa
qual seja o figurino do arauto da “Ordem”: o fato é que a tirania do pensamento único
tem profundidade civilizatória colonial, remete à nossa origem histórica e a nossas

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Editorial

estruturas sociais, e já estava à espreita para retomar o seu posto bem antes do atual
estado de coisas.
Nesse sentido, é importante não perder de vista a ameaça regressiva
representada pelo Movimento Escola sem Partido já em 2015 (embora surgido em
2004), em pleno surto reacionário que desembocaria no Golpe de Estado do ano
seguinte. Concebido supostamente como instrumento legal para proteger o estudante
de indevida doutrinação ideológica, o Projeto Escola sem Partido, a reboque do
Movimento, acabou constituindo um engenhoso dispositivo de criminalização do
pensamento crítico e confisco da liberdade docente, chegando a fomentar um ambiente
de constrangimento à atividade docente em diversas instituições de ensino pelo país
afora, notadamente em aulas de componentes curriculares da área de Humanas.
Consumado o Golpe de Estado de 2016, convém também não perder de vista
que uma das primeiras iniciativas do presidente usurpador foi o encaminhamento ao
Congresso Nacional do Projeto de Emenda Constitucional 241 (ou 55 no Senado), a
chamada “PEC da Morte”, que congela por 20 anos investimentos em serviços públicos
essenciais, como Educação e Saúde, a fim de assegurar o pagamento de juros à classe
banqueira que patrocinou o Golpe. Com essa severa restrição orçamentária, o governo
golpista dava sinal inequívoco do lugar estratégico subalterno reservado à Educação
em seu programa. Enquanto tramitava a PEC da Morte, foi expedida pelo governo
federal a Medida Provisória 746/2016 – avalizada por instituições como Banco
Mundial e Organização Mundial do Comércio –, que propugnava a Reforma do Ensino
Médio, cuja proposta visa flexibilizar a formação do discente pelo direcionamento à(s)
área(s) de seu maior interesse e potencial especialização mercadológica. Reduzindo o
conteúdo curricular e conferindo a este um viés mais técnico que humanista, a Reforma
também propunha revogar a obrigatoriedade do ensino de Filosofia, Sociologia e Artes,
o que, se confirmado, terminaria por comprometer a própria ideia de Ensino Médio
como Educação Básica universal a serviço da formação crítica do sujeito-cidadão, vindo
a impor-se um modelo educacional voltado à provisão de mão de obra barata para
serviços menos qualificados no mercado. No final das contas, buscava-se manter a
classe trabalhadora no seu “devido” lugar histórico, freando os espasmos
emancipatórios que se vinham produzindo e assegurando a primazia do capital no
espaço social.
É, portanto, nessa perspectiva estratégica de amplo alcance que se deve
dimensionar o corte atual de recursos na área das Ciências Humanas, muito
especialmente no caso da Filosofia, que aqui nos toca de perto. A nosso juízo, não se
trata de um mero ajuste financeiro conjuntural, que vise dar alívio imediato às contas
públicas, mas de um movimento programado e progressivo de lenta asfixia do campo

Anãnsi: Revista de Filosofia, Salvador, v. 1, n. 2, 2020.


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Editorial

do pensamento crítico, como se a este fosse negado direito de cidadania no espaço


público, porque tido como inútil, disfuncional, desestabilizador ou mesmo incompatível
com a ordem estabelecida.
Nesse sentido, é de se recear que, com a consolidação do presente estado de
exceção, o exercício da Filosofia como pensamento radical – isto é, como busca
exaustiva de sentido e sua justificação em âmbito comunicativo dialógico –, a médio
prazo venha a se tornar francamente clandestino em nosso país, a menos que sua
organização institucional hegemônica acabe por reduzi-lo a práxis discursiva de menor
densidade crítica e impacto transformador, seja como erudição historiográfica
ornamental ou como dispositivo linguístico/lógico/comunicativo com vistas à
otimização de performances em espaços institucionais.
Em contrapartida, talvez não seja inverossímil supor que justamente o refluxo
institucional da práxis filosófica possa tornar patente sua inestimável contribuição à
revitalização do espaço público, tecido pela construção de consensos a partir da
participação autônoma e crítica de cidadãos e cidadãs. Basta lembrar que a Filosofia
ocidental é filha da polis e, em certo sentido, também sua alma. O reconhecimento
dessa importância civil da Filosofia não é, porém, tudo, nem talvez o mais importante.
Em contexto de colonialidade, fundado sobre desigualdade estrutural (ou abissal), tal
indigência do espaço público em tempos de exceção está a exigir não somente maior
cultivo da práxis filosófica institucional, mas a radicalização de sua potência crítica e
criadora, o que a nosso ver não tem como se dar sem uma interação dialógica, orgânica
e comprometida com os coletivos e movimentos sociais populares que, justamente,
atuam à frente no trabalho de refundação do espaço público e de desconstrução de
formas envelhecidas ou envilecidas de pensamento e convivência. Sem nenhuma
concessão a contrafações populistas, nossa aposta é que os coletivos populares críticos
– que estão embaixo, às margens, nas frestas ou fora do sistema social –, âmbito de
dialogicidade viva e radical, precisam, mais que nunca, ser assumidos como princípio
de proposição civilizatória e epistemológica. Na periferia do sistema-mundo, ou a
Filosofia aprende a falar junto com os sujeitos privados do direito à vida e ao logos, ou
dificilmente contribuirá para fazer germinar esse outro logos – tão “bárbaro” quanto
fecundo – que propicie pistas de sentido de como re-existir para além da falência do
agonizante sistema global.
Ora, é precisamente para dar passagem a esse outro logos nascente e insurgente,
com suas outras narrativas, deixando-o falar à vontade em meio à palavra consagrada
dos mestres da tradição filosófica, que nasceu a Revista Añansi.
Neste número 2, a seção de artigos da Revista abre com Raça, corpo e
existência: uma leitura pós-colonial em Fanon, de autoria de Rafael Borges da Silva

Anãnsi: Revista de Filosofia, Salvador, v. 1, n. 2, 2020.


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Editorial

Vitorio, que descreve a análise de Frantz Fanon, no clássico Pele negra, máscaras
brancas, acerca da posição psicoexistencial do negro, sua relação com o corpo, a
subjetividade, o ser Outro e o mundo nos campos da cultura, da sociedade e das
ciências.
O artigo Da biopolítica à necropolítica: veredas decoloniais entre Michel
Foucault e Joseph-Achille Mbembe, de Renan Vieira de Santana Rocha, Wesley
Barbosa Correia e Jeane Saskya Campos Tavares, tem por objetivo compreender se, e
em que medida, a construção do conceito de necropolítica, tal como se apresenta na
obra mbembiana, agrega uma perspectiva decolonial ao conceito foucaultiano de
biopolítica.
A infralinguagem de Latour e o problema da comensurabilidade nos
estudos interculturais, de Mateus Rodrigues Santos, tem por objetivo expor a
infralinguagem tal como a concebe Bruno Latour, uma ferramenta de pesquisa que
permite o deslocamento de um quadro de referência a outro. O artigo sustenta a tese
de que infralinguagem – e sua branda metafísica de fundo – oferece uma maneira de
manter (e enriquecer) a pluralidade cultural, sem necessariamente instaurar uma
completa incomensurabilidade entre as culturas.
Em A bifurcação Natureza/Cultura e o Correlacionismo Radical em Gender
Hurts: a feminist analysis of the politics of transgenderism, Kelle Cristina Pereira da
Silva analisa a obra “Gender Hurts: a feminist analysis of the politics of
transgenderism”, de Sheila Jeffreys, à luz das críticas ao correlacionismo de Quentin
Meillassoux e dos apontamentos acerca da bifurcação natureza/cultura levantados por
Bruno Latour. Busca-se demonstrar como tanto gênero, quanto a transgeneridade,
aparecem na obra como conceitos bifurcados.
As diversas acepções de Accent: Rousseau e Les Dictionnaires d’autrefois,
de Nilton Marlon Antônio, se propõe a identificar determinadas atribuições concedidas
ao conceito de accent dentro da obra de Rousseau e compará-las com as acepções
desenvolvidas por importantes dicionários franceses que antecederam a composição
das obras rousseaunianas. O trabalho reflete as diferentes significações que um
conceito pode tomar ao longo de uma obra — também ao longo dos anos — e como
essas diferenças, acarretando diferentes traduções, podem trazer complicações
interpretativas.
Em Alex Honneth e a Teoria do Reconhecimento: breves considerações
introdutórias acerca de Hegel, Mead e Winnicott, José Claudio de Sousa da Silva
aborda o conceito de reconhecimento no pensamento do filósofo contemporâneo Axel

Anãnsi: Revista de Filosofia, Salvador, v. 1, n. 2, 2020.


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Editorial

Honneth, utilizando como obra principal o livro “Luta por reconhecimento: A gramática
moral dos conflitos sociais”.
A seção de ensaios é inaugurada com Filosofía y Arte desde el Abismo: una
mirada desde el Sur Global, de Carlo Zarallo Valdes, o qual tem como objetivo
mostrar a importância de assumir o espaço geográfico/epistemológico do Sul global
para poder pensar uma arte livre de conceitos implantados a partir do Centro – para o
autor, a realidade convida a pensar e criar novos espaços que, historicamente,
permaneceram silenciados, oprimidos, marginalizados.
Carlos Allencar Sérvulo Rezende-Pereira e João Víctor Moreira Gonçalves, em
Morrendo de rir: a (falta de) graça da existência visibilizada em Coringa, de Todd
Phillips, mostram que o entendimento da loucura como condição psíquica sustentada
e produzida socialmente, ganha novas referências no cinema a partir do filme Coringa
(Joker, 2019), dirigido por Todd Phillips. Nele, Joaquim Phoenix incorpora o icônico
personagem de modo a acender o debate sobre como, através de uma rede de relações
entre diversos atores sociais, os transtornos mentais são relegados a um lugar de
exclusão e estigma, operação que mantém dinâmicas instituídas e acirra processos de
vulnerabilização.
Encerrando a seção de Ensaios e abrindo a de Tradução, O Ensaio Introdutório
à filosofia de Nicolai Hartmann, de Otávio S.R.D. Maciel, e o texto Como é possível
uma Ontologia Crítica?, de Nicolai Hartmann – traduzido por Felipe Augusto Romão
e Otávio S.R.D. Maciel – contribuem para apresentar este filósofo ao público brasileiro
em geral, tendo em vista tratar-se de autor ainda pouco conhecido entre nós e mesmo
de restrita circulação em nível mundial, não obstante sua importância para o
revigoramento dos estudos metafísicos na contemporaneidade.
As Tradições da Ciência, Tradução de Rafael Ferreira Martins, da primeira
parte (The Traditions of Science), do primeiro capítulo (Meaning), da obra Uma
Investigação Concernente aos Princípios do Conhecimento Natural (An Enquiry
Concerning the Principles of Natural Knowledge) – escrito pelo matemático e filósofo
Alfred North Whitehead (1861-1947) no início do século XX.
"A língua é um pássaro em tuas mãos", com Tradução e Introdução de Simone
Borges e Alan Sampaio, apresenta o Discurso de Toni Morrison na cerimônia de
entrega do Prêmio Nobel de Literatura de 1993. Aqui a escritora faz uma reflexão
filosófica e social sobre a língua e as formas assumidas pela linguagem, com destaque
para seus modos opressores.
Fechando a seção de Traduções, A propaganda ameaça a democracia? Um
debate entre Edward Bernays e Ferdnand Lundberg (1938), com Tradução e

Anãnsi: Revista de Filosofia, Salvador, v. 1, n. 2, 2020.


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Editorial

Introdução de Flávio Rocha de Deus. Edward Bernays (1891-1995), considerado por


muitos o patriarca dos estudos de propaganda e relações públicas, e o jornalista
Fernand Lundberg (1902-1995), antigo docente de Filosofia Social da Universidade de
Nova York e profundo pesquisador da história da riqueza estadunidense, em 1928 se
reuniram em uma edição da extinta revista The Fórum para, cada um deles –
claramente opositores –, responderem à seguinte pergunta: Pode, de fato, a
propaganda interferir na democracia?
Na seção de Resenha, Sim, Fanon, novamente, no Brasil, Flávio Rocha de Deus,
também resenha a última edição do livro de Fanon Pele negra, máscaras brancas,
lançado neste ano de 2020 pela editora UBU.
Por fim, mas não menos importante, destaque-se, nesta edição, as imagens da
cidade de Salvador captadas pelo olhar delicado da fotógrafa Amélia Ribeiro de Souza
(@urbanovoyeur2), que conversam de modo sutil com os textos e sinalizam, por assim
dizer, o mundo da vida ou espaço simbólico que os acolhe e reúne.
Nesse contexto de ataque sistêmico – ou seria “pandêmico”? – às Humanas e ao
humano, com alegria oferecemos ao público este número 2 de Añansi, na esperança de
que o exercício polilógico do pensar filosófico contribua para nos imunizar contra as
investidas do vírus globalitário.

Luciano Costa Santos


Universidade do Estado da Bahia

Anãnsi: Revista de Filosofia, Salvador, v. 1, n. 2, 2020.


[13]
Universidade do Estado da Bahia, Campus I
Departamento de Educação

Como é possível uma Ontologia Crítica? de Nicolai Hartmann1

Tradução de Felipe Augusto Romão 2 e Otávio S.R.D. Maciel 3


Notas de Otávio S.R.D. Maciel

1. Introdução

A Ontologia se tornou uma iniciativa suspeita e até mesmo impertinente para a


filosofia contemporânea por conta da crítica kantiana e de seu impacto, de forma que o
nome “ontologia” já causa inquietação – o tipo de inquietação invocada involuntariamente
pela reemergência de atavismos há muito tempo superados. Um julgamento de valor se
esconde nessa reação emocional. O que se deve questionar é se tal julgamento se justifica.

De Aristóteles a Christian Wolff, a Ontologia tinha como propósito ser a “ciência do


ser enquanto ser”4. Contra este projeto, o ceticismo sempre levantou a pergunta “como
podemos saber algo sobre ‘o ser enquanto ser’?” A Crítica [da Razão Pura] põe o mesmo
questionamento, possivelmente de forma ainda mais radical. O “Ser enquanto Ser” é
completamente questionável quanto a ele mesmo, uma vez que a Crítica é idealista. Além
de não tolerar o conhecimento de qualquer ente-em-si, ela não pode tolerar o ser-em-si-
mesmo. Na verdade, tomando a Crítica como ponto de partida, o idealismo pós-kantiano

1Primeira publicação em 1923. Texto original: HARTMANN, Nicolai. Wie ist kritische Ontologie überhaupt
möglich?“ in. Kleinere Schriften von Nicolai Hartmann. Band III – Vom Neukantismus zur Ontologie.
Berlin: Walter De Gruyter & Co., 1958. Tradução de referência: HARTMANN, Nicolai. “How Is Critical Ontology
Possible? Toward the Foundation of the General Theory of the Categories, Part One (1923)”, transl. by Keith
R. Peterson, in. Axiomathes (2012) 22:315–354
2 Graduando em Direito na Universidade de Brasília. E-mail: felipe.augusto.cmb@gmail.com
3Doutorando em Filosofia na Universidade de Brasília. E-mail: oe.maciel@gmail.com. O Ensaio Introdutório
pode ser encontrado também na presente Revista Anãnsi. As notas de rodapé que não estiverem marcadas
com “NT” (notas de tradução) são de autoria do próprio Hartmann.
4NT: Hartmann faz referência ao Livro Épsilon da Metafísica (1025b), no qual Aristóteles define como
objetivo da πρώτη φιλοσοφία (prima philosophia ou “filosofia primeira”, traduzido séculos depois como
“metafísica”) o estudo do ὅτι ᾗ ὄντα (“ser enquanto ser”, traduzido a partir do latim “ens qua ens”). Devido à
desconfiança no século XX contra questões “metafísicas”, Hartmann vai preferir empregar o termo prima
philosophia para se referir a este projeto de extração aristotélico.
Nicolai Hartmann

concluiu abruptamente que não há ser-em-si e, hoje, o neokantismo também tomou o


mesmo entendimento com bastante ênfase.

De qualquer forma, deparando-se com tal crítica, a questão precisa ser levantada:
há alguma outra pergunta teórica fundamental além daquela referente ao “ser enquanto
ser”? As teorias idealistas não propõem e respondem, a princípio, a mesma pergunta
quando tentam demonstrar a “idealidade do ser”? Não se pode duvidar de que eles estejam
trabalhando com a essência do ser, apenas a explicam diferentemente. A distinção existe
apenas na resposta à questão do ser, não na questão em si. Até o mais extremo dos
subjetivismos entende como necessário pelo menos explicar a “aparência” do Ser na
medida do que for capaz. O mesmo vale para o ceticismo, só que ao contrário. Até o
ceticismo lida com o Ser, sendo que ele consegue, com dificuldade, alcançar a epokhé a
respeito do ser. Em resumo, um teorizar que não seja, no fundo, ontológico, nunca existiu
e é algo impossível. Está na essência do pensamento ser capaz de se orientar não ao nada,
mas apenas em direção aos entes, ao que há5 [Seiendes]. Este era o sentido da tese eleática
antiga.

No esforço de se evitar esta conclusão, nada é conquistado quando se restringe essa


pergunta teórica fundamental unicamente ao problema do conhecimento. É uma total
autoenganação quando alguém tenta escapar a questão do ser desta forma. Atinge-se,
precisamente, o oposto disso. Não há questão do conhecimento sem a questão do ser. Isso
é assim porque não há conhecimento cujo sentido como um todo não consista em um
conhecimento sobre “o que há”. Conhecimento é precisamente a relacionalidade
[Bezogensein] de uma consciência a algo que é em si. A teoria pode até mesmo mostrar que
algo que existe de maneira independente, na verdade, não existe de maneira independente.
Mas o fenômeno da relação não é dispensado por conta disso. Ele persiste, continua além
de qualquer teoria que o negue e ao fim retorna, teimoso, não remediado e, de fato,
irremediável. Tais teorias podem sobreviver apenas no caso de lidarem com o problema
do ser-em-si desde o início. No mínimo, deve-se reconhecer como problema aquilo que se
pretende provar como não sendo um problema – o que ainda é ontológico. Uma
epistemologia que contesta isso dificilmente pode ser chamada de epistemologia. O que ela
discute não é “conhecimento” de forma alguma.

5 NT: Hartmann emprega com bastante frequência a distinção entre o Ser [Sein] e os Entes [Seiende].
Ocasionalmente, a tradução de Seiend pode soar melhor nas línguas latinas como “o que há”, para referir a
algo que simplesmente é-aí. Hartmann diverge crucialmente dos adeptos do heideggerianismo ao nomear de
Dasein qualquer coisa que há, qualquer ente, sem nenhum privilégio antropocêntrico e sem nenhum
centramento na existência humana. A metafísica, a ontologia e a filosofia lidam com o que há, com o ser
enquanto ser, não podendo ser arbitrariamente reduzida, por dogmas ou truques de prestidigitação, a uma
preocupação apenas ou majoritariamente humana. Estes podem e devem ser tópicos de investigação
filosófica, apenas não devem ser tomados como protagonistas ou gabarito, ou como pontos de partida ou de
chegada obrigatórios.

160 Anãnsi: Revista de Filosofia, Salvador, v. 1, n. 2, 2020


ISSN: 2675-8385
Tradução: Como é possível uma Ontologia Crítica?

Este mal-entendido, no entanto, tem uma raiz mais profunda. O apriorismo é quem
o propagou. Esta “propagação” consiste em um mal-entendido sobre o a priori ele mesmo.
Tem sido repetido ad nauseam desde Kant que o conhecimento a priori é possível apenas
onde for o objeto do conhecimento mera aparência; pelo menos não se pode conhecer a
priori nada sobre algo existente em si. Neste caso, o objeto seria representado mesmo antes
de ele ser dado – e independentemente de ser dado. Sua essência teria de ser a mesma
daquela da representação, colocando um ponto final na reivindicação de ser uma entidade
existindo independentemente da representação.

Qualquer um que raciocine desta maneira sequer vê o problema do conhecimento.


Para ter certeza do que faz, facilita tudo de forma espantosa para si mesmo, mas deixa de
entender a questão logo de cara. Representação nunca é, desta maneira, conhecimento: ela
pode ser, mas então ela não é conhecimento em virtude de sua própria essência, mas em
virtude da essência de uma relação heterogênea e transcendente com outra coisa, pela
relação a um objeto intencionado por ela para além da representação. A representação
vazia, sem este contrapeso ontológico – seja ela sobre pensamento, objetos imaginários ou
um suposto conhecimento do ser – é a priori de maneira geral. Ela não é conhecimento a
priori, no entanto. É um erro acreditar que o problema do a priori seja puramente
epistemológico. Desejos, intenções, suposições e preconceitos também têm caráter
apriorístico. Um construto [Gebilde] a priori primeiro adquire seu valor epistêmico por
uma certa dignidade, não pertencente a ele meramente pela sua aprioridade, a qual Kant
chamava de “realidade objetiva” ou “validade objetiva”. A Crítica da Razão Pura ensina o
quanto a demonstração da validade objetiva é, em si, um problema do conhecimento da
forma mais enfática pela posição central que a “Dedução Transcendental” ocupa nesta
obra. Esta Dedução contém, precisamente, o que há de valor cognitivo do elemento a priori
na representação do objeto. Sua tarefa é demonstrar a “realidade objetiva” daquilo que a
síntese a priori afirma acerca dos objetos sob os “puros conceitos do entendimento”. Se ela
consegue fazer isto é outra questão. No entanto, não há dúvida que a Dedução lida
diretamente com o problema ontológico disfarçado no apriorismo das categorias
cognitivas.

Kant tinha clara ciência de todo esse problema. Ele não tinha perdido contato com
o problema ontológico fundamental do conhecimento. Isso inicialmente e
incrementalmente se perde no idealismo pós-kantiano. Tal processo é completado no
neokantismo. Acredita-se, agora, que devemos entender todo o problema do conhecimento
meramente como um problema lógico. Isso, sem dúvidas, dá asas ao apriorismo como tal,
mas deixa de ser um apriorismo epistemológico. É apenas o peso do elemento ontológico
do problema do conhecimento que pode trazer o apriorismo de volta para o chão e protegê-
lo de voos especulativos de fantasia conceitual. Apenas a severidade do que há de

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ontológico no problema do conhecimento que mantém o apriorismo mais rente ao solo e


pode o proteger contra o voo especulativo do pensamento fantasioso.

É precisamente o problema do conhecimento e, nele, ainda, precisamente o


problema do conhecimento a priori, que mais urgentemente necessita de uma base
ontológica. Sem isso, tudo aqui está flutuando no ar: sem isso, não se pode diferenciar
representação e conhecimento, pensamento e discernimento, fantasia e verdade, ou
especulação e ciência. De qualquer forma, não é uma boa ideia procurar abrigo no
problema do conhecimento para evitar o problema ontológico.

2. A problemática ontológica geral

O que realmente faltava à Velha Ontologia? Se a Kant é creditada a destruição da


existência histórica da ontologia, então talvez se acredite que faltava à Velha Ontologia
nada além da “crítica”, nada além do conhecimento dos limites de sua competência. As
velhas cosmologia, psicologia e teologia foram fundadas ontologicamente6. Se esse fosse o
caso, todavia, então a sua aniquilação pela Crítica não teria sido necessária. Seus alicerces
teriam permanecido na existência e apenas uma restrição de seu escopo teria sido
introduzida. Porém, o sentido original de ontologia, ou prima philosophia, como Aristóteles
o concebeu, foi completamente diferente, bem mais sério e rigoroso, sobre o qual todos os
apêndices “dogmáticos” futuros – apenas estes que Kant contesta em sua Crítica da Razão
Pura – aparentam ser apenas acessórios infrutíferos, para não dizer excessos de filosofia
popular.

Aristóteles deu à “ciência do ser enquanto ser” um fundamento duplo. O primeiro


está na Doutrina da Forma e Matéria (Livro Zeta da Metafísica), o outro na Doutrina do Ato
e Potência (Livro Teta). A união de ambos está na proposição de que a forma é puro ato. A
tese de que forma e causa eficiente são idênticas também estava implícita nela, além de que
a causa eficiente coincide com a causa final. Apenas a última de todas essas teses é
considerada pela crítica kantiana e se dá primeiramente na Crítica do Juízo Teleológico7. A
ontologia, todavia, de forma alguma se sustenta ou cai com um caráter teleológico da
imagem de mundo. Ontologia pode facilmente ser separada da teleologia, como o exemplo

6 NT: Hartmann faz aqui referência à divisão clássica da “Velha Ontologia” de Christian Wolff, a partir do
sistema leibniziano, que classificava como áreas de estudo a ontologia ou “metafísica geral”; e três áreas de
pesquisa metafísicas especiais: a cosmologia racional, a psicologia racional e a teologia racional,
respectivamente, o estudo da criação divina, o estudo da alma individual dada por Deus, e o estudo do
Criador.
7NT: Referência à segunda parte da Kritik der Urteilskraft (1790), a “Terceira Crítica” de Kant, traduzida no
Brasil como “Crítica da Faculdade de Julgar” (Editora Vozes) ou “Crítica da Faculdade de Juízo” (Editora
Forense).

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de Spinoza prova. O conteúdo ontológico da teoria da matéria tem também variado


bastante ao longo dos séculos. A matéria apareceu, em determinado momento, destinada a
se tornar um fundamento genuíno e, em outro momento, diminuída a nada. É segundo estas
oscilações que a metafísica do ser aparece em formas mais dualísticas ou mais monistas.
Apenas a Teoria das Formas consistentemente passa por variados sistemas ontológicos –
ao menos em seus princípios fundamentais. A essência genuína da ontologia antiga se
agarra a ela.

O que constitui a essência da Teoria das Formas? Seria a tese do realismo medieval
de que as puras formae substatiales são as portadoras genuínas do ser absoluto e que todo
o resto são imitações feitas à sua imagem? Ou seria que essas Formas podem ser
concebidas como ideias de uma Razão-Mundo8, como pensamentos de uma inteligência
divina? Ambos não são possíveis – e diversas concepções similares variam
incessantemente de acordo com os preconceitos de seu tempo, enquanto a atitude
ontológica permanece a mesma.

O que constituía a essência da forma, de Aristóteles a Wolff, era a sua estrutura


lógica. A convicção básica era a de que há um único e idêntico mundo das formas, o domínio
lógico de conceitos puros e que este era, ao mesmo tempo, o mundo das formas de ser. Isso
deu à lógica uma predominância enorme na metafísica e, se o problema da matéria não
continuasse no pano de fundo como um peso na consciência, isso resultaria em uma
hegemonia completa da lógica. Uma vez que as formas do ser não são dadas dessa maneira
e tudo fica centrado no conhecimento sobre elas, apenas um caminho continuou aberto:
tirá-las da esfera lógica. A perspectiva tentadora que tinha ojeriza à ontologia agora dá as
caras. Isso pois o reino da lógica é entendido como o dos pensamentos eles mesmos. Dessa
forma, o pensamento não precisa seguir cansativamente no caminho da experiência, mas
onde quer que ele alcance, ele consegue preender9 imediatamente a essência do ser. O

8 NT: A ideia de Razão-Mundo [Weltvernunft] é a forma germânica de recepcionar o conceito grego de νοῦς
(“nous”), entendido como Inteligência ou Razão que articula o mundo. Este conceito parece ter sido
introduzido nas obras de Homero, repercutindo nas filosofias de Anaxágoras, Platão, Aristóteles e todo o
pensamento europeu subsequente, especialmente após a cristianização, onde a Inteligência deixa de ser uma
inteligência “do cosmos” e se torna do “intellectus divinus”.
9 NT: Na filosofia de Hartmann, todo conhecimento é um ato transcendente, algo que vai de si em direção a
algo que lhe é outro, algo para fora de si. Para operar este “greifen”, Hartmann usa a metáfora do Erfassen,
que pode ser traduzida como compreender, apreender, capturar, agarrar, pegar, num sentido ressonante com
algo de táctil, como um corriqueiro “pegar um copo”, ou “capturar o sentido” do que se quer dizer.
Traduzimos por preensão e, às vezes, por “com-preensão” para resumir todas estas noções num vocábulo
comum. Além disso, para aproveitar, aproximamos de Alfred N. Whitehead, outro pensador menos conhecido
do século XX mas que, também, é um dos mais sofisticados metafísicos ao lado do próprio Hartmann, embora
tenham trabalhado independentemente. Esta aproximação foi defendida por A. Zvie Bar-On em seu The
Categories and the Principle of Coherence (1987), no qual este filósofo mostra diversas proximidades e
ressonâncias entre ambos os autores.

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“apodítico” aristotélico já era ontológico nesse sentido, mesmo quando o contrapeso de um


método indutivo preparatório estava presente. Esse contrapeso metodológico foi cada vez
mais perdido ao longo do tempo, e o dedutivismo se tornou absoluto. A ideia de uma
philosophia prima se tornou mais transparente, mais racional, e culminou no ideal de uma
ciência pura da razão.

O problema com o qual estamos lidando nessas diferentes maneiras é, em seu


centro, um problema epistemológico. A história do apriorismo está atrelada a ele de forma
indissolúvel. Se o real está nas formas eternas, então a questão central da ontologia é a
questão da preensão conceitual das formas. Se o conceito e a forma do ser são idênticos,
então esta com-preensão [Erfassen] é garantida através da lógica; e, além disso, garantida
como uma preensão conceitual pura e a priori, pois a lógica é uma ciência a priori pura. A
tese da identidade que está na base desse dogma remete à Teoria Platônica das Ideias. Foi
Platão o primeiro a defender que o “desvelamento do que há” deve ser com-preendido
imediatamente “nos logoi”. A “Ideia” era, para ele, a expressão metafísica da identidade
estrutural entre o Princípio do Pensamento e o Princípio do Ser. Claro, por este meio, ele
não resolveu o problema. Para capturar a Ideia, um certo método ainda seria preciso, o da
“Hipótese10”, sobre o qual uma referência essencial ao fenômeno era claramente presente.
Tal aspecto essencial do método, no entanto, se perdeu ao longo do tempo – o mesmo
ocorreu com o método da indução de Aristóteles. Sobrou apenas o dogma da identidade da
forma do ser com o logos.

Os elementos Platônicos e Aristotélicos da ontologia, o apriorismo do conhecimento


puro do ser e a autonomia do lógico estão intimamente entrelaçados ao longo da história
da metafísica. A lógica é o protótipo de uma ciência pura a priori. Uma vez posta sob a tese
da identidade descrita acima, ela está em perfeitas condições para arcar com o privilégio
do preconceito de um apriorismo universal do ser. Agora, se nesse apriorismo o elemento
da intuição platônica for perdido e se, ao invés disso, nos referirmos a ele apenas para o
pensamento e para o entendimento, então ele acaba virando um racionalismo universal. O
esquema geral de tal racionalismo é puramente dedutivo. Os primeiros princípios (pouco
numerosos) são “certos” – e tudo no plano do conhecimento ontológico deve segui-los de
forma apodítica. Um método que procede analiticamente, de sua base para cima, não pode
vir a existir ao lado desse programa dedutivo uniforme. Onde ele de fato emerge (tal como

10NT: Do grego, ὑπόθεσις, o método hipotético é desenvolvido por Platão, notadamente no diálogo Mênon,
como uma mistura de especulação racionalmente controlada que tenta orientar a busca por uma solução
internamente complexa e aparentemente simples, articulando diversos elementos de forma inteligível e
elegante. Este método foi “redescoberto”, em termos de sua aplicação na filosofia e na epistemologia no
século XX, pelo velho mestre de Hartmann, o fundador da Escola Neokantiana de Marburgo, Hermann Cohen
(ao lado de Paul Natorp). Para mais informações, cf. Cohen (1902).

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em Descartes), seu objetivo já é crítico quanto à ontologia. Conjuntamente com esse


intuicionismo cartesiano dos maiores princípios, no entanto, a orientação dedutiva
compreensiva ainda permanece com forças. E até mesmo Leibniz poderia ainda acreditar
na pervasiva força do lógico. De fato, a mesma atitude básica persiste na Crítica da Razão
Pura, em Hegel e no neokantismo logicista.
O que realmente é o aspecto errôneo dessa ontologia? Os fatos históricos que
acabamos de mencionar provam que seu aspecto genuinamente ontológico não é um
defeito. O erro também não está na conhecida confusão da distinção entre essência e
existência, tal como na tal “prova ontológica da existência de Deus”. Isso não foi, de forma
alguma, generalizado pela Escolástica. Na verdade, a confusão só foi possível devido a um
preconceito mais abrangente. Deve-se procurar por ele na orientação metafísica total, no
princípio do próprio método. O erro está justamente na pressuposta identidade entre a
forma lógica e a forma ontológica. Segundo tal pressuposição, não é possível ter nada
alógico na realidade; a lógica reina sobre o mundo das coisas, até na particularização, na
concretude e na individuação. Como corolário da primeira tese da identidade, há uma
segunda pressuposição: a da identificação da estrutura lógica com o pensamento puro, a
razão (ratio). Essa também é, apesar de fiel à primeira, uma suposição completamente
arbitrária. Nesta, o fato de haver um domínio de estruturas ideais e legalidades11 existindo
independentemente do pensamento e já pressupostas como existentes pelo pensamento
em si não é reconhecido. Leis como o princípio da equivalência ou da contradição, o dictum
de omni et nullo e as leis das figuras silogísticas são desse tipo. O pensamento, claro, não é
indiferente a elas, ele se orienta pelos seus caminhos e leis; mas, por esta razão, a essência
destas leis não é originalmente aquela das leis do pensamento. A essência é, em si mesma,
indiferente ao pensamento. Essas leis pertencem à mesma esfera que as leis matemáticas
e pode ser facilmente visto deste fato que os últimos se posicionam sobre os primeiros
como princípios superiores. Seria um total contrassenso defender que as leis da
matemática são leis do pensamento. A legalidade do pensamento definitivamente não é de
natureza matemática, mas sim, em sentido amplo, uma legalidade do real. Uma
determinação do real segundo leis matemáticas se tornaria incompreensível de início se
sua essência fosse a das leis do pensamento – isso seria virar o problema central de ponta
cabeça e querer incorporar o real em si no pensamento. Esta, no entanto, não é de forma
alguma a tese da ontologia tradicional.

11 NT: A palavra no original é Gesetzlichkeiten, que pode ser traduzido como legalidades, normatividades,
regularidades. A investigação acerca da legalidade do mundo vai englobar tanto as chamadas leis naturais
como também certas regularidades sociais que animam o jurídico – além das leis lógicas e leis matemáticas.
Embora não tenha desenvolvido explicitamente uma Teoria do Direito, Hartmann desenvolve sua teoria da
legalidade da natureza para além de uma noção simplista de causalidade moderna, geralmente reduzida a
um tipo de mecanicismo e, não raro, a fatalismos. Além disso, trabalhando sobre os princípios éticos
axiológicos, também há interessantes aplicações no direito. Sobre isso, cf. os quatro volumes do Ontologia e
os três da Ética. Sobre a relação de Hartmann e o Direito, cf. Adeodato (2019).

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Dessa forma, há, na verdade, três tipos de estruturas completamente diferentes na


Velha Ontologia que são tomadas como idênticas: as do pensamento, as do ser ideal e as do
ser real. Claro, há muitas razões para a identificação destas estruturas. As estruturas do ser
ideal aparentemente desempenham um papel de mediação no apriorismo da cognição.
Ninguém vai negar que elas precisam ao menos coincidir parcialmente com aquelas do real
e, parcialmente, com aquelas do pensamento também. A cognição a priori do real se
tornaria impossível a não ser que este fosse o caso. Isso não precisa implicar, todavia, em
uma completa identidade entre essas estruturas. Na verdade, deve ostensivamente não
implicar em tal identidade – do contrário, um elemento ininteligível no reino do real seria
tornado impossível12. Além disso, ninguém que realmente entenda o problema gostaria de
sugerir que tudo que é real é sequer conhecível, muito menos conhecível a priori.
Assim, é necessário que de início se distinga claramente entre as três esferas.
Fazendo isso, nada fica previamente decidido sobre suas coincidências estruturais e suas
fronteiras. O erro da antiga ontologia não estava no fato de ter suposto a coincidência das
três esferas, mas no fato de que ela não colocou nenhum limite a esta coincidência. Desta
maneira, o relacionamento entre as esferas fica suspenso de início, sendo a independência
das esferas uma em relação à outra é cancelada [aufgehoben]. Teses de identidade sempre
são as soluções mais convenientes para problemas metafísicos por serem as simplificações
mais radicais. A ontologia antiga foi construída em uma tal simplificação radical do
problema central. O que precisamente está em questão é se todas as estruturas reais são
lógicas e, de forma similar, se todas as estruturas lógicas são realizadas. É igualmente
aberto ao questionamento se toda a legalidade lógica recorre no pensamento, ou até se ela
é sequer acessível ao pensamento; da mesma forma, reversamente, deveria ser
questionado se as estruturas legais do pensamento são exclusivamente lógicas, ou se ainda
mais forças intervêm aqui – pois também há uma psicologia do pensamento que está longe
de uma estrutura lógica. Poderiam haver elementos gnoseologicamente irracionais
(transinteligíveis) no reino lógico-ideal tanto quanto poderiam haver estruturas alógicas
no de pensamento atual dos indivíduos reais. Há limites à identidade estrutural entre a
esfera lógica e a esfera do pensamento da mesma forma que há limites à identidade das
esferas do real e da lógica.

Tomando ambas essas bem significativas limitações à identidade das esferas em


conjunto, temos que, dessa perspectiva, a posição intermediária da esfera da lógica entre a
esfera do real e a esfera do pensamento pode ser vista, de forma que a limitação em suas

12 NT: O tradutor para o inglês, Keith Peterson, comenta acertadamente aqui que o conceito de irracional,
não-racional, a-racional ou ininteligível, em Hartmann, é bastante peculiar. Ele não emprega o termo
“irracional” tal como o faz a filosofia popular a partir dos existencialistas – mas define este conceito em função
do “transinteligível” e do “transobjetivo”, que permanecem no ente para além daquilo que dele foi
objetificado. Cf. o primeiro volume da Ontologia, especialmente nos capítulos 8, 26 e 51.

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identidades estruturais claramente resulta de uma relação mediada no último par. A


questão fundamental da ontologia depende dessa relação de forma decisiva: o que
podemos saber sobre o ser real como tal? A velha ontologia se estabeleceu num terreno de
absoluto apriorismo exatamente neste ponto: nas suas estruturas, o pensamento
imediatamente revela a estrutura do real. Tal perspectiva é a raiz de todo o mal, ela é
radicalmente falsa. A maior e mais difícil de todas as questões metafísicas é precisamente
essa: se, e em que medida, o pensamento, em sua própria legalidade, é capaz de encontrar
[treffen] a essência do ser. No seu tempo, o ceticismo antigo articulou claramente essa
questão e a dividiu em “topoi” aporéticos plausíveis13. Uma das mais marcantes
falsificações desse problema foi que a aporética sempre foi compreendida apenas como
uma questão epistemológica e não, ao mesmo tempo, como uma aporética ontológica, uma
falsificação pela qual o dogmatismo de tempos tanto antigos quanto modernos são
culpáveis. O real problema epistemológico no apriorismo pôde ser novamente apreciado
apenas quando o problema ontológico contido nele foi reconhecido. A Crítica da Razão
Pura prestou o valioso serviço de recuperar esse problema fundamental. Nela, pela
primeira vez, a pergunta sobre a validade objetiva de juízos a priori é deliberadamente
posta e separada do fato da aprioridade como tal. Não é a resposta de Kant a essa pergunta
que é significante – pois ela é condicionada pela sua própria perspectiva idealista – mas,
sim, o fato de que ele de fato propôs a pergunta. A significância da “Dedução
Transcendental” não está no fato de que ela confere competência aos doze conceitos do
entendimento dos objetos empiricamente reais, nem em que ela nega a eles competência
acerca das coisas-em-si, mas unicamente naquilo que ela demonstrou em ação: a
necessidade de se oferecer provas de todas as condições de competência ou incompetência.
Embora Kant não pretendesse que a Dedução fosse ontológica, ela ao menos ensina como
a questão ontológica deve ser posta criticamente.

Assim, precisamos distinguir a ontologia do ser ideal da ontologia do ser real. Não
se pode decidir antecipadamente até onde ambos podem ser unificados – o que ainda
permanece a ser investigado. Ambas as esferas são inicialmente separadas completamente
da legalidade do pensamento – apesar da dependência da esfera real em relação a
estruturas ideais. Não estamos lidando aqui com a distinção entre ontologia “formal” e
“material”, como foi recentemente abordado pela perspectiva fenomenológica, pois nem a
esfera real carece de formas, nem a esfera ideal carece de matéria. Além disso, tal distinção
afetaria uma falsa estratificação desde o começo – como se tudo o que é real estivesse

13NT: Hartmann faz referência aos famosos Cinco Modos de Agripa, filósofo grego cético do Século I d.C., que
trazia cinco modos ou “tropos” que levam o cético a suspender seu juízo sobre as coisas: pluralidade de
divergências de opiniões; progresso/regresso ad infinitum; relação de proposições com outras indefinidas;
presunções tomadas e não explicadas; e circularidade argumentativa.

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completamente sob formas ideais. Dessa forma, o velho preconceito seria fortalecido
novamente. Tudo isso precisa continuar aberto a questionamentos. As formas do real
podem muito bem serem diferentes também, se não totalmente, mas pelo menos em parte.
A esfera ideal não é, de qualquer modo, nem um pouco adequada a ser a esfera das formas
do real. Ela é o que é, puramente em si mesma, sendo quaisquer propósitos de suas
estruturas que podem servir ao real extrínsecas a ela.

Se nós conseguirmos alcançar uma determinação precisa dessas esferas, bem como
de suas relações entre si, então muito mais é realizado do que poderia ser suposto, dado o
caráter básico do problema. As determinações metafisicamente fundamentais do
conhecimento, do ethos, da consciência e dos objetos estéticos só podem ser consideradas
se baseadas em tal redefinição. O quanto isso se aplica a uma cognição a priori do real já foi
indicado acima. Isso se aplica à ética na medida que valores éticos são eles mesmos
entidades ideais, mas o comportamento de seres humanos sujeitos às suas normas é real.
A relevância desta distinção para o objeto estético é ainda mais fácil de se ver, pois, apesar
de sua unidade ostensiva, ele mesmo já se posiciona parcialmente na esfera do real e
parcialmente na esfera ideal. Em ambos os casos, o entendimento filosófico do problema
central está na relação entre as duas esferas do ser. O problema fundamental é sempre de
natureza ontológica. Esse amplo leque de problemas pertence, a princípio, essencialmente
à ontologia. Isso mostra como uma philosophia prima genuína, uma disciplina universal
fundamental, uma teoria de princípios de natureza universal, está de fato envolvida nos
seus problemas. É claro, nenhuma das outras mais especializadas disciplinas poderiam vir
antes dela em termos da ratio cognoscendi. Seu primado não é metodológico, é um primado
da coisa [da matéria, do assunto]. O método precisa antes de tudo elevar-se ao nível deste
prius14. Naturalmente, isso só pode ser feito apenas de dentro de cada uma das disciplinas
especiais.

Ao mesmo tempo, é claro que a ideia de tal philosophia prima não é coextensiva com
aquela da ontologia. Isso se deve ao fato de que toda a série de valores-princípios
implicados no objeto de investigação da philosophia prima evidentemente não são
meramente ontológicos. Não é uma teoria de princípios ontológicos apenas, seja do ser
ideal ou do ser real, mas uma teoria universal dos princípios. A razão para essa prioridade
há de ser buscada precisamente aqui. A diferença entre princípios ontológicos e axiológicos
(além da relação positiva entre eles) pode ser determinada apenas em seu solo e só é visível
neste ponto de vista. Se alguém fosse, mesmo assim, querer manter o nome de “Teoria das
Categorias” para ela – o que não é uma limitação em si – então, pelo termo “categoria”,
deve-se entender não apenas princípios do ser e do saber, mas também princípios de todos

14 NT: Referência ao cognitione prius, aquilo que “vem primeiro na ordem da cognição”, expressão cartesiana.

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os tipos. Para a própria Teoria das Categorias, entendida como philosophia prima, a tarefa
surge da necessidade de determinar não apenas as categorias do ideal e do real em suas
relações, não apenas de articular as relações de ambas as esferas com as categorias da
cognição, mas, também, além de tudo isso, de investigar todo o complexo de todas essas
categorias teóricas de maneira correta e decisiva em sua relação com as categorias
axiológicas. Não se pode dizer de antemão se suas tarefas são exauridas por tudo isso. É
evidente que cada domínio adicional de princípios estruturados de maneira diferente,
supondo que eles existam, deve ser integrado da mesma maneira. Ou seja, o trabalho da
philosophia prima é um círculo inacabado, uma totalidade aberta πρός ἡμάς [para nós] de
tarefas parciais sobrepostas.

Pode ser facilmente negligenciado que, de fato, tarefas de grandes consequências


recaem sobre a Teoria das Categorias tal como definida aqui. Até mesmo a pergunta sobre
a relação entre princípios ontológicos e axiológicos pode nos ensinar algo. Não apenas as
questões fundamentais da ética que estão implicadas aqui, mas também a questão sobre a
essência dos valores morais ou da liberdade. As maiores questões metafísicas sobre a
Weltanschauung [visão-de-mundo] dependem deste problema. Todo o pensamento
teleológico é condicionado axiologicamente, pois o ser-propósito [Zwecksein] de um
conteúdo é enraizado necessariamente em seu caráter de valor. A imagem teleológica do
mundo, portanto, rapidamente provê uma primazia categorial para valores ao invés dos
princípios ontológicos, permitindo estes serem condicionados por aqueles. Uma metafísica
configurada desta maneira não precisa se dar o trabalho de investigar, nem mesmo de
perguntar, se tal relação de condicionamento sequer é possível, dada a essência destes dois
tipos de princípios – e, até agora, virtualmente todas as metafísicas dignas deste nome
foram de direcionamento teleológico. A mesma coisa se aplica ao problema do
determinismo, ao problema do panteísmo, a todos os tipos de teorias do desenvolvimento
e a qualquer tipo de antinômica, por exemplo, a oposição entre substancialismo e
relacionalismo, ou entre individualismo e universalismo. Em todos estes lugares, é o
relacionamento entre os princípios que revela estes problemas. Apenas baseado em uma
genuinamente universal Teoria das Categorias que é possível – se não os resolver – pelo
menos lidar radicalmente com estes problemas com todo o rigor científico.

Nós vimos que os problemas usuais sobre a ontologia são facilmente retificados
assim que a espada da Crítica é voltada contra eles, embora dificuldades ainda maiores
surjam para a ontologia de uma outra perspectiva. O problema da ontologia levou a um
problema mais geral, o problema dos princípios, ou o das categorias. Aqui, o problema das
esferas do ser retorna, dessa vez em escala maior. Ele já está contido nos princípios básicos
de todas as áreas de especialização filosóficas, de fato sempre parecendo ser um problema
novo, pois cada vez ele é desalojado essencialmente ao mesmo tempo com as relações em

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constante mudança entre as esferas entre si mesmas. Todavia, apenas a investigação sobre
as categorias caso a caso pode prover informações sobre essa relação. Categorias são os
elementos estruturais em fenômenos de todos os tipos e, dentro dos limites do seu caráter
racional, os únicos elementos filosoficamente compreensíveis. Mas quão bem tem sido o
problema das categorias compreendido filosoficamente?

Prover uma Teoria das Categorias desenvolvida significa nada menos do que aceitar
e lidar com as grandes aporias da Weltanschauung. Apenas a Análise Categorial, como a
explicação e precisa investigação sobre a estrutura de categorias individuais e suas
interrelações sistemáticas no todo, pode dar clarificação e adjudicação dessas aporias, pelo
menos até onde elas são acessíveis ao pensamento. A Teoria das Categorias se mostra como
uma philosophia prima também neste sentido. Até onde, todavia, pode esse caminho ser
trilhado? Isso ainda há de ser visto, pois apenas a própria Análise Categorial pode iniciar
esse tipo de investigação – e a pesquisa ainda não existe. A discussão do método anterior
ao trabalho metódico sobre o assunto é tão impossível para a Análise Categorial quanto o
é para a Fenomenologia, para Aporética, para a Analítica ou para a Dialética. Que progresso
se teve até agora sobre o problema de criar uma Teoria das Categorias?
Surpreendentemente pouco, quando consideramos a venerável idade do problema – os
antigos Pitagóricos já tinham uma tábua de categorias15. Ao longo de muitos séculos houve
poucas mentes que trabalharam seriamente no problema das categorias, com certeza
algumas das melhores mentes, ainda que nem todas, cujos próprios problemas
demandaram uma preocupação com categorias. Eles podem ser contados nos dedos: no
mundo antigo, Platão, Aristóteles, Plotino e Próculo; no período moderno, Descartes,
Leibniz, Kant, Hegel; entre esses dois grupos, alguns escolásticos idiossincráticos; e mais
recentemente Eduard von Hartmann e Hermann Cohen.16 18

17Delonge, a maior e mais desenvolvida tentativa de fazer uma Teoria das


Categorias está na Lógica de Hegel. A riqueza de conteúdo nesse tremendo trabalho

15 NT: Não está claro ao que Hartmann faz referência aqui, mas provavelmente é sobre a caraterização
aristotélica de que os pitagóricos defendiam tudo ser Número. No entanto, a historiografia da filosofia antiga
diverge consideravelmente sobre esta caracterização, especialmente porque a noção de número entre os
Antigos não é redutível, curiosamente, à aritmética, à contabilidade e a usos quotidianos de meramente
enumerar coisas.
16 Trabalhos como os de Emil Lask (além de inúmeros outros), os quais levantam o problema das categorias
de forma geral, mas não elaboram em nenhuma categoria em si, não podem ser contados entre esses,
precisamente pois eles não levam a uma discussão das próprias categorias. O mesmo se aplica para muitos
trabalhos de eras anteriores. Em particular, devemos muito a muitos pensadores por informação relativa a
uma ou outra categoria, mas que mesmo assim mantiveram certa distância do problema.
17 NT: Eduard von Hartmann (1842-1906), apesar do nome, não é parente de Nicolai Hartmann. Era um

filósofo independente que desenvolveu uma teoria que ele nomeava de “realismo transcendental”,
combinando elementos da metafísica da vontade de Schopenhauer (bem como de seu pessimismo) com
elementos do idealismo alemão de Schelling e Hegel (especialmente sobre o Inconsciente e o
Incondicionado). Hermann Cohen (1882-1950), um dos fundadores da Escola de Marburgo, estabelece uma

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praticamente ainda não foi descoberto historicamente, muito menos ainda posto em bom
uso. Ao mesmo tempo, todavia, esse sistema é o mais condicionado por certa perspectiva
idealista e uma avaliação devida requer uma visão absolutamente objetiva, a qual nós não
podemos de forma alguma ter hoje a respeito de Hegel. O peso metafísico do panlogismo
sobrecarrega a lógica hegeliana com preconceitos já desde seu começo – e até mesmo
alguns que podem ser atribuídos à velha ontologia – de forma que para chegar a uma
postura puramente “deste-lado”18 deles iria, sozinha, tomar o trabalho de uma vida. O
mesmo vale em menor grau para as tentativas clássicas, especialmente as mais recentes
(com certeza para as mais recentes), mas provavelmente vale menos ainda sobre as
tentativas feitas pelos antigos. O que é importante é tomar de cada um deles aquilo que é
de fato visível, incontestável e trans-histórico em sua interpretação do problema das
categorias; e atacar tudo o que for preconceito, ponto de vista ou construção de sistemas
de pensamento. Platão, Plotino, Descartes e Leibniz são exemplares nesse respeito. Os
limites pelos quais eles procuravam o conjunto interconectado de categorias, todavia, são
muito estreitos. Em Aristóteles nós já achamos uma produção mais rica de conteúdo,
apesar de ele estar bem mais atado por preconceitos metafísicos, especialmente quando
adicionamos os princípios regentes de sua metafísica com as suas chamadas “dez
categorias”. Hegel foi o primeiro a desenhar um sistema de categorias em larga escala e a
elaborar leis sobre as relações de umas com as outras. A lei do sistema, todavia, é tirada da
Ideia-de-Sistema [Systemidee], ao invés da essência das próprias categorias. A dialética
dedutiva unificante violenta o fenômeno. A lógica de Cohen se contrasta a isso com sua
ênfase nas ciências positivas. Nela, categorias individuais são tiradas dos fatos da cognição;
a interconexão emerge naturalmente e ela é uma interconexão de conteúdo. No entanto, a
diversidade de conteúdo é encolhida, sua perspectiva subjetivistamente limitada e o
domínio relevante de investigação é picotado por seu cientificismo.
É evidente que toda a tarefa da Teoria das Categorias é, acima de tudo, enfrentar a
retificação radical de todas essas transgressões, desalojamento de limites e presunções
especulativas. Assim, o que realmente se precisa para enfrentar de maneira favorável a
tarefa da Análise Categorial se tornará naturalmente visível. O princípio omnis
determinatio est negatio 19 (e vice-versa) também vale para o método. Quando nós
consideramos a abundância de questões amplas e problemáticas especificadas acima,

vertente do neokantismo dedicado ao estudo da Crítica da Razão Pura e da lógica transcendental – foi o velho
orientador de doutorado de Nicolai Hartmann.
18 NT: No primeiro volume da Ontologia, Hartmann cria esta expressão “Diesseits”, traduzida por “deste-lado”,

para significar uma postura vigorosamente incompromissada perante a disputa realismo x idealismo. O
ponto é que afirmar certo realismo, geralmente, significa algum tipo de submissão acrítica, seja à ciência ou
à política. Por outro lado, afirmar um idealismo significa a propagação de algum preconceito a priori que
restringe o que há, seja à mente, seja à intersubjetividade humana. Ao menos para começar uma ontologia
séria e rigorosa, o filósofo não pode optar por nenhuma delas de antemão, e deve começar “deste-lado” da
filosofia, um lado talvez pragmático, de um senso comum, de um ponto de partida mais ou menos ingênuo ou
não-enviesado, para seguir na investigação metafísica que admita tanto o real quanto o ideal. Embora, mais
tarde no livro, Hartmann opte pelo realismo, isso não pode ser tomado como determinação de antemão sem
antes perpassar todos os vários capítulos onde ele desenvolve o raciocínio em direção do que ele nomeia
“realismo crítico”.
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Nicolai Hartmann

todas as quais aparecendo conjuntamente na pesquisa sobre princípios, além da


necessidade de se discutir a priori as possíveis distinções no problema da Análise
Categorial em si – pelo menos como possibilidades – emerge a discussão de três grandes
problemas como a preparação mínima requerida para a Análise Categorial. 19O primeiro
diz respeito à supracitada detecção das fontes de erro em todas as Teorias das Categorias
anteriores, no qual a investigação deve se dar de maneira puramente sistemática e evocar
evidências históricas apenas para fins de testemunho e de ilustrações. Ele diz respeito a
erros que não são apenas importantes para nós por serem históricos, mas também porque
eles são nossos também. Um segundo aspecto da Análise Categorial diz respeito à
disposição das esferas de problemas elas mesmas às quais as categorias devam ser
aplicadas. Se assume que as categorias não precisam pertencer originalmente a nenhuma
destas esferas, e que, para cada categoria individual, permanece em aberto em qual medida
e com quais mudanças estruturais ela é válida para uma ou outra esfera. O terceiro
problema, no entanto, é que uma tentativa deve ser feita para tentar trabalhar os princípios
superiores da estratificação de categorias (os quais podem ser considerados Leis
Categoriais) e, simultaneamente a isso, trabalhar as diretrizes metodológicas para sua
investigação.
Estes três capítulos servem como preliminares para a Teoria das Categorias em si,
para mostrar como ela forma o desiderato fundamental de qualquer filosofia que deseje
seriamente enfrentar as questões fundamentais da metafísica que estão sempre presentes
no pano de fundo de problemas filosóficos. Essa tripla aporética forma o prolegômeno de
qualquer futura philosophia prima. Ela é ontologicamente orientada nesse ponto de
partida, de forma que os rudimentos mais próximos e tangíveis devem quase sempre ser
buscados de maneira geral no problema da Teoria. No entanto, suas perspectivas tendem
em direção a uma doutrina universal dos princípios que leva em consideração igualmente
todos os problemas de níveis. O primeiro destes três capítulos20 será provido aqui por ser
o mais fundamental no sentido de uma crítica.

3. Os Erros Tradicionais

Os erros que foram propagados e acumulados na tradição da pesquisa filosófica das


categorias são de diversos tipos. Nem todos eles merecem investigação especial. Apenas
aqueles que, de certa forma tornaram-se típicos, consolidaram-se como preconceitos fixos

19NT: “Toda determinação é negação”. Famosa enunciação de Spinoza, popularizada no Ciência da Lógica de
Hegel como um de seus princípios centrais.
20 NT: Hartmann não vai, exatamente, escrever apenas três capítulos, tal como ele achou que seria o

necessário em 1923. Em verdade, vai escrever quase duas mil páginas em quatro volumes sobre a Ontologia
ao logo de sua carreira, mais centenas para os três volumes da Ética (1926), além de tantos outros volumes
tentando dar conta desta gigantesca tarefa da Análise Categorial. Por sua morte repentina em 1950, apesar
das décadas escrevendo, muita coisa permaneceu inacabada ou ainda não projetada. Para mais informações,
confira o artigo “Ensaio Introdutório à Filosofia de Nicolai Hartmann” no presente volume desta Revista.

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e tornaram-se desastrosos para a filosofia vão nos preocupar aqui. Talvez não seja
coincidência que são precisamente esses os quais se atrelaram aos nomes dos grandes
mestres – merecidamente ou não – de forma que somos involuntariamente tentados a
nomear os erros em relação a eles. De toda forma, a autoridade desses nomes é
parcialmente responsável pela tenacidade com a qual estes erros têm sido mantidos pela
tradição.
Não é nosso trabalho aqui rastrear as motivações intelectuais desses erros. Alguns
são de tipo bem subjetivo, enquanto outros são consequências de preconceitos sistêmicos
mais gerais. Muitos podem ser facilmente rastreados a motivos mitológicos, outros estão
enraizados na insuficiência de conceitos da ciência positiva que são inconscientemente
tomados como modelos. Todavia, essas motivações são quase inteiramente bem
transparentes e não têm nenhuma relação com as diversas consequências sistêmicas as
quais fluem destes erros. O resultado disso é que não é nada difícil revelar esses erros e
corrigi-los uma vez que compreendemos sua natureza – e tal compreensão quase conta
como o esforço de superá-los. Praticamente sem exceção, estes erros não têm peso
metafísico próprio. Este peso diz respeito exclusivamente aos conteúdos tratados
filosoficamente. Como tomar iniciativa positivamente frente ao insight conquistado pela
investigação é uma questão totalmente diferente de o que é justificadamente necessário
para consertar as transgressões. Inicialmente, a solução está em reconhecer tal erro, mas
isso é uma cura posterior21.
Ocupar-se com motivações históricas pode ser empolgante, mas é sistematicamente
trivial. Por enquanto, o que precisa ser feito consiste unicamente em uma fenomenologia
dos preconceitos eles mesmos, na medida em que a concepção da essência e do sistema das
categorias é influenciada por eles. Pelo menos isso fica claro desde o início – essa influência
existe no maior dos graus. De fato, nós não temos sequer uma tentativa de uma Teoria das
Categorias construída desta maneira crítica. O poder regente dos preconceitos tradicionais
é ainda incontestado por todas elas, mesmo que em graus diferentes por teorias diferentes.
A seção seguinte começa com os preconceitos historicamente mais antigos e mais
ingênuos, ascendendo até os mais diferenciados e teoricamente condicionados.

3.1 O Erro da Homogeneidade [Der Fehler der Homogenität]

Platão, o primeiro pensador que desenhou um plano universal de princípios,


caracterizou a relação entre princípio e concreto como “participação”22. Dizer que coisas
“participam das Ideias” significa que elas são constituídas tal como são porque a Ideia é um

21 NT: Expressão latina para “preocupação para outra hora”.


22NT: O termo em grego é μέθεξις (methexis). Esta teoria é especialmente encontrada em diálogos como o
Fédon e o Parmênides.

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arquétipo que existe em si mesmo, primariamente e absolutamente, segundo a qual as


coisas são primeiramente formadas. A diferença entre Ideia e coisa está no fato de que
Ideias são, perfeitamente, aquilo do que coisas são, imperfeitamente. Além disso, sua
similaridade consiste no fato de que há uma e mesma essência que é perfeita na Ideia e é
imperfeita na coisa. Portanto, Ideia e coisa são similares em princípio. A Ideia do Belo é
ainda mais bela que a coisa, é “o Belo em si”. A Ideia de Homem é muito mais Homem; é o
“Homem em si”. Os antigos designaram esse tipo específico de correspondência
“homonímia”.

Hoje, esta característica no platonismo é dificilmente compreensível por nós, pelo


menos nesta forma tão bruta. Nos próprios trabalhos platônicos é muito confuso quando
lemos, por exemplo, que a Ideia de Tamanho é em si maior que a Ideia de Pequenez; ou que
a Ideia de Soberania em si governa como um “governante” humano sobre a Ideia de
Escravidão, enquanto esta última serve à primeira tal como um escravo humano serve a
um mestre humano. Toda uma série de aporias da methexis (participação) no diálogo
Parmênides está baseada na anfibolia dessa homonímia.

A dificuldade metafísica torna-se ainda pior quando consideramos que, desta forma,
uma dualidade dos dois mundos sem qualquer diferença qualitativa real é postulada, quase
uma tautologia vazia, uma duplicação do mundo sem enriquecimento genuíno do conteúdo
do mundo ou de sua compreensibilidade. Seria difícil de acreditar que o sentido da Teoria
das Ideias consista nisso. As concepções de methexis nos escritos mais bem conhecidos, de
qualquer forma, deixam essa impressão. A homogeneidade qualitativa da Ideia e da coisa
não pode ser inferida das formulações do próprio Platão, nem mesmo em seus escritos
mais tardios. Nestes, o conceito de symploke23 transforma o conceito de methexis, deixando
de ser um eixo vertical unidimensional para se tornar um eixo horizontal, no qual a
participação das Ideias entre elas mesmas substitui a noção da participação das coisas nas
Ideias. O conceito de uma arché é claramente concebido em sua pureza e sentido universal,
pois o ser-uma-condição da Ideia [Bedingugsein der Idee] para coisas é, e continua a ser, o
cerne da questão por todos os textos. No entanto, não se compreende que uma condição
não precisa ser similar ao condicionado – aliás, não se compreende que ela deva
necessariamente ser dissimilar ao condicionado. O Erro da Homogeneidade é baseado
nisso. Ele passou da Teoria das Ideias para uma inumerável série de sistemas (o quão

23 NT: O termo em grego é συμπλοκή (symploke), especialmente nos diálogos Parmênides e no Timeu. Tal
como Hartmann aponta, este conceito substitui a methexis individual por uma espécie de participação das
Ideias nas Ideias, uma “comunidade” das Ideias entre si mesmas, para indicar que uma não existe em absoluto
isolamento em relação a outras.

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diferentes que possam ser), chegando até o período moderno. Pode-se chamá-lo, com
razão, de “Erro Platônico”.

Este Erro não é tão ingênuo quanto aparenta ser em Platão, que nunca se dedicou
sistematicamente a traçar todas as consequências dele e que, no final das contas, cancelou
[aufhebt] a duplicação do mundo. Princípios devem explicar o incompreensível no
fenômeno, mas como podem esses princípios explicarem as coisas se os princípios são
apenas a recorrência ao conteúdo agora purificado do que, de alguma maneira, já estava
nas coisas? O que ficou de ser explicado já é pressuposto nelas. Dessa forma, nada é
explicado por tais princípios. Como fundamentos metafísicos, eles são puros idem per idem
[uma definição circular] (lembre-se da mais recente teoria das “qualidades ocultas”!). Mais
precisamente, eles são generalizações descritivas daquilo que recorre com certa
regularidade (até mesmo com legalidade) na multiplicidade de coisas. Em muitas
concepções posteriores, a saber, no realismo conceitual escolástico, eles são de pronto a
hipóstase dessas generalizações. Eles não são, todavia, formulações daquela legalidade na
base da qual a recorrência do mesmo em meio à multiplicidade acontece.

O último ponto a ser considerado é qual o requisito para se compreender o


problema das categorias. Apenas no início do período moderno é que conseguimos ter uma
consciência filosófica clara sobre esse requisito. A nova ciência natural cumpriu o maior
papel nesta reviravolta onde, em seu campo restrito, primeiro surgiu a ideia de que a
investigação sobre os princípios deve ser a investigação da legalidade – e que leis podem
qualitativamente mostrar uma face essencialmente diferente em relação àquilo que é
baseado nelas ou que existe através delas. Esta investigação também trouxe consigo a
reformulação do platonismo na filosofia24. Este processo, no entanto, ainda não se
completou.

De um modo geral, para serem um princípio dos fenômenos, as categorias não


precisam ser postuladas como sendo o mesmo em princípio tal como o concreto que delas
depende. Assim como o seu modo de ser é diferente em natureza daquele dos fenômenos
(e Platão sabia disso bem), sua constituição estrutural deve também ser diferente. Apenas
ao deixar de lado o velho postulado da homogeneidade é que o caminho estará livre para
uma frutífera pesquisa das categorias. Apenas a Análise Categorial, todavia, pode, em cada
caso, descobrir qual é a relação substantiva positiva entre o princípio e o concreto.

24NT: Escrevendo mais ou menos na mesma época, embora independentes, Alfred N. Whitehead também
buscava repensar a herança de Platão sob a luz das ciências contemporâneas no começo do século XX. Em
Processo e Realidade (1929), Whitehead decididamente constrói um sistema de cosmologia metafísica que
combina elementos do Escólio de Isaac Newton com o Timeu de Platão, além de ele próprio ter desenvolvido,
concomitantemente a Einstein, uma teoria da relatividade e uma nova teoria da extensão. Cf. Mohanty (1957)
que foi um dos primeiros a trabalhar este pano de fundo platônico comum a Whitehead e a Hartmann.

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3.2 O Erro do Chorismos [Der Fehler des Chorismos]

Nós também habitualmente associamos o nome de Platão à ideia de um segundo


preconceito – e a polêmica aristotélica contra a Teoria das Ideias fez esse erro histórico
quase inerradicável. Pelo termo “chorismos” [χωρισμός] entendemos aquele destacamento
ou separação das Ideias e das coisas. Platão falou do “ser-em-si” [καθ’ αὐτό] das Ideias, da
eternidade delas acima e além de todo tornar-se, representado pelo seu modo de ser
mitologicamente tal como “em um lugar celestial”. Baseado nisso, o dogma de uma
transcendência ontológica das ideias foi criado25. Assim, a solene pergunta de como é que
as coisas tardiamente participam das Ideias pôde surgir.

Esta pergunta se torna impossível de ser respondida assim que se aceita o


chorismos. Platão desenvolveu a aporética do chorismos de uma maneira exemplar no
Parmênides. Uma Ideia que está além do mundo das coisas requer, para a sua conexão com
as coisas, uma segunda Ideia – mas esta requer, para sua conexão com a anterior, uma
terceira Ideia, e assim ad infinitum. Desde Aristóteles, este argumento vem se chamando
τρίτος ἄνθρωπος26. No entanto, Ideias desconexas das coisas não podem ser princípios das
coisas. Um Deus que possuísse tais Ideias poderia por elas conhecer ou dominar coisas tão
pouco quanto um homem que, restrito à esfera das coisas, poderia conhecer ou dominar as
Ideias. Essa intuição infértil foi injustamente atribuída a Platão, mas ninguém lutou tanto
contra isso como ele o fez. Visto que tal intuição proliferou em seu tempo e, aparentemente,
também em sua Escola27 posteriormente, ela permaneceu historicamente atrelada a seu
nome.

Esse preconceito pseudoplatônico tem sido notadamente longínquo, apesar de sua


fraqueza ter sido reconhecida desde o começo. Podemos achar seus traços até na Crítica da
Razão Pura, onde as categorias primeiro necessitam de um tipo particular de dedução para

25Devemos entender a transcendência “ontológica” genuína e não a já óbvia transcendência gnoseológica.


Esse dogma descreve a esta posição das ideias de estar além em relação ao mundo, não ao sujeito.
26 NT: A crítica conhecida como “argumento do terceiro homem” é uma das principais acusações de
Aristóteles contra a Teoria das Ideias de Platão. No entanto, como Hartmann observa, o próprio Platão, no
diálogo Parmênides, já observa este problema. De forma um pouco grosseira podemos resumir que, ao
analisar a Ideia de μέγεθος (Grandeza), Platão percebe que para avaliar a “maior grandeza” ou a “menor
grandeza” de uma Ideia, ainda outra ideia de Grandeza é necessária, o que mostra que o argumento não é
bem-sucedido. Assim, o suposto comprometimento dogmático de Platão com o chorismos não é um
argumento tão sólido.
27NT: Aqui ele faz referência à famosa Academia Platônica, liderada por seu sobrinho, o também filósofo
Espeusipo (408-339 a.C.), no período conhecido como “Velha Academia”. Nesta época, os escolarcas
(“diretores” da Academia) e os discípulos se contentavam em tratar os diálogos de Platão não como convites
à pesquisa e ao raciocínio hipotético, mas como dogmas, minando o potencial investigativo e contribuindo
para reduzir Platão a um mero “platonismo”.

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demonstrar sua “aplicabilidade” aos objetos de experiência. Aqui também as categorias são
originalmente postuladas com certo chorismos – e o papel de “lugar celestial” é cumprido
aqui pelo “sujeito transcendental”. Não é autoevidente que a esfera dos objetos está contida
neste último, para dizer o mínimo, nem mesmo que é compreensível em termos da essência
das categorias em si. Categorias que deveriam ser pensadas como princípios das coisas
desde o começo obviamente não iriam requerer nenhuma dedução subsequente28.

O que é preciso, para o problema das categorias, é um modo de ser para seus
princípios que os faça, por sua natureza, imanentes a toda a amplitude de seu domínio de
validade [Geltungsgebiet]. Ou então, reversamente, o mundo das coisas para o qual os
princípios são válidos deve ser parcialmente imanente à esfera dos princípios – talvez
emergir deles ou ser suportado por eles. Toda outra concepção dos princípios é uma
distorção da ideia de uma categoria. O Platão tardio tinha a segunda das duas
possibilidades em mente quando ele levou a sério a ideia de que toda estrutura concreta
primeiramente vem a ser no entrelaçamento das Ideias. Da mesma forma, de acordo com
a concepção leibniziana de scientia generalis, a dedução real-ontológica de todas as coisas
está enraizada em um tipo de estratificação e contínuas dobras dos simplices.

3.3 O Erro da Heterogeneidade [Der Fehler der Heterogenität]

Mais universal, mas também relacionado ao Erro do Chorismos, é o Erro da


Heterogeneidade. Ele também diz respeito a um distanciamento errôneo entre princípio e
concreto – não em termos de transcendência, mas em termos de dissimilaridade de
conteúdo ou de não-aplicabilidade estrutural. Ele é a contrapartida ao Erro Platônico [o da
Homogeneidade], sua inversão, por assim dizer, o extremo oposto e tão perverso quanto.

Todas as teorias unilaterais cometem este Erro na medida em que elas


universalizam os princípios de um certo grupo de fenômenos e os estendem para além de
seus domínios naturais de validade. Os pitagóricos o cometem com a proposição de que os
números são o princípio de todas as coisas – o matematismo contemporâneo faz a mesma
coisa, só que de uma forma um pouco modificada (por exemplo, na Lógica de Cohen).
Categorias matemáticas são definitivamente categorias ontológicas, mas elas não são as
únicas; até fenômenos naturais contém elementos qualitativos e relacionais os quais não
permitam que sejam reduzidos a meras relações de magnitude. Isso é ainda mais
claramente o caso para o mundo dos viventes, no qual o fator quantitativo aparentemente
tem apenas um papel de subordinado. Uma heterogeneidade falsa entre princípio e

28 Podemos também inverter a perspectiva histórica e, olhando para trás, ver as grandes investigações
dialéticas no Parmênides de Platão como um tipo de “dedução transcendental” das Ideias, sem nenhum
subjetivismo, claro. É precisamente a ponte entre o chorismos das Ideias que é precisamente feita por essas
investigações: a symploke leva à “contraparte da Ideia”, o concreto.

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concreto é introduzida aqui. Ela se manifesta como uma completa insuficiência dos
princípios quando comparados com os problemas reais.

O exemplo mais conhecido desse Erro ocorre no chamado materialismo – aqui,


levado a um extremo grotesco. Categorias físico-naturalistas são alegadamente o suficiente
para explicar a vida espiritual, o fenômeno da consciência, do pensamento, da vontade, etc.
O mesmo serve para qualquer tipo de biologismo ou evolucionismo, onde estes mesmos
fenômenos hão de ser explicados usando as categorias do plano orgânico. Ao longo dessas
considerações, a inadequação das categorias está no fato de que são demasiado pobres de
conteúdo, não tocando o nível estrutural das formas concretas.

Esta não é sempre a única razão para a inadequação. No psicologismo, por exemplo,
temos o contrário, na medida em que as estruturas cognitivas ou do pensamento devem
ser explicadas a partir de elementos mentais, embora sua estrutura fundamental seja
objetiva-objectual29. A situação é, de novo, diferente com o logicismo, o qual
indiscriminadamente atribui a todos os fenômenos formas da esfera lógico-ideal. De forma
mais geral, sistemas como o panteísmo também estão aqui, impondo princípios
teleológicos à natureza. Também idealismos de todos os tipos, ao atribuírem categorias
subjetivas a objetos; bem como o personalismo, o qual tenta entender todas as regiões de
fenômenos por analogia com seres pessoais e inúmeros outros pontos de vista.

Todas as abordagens filosóficas que são conhecidas por seus “-ismos” cometem o
mesmo erro em princípio, não adiantando o quanto eles se diferenciem uns dos outros de
alguma forma. Um cerne da verdade está em todos eles – e os princípios com os quais eles
operam se aplicam legitimamente a uma pequena região da realidade, mas se tornam
ilegítimos quando aplicados ao todo. Hegel estava correto quando afirmou que todo
sistema filosófico tem seu lugar legítimo no todo da filosofia. Isso está correto apenas
dentro nos limites traçados pela estrutura de seus próprios princípios, todavia. Todo
sistema tem seu domínio central legítimo. É uma travessia ilícita de fronteiras quando ele
se estende para além de seu domínio central. O Erro da Heterogeneidade consiste nessa
aplicação ilícita além dos limites de um domínio adequado de uma categoria.

29NT: A expressão original é “objektiv-gegenständliche”. Embora seja inusual, há razões kantianas para este
uso. No decorrer de sua obra, Kant fala de pelo menos três tipos de objetos: a coisa como objeto a ser
conhecido (Sache); aquilo que aparece da coisa e é conformado com as categorias da experiência (Gegenstand
ou “objeto da experiência”); e aquilo sobre o que, vindo da experiência, podemos racionalmente refletir,
especular, fazer analogias, procurar postulados etc. (Objekt, ou “objeto da razão”). Vemos que Hartmann
mantém a lição kantiana ao pensar a cognição como algo que, embora se dê a partir da coisa (Sache) que
aparece (fenômeno), a estrutura cognitiva é uma de condições gerais da experiência com os objetos
(Gegenstand) que está direcionada a uma objetividade racional (Objekt) possível de ser manejada pela
ciência, pela especulação e pelo quotidiano. Assim como o velho Edmund Husserl, Hartmann se posiciona
decididamente contra o psicologismo por motivos semelhantemente kantianos, embora cada um acrescente
suas considerações próprias.

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30O
requisito positivo para a Teoria das Categorias que resulta de todo o sobredito é
o seguinte: cada domínio dos fenômenos deve ter o seu próprio conjunto de categorias que
pertence apenas a ele. Na medida em que eles se estendem para um domínio de fenômeno
diferentemente construído, estruturalmente “superior”, por assim dizer, eles podem
apenas performar um papel subordinado e nunca dizer respeito ao que é distintivo sobre
esses fenômenos. Não se segue deste postulado que certos princípios não poderiam
também ter significância compreensiva como tal. Para descobrir como, em que medida e
para o quê eles são válidos é o trabalho de uma investigação particular, uma Análise
Categorial orientada para a particularidade do fenômeno em si – e a última palavra sobre
o assunto nunca pode estar em nada se não nisto31.

3.4 O Erro da Formalidade e da Conceitualidade [Der Fehler de Formalität und der


Begrifflichkeit]
Na distinção entre matéria e forma que existe na base da metafísica aristotélica, a
forma adquire o caráter do princípio ativo, conformador, determinante; enquanto a
matéria adquire aquele caráter do que suporta a transformação, o passivo. Agora, já que
“princípio” em sentido estrito é apenas determinante e nunca o determinado, surgiu o bem
conhecido preconceito de que a essência de um princípio é basicamente formal. Uma
Teoria das Categorias baseada nessa proposição automaticamente tem a desvantagem de
que ela não tem propósito algum para a matéria, excluindo-a de seu sistema como o “sem-
princípio” [Prinzipienlose] em si, por assim dizer. Categorias da matéria como tal seria uma
contradição em termos. Isso já tem uma dupla consequência em Aristóteles: a matéria
universal (“primordial”) não é aquela de coisas individuais, uma vez que nelas a matéria já
seria especializada, diferenciada. Sendo assim, como pode a matéria se diferenciar de si

30 NT: Para esclarecer este ponto, pode ser útil ao público dizermos que Hartmann apresenta duas esferas do
Ser, cada uma com estratificações diferenciadas internas e com leis categoriais próprias. A esfera do ser ideal
engloba a lógica, a matemática, as essências fenomenológicas e os valores. A esfera do ser real, por sua vez,
tem os estratos físico, orgânico, psíquico e espiritual/social. A crítica de Hartmann é que cada um destes
estratos ou níveis têm uma autonomia ontológica própria – o que significa não um isolamento, mas uma
muito peculiar e muito bem trabalhada forma de interrelação entre as esferas e os estratos. Sua crítica aos “-
ismos” significa, em termos gerais, tomar uma região ontológica ou um elemento desta e generaliza-la todas
as outras ontologias: fisicalismo, logicismo, espiritualismo, psicologismo, biologismo, matematismo, e assim
sucessivamente. A “heterogeneidade” se torna mais evidente, assim: tratar leis da gravitação pelo biologismo,
ou tratar dos atos transcendentes afetivos pelo fisicalismo (e etc.) são erros por aplicarem leis categoriais em
domínios heterogêneos, diferentes, de sua esfera jurisdicional categorial próprias, por assim dizer. Situação
similar seria como confundir direito penal com direito das famílias, ou confundir a jurisdição de um país com
a de outro, trocar agravo de instrumento por agravo regimental, interpretar o princípio da legalidade no
direito civil como se fosse o mesmo no direito administrativo.
31 NT: Este é o trabalho da Análise Categorial de domínios específicos, tal como levado a cabo no quarto

volume da Ontologia em relação à ontologia regional do estrato físico e do estrato do orgânico. Além desse,
em O Problema do Ser Espiritual, Hartmann analisa as categorias do espírito pessoal (personalidade), do
espírito objetivo (coisas como história, cultura, linguagem e afins) e do espírito objetivado (objetos técnicos
e objetos da arte). Cada um com suas leis categoriais próprias e bem-definidas em sua especificidade que
existem ao lado de leis categoriais fundamentais, modais e leis metacategoriais (relação entre conjuntos de
categorias diferentes).

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Nicolai Hartmann

mesma para fora de si? Não deveria ela conter determinações, isto é, princípios sui generis?
Para Aristóteles, essas determinações eram “acidentais” (symbebekota). No entanto, tal
conclusão apenas adia a lida com o problema.

A base do preconceito aristotélico é tanto teleológica quanto lógica. A forma pura é


tornada sinônima, por um lado, da causa final (a “primeira enteléquia”) e, por outro lado,
do conceito (eidos, natureza, essência). Ela é o conceito que exclui categoricamente tudo de
material ou que se assemelhe ao substrato. Essa é a raiz da atitude que manteve a ontologia
nas correntes da lógica por tanto tempo, além de fazer a ontologia e a lógica se tornarem
ambíguas. Princípios são conceitos de princípios, a forma substancial é a essência lógica.
Essa interpretação proveu uma solução notavelmente enxuta para o problema do a priori,
mas, por conta disso, o apriorismo ele mesmo foi expandido para além de seus limites
naturais.

O preconceito da formalidade e da conceitualidade de princípios, conjuntamente,


constituem o duplo Erro Aristotélico. Ambos reinaram virtualmente sem limites na
escolástica e no racionalismo moderno. Mais interessante é o fato de que ambos, aplicados
em um sentido subjetivo, também podem ser novamente encontrados em Kant. Em Kant,
um sistema de formas da cognição se ergue contra a matéria da cognição: a “síntese” que
aquelas executam nesta é, em princípio, a mesma determinação do em-si indeterminado,
tal como no sistema aristotélico. A tese é apenas moderada pelo fato de que a “matéria”,
neste caso, já possui sua própria forma particular (espaço e tempo). A despeito disso, a
ênfase aqui também está, ao lado do caráter formal, na conceitualidade. Categorias são
“conceitos puros do entendimento” – e Kant não sabe como as pensar de outra maneira.
Nisto, ele é um puro aristotélico não menos do que os da velha escola.

O maior triunfo do aristotelismo é celebrado na Lógica de Hegel: a Dialética dos


Conceitos imediatamente alega ser uma Dialética do Ser, do Mundo, da Natureza, do
Espírito, i.e., a incluir absolutamente tudo. Por mais exemplar que essa grande tentativa
possa, em si mesma, ser como um ideal para a philosophia prima, ela também é, apesar
disso, a deductio ad absurdum histórica da velha tese da dupla identidade: Princípio =
Forma = Conceito. É precisamente sua execução universal que demonstra
impressionantemente a falsidade em suas conclusões. As categorias de Hegel estão longe
de serem meras formas, mas o aparato conceitual dialético nem mesmo contém, em si
mesmo, o elemento formal de forma completa.

Para uma Teoria das Categorias que não deseje errar em seu alvo, há a demanda de
claridade incondicional sobre ambos os preconceitos aristotélicos.

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Tradução: Como é possível uma Ontologia Crítica?

Primeiramente, apliquemos o princípio: categorias [Kategorien] são fundamental-


mente diferentes de conceitos categoriais [Kategorienbegriffe]. Conceitos são geralmente
apenas tentativas de compreensão, algo completamente post hoc e secundário e, mesmo
que a compreensão conceitual seja adequada, o conceito ainda não é a coisa com-
preendida. Geralmente, no entanto, ele é inadequado. O fato de que há uma história de
categorias conceituais prova isso, a saber, mostra que há um processo que é, na mais
favorável das circunstâncias, um processo progressivo de adequação – enquanto aquilo
que é para ser compreendido, a categoria ela mesma, permanece inalterável além de toda
a história dos conceitos. Categorias existem em si mesmas, independentemente de toda
tentativa de compreensão conceitual e lhes são indiferentes. Elas determinam as entidades
concretas conectadas a elas segundo suas próprias legalidades imutáveis. Isso é válido na
mesma medida para categorias ontológicas assim como categorias epistemológicas, cujas
funções em uma consciência cognoscente não têm nada a ver com a concepção desta função
em si mesma. Elas são tão independentes de conceitos quanto as leis da natureza. Elas
serem formuladas em conceitos apenas começa com sua descoberta na teoria do
conhecimento – sua função, no entanto, evidentemente precede tal descoberta.

Em segundo lugar, devemos conseguir chegar na mais difícil das conclusões: não há
razão alguma para se limitar a essência das categorias à forma ou à estruturas relacionadas,
tais como leis e relações. Categorias que não contenham nada de substrato (nada que não
possa ser reduzido a uma forma, lei ou relação32) nunca estarão em uma posição de
embasar as estruturas, que deveriam ser os princípios que supostamente estão por todas
as formas concretas, visto que tais estruturas têm substrato. Apenas podemos escapar do
cansativo dualismo da “forma e matéria”, de uma vez por todas, se incorporarmos o fator
material nos princípios. Não há absolutamente nenhum outro jeito. Todavia, incorporar o
fator material neles não é nada menos que paradoxal. Na verdade, isso pode ser
fenomenologicamente justificado com facilidade, se se baseia na Análise Categorial em si.
Há toda uma série de categorias – espaço, tempo, substância e causalidade sendo apenas
as mais representativas, mas de forma alguma as únicas – nas quais momentos de substrato
[Substratmomente] são claramente demonstráveis.

32 NT: Este argumento, um pouco inusual para os acostumados com o discurso filosófico da modernidade,
pode ser melhor explicado pela apropriação que o filósofo contemporâneo Graham Harman, da ontologia
orientada a objetos, faz do princípio das irreduções de Bruno Latour. Dizer que um objeto é uma quadratura
do que é real e do que é sensual, do que é objectual e do que é qualitativo, implica dizer, entre outras coisas,
que o objeto real não é redutível às suas qualidades sensuais (aparências, por exemplo) ou às suas qualidades
reais (que Hartmann nomeia como formas, leis e relações). Ou seja, os conceitos de objeto real de Harman e
o de substrato de Hartmann asseguram a irredutibilidade do objeto tanto em relação às suas partes
constitutivas, como também aos seus efeitos e leis. O objeto/substrato é sempre excessivo, é sempre
irredutível à sua composição e aos seus efeitos. Cf. Harman, 2018.

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Nicolai Hartmann

Provar isso é, claro, tarefa para outra investigação que pode acontecer apenas
mediante uma análise das categorias individuais elas mesmas.33 Para nosso propósito de
agora, será suficiente os insights de que a restrição a elementos formais não está na
essência das categorias de forma alguma; e que tal restrição tem sido introduzida
arbitrariamente na Teoria das Categorias por motivos puramente especulativos. É
imediatamente óbvio que, assim que este preconceito é abandonado, uma abundância de
aporias artificiais se desmancham – aporias estas que injustamente bloqueavam o caminho
para uma teoria dos princípios. Os mal-entendidos mais incuráveis têm sempre sido
nutridos na aparente oposição entre matéria e a essência dos princípios.

3.5 O Erro da Subjetividade [Der Fehler der Subjektivität]

A interpretação de categorias como entidades enraizadas no sujeito – o que eu


gostaria de já chamar de Erro Kantiano – está intimamente relacionada historicamente
com o duplo Erro Aristotélico, mas não o é, de forma alguma, simplesmente uma
consequência. O aristotelismo de todas as eras entendeu o “conceito” como algo
precisamente não subjetivo (até na medida em que ele era válido como um princípio da
cognição). Em contraste, a tese aqui é que princípios pertencem ao sujeito, mas o concreto
para o qual eles são válidos é o objeto. As duas dimensões contrapostas “sujeito-objeto” e
“princípio-concreto”, alinhados ortogonalmente por natureza, são aqui, se não diretamente
tidos como equivalentes, então pelo menos tornados unidirecionais, colocados
artificialmente em paralelo um ao outro. É óbvio que essa caracterização é justificada
apenas em uma perspectiva idealista: uma vez que o concreto é dependente de seus
princípios; e que estes devem ser encontrados no sujeito, então parece que, aqui, o objeto
é determinado pelo sujeito. O que leva a tal suposição é a independência de intuições a
priori quanto ao objeto “dado”, sua existência no sujeito antes da experiência. Como isso
poderia ser possível se os princípios do objeto não estivessem no sujeito?

Este é, de fato, o argumento genuíno de Kant. A fórmula de seu próprio “princípio


supremo”35 já prova que ele é inválido, que até admite uma interpretação completamente
diferente do fenômeno do a priori que, mesmo assim, completamente satisfaz os mesmos
fatos. Esta é, também, a razão para a necessidade da “Dedução Transcendental”. Aquilo que
divide princípio e concreto aqui pertence ao esquema mais geral do chorismos, como
mencionado acima. No entanto, este não é um simples chorismos, visto que a relação
transcendental não existe entre princípio e concreto como tais, sendo, na verdade, trazida

33Mais sobre isso pode ser encontrado em Logos, V, 1914–1915, ‘Über die Erkennbarkeit des Apriorischen,’
pp. 319ff., e nesse volume p. 211, além de em Grundzüge einer Metaphysik der Erkenntnis, Berlin 1921, pp.
208ff.

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para ela através da relação entre sujeito e objeto. A relação entre princípio e concreto é
erroneamente pensada como equivalente desta relação sujeito e objeto. Tal relação
transcendental faz uma ponte entre os termos apenas por meio da “Dedução” – e esse é o
significado da prova da “aplicabilidade” dos conceitos puros do entendimento a “objetos
de experiência possível”. 34

Essa aporia é gnoseologicamente válida, pois o sujeito faz juízos sintéticos a priori
sob suas próprias categorias subjetivas; e é questionável sobre estas últimas se elas
também têm validade para o objeto. Ontologicamente, todavia, a aporia é falsa; i.e., nós não
podemos relacioná-la ao problema das categorias de forma alguma, visto que ela não surge
separada do problema do conhecimento a priori. Sob uma leitura ontológica, ele é uma
aporia artificial, gerada apenas pela perspectiva idealista, persistindo ou caindo com ela. É
um preconceito teórico que o objeto em si (e não meramente a cognição do objeto) também
tenha seus princípios no sujeito. Na verdade, o objeto evidentemente tem princípios
próprios que antecedem qualquer cognição e não precisa recebê-los primeiramente
advindos de outro lugar. A aporia gnoseológica válida no problema da Dedução torna-se
significativa, pela primeira vez, desta maneira. Apenas com base nisso que importa se os
princípios epistemológicos (de acordo com os quais os juízos sobre o objeto são feitos a
priori) também pertencem às determinações ontológicas do objeto existindo em si mesmo,
as quais estão abaixo de outros princípios, as categorias ontológicas.

O idealismo kantiano é um idealismo de princípios, não de coisas (já que esses


continuam, para ele, “empiricamente reais”) – um idealismo não do sujeito empírico, mas
do sujeito “transcendental”, como o portador de princípios, sendo, neste sentido,
corretamente nomeado de “idealismo transcendental”. Ele é uma tentativa de solução, não
uma declaração do problema. Aqueles que falham em separar os níveis dos problemas na
Crítica da Razão Pura sempre se esquecem disso. Claro, neste ponto Kant é o herdeiro de
uma tradição muito mais antiga, uma que torna quase impossível para ele entender o termo
“princípio” como qualquer coisa que não o subjetivo, ou as funções de uma consciência. Por
essa razão, não apenas precisam as doze categorias serem “conceitos do entendimento”,
espaço e tempo também são válidos para ele precisamente pela mesma razão como “meras
formas da intuição”. É como resultado dessa caracterização que o mal-entendido
inerradicável que opõe “princípio e objeto” (e que toma isso como uma oposição originária
e fundamental) permanece enraizado até hoje. Não percebemos que ele esconde a fusão
totalmente inadmissível de dois pares contrastantes e heterogêneos: “sujeito-objeto” e

34NT: Para esclarecer este ponto, o tradutor para o inglês, Keith Peterson, cita o trecho da Crítica da Razão
Pura no qual este “princípio supremo” aparece. Citamos da edição portuguesa: “O princípio supremo de todos
os juízos sintéticos é, pois, este: todo o objeto está submetido às condições necessárias da unidade sintética
do diverso da intuição numa experiência possível” (Kant, 2018, B197).

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“princípio-concreto.” Todo um embolado de erros fundamentais está escondido nesta


confusão terminológica. Mas a tradição na qual esta confusão está baseada nos leva para
muito antes, através do intellectus infinitus dos escolásticos até o Livro Lambda da
Metafísica de Aristóteles, onde, pela primeira vez, o “nous”35 é honrado como o portador
coletivo de toda “pura atualidade”, a saber, de todos os princípios formativos. É portador
porque o nous é puro pensamento e tem a forma de um sujeito universal. É o genuíno ponto
histórico de origem de todo subjetivismo metafísico posterior enquanto ele mesmo,
interessantemente, ainda permanece “deste lado” da emergência do todo problema
sujeito-objeto subsequente.

Praticamente não precisamos mencionar que o Erro Kantiano retorna com força
máxima no neokantismo. Não precisamos nos preocupar com todos os outros crescimentos
subsequentes do subjetivismo nos tempos recentes, especialmente com os numerosos
tipos de psicologismos. Julgando por suas atitudes e métodos, eles definitivamente não
podem ser contados como estando entre aqueles que lidam com o problema das categorias.
Mesmo onde eles, à sua maneira, falam de categorias, eles não estão familiarizados com o
problema. A deformação “pragmática” do problema também é de pouca preocupação para
nós. Aqueles que explicam as categorias como ficções (por exemplo Vaihinger36)
aparentemente não têm nem noção de que o que está em questão aqui é uma existência de
princípios independente que zomba de quaisquer “como-se” humanos.

Agora, o que a ideia de philosophia prima requer à luz desse problema? Isso é fácil
de se dizer. Ela requer o reestabelecimento da relação natural entre os pares contrastantes
“sujeito-objeto” e “princípio-concreto” em sua dimensionalidade cruzada ou
ortogonalidade [Senkrechtstellung]. Consciência e objeto devem, cada um, terem suas
próprias categorias, assim como eles são dois tipos de concretos completamente
heterogêneos. Como, então, os dois sistemas de princípios se relacionam um com o outro é
uma questão adiante para a pesquisa das categorias em si mesma, sendo impossível de se
decidir antes de tal pesquisa baseando-se apenas em perspectivas sistemático-

35 NT: Aqui, Hartmann faz referência ao νοῦς (nous), um conceito comum na filosofia grega antiga que, ao
menos desde Anaxágoras, significava algo como uma mente cósmica que ordenava aquilo que é. Embora sua
leitura fosse fisicalista/materialista, ela influenciou Sócrates e Platão a pensarem o nous como algo além do
que meramente dá “causa” às coisas, mas um desenho complexo dos deuses que aproxima as cosias do Bem.
Obviamente, o conceito é de difícil exposição e facilmente será apropriado pelas teologias do Oriente Médio,
passando a significar algo como o tal “intelecto divino” do deus judaico-cristão ou islâmico que os helenistas
tardios e escolásticos vão defender. Cf. também a nota 8.
36 NT: Hans Vaihinger (1852-1933) era um dos famosos neokantianos da época de Hartmann que é
especialmente conhecido pelo seu ficcionalismo, doutrina que aparece na sua obra “Filosofia do Como Se”,
reduzindo todo o conhecimento humano a uma coletânea de metáforas, ficções pragmaticamente úteis. Seu
antirrealismo chegava ao ponto de dizer que átomos e elétrons não existem, mas os cientistas dizem que sim,
“como se”, de fato, existissem, para fins puramente pragmáticos.

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especulativas. É, de fato, fácil de se prever que eles devem pelo menos parcialmente
coincidir um com o outro, mas permanece aprioristicamente autoevidente que, mesmo em
sua coincidência relacional, uma tal categoria não pode simplesmente ser a mesma ao
cumprir um papel como categoria cognitiva e como categoria ontológica.

Toda a região do concreto deve ter seus próprios princípios; para a consciência,
princípios da consciência; para o conhecimento, princípios da cognição; para o ser
enquanto ser, seus próprios princípios ontológicos; e, claro, para o ser real, princípios do
real; para o ser ideal, princípios do ideal. O Erro da Subjetividade pode ser visto, desta
perspectiva, como um caso especial de Erro de Heterogeneidade, visto que ele também
consiste no empréstimo de certas categorias regionais e sua aplicação ao todo – neste caso,
usar categorias subjetivas para o objeto real. A diferença entre esta usurpação e outras
similares está apenas no maior grau de consequências para o problema das categorias do
ser, mas também na altura especulativa e no poder imanente dos sistemas que foram
baseados nela.

3.6 O Erro do Normativismo [Der Fehler der Normativismus]

Recentemente, Rickert e sua escola37 propuseram a teoria de que categorias são


normas e que sua genuína essência é axiológica. De acordo com essa interpretação, atrás
de todo Ser [Sein] há um Dever-Ser [Sollen] – este aparece nos princípios como “validade
para algo”. O onticamente real é subordinado à perspectiva de valores dessa maneira,
despindo-o de sua autonomia. O fato de que os mais proeminentes representantes dessa
teoria são idealistas nada tem a ver com a tese em si. A tese é de fato comum a todos os
sistemas teleológicos, sem distinção entre idealismo e realismo. Sua fusão com idealismo
vem desde Fichte (por isso vou chamá-lo de Erro Fichteano), quem expandiu a “primazia
do prático” kantiana ao ponto de que todo o ordenamento ontológico é de ser visto como
autodeterminação de uma atividade absoluta. Dessa forma, o caráter do Dever-Ser é
transferido para os princípios. Na época de Fichte já se fez a objeção de que a legalidade
peculiar à natureza, em contraste àquele do Dever-Ser, é perdida dessa forma. Hoje, não se
pode evitar de fazer tal objeção a Rickert e a Lask, de que o problema ontológico já foi
decidido de antemão por eles – claro, não em favor à esfera subjetiva, mas em favor da
esfera dos valores.

É claro, para o idealismo deontológico, isso é bem apropriado. Todavia, o problema


das categorias é fundamentalmente falsificado dessa forma – independentemente, de fato,

37NT: Heinrich Rickert (1863-1936), ao lado de seu orientador, Wilhelm Windelband, fundaram a chamada
Escola de Baden do neokantismo. Esta, diferentemente da de Marburgo, focava na Crítica da Razão Prática e
na discussão dos valores, da ética e do direito. Entre seus alunos, destacam-se os sociólogos George Simmel
e Max Weber – além de Martin Heidegger, que começa sua carreira como professor assistente de Rickert.

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de o normativismo ser metafisicamente justificado ou não. Isso é precisamente o que está


em questão, podendo ser determinado apenas por uma análise acurada de relações
intercategoriais. Apenas tal análise pode determinar se princípios ontológicos estão
sujeitos a princípios axiológicos, ou talvez os axiológicos aos ontológicos, ou nenhum
desses; além de determinar no que consiste em geral a relação positiva entre ambos os
tipos de princípios. Assim, aqui também há uma usurpação de um pelo outro por
prejulgamento especulativo a favor da primazia do valor, um cruzamento ilícito de
categorias a um território estrangeiro, um “-ismo”. Resumindo, uma versão do Erro da
Heterogeneidade.

Agora, esta versão do Erro conquistou uma certa significância na história do


pensamento filosófico que é facilmente visível quando deixamos de lado interpretações
idealistas dele. Apesar de ser facilmente detectável, este Erro é talvez o mais pervasivo –
apenas alguns sistemas (e nem mesmo os mais significantes) evitaram-no. A maior parte
dos melhores tipos de Weltanschauung filosóficos é, em princípio, teleológica. Um
normativismo palpável já existe na teoria platônica das Ideias: as Ideias são os Ideais do
ser, assim, todas as coisas têm a propensão a imitá-las, embora não cheguem à sua
perfeição. Similarmente, a finalidade aristotélica de processos naturais é conhecida como
o telos da formação, a enteléquia. Esse tipo de teleologia ainda reina ininterrupta, embora
numa variedade diversa de manifestações, tais como na Escolástica, em Nicolau de Cusa,
em Giordano Bruno, Leibniz, Schelling, Hegel, Schopenhauer, Lotze e Eduard von
Hartmann.

É da natureza de toda teleologia de ser fundamentada axiologicamente. A tese


central é o primado do valor, seja ele um valor numericamente singular ou todo um sistema
de valores. A atividade orientada a fins [Zwecktätigkeit] é condicionada pela validade
absoluta de certos conteúdos, os quais aparecem como pontos de orientação ou como os
objetivos que colocam em movimento em si [bewegenden Zwecke]. Isto, por sua vez,
pressupõe que eles de alguma forma possuam uma potência por sua própria natureza de
serem metas, i.e., de determinarem o conteúdo em um processo real de tornar-se, de
direcioná-lo e fazer dele um processo significante de atualização. É esta força peculiar que
constitui o caráter axiológico de tais conteúdos. Todo ser-um-fim [Zwecksein] é
necessariamente referido ao ser-valor [Wertsein], independentemente de a qualidade
valorativa desse ser-valor ser, ou não, conhecida. Existem sistemas teleológicos nos quais
essa qualidade valorativa permanece completamente desconhecida – mas, claro, ao menos
uma consciência pelo menos tênue do valor pode espiar através deste desconhecido.

É bem conhecido como tal teleologia está conectada com a ideia de Deus, com a
crença na Providência, e mesmo com o antropomorfismo mitológico, e como os desejos

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mais fortes e eternos da alma humana são mascarados nela como seus motivos mais
intrínsecos. Em certo sentido, todas as teleologias da natureza, do mundo e da história são,
formalmente falando, antropomorfismos. O que elas fazem é atribuir ao processo-mundo,
seja em parte ou no todo, precisamente a mesma ação-por-propósitos que conhecemos
como um fenômeno dado exclusivamente na atividade do ser humano.

Nós não temos que decidir se a imagem teleológica do mundo é metafisicamente


legítima ou não. Apenas a Análise Categorial em si pode contribuir em algo para a resposta
dessa questão. Apenas ela pode averiguar objetivamente, sem viés, o relacionamento
interno da categoria do propósito com outras categorias. Aqui, estamos envolvidos no
trabalho preparatório mais bruto para uma possível Análise Categorial. É muito mais
importante para esse trabalho preparatório que se veja claramente que, em toda
especulação teleológica – não importa o quão sedutora sua perspectiva possa ser – se
esconde uma usurpação ilícita, a categoria do propósito atravessando a fronteira de seu
domínio adequado, uma expansão infundada de sua aplicabilidade que não pode ser
justificada com referência a nenhum fenômeno realmente dado. Não importa como
encaramos a questão, nós só sabemos com certeza que seres humanos são orientados a
fins, que valores são fatores determinantes para eles e servem como normas para eles. Nós
não temos testemunho direto interno que algo similar também se aplique a coisas ou ao
mundo como um todo, não importa o quão impressionante, em muitos casos particulares,
as analogias do desdobrar de seus processos aparentem ser. Todo raciocínio em direção a
um princípio (o propósito determinante real) que for baseado em tal analogia é, e
permanece sendo, uma sub-repção38. Um costume profundo e milenar do pensamento,
enraizado em mitologias populares, praticamente santificou esta sub-repção. Vista
sobriamente, todavia, ela é uma fonte imensurável de distorção de problemas filosóficos.
O problema ontológico é o mais ameaçado por isso. Esse Erro é o maior culpado pela
desconfiança que a ontologia encontra na filosofia até hoje. Tal desconfiança não é
totalmente injustificada, pois um verdadeiro dilúvio bíblico de preconceitos, filosofias
populares pelas metades e ideias totalmente cientificamente inverificáveis estão
arraigados nessa imperceptível sub-repção, que é encorajada e deliberadamente
obscurecida por toda a inclinação demasiado humana da alma e das medidas pelas
metades.

38 NT: O termo subreptio vem do Direito Romano. Era caracterizado como um tipo de fraude em que uma
pessoa consegue algum cargo, benefício, honraria ou vantagem mediante meios fraudulentos, tal como
mentir no currículo para ganhar uma vaga; ou, no direito canônico, conseguir uma graça eclesiástica omitindo
pecados ou inventando milagres falsos. A tradição leibniz-wolffiana na qual Kant se formou, amplamente
influenciada pelo Direito Romano, apropriou-se filosoficamente do termo. O tradutor para o inglês, Keith
Peterson, observa que Kant emprega o termo para significar a confusão entre o que é dado empiricamente à
sensibilidade com alguma validade da representação no entendimento.

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Uma ferida cancerígena no corpo da filosofia como um todo está escondida dentro
do Erro do Normativismo e de toda forma de teleologia ontológica intimamente
relacionada – um dos pecados originais da Velha Metafísica que nem mesmo a crítica
kantiana pôde arrancar pela raiz porque, apesar da Crítica do Juízo, ela não conseguia
realmente enxergar para além dele. Uma ontologia de fundamento crítico deve, acima de
tudo, proceder criticamente também sobre esse ponto. Remediar esse preconceito deve
estar tão próximo de seu coração quanto retificar a “prova ontológica da existência de
Deus”. Na verdade, esta pode servir como uma analogia-modelo, tanto em um sentido
positivo quanto negativo: assim como ninguém iria descartar o conceito de Deus apenas
porque o argumento “ontológico” não é bom, ninguém irá deixar a possibilidade de uma
teleologia-mundo ir embora só porque a analogia na qual ela é baseada é insuficiente para
a sua prova. Provas de premissas verdadeiras podem ser falsas. Como pressuposições
filosóficas especulativas, todavia, ambas as teses igualmente falham. Tanto o telos do
mundo como a existência de Deus não podem nem ser provados nem refutados
filosoficamente – tanto quanto também não podem ser incluídos sob os fundamentos
sistemáticos.

Em outras palavras, categorias não são, em si mesmas, de forma alguma, normas,


fins ou mesmo valores. É uma questão para a prima philosophia, a pesquisa dos princípios,
decidir todas as questões anteriormente resolvidas por sub-repções. Qual é, de fato, a
relação positiva entre categorias e valores? São estes, por assim dizer, categorias sui
generis? Podem eles serem ordenados acima das categorias ontológicas, talvez, de uma
outra forma?

3.7 O Erro do Racionalismo [Der Fehler des Rationalismus]

É em geral aceita a crença de que princípios são, por sua própria natureza,
“racionais”. Ambos os significados de “racional” (o lógico e o gnoseológico) pode alternar
quase sem afetar a tese. Se substituirmos “lógico” por “racional”, então a tese é quase a da
conceitualidade, o Erro Aristotélico. Quando tornamos “racional” um sinônimo de
“inteligível”, a situação é diferente. Trataremos aqui deste caso.

Muitas teorias admitem que um concreto pode ser ininteligível em diversos


aspectos. Mas elas não admitem tal possibilidade no que diz respeito aos princípios nos
quais os concretos são baseados. Princípios são considerados como inteiramente
cognoscíveis; eles são dados diretamente à consciência; já o concreto não seria dado, ou
apenas dado aproximadamente (talvez “confusamente”). Na Antiguidade, encontramos a
tese oposta. Platão sabia bem da dificuldade da Visão de Ideias [Ideenschau] – ele sabia o
quão incompleto e meramente aproximadamente adequado é tudo aquilo que o

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pensamento humano pode compreender do mundo das Ideias; e como ele requer um certo
método “hipotético”39, de forma a começar o trabalho de fazer contato com esse reino
inaproximável. A Ideia do Bem é retida de toda visão genuína. Plotino até cunhou para esta
a expressão “além do inteligível”, expressando a ininteligibilidade do princípio em um
conceito preciso.

Entre os pensadores líderes da modernidade temos outro cenário, especialmente


com Descartes. Em suas obras, toda compreensão cognitiva das coisas é baseada em um
apriorismo de princípios e, além disso, numa imediata e intuitiva dadidade dos princípios.
Nós devemos o preconceito triplo profundamente enraizado que estamos lidando aqui aos
grandes racionalistas, sendo suas três alegações básicas mais facilmente compreendidas
em suas origens históricas.

Na base do Erro Cartesiano está o preconceito da simplicidade: os princípios são


simplices, eles emergem pela análise como propriedades última, sendo o concreto um
agregado complexo deles. Isso é plausível, mas inadequado. Há princípios altamente
complexos que já são eles mesmos combinações de elementos categoriais mais simples,
sem assim perder a característica geral de independência dos princípios. É também
provável que o muito incompreendido lema “simplex sigillum veri”40 tacitamente subjaz ao
Erro Cartesiano. É uma proposição que, em si, poderia muito bem ser verdadeira para
categorias cognitivas (ainda que, na verdade, também não seja aplicável a elas), embora
para categorias ontológicas seja completamente inadequada. A investigação acerca dos
princípios executada por Descartes e seus seguidores é, ainda, muito primitiva. Para ele,
tudo que fosse tal como um princípio deveria ser, ele mesmo, simples. Ele não sabia que,
na realidade, elementos categoriais últimos são algo bastante dúbio, que não podem ser
diretamente compreendidos por nenhum princípio que possa ser exibido, ou em nenhum
grupo de tais princípios. São apenas as categorias mais complexas que podem ser
compreendidas de forma aproximativa, mas assim que precipitamos os elementos para
fora de suas formas complexas, eles se tornam incompreensíveis. O que nós tomamos como
elementos últimos, ainda tangíveis, não são os simplices.

Em segundo lugar, o preconceito genuíno da cognoscibilidade racional está


implicado aqui. Os simplices devem ser, ao mesmo tempo, o maxime notae ou per se notae,
aquilo que é “anterior na ordem de cognição” (cognitione prius). Eles são, então,
gnoseologicamente não apenas o prius na ordem de cognição, mas também o conhecido a
priori! Esse é o aspecto perpetuamente incompreendido do conceito de idea innata, pois a
consciência dessas ideias não é, de forma alguma, contida diretamente na consciência das

39 NT: Cf. nota de rodapé 10, acima.


40 NT: “O simples é sinal de verdade”.

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coisas baseada nelas. De forma geral, a relação gnoseológica é completamente o oposto.


Princípios da cognição de forma alguma precisam de cognições de princípios. O que é
conhecido pelo princípio não é o princípio em si. Eles são condições de cognição, mas não
o conhecimento; digo, eles são as primeiras bases da cognição, mas eles estão longe de ser
as primeiras coisas a serem conhecidas. Ao contrário, eles geralmente permanecem
completamente indetectados. De qualquer forma, cognição por meio deles é independente
de serem conhecidos ou desconhecidos, de serem cognoscíveis ou de serem incognoscíveis.
Consequentemente, não está na essência dos princípios de cognição serem cognoscíveis e
– podemos adicionar baseando-se na experiência histórica mais ampla – onde eles são, na
verdade, conhecidos (na epistemologia filosófica), este conhecimento nunca poderá ser
chamado de primeiro e mais imediato, mas na verdade é o último, o mais mediado e
condicionado.

Não há nem uma sombra de paradoxo de que o que é válido para os princípios da
cognição também se aplicam aos princípios ontológicos – e ainda em maior grau. Apenas o
preconceito da conceitualidade, assim como o da subjetividade, poderiam nos enganar
sobre isso. Em contraste, assim que se compreende que o objeto tem suas próprias
categorias para si mesmo, independentemente das categorias da consciência; e que toda
conceitualidade é apenas retrospectivamente expressada em conceitos pelo sujeito, então
torna-se evidente que não há razão alguma para se tratar os princípios do objeto como
sendo mais conhecíveis que o objeto concreto em si mesmo. Há, no entanto, um número de
razões irrefutáveis para o fato de que, na realidade, eles são ainda menos reconhecíveis –
o desenvolvimento disso, no entanto, mais uma vez, pertence à Análise Categorial ela
mesma, não podendo ser dado antes dela.41

Em terceiro lugar, o preconceito específico de que princípios são imediatamente


autoevidentes também é implicado aqui. Isso significa mais que mera cognoscibilidade em
geral; significa cognoscibilidade a priori, postulada puramente em si mesma, sem o
embasamento na experiência. Isso também aparece nas formulações cartesianas “per se

41 Posso indicar ao menos as diretrizes gerais dos principais argumentos aqui: 1) Categorias que são, de
alguma maneira, concebíveis, são complexas, algumas de complexidade extraordinária, mas os elementos
categoriais últimos não são compreendidos; 2) Todas as categorias que são, de qualquer forma que seja,
dimensionais contêm momentos de infinitude [Unendlichkeitsmomente]; 3) Ao lado de elementos estruturais
(formas, leis, relações), a maioria das categorias também contém elementos de substratos que não podem,
de forma alguma, serem resolvidos; 4) Mesmo as estruturas (formas, leis, relações) como tais não são
completamente racionais; e 5) O que permanece ininteligível em todas as categorias é o “por quê”, a razão
para o seu Sosein [Ser-Assim]. Os maiores pontos desses argumentos podem ser achados em Logos V, ‘Über
die Erkennbarkeit des Apriorischen,’ pp. 313–325; neste volume pp. 206–217; assim como no Capítulo 30 do
“Fundamentos da Metafísica do Conhecimento”.

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notae” e “cognitione prius.” Descartes acreditava em um intuitus purus que iria totalizar em
uma consciência imediata de princípios – e, aqui, está uma das raízes históricas do Erro
Kantiano. Quando se considera a matéria em si, pelo menos de um modo geral, isso é
precisamente o contrário. Princípios cognitivos são, como discutimos, o prius do
conhecimento, mas por essa razão eles não são conhecidos – portanto, também não
conhecidos a priori. Eles são o prius ontológico da cognição de objetos, mas não são eles
mesmos compreendidos como tais no processo de cognição. Embora sejam realmente
cognoscíveis, tal cognoscibilidade não é do tipo a priori, um resultado de intuição direta,
mas é precisamente de tipo indireto, condicionada no maior grau pelo posterius. Se se
perguntar como tais princípios são de todo conhecidos, então a única resposta possível é:
pelo concreto. O concreto é sempre – pelo menos no domínio da cognição do real – o dado
a posteriori. Princípios são elementos estruturais do concreto e podem apenas serem
apreendidos como tal e apenas no concreto – ou, mais precisamente, podem apenas ser
determinados a partir do concreto de uma forma analítica e reflexiva, com um impacto do
hipotético sempre dependendo do determinado. Desde a Antiguidade este método foi
chamado de o método analítico ou hipotético e, cientes de sua definitiva tendência
direcionada “para cima” (“anabasis”), este método tem sido contrastado com o método
apodítico dedutivo.

Isso não significa que nos resta apenas uma cognição empírica de princípios, pois
quando o caminho analítico nos leva às categorias, elas têm de ser, por sua vez, apreendidas
ou tornadas autoevidentes em si mesmas. Todavia, esta autoevidência e esta visão são
precisamente mediadas – e, de fato, mediada de maneira característica pelo posterius;
portanto, não é um conhecimento a posteriori genuíno, mas talvez possa-se dizer ex
posteriori. O prius da cognição não é, em si, todavia, nem um pouco afetado pela natureza
condicionada da cognição a categorias ex posteriori. Certamente não é essa cognição em si,
nem o seu princípio, mas é, na verdade, seu objeto, a categoria em si mesma.

Os seguintes são resultados de pesquisa categórica do que foi dito: (1) Categorias
existem inteiramente independentemente do grau de sua cognoscibilidade. (2) Elas são, na
verdade, apenas parcialmente cognoscíveis; a Análise Categorial vai encontrar, como pode-
se esperar, limites inamovíveis à racionalidade em todas as direções de seu avanço. (3) A
Teoria das Categorias tem de reconhecer tais limites e, na medida do possível, ajudar a
determina-los – mas não deve os entender como limites dos problemas, muito menos como
limites fundados nas coisas em si mesmas, ou seja, no ser categorial. Os limites são, de fato,
insuperáveis, mas são limites gnoseológicos, não ontológicos. (4) O sistema de categorias
que a Teoria pode articular deve necessariamente permanecer, na melhor das hipóteses,
apenas numa porção do todo – o sistema articulado pode apenas aproximadamente
coincidir com o inerentemente existente sistema de princípios que ele se esforça para

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explicar. (5) As categorias cognitivas não estão em posição privilegiada em relação às


categorias ontológicas – a epistemologia não é, de forma alguma, mais racional do que a
ontologia.

3.8 O Erro da Identidade Total [Der Fehler der totalen Identität]

A maior simplificação da imagem de mundo [Weltbild] que pode ser imaginado é a


tese da identidade de Parmênides: “Pensamento e Ser são uma e a mesma coisa”. O
problema das categorias surpreendentemente emurchece sob esta tese. Se há uma única
região de entidades concretas, então pode haver apenas uma série de princípios. A Filosofia
da Identidade no Idealismo Alemão fez extenso uso dessa estratégia ofensiva. Edifícios
sistemáticos fechados, como o sistema schellinguiano de 1801 e o grande sistema
hegeliano, apenas foram possíveis em virtude da equação entre o “subjetivo e o objetivo” e
o “racional e o real”. Não é relevante que esses sistemas, em contraste com o eleático, foram
feitos para serem fundamentalmente idealistas, ou seja, que eles transfiram o peso dessa
identidade para o lado do subjetivo ou o da “razão”. Isso não faz diferença quanto à tese da
identidade, cujo ponto principal é a unidade da série de princípios – é o que eles têm em
comum com o sistema eleático.

Não obstante, é precisamente essa a sua fraqueza. Eles contradizem o fenômeno tal
como ele é dado. Basta direcionarmos nossa atenção ao fenômeno da cognição para ver
isso. A cognição pode existir apenas onde há uma contraposição entre sujeito e objeto, ela
consiste em um certo tipo de relação entre eles. Se os dois coincidissem, então a relação
também colapsaria no nada. Uma relação apenas pode existir entre os não-idênticos.
Identidade é o cancelamento [Aufhebung] da relação. Toda estrita Filosofia da Identidade
cancela o problema do conhecimento. Não é de se admirar que o sistema de Schelling de
1801 não tinha nada para oferecer à epistemologia; e que Hegel quase converteu o
problema em seu oposto. Esta, que é uma das maiores teses metafísicas, também não
vingou na Antiguidade, como é evidente. Nem Platão, nem Plotino, que estavam mais
próximos a ela, ousaram implementá-la. É fácil ver que a mesma aporia do problema do
conhecimento deve também ser repetida para o problema da ação, para o problema da
vontade, além de outros. Aqui, também, a colocação-em-contraposição [Gegenüberstellung]
é uma condição para a relação.

A investigação das categorias não pode se envolver com essa simplificação


monstruosa. O “Erro Eleático” significa nada além da falsificação radical do problema das
categorias e, indiretamente, também a falsificação do problema ontológico; visto que o
ponto de partida natural para o pensamento ontológico é a colocação-como-objeto do ser

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[Gegenstandsstellung des Seins42]. Ela deve aceitar a justaposição-em-tensão dos dois


domínios do dado fenomenologicamente concreto, a saber, a consciência e o mundo real
externo, na máxima extensão possível, sob pena de obter-se duas séries de categorias
fundamentalmente diferentes.

3.9 O Erro da Identidade Categorial [Der Fehler der kategorialen Identität]

A tese da identidade categorial é, de muitas maneiras, mais crítica e mais modesta


do que a tese eleática. Não é o Ser e Pensar, nem o Sujeito e Objeto, que são considerados
idênticos, mas apenas seus princípios. A dualidade de mundos – o da consciência e o do
objeto – não é infringida, não é fundida em um. Mesmo assim, há um elemento idêntico o
qual vincula os dois, que de fato os vincula em sua origem: suas categorias mutuamente
compartilhadas43.

A versão mais bem conhecida dessa ideia é a interpretação que Kant lhe deu:
experiência e objeto de experiência não são o mesmo, mas eles têm as mesmas “condições
de possibilidade”; lembrando da conhecida fórmula na conclusão da seção sobre o
princípio básico supremo de todos os juízos sintéticos44. A base gnoseológica para a
identidade de princípios é o fato de uma cognição a priori. Evidentemente, um sujeito
apenas pode conhecer sobre as determinações de um objeto heterogêneo a ele se os
princípios internos, sobre os quais esse conhecimento se baseia, correspondem aos
princípios do objeto. No fenômeno do conhecimento a priori, portanto, há um ponto de
partida extremamente valioso para a orientação da investigação das categorias: certa
identidade deve existir entre sujeito e objeto; não podemos estar lidando com dois
sistemas de categorias completamente heterogêneos.

Mesmo assim, a maior ênfase metafísica sobre a tese da identidade não está
presente em sistemas como o de Kant, nos quais à cognição a posteriori é atribuída uma
ampla e independente margem de manobra, mas sim em sistemas nos quais o apriorismo
é tornado absoluto, i.e., nos quais toda a cognição – e também o que é aparentemente
cognição a posteriori – é referenciada de volta a ele. Nós vemos o arquétipo de tal sistema

42 NT: Relembramos, como na nota de rodapé 29, que a palavra Gegenstand significa o “objeto da experiência”
na tradição kantiana. Hartmann traça uma relação quase literal entre o “gegen” de Gegenstand e o “gegen” de
Gegenüberstellung (colocar em contraposição). Podemos dizer tal como um trocadilho: “não há objeto-da-
experiência sem colocação-em-contraposição”.
43 NT:Podemos ilustrar esta diferença entre os dois Erros comparando-os com a distinção entre o panteísmo
e o panenteísmo. Enquanto o primeiro afirma que “tudo é Deus/Divino”, o segundo diz que, “em tudo, há algo
que participa/é misturado no Divino”, que estaria “misturado”, mas não seria coincidente. Teologicamente
falando, faz bastante diferença dizer que o humano, o sol e uma pedra “são Deus” ou que “têm algo misturado
no Divino”.
44 NT: Cf. a nota de rodapé 34 acima.

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em Leibniz. A mônada individual “representa” o universo. Essa “representação” é, quando


ela chega à altura da consciência, conhecimento. A mônada, incluindo a soma total de suas
representações, é um mundo em si, um cosmos dentro do cosmos; portanto, ela não é, de
forma alguma, idêntica ao mundo macrocósmico de todas as mônadas. Na verdade, ela não
é nem diretamente conectada a ele (ela “não tem janelas”45). Seu representar é uma
construção puramente interna; e seu conhecer é um conhecer completamente a priori. O
que gera a correspondência, ou mesmo o parentesco, entre representações e o real
representado? “Harmonia preestabelecida” é apenas um bordão que não explica nada. O
verdadeiro núcleo da teoria é a unidade e a eternidade das “ideias” ou “verdades eternas”.
Estas são uma e as mesmas, seja para as mônadas representadas, seja para aquelas
representando – completamente e até o mais último detalhe de sua complexidade. Assim,
a correspondência é estabelecida, o “badalar simultâneo dos relógios” e a constância da
relação entre “corpo e alma”.

Precisamente, no caso de Leibniz, pode-se claramente ver que seu apriorismo


absoluto ultrapassa a marca. A identidade de princípios é de fato suficiente para ele, mas
ele alcança para além do que o fenômeno permite. Apriorismo absoluto não corresponde
ao fenômeno: conhecimento a priori encontra o seu limite no empirismo, mas o primeiro
não dá espaço ao segundo. O erro se torna ainda mais explícito quando o vemos de outro
lado. Pensemos que há apenas uma série de princípios, válida para dois mundos
completamente diferentes; não devemos realmente nos perguntar se ambos são, de fato,
mundos diferentes? Se tudo neles é, em princípio, igual, como então podem eles serem dois
mundos? Não devem eles necessariamente serem indistinguíveis, um e o mesmo –
precisamente de acordo com a lei leibniziana da identidade dos indiscerníveis?

Até quando não se dá atenção a essa aporia metafísica, uma aporia gnoseológica
completamente diferente e inevitável acaba por surgir. Se as categorias cognitivas e
ontológicas são idênticas e sem sobras, então não deveria tudo o que existe ser conhecível,
inclusive conhecível a priori? Sem dúvidas essa também é a opinião de Leibniz. Mas ela
contradiz o fenômeno da cognição, no qual os limites da cognoscibilidade – e,
definitivamente, da cognoscibilidade a priori – desempenham um papel muito especial. Se
analisarmos o fenômeno da cognição de uma forma não-partidária, não pode haver

45 NT: Referência ao aforismo 7 da Monadologia de Leibniz: “Tampouco há meio de explicar como uma
Mônada poderia ser alterada ou transformada em seu interior por alguma outra criatura, pois nela nada se
poderia introduzir, nem se poderia conceber nela nenhum movimento interno que pudesse ser excitado,
dirigido, aumentado ou diminuído em seu interior, como é possível nos compostos, em que há mudanças
entre as partes. As Mônadas não têm janelas pelas quais algo possa entrar ou sair. Os acidentes não poderiam
separar-se nem se pôr a vaguear fora das substâncias, como faziam outrora as espécies sensíveis dos
escolásticos. Assim, nem substância nem acidente podem, de fora, entrar em uma Mônada” (Leibniz, 2004, p.
131-2, grifo nosso).

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desacordo de que o limite da racionalidade é, ele mesmo, um fenômeno da cognição. A


ilegitimidade do apriorismo absoluto está em ignorar isso – e este é o Erro Leibniziano.

Obviamente, outro erro de princípio ainda está implícito no Erro da Identidade


Categorial. O Erro Leibniziano é definitivamente mais modesto acerca de muitas coisas do
que o Erro Eleata. Mas ainda assim muito é postulado como idêntico nas duas séries. Nós
devemos limitar a identidade ainda mais. As categorias do sujeito e do objeto podem ser
apenas parcialmente idênticas, devendo ser parcialmente distintas uma da outra.
Identidade parcial é, claro, o mínimo de identidade requerido. O sistema de categorias
ontológicas deve evidentemente ser mais rico que aquele de categorias cognitivas, já que a
ininteligibilidade parcial dos objetos aponta para propriedade do objeto que o sujeito
conhecedor não pode representar46; em outras palavras, deve haver categorias ontológicas
que não são, ao mesmo tempo, categorias cognitivas. Deve haver, portanto, um limite à
identidade de categorias ontológicas e cognitivas no reino das categorias. De fato, esse
limite deve evidentemente corresponder diretamente ao limite da inteligibilidade do
objeto, i.e., o objeto pode apenas ser conhecido a priori o tanto quanto suas categorias
também forem categorias do conhecimento.47

Este assunto é também de decisiva importância para a ontologia, além de sua


significância central para a epistemologia. Podemos tirar dele cinco consequências:

1. Primeiro, uma coisa que este assunto torna evidente é que as categorias ontológicas
jamais podem ser exauridas pelo problema do conhecimento. Portanto, é um erro
fundamental da filosofia contemporânea procurar superar o problema das
categorias com uma atitude gnoseológica. Ao invés disso, nós podemos
compreendê-lo apenas por um ponto de vista ontológico. Kant também não levou
em conta esse fato. Seu interesse no problema das categorias era apenas
gnoseológico. Não obstante, em Kant, diferentemente de Leibniz, percebemos uma
sensibilidade aos limites da identidade categorial: a objectalidade em si não é
exaurida como “objetos de possível existência” de acordo com Kant. Há para além
dele o “objeto transcendental”, o qual não é cognoscível como tal porque a
totalidade de suas condições não estão inclusas nas “condições da possibilidade de
experiência”. É por meio da doutrina da “coisa em si” como o númeno que Kant
superou sua própria caracterização do problema, preparando o ponto de partida
para uma ontologia crítica no problema do conhecimento em si. Neste ponto, sua
crítica se tornou crítica de si mesma. A doutrina da coisa-em-si é a maior conquista
da Crítica;

46 NT: Relembrando que “ininteligibilidade parcial do objeto” é direcionado ao conceito hartmanniano do


transinteligível. Cf. nota de rodapé 12 acima.
47 O limite de identidade não tem nada a ver com a ininteligibilidade parcial das categorias em si. A

cognoscibilidade do objeto concreto é de forma alguma dependente na cognoscibilidade de seus princípios.


O Erro Leibniziano é inteiramente diferente do Erro Cartesiano.

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2. Há algo além que a Teoria das Categorias pode aprender deste assunto. Em uma
identidade parcial de categorias ontológicas e cognitivas, não é, de forma alguma,
necessário que categorias individuais de ordem superior (de complexidade), as
quais em si mesmas englobam todo um sistema de fatores categoriais, posicionem-
se completamente “deste-lado” ou completamente além do limite da identidade. É,
na verdade, bem possível que este limite atravesse pelo meio e divida uma categoria
em duas partes, por assim dizer, das quais apenas uma tem o caráter de um
princípio cognitivo, enquanto a outra é meramente um princípio ontológico. A tese
da identidade parcial não é cancelada por conta disso, mas envolve primariamente
apenas os elementos categoriais mais simples. Para a cognição a priori do objeto
(cognição esta que é, claro, apenas parcialmente legítima), obviamente é suficiente
que haja alguns elementos categoriais no complexo das categorias superiores que
sejam idênticos para sujeito e para objeto.

3. Nessa conexão, uma tarefa de maior importância surge para a investigação sobre as
categorias. As categorias individuais – ao menos as superiores – não são, em seus
papéis como categorias cognitivas, as mesmas como elas são categorias ontológicas.
Elas detêm os mesmos nomes em ambos os domínios (tal como espaço, tempo,
substância, causalidade) e com razão, pois há de haver algum elemento idêntico
subjacente nelas, mas seus conteúdos categoriais são, de diversas maneiras,
diferentes nos dois casos. Além disso, o limite da cognoscibilidade a priori do objeto
reside nesta diferença. A Análise Categorial, portanto, tem de estudar cada categoria
individual separadamente, como uma categoria ontológica e como uma categoria
gnoseológica, buscando determinar as suas variações específicas.

Isso pode também ser expressado da seguinte maneira. Toda categoria que entra
no reino da identidade está, ao mesmo tempo, designada a ambas as esferas (do
onticamente real e do gnoseologicamente atual). No entanto, ela só ultrapassa esta dupla
classificação apenas com parte de sua essência – em outra parte, esta essência é dividida
ou dilacerada. Obviamente, a divisão para cada categoria é também substancialmente
diferente, de tal forma que uma multiplicidade ilimitada de gradações entre os extremos
de total identidade e de completa não-identidade é possível. Aqui está um novo, até agora
inexplorado campo de pesquisa, sem dúvidas rico em consequências, com cujo
descobrimento e tratamento frutífero a tarefa da ontologia crítica pode, enfim, começar
genuinamente. A visão compreensiva que é necessária aqui não pode ser alcançada por
uma dedução de pontos de vista universais, podendo apenas ser conquistada por um
estudo fenomenológico-analítico detalhado das categorias individuais. É autoevidente que,
daqui em diante, o problema do conhecimento deve passar por um renascimento, o que
deve permitir uma penetração mais profunda nos detalhes substantivos que jamais foi
permitida por qualquer tipo de procedimento que ronda o universal.

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4. As consequências, mais ainda, nos levam a outra direção. A relação entre esferas dos
dois tipos de categorias (que prova ser uma de identidade parcial) abre caminho
para o tratamento de toda relação similar entre esferas. Em verdade, a ontologia
não tem a ver com a oposição entre sujeito e objeto. O que existe traz outro tipo de
clivagem (que é indiferente à oposição sujeito e objeto), a saber, entre Ser Real e Ser
Ideal. Neste, entende-se que o ideal inclui o ser de estruturas lógicas, de objetos
matemáticos e de essências de todos os tipos48. Portanto, dentro do Ser, estão
contrapostas uma esfera real e uma ideal, ambas existindo completamente
independentemente com suas respectivas entidades, ambas as esferas sendo
objetos de cognição possíveis (ao menos dentro dos limites de sua racionalidade).
Essas duas esferas também estão sujeitas às categorias e, da mesma forma, sujeitas
a categorias parcialmente idênticas. As razões para isso podem ser analisadas na
relação entre a legalidade matemática e a legalidade natural, assim como em outros
lugares. Assim sendo, há também uma relação de identidade entre duas séries de
categorias aqui, de fato, uma diferente daquela entre categorias de objeto e
categorias cognitivas, sendo isso, também, uma identidade parcial.

É fácil prever que a fronteira dessa identidade, já que ela suporta as mesmas
categorias ontológicas que as últimas, mas também abrange o mesmo complexo de
categorias, também não pode parar na integridade desses complexos categoriais – a
fronteira deve passar direto por deles e precisa cortar seus caminhos. Por sua vez, a tarefa
da Teoria das Categorias é expandida e complexificada por uma dimensão de diversidade
de conteúdo. A diferença entre as esferas significa nada além de que uma e mesma
categoria não é, como categoria da esfera ideal, absolutamente a mesma enquanto
categoria do real. A Análise Categorial tem que investigar em quais elementos categoriais
o desvio [Abweichung] existe para cada categoria individual. Esse procedimento é ainda
mais significativo porque ele é o único jeito que nós temos para determinar a diferença e a
relação ontologicamente positiva entre as esferas ideal e real. Já que ele lida com a relação
entre dois modos de ser [Seinsweisen], a chave para essa investigação está no domínio das
categorias modais 49, cujo sentido e legalidade intermodal são, em verdade,
extraordinariamente diferentes em cada uma das esferas. 50

48 NT: Em obras posteriores, Hartmann vai incluir na Esfera Ideal do Ser não apenas seres lógicos,
matemáticos e essências (fenomenológicas), mas também os valores, como observamos na nota 27. Os três
volumes de sua Ética, que vão aparecer três anos mais tarde ao presente artigo, ou seja, 1926, busca justificar
e ampliar esta inusual escolha. Para fins de um esclarecimento perfunctório, a principal diferença entre o
Real e o Ideal é que, neste último, não há a categoria do tempo ou da duração: os seres ideais não existem no
tempo (o que é diferente de dizer que são “eternos”, pois isso seria um tipo específico de tempo). Justamente
por isso, o Ser Ideal é, de forma grosseira, “incompleto”, precisando ser atualizado ou concrescido pelos entes
reais para que o ideal tenha alguma relevância ontológica real. Aqui, o público pode se sentir mais confortável
com o nome “realismo crítico” que Hartmann escolhe para sua filosofia, visto que, embora comecemos “deste-
lado” do problema (ou seja, de forma apartidária), eventualmente, Hartmann opta pelo foco no real – foco
este que não abole, nem cancela o ideal, mas vai articula-lo, emprega-lo, se inspirar nele etc.

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5. A multiplicidade das esferas sujeitas a categorias – e, como foi dito, sujeitas4950a


categorias parcialmente idênticas – ainda não foi esgotada. Por exemplo, não se
pode contestar que o mundo interno do sujeito forma um mundo em si mesmo, com
seus fenômenos subjetivos específicos (não seus fatores objetivos e cognitivos, os
quais são membros de uma relação transcendental), os quais também são,
definitivamente, existentes reais, nessa medida, imanentes à esfera real. Tal mundo
subjetivo assume um lugar especial dentro da esfera real em virtude de sua
natureza peculiar. Além das esferas atuais do real, do ideal e do gnoseológico, a
esfera psíquica pode ser adicionada como uma quarta entre elas51. Nela também há
uma recorrência modificada das categorias. Deixando de lado mais elaboração
sobre a multiplicidade das esferas, prontamente reconhecida de qualquer forma, o
mínimo que a Análise Categorial deve alcançar é a consideração de cada categoria
individual sobre a perspectiva sinóptica dessas quatro esferas de problema, a saber,
trabalhar a modificação específica de cada categoria nas diferentes esferas além de
seus elementos idênticos subjacentes.

Isso é, claro, uma tarefa apta a levar a Análise Categorial a crescer e a se tornar toda
uma área distinta de estudo. Eu imagino a natureza e a ideia da ontologia crítica – e aquela
de uma philosophia prima genuína e legítima – orientada para a multiplicidade dos
fenômenos, que consiste na persecução das perspectivas tornadas possíveis por essa
tarefa. Nem precisaria ser dito que tal perspectiva sinóptica das esferas, como uma teoria
dos domínios fundamentais dos fenômenos em termos de seus conteúdos, constitui um
capítulo que se estende por toda a investigação das categorias e que somente por meio dela
pode ser completamente encerrada (apesar de apenas “em Ideia”).

3.10 O Erro do Monismo Sistemático [Der Fehler des systematischen Monismus]

Aqueles filósofos que se importam com a pesquisa de princípios, quase sem exceção,
procedem da pressuposição de que o sistema de princípios tem que culminar em um único
princípio superior, do qual todos os outros dependem. Essa pressuposição é prontamente

49 NT: Embora na nota posterior Hartmann faça referência a um trabalho seu de 1915, dois trabalhos
principais acerca destas categorias modais serão ainda publicados. Em 1937, como preparação para o
segundo volume da série Ontologia, Hartmann publica um artigo denominado “O conceito megárico e o
aristotélico de possibilidade: uma contribuição para a história do problema ontológico da modalidade”, então
com menos de 20 páginas. Para elaborar todas as consequências, o segundo volume do Ontologia, intitulado
Possibilidade e Atualidade, traz quase quinhentas páginas acerca deste assunto.
50Eu tentei providenciar um primeiro contato com a investigação indicada aqui em Kantstudien XX, 1915,
‘Logische und ontologische Wirklichkeit’. Neste volume, página 220.
51NT: Em 1923, num caráter ainda preliminar e experimental evidente no presente artigo, Hartmann parece
afirmar que há quatro esferas. Como mencionamos nas notas 30 e 31, à medida em que ele vai elaborando os
quatro volumes da Ontologia, o psíquico deixa de ser uma “esfera” e se torna um estrato da realidade (ou seja,
dentro da Esfera do Ser Real) – mais precisamente, localizado entre o orgânico e o espiritual (“sociocultural”).

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entendida. Algum raciocínio tal como este está geralmente implícito: existem princípios
mais gerais e mais específicos – e a relação entre eles apenas pode ser uma de subsunção
lógica. O resultado é que o sistema assume a forma de uma “pirâmide”, o que
inevitavelmente requer um “cume”, uma espécie de ponto unitário no qual convergem
todos os fios de dependência.

Gostaríamos de desconsiderar o fato de que o Erro da Conceitualidade (o Erro


Aristotélico) está contido nesta imagem da pirâmide conceitual lógica. Não deve ser
entendido disso como se todos os sistemas históricos de categorias imitassem servilmente
a relação de escopo e de conteúdo lógico-formal. Na verdade, há vários diferentes pontos
de vista aqui. Em vários casos, a força movente da estratificação que se busca das categorias
é teleológica; naturalmente, um nexo universal finalista necessariamente tem a tendência
em direção à unidade do telos. No entanto, o esquema do postulado da unidade é, por todo
lugar, o mesmo, brotando da mesma presunção oculta, a saber, de que pode haver uma
unidade do sistema apenas em virtude da dependência compreensiva de seus membros em
um ponto central.

A demanda por um “princípio maior,” o “incondicionado,” ou para o “absoluto” está


enraizada nessa suposição. A ἀρχὴ ἀνυπόθετος52 de Platão e o “Primeiro Motor” de
Aristóteles são, por esses motivos, colocados acima do Reino das Ideias/Formas. A forma
clássica da ideia de unidade aparece em Plotino. Ele chamava o maior dos princípios
simplesmente de “Uno” (ἕν/hen), em si mesmo além de toda multiplicidade e divisão,
portanto também “além do ser ou do pensamento”. A tendência histórica que procedeu
deste ponto levou à ideia da coincidentia oppositorum, que, segundo Nicolau de Cusa, coroa
todo o sistema de coisas existentes.

Não há razão alguma para contestar o monismo neste sentido, tomado por si só. Ele
é tão pouco contraditório quanto é a teleologia-mundo, ou o conceito cosmológico de Deus.
Ele é também tão pouco corroborado por fenômenos. Isso faz dele errado, pelo menos
como uma expectativa. Se uma Análise Categorial tivesse nos levado a ele, seria outra
história. Não obstante, sempre que o encontramos, ninguém está falando em uma tal
descoberta – por todos os lugares ele é simplesmente pressuposto, seja explicitamente ou
implicitamente. Nicolau de Cusa e Plotino, Aristóteles e Platão, simplesmente seguem um
requisito metodológico-sistemático pela unidade, eles hipostatizam53 um postulado vazio.

52NT: Hartmann faz referência à única arché (princípio/origem) que a filosofia socrático-platônica admite, o
an-hypothetos (“não-hipotético”). Esta arché não-hipotética, notoriamente na conclusão do Livro Sexto da
República, é identificada com a “Ideia do Bem” (ἡ τοῦ ἀγαθοῦ ἰδέα).
53NT: A teoria da hipóstase (ὑπόστασις) à qual Hartmann faz referência é a dos chamados “neoplatônicos”.
Antes deles, o termo era usado para significar uma existência que “suporta” a mudança ou outras
características. Plotino faz amplo uso do termo, mas é com seu discípulo Porfírio que o termo ganha uma

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Plotino merece reconhecimento por sua honestidade, pois ele pelo menos formulou
claramente esse problema metodológico. Nós podemos chamar esse preconceito de Erro
Plotiniano em sua honra.

Mesmo se deixarmos de lado o desorientador aspecto “sistemático” do postulado da


unidade, ainda temos de admitir que a suposição de um único princípio superior parece
dificilmente evitável por outras razões. Enquanto ainda acreditarmos na completa
inteligibilidade das categorias, por exemplo, enquanto permaneceremos enfeitiçados pelo
Erro Cartesiano, nós estamos sujeitos a tal postulado da unidade. Se uma pervasiva
interconexão de categorias tem que existir de alguma maneira, por que não a afirmar na
forma de um princípio unificante fundamental? A unidade superior com certeza deve ser
demonstrável racionalmente. Esse tipo de racionalismo é claramente encontrável na
substância única de Spinoza, na apercepção transcendental de Kant, no Ego Absoluto de
Fichte. Tal raciocínio é ao menos consistente quando ele junta os dois preconceitos que até
mesmo suportam um ao outro. Isso é diferente em Plotino e em Nicolau de Cusa, por
exemplo, onde eles entendem a unidade buscada como irracional. Com que justificação se
poderia sequer ser afirmado que aquilo que está acima e além dos princípios inteligíveis
(as Ideias de Plotino) realmente tem o caráter de um ponto universal e, ainda assim,
unificado? Não se pode, de fato, saber isso de forma alguma. A presunção de ter tal
conhecimento nulifica a própria irracionalidade do maior princípio que foi admitida
anteriormente54.

Se apreciarmos totalmente a ininteligibilidade parcial das categorias, mesmo que


apenas em princípio, então seremos facilmente convencidos de que é impossível de se ter
um princípio superior de unidade, ou mesmo o conceito de Uno. Se soubéssemos que o
sistema de categorias tem a forma de uma pirâmide lógica, então nós também teríamos
pelo menos conhecimento formal sobre o pico da pirâmide. Nós não temos nem este
pedacinho de conhecimento, todavia. Conhecemos apenas uma relativamente pequena
porção do reino inteiro dos princípios e, como é fácil de se ver, uma porção de grau
mediano de complexidade. As categorias mais complexas e mais diferenciadas são
ininteligíveis precisamente por conta de sua alta complexidade (por exemplo, as categorias
do mundo vivo) – e as categorias mais simples e mais elementares são também

tecnicidade nas filosofias do helenismo tardio. Tal teoria defende que há, por detrás ou abaixo dos fenômenos
do dia a dia, uma realidade “mais real”, algo “mais verdadeiro”, sendo as aparências menos relevantes na
busca do tal “Uno”.
54NT: Relembramos, mais uma vez, conforme na nota 12, que o “irracional” em Hartmann tem o peculiar
sentido de transinteligível. Ou seja, como se sabe algo daquilo o qual não se pode saber nada, seguindo a
definição de irracional? Esta é a aporia que Hartmann identifica no Erro Plotiniano e outros que dele se
seguirem.

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ininteligíveis por conta de sua simplicidade e irredutibilidade. Se toda compreensão é


compreensão através de outra coisa, uma mais simples, então as mais simples permanecem
eternamente incompreensíveis. Consequentemente, no reino das categorias, há um limite
superior e um inferior para a racionalidade; e apenas aquilo que está entre esses dois
limites é ao menos parcialmente inteligível. Nós nem mesmo conhecemos esse domínio de
princípios bem o suficiente para poder averiguar se o sistema converge pelo seu “topo” ou
não. Na verdade, até mesmo entre os dois limites sempre conhecemos apenas grupos
individuais de categorias, não um contínuo de princípios, tal como a Lógica de Hegel
poderia levar a acreditar – e, mesmo entre tais grupos de categorias, há lacunas cuja
inteireza de conteúdo não podemos adivinhar. Finalmente, dado que podemos vir a
aprender sobre uma convergência em direção ao topo a partir da estrutura total da porção
conhecível do plano dos princípios, esse conhecimento ainda não seria o suficiente para
revelar a continuação da convergência até uma unidade absolutamente primária além do
limite superior da inteligibilidade. As linhas convergindo neste lado do limite também
poderiam divergir de novo depois dele. A lei da sua procedência certamente não poderia
também ser conhecida.

Na verdade, então, não há possibilidade de se adivinhar a presença ou ausência de


um princípio absoluto de unidade pela estrutura total da porção parcialmente conhecível
do reino dos princípios. A possibilidade de que o sistema não tenha um “cume” deve
permanecer aberta, isto é, deve-se considerar que ela diverge de novo mais acima ou que
ela se dispersa em uma pluralidade de elementos categoriais maiores. O fato é que a última
camada, que só pode ser vista de cima, mostra uma grande variedade de elementos
categóricos completamente independentes, cujo número e delimitação precisos são, no
entanto, difíceis de serem especificados. Não obstante, pode-se assumir, com um alto grau
de probabilidade por certos indicadores, que além deste estrato ainda há algo a mais. Por
exemplo, vemos isso por conta do fato de que essas categorias superiores não carregam o
caráter de elementos últimos, mas, ao invés disso, mostram as junções de uma estrutura
que somos, simplesmente, incapazes de resolver. O que esse “a mais” é, seja ele um outro
sistema elementar ou um princípio singular, não pode sequer ser visto. O único fato
evidente é que, dentro do estrato inteligível último, todos os membros são reciprocamente
condicionados uns pelos outros tal que, de certa forma, cada um é o princípio supremo e,
ainda assim, é dependente de todos os outros.

Platão foi o primeiro a revelar esse estado de coisas nos seus últimos trabalhos
(Parmênides, Sofista), chamando-o de o “entrelaçar” das Ideias55. Ele alcançou a primeira
superação crítica do monismo categorial nesses escritos, em contraste ao seu próprio

55 NT: Referência à tal συμπλοκή (symploke). Cf. nota 23 acima.

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ensinamento anterior sobre a “Ideia do Bem” (República, Livro VI). Ele afirma bem
explicitamente que o princípio supremo no mundo das Ideias não é “Uno”, mas é, na
verdade, uma κοινωνία (koinonia), uma comunidade por todos os lados e uma confluência
de princípios – assim, o sistema como tal, a interconexão de elementos coordenados. Neste
caso, se alguém objetar que a interconexão em si é, precisamente, o princípio superior da
unidade desta comunidade, então não terá entendido bem o caso. Ao contrário, o princípio
da interconexão está bem no meio do número de elementos que se interconectam56.

Aqueles que mantêm distância do problema das categorias, como a maioria dos
autores de hoje, e que não reconhecem este caráter sistemático como algo sempre
imanente em todas as categorias, sempre irão levantar a velha e favorita objeção: é um
pluralismo de princípios superiores sequer concebível? Não deveria haver uma unidade
acima, que dá a liga, já que eles necessariamente constituem um sistema? A resposta é que
a unidade de interconexão deve, claro, existir, mas ela não precisa ser nem uma única
unidade pontual, nem mesmo ser um princípio de ordem superior. Pode ser simplesmente
a unidade sistemática implícita existente nos elementos entre eles mesmos e em nada mais.
Isso se torna o mais evidente por analogia com problemas mais concretos. Teorias mais
antigas do cosmos assumiram que existia um corpo central material do universo:
primeiramente a Terra, depois o Fogo Central (Pitagóricos), depois o Sol (Copérnico), a
estrela Sirius (Kant), até que, finalmente, investigações mais precisas mostraram que não
existe tal corpo central, e que o sistema cósmico existe sem tal coisa. A situação é similar
para teorias biológicas. O princípio unificador da vida era buscado no organismo – no
sangue, no coração, no fígado, no cérebro, na alma como princípio vital, para finalmente
perceberem que em todos estes começos falsos não há um princípio unitário, há apenas
um sistema de órgãos (que é um sistema de sistemas) que, ademais, é um sistema que
possui seus processos, funções, interconexões, dependências e assim sucessivamente. Na
biologia, assim como na cosmologia, unidade é precisamente o momento categorialmente
secundário57. A demanda por uma unidade primária, inteligível em um ponto central, é um
postulado puramente subjetivo, um atavismo racionalístico do pensamento humano.

56 NT: Para tentar esclarecer esta sutil diferença, podemos pensar que há um plano divino ou místico que
unifica a diversidade de espécies biológicas na Criação, na Providência ou no Juízo Final – ou pensar,
diversamente, de maneira ecológica, que é a própria diversidade que é criada, mantida, destruída, renovada
e batalhada por todas as espécies em alianças e disputas é que dá vida à interconexão ecológica entre todos
os viventes. Assim, o planejamento místico de uma entidade sobrenatural não é ontologicamente necessário
para compreender tal interconexão ecológica real.
57NT: Poucas referências são tão claramente ancestrais da teoria da complexidade e da teoria dos sistemas
como este trecho de Hartmann. Pensadores como Ludwig von Bertalanffy, Edgar Morin e Niklas Luhmann
trabalham com esta ideia de sistemas de subsistemas, diferenças sem uma metaidentidade ordenadora e
princípios afins.

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Ainda não estamos, claro, suficientemente avançados em nossa inspeção do sistema


das categorias para sermos capazes de decidir sobre se tal unidade existe ou não. As
considerações acima não contradizem a existência de um princípio maior da unidade.
Apenas a justificação para basear uma Teoria das Categorias na suposição de tal princípio
que é aqui contraditada, vendo este ponto de partida como uma sub-repção. Apenas a
Análise Categorial pode, na melhor das hipóteses, decidir se a suposição se justifica ou não
– não se pode antecipar isso. Em verdade, nem mesmo a Análise Categorial pode decidir a
questão, pelo menos se considerarmos o estado atual da pesquisa. Portanto, se alguém
quiser proceder com acurácia crítica, deve-se manter a questão em aberto
provisoriamente, contentando-se com uma pluralidade de elementos últimos concebíveis.

Essa correção não tem escopo sistemático insignificante. Se ela servisse apenas para
categorias ontológicas então a sua significância poderia aparentar ser pequena – o que é,
em última análise, uma impressão ocasionada principalmente pela alegação da unidade
suprema do ser! Mas o escopo amplo da philosophia prima estende-se do teórico para o
prático e para o estético, da ontologia para a axiologia. Neles, um interesse bem mais
imediato se junta à questão da unidade. Por exemplo, na ética, uma pluralidade original de
valores maiores significaria uma clivagem da vontade moral. A Ideia do “Bem”, portanto,
sempre falou acerca do postulado da unidade no reino dos valores. Todavia, até hoje uma
definição unívoca e substantiva desta Ideia não foi atingida; eras diferentes sempre
entenderam o “Bem” diferentemente. Se, todavia, com um método rigorosamente analítico,
nós penetrarmos naquilo que ainda é pouco inteligível, então perceberemos que, por trás
deste suposto relativismo do “Bem”, se esconde algo completamente diferente, a saber,
uma estrutura altamente complexa e unificada, não menos unificada por não ser um único
ponto. O “Bem” é todo um sistema de valores componentes e, consequentemente, ele é
sempre percebido apenas de forma fragmentária. A estreiteza da consciência de valores
humana não admite nenhuma outra maneira.

Então, no domínio da ética, o postulado da unidade também é um dogma incorreto,


visto que prevalece uma pluralidade de elementos, ao menos até onde conseguimos
enxergar. O reino dos valores também tem os seus próprios limites superiores e inferiores
de inteligibilidade. Tanto no domínio ético quanto no ontológico, além do limite acima
“pode” haver ainda, é claro, um princípio de unidade. Mas então o sistema iria ter de
convergir em direção ao seu topo. Podemos discernir se este é o caso no reino dos valores
de forma ainda menos clara do que fazemos no domínio das categorias da ontologia ou das
categorias da cognição. A porção inteligível do todo é ainda mais estreita aqui: os dois
limites estão mais próximos um do outro e, entre eles, os vãos do incognoscível são
maiores. Pode ser possível que esta situação desfavorável o seja ainda devido ao muito
recente desenvolvimento da axiologia.

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Pode ser esperado que no domínio estético a situação seja similarmente


desfavorável, ou provavelmente, ainda mais desfavorável. Muitas razões podem ser
facilmente providenciadas para isso. Ainda há muito pouca análise axiológica genuína
disponível neste domínio para ser possível que se forme um juízo definitivo58.

3.11 O Erro do Postulado da Harmonia [Der Fehler des Harmoniepostulats]

Ao lado do Platão tardio, Hegel deveria ser considerado como o pensador que tomou
a rejeição de uma unidade puntiforme superior mais seriamente. Quem vê em seu conceito
de “Razão” ou na “Ideia” tal ponto unificado incompreende fundamentalmente o caráter da
dialética hegeliana. As unidades superiores que emergem na dialética são sempre sínteses
superiores, mais complexas, tipos de estruturas mais sistemáticos, nunca mais simples.
Todos os estágios percorridos são “suprassumidos” [“aufgehoben”] neles – e “a verdade” é
sempre apenas no “Todo”. Em Platão, assim como em Hegel, é o método dialético que
permite esse pensamento profundo a amadurecer e o retira, por assim dizer, do letárgico
e habitual pensamento de um monismo puramente formal e preguiçoso. A dialética é o
inimigo natural do Erro Plotiniano. Tanto Hegel quanto Platão foram muito mal
compreendidos precisamente neste ponto.

Por outro lado, no entanto, esta conquista crítica parece ter sido paga com outra
tendência tão dogmática quanto – tendência esta que, é claro, não pertence apenas ao
pensamento dialético, mas geralmente emerge mais claramente dele do que em outros
lugares precisamente porque, aqui, outros erros já foram superados. Há a tendência para
o equilíbrio, à sintonização, à harmonia compreensiva.

A variação na demanda por unidade é também implícita aqui: se não há um ponto


unitário demonstrável, então a unidade ainda deve existir no sentido de que todos os
princípios estão em uníssono uns com os outros, a saber, discrepâncias e contradições não
podem existir. Ou melhor, na medida em que contradições surgem, elas devem se cancelar
pela sua interrelação em contextos mais amplos. O ser categórico deve ser sólido, sem
rachaduras, um ἕν συνεχής no sentido eleático. 59

Uma das mais antigas sabedorias filosóficas comuns é a de que o mundo é


construído por opostos, que suas categorias mais universais são polaridades, sendo o

58 NT: Esta “situação desfavorável” vai continuar na obra de Hartmann por décadas ainda. Apenas
postumamente, em 1953, que sua obra Estética será publicada, com centenas de páginas consolidando todo
este tempo refletindo sobre a arte, sobre a beleza e o sublime, sobre tipos específicos de artes, como a poesia,
belas artes, arquitetura, música e, especialmente, o teatro. Particularmente interessante é sua “ontologia do
objeto estético” (Capítulo 41), assegurando a autonomia filosófica do objeto de arte.

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empenho em superar tais oposições pela unificação tão antigo quanto elas. Heráclito
precedeu a todos com sua tese da “harmonia oculta” pela qual tudo se resolve; nela, todos
os opostos coexistem sem destruição ou cancelamento, eles equilibram a balança 5960. Tal
heraclitismo prevalece por toda a Antiguidade Tardia sem exceção, mesmo onde dualismos
mais sérios, como o entre o bem e o mal, estão amplamente escancarados. A teodiceia dos
estoicos também se agarrou firmemente à harmonia do logos. A teodiceia leibniziana não
é diferente: este o mundo é o mais perfeito, a justificação do mal está garantida porque a
harmonia, também neste sentido, é preestabelecida.

Já foi considerado que há uma simplificação e racionalização em tal procedimento


abrangente por todos os pensadores que viram as antinomias internas por trás das meras
antitéticas de opostos. Desde Zenão de Eleia, a presença de antinomias no mundo foi um
fato já familiar para os eleatas. Consequentemente, o problema é invertido: o que
inicialmente dado não é a univocidade, mas sim o conflito, a coexistência de elementos
contraditórios. Tal insight é impalatável para o pensamento sistemático pois ele contradiz
sua lei fundamental, o princípio da não-contradição. Esta lei dita que o contraditório é
impossível.

Levou muito tempo para que a ideia desconfortável de uma antinômica conseguisse
alcançar pelo menos um pouco de reconhecimento em face ao postulado bem mais simples
que é o da harmonia. A dialética antiga não estava disposta a tal demanda. As antinomias
de Platão no diálogo Parmênides ficaram isoladas e permaneceram ignoradas; Aristóteles
as varreu do mapa com o princípio de não-contradição; Plotino considerava o ἕν [hen, o
Uno] como razão última; os escolásticos acreditavam na bondade e na sabedoria do Ser
Superior; Nicolau de Cusa resolveu todos os problemas com o coincidentia oppositorum. A
Crítica da Razão Pura foi a primeira a enfrentar seriamente o problema das antinomias
novamente. De acordo com Kant, estamos lidando com “Antinomias da Razão Pura” em si.
A Razão está em conflito consigo mesma, já que tanto a tese como a antítese são necessárias
pela própria natureza da Razão. Este insight foi uma conquista histórica. As soluções que
Kant propôs, todavia, não são igualmente valiosas, pois elas são condicionadas por seu
ponto de vista, sendo soluções puramente idealistas.

Agora, a questão “é necessário que todas as antinomias sejam resolvidas?” surge


naturalmente. Não há um grão de verdade no repúdio de Zenão a todas as soluções? É claro,
Zenão também foi longe demais, pois rejeitou o espaço, a multiplicidade e o movimento

59NT: O “hen synechés” é uma referência ao Fragmento VIII do que restou do poema de Parmênides, onde
ele afirma que o Ser não “foi” nem “será”, ele é “por inteiro” ou “de uma vez”, ou expressões similares pelas
quais podemos traduzir o termo ἕν συνεχής.
60 NT: Referência à ἁρμονία ἀφανής (harmonia afanés) no Fragmento B54 de Heráclito.

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porque eles são antinômicos. Kant também rejeitou a tese e antítese das “antinomias
matemáticas”, decidindo a favor da tese das antinomias “dinâmicas”. Seria possível um
meio termo entre tais extremos igualmente desconfortáveis? Não poderia a antinomia
existir com boa razão, sem ser resolvida, mas também, desta maneira, sem cancelar o
assunto ao qual ela se anexa? Por exemplo, se o mundo é extensão ou divisão infinita? Que
direito temos nós de abandonar um assunto e sua compreensibilidade? Em outras
palavras: e se a antinomia fosse real e constituísse exatamente a natureza interna da coisa
– e todas as tentativas de a resolver não fossem apenas uma empreitada impossível, mas
também algo, desde o início, equivocado?

O idealismo, é claro, não pode nem cogitar essa possibilidade, nem a admitir. A
“razão” enquanto princípios se rebela contra ela: sua lei é o princípio da não-contradição,
o qual ela não consegue infringir. A ontologia, no entanto, não está atrelada a esse ponto de
vista. Já que antinomias são aporias puramente ontológicas, estamos justificados em
admitir a possibilidade de outra forma de legalidade para o que há (cujas estruturas de
legalidade são com o que estamos preocupados) para além da legalidade da razão. Ou seja,
estamos autorizados a cancelar o princípio da contradição [den Satz des Widerspruchs
aufzuheben]61.

Agora, a dialética hegeliana de fato seguiu neste caminho. Ela reconhece a


contradição como existente – e seu cancelamento (o “princípio da não-contradição”) é
cancelado62. Hegel imediatamente exagerou e universalizou a tese de que tudo é, de alguma
maneira, também contrário de si mesmo. Essa tese supercarregada resulta em um tipo de
esquema uniforme para a dialética, mas ele pratica violência contra o problema das
categorias. Mesmo assim, ainda há a possibilidade de se fazer justiça ao problema das
antinomias. A especialidade da dialética é rastrear elementos antinômicos ocultos onde

61 NT: Diversas metafísicas na contemporaneidade trabalham maneiras de “cancelar” ou de “superar” o velho


princípio aristotélico de não-contradição. Podemos citar as dialetéias de Graham Priest e as paradoxico-
metafísicas de Tristan Garcia, Jon Cogburn, Anna Tsing e Hilan Bensusan. No entanto, em nenhum deles
vemos a influência predecessora de Hartmann. Talvez sua presença seja maior na Teoria dos Sistemas de
Niklas Luhmann, através da influência de Hartmann no velho Bertalanffy, predecessor da teoria da
complexidade. Em Luhmann, vemos a substituição da unidade de um sistema pela diferença paradoxal que
constitui a diferença entre si e seu ambiente. Por exemplo, o sistema do direito não é “feito de” Ideias ou de
Estruturas Jurídicas Universais. Tal sistema é, simplesmente, a diferença paradoxal entre direito e não-direito
(Recht/Unrecht) que articula o seu interno com o ambiente em termos de fechamento operativo e abertura
cognitiva em termos de seu código operativo próprio que produz e coordena programas jurídicos
(comunicação social que é juridicamente codificada). Para mais informações, cf. Luhmann 2016, Luhmann
2010 e Bertalanffy, 2010.
62 NT: Esta é uma referência ao momento na lógica-real de Hegel em que “nega-se a negação”, ou “cancela-se
o cancelamento”. O segundo momento, o da dialética (posterior ao formal e anterior ao especulativo), é
extensivamente tratado no seu Ciência da Lógica e no primeiro volume da Enciclopédia das Ciências
Filosóficas.

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quer que estejam, realmente detectando inúmeros casos. Isto já era verdadeiro para a
dialética dos antigos e, para a dialética Hegeliana, é ainda mais o caso. Mas ela não pôde
colher os reais benefícios desta vantagem. Sua própria natureza estava no seu caminho.

A dialética hegeliana não é apenas um método antitético, mas, também, um


sintético. Cada discrepância que emerge está, sempre, já certa de reunificação; cada
antinomia certamente está por ser resolvida. O pensamento de Hegel continua totalmente
sujeito ao viés do Postulado da Harmonia. Ele apenas permite a contradição no que há para
mantê-lo inteiro – não para aniquilá-la [vernichten], mas sim para superá-la [überwinden].
Toda sua dialética é uma grande corrente de soluções às contradições descobertas. É este
constante triunfo da razão sobre a contradição que torna alguém justificadamente
perplexo por este método. Não é feita justiça à seriedade das antinomias dessa forma. É
claro que sínteses especulativas podem ser facilmente construídas para cada oposição
antitética escancarada, mas sínteses artificiais não são soluções. Mesmo onde elas não são
forjadas, mas podem ser demonstradas no fenômeno, elas ainda não são soluções. Ao invés
disso, a oposição antitética que se acredita ter superado é, na verdade, continuada na
“síntese”, persistindo nela ininterruptamente, demonstrando que a síntese é uma unidade
meramente aparente.

Assim são as coisas sempre que Hegel tem de lidar com antinomias genuínas e
irresolvíveis. Isso vale para um grande número de teses e antíteses desenvolvidas. O
método dele cega a lâmina da Antinomia. Para a Teoria das Categorias, este é o momento
informante sobre Hegel – informante em um sentido negativo, é claro, o Erro Hegeliano. Na
verdade, nenhum filósofo chegou tão perto de superar o Postulado da Harmonia quanto
Hegel. Ao mesmo tempo, nenhum se utilizou tanto deste Postulado de uma maneira tão
sistemática ou sem limites quanto ele.

É importante ser claro neste ponto. Não basta dizer que a alegação tradicional de
que “todas as antinomias devem ter soluções racionais” é falsa e descartá-la, alegando, ao
invés disso, que podem haver antinomias irresolvíveis. Não: qualquer antinomia capaz de
ser solucionada dificilmente pode ser chamada de uma antinomia genuína – não havia uma
contradição bem fundamentada nela. Uma contradição que pode ser superada é uma que
nem mesmo existe. Ela devia ser uma contradição imaginária desde o início, mesmo se isso
fosse talvez uma imaginação subjetivamente necessária. Uma antinomia genuína nunca foi
solucionada. É a eterna grandiosidade de Zenão, que não pôde aceitar qualquer concessão
quanto a esse ponto decisivo. A maioria de suas antinomias ainda estão irresolvidas até
hoje – e, certamente, não por acaso! O mesmo se aplica para as antinomias kantianas,
apesar das “soluções” propostas por Kant – talvez com a exceção da antinomia da
liberdade, mas então ela não seria nem mesmo uma antinomia genuína.

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Todas antinomias genuínas são necessariamente irresolvíveis. Isso não faz delas, de
forma alguma, insignificantes. Pelo contrário, apenas desta maneira que elas são
relevantes. Uma antinomia solucionável é uma “madeira de ferro”63. Falhar em reconhecer
esse ponto autoevidente é a raiz do Erro Hegeliano. É um preconceito racionalista sem
fundamento acreditar que os únicos problemas que devidamente existem são aqueles que
podem ser solucionados por meio da razão. Existem questões irresolvíveis em todo o lugar
– até de natureza não-antinômica – que ainda existem justificadamente e são, de fato,
absolutamente inevitáveis. Todas as questões metafísicas genuínas são desse tipo. Por que
deveria ser de outra forma justo com esse tipo de questão, uma antinomia? Em verdade, a
antinomia como tal significa precisamente o tipo de problemática sui generis na qual seu
caráter de ser irresolvível já é visível na forma do problema em si. Ou seja, na oposição
antitética, na óbvia, porém inevitável, contradição. De frente a tal problemática, todas as
chamadas “soluções” podem apenas ser soluções aparentes – ou mesmo uma visão
equivocada do problema. Todas elas têm apenas uma validade condicionada por um ponto
de vista – ou seja, elas não têm qualquer validade filosófica. Elas são tentativas de
unificação ou de harmonização do diferente, sem consideração prévia de se os termos
diferentes requerem ou são capazes de serem harmonizados. O entendimento humano, a
Ratio, tem a forma de unidade e univocidade, da qual brota sua tendência de fazer tudo que
é discrepante ser concordante, a força-lo sob o princípio de não-contradição a qualquer
custo. Esta é uma teleologia puramente subjetiva da ratio e é, no fundo, um caso especial
do mesmo racionalismo que encontramos no Erro Cartesiano: o grande, o macrocosmo, em
si indiferente a toda ratio, é mensurado pelo propósito meramente humano de querer o
conceber! Não surpreende que esta conta não fecha! O Erro Hegeliano é um surpreendente
testimonium paupertatis [testemunho da pobreza] da razão, precisamente no ápice de sua
Autoconsciência que está segura de sua vitória [siegesgewissen Selbstbewußtseins]. Aqui é
um dos principais pontos onde se deve inverter os métodos tradicionais da prática
filosófica para poder se colocar a caminho de uma ontologia realmente crítica e, além disso,
de uma philosophia prima crítica. Hegel corretamente viu que a oposição antinômica não é
a forma peculiar de algumas poucas questões cosmológicas, mas, sim, é a característica
universal das maiores questões fundamentais.

Levando essas reflexões em conta, a verdadeira natureza das antinomias


ontológicas não foi nem um pouco determinada. Pelo contrário, o insight positivo que se
ganha aqui é, em termos de conteúdo, negativo, um discernimento meramente crítico. A
saber, que não nos é permitido afirmar com antecedência nenhuma suposição em relação
à natureza da antinomia. Isso porque seu caráter de ser irresolvível [Unlösbarkeit] pode,

63NT: Tal expressão alemã, “hölzernes Eisen”, indica metaforicamente algo impossível. O tradutor para o
inglês, Keith Peterson, preferiu traduzir como um “círculo quadrado” para evidenciar isso.

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por si só, significar coisas completamente diferentes. Parece ser evidente, de certa forma a
priori, que duas opções básicas são possíveis aqui, as quais trago provisoriamente e não
gostaria que fossem interpretadas como alternativas estritas, visto que o trabalho sobre
esse problema não é maduro o suficiente para uma completa disjunção das possibilidades.

A primeira possibilidade é a de que o conflito está somente na razão, no


pensamento, ou no ordenamento da cognição humana, mas não no ser, i.e., não nos
princípios em si, com cuja concepção e formulação estamos lidando. Isso significaria que
não há conflito dentro do ser, o ser seria em si mesmo simples, uma harmonia. Significaria
que, para a razão, aparentaria existir um conflito no ser, o qual resulta dos princípios da
ratio em si. Os princípios apenas não seriam o suficiente para conhecer todas as
determinações do ser. Sabemos que nem toda categoria ontológica é, ao mesmo tempo,
categoria cognitiva. A disparidade surgiria apenas do fato de que categorias inapropriadas
são aplicadas. Então, neste caso, as antinomias não seriam ontológicas de forma alguma,
mas puramente fenômenos da cognição e, além disso, fenômenos-limite da cognição
[Grenzphänomene der Erkenntnis]. Não seriam antinomias do ser, mas, sim, da razão, tal
como Kant as entendia. Seu caráter de serem irresolvíveis seria apenas devido ao fato de
que a razão não pode ir para além de seus limites, que ela pode pensar apenas sob suas
próprias leis – e não sob as leis do ser enquanto tal. Em resumo, as antinomias seriam
simplesmente um caso especial do irracional – seja no concreto ou na categoria,
dependendo de em qual deles o conflito em questão se baseia. Em ambos os casos, a
irracionalidade não seria uma característica excepcional.

A outra possibilidade é a de que o conflito está no próprio ser. Se a antinomia


realmente for ontológica, a contradição é real, o que há é, o ser mesmo, em desarmonia,
sendo o conflito sua forma de ser. Neste caso, deve-se aceitar que o princípio de não-
contradição não é, na verdade, válido para o onticamente real, ou é apenas válido de uma
forma qualificada. Todavia, o fenômeno cognitivo da antinomia teria, então, um significado
completamente diferente do primeiro caso, a saber: se a ratio estiver sujeita à lei da não-
contradição, então ela deve necessariamente negar a inteligibilidade do fenômeno
contraditório em si mesmo. Ela pode ver que uma contradição real está lá, mas não pode
aceitá-la, não pode reconhecê-la ou admiti-la, não pode acreditar nela, porque a sua
natureza desafia a existência da razão. Assim, tal ratio não pode tomar como válido
precisamente o que é real. 64 65 A razão é constituída de tal maneira que ela deve investigar
e caçar incessantemente aquilo que não realmente existe e que não é necessário no real. A
coisa surpreendente aqui, que nos lembra do gênio maligno de Descartes, é que ela não
pode ser convencida de sua futilidade pelos seus fracassos – ela é incorrigível, condenada
a caçar para sempre algo que não existe devido ao fato de ela ser tão requerida por sua
autonomia subjetiva e por estar além do poder do sujeito de muda-la. De fato, ela deve ser,

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ISSN: 2675-8385
Nicolai Hartmann

em princípio, capaz de se aperceber disso, como essas considerações de agora em si


mesmas provam – o que não significa que a maldição do esforço infrutífero teria assim, de
uma vez por todas, sido removida. Ao invés disso, o pensamento filosófico deve também,
onde ele percebe tal caráter infrutífero, batalhar (por meio da pesquisa categorial) contra
os sempre renovados preconceitos, caso a caso, esforçando-se para alcançar a postura
crítica de renunciar à resolução e à harmonia. 66 64 65 66

Não temos que decidir por agora quais das duas possibilidades é a correta, ou se
existe uma terceira. Talvez possamos esperar por mais informações de uma Análise
Categorial detalhada de antinomias individuais. Outra possibilidade é a de que ambos os
casos existam lado-a-lado em antinomias diferentes, de forma que teríamos que distinguir
dois tipos de antinomia. De fato, no final das contas, os dois casos poderiam também serem
combinados em uma oposição antitética complexa, podendo um existir por trás do outro,
por assim dizer. Certamente não podemos decidir antes da Análise Categorial em favor de
uma ou de outra escolha. De toda sorte, é evidente que, em ambos os casos discutidos, está
claro acerca da natureza da antinomia que ela, em si, deva ser irresolvível.

O alcance de aplicação deste insight é imensurável. O preconceito contra vários


tipos de dualismo é superado por meio disso, já que todo dualismo se embasa em uma
relação antinômica de princípios. Em conclusão, daremos apenas dois exemplos sobre tal
tema. Nem todo o dualismo é tão inocente quanto o muito contestado dualismo da forma e
da matéria, o do bem e do mal, ou mesmo o da coisa-em-si e da aparência. O último destes
três não é uma antinomia genuína, o segundo é pelo menos debatível (todas as teodiceias
o contestam fundamentalmente), sendo apenas o primeiro irrestritamente genuíno. A
teoria dos princípios não dá ênfase a estes debates históricos, focando na relação entre

64 O estado de coisas que existe nesse caso é contrariamente exprimido nas palavras do poeta:
Leicht beieinander wohnen die Gedanken,
[Pensamentos juntos vivem lado-a-lado com facilidade.]
Doch hart im Raume stossen sich die Sachen.
[Mas coisas colidem umas com as outras no espaço com brutalidade.]
O que esses versos dizem não é falso; muito do que é impossível no mundo real é facilmente construído sem
esforço pelo pensamento. É um erro acreditar que a fronteira inversa não existe. O pensamento também não
está em posição de trazer tudo sistematicamente por conta própria, cuja verdadeira síntese já existe no ser.
As antinomias mostram que, no mundo atual, elementos contraditórios coexistem sem machucarem uns aos
outros, mas o pensamento é muito estreito para admitir isso: na sua dimensão, os elementos contraditórios
repelem uns aos outros.
65 NT: A tradução para o português dos versos em alemão é de nossa autoria; quaisquer infelicidades
literárias são de nossa responsabilidade, em nada maculando a beleza da escrita de Schiller.
66 NT: Talvez este final de frase poderia ter sido melhor fraseado, baseando-nos
no que tem sido apresentado,
da seguinte forma: “esforçando-se para alcançar a postura crítica de renunciar à obrigatoriedade de
resolução das antinomias e ao postulado da harmonia”.

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Tradução: Como é possível uma Ontologia Crítica?

categorias ontológicas e valores, ou entre princípios ontológicos e axiológicos. Um conflito


está, na verdade, embrenhado nesta relação que, de maneira geral, reina por todos os
cantos. Cada um dos dois tipos de princípios alega determinar apenas um e o mesmo
mundo. Todavia, ambos os tipos de determinação postulam elementos parcialmente
contrapostos. O mundo real, estando abaixo das categorias ontológicas, corresponde
apenas parcialmente às demandas que procedem dos valores. Tais demandas existem nem
um pouco menos legitimamente e não são nem um pouco prejudicadas por não serem
satisfeitas. Todo o fenômeno da vida ética (entre outras coisas) se baseia nessa
disparidade. Sua pressuposição é a incongruência entre Ser [Sein] e Dever-Ser [Sollen]. A
metafísica de todas as eras sentiu a insatisfação dessa dualidade aberta e buscou soluções
unificadoras. Procuraram compensar em ambos os eixos: o naturalismo tentou pela
primazia dos princípios ontológicos; e a teleologia, pela primazia dos princípios
axiológicos. Ambos fundamentalmente destroem o contexto problemático do fenômeno
ético. Naturalismo o destrói ao não deixar espaço para a atividade livre orientada a
propósitos [freie Zwecktätigkeit]; já a teologia o destrói porque transforma tudo que
acontece no mundo em algo orientado a propósito, alegando dessa maneira que, por detrás
dos humanos, absolutamente tudo, até o comportamento das pessoas, é necessário à luz de
algum valor. Ambas as relações de superioridade de um sobre o outro são errôneas em
princípio e fracassam em considerar o problema. Os fenômenos éticos inevitavelmente
demandam a coexistência desunificada e independente; além do conflito entre os dois tipos
de duas maneiras diferentes de determinação em um mundo único.

A legitimidade de oposições antinômicas não resolvidas pode ser percebida de


forma ainda mais vívida dentro do reino dos valores. Entre fenômenos éticos, há os
conflitos morais. O que se entende deste conflito não é a contradição entre impulsos morais
e imorais (tal como o conflito entre dever e inclinação em Kant) – mas é, sim, um conflito
entre dois impulsos morais, entre um dever e outro dever. Ou, dito de forma mais precisa,
entre um valor e outro valor. Esse é um conflito ético genuíno – tal como o conflito entre
justiça e amor – do qual não há saída sem culpa por um lado ou por outro. Se nós
pudéssemos arguir diminuindo sua relevância67, então, claro que a oposição antinômica
dos valores iria desaparecer. Porém, não podemos fazer isso. Um conflito mais profundo
subsiste atrás do conflito ético: um conflito entre os próprios princípios, o conflito puro e
ideal entre valores 68. Este conflito é uma forma especial de antinomia e é, em princípio, tão

67 NT: O verbo em alemão wegdeuten encontra um cognato no inglês, o “to explain away”. No entanto, em
línguas latinas, não há cognato direto. Este verbo se refere ao que pode ser entendido como um truque escuso
de retórica de alguém que, quando confrontado com um problema ou falha, faz um artificioso discurso para
tentar minorar que este algo seja de fato um problema, geralmente relativizando ou minorando sua
relevância, desqualificando o status de problema e até mesmo transformando-o em mero incômodo ou
indiscrição irrelevante de considerações adicionais.

Anãnsi: Revista de Filosofia, Salvador, v. 1, n. 2, 2020.


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Nicolai Hartmann

irresolvível quanto todas as outras antinomias genuínas. Sem ele, não haveria nada na vida
que o homem teria de decidir caso a caso por meio de sua própria responsabilidade. 68

Referências das Notas da Tradução

ADEODATO, João Maurício. Filosofia do Direito. 6ª ed. São Paulo: Saraiva, 2019

BAR-ON, Abraham Z. The Categories and Principle of Coherence. Dordrecht, Martinus Nijhoff, 1987.

BERTALANFFY, Ludwig von. Teoria Geral dos Sistemas – Fundamentos, Desenvolvimentos e


Aplicações. Petrópolis: Vozes, 2010.

COHEN, Hermann. Logik der reinen Erkenntnis. Berlin: Bruno Cassirer, 1902.

HARMAN, Graham. Object-oriented ontology – A new theory of everything. London: Penguin, 2018.

KANT, Immanuel. Crítica da Razão Pura. 9ª ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2018.

LEIBNIZ, Gottfried. ‘Monadologia’ in. Discurso de Metafísica e outros textos. São Paulo: Martins
Fontes, 2004.

LUHMANN, Niklas. O Direito da Sociedade. Trad. Saulo Krieger. São Paulo: Martins Fontes, 2016.

LUHMANN, Niklas. Introdução à Teoria dos Sistemas. Ed. Javier Torres Nafarrate, trad. Ana
Cristina Arantes Nasser. Petrópolis: Vozes, 2010.

MOHANTY, Jitendranath. Nicolai Hartmann and Alfred North Whitehead: A Study in Recent
Platonism. Calcutta: Progressive Publishers, 1957.

PLATÃO. “Mênon” in. Diálogos. Volume V. Bauru, SP: Edipro, 2010.

WHITEHEAD, Alfred N. Processo e Realidade – Ensaio de Cosmologia. Lisboa: Centro de Filosofia da


Universidade de Lisboa, 2010.

68 NT: A ideia de que devemos prestar atenção com especial vênia ao “conflito de valores” ou “conflito de
princípios” era comum na cena intelectual advinda do neokantismo de Baden. Outro filósofo e jurista
associado a esta Escola era Gustav Radbruch, autor de diversos livros sobre filosofia do direito nos quais ele
lida com este conflito de valores, tais como o respeito que um operador do direito deve ter para com o
soberano e a dignidade da pessoa humana. Seu trabalho foi ofuscado pelo positivismo grosseiro durante o
nazismo, retornando com toda força após a Segunda Guerra. Toda a jurisprudência contemporânea dos
princípios deve a Radbruch e ao americano Ronald Dworkin sua origem. O balanceamento de princípios
jurídicos, hodiernamente, é encabeçado mundialmente pelo filósofo e jurista alemão Robert Alexy, grande
entusiasta de Radbruch. Não podemos evitar de confabular como seria uma teoria dos princípios jurídicos
embasada nos três volumes da Ética de Hartmann. O Professor João Maurício Adeodato, associado à
Faculdade de Direito de Vitória (ES), escreveu um livro sobre filosofia do direito baseada na Ética e em outros
trabalhos de Hartmann (Adeodato, 2019), pavimentando o caminho para uma prospectiva pesquisa sobre
princípios jurídicos.

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ISSN: 2675-8385
Revista Anãnsi, Salvador, 2020
Ft./ Ana Amélia R. Souza (@urbanovoyeur2)
Tradução: A propaganda ameaça a democracia?

Universidade do Estado da Bahia, Campus I


Departamento de Educação

A propaganda ameaça a democracia? 1


Um debate entre Edward Bernays e Ferdnand Lundberg, (1938)

Tradução e Introdução de Flávio Rocha de Deus 2

Introdução - A propaganda e a nossa liberdade para gastar milhões

Desde o primeiro signo convencionado


quando a linguagem assim foi inventada
propaganda é a finalidade primeira
de toda sequência ou isolada palavra

Relativamente pouco comentados no debate brasileiro da sociologia das massas


em comparação a seus contemporâneos da Teoria Crítica de Frankfurt, Edward Bernays
(1891-1995), considerado por muitos o patriarca dos estudos de propaganda e relações
públicas, e o jornalista Fernand Lundberg (1902-1995), antigo docente de Filosofia Social
da Universidade de Nova York e profundo pesquisador da história da riqueza
estadunidense, em 1928 se reuniram em uma edição da extinta revista The Fórum para,
cada um deles – claramente opositores – responderem a seguinte pergunta: Pode, de fato,
a propaganda interferir na democracia? É possível que um ato persuasivo e massificado
com a finalidade de influenciar pessoas consiga interferir nos resultados de um regime
político pautado nas escolhas das massas populares?

Ambos os debatedores estão de acordo com a natureza da propaganda – este


experimento mercadológico, muitas das vezes assertivo, que visa direcionar as opiniões,
desejos e comportamentos de seus públicos – e seu poder nas sociedades modernas,
porém, estavam em desacordo acerca da ameaça deste fenômeno aos regimes
democráticos e se este mesmo fenômeno e seu aumento crescente eram bons ou não para
as coletividades contemporâneas e futuras.

1
Does Propaganda Menace Democracy? A Debate. The Forum, June 1938, pp. 341-345
2Graduando em Filosofia pelo Departamento de Educação do Campus I da Universidade do Estado da Bahia.
Professor da rede privada de ensino, Professor Colaborado do Pré-Vestibular Gradação da Universidade
Federal de Pernambuco e Residente Pedagógico de Filosofia do Instituto Federal da Bahia. Integra também o
Grupo de Pesquisa Literatura, Cinema e a Nova Gramática Política. E-mail: rocha.iflavio@gmail.com

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Edward Bernays e Ferdnand Lundberg

Bernays tinha uma visão pessimista acerca das possibilidades de autonomia dos
indivíduos com relação a seus desejos e impulsos imediatos, considerados pelo mesmo
como biológicos e instintivos. Para ele, a forma de direcionar tais pessoas para o caminho
mais adequado é a propaganda. Em muitas de suas obras, principalmente em seus ensaios
The Engineering of Consent (1947) e The Minority Rules (1927), ele expressa que a massa
cega precisa ser guiada e que os propagandistas são a minoria responsável por guiar tais
rebanhos para uma sociedade melhor. O que o mesmo prega é que a propaganda é um
instrumento para o entendimento das populações que pelo acesso as informações
selecionadas pela minoria responsável teriam melhores condições de opinar acerca da
sociedade que legisla. Para o autor, a propaganda pode ser entendida como um reflexo da
solidificação da democracia já que é o principal veículo para a liberdade de expressão. Ou
seja, é uma liberdade que deve ser garantida pelos regimes democráticos, pois proporciona
a livre apresentação, discussões e descarte de ideias, posicionamentos e opiniões
pertinentes ao debate público.

Já Lundberg, com mais sobriedade, percebe aqui a propaganda como um direito


limitado às classes dominantes que o usam como forma de consolidar ou influenciar a
sociedade para seus interesses particulares. Ele vê a liberdade de propaganda como uma
ilusão, pois tal liberdade apenas “garante a todos, ricos ou pobres, o direito de gastar
$10.000.000 em um jornal diário para falar sobre qualquer assunto”. Lundberg entende
não apenas os profissionais de relações públicas como propagandistas, ele acrescenta
outras profissões a este o hall, por exemplo: filósofos, pesquisadores e professores, porém,
há neles uma grande diferença com relação ao propagandista profissional: nenhum deles,
pelo menos a princípio, não possui como finalidade primeira a tarefa de moldar o
pensamento público através de artifícios, semi-enganações ou meias-verdades. Naqueles a
finalidade primeira é a produção de informações para o melhor entendimento dos
fenômenos do mundo, no caso deste, como bem aponta o autor, “é um meio cujo o dinheiro
é a prioridade” e “quem paga o flautista dá o tom”.

A revista The Forum (1885-1950), que por muito tempo foi o um dos poucos
jornais amplamente acessíveis à afro-americanos do estado de Nova York, era uma revista
reconhecida e respeitada pelos debates de proeminentes autores acerca das questões
políticas e sociais da época que tem se mostrado cada vez menos superáveis. O debate a
seguir protagonizado por Edward Bernays e Ferdnand Lundberg é um destes no campo da
discussão acerca dos limites e poderes que operam a as mídias e quais liberdades envolvem
o processo moderno, reprodutível, de propaganda.

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Tradução: A propaganda ameaça a democracia?

A propaganda ameaça a democracia?


Um debate
Caldeirão de Ideias
Edward L. Bernays

A maioria das empresas hoje depende da opinião pública. A opinião pública é o fator
básico em todo projeto que envolve a sociedade ou qualquer parte dela. A Guerra Mundial
dramatizou para o mundo inteiro o fato de que a opinião pública poderia ser moldada. Hoje
percebemos que, para que qualquer projeto continue sendo bem-sucedido, é necessário
primeiro obter e depois manter o apoio público. A boa vontade é frequentemente o ativo
mais importante em um balanço.

Isso é verdade por vários motivos. Hoje, a alfabetização é generalizada. O progresso


tecnológico foi tremendamente acelerado nos últimos 30 anos. A transmissão mecânica de
ideias – através de prensas de impressão, rádio, filmes e outros métodos modernos – foi
acelerada. Ideias e objetos em competição entre si se multiplicaram bastante.

Para sobreviver nesta luta pela aprovação do público e obter o apoio do público é
necessário um julgamento especializado. Isso levou ao nascimento e desenvolvimento de
uma nova atividade – o profissional de relações públicas. Interpretar de cliente para
público e do público para cliente tornou-se a função desta nova profissão. Grupos e
indivíduos dependentes de interesse público e apoio se valem dos conselhos deste novo
profissional.

De um ponto de vista amplo, o conselheiro de relações públicas funciona para


aprofundar o entendimento comum entre conhecido e desconhecido, entre instituições de
serviço social e apoiadores, entre as organizações empresariais e o público – consumidor,
trabalho, acionista – ou entre qualquer grupo e o público em cujo bem será que é
dependente.

A atividade do profissional de relações públicas deve ser julgada em termos dos fins
que ele serve. Ele pode ser uma força para fins sociais ou não sociais. Isso também é
característico de outras profissões. A mesma condição existe, por exemplo, na medicina e
na lei, que podem ser usadas socialmente ou abusadas socialmente.

Em suas atividades, o conselho de relações públicas pode, entre outras coisas,


aconselhar seu cliente a realizar educação ou propaganda de adultos para um ponto de
vista ou projeto específico. A competição pela atenção do público no mercado hoje é tão
intensa que essa educação ou propaganda para adultos é essencial. Todo mundo na
América é livre para usar propaganda. Pode ser e, às vezes, é empregado para fins não
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sociais. Isso faz parte da nossa herança democrática. É importante, no entanto, que seja
empregado para fins socialmente sólidos. Os líderes com mentalidade social devem
conhecer o significado, a direção e o modo de funcionamento da opinião pública para
exercer influência. As atitudes e ações de homens e mulheres e como elas são determinadas
não podem ser ignoradas pelos interessados em manter a democracia. Em um mundo em
que milhares de jornais diários, milhões de rádios, filmes e outros canais apresentam
milhares e milhares de símbolos conflitantes para o interesse e a atenção do público, é
essencial que as causas do som sejam garantidas em todas as oportunidades de
sobrevivência.

II

A propaganda é uma tentativa de modificar as ideias ou o comportamento das


pessoas sem coerção; é uma tentativa de influenciar atitudes ou ações públicas. A
propaganda, se for livre, pode ser feita a voz do povo na democracia de hoje. A liberdade
de opinião – de propaganda – é uma liberdade civil básica. O direito à liberdade de
expressão é garantido pela Constituição. A liberdade de opinião – de propaganda – está em
pé de igualdade com as outras grandes liberdades civis: liberdade de expressão, de religião,
de imprensa, de assembleia e de petição. A liberdade de propaganda em uma democracia
oferece a todas as pessoas um fórum livre para o conflito de ideias e a concorrência do
mercado – sendo um livre fórum e competição partes integrais do nosso sistema atual.
Nosso processo democrático depende no direito do indivíduo de projetar seu ponto de
vista, mesmo que seja diferente do de seus companheiros.

A apresentação de fatos e pontos de vista oferece a todos uma escolha quanto ao


curso de ação que ele pode seguir. Aqui na América, a liberdade de opinião – de propaganda
– existe. Sob regimes autoritários isso não é verdade. Aqui muitos pontos de vista são
expressos livremente. Nos países autoritários, apenas um ponto de vista é permitido. Força
e coerção implementam isto. Através da interação, em uma democracia, de discussão,
argumento e persuasão, somos salvaguardados. Todos os grupos e opiniões têm, portanto,
a oportunidade de serem ouvidos.

A aceitação pública de novas ideias, na medicina, no serviço social, nos negócios, nos
processos políticos, foi provocada pela educação pública e pela propaganda.

A propaganda também é uma ferramenta importante na mudança social. As ideias


das minorias tornam-se eficazes mais rapidamente como resultado disso. Os produtos da
ciência e da invenção, do laboratório e da oficina, penetram mais rapidamente na inércia
do público através da propaganda. A aceitação pública da eletricidade, do automóvel, do
rádio, do Raio-X, das toxinas e antitoxinas, para fins socialmente sólidos, foi acelerada pela
propaganda eficaz. A propaganda aplica os princípios da psicologia de massa à persuasão.

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Tradução: A propaganda ameaça a democracia?

Ele tenta uma maior aceitação de ideias antigas, de novas ideias e de objetos novos ou
antigos.

As universidades americanas nos últimos vinte anos deram maior atenção às


ciências sociais, à sociologia e psicologia, ao estudo de toda a nossa estrutura social e
econômica. A Depressão acelerou esse movimento. Como parte disso, a opinião pública
como um tópico de estudo entrou como nas grandes universidades modernas. Várias delas
reconhecem que estes cursos em opinião pública são, na verdade, cursos sobre técnicas de
liderança. “Treinamento para relações públicas é essencialmente treinamento para a
liderança”, disse um importante professor universitário. Entender e estudar a opinião
pública são fatores vitais no mundo de hoje e no de amanhã. Em um estudo recente feito
pelo escritor Doris E. Fleischman, havia universidades e colégios por todo o país que
ofereciam cursos em opinião pública e relações públicas.

Em um artigo esplêndido na revista Nação, o "Riscos - A Chave de Recuperação",


Sumner H. Slichter, professor de economia empresarial na Escola de Administração de
Empresas da Universidade de Harvard, diz: "Uma vez que os negócios conquistam a boa
vontade da comunidade, a relação dos negócios com o governo segue seu próprio rumo".
Certamente, essa conquista da boa vontade do público pelas empresas é um grande
problema de relações públicas.

Então o Dr. Slichter continua:


Da capacidade das democracias de incentivarem investimentos dependerá
também suas capacidades de manterem as oportunidades abundantes e,
portanto, de um conflito social moderado e de evitar a repressão e a
arregimentação que são os resultados inevitáveis de graves conflitos
sociais.

Precisamos primeiro entender a propaganda e depois utilizá-la efetivamente para


que o povo do país conheça a democracia sob a qual vive. Devemos efetivamente enfrentar
a competição de ideias hostis que tentam conquistar o público. Devemos tentar encontrar
e projetar símbolos da democracia. Símbolos são atalhos para a compreensão – palavras,
figuras, ideias, ações usadas como simplificações, que formam a moeda da opinião, da
propaganda. Devemos encontrar e utilizar os símbolos que refletem nosso sistema atual, a
fim de evocar respostas favoráveis de nosso público. Precisamos encontrar símbolos
eficazes para a democracia.

Um sociólogo eminente disse que a liderança se baseia na capacidade de entender,


interpretar e utilizar símbolos. Incapacidade de fazê-lo indica uma escassez de liderança.
Os americanos devem reconhecer que, na propaganda, têm à mão uma ferramenta pronta
para confirmar, validar todos os elementos sobre os quais repousam nosso passado,
presente e futuro.

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Edward Bernays e Ferdnand Lundberg

Liberdade para distorcer a verdade


Ferdnand Lundberg

Não se deve concordar que "a liberdade de opinião – de propaganda – está em pé


de igualdade com as outras grandes liberdades civis - liberdade de expressão, de religião,
de imprensa, de assembleia e de petição". Mas é preciso também discriminar
rigorosamente, pois essa verdade pode ser usada para ocultar muitas negociações duplas.
Pois, enquanto hoje nos Estados Unidos todos estão livres para se propagandear, a
liberdade é, infelizmente, em grande parte apenas teórica. É, de fato, muito parecido com a
liberdade de imprensa, que garante a todos, ricos ou pobres, o direito de gastar
$10.000.000 em um jornal diário para falar sobre qualquer assunto.

A liberdade de propaganda é, obviamente, parte da liberdade de expressão. No


entanto, não justifica atividades que vão contra os interesses sociais. Tanto como a
liberdade de expressão não justifica mentiras, boatos cruéis, calúnias ou fofocas maliciosas,
a liberdade de imprensa não justifica publicidade falsa, enganosa ou de alimentos e
medicamentos nocivos.

A palavra “livre” tem nuances de significado e um mal especial sobre a maior parte
da propaganda contemporânea é que ela não é "gratuita"3 pois custa dinheiro, que
geralmente está nas mãos de grupos antissociais dedicados a estreitar o interesse próprio
e não ao comum bem-estar. As críticas e discussões sobre propaganda hoje, o observador
astuto é obrigado a notar, não ocorreram porque a propaganda foi usada para ajudar a
sociedade; surgiu, pelo contrário, porque a propaganda e os propagandistas profissionais
tem sido hostis à sociedade. Por seu trabalho secreto e furtivo, os propagandistas se
esforçaram mais por derrotar do que por promover os fins da democracia, mesmo quando
aplaudiram a democracia para continuar suas atividades.

Em outras palavras, não é porque a propaganda tenha sido utilizada com a


finalidade de eliminar as favelas da cidade, elevar os níveis de remuneração dos
trabalhadores, aprovar leis de compensação dos trabalhadores, reduzir armamentos,
reabilitar os agricultores do sul ou promover medidas sociais progressivas que, em geral,
está sob fogo. A propaganda se fez alvo de severas acusações porque, enfeitada com os
trajes da democracia, como um véu no traje de uma mulher virtuosa, tem se oposto
firmemente às reformas enumeradas e, também, por métodos injustos e negligentes,
combatido boas medidas para os serviços públicos, a redução das altas tarifas e dos preços
dos serviços públicos em geral, a promulgação de leis de salário mínimo e de horas

3 NT: Lundberg está apontando a dupla significação da palavra “free”, que pode significar tanto “livre” quanto
“gratuito”.

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ISSN: 2675-8385
Tradução: A propaganda ameaça a democracia?

máximas, a continuação da ajuda para os desempregados, o aumento de hospitais públicos


gratuitos, escolas e parques, o início de um amplo programa habitacional nacional e
medidas similares de bem-estar geral.

Quem paga o flautista dá o tom. Interesses, empresas e indivíduos excessivamente


ricos, enfurecidos por serem obrigados a contribuir para a reconstrução social pelo
pagamento de impostos justos, gastaram milhões de dólares desde a última guerra em
propaganda socialmente destrutiva. Ao fazer isso, eles colocaram toda a técnica do
propagandista profissional sob escrutínio justificável. O debate sobre propaganda hoje é,
então, basicamente um ramo do debate sobre a distribuição da renda nacional. O ataque
aos propagandistas não é, da mesma forma, um ataque a um direito democrático, mas uma
defesa de uma democracia que é comprometida por propagandistas plausíveis, de passos
suaves e invisíveis que envenenam os poços da opinião pública.

Certamente, não pode haver objeção democrática a qualquer propagandista que


se comprometa a dizer a verdade sobre uma corporação, instituição ou pessoa, desde que
seja toda a verdade ou que a verdade contada não seja enganosa e também que ele
francamente admite que está propagandeando e diz quem está pagando pela propaganda.
Inquestionavelmente, existem empresas que fizeram e estão fazendo trabalhos
socialmente úteis e o público deve ser informado sobre elas. Também existem algumas
perguntas sobre quais pessoas conceberam ideias desequilibradas ou inadequadas, sendo
um serviço público apresentar o outro lado – se não for calagem4. Mas poucos
propagandistas contemporâneos revelam tais padrões ou princípios e talvez nunca o fará
– não importa quantas organizações “profissionais” e códigos de ética existam – enquanto
ainda existirem poderosos interesses particulares ou interesses que não sabem o suficiente
para se adaptarem aos bem-estar comum.

II

Antes de prosseguirmos, deve-se estabelecer que virtualmente todos os


envolvidos em expressões formais escritas ou faladas são propagandistas de alguma causa
ou valor geral ou pessoal. Platão, Aristóteles, Espinosa, Tomás de Aquino, Santo Agostinho,
Pasteur, Maomé, Confúcio, Cristo – todos esses eram, fundamentalmente, propagandistas.
De fato, todos os professores, filósofos, teólogos e cientistas são realmente propagandistas,
engajados em avançar preceitos que conotam certas ações e atitudes. Até o artista que
denuncia toda a propaganda lá de sua torre de marfim está, na verdade, fazendo

4 NT: O termo “whitewashing”, traduzido por calagem, é uma prática discursiva de se pegar coisas
consideradas problemáticas, politicamente incorretas ou muito grosserias/bizarras e “passar uma mão de
cal”, como dizem no Brasil, para tentar fazer parecer que é algo bom e aceitável – ou, pelo menos, inofensivo
e desimportante.

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ISSN: 2675-8385
Edward Bernays e Ferdnand Lundberg

propaganda contra a ideia do artista ter um papel ativo, presumivelmente degradante, em


assuntos práticos escusos.

No entanto, todos os grandes propagandistas da história foram francos sobre o


que eles queriam que as pessoas fossem e fizessem. Nenhum deles foi retido por terceiros
invisíveis, a fim de influenciar e moldar o pensamento público por falsas indicações,
discrições e meia-verdade. Cada um deles era franco, dedicado ao que ele passara a
considerar após muita reflexão particular como a verdade, toda a verdade e nada além da
verdade. Alguns exemplos atuais de propagandistas que servem a verdade retirados de
vários campos são, em minha opinião, Albert Einstein, John Dewey, Charles A. Beard e
Thomas Mann.

Os propagandistas profissionais que seguiram as novas técnicas de comunicação


como abutres sobrevoando a carniça não são desta raça. Parece-me que eles estão prontos
para espalhar, furtivamente, qualquer opinião, boa ou ruim, pela qual são pagas. Na
natureza das coisas, elas só podem servir ao poder econômico e social concentrado e
privilegiado, que é um poder exercido mais ou menos arbitrariamente sobre a massa do
povo, tanto em contextos políticos parlamentares quanto em ditatoriais. Ainda está para
ser ouvida a notícia de um propagandista profissional passando fome em um sótão por
causa de sua devoção à verdade.

São as propagandas dos grupos que servem ao poder, às quais estão ligados os
propagandistas profissionais, sem exceções visíveis, que hoje causam mais alarme por
subversão da inteligência pública sólida. A própria existência desses propagandistas
profissionais implica para seus clientes poderosos que eles não precisam se preocupar em
apoiar ou incentivar reformas fundamentais. Tudo o que é necessário, está implícito, é um
pouco de "interpretação" do cliente para o público e um pouco de "moldagem" do público
no interesse do cliente. Tal estado de espírito em lugares altos, promovido por conselheiros
de relações públicas, pode apenas impedir o progresso normal e ordenado, pode
armazenar apenas ciclones sociais para o futuro. Em todos os países europeus dominados
por ditadores pode-se ver que a propaganda se tornou um substituto para o pão e também
para a inteligência.

A propaganda puramente comercial, embora difundida por grupos de poder, é


talvez a menos perigosa de todas. Há muito disso, em primeiro lugar, que tende a se
cancelar. Além disso, é de pouca importância social se as pessoas são induzidas a comer
laranjas da Flórida em vez de laranjas da Califórnia, ou a beber chá em vez de café.

É quando a propaganda comercial se desenvolve, como muitas vezes sob o ímpeto


de sua lógica interna, em propaganda antissocial – projetada para promover
agressivamente um estreito comercialismo sob o disfarce de uma grande verdade – que se
torna prejudicial ao bem-estar público. Um exemplo desse tipo de propaganda comercial
totalmente desenvolvida é encontrado na longa, dispendiosa e fútil campanha das
empresas de serviços públicos, para minar por inverdades cruéis a ideia construtiva de

240 Anãnsi: Revista de Filosofia, Salvador, v. 1, n. 2, 2020


ISSN: 2675-8385
Tradução: A propaganda ameaça a democracia?

propriedade pública. Embora a campanha tenha falhado miseravelmente em atingir seu


objetivo – como alguns podem insistir complacentemente, ela depreciou, no seu curso,
professores de carreira, editores, ministros, escritores e palestrantes.

Justifica-se, portanto, dizer que, embora essas campanhas de propaganda não


atinjam seus fins – para grande desgosto dos generais de propaganda, que, com ligeiras
razões, gostam de posar diante de seus clientes estupidificados como se fossem Maquiavéis
– eles, no entanto, fizeram muito dano positivo. A única diferença real entre um profissional
de relações públicas e um agente de imprensa de circo é que o profissional de relações
públicas convenceu outra pessoa a colocar os pôsteres nos celeiros. As pessoas, no entanto,
tendem a considerar aqueles com quem eles concordam como publicistas – e aqueles com
quem eles discordam, como propagandistas.

III

A VERDADE nem sempre é estranha ao propagandista profissional, embora alguns


concordem com Joseph Goebbels de que uma mentira frequentemente repetida é
misteriosamente transmutada em verdade. Mas, se uma verdade forte pode ser feita para
servir a um fim desagradável, o propagandista profissional geralmente não vê razão para
descartá-la apenas porque é verdade.

O grão de verdade na propaganda que levou os Estados Unidos à Guerra Mundial


foi que a democracia é uma coisa boa e deve ser preservada. Os agrupamentos financeiros
e comerciais que pagaram a propaganda, no entanto, não estavam realmente preocupados
com a democracia na prática. E, como as forças antiguerra previram, a autocracia se
espalhou em vez de retroceder após a Guerra e nossos padrões morais nacionais foram
rebaixados.

Da mesma forma, o fabricante de uma pasta de dente inútil está prestando


reverência à verdade quando ele exorta as pessoas a escovar os dentes e a visitar um
dentista, embora ele esteja realmente interessado apenas em comercializar seu produto de
baixa qualidade.

Admita-se, há boas propagandas, propagandas socialmente úteis. Mas o fato de a


propaganda estar sendo usada corretamente no esforço de livrar a nação da sífilis não
justifica a propaganda dirigida contrariamente à emenda contra o trabalho infantil, nem a
que atualmente está tentando nos cegar para os males da exploração ditatorial das
corporações sob o pretexto de restaurar a "confiança" nos motivos de certos empresários
suspeitos.

Uma boa propaganda, como na atual campanha para educar as pessoas sobre a
sífilis, é franca. Ele declara e se analisa abertamente e sem equívocos. A má propaganda,
circulada em nome de um interesse egoísta por um fim privado que custará caro ao público,

Anãnsi: Revista de Filosofia, Salvador, v. 1, n. 2, 2020.


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ISSN: 2675-8385
Edward Bernays e Ferdnand Lundberg

não pode fazer isso sem se derrotar. A má propaganda – isto é, a maior parte da propaganda
– nada mais é do que um prato desagradável servido com molhos apetitosos. Se as pessoas
pudessem provar o prato sem o molho elas simplesmente iriam vomitar em nove de cada
dez vezes.

As observações do Sr. Bernays me parecem confirmar esta análise. Ele se refere


ao público, por exemplo, a algum tipo de animal cego e não inteligente, a ser puxado pelo
nariz e "moldado" por professores invisíveis, cuja boa-fé não foi endossada por nenhuma
instituição de ensino superior, cujos clientes são desconhecidos, cujos métodos não estão
abertos ao escrutínio e cujos fins estão vestidos de escuridão. Esse público é composto por
homens, mulheres e crianças dos Estados Unidos, que devem, acredito, saber algo sobre os
pratos que estão sendo preparados pelos cozinheiros invisíveis.

Bernays diz também que nenhum "projeto" pode ser bem-sucedido sem o apoio
do público, mas projeto é uma palavra dolorosamente vaga. A maioria dos projetos neste
mundo não merece apoio público. Os nazistas, por exemplo, têm um projeto que pede o
extermínio dos judeus. Sendo esse o caso, devemos aplaudir aqueles que se esforçam para
obter apoio público para o projeto?

Não: o fato é que propagandistas profissionais, utilizando técnicas conspiratórias,


são úteis apenas para enfiar garganta abaixo das pessoas algo a que as elas realmente se
opõem. O povo alemão tem problemas de verdade com os judeus, que fizeram muito para
enriquecer a cultura alemã. Os propagandistas nazistas realmente não consideram os
judeus uma ameaça. Mas os judeus são úteis como bodes expiatórios. Eles servem para
distrair o povo alemão do verdadeiro problema, que são os agrupamentos sedentos pelo
poder dos financiadores, dos empresários e dos proprietários de terras alemães.

Mas que diferença faz a miséria de um povo para o propagandista profissional? Se


o cliente estiver satisfeito, isso é tudo o que importa.

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ISSN: 2675-8385
Revista Anãnsi, Salvador, 2020
Ft./ Ana Amélia R. Souza (@urbanovoyeur2)
Artigos Da biopolítica à necropolítica: veredas decoloniais entre...

Universidade do Estado da Bahia, Campus I


Departamento de Educação

Da biopolítica à necropolítica: veredas decoloniais entre


Michel Foucault e Joseph-Achille Mbembe
De la biopolitique aux nécropolitiques: chemins décoloniaux entre Michel
Foucault et Joseph-Achille Mbembe.
Renan Vieira de Santana Rocha 1
Wesley Barbosa Correia 2
Jeane Saskya Campos Tavares 3

Resumo: O presente estudo, estruturado sob o desenho de uma recensão crítica, tem por objetivo
compreender se a construção do conceito de necropolítica, tal e qual se apresenta na obra mbembiana,
configura-se com um status decolonial diante do conceito de biopolítica, tal e qual se apresenta na obra
foucaultiana. Para tal, em um primeiro momento, apresentamos considerações iniciais acerca da perspectiva
decolonial e do porquê de sua defesa no âmbito da produção de conhecimento; em um segundo momento,
apresentamos breve comentários sobre a obra foucaultiana, e sobre a definição de biopolítica; em um
terceiro momento, apresentamos comentários mais detidamente construídos sobre a obra mbembiana, e
sobre a definição de necropolítica; e, em um quarto e último momento, apresentamos considerações finais
acerca de como a perspectiva decolonial se apresenta na obra de Joseph-Achille Mbembe. Das análises
realizadas, com salvaguardas, ressalta-se ter sido possível constatar que o conceito mbembiano, deveras,
assume um status decolonial diante do conceito foucaultiano, ao ponderar, de maneira mais diretiva, a
realidade social, econômica e política do Eixo Sul Global.

Palavras-Chave: Biopolítica; Necropolítica; Decolonialidade; Michel Foucault; Joseph-Achille Mbembe.

Resumée: La présente étude, structurée sous la forme d'une revue critique, vise à comprendre si la
construction du concept de nécropolitique, tel qu'il apparaît dans l'ouvrage de Mbembian, est configuré avec
un statut décolonial face au concept de biopolitique tel qu'il est. apparaît dans l'œuvre de Foucault. À cette
fin, dans un premier temps, nous présenterons les premières considérations sur la perspective décoloniale
et pourquoi elle est défendue dans le cadre de la production de connaissances; dans un second temps, nous

1 Psicólogo, Mestre e Doutorando em Saúde Coletiva pela Universidade Federal da Bahia, Especialista em
Estudos Étnicos e Raciais pelo Instituto Federal da Bahia. Docente da Universidade Salvador. E-mail:
renanvsr@gmail.com. ORCID: orcid.org/0000-0003-4981-2854.
2 Graduado em Letras e Mestre em Literatura e Diversidade Cultural pela Universidade Estadual de Feira de

Santana, Doutor em Estudos Étnicos e Africanos pela Universidade Federal da Bahia. Docente do Instituto
Federal da Bahia. E-mail: wesleybcorreia@yahoo.com.br.
3 Psicóloga, Doutora em Saúde Pública pela Universidade Federal da Bahia. Docente da Universidade Federal

do Recôncavo da Bahia. E-mail: jeanesctavares@gmail.com.

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ISSN: 2675-8385
Renan Vieira de Santana Rocha, Wesley Barbosa Correia e Jeane Saskya Campos Tavares

présenterons de brefs commentaires sur les travaux de Foucault et sur la définition de la biopolitique; dans
un troisième temps, nous présenterons des commentaires plus élaborés sur le travail de Mbembien, et sur la
définition des nécropolitiques; et, dans un quatrième et dernier moment, nous présenterons des
considérations finales sur la façon dont la perspective décoloniale se présente dans l'œuvre de Joseph-Achille
Mbembe. A partir des analyses effectuées, avec garde-fous, il est mis en évidence qu'il a été possible de
vérifier que le concept Mbembien, en effet, assume un statut décolonial face au concept foucaldien, en
considérant, de manière plus directive, la réalité sociale, économique et politique de l'Axe Sud Global.

Mots-Clés: Biopolitique. Nécropolitiques. Décolonialité. Michel Foucault. Joseph-Achille Mbembe.

Preâmbulo conhecimento – ao observarmos, por


exemplo, a relação entre o conhecimento
A produção de conhecimento
científico ocidental e o conhecimento
desenvolvida, hoje, a nível global, é algo
baseado na sabedoria popular – mas
notável em diferentes áreas do conheci-
também se expressa na medida dos
mento, como é o caso das Ciências
espaços geográficos e dos seus respectivos
Humanas, Sociais e da Saúde. Nota-se, a
conflitos geopolíticos – por exemplo, o
partir do acesso a diferentes meios de
conhecimento produzido no Eixo Norte
produção e troca de conhecimento – como
Global, como na América do Norte e na
as revistas indexadas e as bases de dados
Europa, notadamente ocupa um lócus de
online nacionais e internacionais – que os
poder e de direcionamento científico e
diferentes saberes e fazeres de múltiplas
filosófico bastante distinto daquele
áreas vão se construindo cotidianamente a
ocupado pelo conhecimento produzido no
partir de experiências acadêmicas, cientí-
Eixo Sul Global, como na América Latina e
ficas e literárias diversas, multifacetadas,
na África.
fazendo do conhecimento que, hoje,
produzimos uma colcha de retalhos Em outras palavras, mas ainda
coletivamente tecida e incessantemente dialogando com tais perspectivas, o que se
reconfigurada. produz como síntese é que vivenciamos
uma espécie de colonialismo contem-
Não obstante, também sabemos
porâneo que se processa no âmbito do
que esta produção de conhecimento a
simbólico, cujos símbolos maiores se dão
nível global não se dá em igualdade de
no reconhecimento e na valorização de
condições para todos os espaços,
determinados saberes e fazeres, em
territórios e suas respectivas populações.
detrimento de outros tantos saberes e
Boaventura de Sousa Santos (2007),
fazeres, distintos dos primeiros. Isto posto,
pesquisador e sociólogo português, diz que
e compreendendo que a dimensão geopo-
há uma estratificação intencional dos
lítica, aqui, é quem estrutura e sustenta
diferentes conhecimentos e das diferentes
tais distinções, cabe-nos romper com as
formas de produzi-lo, onde, preten-
amarras desta (neo)colonialidade, rumo a
samente, se afirma haver, ainda que
um movimento de negação desta condição,
simbolicamente, uma hierarquia de tais
e de produção de um outro lugar simbólico
saberes e fazeres. Esta hierarquia se dá na
para nós, do Eixo Sul Global, em específico.
medida dos próprios “tipos” de

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Artigos Da biopolítica à necropolítica: veredas decoloniais entre...

A este movimento de rompimento com tais Destarte, e dialogando com os


“grilhões” e de produção de outros loci estudos sobre poder como categoria
possíveis, dentro da perspectiva central, produzidos a partir destes
epistemológica que fora batizada como diferentes eixos globais, é que
Epistemologias do Sul, denominamos apresentamos e justificamos o presente
Decolonialidade (Cf. SANTOS; MENESES, estudo. O objetivo geral do mesmo é
2009). precisamente o de compreender se a
construção do conceito de “necropolítica”,
Os discursos que sustentam a
tal e qual se apresenta na obra
defesa de um posicionamento crítico à
“Necropolítica” (2003), do camaronense
colonialidade do saber são, contudo, em
Joseph-Achille Mbembe, configura-se com
números absolutos, ainda poucos; mas já
um status que possa ser dito como
bastante expressivos em termos de
decolonial diante do conceito de
polifonias também orientadas a partir do
“biopolítica”, tal e qual se apresenta na
Eixo Sul Global – a exemplo dos estudos do
obra O nascimento da biopolítica (1979),
argentino Aníbal Quijano (2005) e da são-
do francês Michel Foucault. Tal
tomense Inocência Mata (2014; 2016).
propositura se dá pelo reconhecimento de
Mesmo que com disputas epistemológicas,
que, nas teorias sobre o poder e sobre as
por vezes, bastante específicas, é ponto
relações de poder, Michel Foucault possui
comum a ideia de que não é suficiente ler a
um amplo destaque – inclusive na
realidade do Eixo Sul Global e de suas
realidade do Brasil (Cf. FERREIRINHA;
questões sociais, econômicas e políticas a
RAITZ, 2010). Contudo, ao analisarmos a
partir das “lentes” do Eixo Norte Global4.
obra de Joseph-Achille Mbembe, veremos
Logo, provocam-nos, em distintas
que o mesmo procura dar continuidade às
instâncias, e em diálogo com a ideia
análises produzidas por Foucault, mas
supracitada da diversidade dos saberes e
agora inseridas em uma profunda
fazeres, a produzir, contextualizar e/ou
ponderação sobre os conflitos (p.ex.:
contemporizar conhecimentos que, de
geopolíticos, bélicos, étnico-raciais, etc.)
fato, dialoguem com as nossas questões,
da modernidade, e destacadamente os
recentrando análises e conceitos que
vivenciados na realidade do Eixo Sul
historicamente foram/podem ter sido
Global.
utilizados sobre nós, mas sem nós – ao
destacarmos, por exemplo, estudos e Doravante, para alcançar tal
textos de análise dos povos ameríndios, objetivo geral, respondendo à pergunta
pela via do primitivo ou do exótico, entre que o mesmo erige, utilizar-nos-emos de
outros fartos exemplos históricos. uma metodologia denominada de
recensão crítica (MESQUITA, 2009;
SCHNEIDER; SCHMITT, 1998); neste caso,

4 Cabe registrar que, a princípio, ao propormos a ideia de decolonialidade, conforme aqui se apresenta, não
queremos reduzir uma importante discussão sobre epistemologia e metafilosofia a uma mera questão sobre
regionalismos. Contudo, para fins do presente estudo, parece-nos importante destacar como as questões
territoriais e geopolíticas possuem destaque nas análises das diferentes autoras e autores que se debruçam
sobre a defesa de uma perspectiva decolonial nas ciências e na filosofia.

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de tipo dupla (por serem analisadas duas pedagógico para a compreensão da obra
obras), comparativa (por colocar ambas as foucaultiana do que uma distinção
obras analisadas em perspectiva de taxonômica proposta pelo próprio
convergências) e contrastiva (por, em Foucault. No entanto, nos interessa aqui
igual medida, colocar ambas as obras reproduzir esta categorização, de forma a,
analisadas em perspectiva de a partir dela, desvelarmos que a linha
divergências) – conforme se verá a seguir. histórica do pensamento foucaultiano foi
sempre diversa e fervilhante, fazendo de
seus conceitos uma malha nem sempre
Sobre Foucault, o Biopoder e a conforme de reflexões sobre o humano e
Biopolítica suas relações, mas sempre atenta ao
exercício de formas de influência, controle
Michel Foucault foi um filósofo
e dominação de seres humanos por seres
ensaísta francês, professor da cátedra de
humanos – o poder (FOUCAULT, 1979).
“História dos Sistemas do Pensamento”, no
Collège de France, de 1970 até 1984. Em Para iniciarmos, assim, uma
sua produção acadêmica e científica, reflexão sobre o pensamento de Foucault a
acabou por tornar-se o que, hoje, partir do biopoder e, principalmente, da
denominaríamos como um “intelectual de biopolítica, é preciso guarnecer-nos dos
vanguarda”, haja posto o caráter elementos constituintes da gênese desses
extremamente político e progressista de conceitos, com os quais poderemos melhor
suas produções, e seus posicionamentos guarnecer-nos da própria teoria fou-
firmes no sentido de uma análise do caultiana, presente no livro O nascimento
mundo e de suas relações sociais, da biopolítica 5, publicado originalmente
econômicas e políticas, especialmente também em 1979, oriundo das trans-
expressas em termos de relações de poder crições dos discursos proferidos por
(Cf. FERREIRINHA; RAITZ, 2010). Foucault no Collège de France, em curso
concebido e realizado entre os anos de
Pela complexidade de sua produção
1978 e 1979.
acadêmica e científica, Foucault é
compreendido, na literatura, a partir de Tanto o curso quanto o livro foram
três “fases”: uma que se dá em termos de produzidos em um momento histórico
uma arqueologia das ciências humanas; peculiar, que se dá no contexto do “pós-
outra que se dá em termos de uma Guerras Mundiais” – contexto de tensões e
genealogia das formas contemporâneas de disputas políticas entre os Estados Unidos
subjetivação; e uma última, inacabada, se da América (EUA) e a, hoje extinta, União
assim o podemos dizer, em que a ética é das Repúblicas Socialistas Soviéticas
definida como a expressão mais política e (URSS), cujo cenário de fundo apontava
potente de um cuidado de si (cf. ibidem). para uma disputa de âmbito muito maior,
Ressalta-se que estas “fases” possuem que seria entre dois modelos
muito mais um caráter didático- socioeconômicos radicalmente distintos e

5Aqui não trabalhamos com o curso de Foucault Em defesa da sociedade, obra em que discute o conceito de
o tema do racismo de Estado, sobretudo quanto ao “direito de conquista” reclamado pela colonialidade.

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Artigos Da biopolítica à necropolítica: veredas decoloniais entre...

opostos: o capitalismo e o socialismo. Como modificar esses dados, como


Assim, em suas três primeiras aulas, modificar essa moldura para que a
economia de mercado intervenha? E vocês
Foucault apresenta o seu objeto de análise
veem aí uma coisa sobre [a qual] tomarei
primeira, qual seja, um esforço de daqui a pouco: que, afinal, tanto a
“racionalização da prática governamental intervenção governamental deve ser
no exercício próprio da soberania política” discreta no nível dos processos
(ibidem, p. 4), tendo como alvo majoritário econômicos propriamente ditos, como, ao
contrário, deve ser maciça quando se trata
de suas análises o Estado, inclusive em sua
desse conjunto de dados técnicos,
dimensão de “abstração” e “inexistência”. científicos, jurídicos, demográficos,
Foucault revela como o Estado, bem como digamos, grosso modo, sociais, que vão
o governo e os seus governados, trata-se tornar-se agora cada vez mais o objeto de
de concepção universal, mas que, em intervenção governamental (ibidem, p.
193).
verdade, não existe – sustenta-se em uma
espécie de pacto coletivo de cessão de Foucault vai se debruçar sobre as
poder, em que este agente, ainda que características específicas do modo liberal
abstrato, organiza, regula e normatiza a de governar, ponderando-se o contexto
vida social, em termos do que é correto e temporal e espacial do século XVIII. Nesta
incorreto, normal e patológico, aceitável e diretiva, há de analisar a posição da
inaceitável, essencial e descartável. Europa diante do restante do mundo, em
uma relação que se conforma em uma
Foucault aponta para uma mudança
díade “nós-eles”, em que o “nós” se
no modus operandi de governar a partir do
constitui em uma estrutura civilizada –
século XVIII, em que, com a ascensão do
social, econômica e politicamente mais
liberalismo, o mercado passa a ter uma
avançada – e o “eles” como o espaço da
função primordial ante o próprio Estado –
barbárie, mas também de obtenção do que
inclusive sendo capaz de questioná-lo e de
extrair, transformar e vender – logo, uma
fragilizá-lo, no sentido de quem, de fato,
extensão subalterna de seu mercado, ou
exerce o poder ante as relações sociais,
uma “colônia”.
políticas e, especialmente, econômicas.
Foucault chega ao ponto de analisar os Nas aulas seguintes, Foucault
limites impostos pelo liberalismo ao apresenta a concepção do que seria uma
Estado que, ao mesmo tempo, o mantém “fobia do Estado”, em que o medo da
existente, questionando-se: “[...] qual o população com relação ao Estado seria
valor de utilidade do governo e de todas as similar ao medo desta mesma população
ações do governo numa sociedade em que com relação a uma bomba atômica – o que
a troca é o que determina o verdadeiro nos recorda o panopticon foucaultiano e
valor das coisas?” (ibidem, p. 64). Por nos evoca, novamente, o espectro do poder
conseguinte, nas palavras de Foucault de aniquilação do qual o Estado goza.
(2008): Analisando o neoliberalismo alemão, por
exemplo, Foucault se questiona em como a
[...] dado o processo de regulação
econômico-político, como modificar essas liberdade econômica (ou seja, o
bases materiais, culturais, técnicas, neoliberalismo em si) poderia, ao mesmo
jurídicas que estão dadas na Europa? tempo, “fundar e limitar o Estado”.

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Foucault infere que a resposta se dá no mediação não poderia resultar em uma


âmbito da suposta “liberdade” que o outra fragilização que não fosse a do
liberalismo e o neoliberalismo apregoam, Estado de Direito. Mais ainda, Foucault
ao passo em que, pelo princípio do laissez- procurará pensar sobre como estas
faire, laissez-passer6, o mercado deveria fragilidades do neoliberalismo se
funcionar totalmente livre, sem quaisquer correlacionaram, historicamente, com a
interferências, inclusive de taxações, por instauração de Estados totalitários,
parte do Estado, mas tão somente com leis configurando tal processo, a despeito do
suficientes para proteger o direito à que se poderia esperar, em um prejuízo à
propriedade privada (direito este basilar governamentalidade do Estado no século
nos projetos liberal e neoliberal de XX – vide o exemplo (quase que) atual das
sociedade capitalista). Aqui, vislumbramos ditaduras latino-americanas.
que, para o pensamento foucaultiano, o
Caminhando para o final de suas
Estado deveria sustentar a sua imagem
análises, Foucault irá se deter também
suprema de exercício do poder, mas sem
sobre a experiência neoliberal global a
interferir no plano das relações
partir de uma comparação entre contextos
econômicas; ou seja, um Estado forte, mas
europeus e o contexto norte-americano e
com um governo mínimo. No entanto,
estadunidense, compreendendo que os
iremos notar que, em Foucault, tal
fenômenos do pós-Guerras Mundiais
correlação entre Estado, governo e
influenciaram economicamente a ambos
mercado não pode dar-se desta maneira,
em maior ou menor medida, mas de
mesmo no liberalismo e no neoliberalismo,
maneira relativamente similar. O autor
haja posto que uma concorrência
procura compreender, inclusive, em que
desregulada poderia resultar em uma
medida estes ideais de âmbito econômico
espécie de caos econômico.
foram influentes em formas de pensar e
Foucault seguirá desenvolvendo o organizar a sociedade como um todo,
conceito de neoliberalismo, em que, para conferindo ao status econômico um grau
ele, a grande questão que se revelava na de centralidade no processo de
transição de um sistema liberal para um organização das sociedades modernas e
outro sistema, de tipo neoliberal, era como contemporâneas. Ademais, compreen-
poderia ser possível regular o exercício do dendo ter a economia alcançado um
poder político por parte do Estado, elevado grau na composição e na
mantendo em sua base os princípios de organização da sociedade, Foucault se
uma economia regida pelo próprio ocupa de pensar em como este elemento se
mercado – desafio que, a princípio, incute na própria forma de impor lógicas
podemos afirmar não ter sido superado na de existência e de vida ante as diferentes
proposta econômica do liberalismo populações de governados; ou, em outras
clássico. Logo, Foucault chegará à palavras, quais os artifícios os quais será
conclusão de que a tentativa desta preciso que o Estado e os grandes

6 “Laissez faire, laissez aller, laissez passer, le monde va de lui-même”, que significa, literalmente, “Deixai
fazer, deixai ir, deixai passar, o mundo vai por si mesmo” (FOUCAULT, 2008).

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Artigos Da biopolítica à necropolítica: veredas decoloniais entre...

reguladores da economia lancem mão para Curiosamente, inclusive, conclui-se


manter os governados (e seus corpos) na que, se nas perspectivas liberal clássica e
condição de subalternizados, seguindo o neoliberal, melhor será o Estado quanto
seu comportamento um estrito código de menos este exercer a sua função de
conduta compartilhado por todas e todos, governo, melhor será a sociedade se esta
sendo exercido, como vimos na metáfora for regulada tão somente pelas trocas
do panóptico, sobre nós, para nós, através econômicas e pela sua capacidade de
de nós e conosco. valorar estas trocas continuamente,
cabendo a cada sujeito a suposta liberdade
Em síntese, durante todo o
de deslocar-se ante este(s) sistema(s)
percurso do livro, Foucault se utiliza do
econômico(s), pela via do labor, conforme
liberalismo e do neoliberalismo para
o rigor produtivista e, acima de tudo,
pensar as relações de poder manifestas em
comportamental que lhe seja esperado.
nível hegemonicamente econômico,
influenciando as dimensões social e Eis a base da biopolítica. Esta se
política da organização da sociedade e, sustenta na precisão de estruturar um
consequentemente, do controle dos sistema de controle e dominação dos
subalternizados ante os detentores do corpos, padronizando-os, para que um
poder disciplinar e homogeneizador. Diz sistema socioeconômico estruturado de tal
da necessidade, inclusive, de incutir nos forma funcione, utilizando-se, inclusive, da
“homens” a compreensão de seu papel inquestionável cooperação dos corpos
ante a organização da sociedade, subalternizados e subordinados. De que
compartilhando sentidos laborais outra forma seria possível fazer a
produtivistas (capitalistas) que bem sociedade caminhar pelos passos
sirvam ao Estado e, supostamente, à desejados por quem detém o poder, se não
totalidade da população, via controle de pela via de dar absoluta centralidade à
corpos. Observemos: capacidade dos sujeitos em acumular
capital e, em comum acordo com o código
Quando se tem homens em grande número
que podem subsistir e que gozam de boa de conduta esperado, gozar da suposta
saúde, é necessário zelar por sua atividade. liberdade atribuída por este mesmo
Por sua atividade, entender, antes de mais sistema?
nada, o fato de que não fiquem ociosos. Pôr
para trabalhar todos os que podem A partir de tal ponderação, cabe-
trabalhar é a política voltada para os nos, então, o questionamento de como
pobres válidos. Prover unicamente as estes mecanismos operam não apenas o
necessidades dos pobres inválidos. E será
controle da vida e dos corpos, mas também
também, muito mais importante, zelar
pelos diferentes tipos de atividade de que o de como esses mesmos mecanismos
os homens são capazes, zelar para que, estruturam políticas de morte, de
efetivamente, os diferentes ofícios de que erradicação da diferença e de extermínio
se necessita, de que o Estado necessita, planejado e projetado dos “descartáveis”
sejam efetivamente praticados, zelar para
ou, mais ainda, dos “insubmissos” – sob a
que os produtos sejam fabricados de
acordo com um modelo que seja tal que o influência, inclusive, das discussões sobre
país possa se beneficiar (ibidem, p. 436). a raça e o racismo. Isto é o que esperamos

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Renan Vieira de Santana Rocha, Wesley Barbosa Correia e Jeane Saskya Campos Tavares

encontrar na próxima seção, a partir da em que medida o cunhar do termo


leitura da produção de Joseph-Achille necropolítica (e, de forma adjunta,
Mbembe. necropoder) significa, diante do conceito
foucaultiano de biopolítica – sobre o qual
dialogamos na seção anterior – um
Sobre Mbembe, o Necropoder e a movimento em conformidade com o
Necropolítica pensamento dito decolonial – motivo pelo
qual, como já sinalizamos, centralizaremos
Joseph-Achille Mbembe é um
a nossa análise na obra “Necropolítica”.
filósofo ensaísta, historiador e cientista
Assim, aqui, arguimos: o conceito de
político, nascido em 1957, na República de
Mbembe, em relação ao de Foucault, pode
Camarões, na África Central. Nos dias
ser caracterizado como decolonial? Em
atuais, atua como professor e pesquisador
quais aspectos o conceito de necropolítica
universitário junto ao The W. E. B. Du Bois
destaca-se como decolonial em relação ao
Institute for African and African-American
conceito de biopolítica, com o qual se
Research, da Harvard University. Tornou-
relaciona?
se conhecido pela publicação de ensaios
acadêmicos e livros que versam, em sua A obra, para além de sua Introdução
grande maioria, acerca da transição e de sua Conclusão, é composta de cinco
histórica do colonialismo para o tópicos, sendo todos eles interdepen-
neocolonialismo, observando sempre dentes e cadenciados, em termos do
atentamente como as questões políticas da desenvolvimento teórico do texto, em sua
raça, do racismo e das “máquinas de íntegra. Enquanto conceitos centrais, que
guerra” estiveram conjuntamente produz- serão desenvolvidos ao longo de todo o
zindo normas e comportamentos sociais ensaio, temos não apenas as concepções de
variados e distintos quando observados no biopoder, biopolítica, necropoder e
contraste entre os Eixos Sul e Norte necropolítica, mas também as concepções
Globais, mas que, de maneira uníssona, de Estado de Exceção, soberania e políticas
caminham no sentido de uma suposta de morte, onde, logo a princípio, Mbembe
autorização da erradicação de vidas – já começará o seu texto a partir de uma
concepção introdutória esta à qual afirmação frontal: “Exercitar a soberania é
retomaremos mais à frente, e ao longo de exercer controle sobre a mortalidade e
toda esta seção. definir a vida como implantação e
manifestação de poder” (MBEMBE, 2016,
Dentre suas obras mais marcantes,
p. 123).
certamente podemos citar a Crítica da
razão negra (publicada, originalmente, em Mbembe não inicia o seu texto
2013, sob o título de Critique de la raison refutando Foucault, mas sim abrindo
nègre) e a “Necropolítica” (publicada, frestas teórico-críticas que nos permitem
originalmente, em 2003, sob o título de questionar até qual ponto, exatamente, o
“Necropolitics”) (JESUS; SAMPAIO, 2017). autor francês em questão foi capaz de
Em diálogo com a nossa pergunta de avançar em sua produção acadêmica sobre
investigação, interessa-nos compreender o próprio biopoder, especialmente pelo

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caráter central que a economia ocupa no nazifascista, a partir de seu direito de


estudo de Michel Foucault. Mbembe exercício da soberania – direito este
retoma a ideia foucaultiana de que a humanamente produzido e conferido, ao
produção da noção de Estado e de longo da história, à figura do Estado,
soberania cunharam a própria compre- enquanto centro de exercício supostamen-
ensão de que este ente – o Estado – te legítimo do poder – operou políticas de
conserva em si um suposto “direito de Estado capazes de, com o consentimento
matar”, instituído no sentido concreto e de uma parcela majoritária da população
simbólico da definição de “guerra”, e em alemã, exterminar e erradicar, enquanto
defesa dos sistemas sociais – mas, em projeto, determinados sujeitos classifi-
verdade, em defesa da economia. No cados como prejudiciais ao desenvol-
entanto, ao ponderarmos o Estado em sua vimento civilizatório (e socioeconômico)
dimensão de abstração, os questiona- daquele projeto de sociedade.
mentos mbembianos se ampliam ainda
Para tal, Mbembe dirá que é
mais, acerca de quem é o sujeito de tais
preciso, em primeira instância, produzir
ações. Ele provoca:
isto a que aqui chamamos de “projeto de
A guerra, afinal, é tanto um meio de sociedade”, enquanto um conjunto
alcançar a soberania como uma forma de normativo coletivamente pactuado e repli-
exercer o direito de matar. Se
cado, em que assumimos comportamentos
consideramos a política uma forma de
guerra, devemos perguntar: que lugar é e padrões sociais aceitáveis, conformando
dado à vida, à morte e ao corpo humano a própria civilização. Doravante, compre-
(em especial o corpo ferido ou morto)? endendo estar aí também a correlação
Como eles estão inscritos na ordem do entre soberania e política, diz que:
poder? (ibidem, 123-124).
[...] a expressão máxima da soberania é a
A partir de tais concepções produção de normas gerais por um corpo
introdutórias e do lançamento de uma (povo) composto por homens e mulheres
série de perguntas ao biopoder e à livres e iguais. Esses homens e mulheres
biopolítica, Mbembe inicia o primeiro são considerados sujeitos completos,
capazes de autoconhecimento,
tópico de seu ensaio, intitulado “Política, o
autoconsciência e autorrepresentação. A
Trabalho da Morte e o ‘Tornar-se Sujeito’”. política, portanto, é definida duplamente:
Neste tópico, Mbembe pretende um projeto de autonomia e a realização de
desenvolver a correlação entre soberania e acordo em uma coletividade mediante
política de morte, refletindo sobre quais comunicação e reconhecimento. Isso, nos é
dito, é o que a diferencia da guerra
sujeitos operam ambos os lados destas
(ibidem, p. 124).
relações de poder. Toma como mote inicial
a experiência alemã e europeia do Para que este projeto de sociedade,
nazismo, para descrever como este orientado pela soberania de um
sistema político funcionou enquanto um determinado padrão coletivamente
símbolo das políticas de extermínio da pactuado e replicado seja eficaz, é preciso
diferença, facilmente rememoráveis pela instituí-lo na dimensão de um biopoder,
população mundial. Neste sentido, enquanto exercício de influência, controle
conforme o autor, o Estado alemão e dominação de vidas e corpos que seja

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operado sobre o povo, mas também a produção de modos de morte, de modos de


partir do povo; internalizado enquanto morrer e, sobretudo, de modos de matar.
expectativas socioeconômicas sobre o Fica patente aqui a relevância do
outro e, logicamente, sobre si mesmo; a pensamento mbembiano para analisarmos
“soberania é, portanto, definida como um as guerras da contemporaneidade, mas
duplo processo de ‘autoinstituição’ e também fenômenos sociais como o
‘autolimitação’ (fixando em si os próprios genocídio da juventude negra no Brasil.
limites para si mesmo)” (ibidem, p. 124).
Ainda neste tópico, Mbembe se
Notemos que Mbembe, neste debruçará sobre duas dimensões
momento, ainda parte de uma concepção filosóficas que lhe parecem interessantes
de soberania que não é necessariamente para pensar a morte enquanto construto
atrelada, de maneira compulsória, a uma social. A princípio, ele dialoga com a
política de morte. Soberania, na medida da perspectiva do filósofo alemão Hegel, ao
compreensão que Mbembe traz aqui, a ponderar que, no paradigma hegeliano, o
partir da leitura de Foucault (2008), se combate à morte é o que funcionará como
constitui pela própria constituição do dimensão fundante do sujeito, ainda que,
Estado e das regras socioeconômicas que por ironia, ao combatê-la durante toda a
este ente nos impõe e que, nós, enquanto sua vida, o sujeito acabe por aproximar-se
parte da sociedade regida pelo próprio dela. Em seguida, ele dialoga com a
Estado, compactuamos com tal – basta perspectiva do filósofo francês Bataille,
retomar o que vimos, neste estudo, na cujas ideias, conforme Mbembe, se
seção anterior. Contudo, é deste ponto que aproximam do paradigma hegeliano, mas o
Mbembe se propõe a avançar o avançam ao pensar o lugar central que o
pensamento biopolítico foucaultiano, ao “costume” ocupa ante a sociedade,
dizer que a sua preocupação se dá com inclusive em termos dos pactos sociais
aquelas formas de soberania cujos acerca do que é aceitável e do que é
projetos centrais são o da “instrumen- inaceitável – fundamentando a
talização generalizada da existência possibilidade, inclusive, de erradicação da
humana e a destruição material de corpos diferença pela via da morte.
humanos e populações” (ibidem, p. 125).
Ora, pensando a partir de Hegel e
Deste ponto, fica nitidamente Bataille, Mbembe dirá que “a soberania
definida a dimensão de soberania em exige que a força para violar a proibição de
Mbembe, inclusive em termos de uma matar, embora verdadeira” (ibidem, p.
crítica inicial às demais concepções que 127) esteja sob condições definidas a
possamos assumir. Não por uma indicação partir dos costumes socialmente
de que as tais concepções anteriores se pactuados e convencionados. Logo, “ao
revelem como equivocadas, mas sim contrário da subordinação, sempre
porque, ao pensarmos no colonialismo e enraizada na alegada necessidade de
na passagem para o neocolonialismo (e o evitar a morte, a soberania definitiva-
neoliberalismo), precisamos pautar as mente demanda o risco de morte” (ibidem,
soberanias construídas a partir da p. 127). Por conta disto, a política, diante

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de uma soberania que pressuponha a real de classes), a raça foi a sombra sempre
obediência a um certo padrão de presente sobre o pensamento e a prática
das políticas do Ocidente, especialmente
comportamento socialmente aceitável, em
quando se trata de imaginar a
certos momentos, necessitará lançar mão desumanidade de povos estrangeiros – ou
de tecnologias de morte – o que fará com dominá-los (ibidem, p. 128).
que Mbembe a defina, ao fechar o seu
Com efeito, ele dirá, acerca do
primeiro tópico, como “a diferença
racismo, que:
colocada em jogo pela violação de um
tabu” (ibidem, p. 127), ou seja, a serviço de [...] em termos foucaultianos, racismo é,
um possível “trabalho da morte”. acima de tudo, uma tecnologia destinada a
permitir o exercício do biopoder, ‘aquele
Em seu segundo tópico, intitulado velho direito soberano de morte’. Na
“O Biopoder e a Relação de Inimizade”, economia do biopoder, a função do
racismo é regular a distribuição de morte e
Mbembe procurará desenvolver a tese
tornar possível as funções assassinas do
aberta no tópico anterior, onde se diz que, Estado. Segundo Foucault, essa é ‘a
se a política pode ser o trabalho da morte, condição para a aceitabilidade do fazer
a soberania pode ser a expressão do morrer’ (ibidem, p. 128).
direito de matar, em prol de um tabu, e Dialogando com estas concepções,
assegurada pela existência de um Estado Mbembe dirá que o racismo funcionará de
legitimador de tal política. Ele tomará maneira primordial na legitimação de
como base o conceito de Estado de discursos que sustentem o direito à
Exceção, no qual, pensando experiências erradicação de vidas, ao apontar que, em
distintas, tal estrutura de Estado determinados tempos e espaços
rapidamente legitimou políticas de morte históricos, o discurso sobre as questões
em caráter físico e simbólico – como, por raciais apareceram como discursos, em
exemplo, nos ocorridos na experiência das verdade, acerca de possíveis questões que
câmaras de gás, do nazifascismo alemão; supostamente poderiam prejudicar
da guilhotina, na Revolução Francesa; e da determinadas populações em seu desen-
escravidão, em todo o continente africano. volvimento civilizatório. Aqui, ele toma
Mbembe pondera que estes novamente como exemplo o nazifascismo
exemplos acima citados, legitimados pela alemão, em que tais ideias ganharam
existência de Estados de Exceção, não tamanha força que tornaram possíveis, aos
podem ter descartada de sua análise a olhos da sociedade, as existências de
observação contundente dos loci onde foi tecnologias de morte como as câmaras de
posicionada a raça em tais tempos e gás e os “fornos” para a morte autorizada
espaços históricos. Pensando o biopoder de judeus. Esta morte autorizada não se
foucaultiano, especialmente no contexto processa, em Mbembe, a partir de uma
do encontro entre povos europeus e povos pura e simples crueldade; antes, ela
africanos, ele diz que: incorpora ideais socioeconômicos e
civilizatórios tais que, em defesa de um
Afinal de contas, mais do que o
certo projeto de sociedade, caberá, assim,
pensamento de classe (a ideologia que
define história como uma luta econômica “extirpar males”. Logo, a desumanização

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de determinados corpos serve modo geral) (ibidem, p. 131, grifo do


perfeitamente a uma certa moral que, ao autor).

não observar determinados tipos Neste exemplo histórico, vemos,


humanos como sujeitos, aprende a tolerar mais uma vez, o poder manifesto sobre os
tais políticas de morte. corpos desviantes – o biopoder – como um
Em sequência, Mbembe se poder que transita entre a vida e a morte,
debruçará sobre o conceito de “terror”, e também entre o direito, em matérias
especialmente ao analisar a experiência da foucaultianas, ao “deixar viver” e ao “fazer
escravização de povos africanos. Para que morrer”. A espetacularização de tal
se instale o terror, é necessário desu- processo – a partir das punições públicas,
manizar em absoluto os corpos desviantes como os açoites e inúmeras outras
que se deseja controlar. Logo, a morte pela torturas físicas e psicológicas de caráter,
via da espetacularização cumpre a função em geral, público – seria, adicionalmente,
de, ao aterrorizar corpos desviantes, central à lógica aqui discutida: o terror
assujeitá-los ao desejo de quem detém o seria instrumento de produção de
poder. Assim, em uma política regida pelo docilização de corpos, condição sine qua
terror, diz Mbembe que “o ‘erro’ seria non para o exercício da biopolítica.
reduzido; a verdade, reforçada; e o Parceira da espetacularização, a
inimigo, eliminado” (ibidem, p. 130) – despersonalização também teria função
física e simbolicamente, produzindo uma central: desidentificar os sujeitos de seus
conjunção que, aqui, denominaremos agrupamentos sociais, responsabilizando-
como terror-morte. os pelos elementos corporais e
Nesta diretiva, Mbembe diz que, comportamentais tomados como
ainda pensando o terror-morte, a desviantes e, assim, prejudicando
escravização de povos africanos pode ser possíveis movimentos de insurgência
tomada como uma das primeiras contra quem detém o poder. Notemos
instâncias de experimentações biopo- como este pensamento, em intertextu-
líticas, ao operar o controle dos corpos em alidade, dialoga com o pensamento de
seu sentido mais stricto sensu. No entanto, Neusa Santos Souza (1983), autora
é o próprio Mbembe quem diz que, aqui, a brasileira que nos leva a pensar sobre a
análise deve ser muito mais ampliada, no tentativa histórica de desidentificar o
sentido de reconhecer as dimensões físicas homem negro e a mulher negra brasileiros
do controle e das mortes impostas, mas de suas imagens como sujeitos negros,
também, e de maneira preponderante, as afro-brasileiros. Ao fazê-lo, afastamos os
suas dimensões simbólicas. Vide: sujeitos cujos corpos docilizamos da
possibilidade de insurgência, e ainda os
De fato, a condição de escravo resulta de convocamos à assunção de um modelo
uma tripla perda: perda de um ‘lar’, perda
estético-político de existência inalcançável
de direitos sobre seu corpo e perda de
status político. Esta perda tripla equivale a – o “puramente” branco.
dominação absoluta, alienação ao nascer e
Tal similitude entre tais discursos
morte social (expulsão da humanidade de
não são, conquanto, mera coincidência;

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falam de uma continuidade histórica das povos ditos civilizados e povos ditos
políticas de controle dos corpos, como selvagens, no neocolonialismo estas
veremos na terceira e última seção deste relações não mudam de propósito, apesar
estudo. O que vale notar, de imediato, é de assumirem “outros maqui-nários” para
que, em defesa do que seriam os modos o exercício do poder e das políticas de
“corretos” – ou brancos, ou europeus, ou morte; ainda é a violência a base para
civilizados, etc. – de funcionamento de assegurar o exercício do poder e o controle
uma dada sociedade, a partir de diretrizes dos corpos, dos viveres e dos morreres. E
assumidas pelo Estado, em seu exercício esta mesma violência, no neocolonialismo,
de soberania, tornam-se, como já vimos, intensifica a utilização dos recursos de
supostamente defensáveis posturas despersonalização a que nos referimos
violentas e políticas de morte em defesa de anteriormente, só que por vias outras, não
um discurso bastante convincente às necessariamente como tecnologias de vida
massas sociais: o discurso em defesa da e de morte assumidamente racistas ou
“paz”, a partir da própria “salvação dos violentadoras das subjetividades.
selvagens” (ainda que derivada, nas
Na expressão de violências (e,
palavras de Mbembe, de uma “guerra sem
destaque-se, tecnologias de morte) do
fim”). Tornaremos a tratar destes aspectos
neocolonialismo, o que se deseja, diz
mais à frente.
Mbembe, é intensificar o fosso, nos corpos
Em seu terceiro tópico, o maior do desviantes, entre a noção de “ser sujeito” e
ensaio aqui analisado, intitulado a de “ser objeto” (ou “sujeito objetificado”).
“Necropoder e Ocupação Colonial da Novamente a raça (e, portanto, o racismo)
Modernidade Tardia”, Mbembe se aparecem como instrumentos necessários
debruçará sobre os seus conceitos de à produção de discursos homogenei-
necropoder e necropolítica, passando de zadores, supostamente pacificadores e em
uma análise do colonialismo para uma ato de advogar por uma sociedade dita
análise mais acurada acerca do que ele mais civilizada; portanto, livre dos
denomina como “ocupação colonial tardo- elementos próprios das raças associadas,
moderna” (o que, visto em perspectiva, nos ainda, às pessoas tidas como “selvagens”.
aproxima da concepção do neocolonia- Novamente veremos a intencionalidade de
lismo e, por consequência, do neolibe- produção de negação de atributos
ralismo). Há condições mais viáveis para próprios aos sujeitos não-brancos, rumo a
proceder com tal propósito por já termos, uma suposta identificação com os ideais da
em seus dois primeiros tópicos, observado “brancura”. Toma-se, doravante, outro
uma análise do passado histórico que, exemplo marcante da história moderna e
agora, subsidia uma análise mais refinada contemporânea para pensar tais
do presente histórico. fenômenos: a experiência do apartheid sul-
africano.
Inicialmente, nota-se que, se o
colonialismo, ante as expressões apresen- Na experiência do apartheid, é
tadas, funcionou como uma espécie de inegável a utilização da violência física
exercício da soberania na relação entre como recurso de controle dos corpos e das

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vidas. No entanto, o esforço de produção o exercício da violência física e da violência


de uma associação negativa para com tudo simbólica mais idiossincrático.
o que remetesse à condição do “ser negro”
Na continuidade, Mbembe diz que o
tem aqui um lugar de centralidade também
exemplo da Palestina nos ajuda a pensar o
inegável. Ora, o Estado, a partir de sua
que seriam três características essenciais
soberania, produzia normas e regula-
do exercício do necropoder neste caso,
mentos sociais que indicavam esta
base para pensar a própria necropolítica:
“negatividade” (nas palavras de Mbembe)
“a dinâmica de fragmentação territorial, o
a todo o tempo. Se o Estado, como
acesso proibido e a expansão de
instância máxima de exercício da
assentamentos” (ibidem, p. 136). Logo, a
soberania (e, não esqueçamos, da econo-
fragilização dos vínculos territoriais
mia) assim o apregoava, como seria
permite configurar uma realidade espacial
possível que a população sul-africana
de desarticulação dos povos que, fragmen-
compreendesse a parte negra de sua
tados, facilitam o exercício do necropoder
composição como algo não imoral, não
por parte de quem detém o direito
inaceitável e, logicamente, não descar-
soberano de controlar corpos, vidas e
tável? Deste exemplo histórico, Mbembe
mortes. Resgata, inclusive, a dimensão de
aponta, então, que o conceito de soberania
panóptico desta fragmentação territorial
muda de contorno, agregando ainda mais a
onde, ao impulsionar êxodos popula-
dimensão simbólica da violência, a somar-
cionais por conflitos geopolíticos, por
se com a dimensão física desta, já tão
exemplo, impulsiona-se a criação de
presente nas tecnologias de morte. Ele diz:
assentamentos de refugiados – expressão,
“Nesse caso, a soberania é a capacidade de
segundo Mbembe, de um certo tipo de
definir quem importa e quem não importa,
panóptico moderno, onde estes “poderiam
quem é ‘descartável’ e quem não é”
ser vistos como dispositivos ópticos
(ibidem, p. 135).
urbanos para a vigilância e o exercício do
Seguindo na análise de exemplos [bio/necro]poder” (ibidem, p. 136).
históricos da contemporaneidade,
Aqui, pensando a concretude das
Mbembe se ocupará, outrossim, do caso da
guerras contemporâneas, Mbembe funda
Palestina e dos palestinos. Ele dirá que,
um conceito que pode nos ajudar a ler, de
neste caso, a dimensão religiosa também
maneira bastante abrangente, o
agregará contornos de autorização do uso
funcionamento cotidiano, físico e simbó-
da violência, de maneira similar ao que
lico, das estratégias de necropoder e,
vimos nos exemplos que evocam a questão
portanto, de necropolítica. É o conceito do
da raça. O terror, portanto, e aqui, se
bulldozer.
exerce pela via do confronto dos sagrados,
em que, em mesma medida, há um ideal Um elemento crítico a essas técnicas de
homogeneizador, e perspectivas que, em inabilitação do inimigo é fazer terra
arrasada (bulldozer): demolir casas e
combate, lutam por não serem homoge- cidades; desenraizar as oliveiras; crivar de
neizadas. Não obstante, tais contornos, tiros tanques de água; bombardear e
neste caso, são mais limítrofes, o que torna obstruir comunicações eletrônicas;
escavar estradas; destruir transforma-

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dores de energia elétrica; arrasar pistas de guerra. Se, antes, ampliava-se a dimensão
aeroporto; desabilitar os transmissores de simbólica da violência, neste momento
rádio e televisão; esmagar computadores;
volta-se a ampliar a dimensão física desta,
saquear símbolos culturais e político-
burocráticos do Proto-Estado Palestino; em uma conjunção literalmente mortal em
saquear equipamentos médicos. Em todas as esferas possíveis de vida para os
outras palavras, levar a cabo uma ‘guerra povos tidos como subalternizados ante a
infraestrutural’ (ibidem, p. 137, grifo do expressão de povos ditos como mais
autor).
civilizados e que, pelo uso da força,
Ora, ainda que o bulldozer de que acreditam na (ou defendem a) necessidade
fala Mbembe se apresente como uma de intervir, pela via da violência, em outras
estratégia, nitidamente, de guerra, no realidades geográficas/geopolíticas.
contexto de um exemplo bem especificado,
Para tal, Mbembe se ocupará de
a sua construção teórica nos convida a uma
analisar novas experiências, como a da
leitura mais ampliada do que tal conceito
Guerra do Golfo e da Campanha de Kosovo.
delimita: é a erradicação não apenas direta
Em ambas, ele analisa que o exercício
da vida; é uma erradicação paulatina, por
esmagador da força, da violência, das
destituição do direito de ser quem se é, ao
tecnologias de morte, teve lugar definitivo
serem usurpadas as condições básicas de
no desfecho destes combates, impondo
vida e as condições simbólicas do
uma outra variante da soberania: a
desenvolvimento de uma subjetividade
submissão. A submissão, nesse sentido,
comunitária positiva. Metaforicamente,
utilizar-se-á de uma conjunção dos vários
Mbembe diz que, neste exemplo, temos a
elementos que apresentamos até aqui: o
concatenação de três formas elementares
bulldozer, a força esmagadora, a
de poder, já aqui analisadas: o poder
espetacularização da violência e a
disciplinar (sobre o comportamento), o
despersonalização dos sujeitos. Conjunção
poder biopolítico (sobre o direito à vida) e
mortal, física e simbolicamente; não há
o poder necropolítico (sobre o direito de
dúvidas. Tal e qual, ele afirmará: “As
morte). Salta-nos aos olhos – e aos olhos de
guerras da época da globalização, assim,
Mbembe – uma possível expressão de
visam forçar o inimigo à submissão,
dominação absoluta.
independentemente de consequências
No tópico seguinte, o penúltimo, imediatas, efeitos secundários e ‘danos
intitulado “Máquinas de Guerra e colaterais’ das ações militares” (ibidem, p.
Heteronomia”, Mbembe irá avançar ainda 139).
mais na análise sobre as guerras
Mbembe retomará o contexto
contemporâneas, mas refinando o olhar
geopolítico atual do continente africano,
crítico acerca do status que a dimensão
para analisar como os conflitos que, em
militar-tecnológica passou a ter ante tais
grande medida, ainda acometem o
relações. Ele fala que o bulldozer passa a se
continente em questão são resultantes de
ampliar na afirmação de uma “força
modos colonialistas e neocolonialistas de
esmagadora ou decisiva”, unicamente
exercício da soberania, influenciados pelo
possível pelo desenvolvimento de um
neoliberalismo, e advindos das conse-
maior e mais avançado maquinário de

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quências históricas das imposições subalternizados. Tudo isto, notemos, como


europeias sobre estes territórios. Ele cita em Foucault (2008), sob nítida influência
os tipos de resultantes os quais podemos da economia.
observar mais atentamente: “Milícias
Um dos grandes perigos que se
urbanas, exércitos privados, exércitos de
assenta no fenômeno anteriormente
senhores regionais, segurança privada e
descrito é o de que à morte e ao matar, se
exércitos de Estado proclamam, todos, o
preocupa Mbembe, se tornem recursos
direito de exercer violência ou matar”
mais fáceis do que o ato de disciplinar –
(ibidem, p. 139). Aqui, nota-se um
preocupação, deveras, presente em todo o
indicativo de que o contexto geopolítico
texto. Aqui, novamente vemos Mbembe
africano aponta para uma dimensão de
provocar os conceitos foucaultianos a
crescimento da heteronomia (ou seja, dos
partir das diferentes realidades globais.
conflitos pelo direito do exercício da
Mbembe apostará, em certa medida, que o
soberania). Tal situação, além de ser
necropoder, neste ponto da história,
decorrente do que já trouxemos aqui, é
parece ser mais “atrativo”, se assim o
ainda subsidiada pelo tal maquinário
podemos dizer, quando se trata de
militar-tecnológico, que apenas amplia a
assegurar a capacidade de exercer
capacidade de exercício da violência ante a
soberania, inclusive alimentada pelos
diversos agentes, alimentando a fornalha
ditames do capital e do acúmulo de
das políticas de morte.
riqueza. Notemos:
Notemos, doravante, como estas
Tecnologias de destruição tornaram-se
políticas de morte, mediadas pela via da mais táteis, mais anatômicas e [mais]
submissão, serão de suma importância no sensoriais, dentro de um contexto no qual
estabelecimento do capitalismo nestes a escolha se dá entre a vida e a morte. Se o
territórios. Isto porque, de forma poder ainda depende de um controle
estreito sobre os corpos (ou de sua
irrefutável, o exercício do necropoder será
concentração em campos), as novas
também a “carta de autorização” para a tecnologias de destruição [ou de morte]
exploração dos recursos de interesse, seja estão menos preocupadas com inscrição
ele social, seja ele econômico, seja ele de corpos em aparatos disciplinares do
político. Mais ainda, os agrupamentos que em inscrevê-los, no momento
oportuno, na ordem da economia máxima,
capazes de exercer tal poder aprenderam
agora representada pelo ‘massacre’
a se metamorfosear, no sentido de (ibidem, p. 141).
adaptar-se, tecnologicamente, às neces-
sidades do mercado para manter-se no Deste ponto, assume-se que os
poder. Tratamos de uma soberania quase- corpos vão perdendo a sua polissemia
que-diluída, haja posto que o exercício de conferida pela história, tornando-se mais
tais condutas possa advir do Estado, mas descartáveis do que jamais o foram. Nas
também destes poderes paralelos, tão palavras de Mbembe, em nome do
“legítimos” quanto o próprio Estado a asseguramento da economia e do exercício
depender de suas capacidades de da soberania que a assegura, tomam-se os
exercerem dominação e submissão, física e corpos, na globalização contemporânea,
simbólica, ante os seus sujeitos especialmente os elimináveis e

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eliminados, como “simples relíquias de sua expressão mais mórbida: a do


uma dor inexaurível, corporeidades vazias, necropoder e, em caráter sistêmico, da
formas estranhas mergulhadas em um necropolítica, que sustentarão, por sua
estupor cruel” (ibidem, p. 142). Para vez, o neocolonialismo e o neoliberalismo.
exemplificar isto, toma mais uma vez
Já na Lógica da Sobrevivência, o
Mbembe a história dos territórios
binômio terror-liberdade aponta a outra
africanos, ao pensar o genocídio de
direção. Nesta, a sobrevivência vigora
Ruanda.
como uma espécie de antítese da morte,
No último tópico, intitulado “De mas também como um tipo metafórico de
Movimento e Metal”, Mbembe finalizará o “irmã” desta última. Ao mesmo passo em
texto acreditando haver duas lógicas que a liberdade se revela como caminho
centrais a partir de tudo o que ele alternativo ante a sujeição à morte física e
desenvolveu, considerando o pensamento simbólica, ela pressupõe a luta pela sua
foucaultiano e o seu diálogo com outras conquista, o que nos leva de volta ao
autoras e autores, e que operam pensamento hegeliano de que falava
simultaneamente sobre a sociedade atual. Mbembe: o viver a vida, inclusive
Falamos da “Lógica do Martírio” e da enquanto condição essencial do combate à
“Lógica da Sobrevivência”. Para a primeira, morte, é o que funcionará como dimensão
Mbembe se interessa por analisar o fundante do sujeito, ainda que, por ironia,
“binômio terror-morte”. Para a segunda, o ao combatê-la durante toda a nossa vida,
“binômio terror-liberdade”. acabemos, enquanto sujeitos, por
aproximarmo-nos dela. Não obstante, é na
Na Lógica do Martírio, o binômio
liberdade que há, incessantemente, a
terror-morte trata da compreensão da
possibilidade de insurgência ante o poder
morte como um instrumento de guerra, em
que nos disciplina, controla e mata. Logo, é
que ela seria o próprio caminho para a
no paradoxo de tentar viver tentando não
vitória, ao erradicar a vida do inimigo,
morrer, que algum desejo de liberdade se
ainda que o preço seja a erradicação da
faz possível.
“minha própria vida”, enquanto comba-
tente do divergente. Pondera-se o lugar Por fim, na Conclusão de seu
dos “homens-bomba”, que constroem a estudo, considerando as lógicas às quais
sua experiência de vitória na guerra a sintetizamos aqui, Mbembe acredita que,
partir do paradoxo de que, para que o sob a égide do necropoder e da
outro morra, morrerei eu também, e necropolítica, “as fronteiras entre resis-
minha futura vitória se dá na abstração de tência e suicídio, sacrifício e redenção,
um futuro que, deveras, não será vivido. É martírio e liberdade, desaparecem”
o corpo convertido em arma, corpo (ibidem, p. 146). Isto não se dá de maneira
convertido em metal, cuja conjunção entre aleatória; ocorre por produzir-se, na vida
homicídio e suicídio não deixa de das diferentes pessoas acometidas pelas
funcionar como elemento que erradica a políticas de morte, um “estar-na-dor”.
ambos os envolvidos no conflito. Serve, Assim, sintetiza Mbembe:
certamente, à manutenção do poder, e em

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[...] propus a noção de necropolítica e de Michel Foucault a partir de uma


necropoder para explicar as várias perspectiva que dialogasse mais
maneiras pelas quais, em nosso mundo
frontalmente com a realidade do Eixo Sul
contemporâneo, armas de fogo são
implantadas no interesse da destruição Global, destacadamente focada à
máxima de pessoas e da criação de população negra e ao debate sobre o
'mundos de morte', formas novas e únicas racismo – haja posto que grande parte dos
da existência social, nas quais vastas exemplos assumidos por Mbembe para
populações são submetidas a condições de
pensar a modernidade e a contempo-
vida que lhes conferem o status de
'mortos-vivos' (ibidem, p. 146, grifo do raneidade se dão a partir da experiência
autor). neocolonialista e neoliberal imposta ante
as populações negras do continente
Tal conjuntura, regida por políticas
africano, por exemplo, desde a África do
de morte, como descritas por Mbembe,
Sul até Ruanda, entre outros.
impulsionam sujeitos subalternizados a
condições de vida e morte tais em que a Parece-nos que o racismo toma
morte pode figurar como uma suposta uma espécie de lugar como conectivo das
liberdade – em morte, não há de se haver a perspectivas de pensamento foucaultiana
experiência do terror. Por tal imagem é e mbembiana; o que, se observarmos bem,
que Mbembe nos convida ao entendimento configura-se como fundamento lógico, se
do necropoder e da necropolítica. Ao contrapormos teorias e conceituações que
observar estes construtos em sua advêm, respectivamente, de um contexto
dimensão de aplicabilidade na vida coti- europeu e de um contexto africano, não
diana de diversos e distintos povos do Eixo obstante onde ambas debruçam-se sobre a
Sul Global, podemos ser capazes de fazer relação geopolítica entre ditos sujeitos
análises mais acuradas sobre como o subalternizadores e ditos sujeitos
exercício da soberania do Estado (racista) subalternos/subalternizados (Cf. CASTELO
produz mortes a partir de tecnologias de BRANCO, 2010; CANDIOTTO; D'ESPÍN-
poder e, portanto, as políticas de morte em DULA, 2012; JESUS; SAMPAIO, 2017).
si – em seu sentido “metálico”, militar-
Como vimos, enquanto Foucault irá
tecnológico; e eu seu sentido “simbólico”,
se debruçar sobre a disciplinarização dos
enquanto produtor/destruidor de sujeitos
corpos, Mbembe se debruçará sobre a
e subjetividades, em defesa de modelos de
erradicação destes (especialmente os
uma obediência atualizada (como o
corpos negros e/ou não-brancos);
neocolonialismo) e de uma exploração
enquanto Foucault irá observar os efeitos
nunca verdadeiramente cessada (como o
da economia na imposição de costumes e
neoliberalismo).
comportamentos socialmente comparti-
lhados, Mbembe irá observar como o não
seguimento destes mesmos costumes e
Arremates: Achille Mbembe e a
comportamentos legitimou e ainda
Decolonialidade
legitima discursos e práticas de
Joseph-Achille Mbembe, como erradicação concreta da vida, só que,
vimos até aqui, buscou abordar os estudos contemporaneamente, mais tangíveis;

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Artigos Da biopolítica à necropolítica: veredas decoloniais entre...

enquanto Foucault pensará a vigilância a França de 1976, este conceito não


como uma espécie de modelagem possível enquadra o poder do Estado ex-colônia,
então Mbembe introduz sua ideia de
de subjetividades, Mbembe pensará esta
necropolítica. O Estado ‘democrático’ ex-
mesma vigilância como um justificador de colonial vive em um estado de guerra
ações estatais homogeneizadoras e, para perpétua contra inimigos reais ou
fins de seu pleno sucesso, assassinas e/ou imaginários, e muitas vezes contra sua
genocidas da diferença. própria população. Neste cenário, o Estado
exerce o poder de fazer morrer e deixar
Metaforicamente, enquanto viver. Isso diz respeito às mortes físicas, os
Foucault, pela via da luz, irá acusar um genocídios dos povos negros e indígenas,
por exemplo, no caso brasileiro, bem como
acinzentamento da vida, encaixotada,
aos epistemicídios, no que se refere às
Mbembe, pela via do metal, irá acusar um dificuldades destes povos expressarem (e
avermelhamento-sangue dos territórios, até mesmo de identificarem) dignamente
massacrados, onde o cinza não conseguiu seus conhecimentos, ciências, projetos de
se impor. Um diálogo necessário, onde o sociedade, etc. (ibidem, p. 119, grifo dos
autores).
primeiro dá bases sólidas para o segundo
avançar, convertendo cada vez mais uma À vista disso, e em diálogo com
importante teoria de base tão somente outras autoras e autores, o que se afirma é
europeia em uma indispensável práxis que Mbembe se propõe a avançar os
para pensar o cotidiano das relações de estudos foucaultianos, na medida em que
poder no Eixo Sul Global; agora, em localiza a teoria foucaultiana como
Joseph-Achille Mbembe, devidamente e concomitantemente relevante, mas,
territorialmente contextualizada e com- também, como de base europeia e,
temporizada. portanto, também ela eurocentrada,
insuficiente para pensar a África e suas
Concordamos, assim, com a súmula
vicissitudes, sendo necessário contex-
do pensamento de Jesus e Sampaio (2017),
tualizar os seus achados à realidade dos
historiadores e pesquisadores da
países do Eixo Sul Global, avançando
Universidade de Brasília (UnB), ao
Foucault. Ao fazê-lo, inclusive, Mbembe
arrematarem que:
não descarta Foucault; do contrário, como
Por dentro destas teorias, as instituições um verdadeiro pós-foucaultiano, reco-
democráticas serviam e servem para nhece a relevância de sua produção, e
cumprirem formalidades públicas e estão
propõe-se a fazer uma revisitação aos
distantes de assegurarem os
compromissos éticos e políticos com os conceitos originais, propondo também,
povos que elas representam. Neste como um convite e um sinal de alerta, as
contexto de descaso político e econômico, noções de necropoder e necropolítica,
Mbembe reinterpreta o conceito de como um novo modo de pensar o controle
‘biopolítica’ do francês Michel Foucault.
dos corpos, a disciplina, a influência e a
Uma contribuição fundamental para as
discussões pós-estruturalistas da filosofia dominação dos povos – pela via do
política, este conceito descreve o poder aparelhamento militar-tecnológico estatal,
estatal sobre as sociedades ocidentais em defesa de uma civilização que, em
hoje; o poder de fazer viver e deixar verdade, é sinônimo da defesa de um
morrer. Cabível para uma sociedade como
direito à erradicação de tudo o que rompe

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Renan Vieira de Santana Rocha, Wesley Barbosa Correia e Jeane Saskya Campos Tavares

com os ditames do neocolonialismo e do ou pré-pronta. Atrevermo-nos a compará-


neoliberalismo e, como grande pilar desta los e contrastá-los, não obstante, na tarefa
macroestrutura socioeconômica, do de ler e compreender o pensamento de
próprio racismo institucional/estrutural. autoras e autores que embasam a nossa
maneira de ler e compreender a própria
Logo: sim, esta proposta de
realidade que nos circunscreve é condição
Mbembe dialoga com os referenciais que
essencial para a produção de pensamentos
sustentam as distintas definições de
históricos e políticos mais contextuali-
decolonialidade, inclusive pelas
zados e contemporizados às realidades
expressões que outras autoras e autores
locais do Eixo Sul Global. Logo, produzir
sinalizam – em linhas epistemológicas
encontros epistemológicos, a partir da
distintas, mas em pontos comuns e gerais
leitura e análise de textos, canônicos ou
– quanto à necessária busca em
não, orientados por tais perspectivas, é
descentralizar o conhecimento do Eixo
convite e tarefa simultânea no projeto de
Norte Global e contextualizá-lo/contem-
quem se predispõe a assumir atitudes e
porizá-lo à realidade dos povos do Eixo Sul
ações decoloniais (ou pós-coloniais) (Cf.
Global, desde a sua concepção, formulação,
SANTOS, 2007; QUIJANO, 2005; MATA,
investigação e construção de novos
2014; 2016).
saberes e fazeres, em nível acadêmico,
científico e político, inclusive recentrando Muito embora seja urgente
o debate sobre a questão da raça e sobre o evidenciar a necessidade de avançar na
fenômeno do racismo ante os povos do Sul proposta apresentada neste nosso estudo
(Cf. SANTOS, 2007; SANTOS; MENESES, – que é a de aproximar Michel Foucault e
2009; JESUS; SAMPAIO, 2017). Vide o que Joseph-Achille Mbembe, e os seus estudos
dizem Bernardino-Costa e Grosfoguel sobre as diferentes tecnologias de poder
(2016): que são operadas sobre a vida e sobre a
morte – é também urgente ponderarmos
Afirmar o lócus de enunciação significa ir
na contramão dos paradigmas sobre o quanto seguirmos em estudos que
eurocêntricos hegemônicos que, mesmo não apresentem autoras e autores que nos
falando de uma localização particular, reflitam em nossas diferentes
assumiram-se como universais, espacialidades e realidades geopolíticas
desinteressado e não situados (ibidem, p.
pode nos ser prejudicial, ao produzirmos
19).
artificialidades científicas e acadêmicas
Isto dito, parece-nos tal e qual distantes de nossos propósitos como
deveras importante apresentar breves pesquisadoras e pesquisadores
considerações finais de crivo teórico- comprometidas/os com o Eixo Sul Global
metodológico-críticas. (Cf. SANTOS, 2007; BERNARDINO-COSTA;
Pressupor-nos ao esforço episte- GROSFOGUEL, 2016; JESUS; SAMPAIO,
mológico de proceder com a leitura de 2017).
autores de ampla importância como Assim, acreditamos termos respon-
Michel Foucault e Joseph-Achille Mbembe dido à pergunta de investigação que
não é tarefa simples, espontânea, natural sustenta este estudo, ao arrematarmos que

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Artigos Da biopolítica à necropolítica: veredas decoloniais entre...

é possível afirmar que o conceito Com efeito e para concluir, nas


mbembiano de necropolítica avança palavras de Mbembe, em um outro estudo,
decolonialmente ante o conceito intitulado “A Universalidade de Frantz
foucaultiano de biopolítica, tendo por base Fanon” (2012), este diz-nos destes
as obras fundantes destes conceitos, para movimentos teórico-metodológico-crític-
cada um dos autores em voga – ainda que, os, classificando-os como uma espécie de
vale o registro, o próprio Mbembe não luta, árdua e coletiva, mas necessária; uma
tenha reivindicado para si tal afirmação. definição muito própria do que seria uma
Contudo, acreditamos termos descoberto postura decolonial ou pós-colonial – ou
um pouco mais. Certamente o pensamento mesmo de “movimentos de enfrentamento
mbembiano, como o discutimos, propõe à colonialidade” (e ao racismo desta
ante a nós caminhos teórico- derivado, é evidente) – e, pela força de seus
metodológico-críticos e, fundamen- argumentos, vale aqui reproduzirmos o
talmente, epistemológicos que nos que ele nos diz sobre esta mesma luta:
convidam a estradas outras pelas quais
Essa luta tem como finalidade produzir a
nunca antes fomos honestamente vida, derrubar as hierarquias instituídas
convidadas e convidados a caminhar, por aqueles que se acostumaram a vencer
enquanto pesquisadoras e pesquisadores sem ter razão, tendo a ‘violência absoluta’,
do Eixo Sul Global, refletindo sobre os nesse labor, uma função desintoxicadora e
instituinte. Essa luta tem uma dimensão
maquinários reais e simbólicos que se tripla. Visa antes de mais [nada] destruir o
impõem para matar-nos. Tal convite abre que destrói, amputa, desmembra, cega e
espaço, note-se, a um movimento de provoca medo e cólera – o tornar-se-coisa.
insurgência coletiva, ante a tudo o que, até Depois, tem por função acolher o lamento
aqui, se estrutura nos ditames de e o grito do homem mutilado, daqueles e
daquelas que, destituídos, foram
soberanias variadas para, ainda, controlar condenados à abjeção; [por fim] cuidar, e,
corpos, ditar comportamentos, autorizar eventualmente, curar aqueles e aquelas
vidas, legitimar mortes – motivo pelo qual que o poder feriu, violou ou torturou ou,
o afirmamos decolonial (Cf. SANTOS, 2007; simplesmente, enlouqueceu (MBEMBE,
JESUS; SAMPAIO, 2017). Nesta defesa, vale 2012, p. 02).

retomar o pensamento de Bernardino- Em suma, que saibamos, à vista disso, e no


Costa e Grosfoguel (2016), quando estes terreno da concretude da vida humana,
dizem que: mas também da disputa por novas
Um diálogo transmoderno e intercultural a epistemologias, insistir na luta; produzir
ser desenvolvido pelo sul global – Sul como parceiras e parceiros na Universidade, na
uma metáfora do sofrimento humano, filosofia, na ciência e fora delas;
como argumenta Boaventura de Sousa fortalecermo-nos na derrocada do
Santos – é uma chave para evitar o
neocolonialismo, do neoliberalismo e do
universalismo eurocentrado em que um
definia para o resto a única solução racismo em todas as suas facetas; e, oxalá,
possível (ibidem, p. 21). destituir políticas de morte, para instituir
insurgências de vida.

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Renan Vieira de Santana Rocha, Wesley Barbosa Correia e Jeane Saskya Campos Tavares

Referências

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Soc. Estado., Brasília, v. 31, n. 1, p. 15-24, 2016.
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CASTELO BRANCO, Guilherme. Racismo, Individualismo, Biopoder. Revista de Filosofia
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FOUCAULT, Michel. O Nascimento da Biopolítica. Curso no Collège de France (1978-1979).
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QUIJANO, Aníbal. Colonialidade do Poder, Eurocentrismo e América Latina. Buenos Aires:
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WEISCHEDEL, Wilhelm. A Escada dos Fundos da Filosofia. 5 ed. São Paulo: Angra, 2006.

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ISSN: 2675-8385
Revista Anãnsi, Salvador, 2020
Ft./ Ana Amélia R. Souza (@urbanovoyeur2)
Kelle Cristina Pereira da Silva

Universidade do Estado da Bahia, Campus I


Departamento de Educação

A bifurcação Natureza/Cultura e o Correlacionismo Radical


em Gender Hurts: a feminist analysis of the politics of
transgenderism 1
The Nature/Culture bifurcation and Radical Correlationism in “Gender Hurts:
a feminist analysis of the politics of transgenderism”

Kelle Cristina Pereira da Silva 2

Resumo: O presente artigo tem por propósito analisar a obra “Gender Hurts: a feminist analysis of the politics
of transgenderism”, de Sheila Jeffreys, à luz das críticas ao correlacionismo de Quentin Meillassoux e dos
apontamentos acerca da bifurcação natureza/cultura levantados por Bruno Latour. Com base neste objetivo,
primeiramente, apresenta-se um breve resumo da obra, no qual são apresentados os fundamentos principais
da tese da autora. Em seguida, os conceitos de gênero e transgeneridade, pontos chaves do livro, são
apresentados e relacionados às ideias centrais das filosofias de base correlacionista. Outrossim, busca-se
demonstrar como tanto gênero, quanto a transgeneridade, aparecem na obra como conceitos bifurcados. Por
fim, sugere-se alguns autores que podem ajudar a pensar as questões de gênero fora, seja de um paradigma
correlacionista, seja de um conceito bifurcado.

Palavras-chave: Bifurcação; Correlacionismo; Gênero; Transgeneridade.

Abstract: This article was aims to analyze the work “Gender Hurts: a feminist analysis of the politics of
transgenderism”, by Sheila Jeffreys, based on criticisms on correlationism, by Quentin Meillassoux and the
notes on the bifurcation of nature and culture raised by Bruno Latour. Based on this objective, first, a brief
summary of the work is presented, in which the main foundations of the author's thesis are presented. Then,
the concepts of gender and transgenderism, key points of the book, are presented and related to the central
ideas of correlationist-based philosophies. Furthermore, it seeks to demonstrate how both gender and
transgenderism appears in the work as bifurcated concepts. Finally, we suggest some authors who can help
thinking about gender issues outside either from a correlationist paradigm, or from a bifurcated concept.

Keywords: Bifurcation, Correlationism, Gender, Transgenderism.

1 Artigo desenvolvido a partir do trabalho final da disciplina de Atualização e Prática do Direito – Teoria dos
Sistemas e Teoria Ator-Rede (2020), ministrada pelo professor Otávio Souza e Rocha Dias Maciel na
Faculdade de Direito da Universidade de Brasília.
2 Graduanda em Direito pela Universidade de Brasília. E-mail: kellecristinap@gmail.com.

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Artigo A Bifurcação Natureza/Cultura e o Correlacionismo Radical em Gender Hurts...

Introdução machuca, busca-se levantar a discussão


acerca das diferentes teorias abolici-
As discussões acerca das relações
onistas de gênero. Assim, aponta-se para
de gênero no Brasil tendem a se travar
soluções ao problema levantado pela
essencialmente nos campos moral e
autora. Enquanto esta busca a eliminação
religioso. Dessa forma, as argumentações
de diferenças, este artigo argumenta pela
são, quase sempre, carregadas de bastante
proliferação destas.
subjetivismo. Os casos de linchamento
virtual e de cancelamentos nas redes Para tanto, o artigo foi estruturado
sociais são evidências da ausência de em três tópicos. No primeiro tópico,
seriedade e objetividade nas discussões Gender Hurts: a feminist analysis of the
sobre qualquer temática que envolva politics of transgenderism3, são
gênero. apresentadas as principais ideias e
argumentações presentes na tese da
De um lado, o gênero é apresen-
autora. Entre elas está a ideia de que o
tado como uma construção social da
gênero nada mais é do que construção
supremacia masculina, capaz de machucar
social do sistema patriarcal, que surge com
a todos, mas em especial, aqueles que
o objetivo de reafirmar a opressão das
apresentam gênero distinto do seu sexo
mulheres cis e a dominação masculina
biológico, bem como aqueles que com eles
como um sistema político.
convivem (seus pais, companheiros ou
companheiras), ou ainda toda uma Em um segundo momento, são
coletividade de mulheres. Do outro, analisadas as definições correlacionistas
aparece como uma forma de libertação do da noção de gênero e de transgeneridade:
biologismo e da negação das diferentes o primeiro teria surgido como uma
identidades de gênero, que se mostram expressão da supremacia masculina; o
como desviantes se comparadas ao padrão segundo, como uma construção das
binário. indústrias farmacêutica e médica. A
origem de ambos, contudo, é tomada de
Nesse sentido, o que aqui se pro-
forma correlacionista, pois exerceriam um
cura é explorar tais controvérsias, de
papel específico na ordem machista e
forma a compreender como a teoria
patriarcal.
apresentada por Sheila Jeffreys, em uma de
suas obras mais polêmicas, aproxima-se No que tange à separação natu-
das filosofias de base correlacionista reza/cultura, é apresentado o culto ao
criticadas por Quentin Meillassoux. Ainda, natural e à natureza biológica dos
procura-se demonstrar como tal teoria indivíduos, os quais são tomados como
nasce e se sustenta por meio da defesa da imutáveis e inerentes e estão presentes em
bifurcação natureza/cultura. toda a obra. Aqui, busca-se demonstrar
que a bifurcação defendida pela autora, a
Por fim, considerando a argumen-
tação da autora, segundo a qual o gênero

3 O Gênero Machuca: Uma Análise Feminista da Política do Transgenerismo (tradução livre).

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ISSN: 2675-8385
Kelle Cristina Pereira da Silva

qual privilegia o polo da natureza, é uma qual o gênero se conforma como o


categoria que não se verifica na realidade. elemento fundante do sistema político de
dominação masculina.
A metodologia utilizada neste
artigo é a de pesquisa bibliográfica. Como Para a autora, “gênero” seria uma
referências principais, utilizou-se o artigo categoria política relacionada a status de
“O tempo sem o Tornar-se", de Quentin casta, que desde a sua origem traz em si
Meillassoux, para delinear a conceituação uma hierarquia pré-determinativa que
de correlacionismo e quais teorias seriam, instaura a supremacia masculina, pois cria
nesse sentido, correlacionistas, bem como e reforça os estereótipos e os chamados
para estabelecer as relações entre essas “papéis de gênero”. Dentro desse sistema
correntes filosóficas e a obra de Sheila político, as diferenças no processo de
Jeffreys. Quanto às discussões referentes à transição e de transgeneridade de homens
separação entre natureza e cultura, o livro e mulheres poderiam ser entendidas por
“Jamais fomos modernos”, de Bruno meio da noção de perda e ganho de status
Latour, aponta para o abandono da na pirâmide de dominação social. Assim,
bifurcação como categoria do pensamento. quando entram em transição de gênero,
E, por último, o livro “Xenofeminism”, de homens perdem status – o que estaria
Helen Hester, o qual surge como relacionado a um desejo masoquista – e as
contraponto ao abolicionismo de gênero mulheres ganhariam status ao
proposto por Sheila Jeffreys. ascenderem para uma casta superior
(JEFFREYS, 2014, p. 110). Segundo essa
lógica, a mobilidade de castas tornaria a
Gender Hurts: a feminist analysis of the transição de gênero atrativa tanto para
politics of transgenderism homens, quanto para mulheres.

Publicado pela primeira vez em 15 Segundo a autora, é somente com a


de abril de 2014, Gender Hurts: a feminist invenção da categoria de gênero que o
analysis of the politics of transgenderism, surgimento da transgeneridade, enquanto
ainda sem tradução para o português, é a prática, tornou-se possível. Do mesmo
obra na qual a teórica e lesbofeminista modo, a ideia de que existe uma essência
radical Sheila Jeffreys oferece uma de gênero, uma psicologia e um padrão de
abordagem crítica à noção de gênero e de comportamento, adequadas a pessoas com
transgeneridade, bem como à adoção corpos e identidades particulares, teria
desses conceitos pelas Teorias Queer e sido o pano de fundo para a emergência de
pelos movimentos feministas. práticas que têm por propósito
transgredirem o gênero socialmente
Escritora e professora de política imposto (JEFFREYS, 2014, p. 1).
feminista na Faculdade de Ciências Sociais
e Políticas da Universidade de Melbourne, Essas práticas, que nas palavras de
na Austrália, e conhecida por sua Jeffreys, assim como gênero, também são
militância no movimento lesbofeminista, uma construção social, surgem como
Jeffreys busca defender a tese segundo a fenômenos que têm por propósito

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beneficiar as instituições médicas e as barreias do sexo poderiam afastar as


indústrias farmacêuticas. O gênero, mulheres do feminismo (JEFFREYS, 2014,
enquanto transformação no âmbito social, p. 45).
teria seu surgimento associado à
Jeffreys (2014, p. 46) ressalta que,
necessidade de oferecer respostas aos
nascimentos de crianças intersexo que, há quarenta anos, pensadoras do
por não corresponderem a nenhum dos feminismo radical foram claras em sua
sexos biologicamente afirmados, precisa- perspectiva de que pessoas nascidas
biologicamente como homens e criadas
riam de uma justificativa para o proce-
como homens, mas que buscam
dimento cirúrgico que se seguiria à citação reconhecimento como mulheres no
de atipicidade (JEFFREYS, 2014, p. 1). movimento das mulheres pela libertação,
foram engajados numa forma de
Desse modo, o entendimento de colonialismo e devem ser rejeitados. 4
que “o gênero machuca” está associado aos
seus efeitos negativos nas comunidades Ademais, segundo a autora, os
gays e lésbicas, bem como aos seus efeitos negativos da transgeneridade são
impactos prejudiciais tanto na vida de potencializados pela ausência de crítica ao
crianças identificadas como transgêneros, movimento transgênero, porquanto o
quanto na vida de pessoas que transfeminismo ou o movimento trans tem
presenciaram a transição de seus procurado silenciar, de todas as formas,
companheiros ou companheiras. Além aqueles que desafiaram a transgeneridade,
disso, haveria as consequências para toda quer seja pelo cancelamento virtual, seja
uma coletividade de mulheres que, pelas pela perseguição e exclusão de eventos,
mudanças nas legislações, tiveram de sem contar as campanhas difamatórias
suportar, em espaços antes restritos para que levam à perda de cargos e mesmo à
elas, a entrada de mulheres trans proibição de frequentação de determi-
(JEFFREYS, 2014, p. 1). nados espaços, violências pelas quais a
própria autora já teria sido submetida.
Outrossim, a existência de um
movimento feminista trans contradiria, Portanto, o que Sheila Jeffreys
tanto na teoria quanto na prática, as bases propõe nesta obra é que seja abolida a
do feminismo como movimento político noção de gênero, assim como todos os seus
baseado na experiência de mulheres, que efeitos negativos. Não se trata da abolição
nasceram e foram criadas como mulheres. do gênero apenas enquanto categoria de
Isso porque o projeto feminista deveria análise, mas sim de sua negação enquanto
oferecer suporte para mulheres que foram algo que seja realmente possível, pois não
abusadas por homens, e não a homens existiria tal coisa como uma identidade de
responsáveis por abusos. Dito de outra gênero. As mulheres são socializadas
maneira, homens que transgridem as enquanto mulheres, desde que nasçam

4Tradução nossa do trecho: “Forty years ago, radical feminist thinkers and activists were very clear in their
view that persons who were born biologically male and raised as males, but sought recognition as women in
the women’s liberation movement, were engaged in a form of colonialism and should be ejected”.

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mulheres. Logo, se o objetivo da política de exemplo, a definição de gênero como causa


gênero queer era tornar o gênero flexível e de surgimento da dominação masculina
criar mais "gêneros", as teóricas feministas enquanto sistema político. O correlaci-
radicais vão em sentido contrário, pois não onismo pressupõe que
buscam tornar o gênero um pouco mais
não há objetos, eventos, leis ou seres os
flexível, mas eliminá-lo (JEFFREYS, 2014, quais não sejam desde-sempre
p. 42). correlacionados a um ponto de vista, a um
acesso subjetivo. Qualquer um que
sustente o contrário – por exemplo, que é
possível acessar algo como a realidade em-
A definição correlacionista de gênero si-mesma que existe absolutamente
em Gender Hurts independentemente do seu ponto de vista,
de suas categorias, ou de sua época, ou de
Como já colocado no tópico sua cultura, ou de sua linguagem etc.; esta
anterior, para Jeffreys o conceito de gênero pessoa será considerada um exemplo de
não é originário das discussões dos ingenuidade, ou se você preferir: um
realista, um metafísico, um antiquado
movimentos e teorias feministas, mas uma
filósofo dogmático (MEILLASSOUX, 2020,
construção das instituições médicas e p. 202).
farmacêuticas que atua como elemento
fundante do sistema político de dominação Para o autor, as filosofias que
masculina. Por este motivo, seria um partem de fundamentos correlacionistas
conceito útil ao delineamento do processo se baseiam em uma alegação extrema-
de construção social do papel subordinado mente simples, mas bastante poderosa,
das mulheres, o que justifica sua adoção aquela segundo a qual “não pode haver ‘X’
pelas teorias feministas não-radicais. sem uma dadidade de X, e nenhuma teoria
sobre ‘X’ sem uma postura de X”
Neste sentido, o objetivo deste (MEILLASSOUX, 2020, p. 203). Tais
tópico é buscar demonstrar como essa premissas acabam por estabelecer um
definição de gênero, apontada por Sheila argumento circular, pois toda e qualquer
Jeffreys, pode ser entendida como uma oposição ou confirmação do correlato é
definição correlacionista, na medida em pensada a partir de um ponto de vista
que tal conceito, como subproduto da específico, o que confirma o pressuposto
dominação patriarcal, é capaz de explicar correlacionista abordado acima.
todas as relações que possam ser traçadas
entre as mulheres cis e o mundo. Assim, num primeiro momento, o
correlacionismo pode ser definido como a
Em O Tempo sem o Tornar-se, impossibilidade de se pensar sujeito e
Quentin Meillassoux define correlacio- objeto como coisas separadas. Em um
nismo como uma forma de pensamento momento posterior, especialmente a
filosófico que se coloca de maneira partir do idealismo alemão, a própria
contrária a qualquer realismo e que parte distinção entre sujeito/objeto (pensa-
da totalização de um correlato, aqui mento/ser) deixa de fazer sentido, na
entendido como uma premissa que se medida em que só o que importa é a
constitui como verdade imutável – por correlação. O que se percebe é que o objeto

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perde a sua importância, e o que passa a a estrutura que permite a concretização de


ter relevância é como este pode ser tal dominação como um sistema político.
observado pelo sujeito. Dessa forma, com
A supremacia masculina, capaz de
base no argumento circular, toda e
explicar não apenas a necessidade de
qualquer menção ao objeto só tem
construção do gênero, justifica ainda o
relevância porque é produzida pelo
surgimento da transgeneridade, como a
pensamento e indica um ponto vista em
construção social que permite, às
particular.
mulheres trans, anteriormente membras
Nesse sentido, enquanto a primeira da casta superior, perderem ostensi-
forma de correlacionismo teria por escopo vamente o seu status e gozarem da
aprimorar um consenso intersubjetivo satisfação masoquista de serem mulheres.
mais apropriado, a segunda forma parte da Por não abrirem mão de todos os seus
necessidade de estabelecer qual é o privilégios, as mulheres5 que passaram
correlato originário ou qual é o correlato pelo processo de transição são capazes de
capaz de englobar uma correlação utilizá-los mesmo dentro de outro
absoluta. Como exemplo, é possível pensar contexto, sendo capazes de exercer
na luta de classes marxista, a linguagem autoridade sobre as mulheres cis
em Derrida, o social em Bourdieu (JEFFREYS, 2014, p. 110).
(MACIEL, 2017, p. 49), correlato o qual
Por outro lado, quanto aos homens
explicaria tudo que é verdadeiramente
trans, a autora afirma que:
importante na realidade.
Uma forma de explanação a ser
No caso das teorias feministas, o considerada aqui é a que a
correlato é bastante variável. No livro “A transgeneridade é atrativa porque o ódio
mulher na Sociedade de Classes”, a filósofa social e a subordinação de mulheres e de
brasileira Heleieth Saffioti apresenta a luta lésbicas, e a valorização de homens, são
forças que tornam mais atrativo, para
de classes como o correlato-base de sua
algumas mulheres, escapar de sua
teoria. Já em “O feminismo é para todo relegação à feminilidade subordinada, e
mundo” e em “E eu não sou uma mulher”, da buscar as vantagens que a adoção da
escritora e professora americana bell masculinidade trará (JEFFREYS, 2014, p.
hooks, o correlato aparece na figura da 112)6.
opressão interseccional. Já a teoria
Logo, defende que a transição de
lesbofeminista abolicionista de gênero de
gênero entre homens e mulheres trans são
Sheila Jeffreys parte da dominação
fenômenos diferentes, na medida em que
masculina como o correlato absolutizante,
gênero é uma categoria política
medida de todas as coisas, e o gênero como

5
Ao longo de sua obra, Jeffreys refere-se às mulheres trans enquanto “homens”, pois não reconhece o fenômeno
transgênero.
6
Tradução nossa do trecho: “One form of explanation to be considered here is that transgenderism is attractive
because the societal hatred and subordination of women and of lesbians, and the valorisation of men, are forces that
make it more attractive for some women to escape their relegation to subordinate womanhood and seek the
advantages that the adoption of manhood will bring”.

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relacionada a status de casta. Nesse errôneas. E, por conseguinte, não podem


sentido, homens, quando entram em ser adotadas.
transição de gênero, perdem status – e,
Tanto no caso de mulheres que
para a autora, isso está relacionado a um
passam pelo processo de transição, quanto
desejo masoquista – enquanto mulheres
no caso de homens que passaram por tal
ganham status ascendendo para a casta
processo, fica patente a visão de que o que
superior, mas ainda guardam resquícios
ela chama de transgenerismo é uma
da casta inferior7.
prática que machuca mulheres – na
Por esse viés de Sheila Jeffreys, o compreensão da autora tanto mulheres
mundo é “feito de” opressão, e a cis, quanto homens trans, pois conforme
dominação masculina adquire o afirma, o gênero não é capaz de alterar o
monopólio absoluto da produção de sexo biológico. Logo, não há um cenário em
sentido (MACIEL, 2021), já que, como que não sejam estas as maiores
visto, todas as coisas que existem ou prejudicadas.
podem vir a existir apenas o fazem para
No caso das mulheres cis que são
reforçar a autoridade dos homens sobre as
esposas de mulheres trans, a autora alega
mulheres. A autora afirma, por exemplo,
ser curioso o fato de que são as mulheres
que “‘gênero’, como um sistema de castas,
transgêneros que são vistas como
cria vantagens para homens e desvan-
perseguidas e precisam de honra e
tagens para mulheres”(JEFFREYS, 2014,
proteção, e não as esposas que sofreram
p.120, tradução nossa)8, ou ainda, “a
violência psicológica de seus maridos ao
categoria ‘transgênero’ foi criada por
presenciarem o processo de transição.
forças do poder masculino, o qual foi
Para exemplificar tal violência, Sheila traz
criado não somente socialmente, mas
à obra o relato de Benvenuto, ex-esposa de
politicamente” (JEFFREYS, 2014, p. 29,
uma moça trans que se declara incapaz de
tradução nossa)9.
aceitar que seu ex-marido seja uma
Cumpre ressaltar que tanto a mulher, alegando que ela teve uma longa
definição de gênero como a definição de relação sexual com ele e deu à luz três
transgeneridade só fazem sentido quando filhos de seu sêmen. Contudo, sua
pensadas a partir das condições já perspectiva não seria respeitada, o que
determinadas para a autora. Desse modo, revelaria o privilégio masculino em
quaisquer outras conceituações que não suscitar a aprovação das comunidades e
destacam a capacidade do gênero de organizações patriarcais e a culpa das
machucar e de manter a dominação patri- mulheres (JEFFREYS, 2014, p. 91).
arcal são automaticamente tomadas como

7As afirmações da autora são ambiciosas, mas parecem duvidosas, considerando que pessoas trans são
marginalizadas na sociedade – quais seriam, dessa forma, seus privilégios ao mudar de casta? (ANTRA, 2020).
8 “Gender, as a caste system, creates advantage for men and disadvantage for women”.
9“The category ‘transgender’ was created by forces of male power, that it was created not just socially but
politically”.

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Outro caso envolvendo o Não só estas questões deixaram de


sofrimento destas mulheres aparece no ser consideradas, como também a própria
relato dado por uma esposa acerca da capacidade da autora de provar tais
transição da até atual companheira, que pressupostos não é demonstrada na obra.
Sheila afirma ser uma comprovação do Dessa forma, para além de se amparar em
egocentrismo dos maridos transgêneros, relatos subjetivos, os quais são se provam
na medida em que, no relato, a moça alega generalizáveis, a autora não se preocupa
que “‘desde o início da transição, tudo se em dar objetividade a afirmações quanto à
resumia aos sonhos, desejos e necessi- equiparação entre mulheres em relaci-
dades de Bobbi’” (Erhardt, 2007: 120 apud onamentos abusivos e mulheres em
Jeffreys, p. 83, tradução nossa). É com base relacionamentos com pessoas trans, ou
nessa ocorrência narrada que a autora ainda, a origem e as formas das violências
estabelece uma comparação entre o psicológicas que sofrem as mulheres cis ao
sofrimento vivenciado pelas esposas de acompanharem ou ao descobrirem a
mulheres trans, e o sofrimento de transição de suas companheiras. A autora
mulheres abusadas por homens, no constrói sua tese em afirmações que não
sentido de que ambas situações seriam guardam nenhuma relação de obriga-
fruto da falta de empatia, a qual por sua vez toriedade, isso porque colecionar relatos
seria produto da dominação masculina de pessoas que não se adaptaram à
(JEFFREYS, 2014, p. 83-84). cirurgia de redesignação de gênero não
anula o relato de pessoas que se
Com base nesse relato, somos
adaptaram, assim como o contrário
levados a acreditar que todos os casos de
também não acontece. São dados que só
transgeneridade entre pessoas casadas
podem ser analisados conforme cada
levam a situações de violência psicológica
indivíduo.
entre nubentes, principalmente com
relação às companheiras ou ex- Quanto às comunidades gays e
companheiras de mulheres trans – na obra lésbicas, também atingidas pelos efeitos
apresentadas como “homens que negativos do gênero e da transgeneridade,
transgridem” –, as quais enfrentariam uma Jeffreys defende que a construção de tais
experiência traumática ao se depararem conceitos reforçam os estereótipos de
com a nova identidade de suas esposas. gênero, de forma a criar um não-lugar para
Contudo, chama a atenção que, em um aqueles que se apresentam de maneira
cenário tão vasto de relações, essa seja desviante, como as próprias gays e
considerada a regra, como se não fossem lésbicas. Nesse sentido, homens gays
possíveis casos em que o processo de conservadores, reafirmando a masculi-
transição implique na solidariedade e o nidade normativa, procurariam negar e
companheirismo entre os envolvidos, com excluir homens gays afeminados,
ou sem a permanência do casamento ou colocando-os na categoria de
ainda num término em que ambos sejam “transgêneros” (JEFFREYS, 2014, p. 32).
capazes de entender as subjetividades do Por outro lado, as lésbicas masculinizadas,
outro e, assim, possam seguir em frente. chamadas pela autora de “butches” por não
encontrarem um espaço valorizado na

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comunidade lésbica, migrariam para a No que tange aos impactos das


transgeneridade (JEFFREYS, 2014, p. 105). legislações, a autora ressalta os prejuízos
que estas causam ao permitirem a entrada
Destarte, como homens trans, as
de mulheres trans em espaços antes
lésbicas teriam acesso ao dividendo
exclusivos para mulheres cis, de forma a
patriarcal, aos privilégios e vantagens que
submeter as últimas a sofrimentos e
pertencem aos homens em sistemas de
situações de maiores vulnerabilidades, o
dominação masculina. Outro ganho signifi-
que colocaria não apenas a integridade
cativo com a transição consistiria em
física dessas mulheres cis em risco, mas
maior segurança física e liberdade, pois
também sua saúde mental e emocional,
escapariam do abuso, assédio e violência
por exemplo (JEFFREYS, 2014, p. 155).
dos homens que as mulheres cis, as quais
permaneceriam na linha de frente de Para demonstrar e comprovar o seu
gênero, continuam experimentando argumento, a autora traz à narrativa casos
(JEFFREYS, 2014, p.109-111). em que homens, vestindo roupas femi-
ninas, foram presos por se comportarem
Todavia, somos levados a
de maneira prejudicial em espaços
questionar a capacidade de homens gays
femininos. A gama de atos que praticam
conservadores determinarem a transgene-
incluiria fotografar secretamente mulhe-
ridade ou não de homens gays afeminados,
res usando banheiros e chuveiros, atrair
tendo em vista o alto grau de subjetividade
crianças a banheiros a fim de agredi-las
em que tais questões estão envolvidas.
sexualmente, espiar as mulheres sob
Chama atenção a imposição de uma
divisórias ou exigir que as mulheres as
identidade e a sua aceitação sem
reconheçam como mulheres. Nesse último
resistência, como se não houvesse um
caso, Sheilla relata que é comum que as
custo a ser pago tanto socialmente, quanto
mulheres trans se tornem agressivas caso
dentro da própria subjetividade do
as mulheres cis não as reconheçam. Como
indivíduo. Ainda, é questionável a tese que
nos dois casos narrados pela autora:
afirma a fuga de mulheres lésbicas
masculinizadas da comunidade lésbica Em um caso de Little Rock, Arkansas, um
para a transgeneridade por falta de homem de trinta e nove anos vestindo
roupas femininas foi preso após se expor e
representação, como se essas não
se masturbar na frente de três crianças,
pudessem se retirar de tais comunidades, além de tentar atraí-las para o banheiro
ou ainda, como se houvesse uma feminino (Newport TV, 2010). Ele tinha
homogeneidade nas organizações de um longo histórico de exposição indecente
mulheres lésbicas. Em ambos os casos, a [...] Em maio de 2013, um homem vestindo
roupas de "mulher", que usava uma
opressão patriarcal é o monopólio da
câmera escondida para filmar mulheres
produção de sentido da vida de gays e em banheiros femininos, foi preso na
lésbicas, correlato absoluto e homoge- Califórnia (Daily News, 2013) (JEFFREYS,
neizante que não considera a contingência 2014, p. 155, tradução nossa).
da vivência desses indivíduos.

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Ao trazer tais narrativas, a autora 2014, p. 58). Apesar de alegar que são cada
demonstra aquilo que ela deseja que as vez mais comuns os casos de pessoas trans
pessoas vejam, casos que geram que se arrependem dos procedimentos
indignação e ódio contra todos aqueles cirúrgicos, a autora não apresenta dados
que, segundo ela, vestem-se de mulher, que confirmam tais alegações, apenas se
pois todos eles seriam potenciais baseia nessa afirmação genérica para
assediadores ou abusadores. A opção da exemplificar como a transgeneridade é
autora, durante toda a obra, em se referir capaz de machucar a todos, inclusive as
às mulheres trans como “homens vestidos pessoas transgêneros.
de mulher” mostra-se extremamente
O que a autora não percebe é que
conveniente quando da análise dessas
todas essas afirmações e argumentos por
situações, já que, para ela, como não
ela elencados são contingentes, ou seja,
existem diferenças entre homens cis e
podem ou não acontecer. No entanto, mais
mulheres trans, a autora não precisa se
do que um erro, tal insistência da autora
ater a casos em que evidentemente eram
em subordinar todo o movimento
mulheres que cometiam tais delitos. Para
transgênero a um só correlato (supre-
ela, nesses casos nem mesmo seria
macia masculina) é ressaltado por
possível a diferenciação.
Meillassoux como um propósito correla-
Aqui, não se busca negar que tais cionista: escamotear ou não perceber as
casos sejam possíveis, mas que estes não contingências, posto que se torna quase
podem ser generalizados como uma regra impossível explicar qualquer processo em
inescapável. Não é possível afirmar que que não se parta de tal correlação. Assim,
todos aqueles que adentraram os banhei- ao abandonar a contingência, tudo passa a
ros femininos, e causaram com suas ser necessário e em contrapartida tudo
condutas danos a mulheres, são mulheres tem a ver com dominação de gênero.
trans, ou ainda que todas as mulheres
Cumpre ressaltar que as proble-
trans, ao adentrarem esses espaços,
máticas aqui levantadas não se referem
apresentaram a mesma conduta que tais
propriamente aos correlatos que a autora
indivíduos. Mais uma vez, a autora aplica
utiliza, mas sim ao propósito de
um correlato absolutizante, relacionando
absolutização desses correlatos que é
necessariamente violência e abusos
própria do correlacionista radical.
sexuais à transgeneridade.
Ademais, não se questiona que a
Já em relação às pessoas trans em desigualdade de gênero exista. Como se
si, Jeffreys chama atenção para o problema sabe, afirmações como a de que homens
cada vez mais comum de arrependimento ganham mais do que mulheres são
entre pessoas transgênero, ou seja, os atestadas pelo Instituto Brasileiro de
sentimentos dos sobreviventes do Geografia e Estatística ano após ano. Em
tratamento que consideram que foram 2019, por exemplo, os dados indicaram
diagnosticados erroneamente e podem que as mulheres ainda ganham cerca de
desejar fazer uma cirurgia reconstrutiva 20,5% a menos que os homens (IBGE),
para reparar danos cirúrgicos (JEFFREYS,

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assim como são crescentes os casos de linguagem” e variantes deixem de fazer


feminicídios. sentido. Em certa medida, o que Latour
está combatendo é o que ele chama de
Contudo, questiona-se com base em
“prestidigitação”, que ocorre quando uma
quais argumentos a autora é capaz de
expressão complexa é substituída por algo
afirmar que as mulheres trans passam pelo
mais banal (LATOUR, 2012, p. 148). Da
processo de transição por puro maso-
mesma forma, as proposições feitas por
quismo, uma vez que a autora não traz
Jeffrey não consideram as complexidades
qualquer elemento à obra que seja capaz
do fenômeno que critica, reduzindo tudo
de demonstrar indício da relação causal
aquilo que envolve e se relaciona com
entre as duas coisas. Ainda, não demonstra
gênero como obrigatoriamente produto da
causalmente como a transgeneridade
dominação patriarcal por ele estabelecida.
encontra razão apenas na dominação
Para além dessas contribuições, que
masculina, sendo esta, para a autora,
reforçam a crítica ao correlacionismo da
assegurada pela noção de gênero. O que
autora, Bruno Latour e a sua crítica aos
fica evidente é a criação de uma cadeia na
modernos e ao propósito destes de
qual todos os eventos que envolvem
modernização do mundo, tornam-se úteis
transgeneridade demonstrariam a capaci-
para uma argumentação que a autora
dade do gênero machucar, enquanto este
lança mão em Gender Hurts, a bifurcação
por sua vez só existiria para assegurar a
natureza-cultura, pilar fundamental da
dominação masculina como um sistema
crítica apresentada à transgeneridade e ao
político: o patriarcado.
gênero.
Dessa forma, o que a autora busca
demonstrar é que algo fora de tal
correlação é algo improvável ou mesmo Gênero e transgeneridade como
impossível. Tal como afirma Meillassoux, a conceitos bifurcados
correlacionista apela para o princípio da
Em sua obra “Jamais Fomos
facticidade (MEILLASSOUX, 2020, p. 214),
Modernos", o filósofo francês Bruno Latour
de forma a defender a impossibilidade de
propõe que abandonemos o mundo das
qualquer concepção que não seja a por ela
representações modernas e o uso de suas
elencada, uma vez que “é fato que” o
categorias para explicar o mundo. Isso
mundo é feito de dominação masculina.
porque a cultura moderna, a partir de sua
Essa tentativa de monopolizar a filosofia, foi responsável por criar uma
produção de sentido através de um único cisão entre o homem e as coisas, entre o
correlato posteriormente é criticada por sujeito e o objeto, entre a sociedade e a
uma série de outras teorias, como a Teoria natureza e uma série de outras distinções
Ator-Rede, de Bruno Latour. Conforme o necessárias ao seu projeto de purificação,
filósofo da ciência, temos que parar de usar ou, à defesa de sua tese de libertação.
as categorias modernas para explicar o
Segundo o autor, com base nesses
mundo, a fim de que proposições como
propósitos, a modernidade inventou uma
“tudo é natureza”, “tudo é social”, “tudo é
série de mitos, dentre eles o da bifurcação,

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entendida como o processo de purificação verifica é a total perda de autonomia e a


ou separação entre natureza/mundo x agência daquilo que não for produto de
cultura/sociedade, separação esta que se uma metafísica de intersubjetividade
tornou o escopo da filosofia moderna e (constelação de solipsismo). Isso porque
suas ciências. Por este motivo, “nossa vida
Toda essa noção baseia-se parcialmente na
intelectual é decididamente mal cons- admissão implícita de que a mente só pode
truída. A epistemologia, as ciências sociais, conhecer aquilo que ela mesma produziu e
as ciências do texto, todas tem uma de alguma forma conserva dentro de si,
reputação contanto que permaneçam embora exija uma razão extrínseca tanto
para originar como para determinar o
distintas” (LATOUR, 1994, p. 11).
caráter de sua atividade (WHITEHEAD,
Tal processo, enquanto um 1994, p. 39).

problema, aparece pela primeira vez no Em Latour, essa conceituação de


livro O Conceito de Natureza, do filósofo e bifurcação vai ser lida conforme o seu
matemático britânico Alfred North papel desempenhado na constituição dos
Whitehead, que denuncia nessa obra as modernos, tanto no que se refere a
teorias da bifurcação da natureza, as quais dimensão do discurso, quando estes se
dividem a realidade em dois sistemas declaram como povo apto ou iluminado a
distintos, de modo que a realidade mental realizar a modernização do mundo, quanto
é entendida como absolutamente diferente na dimensão da realidade, quando ao
da realidade do mundo. Nesse sentido, o tentarem purificar a mistura
autor afirma que o alvo de seu protesto natureza/cultura, só o que conseguiram
foi atuar na proliferação daquilo que
buscavam combater: híbridos,
É essencialmente a bifurcação da natureza transformados pelo discurso moderno
em dois sistemas de realidade, os quais,
como uma evidência do pré-moderno e
conquanto sejam reais, são reais em
sentidos diferentes. Uma realidade seriam
que portanto precisa ser eliminada.
as entidades como os elétrons, objeto de
Segundo o filósofo,
estudo da física especulativa. Essa seria a
realidade oferecida ao conhecimento, a palavra moderno designa dois conjuntos
muito embora nessa teoria ela jamais seja de práticas totalmente diferentes que, para
conhecida. Isso porque o passível de permanecerem eficazes, devem
cognição é a outra espécie de realidade, a permanecer distintas, mas que
ação coadjuvante da mente. Existiriam, recentemente deixam de sê-lo. O primeiro
portanto, duas naturezas: uma é a conjunto de práticas cria, por tradução,
conjetura e a outra, o sonho (WHITEHEAD, misturas entre gêneros de seres
1994, p. 38). completamente novos, híbridos de
natureza e cultura. O segundo cria, por
Conforme tais teorias, a
purificação, duas zonas ontológicas
subjetividade, como elemento próprio do inteiramente distintas, a dos humanos de
indivíduo, é o elemento determinante, de um lado, e a dos não humanos de outro
modo que as demais coisas (objetos (LATOUR, 1994, p. 16).
natureza) somente possuem importância
Assim, ao retomar as origens da
quando preendidos por ela. O que se
separação entre a ciência social (política) e

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a ciência do natural, argumenta que foi mas sempre presentes. É o que a autora
estabelecido que cabe à ciência a vem construindo ao longo de toda a obra,
representação dos não-humanos, sem que como na divisão entre o que é incumbência
esta possa fazer qualquer apelo à política, da psicologia e psiquiatria (mente), e o que
enquanto à política cabe a representação seria de responsabilidade médica de
dos cidadãos, mas lhe é vedada qualquer endocrinologistas e cirurgiões plásticos
relação com os não-humanos, objetos da (corpo).
ciência e da tecnologia (LATOUR, 1994, p.
O mesmo acontece quando esta
34).
busca separar o que é proveniente da
Isso porque, segundo Latour, a natureza, no caso as mulheres cis, e o que
Constituição Moderna inventa uma advém da cultura, as mulheres trans. Isso
separação entre o poder científico, porque, para a autora, o transexualismo é
encarregado de representar as coisas, e o um produto da indústria médica ou uma
poder político, encarregado de falha no desenvolvimento biológico que
representar os sujeitos (LATOUR, 1994, p. precisa ser reparada pela gentil atenção
35). Ademais, por meio do seu projeto de dos cirurgiões, e não um aspecto trans-
iluminação e de emancipação, a histórico e essencial da humanidade
modernidade consegue inventar a (JEFFREYS, 2014, p. 39).
hierarquia de pessoas, de políticas, de
Contudo, diferentemente do que
países, tudo isso com base na motivação
fazem os modernos em seu caminho de
ontológica de que o ser precisa ser
libertação, na cisão estabelecida entre
purificado. Dito isso, o caminho em direção
corpo e mente, em Gender Hurts é o corpo
à sociedade pura, livre, pressupõe o
que estabelece uma hierarquia pré
cancelamento da natureza, ou seja, o
determinativa, de modo que, se há um
abandono da pré-modernidade.
conflito entre ambos, é uma indicação
Contudo, a bifurcação, para além da evidente de que o indivíduo apresenta
luta pela separação entre condições mentais instáveis, pois o corpo,
natureza/cultura, pode assumir outras enquanto máquina biológica, nunca erra.
formas, como a separação passado/pre- Logo, se os modernos advogam pelo
sente, ciências da natureza/ciências do cancelamento da natureza e o caminho
social, mente/corpo e variações, sempre rumo à cultura, Sheila Jeffreys faz o
de modo a instituir uma hierarquia pré- movimento inverso ao defender o retorno
determinativa – seja para defender um do culto ao natural, ao biológico e o
polo, seja para defender o outro. cancelamento das construções sociais que
possibilitaram o surgimento das noções de
Em teses como as de Sheila Jeffreys,
gênero e transgeneridade.
nas quais se busca estabelecer o que é
natural e o que é social, ou ainda o que é Segundo a autora, o termo gênero
humano do que não é, os conceitos, ainda foi usado pela primeira vez com o
que sejam claramente bifurcados, aprese- propósito de normalização de bebês
ntam-se de maneiras camufladas, diluídas, intersexo, uma vez que permitiria aos

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médicos designar as características subordinação das mulheres, que ficou


comportamentais que consideravam mais conhecido como a “hierarquia de gênero”
adequadas para pessoas de um ou outro ou a “ordem de gênero” (JEFFREYS, 2014,
sexo biológico. Afirma que “a ideia de p. 4).
gênero foi desenvolvida pelos sexólogos
Em sentido parecido, a
John Money e outros na década de 1950 e
transgeneridade tornou-se um termo
era entendida como ‘o desempenho social
guarda-chuva para uma grande variedade
indicativo de uma identidade sexual
de pessoas que se sentem desconfortáveis
interna’” (JEFFREYS, 2014, p. 27)10.
com os papéis tradicionais de gênero, mas
Mais tarde, o termo foi adotado por que, sem uma análise feminista de que o
algumas teóricas feministas na década de gênero em si é o problema, procuram
1970 para estabelecer a diferença entre o representar seu desconforto através da
sexo biológico e as características que adoção de elementos do estereótipo de
derivavam da política e não da biologia, as gênero oposto (JEFFREYS, 2014, p. 8).
quais foram chamadas de gênero
Logo, a problemática para Sheila
(JEFFREYS, 2014, p. 4). Entretanto, desde
Jeffreys é que, o que as pessoas trans
os anos 1950 e 1960, alguns
sentem ou vivenciam em relação ao seu
endocrinologistas já se apoiavam nas
gênero é uma construção social da
noções de gênero para legitimar o
dominação patriarcal e, portanto, não é
tratamento de mudança corporal para
verdadeiramente real. Trata-se, na
transexuais, ainda que houvesse médicos e
verdade, de uma experiência artificial,
psiquiatras que não concordassem que um
falaciosa. Sheila, assim como a militância
problema mental devesse ser tratado com
pós-moderna apresentada no livro
terapias físicas (JEFFREYS, 2014, p. 102).
“Reagregando o social”, de Latour, parte da
Outro elemento associado à criação da
concepção segundo a qual construção
ideia de identidade de gênero como uma
social é sinônimo de “déficit de realidade”,
forma distinta da sexualidade é que
“artificialidade”, “invenção” ou “falsidade”.
"gênero" é conceituado como uma forma
Desse modo, institui-se uma dicotomia: ou
de diferença social ao invés de, numa
uma coisa é real e não construída, ou é
perspectiva feminista, um local de relações
construída e, portanto, artificial, falsa,
de poder (JEFFREYS, 2014, p. 34).
ideada, questionável (LATOUR, 2012, p.
À medida em que o termo “gênero” 132-134). Contudo, tal paradoxo,
foi adotado mais amplamente pelas conforme afirma Latour, se contrapõe a
feministas, seu significado foi tudo aquilo que é experienciado nos
transformado para significar não apenas o laboratórios, na medida em que ser
comportamento socialmente construído inventado e ser objetivamente real podem
associado ao sexo biológico, mas o próprio se equivaler (LATOUR, 2012, p. 136).
sistema de poder masculino e de

10 Tradução nossa do trecho: “The idea of gender was developed by the sexologists, John Money and others,
in the 1950s and understood as ‘the social performance indicative of an internal sexed identity’”.

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A autora sente a necessidade de gênero”, nesse sentido, desaparece da


constante de demarcar que a diferença não biologia e de todas as experiências que
é possível, pois por mais que uma pessoa aquelas com biologia feminina têm de
trans aponte que o seu sexo biológico não serem criadas em um sistema de castas
coincide com seu gênero, o primeiro não baseado no sexo.
pode ser mudado, o que implica dizer que
Todavia, o que a autora e todo
aquela pessoa não pode ser tratada
moderno não é capaz de enxergar é que
conforme a sua identidade de gênero, que,
não existe tal coisa como uma natureza
segundo a autora é uma condição mental.
pura, exata, verdadeira, tampouco um
Além disso, argumenta que os social artificial, inteiramente construído e
próprios transgêneros são prejudicados falsificado. O corpo, assim como todas as
por regimes de tratamentos hormonais e coisas, é sempre natural e artificial, pois a
cirúrgicos que podem não reduzir sua artificialidade é uma característica que
tendência suicida, mas podem causar dor, pode estar presente em todas as coisas. A
danos físicos e isolamento social. própria relação entre hormônios e sexo
Outrossim, ao acreditarem no mito de que não é bem estabelecida e tal relação sequer
podem ter seu sexo transformado, figuram é comentada pela autora.
em uma verdadeira tragédia ao perderem
É por este motivo que, segundo
tanto partes do corpo, como parceiros,
Latour, jamais fomos modernos, pois a
contato com família e filhos, além de sofrer
representação do mundo conforme
solidão e isolamento como resultado da
propõe aqueles que aderem a este projeto,
crença no mito do 'império transexual' dos
nunca aconteceu. Pois quanto mais a
endocrinologistas, cirurgiões, psicólogos e
modernidade tentasse proibir, mais o
alguns psiquiatras (JEFFREYS, 2014, p.
cruzamento entre as fronteiras dos polos
183).
natureza/cultura se tornou possível e o
Assim, “fetos femininos são que se verificou, na prática, foi uma imensa
abortados e bebês femininos são mortos proliferação de híbridos. Logo, a
por causa do sexo, não por discriminação constituição moderna permitiu a
de ‘gênero’” (JEFFREYS, 2014, p. 6, proliferação dos híbridos cuja existência –
tradução nossa)11, bem como as mulheres e mesmo a possibilidade – Jeffreys nega
não decidem em algum momento na idade (LATOUR, 1994, p. 19). Citando Latour:
adulta que gostariam que outras pessoas
O menor vírus da AIDS nos faz passar do
as entendessem como mulheres, porque sexo ao inconsciente, à África, às culturas
ser mulher não seria uma “identidade”. A de células, ao DNA, a São Francisco, mas os
experiência das mulheres não se analistas, os pensadores, os jornalistas e
assemelha à dos homens que adotam a todos os que tomam decisões irão cortar a
fina rede desenhada pelo vírus em
“identidade de gênero” de ser mulher, ou
pequenos compartimentos específicos,
seja, tais homens não seriam mulheres em onde encontraremos apenas ciência,
qualquer aspecto. A ideia de “identidade apenas economia, apenas representações

11 “Female fetuses are aborted and female infants are killed because of sex, not ‘gender’ discrimination”.

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sociais, apenas generalidades, apenas bifurcação. E que esta, enquanto um


piedade, apenas sexo (LATOUR, 1994, p. problema, não se restringe apenas ao
8).
campo da teoria, mas é capaz de atingir
É nesse sentido que o autor francês diretamente a vida das pessoas – no caso,
se propõe a reatar o “Nó Górdio” e negando-se a possibilidade de existência
produzir uma filosofia que não seja de pessoas transgênero.
dividida nem em natureza, nem em
Desse modo, longe de se procurar
cultura. Com isso, o que ele propõe, como
defender que a crítica à categoria de
já dito, é que tais categorias deixem de ser
gênero (bem como transgeneridade e
utilizadas como base para produção de
variantes), feita pela autora, é
sentido. Não com o propósito de se
completamente descabida, busca-se
defender que existe uma unidade entre
compreender como ela, ao defender a
natureza e cultura, mas que algo como uma
bifurcação natureza/cultura expressa na
natureza imanente e uma cultura pura (e
divisão mulheres cis/mulheres trans,
vice-versa) jamais existiu como são
funda sua própria crítica em um erro
caracterizados na modernidade. Segundo
categorial.
o autor, não há nada a priori, puro, mas
apenas a proliferação de híbridos, os quais Ademais, fica patente que a crítica
não precisam de ser classificados como moderna funciona de forma advocatícia,
“híbridos” se se abandona a bifurcação. pois sua estrutura discursiva mal feita
permite que se faça qualquer coisa com um
Bruno Latour nos convida a pensar
instrumental teórico praticamente nulo.
em híbridos. Ao invés de fingirmos que o
Assim, ainda que nada ou nenhuma coisa
mundo é purificado entre humanos x
seja em si não-criticável, é preciso
natureza, passamos a “regulamentar” a
questionar: qual o valor da acusação pela
produção de híbridos ao abandonarmos a
acusação? Ou da acusação que tem por
metafísica da subjetividade que está por
objetivo camuflar a inexistência de
trás da bifurcação da natureza. Isso porque
argumentos consistentes? Ou ainda da
no meio, onde supostamente nada acusação enquanto crítica pautada na
acontece, quase tudo está presente. E nas purificação, enquanto um fenômeno que
extremidades, onde reside segundo os
jamais existiu? Como afirma Latour,
modernos, a origem de todas as forças, a
natureza, e a sociedade, a universalidade e
“solidamente apoiado sobre a certeza
a localidade, não há nada além de transcendental das leis da natureza, o
instâncias purificadas que servem de moderno pode criticar e desvendar,
garantias constitucionais para o conjunto denunciar e se indignar frentes às crenças
(LATOUR, 1994, p. 121).
irracionais e às dominações não
O reconhecimento dos híbridos justificadas” (LATOUR, 1994, p. 42).
abre espaço para a percepção de que teses
Ademais, ao afirmar que a
que se assentam no patriarcado, no
transgeneridade, por ser uma ideologia
machismo, na cultura, na natureza etc são
masculina, coloniza a experiência e
pontos que servem para escamotear o
existência das mulheres (JEFFREYS, 2014,
verdadeiro problema: a defesa da

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p. 48) cis, a autora deixa de considerar que Nesse sentido, Gender Hurts funci-
o controle dos corpos e da sexualidade onaria como um material de apoio para
negras e indígenas, ambas associadas à todos aqueles que conseguem ver no
noção de parafilia e a doenças, faz parte do gênero a capacidade de machucar e de
projeto de novo mundo dos modernos. Ou ferir toda a coletividade de mulheres que
seja, não considera que o culto ao natural negam a transgeneridade e que defendem
ainda não se mostrou capaz de gerar mais a abolição do gênero como uma premissa
liberdade e menos opressão, como essencial para a superação do patriarcado.
pressupõe sua argumentação.
Todavia, como se pode ver no
Se, em Gender Hurts, o que Sheila decorrer do artigo, a teoria defendida pela
parece defender é que movimentos autora se traduz em duas grandes apostas:
políticos como o transfeminismo somente de um lado, a definição correlacionista de
são possíveis quando se considera que tal gênero e da transgeneridade; do outro, a
coisa como uma biologia não existe ou não bifurcação natureza/cultura, que na obra é
poderia existir (JEFFREYS, 2014, p. 53). De melhor representada pela dualidade
fato, sendo a biologia considerada como o corpo/mente. Ao contrastar os postulados
desvelamento de uma natureza pura e por da autora com as críticas feitas por
conseguinte, automaticamente boa e Quentin Meillassoux às teorias de base
sagrada, se jamais fomos modernos como correlacionista, ficou patente a
preceitua Latour, essa é uma afirmação impossibilidade de leitura da obra sem o
que somos levados a aceitar. correlato “supremacia masculina” ou
“patriarcado”, elemento fundante de todas
as coisas.
Conclusão
Ao construir toda uma teoria sob
Gender Hurts é escrito por Sheila um único pilar de sustentação, o que Sheila
Jeffreys como uma forma de protesto. A Jeffreys não parece perceber é a
exclusão da autora de alguns eventos dificuldade de generalização de seus
acadêmicos, bem como a vedação de sua pressupostos. Diversas foram as
participação em espaços de movimentos premissas feitas, mas poucas foram as
feministas não-radicais são elencados tentativas da autora de tentar prová-las.
como elementos motivacionais para a Afirmações como “o masoquismo é
escrita dessa obra. Como se buscou inerente às pessoas transexuais ou
demonstrar ao longo deste artigo, um transgêneros” foram feitas com base em
traço marcante da obra é o tom de argumentações de extrema subjetividade,
denúncia acerca da ausência de crítica à nas quais a autora recorre a evidências
construção social do gênero e da anedóticas para a sua comprovação,
transgeneridade, fenômenos que, segundo suprimindo, contudo, a contingência de
ela, desde o seu surgimento, acirraram os tais episódios ou relatos. De forma que
processos de opressão e de dominação apenas as conceituações, informações ,
masculina e que, além de tudo, afastam as dados e discursos que estejam conforme a
mulheres do feminismo. sua tese sejam aceitas. A tentativa de

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Artigo A Bifurcação Natureza/Cultura e o Correlacionismo Radical em Gender Hurts...

abandono da contingência e a real e concreto, pois os corpos, as coisas,


absolutização dos correlatos faz com que são um misto de natural e artificial e todas
os indivíduos percam sua agência, pois as outras coisas. Pois um natural puro,
nada é possível fora da correlação. imanente, jamais existiu.

Outrossim, a tese bifurcada da Assim, cumpre-nos perguntar: qual


autora, aliada à construção correlacionista, vantagem o culto imotivado ao natural é
permite à autora a defesa de uma tese que, capaz de trazer? Ou ainda, como isso pode
em sua concepção, é inabalável. Isso efetivamente modificar a realidade de
porque tudo aquilo que poderia se opressão e violência que é pela autora
apresentar enquanto crítica (contingência, narrada? A natureza, assim como todas as
a impossibilidade de totalização da demais coisas, não seria passível de
subjetividade, a hibridização como transformação? Ou de contestação? Seria
resultado da busca pela purificação) não é possível um feminismo de gênero
por ela recepcionada ou sequer rebatida. abolicionista que consiga defender suas
premissas sem se pautar na eliminação,
Ademais, a bifurcação, na obra da
proposta por Sheila Jeffreys, das dife-
autora, aparece de uma maneira diferente:
renças? São questões que Helen Hester e
se os modernos tinham por propósito o
diversas outras membras do Laboria
abandono da natureza e a movimentação
Cuboniks, grupo de estudos xenofeminista,
em direção à cultura, Sheila propõe que se
propõem-se a debater.
faça o contrário – que a cultura seja
cancelada e que se cultive a natureza, pois, O xenofeminismo, enquanto uma
diferentemente da cultura, tudo que é proposta feminista tecnomaterialista,
biológico (natural) seria, por antinaturalista e abolicionista de gênero,
consequência, real. tem apontado a necessidade de se pensar
formas de opressão e dominação
Entretanto, assim como Latour,
masculina para além do patriarcado, de
outros filósofos têm contestado a tese
forma que elementos como a tecnologia,
segundo a qual tudo aquilo que advém da
por exemplo, longe de ser entendida como
natureza é real e verdadeiro, e tudo aquilo
algo neutro e acima de qualquer
que é produto da cultura é falso, ideado.
intervenção, deve ser entendida como uma
Segundo Latour, a purificação, enquanto
esfera de potencial intervenção ativista.
projeto da modernidade, nunca existiu,
Em contrapartida, a defesa da tecnologia
assim como a própria modernidade. Tudo
pode se converter em uma defesa
que os modernos conseguiram demons-
moderna, na medida em que o mito da
trar foi a imensa proliferação de híbridos.
modernidade vê como positivo o controle
Desse modo, a separação mulheres total da natureza e o processo pelo qual se
cis/mulheres trans com base na bifurcação domina todas as forças selvagens em
natureza/cultura, real/artificial, deixa de benefício do homem (HESTER, 2018, p.
fazer sentido a partir do momento em que 16).
abandonamos a purificação e assumimos
os híbridos como aquilo que há de mais

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Todavia, a autora assenta que de mo, assim como a socialidade não é


nada adianta (intelectualmente, moral- sinônimo de transformação (HESTER,
mente ou politicamente) apelar ao natural 2018, p. 27-28). Mas essas são questões
e ao puro. Isso porque o Xenofeminismo que, dada a sua complexidade, devem ser
parte da premissa contemporânea de que objeto de um outro trabalho.
a biologia não é sinônimo de determinis-

Referências

ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE TRAVESTIS E TRANSEXUAIS. Mapa dos assassinatos de


travestis e transexuais no Brasil em 2019. Disponível em: <https://antrabrasil.files.
wordpress.com/2020/11/boletim-5-2020-assassinatos-antra.pdf> Acesso: dez. 2020.

HESTER, Helen. Xenofeminism. Cambridge: Polity Press, 2018.

Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios


(PNAD) 1º trimestre de 2019. Disponível em: <https://agenciadenoticias.ibge.gov.br/media
/com_mediaibge/arquivos/8ff41004968ad36306430c82eece3173.pdf>.

JEFFREYS, Sheila. Gender hurts: A Feminist Analysis of the Politics of Transgenderism. Nova
York: Routledge, 2014.

LATOUR, Bruno. Reagregando o social: uma introdução à Teoria do Ator-Rede. Tradução:


Gilson César Cardoso de Sousa. Salvador-Bauru: EUDFBA e EDUSC, 2012.

LATOUR, Bruno. Jamais Fomos Modernos – Ensaios de Antropologia Simétrica. Tradução:


Carlos Irineu da Costa. Rio de Janeiro, RJ: Nova Fronteira, 1994.

MACIEL, Otávio S.R.D. Primeiro Esboço de um Tratado de Metametafísica. Tese


(Doutoramento em Filosofia) – UnB. Brasília, 2021, manuscrito ainda não-publicado).

MACIEL, Otávio S.R.D. Curso de Teoria dos Sistemas de Niklas Luhmann. Compilado de
Roteiros de Aula disponibilizados no Academia.edu – UnB. Brasília,2018.

MACIEL, Otávio S.R.D. Meta-metafísica e Correlacionismo: Desafios e Direções para uma


Filosofia no Século XXI. Dissertação (Monografia em filosofia) – UnB. Brasília, 2017.

MEILLASSOUX, Quentin. O Tempo sem o Tornar-se. Tradução de Rafaela Silva Borges,


Introdução e notas de Otávio Souza e Rocha Dias Maciel in. Anãnsi: Revista de Filosofia,
Salvador, v. 1, n. 1, p. 196-219, 2020. Disponível em: <https://revistas.uneb.br/index.php/
anansi/article/view/9599>. Acesso: dez. 2020.

WHITEHEAD, Alfred N. O Conceito de Natureza. São Paulo: Martins Fontes, 1994.

Anãnsi: Revista de Filosofia, Salvador, v. 1, n. 2, 2020 82


ISSN: 2675-8385
Revista Anãnsi, Salvador, 2020
Ft./ Ana Amélia R. Souza (@urbanovoyeur2)
Artigo As diversas acepções de Accent...

];
Universidade do Estado da Bahia, Campus I
Departamento de Educação

As diversas acepções de Accent:


Rousseau e Les Dictionnaires d’autrefois
Les diverses acceptions d’Accent: Rousseau et les Dictionnaires d’autre fois

Nilton Marlon Antônio 1

Resumo: Ao longo do Ensaio sobre a origem das línguas é possível detectar uma série de importantes
conceitos utilizados por Jean-Jacques Rousseau no desenvolvimento de sua tese central. Entretanto, podemos
identificar que o conceito de acento possui uma importância específica no interior dessa obra, um pouco
peculiar aos outros conceitos trabalhados. As diferentes acepções atribuídas a esse conceito nos revelam o
cuidado especial que devemos ter ao trabalharmos com ele. Seja por interesse interpretativo ou com o intuito
de traduzir tal conceito, precisamos observar certos aspectos que a palavra acento toma o interior dessa obra.
Dito isso, o presente artigo se propõe a identificar determinadas atribuições concedidas ao conceito de acento
dentro da obra de Rousseau e as comparar com as acepções desenvolvidas por importantes dicionários
franceses que antecederam a composição das obras de Rousseau. Temos o objetivo de refletir sobre as
diferentes significações que um conceito pode tomar ao longo de uma obra — também ao longo dos anos —
e como essas diferenças, acarretando diferentes traduções, pode trazer complicações interpretativas.

Palavras-chave: Rousseau; Linguagem; Música; Acento; Tradução.

Résumé: Au long de l’Essai sur l’origine des langues, il est possible de détecter une série d’importants
concepts utilisés par Jean-Jacques Rousseau pour développer sa thèse centrale. Cependant, on peut identifier
que le concept d’accent possède une importance spécifique au intérieur de cette oeuvre, un peu particulier
aux autres concepts travaillés. Les différentes acceptions attribuées à ce concept nous révèlent le soin spécial
qu’on doit prendre lorsqu’on travaille avec lui. Que ce soit par intérêt d'interprétation, que ce soit avec
l’intention de traduire tel concept, il faut observer certains aspects que le mot accent prend à l’intérieur de
cette oeuvre. Cela dit, le présent article se propose à identifier déterminées attributions concédées au concept
d’accent dans l’oeuvre de Rousseau et à établir un rapport avec les acceptions développées par importants
dictionnaires français que On a l’objectif de réfléchir sur les différentes significations qu’un concept pour
prendre au long d’une oeuvre — aussi au long des années — et comment ces différences, entraînent
différentes traductions, peut apporter complications d’interpretations.

Mots-clé: Rousseau; Langage; Musique; Accent; Traduction.

1 Graduando em Filosofia pela Universidade Federal do Paraná. E-mail: niltonmarlon_at@hotmail.com.

Anãnsi: Revista de Filosofia, Salvador, v. 1, n. 2, 2020.


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ISSN: 2675-8385
Nilton Marlon Antônio

Accent: Rousseau e Les Dictionnaires se deixa reduzir a uma acepção simples”


d’autrefois (WYSS apud. ARCO JÚNIOR, p. 72).

Ao longo do Ensaio sobre a origem Entretanto, mesmo aceitando que o


das línguas, Jean-Jacques Rousseau conceito de Acento não se deixa reduzir a
trabalha com uma série da conceitos uma acepção simples no interior do Ensaio,
relevantes para o desenvolvimento da tese podemos ainda buscar em outros lugares
central de seu escrito. Melodia, harmonia, uma definição que nos permita obter uma
imitação e força são alguns dos conceitos melhor compreensão de tudo que cerca
que aparecem sempre dentro do debate esse conceito ao longo do Ensaio e de como
sobre a origem das línguas. Entretanto, ao podemos traduzi-lo nos diferentes mo-
longo da leitura do Ensaio, percebemos mentos e nas diferentes formas em que ele
que o conceito de acento se apresenta aparece. Para obtermos uma acepção mais
como um dos conceitos centrais da obra, precisa do como definir o conceito Acento
principalmente no momento em que no interior dessa obra de Rousseau,
Rousseau desenvolve sua reflexão sobre a recorremos ao auxílio do Dicionário de
relação entre linguagem e música. O acento música do filósofo genebrino. Porém, antes
parece ser uma peça chave para enten- de explorarmos as acepções desenvolvidas
dermos essa relação desenvolvida pelo pelo próprio autor, gostaríamos de
autor. “É justamente a ideia de acento o evidenciar as acepções de Acento
princípio sobre o qual o filósofo genebrino apresentadas nos chamados Dictionnaires
estabelece a origem tanto da música d’autrefois, a saber, os antigos dicionários
quando das línguas, pois, no início estas da língua francesa, com o intuito de
duas coisas eram, na verdade, uma só” compararmos os diferentes usos
(ARCO JÚNIOR, 2012, p. 71). estabelecidos para essa palavra com os
usos empregados pelo filósofo de Genebra.
Como tudo, na verdade, era uma
coisa só, “não haveria distinção entre Em 1606, o dicionário Thersor de la
música, poesia e discurso, uma vez que langue francoyse tant ancienne que
eles todos seriam derivados das paixões moderne apresenta Acento como sendo “a
que proporcionam as variações das elevação, rebaixamento ou contorno da
inflexões da voz e do acento” (2012, p. 72). voz na pronuncia de alguma dicção, [...]
Apesar disso, mesmo se apresentando consequentemente significa as virgulas e
como um conceito central, em nenhum marcas colocada nas palavras indicando os
momento do Ensaio Rousseau nos dá uma lugares onde é necessário aumentar,
definição precisa do conceito de Acento. abaixar ou contornar a voz” (NICOT, 1606,
Como afirma André Wyss, pode-se n.p., tradução nossa)2. Essas modificações
“inventariá-lo ao longo do Ensaio: nunca na voz, a elevação, o rebaixamento ou o
definido nesta obra, empregado nos contorno dela podem ser consequências
contextos os mais variados, o ‘acento’ não de qualquer tipo de marcação gramatical

2 “l' elevation, ou rabbaissement, ou contour de la voix en prononçant quelque diction, [...] consequemment signifie les
virgules et marques apposées aux mots indicans les endroits d' iceux où il faut hausser, ou rabbaisser, ou contourner la
voix” (grifo nosso).

84 Anãnsi: Revista de Filosofia, Salvador, v. 1, n. 2, 2020


ISSN: 2675-8385
Artigo As diversas acepções de Accent...

que gera alguma inflexão ou variação na a saber, define Acento como sendo o
pronuncia, podendo ser acento agudo, acento ortográfico, dando exemplos de sua
grave, circunflexo, contornado ou pontu- utilização. Cito:
ações gramaticais no geral. Essa definição
Acento significa também uma pequena
dada pelo Thersor de 1606 se limita à marca que se coloca sobre uma silaba para
definição gramatical da palavra Acento, marcar uma pronunciação diferente ou
mesmo o apresentando como “elevação, uma diferença natural de uma palavra. [...]
rebaixamento ou contorno da voz na Colocamos um acento agudo sobre um é
fechado, por exemplo, sobre beauté, donné.
pronuncia de alguma dicção”, esse
Colocamos um acento grave sobre là,
dicionário estabelece uma consequência adverbio de lugar, para distinguir de la
direta entra as inflexões da voz e as pronome feminino. Colocamos um acento
marcações gramaticais. circunflexo sobre as palavras que tiveram
uma letra suprimida, como sobre a palavra
O Dictionnaire de l’Académie âge que outrora se escrevia aage (1694,
française de 1694 define acento, de n.p., tradução nossa)6.
maneira genérica, como sendo uma Podemos observar que as
“inflexão da voz, uma maneira de definições de acento colocadas pelo
pronunciar” (1694, n.p. tradução nossa)3. Dictionnaire de l’Académie française de
Além disso, o Dicionário da Academia 1684 são muito mais ricas que as
destaca que “não há mau acento” e que definições que encontramos no Thresor de
“conhecemos pelo acento de qual 1604. Ao longo de 1600, comparando as
província ele [a pessoa] é” (1694, n.p., definições dadas por esses dois dicio-
tradução nossa)4. Agora, em um sentido nários, a palavra Acento parece obter uma
mais preciso, esse dicionário indica mais quantidade maior de acepções7, tornando
duas significações que é valido evidenciar a sua utilização muito mais rica e variável.
aqui. A primeira diz que Acento “se liga, Acento ainda continua significando as
algumas vezes, por um certo tom que marcas gramaticais que apontam uma
marca a intenção da pessoa e que dá as mudança na nossa maneira de falar, porém
suas palavras um sentido diferente a sua significação se estende para os
daquele que elas possuem naturalmente” diferentes modos de pronuncia de cada
(1694, n.p., tradução nossa)5. Enquanto região, o que chamamos hoje de sotaque, e
que a segunda definição apresenta uma também para a forma como pronunciamos
acepção que nos parece ser a mais usual um sentença, demonstrando, por meio de
entre as definições obtidas em dicionários, uma maneira peculiar de pronuncia-la, a

3 “Infléxion de la voix, maniére de prononcer”.


4 “Il n' a point de mauvais accent. on connoist à son accent de quelle Province il est”.
5 “Il se prend aussi quelquefois pour Un certain ton qui marque l' intention de la personne, & qui donne à ses paroles un

sens different de celuy qu' elles ont naturellement”.


6 “Accent signifie aussi, Une petite marque qui se met sur une syllabe pour marquer la différente prononciation ou la

différente nature d' un mot. [...] On met un accent aigu sur un é fermé, par exemple, sur beauté, donné. On met un accent
grave, sur là, adverbe de lieu; pour le distinguer de la, pronom féminin. On met un accent circonflexe sur les mots dont a
retranché une lettre, comme sur le mot âge qui s' écrivoit autrefois aage”. (grifo nosso).
7 É muito improvável que a palavra em questão tenha obtido diversas outras acepções com o passar de um século.

Entretanto, é fato que diferentes acepções que a palavra acento tinha ou obtivera com o passar do tempo pouco a pouco
foram se tornando mais usuais dentro e fora da corte francesa ao ponto de serem adicionadas nas definições
estabelecidas pelo dicionário da academia.

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nossa intenção. O tom irônico, triste ou mais comum, a saber, o acento ortográfico.
colérico de nossa voz pode marcar a nossa É importante evidenciarmos que caracte-
intenção, tal alteração no nosso tom de voz rísticas atribuídas por Du Marsais ao
pode ser definida, aqui, como uma forma acento, no que diz respeito às inflexões da
de acento. fala, é essencial para compreendermos,
agora, a perspectiva de Rousseau.
Dentre os 35 volumes lançados pela
Observemos como o filosofo genebrino
Encyclopédie de Diderot e D’Alembert
desenvolve essa questão.
entre 1751 e 1772, um dos artigos que lá
encontramos é dedicado à palavra acento. Em um primeiro momento, em seu
Nela Du Marsais desenvolve as acepções Dicionário de música, Rousseau define
da palavra acento de uma maneira bem acento, segundo a acepção mais geral,
mais longa e descritiva do que encon- como “toda modificação de voz falada na
tramos nos dicionários que exploramos duração ou no tom das sílabas e das
anteriormente. No começo do artigo o palavras com as quais o discurso é
autor explicita como cada “nação, cada composto; o que mostra um relação muito
povo, cada província, mesmo cada cidade, precisa entre os dois usos dos Acentos e as
diferem uma das outras pela linguagem, duas partes da melodia, quais sejam, o
não somente porque nos servimos de Ritmo e a Entonação” (2012, p. 55). Sabe-
palavras diferentes, mas também pela se, então, que o acento é o responsável por
maneira de articular e de pronunciar as produzir a modificação da voz nas línguas
palavras” (DU MARSAIS, 1751, p. 63, e, consequentemente, no canto. É correto
tradução nossa)8. Continua Du Marsais: afirmar que é o próprio acento quem doa o
essa “maneira diferente de articular as aspecto de canto às línguas originárias do
palavras é chamada acento. Nesse sentido, Ensaio. Sendo assim, o acento é o
as palavras escritas não têm acentos, pois responsável pela não distinção entre fala e
acento, ou articulação modificada, afeta canto nessas primeiras línguas. É valido
somente a orelha” (1751, p. 63, tradução lembra que nessas primeiras línguas as
nossa)9. Por meio dessas passagens “articulações são poucas, os sons são
podemos observar como Du Marsais inúmeros e os acentos, que os distinguem,
estipula uma relação intrínseca entre podem do mesmo modo multiplicar-se”
acento e audição, afirmado que não há (ROUSSEAU, 1978, p. 165). A grande
acento que não fale aos ouvidos10. Sendo multiplicação de acentos nessas línguas
assim, dentro dessa concepção, Du Marsais torna-as canto, não havendo possibilidade
retira do acento uma de suas acepções de falar sem que se esteja cantando.

8 “Chaque nation, chaque peuple, chaque province, chaque ville même, differe d'un autre dans le langage, non-seulement
parce qu'on se sert de mots différens, mais encore par la maniere d'articuler & de prononcer les mots”.
9 “Cette maniere différente, dans l'articulation des mots, est appellée accent. En ce sens les mots écrits n'ont point

d'accens; car l'accent, ou l'articulation modifiée, ne peut affecter que l'oreille”.


10 É importante ressaltar que o artigo da Encyclopédie escrito por Du Marsais explora também as outras acepções de

acento, o gramatical, a aspiração, os intervalos colocados no fim de uma proposição antes de começar outra e as variações
do tom patético (ironia, interrogação, cólera) (DU MARSAIS, 1751, p. 63), essa última muito parecida — para não dizer
idêntica — à concepção de acento patético ou oratório de Rousseau. Entretanto, aqui, daremos enfoque às acepções que
nos parece mais interessantes ao debate.

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Artigo As diversas acepções de Accent...

Rousseau continua: “Accentus, diz o o precedente. Esta segunda espécie de


gramático Sergius, no Donat, quasi ad Acento, indicando a relação, a conexão
mais ou menos grande que as proposições
cantus. Há tantos Acentos diferentes
e as ideias têm entre si, distingue-se em
quanto há maneiras de modificar assim a parte pela pontuação. Enfim, o Acento
voz; e há tanto gêneros de Acentos quanto patético ou oratório que, por diversas
há causas gerais destas modificações” inflexões de voz, por um tom mais ou
(2012, p. 55). menos elevado, por um falar mais vivo ou
mais lendo, exprime os sentimentos por
Como colocado por Rousseau, meio dos quais aquele que fala é agitado e
observamos a descrição da acepção mais os comunica àqueles que o escutam (2012,
p. 55-56).
geral do conceito de Acento, essa acepção
pode nos ajudar a entender o seu emprego Faz-se importante nos atentarmos
dentro do Ensaio. Entretanto, precisamos de maneira a não confundir os diferentes
ter em mente que tal conceito é empre- empregos do conceito de acento utilizado
gado, como afirmou André Wyss, nos por Rousseau. Nessa passagem apresen-
contextos mais variados e, por isso, não é tada pelo autor, nota-se uma grande
possível reduzi-lo unicamente à uma diferença entre os dois primeiros sentidos
acepção geral. Logo, para compreender- de acento para com o terceiro sentido. É
mos como esse conceito é utilizado dentro preciso compreender que o acento
do Ensaio precisamos identificar, também, gramatical é identificado, nas línguas
as diferentes acepções que Rousseau modernas, pela acentuação, pelo que
emprega ao usá-lo. chamamos de acentos gramaticais,
enquanto que o acento lógico ou racional é
É interessante observamos que, na
caracterizado, aqui, pela pontuação.
explicação que se segue em seu Dicionário
Compreendemos, então, que essas duas
de música, obtemos uma descrição mais
acepções estão ligadas ao movimento de
precisa que parece resumir bem os usos
surgimento da escrita, movimento esse
que o autor emprega ao conceito de acento
que, para Rousseau, acaba por retirar das
ao longo do Ensaio. Segundo Rousseau:
línguas o seu acento natural, neste caso, o
Distinguem-se três destes gêneros no acento patético ou oratório. Nesse
simples discurso, a saber, o Acento movimento, desaparecem as inflexões “e
gramatical que contém a regra dos Acentos
as qualidades que se igualam são
propriamente ditos, pelos quais o Som das
sílabas é grave ou agudo, e aquela da substituídas por combinações gramaticais
quantidade, por meio da qual cada sílaba é e por novas articulações” (ROUSSEAU,
breve ou longa: o Acento lógico ou racional, 1978, p. 166). A acentuação11 substitui o
que erroneamente muitos confundem com

11O acento gramatical e o acento racional. Talvez não seja de todo correto igualarmos a noção de acento gramatical à de
acento racional, porém fazemos isso aqui em oposição ao acento oratório, este que se difere muito dos dois primeiros. Os
acentos gramatical e racional estão ligados ao movimento da escrita e por isso gostaríamos de destacar a grande diferença
existente entre esses dois primeiro, o acento gramatical e o racional, para com o terceiro, o acento patético ou oratório,
esse sim ligado diretamente à arte de falar. Nesse sentido, é valido destacar uma passagem do Ensaio que nos ajuda
compreender a diferença a arte da fala e aquela da escrita, fazendo-nos, assim, assimilar com mais precisão as diferenças
existentes entre as acepções de acento listadas por Rousseau. Cito: a “escrita, que parece dever fixar a língua, é justamente
o que a altera; não lhe muda as palavras, mas o gênio; substitui a expressão pela exatidão. Quando se fala, transmitem-se

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acento12 quando o mesmo já não é glote, que é o que determina a diversidade


compreendido pelos seus falantes13 e, por dos sons” (1978, p. 171).
consequência, a língua perde sua
Rousseau consegue demonstrar,
sonoridade se tornando mais fria, porém
por meios de exemplos usuais na língua
mais exata. Segundo Rousseau, enganamo-
francesa, como a acentuação só serve, de
nos “quando julgamos substituir o acento
fato, para melhorar a clareza da língua
pela acentuação. Só se inventa a
escrita e não tem utilidade nenhuma para
acentuação quando o acento já se perdeu”
a língua falada. Por vezes, a acentuação
(ROUSSEAU, 1978, p. 171)14. A acentuação
acrescenta
não substitui o verdadeiro acento da fala,
ela só o faz quando o acento próprio da um acento ortográfico que em nada
língua não existe mais. A acentuação influencia a voz, o som ou a quantidade,
mas que às vezes indica uma letra
presentes em nas nossas línguas modernas suprimida, como o circunflexo, e, outras
não passa de “vogais ou de sinais de vezes, fixa o sentido equívoco de um
quantidade”, não assinala “nenhuma monossílabo15, como o pretenso acento
variedade de sons” (ROUSSEAU, 1978, p. grave que distingue où advérbio de lugar
171). Como evidenciado pelo autor, a de ou partícula disjuntiva e à usado como
artigo de a16 como verbo. Acento que
prova disso se encontra no fato de que distingue esses monossílabos somente à
“todos esses acentos [acentuação] se vista, não determinando nenhum e efeito
revelam ou por tempos desiguais ou por na pronúncia. Assim, a definição de acento
modificações dos lábios, da língua, do [acentuação] adotada geralmente pelos
palato, que determinam a diversidade das franceses não convém a quaisquer dos
acentos da sua língua (ROUSSEAU, 1978, p
vozes; nenhuma pelas modificações da
172, Grifos nossos).

os sentimentos, e quando se escreve, as ideias. Ao escrever, é-se obrigado a tomar todas as palavras em sua acepção
comum, porém aquele que fala varia suas acepções pelos tons, determina-as como lhe apraz” (ROUSSEAU, 1978 p. 170).
12 Acento oratório ou acento patético.
13Rousseau (1978, p. 173): “Os antigos hebreus não possuíam quaisquer pontos ou acentos [gramaticais], nem mesmo
vogais. Quando as outras nações se resolveram a falar hebreu e os judeus falaram outras línguas, a sua perdeu o seu
acento; tornaram-se necessários ponto e sinais para regulamentá-las e isso antes restabeleceu o sentido das palavras do
que a pronúncia da língua. Os judeus de hoje, falando hebreu, não mais seriam compreendidos por seus antepassados”
14É interessante destacamos como essa passagem se encontra no original em francês: Si l'on croit suppléer à l'accent par
les accents, on se trompe; on n'invente les accents que quand l'accent est déjà perdu" (ROUSSEAU, 1830, p. 344). Podemos
observar que a escolha de diferenciar acento de acentuação se dá apenas pelo uso do plural em francês, accent e accents.
Entretanto, essa distinção não é válida para todas as situações.
15 Na língua francesa, observamos a utilização do acento circunflexo em palavras que tiveram uma letra suprimida,
aparece comumente em palavras que perderam a letra S que existia em sua raiz no latim, como nas palavras hôpital, fête,
goût e impôt. Podemos verificar que a letra S não caiu nas respectivas palavras em português, hospital, festa, gosto e
imposto. Outras vezes, encontramos o acento circunflexo sendo utilizado de forma a evitar ambiguidade em monossílabos
que possuem a mesma escrita e a mesma pronúncia, como é o caso do article contracté du (de + le) com o particípio
passado masculino singular do verbo devoir, a saber, dû, este recebe um acento circunflexo apenas para evitar
ambiguidade na escrita. O mesmo acontecer com sur (sobre) e sûr (certo/seguro). Observamos que isso acontece de
forma similar na língua portuguesa, diferenciamos, por meio do acento circunflexo, por exemplo, o verbo ter no presente
da terceira pessoa do singular tem de têm, o mesmo verbo na terceira pessoa do plural. Da mesma forma que acontece
no francês, essa diferenciação só tem como objetivo evitar a ambiguidade na escrita.
16 Verbo Avoir (Ter) presente na terceira pessoa do singular.

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Dentro da teoria da linguagem de ao seu interlocutor. Assim, para


Rousseau, como demonstrado, a acentu- “emocionar um jovem coração, para
ação não possui nenhuma relação com o repelir um agressor injusto, a natureza
acento de fato17, apesar de, por vezes, impõe acentos18, grito e queixumes”
como o leitor já deve ter observado, o (ROUSSEAU, 1978, p. 164). “As paixões
autor fazer uso dessa mesma palavra, a possuem seus gestos19, mas também seus
saber, accent (acento), para se referir às acentos20, e esses acentos que nos fazem
diferentes acepções. tremer, esses acentos cuja a voz não se
pode fugir, penetram por seu intermédio
O acento, e não a acentuação,
até o fundo do coração, imprimindo-lhe,
“anima toda a frase e todo o discurso [...],
mesmo que não o queiramos, os
ele dá vida e alma ao discurso” (ARCO
movimentos que as despertam e fazendo
JÚNIOR, 2012, p. 75, Grifos nossos). Ele é
nos sentir o que ouvimos” (ROUSSEAU,
determinado por modificações na glote e
1978, p. 164). Sendo assim, todas as
não pode ser substituído por modificações
características das primeiras línguas
que somente variam a abertura da boca ou
provêm da excitação de acentos por meio
as posições da língua (ROUSSEAU, 1978, p.
das paixões, fazendo elas serem “cantantes
178), isso é característico da acentuação.
e apaixonadas antes de serem simples e
Por conseguinte, é o acento oratório a peça
metódicas” (ROUSSEAU, 1978, p. 164).
central da teoria da linguagem de
Rousseau, é ele quem é excitado pelas No Ensaio é possível observar que
paixões e ditado pela natureza, é ele que os Homens recém saídos do estado de
faz o Homem exprimir seus sentimentos natureza não tinham a intenção de

17 As inflexões da voz.
18É importante salientar que, na tradução do Ensaio que estamos utilizando ao longo deste trabalho, a saber, a tradução
presenta na Coleção Os Pensadores da Abril Cultura de 1978, identificamos pequenos erros de tradução que podem
atrapalhar a interpretação da obra. Essa passagem, na tradução dos Pensadores de 1978, se encontra assim: “para
emocionar um jovem coração, para repelir um agressor injusto, a natureza impõe sinais, gritos e queixumes”
(ROUSSEAU, 1978, p. 164, grifo nosso) enquanto que em francês encontramos a mesma passagem da seguinte forma:
“mais pour émouvoir un jeune cœur, pour repousser un agresseur injuste, la nature dicte des accents, des cris, des
plaintes” (ROUSSEAU, 1830, p. 333, grifo nosso). Nessa passagem, a palavra em francês accents foi traduzida por sinais.
Essa tradução vai contra a ideia que Rousseau parece buscar exprimir. Apesar dos sinais serem igualmente naturais em
comparação com a linguagem da voz e, apesar da linguagem por meios de sinais ser até mesmo mais fácil, por depender
de menos convenções, Rousseau se refere, nessa passagem, sobre as maneiras pelas quais podemos emocionar um jovem
coração ou repelir um agressor injusto, ou seja, o autor está falando sobre as paixões, estas que excitam os acentos da
voz. Sendo assim, a tradução da palavra accents por sinais pode trazer embaraços interpretativos os quais temos a
intenção de esclarecer aqui.
19É interessante observar que a palavra gestos, aqui, vem da tradução da palavra em francês gestes, diferentemente do
que acontece na outra passagem, podemos observar claramente a distinção colocada entre gestes e accents (gestos e
acentos). Nessa passagem o autor tem a real intenção de falar sobre os gestos, o que poderíamos também interpretar
como linguagem de sinais. Observemos a passagem: “Les passions ont leurs gestes, mais elles ont aussi leurs accents…”
(ROUSSEAU, 1830, p. 330).
20 Nesse caso, mais acertadamente, a palavras accents foi traduzida por inflexões. Porém, mesmo que acento e inflexão
podem ter, aqui, um mesmo significado, gostaríamos de evidenciar ainda mais a importância central que o Acento ocupa
dentro do Ensaio. Assim, optamos por manter a palavra acento no lugar de inflexões, algo que é totalmente permitido pela
passagem em francês: “Les passions ont leurs gestes, mais elles ont aussi leurs accens, et ces accens qui nous font
tressaillir, ces accens auxquels on ne peut dérober son organe, pénètrent par lui jusqu'au fond du cœur, y portent malgré
nous les mouvemens qui les arrachent, et nous font sentir ce que nous entendons” (ROUSSEAU, 1830, p. 330).

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comunicar ideias complexas e racionais, a possui diversas acepções. Entretanto, é


fala servia como um meio para expressar valido ressaltar que, para o autor, o único
seus sentimentos despertados pelas acento que pode dar energia à frase é o
paixões, fazendo o interlocutor sentir as acento oratório. O acento ortográfico — a
mesmas paixões do locutor por meio das acentuação —, só aparece quando este
inflexões de sua voz. Desse modo, como último já não existe mais. Lembremos:
destaca Wyss, “a comunicação das paixões enganamo-nos “quando julgamos
[...] não se contenta em produzir uma substituir o acento pela acentuação. Só se
mensagem: ela também deve fazer passar inventa a acentuação quando o acento já se
a causa que a produziu, ou seja, a própria perdeu”. É sobre esse mesmo sentido de
paixão” (WYSS, apud. ARCO JÚNIOR, 2012 acento, a saber, acento oratório, que
p. 77). É exatamente nesse ponto que o Rousseau está se referindo nessa
acento oratório ocupa seu lugar crucial, passagem. Isto é, orgulhar-se de não ter
pois, para o autor, os acentos “nascem acento oratório, orgulhar-se de possuir
diretamente das paixões — são seus uma fala padronizada sem nenhum
sintomas — e fazem aflorar nos ouvintes sotaque e sem nenhuma inflexão na voz, é
paixões idênticas às primeiras, isto é, orgulhar-se de remover das frases toda a
idênticas àquelas que os fizeram nascer” sua energia. Não há uma real confusão
(ARCO JÚNIOR, 2012, p. 77). Quando o entre as diferentes acepções de acento
autor faz elogios às línguas orientais em sabendo que, para Rousseau, o acento
detrimento das línguas ocidentais, no que propriamente dito é o acento oratório e que
tange os aspectos da fala, evidencia o lugar os outros são apenas acentuações. Apesar
que o acento oratório ocupa nessas disso, como foi possível observar no Ensaio
primeiras, pois nelas o “sentido só em e no Dicionario de música, a palavra Accent
parte está nas palavras, toda a sua força pode assumir diversas significações na
reside nos acentos” (ROUSSEAU, 1978, p. obra de Rousseau, seu significado real é
186). dado pelo contexto da frase. Assim, para
contextualizarmos, citemos a passagem
Por último, gostaríamos ainda de
completa de Rousseau que apenas uma
apresentar uma passagem de Rousseau
pequena parte foi referenciada pelo
citada pelo Dictionnaire de la langue
Dictionnaire de la langue française:
française de 1873 acerca das acepções de
acento. Nessa passagem é afirmado que crescendo, os meninos deveriam corrigir-
“Rousseau fez uma confusão entre o se de tais defeitos [o hábito de falar
entredentes, comum, sendo Rousseau,
acento oratório e acento propriamente
entre as crianças criadas em casa
dito quando escreveu: orgulhar-se de não recebendo todos os mínimos cuidados]
ter acento é orgulhar-se de remover das nos colégios e as meninas nos conventos;
frases sua energia”21. O conceito de acento, em geral, uns e outros falam com efeito
como vimos, é extremamente complexo mais distintamente do que os criados na
casa paterna. Mas o que os impede de
dentro de pensamento de Rousseau e
adquirir uma pronúncia tão nítida quanto

21“Rousseau a fait confusion entre l'accent oratoire et l'accent proprement dit, en écrivant: Se piquer de n'avoir point
d'accent, c'est se piquer d'ôter aux phrases leur énergie”. Dictionnaire de la langue française.

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Artigo As diversas acepções de Accent...

a dos camponeses é a necessidade de mesmo tom que decorre o de zombar dos


aprender de cor muitas coisas e de recitar outros sem que o sintam. Ao acento
em voz alto o que aprenderam. Estudando, proscrito sucedem maneiras de
acostumam-se a garatujar, a pronunciar pronunciar ridículas, afetadas e
negligentemente e mal; recitando, pior subordinadas à moda, como as que se
ainda; procuram as palavras com esforço, observam sobretudo nos jovens da corte.
arrastam e alongam as sílabas; quando a Essa afetação da fala e da atitude é que
memória vacila não é possível que a língua torna em geral o contato com o francês
não balbucie também. Assim se contraem hostil e desagradável às gentes de outras
ou se conservam os vícios de pronúncia. terras. Ao invés de pôr acento na sua
Logo verão que meu Emílio não terá tais linguagem ele põe atitude. Não é o meio de
vícios ou, ao menos, que não os terá predispor a seu favor. (ROUSSEAU, 1992,
contraído pelas mesmas causas. Convenho p. 55, grifos nossos)22.
em que o povo e a gente das aldeias caem
em outro extremo, falam quase sempre Passando brevemente pelo uso
mais alto do que necessário, pronunciando empregado por Rousseau e pelas acepções
demasiado exatamente; têm as encontradas nos dictionnaires d’autrefois,
articulações rudes e fortes, acentuam percebemos que a utilização da palavra
demais, escolhem mal seus termos etc.
acento pode se dar de várias formas
Antes de mais nada, porém, esse extremo dependendo da significação que lhe é
me parece muito menos impróprio do que atribuída, sendo assim nem sempre sua
o outro, porquanto sendo a primeira lei do
tradução é óbvia. A tradução da palavra
discurso a de se fazer entender, o erro
maior está em falar sem ser entendido. precisa estar estritamente ligada à ideia
Vangloriar-se de não ter acento, é que o autor deseja passar ao fazer
vangloriar-se de tirar da frase graça e empregar essa palavra. Por exemplo, ao
energia. O acento é a alma do discurso, dá- longo desse trabalho observamos como
lhe sentimento e verdade. O acento mente
accent foi diversas vezes traduzido no
menos do que a palavra [parole]; talvez
seja por isso que as pessoas bem educadas português por acento, porém, podemos
o receiem tanto. É o hábito de tudo dizer no também verificar diversas variações de

22“En grandissant, les garçons devroient se corriger de ce défaut dans les collèges, et les filles dans les couvents; en effet,
les uns et les autres parlent en général plus distinctement que ceux qui ont été toujours élevés dans la maison paternelle.
Mais ce qui les empêche d'acquérir jamais une prononciation aussi nette que celle des paysans, c'est la nécessité
d'apprendre par coeur beaucoup de choses, et de réciter tout haut ce qu'ils ont appris; car, en étudiant, ils s'habituent à
barbouiller, à prononcer négligemment et mal: en récitant, c'est pis encore; ils recherchent leurs mots avec efforts, ils
traînent et allongent leurs syllabes: il n'est pas possible que, quand la mémoire vacille, la langue ne balbutie aussi. Ainsi
se contractent ou se conservent les vices de la prononciation. On verra ci-après que mon Emile n'aura pas ceux-là, ou du
moins qu'il ne les aura pas contractés par les mêmes causes.
Je conviens que le peuple et les villageois tombent dans une autre extrémité, qu'ils parlent presque toujours plus haut
qu'il ne faut, qu'en prononçant trop exactement ils ont les articulations fortes et rudes, qu'ils ont trop d'accent, qu'ils
choisissent mal leurs termes, etc.
Mais, premièrement, cette extrémité me paroît beaucoup moins vicieuse que l'autre, attendu que la première loi du
discours étant de se faire entendre, la plus grande faute qu'on puisse faire est de parler sans être entendu. Se piquer de
n'avoir point d'accent, c'est se piquer d'ôter aux phrases leur grâce et leur énergie. L'accent est l'ame du discours,
il lui donne le sentiment et la vérité. L'accent ment moins que la parole; c'est peut-être pour cela que les gens bien élevés
le craignent tant. C'est de l'usage de tout dire sur le même ton qu'est venu celui de persifler les gens sans qu'ils le sentent.
A l'accent proscrit succèdent des manières de prononcer ridicules, affectées, et sujettes à la mode, telles qu'on les
remarque surtout dans les jeunes gens de la cour. Cette affectation de parole et de maintien est ce qui rend généralement
l'abord du François repoussant et désagréable aux autres nations. Au lieu de mettre de l'accent dans son parler, il y met
de l'air. Ce n'est pas le moyen de prévenir en sa faveur”. (ROUSSEAU, 1830-1831, p. 73-74, grifos nossos).

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tradução que podem mudar o tom da tradução deve ser extremamente caute-
sentença. Dessa forma, identificamos que losa. É necessário compreender em qual
accent foi traduzido, por vezes, por sentido a palavra está sendo empregada
inflexão e que seu plural, accents, poderia para, então, encontrarmos a tradução mais
ser traduzido por acentuação dependendo adequada para determinada situação. Por
da situação. Houve mesmo alguns mo- isso, é preciso emergimos nos variados
mentos em que, acarretando em alguns empregos das palavras utilizados no
embaraçosos interpretativos, accent havia vocabulário do autor, bem como
sido traduzido por sinais23. Devido à compreender as significações vigentes em
grande importância que esse conceito seu século, para então compreendermos
possui dentro do Ensaio — bem como em qual é a verdadeira acepção que o autor
toda a obra de Rousseau — a escolha de busca empregar ao longo de sua obra.

Referências

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Armand-Aubrée, Tome III et IV, 1830-1831.
ROUSSEAU, Jean-Jacques. Do contrato social; Ensaio sobre a origem das línguas; Discurso sobre a
origem e os fundamentos da desigualdade entre os homens; Discurso sobre as ciências e as artes.
Tradução de Lourdes Santos Machado. Introduções e notas Paul Arbouse-Bastide e Lourival Gomes
Machado. São Paulo: Abril cultural (Coleção Os Pensadores), 1978.
ROUSSEAU, Jean-Jacques. Emílio ou Da Educação. Tradução de Sérgio Milliet. Rio de Janeiro: Editora
Bertrand Brasil S.A., 1992.
ROUSSEAU, Jean-Jacques. O dicionário de música de Jean-Jacques Rousseau. introdução, tradução
parcial e notas de Fábio Yasoshima. São Paulo, FFLCH, 2012. Dissertação (Mestrado em Filosofia).
Luiz Fernando Batista Franklin de Matos (Orient.).

23A título de curiosidade, é interessante destacar que nas entradas dos dicionários listados percebemos que,
além do significado usual de acento ortográfico e dos outros sentidos que destacamos anteriormente, accent
pode ser muitas vezes facilmente traduzido por sotaque. Porém essa palavra não aparece nas traduções,
mesmo sendo uma tradução possível em algumas situações.

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ISSN: 2675-8385
Revista Anãnsi, Salvador, 2020
Ft./ Ana Amélia R. Souza (@urbanovoyeur2)
Artigo Honneth e a Teoria do Reconhecimento...

Universidade do Estado da Bahia, Campus I


Departamento de Educação

Alex Honneth e a Teoria do Reconhecimento: breves considerações


introdutórias acerca de Hegel, Mead e Winnicott 1
Alex Honneth and Theory of Recognition: brief considerations about Hegel,
Mead and Winnicott

José Claudio de Sousa da Silva 2

Resumo: O objetivo deste artigo é abordar o conceito de reconhecimento no pensamento do filósofo


contemporâneo Axel Honneth. Para tanto, este estudo utiliza como obra principal o livro “Luta por
reconhecimento: A gramática moral dos conflitos sociais”. Pois nele, o autor apresenta o reconhecimento
como fator essencial para a construção dos conflitos sociais. Além disso, o pensador emprega os conceitos
identificados na filosofia do jovem Hegel e os fundamenta a partir dos testes empíricos de George Herbert
Mead e Donald Winnicott. A pesquisa resume-se em duas abordagens fundamentais: o jovem Hegel de Jena e
na importância de Mead e Winnicott na reconstrução da teoria do reconhecimento.

Palavras-chave: Luta por reconhecimento; Conflito social; Filosofia Hegeliana.

Abstract: The purpose of this article is to addres the concept of recognition in thought from contemporary
philosopher Axel Honneth. Therefore, this study uses as a work the main book “Fight for Recognition: The
Moral Grammar of Social Conflict”. In it, the author presents recognition as an essential factor for the
construction of social conflicts. Moreover, the thinker employs the concepts identified in the philosophy of
young Hegel and bases them on the empirical tests of George Herbert Mead and Donald Winnicott. The
research is summarized in two approaches: the young Hegel of Jena and the importance of Mead and
Winnicott in the reconstruction of the theory of recognition.

Keywords: Struggle for recognition; Social conflict; Hegelian philosophy.

1 Este artigo é resultado das discussões iniciadas na construção da monografia: Os conflitos sociais
contemporâneos segundo a teoria crítica de Axel Honneth (2019) defendida no Centro de Humanidades da
Universidade Estadual do Ceará, sob orientação do Prof. Dr. José Aldo Camurça de Araújo Neto.
2Graduado em Filosofia Licenciatura pela Universidade Estadual do Ceará. Monitor do programa “Aprender
Mais” da Secretária Municipal de Educação de Fortaleza, Ceará. E-mail: claudioapc.sousa411@gmail.com.

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José Claudio de Sousa da Silva

O jovem Hegel de Jena natural, o ‘ser do singular’ é pressuposta


categorialmente ‘como o primeiro e o
No presente tópico serão apresen-
supremo’” (HONNETH, 2003, p. 38). A
tados os conceitos hegelianos do período
proposta hegeliana é utilizar do método
de Jena, na qual Honneth, de certa forma, é
especulativo para resolver as questões
considerado devedor. O desenvolvimento
apontadas nas duas teorias, sua
seguirá o seguinte modelo: primeiramente
abordagem é oposta à maneira como a
demonstraremos o próprio processo que
filosofia moderna tratava o direito natural.
Hegel concebe o conceito do reconheci-
mento de modo que possamos demonstrar Em sua análise acerca da versão
a fundamentação da teoria do reconheci- empirista do direito, Hegel aponta como
mento na concepção Honnethiana. principais influenciadoras as teorias de
Grotius, Hobbes, Locke, Puffendorf,
No período que passou em
Rousseau, bem como de juristas ligados à
Frankfurt, Hegel retomou em seus escritos
Escola Histórica.
o modelo conceitual de uma luta social
entre os homens empregados por Esses pensadores tomavam as coisas
Maquiavel e Hobbes3. Retornou ao modelo observáveis como objeto de estudo, e
descobriam aí uma multivariedade de
de uma luta social entre os indivíduos para
fatos: princípios jurídicos, leis, fins,
poder fundamentar uma ciência filosófica deveres, direitos, etc. Além desta
da sociedade capaz de superar os variedade, tais fatos estão submetidos
princípios atomísticos que se encontrava também à mobilidade e, assim, uns
presa à tradição inteira do direito natural. substituem os outros e os sucedem,
segundo o que se nos apresenta a
Para superar os equívocos que experiência. Uma vez que o critério para
compreendia os indivíduos existindo de dotar de unidade científica este material é
só a própria experiência, resulta que todos
forma isolada uns dos outros como uma
estes fatos, tão variados e móveis têm, em
espécie de base natural para socialização si mesmos, igual valor e, portanto, uns não
humana, o jovem filósofo pressupõe que os podem prevalecer sobre outros
indivíduos não são dados, mas se formam (BAVARESCO; CHRISTINO, 2007, p. 8-9).
por um constante processo de Podemos compreender a crítica do
socialização. Em seu texto Sobre as jovem Hegel à concepção empirista do
maneiras científicas de tratar o direito direito naturalista em dois aspectos:
natural, são apontados os erros que os dois variedades de fatos descobertos através da
enfoques do direito natural apresentam. observação da realidade, e substituições
As duas teorias modernas – empirista e dos fatos devido o valor idêntico que
formal – apresentam, segundo o pensador, possui. Portanto, não há como a
seus equívocos no mesmo erro básico: “[…] observação empírica distinguir entre o que
tanto na maneira ‘empírica’ quanto na é acidental e o que é o necessário. Sendo
maneira ‘formal’ de tratar o direito

3 Segundo Honneth: “[…] os escritos de Maquiavel preparam a concepção segundo a qual os sujeitos
individuais se contrapõem numa concorrência permanente de interesses [...] na obra de Thomas Hobbes, ela
se torna a base de uma teoria do contrato que fundamenta a soberania do Estado” (HONNETH, 2003, p. 31).

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assim, podemos considerar que o outros em uma espécie de base natural


empirismo elege um fato ao azar para que para socialização humana. Honneth
ele possa constituir um princípio que compreende que “[…] a partir desse dado
fundamente uma unidade científica. natural já não pode mais ser desenvolvido
de maneira orgânica um estado de
A crítica tecida tinha por objetivo o
unificação ética entre os homens; ele tem
desenvolvimento de uma filosofia política
de ser exteriormente ajuntado a eles como
capaz de explicar teoricamente uma
um ‘outro e estranho’” (HONNETH, 2003,
totalidade orgânica. Essa totalidade
p. 38-39). Na concepção de Hegel, resulta
orgânica deve ser composta por uma
daí a consequência de que, “no direito
sociedade integrada, de maneira ética,
natural moderno, uma comunidade de
através de cidadãos livres.
homens só pode ser pensada segundo o
O segundo enfoque acerca do modelo abstrato dos muitos associados”
direito natural, isto é, o formal, tem como (HONNETH, 2003, p.38-39). Portanto, o
principais influenciadores os pensadores indivíduo não deve ser concebido como
Kant e Fichte. Esses pensadores possuem isolado, mas inserido numa totalidade
suas diferenças em relação aos empiristas ética.
no fato de que, para os empiristas o ponto
Sendo inspirado pela filosofia
de partida é justamente a abordagem dos
grega, o jovem filósofo rompe com o
fatos próprios da realidade; já os
modelo atomístico do direito natural
pensadores do direito formal têm como
objetivando construir um estado de
ponto de partida a pura abstração (vazia
totalidade ética. Essa unidade ética que os
de experiências) que toma ao acaso uma
sujeitos participam encontra seu modelo
determinação qualquer como fundamento.
político e institucional na polis, pois nela os
As premissas atomísticas dão-se a membros da comunidade puderam
conhecer no fato de as ações éticas em reconhecer nos costumes praticados em
geral só poderem ser pensadas na
público uma expressão intersubjetiva de
qualidade de resultado de operações
racionais, purificadas de todas as sua respectiva particularidade
inclinações e necessidades empíricas da (HONNETH, 2003, p. 40).
natureza humana, [é] também aqui [que] a
natureza do homem é representada como Segundo Honneth, a filosofia social
uma coleção de disposições egocêntricas moderna, presa sobre premissas
ou, como diz Hegel, ‘aéticas’, que o sujeito atomísticas, não teve condições de explicar
primeiro tem de reprimir em si antes de a forma de comunidade que corresponde a
poder tomar atitudes éticas, isto é, atitudes
uma totalidade ética. Essa formação
que fomentam a comunidade. (HONNETH,
2003, p. 38-39). organizacional da sociedade que se
constitui mediante o reconhecimento
Em tais teorias, o indivíduo é solidário da liberdade individual de todos
apresentado como sendo a categoria e ao os cidadãos, será identificada na filosofia
mesmo tempo a coisa suprema. Refletindo clássica grega.
em ambas as perspectivas a um atomismo
que se constitui na pressuposição de uma Da admiração precoce pelo mundo grego,
Hegel retém, além da primazia da polis
existência de sujeitos isolados uns dos

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José Claudio de Sousa da Silva

sobre o indivíduo isolado, o ideal de uma comunidade necessária dos sujeitos


unidade viva entre a liberdade individual e contrapondo-se entre si são assegurados
a liberdade universal. A convicção de que é por um movimento de reconhecimento
nos costumes existentes que se prefiguram (HONNETH, 2003, p. 46-47).
as estruturas de excelência graça às quais
formas modernas da moralidade e do A estrutura dessa relação de
direito fazem eco às virtudes da ética dos reconhecimento recíproco em Hegel
antigos. (RICOEUR, 2006, p. 190). assume a mesma lógica de Fichte5, porém
A compreensão acerca do vir-a-ser inova sua estrutura identificando uma
de uma eticidade, concebido como um relação negativa que age como uma
entrelaçamento de uma socialização e mediação para essa ação recíproca. A
individuação, resulta no reconhecimento construção dessa negatividade se dá de
intersubjetivo da particularidade de todos modo conflituoso capaz de tornar, no
os indivíduos, porém nos primeiros anos indivíduo, um reconhecimento mais
de Jena o filósofo não alcança o exigente de sua individualidade, pois:
desenvolvimento de seu objetivo por Na medida em que se sabe reconhecido
completo. por um outro sujeito em algumas de suas
capacidades e propriedades e nisso está
No Sistema da Eticidade4, a reconciliado com ele, um sujeito sempre
estrutura interna das formas de relação virá a conhecer, ao mesmo tempo, as
ética reaparece quando Hegel decide partes de sua identidade inconfundível e,
desse modo, também estará contraposto
retomar de forma positiva a teoria
ao outro novamente como um particular
fichteana do reconhecimento. Importa (HONNETH, 2003, p. 47).
para o filósofo a questão da limitação da
reciprocidade na liberdade de um Portanto, o movimento de
indivíduo em relação ao outro. No modelo reconhecimento que sustenta uma relação
de Fichte, esse processo é constituído a ética entre os indivíduos consiste num
partir do resultado de uma ação recíproca processo de etapas de reconciliação e de
em que os indivíduos assumem uma conflito simultâneos, capaz de concretizar
consciência comum, determinando dessa internamente o curso negativo da etici-
forma, a validade jurídica dessa liberdade. dade humana. O conflito existente na rela-
ção dos sujeitos é por origem um aconteci-
Segundo o filósofo contemporâneo, mento ético na medida em que o resultado
essa ação recíproca representa na filosofia é um reconhecimento intersubjetivo das
hegeliana uma relação intersubjetiva entre dimensões da individualidade humana.
os sujeitos, compreendida como uma
representação da eticidade, uma vez que: O conflito, entendido também na
figura de um crime, é o meio moral que
As relações éticas de uma sociedade leva a relação ética a uma etapa mais
representam [...] as formas de uma
madura, ou seja, o que demarca a passa-
intersubjetividade prática na qual o
vínculo complementário e, com isso, a gem de uma eticidade natural para uma

4 Há referências que esse texto de Hegel é chamado de Sistema da vida ética.


5 ParaFichte, a liberdade do indivíduo encontra seu limite quando se depara com outro indivíduo, outra
liberdade.

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eticidade absoluta é esse processo confli- pelo filósofo alemão do séc. XIX como o
tuoso de reconhecer-se e ao mesmo tempo rompimento momentâneo da eticidade, da
de ser reconhecido. Honneth afirma o totalidade. Quando uma parte é lesionada,
seguinte: em sua honra ou em sua propriedade, isso
implica igualmente a lesão do todo. Ele
O conflito prático entre os sujeitos pode
ser entendido como um momento do representa o fim da totalidade orgânica.
movimento ético no interior do contexto Com esse conceito de crime o pensador
social da vida; desse modo, o conceito busca determinar uma explicação geral da
recriado de social inclui desde o início não luta por reconhecimento.
somente um domínio de tensões moral,
mas abrange ainda um médium social Enfim, no terceiro momento, a
através do qual elas são decididas de abordagem é acerca do momento em que a
maneira conflituosa (HONNETH, 2003, p.
vida ética absoluta esta realizada na
48).
constituição de um povo, na identidade
A violação dessas relações éticas de universal e do particular, isto é, é a
reconhecimento através de diversas subsunção absoluta do que é particular no
formas de luta, representada em um universal, ou no subjetivo. Com a
capítulo intermediário sob o título de pretensão de abordar o momento da
“crime”, conduz, segundo o pensador organização de um povo, Honneth aponta
contemporâneo, a um estado de integração que para Hegel a constituição de um povo
social, isto é, uma relação orgânica de pura em Estado faz com que a vida ética
eticidade. O filósofo identifica no escrito absoluta, segundo seu conceito, aniquile
hegeliano diversos passos para uma tudo o que é essencialmente relativo à vida
construção relativa à teoria da sociedade. ética natural: particularidade ou
Na primeira etapa, Hegel identifica uma subjetividade.
possibilidade de motivação capaz de
garantir uma socialização mais abrangente A destruição do todo ético ocasiona
do indivíduo que contribui para o o cumprimento da lei por meio da punição
surgimento de uma evolução moral da como forma de restabelecimento da
sociedade. liberdade. Portanto, o reconhecimento
deve ser compreendido como relações
Na segunda etapa, o filósofo alemão recíprocas (intersubjetivas) capaz de
aborda o crime como uma violação do constituir a base organizacional da
reconhecimento da eticidade natural, ou eticidade. Porém, no Sistema da vida ética,
seja, o indivíduo não é reconhecido em seu Hegel não dá continuidade à sua
todo, pois a origem de um crime é argumentação acerca da base que
atribuída ao fato de um reconhecimento constituía organização ética.
ter sido incompleto; “[…] nesse caso, o
motivo interno do criminoso é constituído Contudo, o conceito reaparece de
pela experiência de não ser reconhecido de forma sistemática vinculada à formação de
uma maneira satisfatória na etapa uma teoria da consciência na Filosofia do
estabelecida de reconhecimento mútuo”
(HONNTEH, 2003, p. 52-53). O crime é tido

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Real6. Diferente de suas obras anteriores uma comunidade ética. Pois, essa relação
onde o processo do espírito era articulado apresenta na eticidade uma determinação
a partir de uma interpretação imediata da ideia de liberdade. Na forma
intersubjetiva. de uma relação constituída naturalmente.
A partir desse vínculo o indivíduo sai de
De acordo com a nova filosofia, o espírito é
aquele que tem a capacidade de sua subjetividade e insere-se como
autodiferenciação, que é capaz de membro, participando, assim, de um
exteriorizar-se e retornar a si, fazendo-se o conjunto de pessoas que possuem laços
outro de si mesmo num processo consanguíneos entre si que atua como uma
constante de reflexão e auto-reflexão. A
espécie de sentimento fraternal natural do
tarefa da filosofia seria, portanto, de
examinar gradualmente as etapas seio familiar.
reflexivas de sua constituição para então
Na esfera familiar, o amor repre-
compreender onde ele se diferencia
completamente – o final do processo – o senta o sentimento que proporciona uma
saber absoluto sobre si (RAVAGNANI, primeira forma de confirmação da
2009, p. 13). individualidade do sujeito, pois a
Ocorre aqui a utilização do individualidade dos sujeitos encontra suas
reconhecimento recíproco, desenvolvido confirmações primeiramente na
de modo introdutório no Sistema da vida experiência com o parceiro através do
ética, com o acréscimo do processo de experienciar-se a si mesmo como um
realização do espírito no interior da sujeito carente e desejante. A forma de
consciência humana. Na estrutura da obra confirmação do amor se dá através do
está exposta a distinção de três partes nascimento do filho. A unidade do amor é
essenciais de formação do espírito: a) a formação da criança representada por
Espírito subjetivo: representada na meio da união dos dois sujeitos. Desse
relação do indivíduo consigo próprio, o modo, Hegel compreende que a criança
espírito segundo seu conceito; b) Espírito representa a “corporificação” em seu mais
efetivo: onde as relações dos sujeitos entre elevado grau do amor entre o homem e a
si já se encontram institucionalizadas; e, mulher, pois nele, os parceiros intuem o
por último, c) Espírito absoluto: amor; a criança representa “sua unidade
compreendido como relações reflexivas consciente de si enquanto consciente de
dos sujeitos socializados com a totalidade si”. No entanto, a relação de
do mundo. reconhecimento do amor ainda não
representa um domínio do campo da
Interessa-nos aqui à questão do experiência por completo para a
espírito subjetivo, mais precisamente, constituição de uma pessoa de direito.
acerca da efetividade intersubjetiva pre-
sente na relação familiar, isto é, no movi- O jovem pensador, identificando
mento de formação como força motriz de que na relação do reconhecimento familiar

6Na Filosofia do Real ou Realphilosophie de1805/1806, o filósofo procurou evidenciar etapas pelas quais há
um desdobramento de novas formas de reconhecimento através de conceitos como espírito subjetivo e
espírito subjetivo.

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a relação amorosa representa uma fase importância: “[...] como os indivíduos, em


insuficiente para o processo de formação uma situação social marcada por relações
do espírito, pois não sofre perturbações de concorrência recíproca, chegam a uma
derivadas de conflitos sociais, resolve ideia de ‘direitos e deveres’
expandir o processo de formação do intersubjetivos?” (HONNETH, 2003, p. 84).
sujeito visando abarcar uma dimensão Diante dessa problemática aponta que
suplementar da relação prática com o toda a tradição traz uma resposta
mundo. Dito de outro modo, o que o insatisfatória, pois o direito é
filósofo propõe é uma transferência do compreendido a partir do exterior do
processo de formação do sujeito para o próprio estado de natureza, em Hobbes no
meio social que se apresenta mais amplo ato de fechar o contrato e em Kant e Fichte
que a família. com a constituição de um postulado da
moral. O que interessa ao pensador é
Além do mais, compreende que um
mostrar que o começo das relações
estado de convívio social é o resultado de
jurídicas é constituído a partir da própria
uma série de identidades familiares
necessidade existente na situação social e
semelhantes. Um dos momentos de
que o contrato encontra sua realização
conflito nesse meio social pode ser
dentro da própria relação de concorrência
representado na disputa por posse de
recíproca, constituído a partir de uma luta
terra, dado que, no momento que uma
por reconhecimento.
família se apossa de um determinado
espaço de terra para seu bem econômico, O que distingue Hegel da tradição é que os
ela exclui necessariamente a outra do uso indivíduos mesmo estando em
concorrências recíprocas possuem em
comum da própria terra, ou seja, outro
suas relações sociais um mínimo de
passa a ser excluído daquilo que ele é, ou consenso normativo. O potencial moral já
seja, o ser perde seu caráter de está presente nas relações pré-jurídicas de
universalidade. Diante desse debate, reconhecimento. Desta forma, Hegel não
Honneth compreende que: precisa retirar o conteúdo normativo para
estabelecer o acordo entre os indivíduos
Com a pluralidade de diversas famílias, fora do próprio contexto social
surge uma espécie de relação de discordante no qual eles se encontram.
concorrência social que, à primeira vista, Ademais, existe antes mesmo de qualquer
corresponde àquela descrita nas tradições estrutura jurídico social estabelecido
do direito natural: ‘Essa relação é o que se algum tipo de reconhecimento nas
chama habitualmente de estado de relações entre os indivíduos. Lembramos
natureza: o ser livre e indiferente de que em Hegel o homem é necessariamente
indivíduos uns para com os outros, e o reconhecido e é necessariamente
direito natural deve responder ao que, reconhecente (ARAÚJO NETO, 2018, p. 48).
segundo essa relação, os indivíduos tem
por direitos e deveres uns para com os Dados alguns dos principais
outros’ (HONNETH, 2003, p. 83-84). conceitos que Hegel abordou em seus
escritos de Jena, passaremos ao próximo
Hegel retoma a crítica ao modelo
passo do nosso empreendimento. A
tradicional do estado de natureza para
continuação de nossa abordagem busca
fundamentar o papel do direito. Porém, se
compreender a importância dos escritos
depara com um problema teórico de suma

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de Mead e Winnicott para a reatualização, teórica pós-metafísica. Para o autor


a partir do contexto pós-moderno, dos contemporâneo, a escolha do pragmatista
conceitos encontrados no conteúdo se justifica, pois, tanto ele quanto Hegel
sistemático do jovem Hegel. partilham simplesmente das mesmas
questões, sendo elas: a ideia de uma
gênese social da identidade do Eu; nas
A importância de Mead e Winnicott na críticas ao modelo atomista da tradição
reconstrução da teoria do contratualista e, por fim, na procura de
reconhecimento fazer da luta por reconhecimento uma
construção teórica que deve explicar a
O conteúdo sistemático de Hegel
evolução moral da sociedade.
apresenta para Honneth um obstáculo,
pois ainda age por meio de premissas de Nos estudos do pesquisador inglês,
natureza metafísica que não estabelece um a linguagem assume um papel importante
contato com as ciências empíricas. Para a na construção de uma identidade do “Eu”
solução do problema que se apresenta, o (autoconsciência), visto que:
frankfurtiano estabelece um critério para Se um sujeito influi sobre seu parceiro de
retomar o complexo de afirmações acerca interação por meio de seu gesto vocal, ele
do conceito de reconhecimento. Utiliza é capaz ao mesmo tempo de desencadear
como critério uma investigação dívida em em si a mesmo a reação dele, visto que sua
própria expressão é perceptível a ele
três momentos: em primeiro lugar
próprio como um estímulo vindo de fora;
encontra-se a tentativa de compreender se mas por isso seu gesto vocal, a que ele pode
as etapas de reconhecimento encontradas reagir da mesma maneira que qualquer
tanto no Sistema da Eticidade como na outro ouvinte, contém para ele o mesmo
Filosofia do Real, podem resistir a significado que possui para seu
destinatário (HONNETH, 2003, p. 129).
considerações empíricas; se é possível
atribuir às respectivas formas de O filósofo alemão identifica que o
reconhecimento recíproco experiências sujeito só pode adquirir uma consciência
correspondentes de desrespeito social, e de si mesmo na medida em que ele
por fim, se podem ser encontradas aprende a perceber a sua própria ação da
comprovações que essas formas de perspectiva, simbolicamente representa-
desrespeito social representam a fonte da, de uma segunda pessoa. Portanto, para
motivacional de conflitos sociais. Na o filósofo essa compreensão possibilita
concepção do filósofo, as respostas a essas constituir uma fundamentação naturalista
questões representam a lógica moral dos do conceito hegeliano. Nessa dimensão do
conflitos sociais. desenvolvimento individual, a relação
intersubjetiva assume um papel
A ponte que Honneth identifica
importante para o desenvolvimento da
para tentar solucionar tais questões
autoconsciência.
encontra-se na psicologia social de Mead,
pois nele encontra a possibilidade de Um tal ‘Me’ não é, portanto, uma formação
traduzir a teoria hegeliana da primeira que depois fosse projetada e
ejetada nos corpos de outros seres
intersubjetividade em uma linguagem
humanos para lhes conferir a plenitude da

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vida humana. É antes uma importação do prática deve também se ampliar


campo dos objetos sociais para o campo gradativamente (HONNETH, 2003, p. 134).
amorfo, desorganizado, do que nós
designamos experiência interna. Através Essa direção evolutiva é ilustrada
da organização desse objeto, da identidade segundo duas fases próprias das
do Eu, esse material é por sua vez atividades lúdicas infantil: o Play e o Game.
organizado e colocado na forma da assim No Play, a criança tem a capacidade de
chamada autoconsciência, sob o controle
comunicar-se consigo mesma. Utilizando
de um indivíduo (HONNETH, 2003, p.
132). de imitações derivadas da observação do
comportamento de outro parceiro de
Esse processo intersubjetivista de interação para depois usar isso na
autoconsciência é fundamental para complementação de sua própria ação; a
compreendermos a formação prático- segunda etapa, Game ou competição,
moral de um sujeito; visto que ela se requer que a criança em seu
origina no momento que a distinção desenvolvimento represente em si mesma,
conceitual de “Eu” e “Me” é transferida simultaneamente, as expectativas de
para uma dimensão normativa do comportamento de todos os seus
desenvolvimento individual7. A partir de companheiros de jogo para poder
agora a compreensão do “Me” deve estar perceber o próprio papel no contexto da
constituída nas relações do parceiro de ação funcionalmente organizada.
interação mediante as expectativas Entretanto, há uma diferença entre as duas
normativas. Para Honneth, o psicólogo etapas do jogo que se mede:
social, partindo da relação da criança com
o outro, compreende que ela (criança) só Pela diferença no grau de universalidade
das expectativas normativas de
pode estabelecer um julgamento do seu comportamento que a criança tem de
comportamento como bom ou mau antecipar respectivamente em si mesma:
quando toma consciência de sua própria no primeiro caso, é o padrão concreto de
ação a partir das recordações das palavras, comportamento de uma pessoa social que
ou julgamentos, de seus pais, momento serve de referência, no segundo caso, ao
contrário, são os padrões socialmente
esse que a criança aprende as formas generalizados de comportamento de todo
elementares do juízo moral. um grupo que devem ser incluídos na
própria ação como expectativas
Mead faz rapidamente dessa ideia
normativas, exercendo uma imagem
fundamental o ponto de apoio para uma
espécie de controle. Portanto, na passagem
explicação da formação humana. Ideia pela
da primeira à segunda etapa do jogo
qual ele se deixa guiar aí é a de uma
infantil, migram para dentro da
generalização gradual do ‘Me’ no curso do
autoimagem prática da criança em
desenvolvimento social da criança: se o
desenvolvimento as normas sociais de
mecanismo de desenvolvimento da
ação de um outro generalizado
personalidade consiste em que o sujeito
(HONNETH, 2003, p.134).
aprende a conceber-se a si mesmo desde a
perspectiva normativa de seu defrontante, Portanto, a partir de um outro
então, com o círculo de parceiros de ação,
generalizado o sujeito adquire a
o quadro de referência de sua autoimagem

7 Até então o “Eu” e o “Me” assumiam apenas as exigências cognitivas do comportamento.

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capacidade de orientar seu próprio sempre se regeneram (HONNETH, 2003,


comportamento por uma regra que ela p. 155-156).

obteve da sintetização das perspectivas de Honneth compreende que nesse


todos os companheiros, isto é, o processo sentido, o processo definido como
de socialização se efetua na forma de uma individuação está ligado a uma ampliação
interiorização de normas de ação, das relações recíprocas de identidade.
oriundas das generalizações das Contudo, para ele, tal hipótese ainda não
expectativas de comportamento de todos possui seu fundamento, pois é necessário
os membros da sociedade. Essa algo basilar próprio da teoria da
interiorização das normas de ação é o que sociedade; remetê-la de maneira
torna possível a participação do sujeito nas sistemática a processos no interior da
interações normativamente reguladas de práxis da vida social, isto é, o meio pela
seu meio. As normas interiorizadas qual a transformação normativamente
definirão quais são as expectativas que gerida das sociedades vem a se realizar,
serão dirigidas legitimamente de quais as uma vez que o filósofo compreende que é
obrigações que ele tem de cumprir em por meio das lutas moralmente motivadas
relação a todos os outros. de grupos sociais que surge a “tentativa
Com a inclusão dos estudos do coletiva de estabelecer institucional e
psicólogo, os conceitos que Hegel culturalmente formas ampliadas de
desenvolveu em seus escritos de Jena pode reconhecimento recíproco” (HONNETH,
torna-se o fio condutor de uma teoria 2003, p. 156).
social de teor normativo com o propósito Apesar dos processos que estão
de esclarecer os processos de mudança inscritos na teoria do reconhecimento de
social inscritas na relação de ambos os pensadores, Honneth não
reconhecimento recíproco. Neles, o ponto encontra nos escritos de Mead um
de partida dessa teoria da sociedade se substituto adequado para o conceito de
constitui pelo princípio no qual: “amor” que representa uma das etapas nas
A reprodução da vida social se efetua sob formas de relação recíproca. O
o imperativo de um reconhecimento desenvolvimento da primeira forma de
recíproco porque os sujeitos só podem relação é elaborado a partir dos trabalhos
chegar a uma autorrelação prática quando que Winnicott escreveu mediante a
aprendem a se conceber, da perspectiva
perspectiva de um pediatra com postura
normativa de seus parceiros de interação,
como seus destinatários sociais. [...] para de um psicanalista na busca de obter
solução disso só resulta dessa premissa esclarecimentos acerca das condições
geral se nela é incluído um elemento “suficientemente boas” de socialização
dinâmico: aquele imperativo ancorado no humana. O pensador contemporâneo, se
processo da vida social opera como uma
reportando aos estudos do pediatra inglês,
coerção normativa, obrigando os
indivíduos à delimitação gradual do compreende que no âmbito familiar há o
conteúdo do reconhecimento recíproco, desenvolvimento de uma consciência de si,
visto que só por esse meio eles podem constituída nos primeiros meses de vida
conferir uma expressão social às da criança, através do “amor”.
pretensões de sua subjetividade, que

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Artigo Honneth e a Teoria do Reconhecimento...

Portanto, a partir dos trabalhos de nos escritos do filósofo alemão do séc. XIX
Winnicott, Honneth começa a desenvolver um potencial que, em meio as diferentes
o primeiro passo no processo de formas de compreender a socialização
construção de uma relação intersubjetiva, humana em sua estrutura, não se limita ao
buscando a fundamentação da atualização mero utilitarismo, ou até mesmo,
dos conceitos hegeliano de reconhecimen- formalismo. Pois foi apresentado nos
to. Para tal empreendimento, o autor escritos de Hegel à busca para superar
insere nos conceitos de Hegel os testes essas formas atomísticas dominante nos
empíricos de Mead e Winnicott. A partir debates de sua época. A proposta
dos conceitos do pensador, Honneth hegeliana era conceber uma sociedade que
identifica três processos fundamentais correspondesse a uma totalidade ética.
para alcançar o reconhecimento, sendo Dito de outro modo, a pretensão do jovem
eles: o amor, o direito e a solidariedade. filósofo era representar uma relação social
constituída segundo o reconhecimento da
individualidade de cada sujeito.
Considerações finais
Essa sociedade que constitui um
Na contemporaneidade, a busca sujeito individual pode corresponder a
para compreender o processo de um bem- uma interpretação no sentido de
estar social tem as suas mais variadas considerá-lo como atuante apenas a favor
pesquisas desenvolvidas. Entre elas tem se de seu egoísmo. Logo, Honneth utiliza para
destacado as pesquisas do Filósofo Axel solucionar essa problemática uma língua-
Honneth. O pensador utiliza em sua gem pós-tradicional, isto é, utiliza dos
abordagem uma reatualização do conceito critérios da psicologia social como aporte
de reconhecimento. Essa abordagem do teórico. O indivíduo, portanto, passa a ser
reconhecimento honnethiano foi desen- concebido como um sujeito que busca a
volvido neste artigo levando em conside- sua individualidade ao se identificar com
ração a importância desse conceito nos seus parceiros de interação de maneira
debates hodiernos sobre a identidade. intersubjetiva. Visto que o sujeito no seu
processo de individuali-zação não pode
Sendo assim, apresentamos os
excluir os parceiros de interação, mesmo
pensadores que forneceram uma base
em conflitos.
necessária à fundamentação da reatuali-
zação do conceito de reconhecimento; e Desse modo, a inclusão da psico-
também descrevemos os momentos de logia social na ideia hegeliana proporci-
reconhecimento que foram identificados onou a base necessária para fundamentar
nos escritos do jovem Hegel, nos escritos uma teoria social de teor normativo capaz
da psicologia social de Mead e nos testes de esclarecer, reportando-se as exigências
empíricos de Winnicott. inscritas de forma normativa na relação
recíproca de reconhecimento entre os
No primeiro momento, constata-
indivíduos, os processos de mudanças
mos que a proposta do filósofo é identificar
sociais.

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ISSN: 2675-8385
José Claudio de Sousa da Silva

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Revista Anãnsi, Salvador, 2020
Ft./ Ana Amélia R. Souza (@urbanovoyeur2)
Ensaio Filosofía y Arte desde el Abismo: una mirada desde el Sur Global

Universidade do Estado da Bahia, Campus I


Departamento de Educação

Filosofía y Arte desde el Abismo: una mirada desde el Sur Global


Philosophy and Art from the Abyss: a look from the Global South

Carlo Zarallo Valdes 1


I
El pensamiento posmoderno se instaura sospechosamente servil a los intereses del
capitalismo2. G. Vattimo3 caracterizó la posmodernidad a partir de la conformación de un
nuevo pensamiento, un pensamiento débil, posmetafísico4. La posmodernidad marca la
superación de los paradigmas de las grandes verdades filosóficas. En contrapartida sitúa
al pensamiento débil como la única forma de “emancipación humana, como una progresiva
reducción de violencia y dogmatismos” (VATTIMO, 2001, p.49). Un pensamiento débil
significará, por tanto, una razón dinámica, transitoria, carente de radicalidad; una suerte
de nihilismo de baja intensidad que da paso al conformismo hedonista como una única
ética válida.

Pluralismo, diversidad, libertad; conceptos atractivos ligados al posmodernismo


pero que solo tienen relevancia en el sonido y el eco que ellas dejan. La posmodernidad ha
prescindido de la ética, todo lo que sucede ahora es única y exclusivamente estético.
Cultura, igualdad, educación, arte, violencia, guerras: solo vienen a ser experiencias
estéticas, una especie de realidad inmersa en el vacío. Expliquemos un poco más.

1 Mestre e Doutorando em Filosofia pela UFSC. Graduado em Filosofia y Teologia e Pós-Graduado em História
da Filosofia Antiga pela Universidade Católica del Maule (Chile). E-mail: carlo.zarallo@hotmail.com.
2 "Al absorber al individuo en la carrera por el nivel de vida, al legitimar la búsqueda de la realización
personal, al acosarlo de imágenes, de informaciones, de cultura, la sociedad del bienestar ha generado una
atomización o una desocialización radical [...] la era del consumo no sólo descalificó la ética protestante sino
que liquidó el valor y existencia de las costumbres y tradiciones, produjo una cultura nacional y de hecho
internacional en base a la solicitación de necesidades e informaciones, arrancó al individuo de su tierra natal
[...] el universo de los objetos, de la publicidad, de los mass media, la vida cotidiana y el individuo ya no tienen
un peso propio, han sido incorporados al proceso de la moda y de la obsolescencia acelerada: la realización
definitiva del individuo coincide con su desubstancialización, con la emergencia de individuos aislados y
vacilantes, vacíos y reciclables ante la continua variación de los modelos". (LIPOVETSKY, 2000, p.107).
3 Filósofo italiano que vinculó los tres legados básicos de la filosofía contemporánea: El nihilismo
nietzscheano, la crítica de Heidegger a la metafísica y las herramientas conceptuales de la hermenéutica.
4 Vattimo tomó de los postulados filosóficos de Nietzsche: cuando este anuncia la muerte de Dios, ya
anunciaba, según el italiano, el fin de la metafísica, por lo tanto, el fin del pensamiento fuerte.

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Carlo Zarallo Valdes

Podemos ver un ejemplo en las fotografías del [franco-]brasileño Sebastián Salgado,


las cuales expresan una estetización de la pobreza, un recurso posmoderno (neoliberal)
que implica la banalización de la desigualdad, que es capaz de transformar el sufrimiento
humano, el dolor y el hambre en un elemento constitutivo de nuestra relación con el
mundo. Así nuestro mirar se vuelve arbitrario, carente de crítica y contenido. La cultura
del consumo y de los medios de comunicación se alimenta de lo que contribuye el realismo
y este ciclo - que con rasgos culturales, sociales, políticos en la medida que ha ido ampliado
el panorama y el registro de lo que es la realidad - ha tendido a la estetización de todos los
fenómenos. Ya en 1944, Horkheimer y Adorno, en la dialéctica de la ilustración, presentan
cómo el proceso de estetización de la realidad incorpora todo: consumo, miseria, arte; eso
es el resultado de la progresiva retroalimentación de los medios de comunicación y la
realidad. “Cultura, arte y diversión reducidos mediante un falso común denominador, a la
totalidad de la industria cultural”. (HORKHEIMER y ADORNO, 2003, p.180). Industria que
transforma la belleza y a los individuos en objetos de manipulación, de la misma forma que
hoy se torna invisible a partir de una estética de la pobreza, del patrimonio cultural, hasta
del racismo, donde por ejemplo el indígena se transforma en una mercancía producida y
propagada por la industria cultural: comida, joyas, ropa, etc. Convirtiendo así invisibles las
tremendas desigualdades sociales represivas que el aparato estatal tiene para con las
comunidades.
Es necesario evitar que los consumidores, los que predican constantemente la ingenuidad, hagan
ideas estúpidas sobre lo que deben tragar y lo que contienen las pastillas. La simplicidad de antaño,
se traduce en la necedad del consumidor de bienes culturales que, reconocido y con una buena
conciencia metafísica, compra a la industria bancaria5 (ADORNO, 1982, p. 370).

Por lo mismo, creemos que se hace necesario destruir todos los discursos
estetizantes que se instalan precisamente para legitimar colonialidades6 internas que se
invisibilizan en cada espacio convirtiéndonos en consumidores manipulados por la
industria, ya sea por una foto, una canción, un millón de favelas pintadas con colores
llamativos, etc.

Regresando al pensador italiano, Vattimo asegura que delante del sistema no se


puede hacer nada, por lo mismo que se hace necesario que los seres humanos desarrollen
un pensamiento débil y advierte sobre la crucial presencia de un agente en la configuración
del pensamiento social y cultural pos-moderno: los medios de comunicación de masas7. El
pensador afirma que debido a estos medios ha emergido la diversidad, las minorías, la
tolerancia, desplazando así los autoritarismos, la violencia y los prejuicios. ¿Será cierto lo
que señala Vattimo y que la mass media da cabida a las minorías, dejando de lado todo
autoritarismo y violencias? No se puede abrazar el pluralismo quien no lo conoce: son

5 La traducción es nuestra.
6 Para entender lo que es la colonialidad interna debemos primero comprender lo que es el colonialismo. ver
MIGNOLO (2005). América Latina y África hoy son unos procesos finalizados. Con todo, las mismas formas
de dominación llevadas a cabo por los colonizadores todavía se mantienen, ahora desde realidad internas
subjetivas. Ver FANON (2011).
7 Vattimo, G. La sociedad transparente. Paidós. Barcelona. 1990

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apenas cinco agencias8 que dominan las noticas en el mundo y una en Brasil, son ellas que
deciden las pautas en internet y las líneas culturales y publicitarias en todo el mundo, por
lo tanto, hablar de la inserción de minorías dentro de las mass media, sería desconocer todo
tipo de pensamiento hegemónico implantado por el centro.

El pensamiento débil pos-moderno diseña ciudadanos no violentos, mas que


indultan la necrófila violenta y estructural de un sistema, así nuestras democracias
completan el perfil totalitario que en el comienzo el pensamiento débil intento derrocar.
La idea de Vattimo expresada en que nada se puede hacer contra el sistema choca de frente
con nuestra propuesta de presentar la resistencia del arte y la filosofía desde los márgenes
periféricos, desde el abismo. Creemos que, si el renacimiento de la filosofía y el arte van a
llegar, no será desde los centros auto-referenciales que apenas alcanzan para colocar una
máscara nueva sobre lo mismo de siempre. Si la filosofía renace, renacerá en la periferia.
Mas, para que eso suceda, la filosofía deberá resistir a las modas que llegan del centro,
queriendo imponerse. En la medida que la filosofía latinoamericana resista a los cantos de
sirena y sea capaz de encontrar su propia voz, no solo estará garantizando la sobrevivencia
y la expresión de su propia esencia, mas también, estará presentando acentos y colores
diferentes.
La diferencia colonial inaugura una dicotomía, que está vigente en toda nuestra historia, por la cual
ellos se asumen como civilizados, desarrollados y modernos; mientras nosotros seremos los
primitivos, sub-desarrollados y pre-modernos; mientras ellos están en la historia, nosotros en la pre-
historia, ellos tienen cultura, nosotros solo folclore, ellos ciencia, nosotros mitos, ellos arte, nosotros
artesanía; ellos literatura, nosotros tradición oral; ellos religión, nosotros brujería; ellos tienen
medicina, nosotros magia. (GUERRERO, 2011, p. 84).

II

Si no creemos en que la renovación del arte pueda venir de Europa o EEUU, tiene
que ver con el hecho de que las expresiones y las condicionantes del proyecto de
modernidad y contemporaneidad se fabrican allá y mientras son grandes núcleos emisores
de ideas y generadores de corrientes, el centro impone los padrones y desde ahí, establece
la repetición como regla. El centro como tal tiene la tendencia a exagerar sus pequeños
sucesos. Más la potencia que podrían tener estos sucesos naufraga en su complacencia, en
su retórica.

Vamos a explicar siguiendo a E. Dussel y lo que él denomina como proyecto


de la modernidad y cómo esta es inherente y constitutiva de la colonialidad9.Conforme el

8 Dos norte americanas (destaca Associates Press), una francesa (France Press), una alemana (Reuters) y una
española (Efe).
9 La colonialidad es constitutiva de la modernidad: “la gran mentira [...] es hacer creer (o creer) que la

Modernidad superará la Colonialidad cuando, en verdad, la Modernidad necesita de la Colonialidad para


instalarse, construirse y subsistir. No hubo, no hay y no habrá Modernidad sin Colonialidad" (MIGNOLO,
2003).

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Carlo Zarallo Valdes

argentino Dussel trata en su obra (DUSSEL, 1993) la colonialización e inclusive, el propio


desenvolvimiento de los estados latino-americanos, formulados a partir de instituciones
modernas, se escondió y sustentó sobre un discurso extremadamente racista, de
naturaleza psicobiológica y de exclusión. La idea de progreso era falseada y moldeada por
la ideología y visión histórica eurocéntrica. De acuerdo con Dussel: “Modernización
(ontológicamente) es exactamente el proceso imitativo de constitución, como el pasaje de
la potencia al acto (un desenvolvimiento ontológico) de los mundos coloniales con respecto
al ser de Europa” (DUSSEL, 1993, p.40). Dussel al contrario del entendimiento de Hegel y
Habermas, defiende el papel fundamental de América Latina en la formulación de la Era
moderna. El “descubrimiento” del “nuevo mundo” posibilitó que Europa o mejor dicho, su
“ego” saliesen de la inmadurez subjetiva del mundo musulmán y se desenvolviese hasta
convertirse en “señor del mundo”, lo que simbólicamente estaría representado por la
figura del “conquistador” Hernán Cortés. Dussel propone que Cortés instaura el ideal de la
subjetividad moderna con el ego conquiro el cual anticipa el ego cogito cartesiano. Así el
ego conquiro va ser el fundamento práctico para la articulación del ego cogito. “El ego cogito
fue antecedido por más de un siglo por el ego conquiro práctico hispano-lusitano que
impone su voluntad (la primera voluntad de poder moderna) al indo americano”. (DUSSEL,
2000, p. 48) En ese sentido los propios europeos auto reconociéndose como seres
superiores, incorporan para sí la tarea de civilizar a aquellos que fuesen diferentes,
atrasados para su mirar eurocéntrico-moderno. De acuerdo a la visión eurocéntrica, la
razón moderna justificará la conquista violenta de América, por la supremacía de un
pensamiento ilustrado sobre un pensamiento bárbaro propio de las colonias y sus
habitantes. El fetichismo de la totalidad esté tica, desde Grecia a Europa, crea lo que
podemos denominar la esté tica eurocé ntrica, centralidad labrada lentamente desde 1492,
es decir, en la modernidad. Esa pretensió n de centralidad producirá inevitablemente la
negació n del valor de todas las Otras esté ticas. Los otros mundos culturales de Europa
será n juzgados como primitivos, bá rbaros, sin belleza alguna, en el mejor de los casos
folkló ricos. Para esa descalificació n de las grandes culturas transformadas en la
modernidad como mundo colonial tambié n esté tico, nada mejor que la invenció n de una
historia mundial del arte formulada clá sicamente en el esquema de la historia universal
hegeliana:

Hecha clá sica, desde la inventada Antigü edad (todas las culturas fueron preparatorias y tuvieron
como culminació n Grecia y Roma en un movimiento del oriente al occidente), la llamada Edad Media
(como período consecutivo mundial, con el hecho del aislamiento de Europa detrá s del “muro” que
construyó el arte islá mi- co, y al final el Imperio Otomano, que se cultivaba desde el occidente del
Atlá ntico con Marruecos hasta el oriente del Pacífico en la isla de Minda- nao en Filipinas) y, por
ú ltimo, la Modernidad (que se inicia con el 1492, simultá neamente con el capitalismo, la colonialidad,
el racismo aplicado mundialmente y el eurocentrismo como ontología e ideología dominante)
(DUSSEL, 2018, p. 25-26)

Todo esto produce, inevitablemente, el juicio de un vacío absoluto de la esté tica


colonial, que como Walter Mignolo señ ala (2015), por no ser modernos caen fuera del
espacio y del tiempo creativo de la esté tica. Toda obra esté tica no-moderna desde el

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Ensaio Filosofía y Arte desde el Abismo: una mirada desde el Sur Global

Tawantinsuyu andino hasta la China de los Ming es objeto de un juicio esteticida, una que
deja en la exterioridad del no-ser, en la exclusió n de considerarlas como obras esté ticas de
los pueblos de todas las culturas coloniales.

El colonialismo tiene fecha histórica de término (independencia de las colonias),


mientras la colonialidad es parte del horizonte cultural y social, insertándose en nuestros
discursos, como se hizo alusión en la primera parte de nuestro escrito. Por lo mismo es que
Dussel junto a un grupo de pensadores decoloniales piensan la modernidad junto a la
colonialidad. Y desde ahí que nosotros pensemos la importancia de resistir a un
pensamiento hegemónico del centro que se impone sin más. La filosofía y también el arte
tienen una tarea fundamental en relación a ese topos epistemológico que intentamos
presentar.

III

Descolonizar encubre una negatividad (negar la colonialidad esté tica); liberar, en


cambio, indica el momento positivo, crear la nueva obra de arte, la nueva esté tica. La crítica
del fetichismo de la belleza del sistema esté tico eurocé ntrico, occidental, moderno debe ser
asumida , pero subsumida dentro de otro horizonte; el del nuevo sujeto de creació n esté tica
que son las culturas y los pueblos colonizados en el camino de su liberació n.

Teniendo en cuenta que la modernidad no se puede explicar sin tener en vista la


colonialidad que atraviesa esta, se hace necesario pensar desde nuestro tiempo. “Ha
llegado la era del pluralismo, o sea, ya no importa lo que hagas” (DANTO, 1995, p. 26).
Siguiendo a Danto, nos cabe preguntar, no estarán las artes y el pensamiento filosófico
convirtiéndose en un aliado de los tiempos, en un compañero manso de los tiempos,
¿aunque todavía crean ser enemigos transgresores o rupturistas? ¿Cuál será la potencia
transformadora de la realidad si estas disciplinas y la realidad son tan semejantes que casi
es imposible distinguir? ¿No sería necesario desactualizarse para encontrar posibilidades
humanas, políticas y poéticas que el tiempo presente olvidó?

Siguiendo a Nietzsche y sus Consideraciones intempestivas, el artista debería


dislocarse, ser y sentirse un extranjero en su propio tiempo, para poder cuestionarlo y
poder encontrar sus verdaderas posibilidades, mas, ¿hasta qué punto la filosofía y el arte
pueden cuestionar su propio tiempo asumiendo los patrones que dicta la
contemporaneidad? ¿Un pensamiento extemporáneo no tendría más potencia política,
poética y humana que una contemporánea? Ahora bien, ¿de qué hablamos cuando
hablamos de contemporaneidad?
[...] Lo contemporáneo se convierte en una etiqueta que designa un tipo de producto, circula dentro
de ciertos circuitos sociales, produciendo una especie de aura, que se extiende y también contamina
a quienes tienen acceso a él. Estamos lejos del tipo de cuestionamiento más radical, relacionado con
las vanguardias históricas: el cuestionamiento de los límites entre arte y vida; las interfaces y
contaminación con la política, la vida cotidiana, la espiritualidad, etc.; inversión en procesos y arte
como evento, en lugar del arte como producto; resistencia a la creciente mercantilización de la

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cultura y la transformación del arte en mero entretenimiento. Estos temas pueden haber sido
asimilados en parte por esta contemporánea de la moda, pero, sobre todo, como citas históricas
cristalizadas, en una perspectiva estética, vaciadas como estrategias para un enfrentamiento real con
los problemas del presente. (SYDOW, p. 24, 2010).

El presente, este tiempo que en gran parte se conjuga según nosotros de la siguiente
manera: Descontextualización, fragmentación de la conciencia, reflexión rápida y
superficial, un accionar permanente para despertenecerse , agotamiento de la cultura y del
lenguaje, desinterés por aquello que no sea yo ni hoy, todo eso – creemos - hace parte de
nuestro programa de vida contemporánea - que superando la colonización, aún mantiene
un discurso colonial - una concepción política de existencia que encuentra la misma
expresión en el rosto de la filosofía y las artes y porqué no decir, en el pensamiento en su
totalidad. Ahora, ¿cómo será posible combatir este programa aceptando y practicando los
valores que se propone, teniendo en cuenta nuestra realidad periférica latinoaméricana?10.

En un primer momento, dado un sistema mundial iniciado en 1492 donde la


oposició n modernidad / colonialidad es constitutiva de ambos té rminos de la relació n, la
modernidad ha pasado por ser el sistema vigente esté tico hegemó nico que, como el ser
parmenídico, se afirma ante el no-ser, la exterioridad, el Otro. En un segundo momento,
dicho no-ser, que el mundo estético colonial, del Sur negado despué s de cinco siglos, toma
conciencia de sí mismo, entra en un estado de rebelió n y se anuncia al comienzo como pura
negatividad. Niega la estética moderna y comienza un movimiento descolonizador, que se
cumple en todos los niveles, desde la epistemología estética, a las prácticas, a la protesta,
etcétera. Sin embargo, y el más necesario es el tercer momento, que no es puramente
negativo sino positivo, creador, emerge una nueva experiencia de la áisthesis que se
expresa en una revolución al nivel de las obras de arte en todos los campos, superando así
el fetichismo de la belleza moderna e inaugurando la irrupció n de diversas esté ticas que
comienzan a dialogar en un pluriverso donde cada cultura esté tica dialoga y aprende de las
otras, incluyendo la misma modernidad (destituida de su universalidad y situada como una
particularidad muy desarrollada, ciertamente).

Porque, históricamente la civilización occidental ha sometido a otras civilizaciones


y con eso tiende a monopolizar el derecho a la palabra, al pensamiento, la cultura y la
verdad. Por eso que se hace necesario pensar desde un lugar común, dejando de lado
categorías coloniales propias de los intereses del centro. Ese lugar común es dado desde
nuestra realidad colonial, marginal, periférica, la cual nadie nunca ve ni escucha. El grito
que se tiene que dar es desde nuevas subjetividades que rompan con los paradigmas
totalizantes. Los procesos de cambio no se pueden ordenar entorno a los estados actuales,
el poder, el deseo, los medios de producción se deben redistribuir en grupos que tengan
control de su existencia. Diversos son los ejemplos en nuestro continente, que movidos por

10 Es necesario pensar lo latino-americano, no tanto de un lugar geográfico, sino que desde un espacio
epistemológico. El pensamiento decolonial, del cual se toman ciertos enfoques tiene su raíz en la experiencia
latinoamericana, mas no se agota allí, siempre tiene un enriquecimiento global (Asia, África, norte América).

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un deseo comunitario se hacen nuevas formas de vida y nuevos mundos posibles, en donde
conviven lo individual con lo colectivo 11

IV

Kierkegaard en su tratado de la Desesperación señala que la diferencia entre un


hombre del resto de las especies es su capacidad para desesperarse. El arte siendo
expresión particular de la cultura humana y la filosofía como rama inherente al
pensamiento humano, tendrían que ir al encuentro de la esencia propia del ser, esto es, a
su abismo y su lugar único. Cada uno es dueño de su propio espanto y de sus raíces que
tocan la tierra y cielo buscando la belleza. Cada uno de los abismos tiene su rostro un viaje
y un destino.

El abismo nos expone a una desesperación del ser, del mismo modo que se expone
una herida abierta. Porque no hay ninguna sola herida, hoy en día, que no esté abierta y
por todas sangramos. Por eso, el poeta que se encamina al abismo, el filósofo y el artista
que es capaz de renacer en cada herida, de escavar en la sangre hasta llegar a la vida,
sabiendo que la vida, la verdadera vida, la que merece el nombre de tal es siempre y solo
pasión de vivir.

Una cultura por tanto que revalore su funció n de proximidad, de contacto, siempre
tendrá como horizonte sensible y estético la mesura, el tacto, la organicidad de la
experiencia comunitaria y de su vinculació n con la naturaleza, contraponié ndose a una
cultura sostenida ú nicamente por la hipertrofia de sus instituciones, por el monopolio del
poder/violencia, por los excesos de su normativa discursiva (el orden del discurso) y por
el alcance de sus fuerzas reificadoras. U marco aesthesico desde el sur globlal tendrá como
rasgo distintivo s su nexo indisoluble con una é tica y política. Si la idea de proximidad
comporta una vinculació n directa con el pró jimo y entre las diferentes culturas entre sí las
heridas y abismos que se ven en cada uno de los rincones de nuestra cultura, de las cuales
habla el poeta o el artista que resiste de manera simbólica a los discursos estetizantes en
la calle12 o el dramaturgo13 que lucha y resiste con su teatro y tanto ejemplo podemos

11Ver Los movimientos en la era progresista. Descolonizar la Rebeldía. Rául Zibechi (2014). Varios cambios se
están haciendo a nivel organizacional, dejando de lado la máquina capitalista y colocando en frente la
igualdad y auto-sustentabilidad y sobre todo la resistencia contra el capitalismo y sus representaciones
(políticas, culturales y económicas)
12Ver Entre la clandestinidad y las altas esferas: Street Art. Estéticas de la ruptura en el espacio urbano
moderno. Francisco de Parres Gómez
13 “Nuestro teatro nace de la decepción. Nos sentimos decepcionados ante el mundo, incapaz de ofrecer más
que ruido y vacío. Nos sentimos decepcionados ante el arte, que ha olvidado su impulso transgresor. Y ante
el artista, que ha perdido la fe en el oficio. Nos sentimos decepcionados, sobre todo, ante el teatro, que ha
mancillado su misterio. Nos sentimos decepcionados, solos e indefensos. Por eso hemos decidido juntarnos,
para protegernos y actuar en el primer espacio que habita nuestra decepción: nuestra propia casa”. Cortés, R
Teatro de la decepción. Comunicación presentada en “Jornadas prácticas artísticas-políticas-poéticas, hacia la
experiencia de lo común”, 2010.

Anãnsi: Revista de Filosofia, Salvador, v. 1, n. 2, 2020.


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ISSN: 2675-8385
Carlo Zarallo Valdes

encontrar: Es Berta Cáceres y su punzante asesinato… Es la vergonzosa invisibilidad de


indígenas y negros.. Son lxs 43 de Ayotzinapa en México... Es el golpe de derecha en Brasil...
Más también, y, sobre todo, cada una de las traiciones con que la derecha e izquierda
acribillan esta tierra.

Es el 12 de octubre, es la arte y la filosofía cuando intentan ser contemporáneas en


un continente que no es contemporáneo, ni jamás podrá serlo, porque para ser
contemporáneo primeramente tendría que ser y este continente aún no es.

Referências
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ISSN: 2675-8385
Revista Anãnsi, Salvador, 2020
Ft./ Ana Amélia R. Souza (@urbanovoyeur2)
Ensaio Morrendo de rir: a (falta de) graça da existência...

Universidade do Estado da Bahia, Campus I


Departamento de Educação

Morrendo de rir: a (falta de) graça da existência visibilizada


em Coringa, de Todd Phillips
Dying to laugh: the (lack of) grace of the existence visited
in joker, by Todd Phillips

Carlos Allencar Sérvulo Rezende-Pereira 1


João Víctor Moreira Gonçalves 2

Em meio a ameaças, na arena política, aos direitos das pessoas com sofrimento
mental grave e persistente, conquistados pela Luta Antimanicomial, é urgente questionar
e reinventar caminhos coletivos contra a fabricação, de longa data, da amarra entre loucura
e periculosidade. Vinculação atualizada, de formas mais ou menos explícitas, como no filme
Coringa, lançado em 2019.

O longa-metragem dirigido por Todd Phillips circunscreve o personagem icônico da


DC Comics em dinâmicas psicológicas e corporais que se atualizam por meio da emergência
de debates que incidem sobre a relação dos sujeitos com o espaço urbano, o estigma de um
diagnóstico psiquiátrico e as coerções vivenciadas no existir. O que visibiliza uma
constituição subjetiva que destaca seu caráter relacional, e marca uma implicação que
borra as fronteiras entre o que se costuma evocar de forma disjuntiva, isto é, a
“interioridade” e a “exterioridade” da experiência. Dicotomização discursiva diretamente
criticada, por exemplo, pelo referencial existencial-fenomenológico, um dos principais
motores da filosofia contemporânea, segundo Benedito Nunes (2019)

Nessa direção, a partir da revisão de literatura sobre noções como “escolha


originária”, “projeto de ser”, “intencionalidade”, “temporalidade” e “corporeidade”, estas
linhas, de ênfases sartreanas, discutem, de forma introdutória, a célebre figura do Coringa,

1 Graduando em Psicologia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro. Bolsista PROFAEX do Projeto de
Extensão "Psicologia e Justiça: Construção de outros processos". Iniciação científica em Produção de
Subjetividade e Psicoterapias (UFRJ). Estagiário no I Juizado de Violência Doméstica e Familiar contra a
Mulher (JVDFM), no Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro. E-mail: rezende.alencar@gmail.com.
2 Graduando em Psicologia na Universidade Federal do Rio de Janeiro. Estagiário em pesquisa do "Núcleo

Trabalho Vivo: pesquisas e intervenções em arte, trabalho e ações coletivas" do Programa de Pós-graduação
em Psicologia do Instituto de Psicologia a UFRJ. E-mail: joaovictor.mgoncalves@gmail.com.

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Carlos Allencar Sérvulo Rezende-Pereira e João Víctor M. Gonçalves

na intenção de explorar o vínculo do público com o “palhaço do crime” como porta de


entrada para complicar inscrições narrativas sobre loucura e subjetividade nos roteiros
cinematográficos e para além destes.

Assim, o ensaio será dividido em capítulos, conforme segue, para melhor


aprofundamento das análises empreendidas. No primeiro capítulo, será realizada uma
abordagem do processo de constituição mútua entre subjetividade e território. Em seguida,
algumas noções da filosofia existencialista sartreana serão apresentadas com o objetivo de
explorar a complexidade da história de Arthur Fleck. O terceiro capítulo retoma discussões
sobre a percepção histórica sobre a loucura e sua articulação com os efeitos concretos na
vida de Arth. No quarto, será discutido como dinâmicas históricas e processuais são
revestidas de uma aparência naturalista, como se dissessem respeito à uma essência do
sujeito e do mundo. E no quinto, por fim, discorre-se sobre a forma específica que o
personagem encaminha como modo de reagir ao mundo.

Ter a cidade dentro de si

Pensar na maneira como a experiência de vida de Arthur Fleck, o Coringa vivido


pelo ator Joaquin Phoenix, é marcada pelos conflitos de Gotham dos anos 1980 – uma
cidade à la Nova York – é lidar com essa interlocução singular-universal que tenciona a
relação dos sujeitos com a cidade. E o filme não é alheio à força dessa dinâmica. O
acirramento das transformações vividas pelo protagonista é acompanhado por uma
emergência das fraturas sociais expostas na desigualdade social de Gotham City.

Diferentes determinantes sociais marcam o ingresso dos sujeitos no mundo, um


mundo que existe antes deles, que tem um modo de funcionamento. O sujeito não é
indiferente a isso, embora não seja também reduzido a eles. A partir desses determinantes,
materializam-se condições concretas de vida sob às quais o sujeito está exposto. A violência
urbana, a precarização das condições de trabalho, a frieza que media as relações sociais e
a hostilidade do ambiente público são algumas das repercussões que ressoam no filme e
nas histórias brasileiras, ocupando a diegese que estabelece as conexões entre os
indivíduos e a sociedade, e compõem o sistema que produz uma subjetividade que não se
adequa aos anseios de um imaginário coletivo modulado por uma estrutura liberal, situada
na mais liberal de todas as cidades, e que só quer visibilizar existências que ostentam
privilégios.

Essa não é a existência de Arthur Fleck, e nessa disputa por instituir um modo de
organizar a vida e a cidade, o que o protagonista encontra como possíveis de si mesmo está
circunscrito em condições concretas que são típicas da marginalização urbana

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Ensaio Morrendo de rir: a (falta de) graça da existência...

experienciada em grandes metrópoles. Seu prédio decadente, seu subemprego, o clima de


desconfiança, o estigma de um diagnóstico psiquiátrico, por exemplo, o colocam na
periferia das narrativas hegemônicas.

“Durante toda a minha vida, eu nem eu mesmo sabia se eu existia de verdade”,


afirma o personagem à assistente social (Debra Kane) que o acompanha. Afinal, os signos
dos determinantes sociais são o que marca o olhar a ele endereçado – um olhar que o
rejeita. O estranhamento de sua risada, o incômodo que sua presença causa, sua aparência,
seu corpo esquelético, etc., são os fenômenos vistos e cujo significados são atribuídos
dentro dessa matriz de entendimento comum, que esquadrinha as possibilidades de ser
dentro daquele território.

Arthur Fleck é eclipsado pela força desses condicionantes e uma nova possibilidade
de ser emerge. Nos fragmentos entre as dimensões pública (articulada com uma
universalidade aparente) e privada (singular) de si mesmo, Gotham se estabelece como
elemento fundamental para operar essa transformação dialética. Ao lidar com os outros,
os objetos e as situações geradas pela experiência citadina em Gotham, Arthur reorganiza
sua existência – dialetizando o que ele é e o que ele pode ser, o que o mundo faz dele e o
que ele faz disso. Essa relação com a concretude e materialidade da cidade dá o tom das
transformações existenciais vividas pelo personagem e das relações nela estabelecidas.

Rir pra não chorar

Situar o território geográfico e de dinâmicas sócio-políticas de Gotham City é tão


fundamental quanto investigar as ações do personagem principal Arthur Fleck. Arth, como
também era conhecido, não corresponde a um “indivíduo”, na medida em que tal categoria
não se alinha ao existencialismo. Jean Paul-Sartre abominava empreendimentos filosóficos
que enquadrassem o ser humano como mônada individual (SARTRE, 2014).

Diferente de autores modernos como Descartes, Kant e Hegel, Sartre afirmava o


sujeito singular-universal, defendendo a dialética constante entre os polos da
singularidade e universalidade. Isso porque, o apagamento do primeiro, provocaria a
emersão do naturalismo radical, enquanto a exclusão do segundo, a fantasia de um sujeito
“indivisível”. Sustentar ambos polos é entender que a produção desse sujeito acontece em
situação, indicada por Castro e Ehrlich (2016) – enquanto encontro entre facticidade –
estruturas materiais e práticas sociais – e as respostas pessoais que mantém, reforçam,
intervém, alteram ou subvertem tais contingências e fatores externos.

A partir dos contornos dos determinantes territoriais de Gotham, é possível


explorarmos a singularização histórica do universo sócio-material de nosso personagem

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principal. Nessa direção, o primeiro passo consiste em remontarmos a situação original de


Arthur Fleck. Desde criança sofria diversas violências, de agressões do namorado de sua
mãe, Penny Fleck (Frances Conroy), à ausência de cuidados maternos e hostilidades na
escola. Arthur havia sido separado de Penny mediante a inércia desta frente às
barbaridades que a criança e ela sofriam com seu companheiro. O menino havia sido
“encontrado amarrado a um radiador, malnutrido, com escoriações pelo corpo e traumas
severos na cabeça”, segundo o relatório da polícia. Além disso, ainda ouvia,
frequentemente, que “havia algo errado com ele”, com seu riso, considerado doentio por
sua mãe.

Nesses ambientes hostis, outras ações marcaram Arth, não como arranhões e
feridas na pele, mas nem por isso, menos perturbadoras. O menino também sentia o peso
da missão endereçada por Penny: “trazer alegria e riso a esse mundo frio e sombrio”,
discurso reiterado pelo personagem ao longo da trama, em seus ambientes de trabalho,
relacionamento amoroso e imaginações acerca da participação em um talk-show.

É situado nessas relações sociais originais de violências e negligências, no conjunto


desses acontecimentos totalizantes – que costuram, no presente, experiências passadas em
direção a um futuro -, que Arthur realiza sua escolha originária: reafirmar a necessidade
de rir para não chorar. Em outros termos, ser o menino bonzinho que, em meio a ambientes
que não proporcionavam segurança, conforto, cuidado e felicidade (ou justamente por
estar inserido nessa atmosfera fria e sombria), “aguenta tudo calado”, sendo, mesmo assim,
responsável por colocar um sorriso no rosto dos demais.

Vale ratificar que a “escolha” mencionada não se refere a uma racionalidade, como
diria Sartre (2014), mas faz alusão ao conjunto de respostas que o sujeito apresenta
(reproduzir, ratificar, discordar, enfrentar, etc.) frente às experiências das primeiras
relações sociais (em família, na escola, entre outros), inseridas em conjuntos maiores
(relações sociais civilizatórias, patriarcais, classistas, manicomiais, etc.). Para além da
vontade e da lógica, o termo “escolha” sublinha a liberdade ontológica: não existe nenhuma
natureza humana, biológica ou moral, que definiria de antemão como cada sujeito iria
sentir, pensar, agir e ser em meio a sua situação originária

Essa escolha, enquanto forjada a partir de um conjunto de acontecimentos


totalizantes e as reações aos mesmos, sofre reatualizações ao longo da vida do sujeito.
Novos acontecimentos, que unificam, no presente, certas experiências passadas em direção
a possibilidades futuras, acontecem e a pessoa reproduz, ratifica, discorda ou altera
reações originárias. No caso de Arthur Fleck, o personagem, no desenrolar da história,
incorre na reafirmação de tal escolha e, na fase adulta, ainda se lança para o mundo
sombrio como aquele que é bom, educado e alegra conhecidos e desconhecidos. Seu

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“projeto de ser” (CASTRO, EHRLICH, 2016), enquanto atualização do sentido fundamental


de sua existência, é ser aquele que ri para não chorar e tenta divertir os outros numa cidade
suja, preconceituosa, indiferente e violenta.

Visto que cada sujeito não possui um projeto, como planejamento lógico prévia e
milimetricamente calculado pelo córtex pré-frontal, mas é pro-jétil, como maneira de se
lançar para e no mundo, é preciso sublinhar que todo projeto de ser comporta
contradições. Cotidianamente, os sujeitos são estimulados por milhares de fatores
distintos, atravessados por diversos questionamentos, dificuldades e possibilidades de
recursos e alternativas. Dessa maneira, não é nenhuma surpresa que a projeção de cada
ser singular-universal não se desenhe em uma reta contínua.

Em específico, o projeto de ser de Arthur Fleck sustenta e é constituído por uma


contradição principal: ao passo que, no limite, desde pequeno é pressionado para alcançar
e espalhar a alegria, seu dia-a-dia, bem como passado e futuro, é assombrado pela tragédia.
Assim como o gênero teatral mais antigo na Grécia Antiga, a história de Arth é marcada por
tensões constantes e um final discrepante do “felizes para sempre”. A analogia do filme com
o gênero clássico da tragédia pode ser destacada logo no início do longa-metragem. Na
primeira cena, o corpo de Arthur aglutina as duas famosas máscaras do teatro: enquanto
seus dedos estão enganchados nos lábios produzindo um riso forçado em seu rosto pintado
de palhaço, suas sobrancelhas arqueadas e olhos marejados denunciam sofrimento.

O corpo sensível Arthur Fleck conta a história de alguém constantemente


maltratado, por exemplo, no trabalho de palhaço, divulgando lojas e produtos na rua. A
cena em que é espancado após ser quase atropelado correndo atrás de seu instrumento de
trabalho roubado, evidência que “segurança do trabalho” em Gotham City, na década de 70,
não estava na “ordem do dia” para os governantes. Esse cenário de vácuo de garantias de
direitos, expandido por sucateamentos recentes em tempos de “uberização” dos serviços,
é ainda mais grave para populações vulnerabilizadas, como pessoas com sofrimento
mental grave e persistente, alvos de violências que não partem apenas de clientes ou
transeuntes, mas, inclusive, do próprio ambiente interno do trabalho.

O chefe de Arthur, Murphy (Berry O’Donell), não acredita que o “maluco”, em suas
palavras, teve sua placa publicitária roubada e, sem paciência, cobra o valor do produto.
Nessa e em outras disputas de versões, Arth sempre é lido, pela lente manicomial, como
mentiroso e irresponsável. O que é infelizmente esperado, já que a leitura estereotipada
engessa a figura do louco ou pela periculosidade ou pela alienação, sendo esses polos ativo
– criminoso perigoso – e passivo – vítima impotente – conectados pela ideia de que a
“loucura” esgotaria qualquer compreensão da pessoa sobre seus comportamentos, bem
como os motores e efeitos das suas ações.

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Desresponsabilizando o indivíduo sobre sua própria vida, os discursos e práticas


jurídico-psiquiátrico-midiáticos hegemônicos estrangulam as possibilidades de
reconhecimento do “louco” enquanto sujeito, aquele com agência para falar de si, avaliar,
negociar e disputar demandas singulares e coletivas. E uma vez esvaziado de autonomia, o
louco não atende os critérios de funcionalidade e passa do desprezado ao insuportável: o
perigo que precisa ser trancafiado longe da vista de todos.

O corpo subalternizado que não aguenta se dobrar a condições cada vez mais
precarizadas de serviços, não consegue vender sua força de trabalho, ou simplesmente não
destina muitos esforços a avançar no tabuleiro do “jogo da vida”, contrariando posturas,
falas e aparências prescritas, torna-se alvo da manicomialização, ilustrada pelas risadas e
depreciações que os colegas de trabalho de Arth o endereçavam. Os olhos fundos, cabelos
sebosos e extrema magreza de Arthur são heranças de sua infância, em que a expectativa
de um pai amoroso era contrastada pela concretude da crueldade dos adultos. Malnutrido
e sujo, o personagem se aproxima dos ratos reportados pelos noticiários que infestam a
cidade de Gotham.

Ainda sobre a debilitação de sua saúde, é preciso lembrar do uso de sete


medicamentos psiquiátricos por Arthur Fleck. Quantidade alta de remédios que o
personagem, desde que recebera alta do hospital psiquiátrico de Arkham, em suas
consultas com a rígida assistente social, afirmava ter desejo de aumentar. “Eu só não quero
me sentir tão mal”, dizia Arth, expondo o esvaziamento existencial, de um lado, por não ser
percebido e reconhecido como bom cidadão e engraçado o suficiente apesar de todos seus
esforços, e, de outro, por ser exaltado, nos momentos em que alguém lhe dirige o olhar e a
palavra, como o estranho, o esquisito, o gauche do Poema de Sete Faces de Carlos
Drummond de Andrade: “Meu Deus, por que me abandonaste. Se sabias que eu não era
Deus. Se sabias que eu era fraco.”

A solicitação de Arthur, pelo aumento da significativa bateria de medicamentos, na


intenção imediata de controlar, amenizar e aniquilar seus incômodos, aponta para o
conflito entre “ter corpo” e “ser corpo”, ou seja, para as diferentes relações que os sujeitos
estabelecem com o corpo. Enquanto o corpo, morto e dissecado, é tratado como objeto de
reflexão e investigação pormenorizada de seus músculos, órgãos, tecidos, etc.,
posteriormente apresentado nos manuais médicos, a fenomenologia destaca nossa
materialidade para além dos contornos científicos. Dessa forma, corporeidade, enquanto
noção sartreana, refere-se à sensibilidade do corpo vivo e o sentido que essa atribui para
as existências singulares.

Na pré-reflexividade do cotidiano, corpo e mundo não podem ser separados, de


modo que, se o primeiro indica “impaciência e progresso”, o segundo se coloca na correria,

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diferente de movimentos vagarosos em diálogo com ambientes sossegados e que primam


pelo descanso (BERG, 1999). Nesse contexto, sentir o coração partido ou peso nos ombros
são evidências – não necessariamente fisiológicas, de complicações do ritmo cardíaco e dos
músculos – do que o sujeito, enquanto corpo vivo, sente em meio a seus relacionamentos
amorosos, exigências de trabalho, lembranças, sentimentos, pensamentos e expectativas
que o tocam.

Nesse quadro, Arth é corpo que, desde a infância, é violentado ou pelos castigos
físicos ou pela indiferença e repulsa de sua presença nos espaços. Sentindo diversas dores,
o personagem declara seu desejo por mais remédios que, no horizonte, anestesiariam, para
ele, o peso de tais violações e violências. No limite, tornar-se um corpo completamente
esvaziado, inclusive de experimentações satisfatórias, é o preço que Arthur estaria
disposto a enfrentar para não sentir mais o peso da desumanização provocada pelos
cidadãos de Gotham.

Capturados pelo cartesianismo que fantasia com a separação entre psíquico (res
cogita) e corporal (res extensa), a população da cidade encara como natural a negação da
corporeidade de Arthur – o nível mais elementar do corpo enquanto experiência de ser no
mundo -, uma vez que, em função de sua loucura, possuiria menos substância racional. Isto
ressoa com a tipificação e enclausuramento do louco na idade clássica, segundo Foucault
(2019), que não respondia a concepções racionais científicas médicas, mas a uma
racionalidade social, ética. Nesse período, loucos, sodomitas, bruxas e libertinos eram
percebidos como aparentados e unificados pela marca da desrazão moral.

O desejo pela dessensibilização completa, alternativa para Arth não se incomodar


com as agressões que enchem seus olhos de água e culpabilizações que pesam sobre seus
ombros curvados, infelizmente para ele, não é possível. Nem mesmo a medicina
conseguiria efetivar a falácia de Descartes e transformar o corpo vivo que somos em um
corpo puro objeto e abjeto, nem as pílulas conseguiriam ocultar o que Birman (2001)
chama do constitutivo “mal-estar de levar a vida”. A desvalorização de seu corpo é
reproduzida, ao longo das cenas, pela projeção de Arth nas suas relações com coisas e
pessoas em prol do próximo em detrimento pessoal. A obrigação de “colocar um sorriso na
cara” do outro é explicitada na subversão e unilateralidade dos cuidados dentro do
apartamento que divide com Penny Fleck. Arthur lhe dá banho, a coloca para deitar e
oferece comida, mas ele mesmo não se alimenta: o elemento que mais aparece nos seus
lábios finos são cigarros.

Esse movimento do corpo-Arthur de fumar, assim como de não se nutrir, de ingerir


diversos remédios, se esforçar no trabalho e não ser reconhecido, ser amarrado ao
radiador, são exemplos de “intencionalidades”. Em dicionário fenomenológico, todos os

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posicionamentos do sujeito seriam intencionais, no sentido de que sempre se direcionam


para determinados objetos e/ou pessoas, por meio de formas plurais desde expressões e
gestos a pensamentos e elaborações racionais. Ao afirmar que a experiência de ser no
mundo é continuamente consciente, criticando a noção de inconsciente psicanalítico,
Sartre (2014) não alega que o sujeito, louco ou não, detém o conhecimento pleno de todas
causas e efeitos das ações e funcionamento próprio e dos demais, mas que é sempre
consciência de algo/alguém.

“Consciência”, distinta do sinônimo de razão, manifesta o caráter relacional


constante dos seres no mundo, sendo essa relação, primeiramente corporal, sensível e pré-
reflexiva. Partindo do entendimento de que a experiência subjetiva não funciona com base
em um reservatório de afetos no crânio, esse nível da experiência pode ser definido como
elementar e imediato. A pré-reflexividade é o movimento de ser consciência, não de si, mas
de algo para além de si. Ou seja, refere-se a uma absorção espontânea em relação ao mundo
presente, que foi ou que virá. Podemos ser absorvidos por percepções, pensamentos,
raciocínios lógicos, imaginação, dentre uma lista imensa de possibilidades. Quanto a
última, por exemplo, o longa-metragem explora a intencionalidade de Arthur – por ser
reconhecido como um “cara legal e decente”, valorizado e cuidado por uma figura paterna
-, na cena em que durante a visualização do programa de Talk-Show de Murray Franklin
(Robert de Niro), Arth mergulha em um cenário imaginário em que alegra toda a plateia e
antes de abraçar o apresentador, recebe como depoimento: “Abriria mão de tudo isso (as
luzes, o palco e a plateia) para ter um filho como você”.

Já em segundo momento, para além da dimensão pré-reflexiva, o sujeito pode


experienciar o nível reflexivo, referente à consciência de si. Durante sua primeira
apresentação no stand-up comedy, Arthur ilustra esse movimento, em que a consciência
dobra sobre si mesma, pelo depoimento “eu odiava a escola quando era criança”. Com os
cabelos lavados e roupa nova, o personagem se projeta no palco como aquele que, mais
uma vez, tentará fazer os outros rirem, mas durante os primeiros minutos, a possibilidade
futura de ser suficientemente engraçado é inundada pela tragédia de experiências
passadas. o corpo-Arth responde à contradição de seu projeto por meio de um riso peculiar,
constituído tanto por expressões e sons alegres quanto rugas e ruídos de choro.

Esses risos são interessantes para explorar a existência dos distintos níveis da
experiência e consciência. Enquanto suava no palco, engasgava e levava a mão à garganta
para tentar parar as risadas, Arth era consciência pré-reflexiva de seus trejeitos e barulhos.
Já durante as cenas em que oferece um cartão, que descreve o riso como doença
neurológica, para pessoas assustadas com seu comportamento, Arthur Fleck se projeta
para o mundo como aquele que sabe que seu riso é patológico. De forma introdutória,
podemos ainda classificar essa reflexão sobre si como impura, na medida em que cristaliza

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uma essência, define certezas absolutas e não abre espaços para dúvidas e possibilidades,
para outra temporalização.

O conceito de temporalidade é elaborado em Sartre (1999) em referência a uma


síntese que o sujeito faz, no presente, costurando um conjunto de acontecimentos que
considera sua trajetória pretérita e sua direção a futuros possíveis. Não se trata de um
funcionamento que se realiza tal como o tempo cronológico do relógio. Presente, passado
e futuro não são dimensões apartadas nem estáticas, estão conectadas e se constituem
mutuamente.

O que vislumbramos como possibilidade de ser (no futuro), está apoiado no que foi
possível ser (no passado). Isso nos altera, no presente. Essas dimensões estão intimamente
implicadas. A temporalidade psíquica, que consolida uma imagem essencialista da
consciência reflexiva (“eu sou assim”), é um desdobramento da temporalidade originária e
ontológica, relacionada à dimensão pré-reflexiva (“eu fui assim, mas posso ser diferente”).

Ao passo que se aprofunda a mercantilização da (re)produção material da vida no


sistema capitalista em geral e, da figura do louco, em sentido estrito, muito se diz sobre a
loucura ser “assim” em detrimento de poder “ser diferente”. Não são apenas os atores da
história de Arth que calam o louco, mas o próprio filme “Coringa” ao introduzir novos
elementos na construção do personagem só para reforçar, em última instância, o
imaginário indissociável entre loucura e crime desde a “psicologização da loucura” na
modernidade.

A graça da alienação

A loucura deixa de ser erro da razão, como na época clássica, para ser, nos termos
do discurso médico-filosófico do século XVIII, alienação: perda da natureza, afastamento
do indivíduo de sua própria natureza, alterando sua sensibilidade e imaginação em função
de sua relação com a sociedade. A separação da massa antes unificada pela desrazão entre
pobres “válidos” – que podiam trabalhar – e a incapacidade produtiva dos loucos, além da
dificuldade de atendimento domiciliar às famílias, implicou na internação dos loucos em
espaços exclusivos e específicos onde não se buscava esquadrinhar sua verdadeira
essência, mas segregá-lo como perigoso (FOUCAULT, 2019). Sob a reafirmação do terreno
alienista, a graça do contato entre cinema e público se desloca da transformação subjetiva,
pelo contato sensível com outras narrativas, e questionamento de perspectivas pessoais,
para a reiteração da fantasia que expectadores possuíam de antemão: “Coringa é louco
porque sofreu muitos traumas na vida”.

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Carlos Allencar Sérvulo Rezende-Pereira e João Víctor M. Gonçalves

Esse ato de “má-fé” (CASTRO E EHRLICH, 2016), como tentativa de justificativa ou,
pelo menos, suavização das irresponsabilidades e violências praticadas pelo
“traumatizado” é desonesta por afirmar uma ou outra situação do passado – especialmente
da infância – como determinantes a priori de um futuro unívoco. Tal desconsideração de
que todo sujeito é projeto que, a cada momento, refaz seu lançamento no mundo, não
começa e se encerra em “Coringa”. A desvalorização de produções artísticas pelos próprios
loucos em benefício dos filmes de suspense e ação sobre eles, assim como as teorizações e
diagnósticos da psiquiatria e psicologia que, frequentemente, pesam mais do que a
experiência sensível e a história contada pelos sujeitos, são desdobramentos do
silenciamento da experiência trágica da loucura, do Renascimento à Modernidade,
investigada por Foucault (2019) em “História da Loucura”.

Essa potência trágica da loucura, nos séculos XV e XVI, era expressada na leitura do
louco como o portador de um saber, um certo visionário, ilustrado em “O Rei Lear” de
Shakespeare, e figura errante que anuncia verdades secretas, cifradas, mas fundamentadas
na realidade, na pintura “O Navio dos Loucos” de Hieronymus Bosch. De personagem que
anuncia o fim do mundo, fala da felicidade e do julgamento supremo, o louco passou a ser
medido pela desrazão, alienação e doença mental, respectivamente. No cenário de
patologização da loucura, em função de condições econômicas, políticas e assistenciais, a
noção de alienismo emerge pela ideia de que a loucura não seria total, possibilitando o
terapeuta se apoiar no que haveria de racional no louco para “trazê-lo à razão”.

A ideia de curar os loucos moveu a psiquiatria a realizar e manter o que a época


clássica não conseguiu pelo enclausuramento: o controle social da população louca,
silenciada de sua experiência trágica. Tentativas modernas de fazer o sujeito recobrar o
diálogo com sua fração racional, como tratamentos com duchas frias e cadeira giratória,
infelizmente, são atualizadas pela integração das Comunidades Terapêuticas e Hospitais
Psiquiátricos à RAPS (Rede de Atenção Psicossocial), possibilidade de internação de
crianças e adolescentes, abstinência como possibilidade na política de atenção às drogas e
o financiamento governamental para compra de aparelhos de eletroconvulsoterapia .

Por um lado, a esperança é a primeira que some em meio a essas e outras


manifestações políticas da onda conservadora-reacionária em território nacional, como
diriam Mascaro (2018) e Schwarcz (2019). Contudo, por outro lado, como ela é a última
que morre, também é preciso frisar que houve progressos. Os movimentos sociais de
trabalhadores da saúde, pessoas com transtornos mentais, familiares e ativistas dos
direitos humanos, ainda durante a redemocratização de nosso país, derrubaram diversas
instituições manicomiais, enquanto políticas formais de governo e estruturas físicas de
aprisionamento.

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Ensaio Morrendo de rir: a (falta de) graça da existência...

Concomitantemente às disputas jurídicas pelo fechamento dos manicômios


remanescentes no Brasil, trabalhadoras(es) da saúde atentam-se, frequentemente, para a
tendência, sublinhada por Yasui, Luzio e Amarante (2018), de reproduzir a lógica
manicomial nos serviços substitutivos implementados pela Reforma Psiquiátrica e se
projetam na relação com pessoas com sofrimento mental grave e persistente a partir de
uma postura de acolhimento, escuta atenta e cuidado nas intervenções – tudo o que não
ocorre na história de Arth. Seus encontros com a assistente social explicitam violências
institucionais frequentes nos serviços de saúde, seguridade social e segurança pública, em
função da despersonalização dos usuários pela substituição de interações dialógicas por
protocolos burocráticos e exames (MINAYO, 2007).

Nesse cenário de disputas, reverberações da Reforma Sanitarista da década de


1970, fruto do descontentamento com o modelo de assistência à saúde traduzido em
medicalização, internações e prevenções, só é possível alcançar, em diferentes
aprofundamentos, a temporalidade originária por trabalhos, como da assistência social, se
a(o) profissional não tomar a diferença enquanto o outro, reproduzindo a lógica
manicomial, mas afirmar sua dimensão relacional: todos nós somos a diferença.

Na medida em que “o sujeito é, para Foucault, efeito das práticas discursivas”, como
lembra Sueli Carneiro (2005), o desafio das lutas democráticas e antimanicomiais é
reforçar os caminhos existentes e inventar novas rotas para delimitar o “eu” do “outro”
sem incorrer na tendência ocidental, sublinhada por Nietzsche (2008), de inferiorizar o
segundo em detrimento do primeiro. É preciso afirmar, na esteira de Deleuze (1976), a
positividade da fronteira porosa entre “eu” e “outro”, tomando a diferença, não como
hierarquia de opressões, mas como singularidade, subjetividade.

Na contramão das inspirações nietzschianas e deleuzianas, a experiência singular


de Arth não é respeitada, inclusive, por aqueles que trabalhariam com a escuta ativa.
Semanalmente em uma sala escura, sentado de frente para a assistente social, o
personagem reitera “só tenho pensamentos negativos”, e desabafa “você não escutou né?
Acho até que você nunca me escuta”. Assim, a frustração de Arthur pelas violências e
estigmatizações desde a infância, indiferença de chefes e colegas de trabalho, violências
institucionais do sistema público, em detrimento do roteiro de seus cenários imaginários,
marcam sua situação existencial esvaziada da potência trágica. Os movimentos corporais,
intencionais, pré-reflexivos e reflexivos respondem a essa triste história com o esforço de
“colocar um sorriso na cara”.

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“A VIDA É ASSIM”

A partir da situação singular de Arthur – composta, por seus próximos, seu lugar,
seus arredores e seu passado – o personagem forja uma exis psíquica, isto é, definições
estabilizadas sobre si, uma identidade que, no presente, infesta tanto o passado quanto o
futuro (CASTRO, EHRLICH, 2016). O que ocorre na sequência de cenas orientadas por uma
totalização – sinônimo de retomadas da escolha original em novas situações -, como se
percebe na germinação do romance entre Arth e sua vizinha (Zazie Beetz). Essa experiência
psicótica não é menos verdadeira do que outras cenas em que as apreensões das
personagens era mais ou menos compartilhada e comentada.

A alucinação, assim como a imaginação e a percepção de objetos públicos, é uma


experiência pré-reflexiva que suscita afetos na corporeidade-Arthur e a direciona para
determinado caminho e não outro. A projeção do romance com a vizinha, que também se
interessa por stand-up comedy, funciona como possibilidade de ser suficientemente
engraçado e valorizado em meio a demissão do seu emprego de palhaço e relações frias
com os demais. Pelas trocas de olhares, afagos e beijos, Arth se sente reconhecido e
possibilitado, a partir disso, a realizar novas escolhas. Aqui não é interessante marcar
precisamente o início da narrativa alucinatória, mas apontar cenas anteriores que podem
guardar relações com a alucinação.

Antes mesmo de ser demitido por portar uma arma em sua função de palhaço em
um hospital infantil, Arthur havia tentado comprar um revólver. O contato com o objeto
entregue a Arth por um colega de trabalho, para que ele se protegesse de futuros roubos,
nitidamente reverbera em sua corporeidade, intencionalidade e temporalidade. Sozinho
na sala, durante a madrugada, Arthur segura a arma e dança para uma dama que não está
ali. Contraindo seus músculos esguios, expira virilidade sendo aquele que controla uma
arma, até que um disparo não planejado o assusta. Essa experimentação de poder por
manipular algo perigoso que, até então, era negado à figura perigosa do louco, constitui
fator importante para outros posicionamentos frente a novas violências.

Nesse sentido, é no encontro da facticidade de portar a arma, no metrô, durante o


regresso de seu antigo emprego para o apartamento, e da perturbação de três rapazes de
terno que o agridem verbal e fisicamente, que Arthur Fleck assassina dois dos investidores
no vagão e o terceiro, na plataforma. Na sequência, após encontrar um local seguro para se
limpar, em um banheiro, Arthur performa movimentos lentos e graciosos, análogos a uma
germinação que acaba com o personagem de braços abertos de frente para seu reflexo no
espelho sujo. Daí em diante, Arth se apresentará ao mundo de outra forma: a obrigação de
ser o “menino bonzinho e que aguenta tudo calado” nem sempre será priorizada nas suas
relações com as pessoas.

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Dessa maneira, seu projeto de alegrar os outros sofre algumas descontinuidades.


Se, por um lado, busca provocar risos e carinhos de sua vizinha, em sua experiência
alucinatória, por outro, quebra a máquina de ponto e picha seu antigo trabalho. Assim, em
um momento de transição na história do personagem, Arthur deixa de se forjar como
aquele que “leva alegria e risos” para alguém que é indiferente às gargalhadas e, inclusive,
reprova a felicidade das pessoas em meio a tanta desgraça na sociedade. Como ilustra seu
vandalismo no antigo emprego, pela visibilização da frase “não sorria”.

Sobre essa indiferença, gradativamente, decorre a sedimentação de rancor, raiva e


ódio, na medida em que Arth é exposto a novas situações que o constituem e, no mesmo
processo dialético, interfere nelas. Em uma longa lista de frustrações, destacamos a
agressividade contra o bilionário Thomas Wayne (Brett Cullen), antigo patrão dos
investidores mortos por Arthur. Ao ouvir, pela televisão, o candidato a prefeito afirmando
que tanto o assassino quanto os manifestantes em protesto contra os poderosos de Gotham
City seriam palhaços – “invejosos que nunca deram sorte na vida” – Arth balança
freneticamente as pernas e bufa em cólera.

Somado a isso, o personagem ainda sofre o desapontamento quanto à figura


materna, uma das únicas que lhe dirigia olhares e perguntas, ao ler uma carta de Penny
pedindo auxílio para Wayne, retratado no texto como pai de Arthur. No curso de
acontecimentos, depois do acesso de raiva do personagem principal, em que gritava e batia
na porta do banheiro exigindo explicações para sua mãe nunca ter lhe contado o caso, um
inquérito policial provoca a internação da mesma. “Nós só fizemos algumas perguntas. Ela
começou a ficar muito nervosa, hiperventilou e bateu a cabeça com força”, de acordo com
um dos detetives que investigavam o assassinato dos investidores no metrô.

Enquanto sua mãe permanecia internada no hospital, Arthur parte, então, a procura
de Thomas Wayne, homem correto que, segundo ela, melhoraria a situação. Todavia, no
encontro, a figura esnobe de Wayne apresenta outra versão da história, compartilhando
não apenas que não seria o pai de Arth, mas que o menino havia sido adotado por Penny
durante o trabalho da mesma em sua mansão. Sendo a guarda da criança retirada da
paciente psiquiátrica após o consenso policial de que o ambiente e a negligência da postura
materna ameaçavam seu desenvolvimento e bem-estar. Ao que Arthur responde negando
veementemente. “Eu não entendo porque todo mundo é tão estranho. Minha intenção não
é ruim. Eu não quero tirar nada de você, quem sabe um pouco de carinho, talvez até um
abraço, pai” desembucha o personagem até ser interrompido por um soco do bilionário.

É a unificação dessas experiências por Arth que, já na metade da história, provoca


fraturas no projeto de ser bonzinho, pela aceitação e afirmação de ser uma pessoa péssima
numa vida negativamente trágica. Mais tarde na trama, a sedimentação de tantas

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descontinuidades e afetos nocivos resulta em uma retotalização: Arthur Fleck produz um


novo sentido fundamental para sua vida. Nessa direção, ao invés de se lançar para o mundo
como o cara bom, torna-se projeto de ser alguém péssimo que entrega aquilo que outras
pessoas péssimas merecem. Dessa maneira, a produção do Coringa, da roupa e maquiagem
a postura e caráter, responde a cristalização de que “as pessoas só berram e gritam umas
com as outras e ninguém nunca é educado”, à síntese, de acordo com a música de Frank
Sinatra que compõe a trilha sonora do filme, de que “a vida é assim”: infelicidade.

A população continua desconfiada e, muitas vezes, reacionária frente às


reivindicações pela qualidade de vida das pessoas com transtornos mentais graves e
persistentes. Isso porque idealiza que a conquista do exercício de ir e vir, liberdade de
expressão, entre outros direitos, representaria o cancelamento dos mesmos para o
restante daqueles que já o experimenta. Em meio ao culto individualista e imediatista
nas/das cidades, são corpos manicomializados que denunciam a insustentável
teatralização da plena independência montada como horizonte a ser alcançado na peça em
que todas(os) fazem papel de bobas(os). Os desafios e obstáculos à circulação e as
abordagens que os loucos, muitas vezes, fazem à pernas apressadas que cruzam as ruas,
reclamam a espezinhada “alteridade”, noção aparentada da “precariedade” do existir, nas
palavras de Butler (2015): “o fato de que a vida de alguém está sempre, de alguma forma,
nas mãos do outro. Dependendo de conhecidos, conhecidos superficialmente e
desconhecidos”.

Os movimentos reflexivos do personagem principal em declarações como a


dificuldade de “acabar sendo o tempo inteiro feliz” e inexistência de algum momento feliz
em sua existência, acompanham a subversão da apreensão da própria vida de tragicamente
esvaziada para cômica. Como novo projeto, Coringa abre os braços para as horríveis
facticidades, “quebra e bota fogo em tudo”, sendo aquele que faz graça com o que não se
poderia brincar.

É justamente como forma de denunciar a insignificância da vida de qualquer e toda


pessoa, que Coringa sufoca Penny Fleck (alguém que mentiu sobre a origem de seu filho)
até a morte com um travesseiro; perfura o antigo colega de trabalho (que reduzia sua
condição mental a piada) com uma tesoura e dispara contra a testa do apresentador
Murray Franklin no Talk-Show, espaço também utilizado por ele para visibilizar algumas
considerações. “Eu matei aqueles caras porque eles eram péssimos. Todo mundo é péssimo
hoje em dia. É o que basta para a gente enlouquecer” declara o Palhaço ao vivo no
programa.

Longe de visar a irrupção de um movimento político por melhorias nas condições


de vida, Coringa busca explicitar como que um “doente mental solitário” é “abandonado e

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tratado como lixo” pela cidade inteira. E mais: nunca tendo sua vida reconhecida como
suficientemente significativa, o palhaço considera a existência, na dimensão singular e
universal, como uma piada de mau gosto. A esse projeto idealizado por um anjo torto, como
diria Drummond, para Coringa, só resta achar graça, saltitar em meio ao caos das
mobilizações e depredações populares contra o sistema, abrir os braços em meio a
palhaços mascarados e sorrir com a cidade, literalmente, pegando fogo.

Virando a cidade ou da inadequação burlesca à revolta social

A experiência esvaziada que a vida imprime ao protagonista não o torna


conformado, mesmo que ele busque um certo tipo de conformação. A dificuldade em ser
visto para além do que os determinantes sociais, forja um projeto tipicamente neoliberal
que é por Arthur Fleck empreendido, o self-made-man. Ele não se restringe às
possibilidades que lhe são ofertadas, e se direciona em busca de realizações que ninguém
associa a ele. Para tanto, ele joga o jogo do sistema: é esforçado, estudioso, dedicado. Vê em
Murray Franklin um possível desejado, e em torno da comédia stand-up se estrutura o seu
maior núcleo de desejo. Nesse empreendimento, o personagem almeja se distanciar do
ambiente caótico, pauperizado e violento que o cerca. Do escapismo à imersão no tema, ele
ensaia e estuda possibilidades de ser um outro alguém. E, enquanto isso não acontece, as
disputas pela cidade se intensificam em torno dele.

É interessante notar que a existência como ser-no-mundo vem à tona em situações


em que ele busca se haver com a liberdade de ser alguém diferente – liberdade que se torna
uma palavra especialmente polissêmica nesse contexto. A liberdade que a Gotham de
grandes empresas quer instituir como estratégia de subjetivação é a liberdade
meritocrática. Ao buscar conquistar méritos que o incluam, Arthur se dá conta da
insuficiência do mérito para alavancar a aceitação social de alguém como ele, cuja
materialidade do estigma está em seu corpo, em sua risada incômoda, em seu endereço
residencial. Sua apresentação foi ridicularizada no talk show de seu ídolo, assim como os
moradores e moradoras de Gotham foram ridicularizados pelo candidato à prefeito,
Thomas Wayne, que os chamou de palhaços – pejorativamente associando à imagem de
pessoas fracassadas.

Esse momento compõe, tanto para o protagonista quanto para o agrupamento


social, uma possibilidade de ser diferente, de romper a serialização, nas palavras de Castro
e Ehrlich (2016). Arthur Fleck desiste de sustentar uma aparência de sanidade, assim como
os cidadãos e cidadãs desistem de manter uma civilidade moralizada e apaziguadora. A
cidade irrompe em violência, criminalidade e caos. O Coringa também. A essa altura,
Gotham tem uma paisagem urbana similar à dos quadrinhos. É bélica, agressiva, suja –

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assim como o protagonista do filme, que de surra em surra, de desemprego às zombarias,


não aguenta mais ser dócil.

A direção muda, afinal, não existe intencionalidade que não seja corpo: sua postura,
sua dança, seus gestos são ressignificados em sua experiência de vida. Podem ser
mostrados, exibidos publicamente. O que era abjeto até então passa a ser assumido como
símbolo de potência de vida, para viver uma vida diferente. A forma de organização coletiva
também se transforma. A exploração financeira, a decadência da qualidade de vida, os
privilégios, etc., deixam de ser naturalizados e considerados como realidade em si, e
passam a ser questionados. A população se revolta. Arthur se revolta. Arthur agora é
Coringa, assim como a cidade, que era bastante Nova York, é apenas Gotham agora. E esses
novos possíveis são exercidos com diligência.

Considerações finais e os finais de antemão

O conhecimento que tem como alvo o humano, compreendido em seu caráter


dinâmico, já esteve às voltas com diferentes intensidades de determinação estrutural das
possibilidades de existir, contrastadas com uma independência seletiva e elitista que busca
forjar a “liberdade do indivíduo” como um pilar fundante da sociedade. A fenomenologia
sartreana, aqui utilizada como ferramenta de análise, focaliza, acima de tudo, a relação
estabelecida nesta nova conjugação, indissociável, a subjetividade singular-universal.

Se “palhaço”, não determina uma figura de antemão, possibilitando contornos de


maquiagem, expressões, vestimentas e laços afetivos distintos dos cidadãos em relação à
figura risonha do circo ou do criminoso Coringa, porque a expressão “louco” determinaria
um conjunto de causas e efeitos a priori?

É nesse sentido em que a declaração supracitada do personagem, “[...] É o que basta


para a gente enlouquecer”, aponta para a totalidade narrativa que o fez, em específico,
enlouquecer dessa e não de outras formas possíveis. Em vez de ratificar um suposto
compartilhamento das mesmas experiências, especialmente as de sofrimento, entre
sujeitos plurais, tornando-os projetos pré-determinados de espelhos e condutores de
violações e violências. Além da necessária distinção entre sofrimento e adoecimento, em
pessoas com diagnósticos psiquiátricos ou não, uma vez que a dimensão trágica da
existência é constitutiva das subjetividades.

Tal experiência trágica, especialmente nos contornos da loucura, ainda sofre


tentativas de silenciamento, seja pelas políticas reacionárias-conservadoras, seja pela
reafirmação entre louco e periculosidade nas produções jurídico-psiquiátrico-
cinematográficas hegemônicas. Todavia, inevitavelmente a potência trágica retorna,

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segundo Foucault (2019), desde a modernidade – nas obras de Van Gogh, Gérard de Nerval,
Artaud e Nietzsche, por exemplo – e contribui para complicar narrativas tanto sobre corpos
em isolamento social permanente, quanto sobre os circulantes. É basilar, assim, que o
engajamento em movimentos de Luta Antimanicomial esteja apoiado no entendimento que
a lógica manicomial vigia, invade, marginaliza, pune e encarcera qualquer e todas as
subjetividades que desviam da régua euro-americana, branca, masculina,
cisheteronormativa e abastada

Assumir essa concepção convoca uma pluralidade de fatores que situam a


existência em corpos, territórios específicos a partir dos quais se estabelece relações com
o que temos de mais compartilhado em nossa organização social, como o estigma e a
institucionalização da loucura e as demarcações espaciais (in)visíveis da desigualdade
social, que são visibilizados no ensaio a partir dessa atualização da história do célebre
“palhaço do crime”.

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Acesso em 15 de novembro de 2020.

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Foto: Ana Amélia R. Souza (@urbanovoyeur2)

Revista Anãnsi, Salvador, 2020


Ft./ Ana Amélia R. Souza (@urbanovoyeur2)
Ensaio Ensaio Introdutório à filosofia de Nicolai Hartmann

Universidade do Estado da Bahia, Campus I


Departamento de Educação

Ensaio introdutório à filosofia de Nicolai Hartmann

Otávio S.R.D. Maciel 1

Este breve ensaio seria publicado no corpo da tradução que fiz com Felipe Augusto
Romão do texto “Como é possível a Ontologia Crítica?”, escrito por Nicolai Hartmann em
1923. No entanto, o texto traduzido é consideravelmente grande e já bastante complexo,
como pode ser conferido nesta mesma edição da Revista Anãnsi. Além disso, o texto
traduzido é um dos textos de juventude, por assim dizer, visto que sua carreira como
filósofo independente estava praticamente ainda no começo. De 1923 até 1950, data de seu
falecimento, praticamente todos os detalhes que foram, digamos assim, prometidos no
longo artigo, serão cumpridas e demonstradas exaustivamente. Todavia, por ser um
filósofo ainda quase desconhecido no Brasil e no mundo, não é tão senso-comum para onde
sua obra vai. Por estes motivos, preferi não fazer apenas uma introdução à tradução do
artigo, mas, sim, uma introdução deste filósofo ao público brasileiro em geral.

§1 Hartmann e a História da Filosofia

A história da filosofia parece ser uma disciplina cruel, relegando ao esquecimento


aqueles que não se encaixam nas escolas e ideologias dominantes entre os que comandam
e entre os que os criticam. Hartmann é geralmente mencionado em listas de filósofos
neokantianos. Não raro os historiadores da filosofia que defendem certa narrativa citam
dissidentes apenas com menções despreocupadas, mera recitação de nomes ou, o que é
mais comum, sequer mencionando que há algo fora da tradição que defendem. No entanto,
a multiplicidade das histórias da filosofia, como uma disciplina que busca proliferar as
controvérsias e diversidades de corpos teóricos, quase sempre acaba por fazer justiça e
retirar do esquecimento grandes nomes ofuscados pela repetição ideológica.

Nos últimos anos, diversos pensadores têm tido sua vez de aparecer num
cenário mais generalizado de atenções. No Brasil, as inovadoras disciplinas de história da
filosofia brasileira têm grande peso nisso. Embora ainda esnobadas por defensores

1 Doutorando em Filosofia pela Universidade de Brasília E-mail: oe.maciel@gmail.com.


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Otávio S.R.D. Maciel

colonizados de um projeto ultrapassado, disciplinas sobre autores como Tobias Barreto,


Gonçalves de Magalhães e Nísia Floresta, acabam por demonstrar a relevância filosófica do
Brasil no espiritualismo francês, nas doutrinas do positivismo e até mesmo na recepção do
evolucionismo. Demonstrações estas acabam por tornar irrelevantes as investidas dos
colonizados que se esforçam para negar, proibir ou menosprezar a filosofia brasileira. Em
termos da filosofia brasileira do direito, a recepção de Nicolai Hartmann foi razoavelmente
calorosa: desde Miguel Reale a João Maurício Adeodato vemos a influência do pensamento
estratificado e da valorização do ser espiritual (i.e., “sociocultural”) como área legítima de
pesquisa em Teoria do Direito, particularmente nas subáreas de ética jurídica, teoria dos
princípios e sociologia do direito.

No entanto, sua difusão intelectual continua ainda bastante restrita. Talvez,


o caráter que muitos julguem paradoxal de seus escritos pode ser uma das causas. Por
exemplo, no Direito, geralmente é apropriado por pensadores de vertente conservadora;
enquanto nas Ciências Sociais, geralmente é apresentado ao lado de György Lukács e de
outros associados à Teoria Crítica da chamada Escola de Frankfurt. Leitor exímio de Platão
e Próculo, Hartmann também é influenciado por Nietzsche. Contra o relativismo histórico-
cultural, defendia a universalidade dos valores – embora deixasse claro que estado, povo,
raça ou partido algum pudesse monopolizar o acesso a eles. Tais aparentes paradoxos de
influências acabam por tornar ainda mais complicado o acesso à sua filosofia, geralmente
sendo reduzida a um movimento ou a outro. Por que não, nos perguntamos, pensar
Hartmann em conexão com a própria teoria que ele queria desenvolver, o autointitulado
Realismo Crítico? Antes de adentrarmos neste tópico específico, façamos uma breve
aclimatação biobibliográfica com um dos mais fascinantes autores do século XX.

§2.1 Vida e Obra: Origens

Embora praticamente esquecido hoje, Hartmann teve uma interessante trajetória


de desafios, disputas e problemas intelectuais que lhe renderam grande fama ainda em
vida. De um estudante de medicina vindo das margens do mundo germânico ao primeiro
presidente da Associação Filosófica Alemã no pós-guerra, passou por reviravoltas
intrigantes em sua carreira num período muito conturbado para a Alemanha2.

Paul Nicolai Hartmann nasce em Riga em 1882. Embora hoje a cidade seja na
Letônia, a região histórica chamada Livônia era uma das províncias das Terras Marianas,
uma região dos vários estados de cruzados alemães e escandinavos estabelecidos ao longo

2 As referências biobibliográficas sobre Hartmann estão espalhadas por várias obras, especialmente nas de
Keith Peterson e Roberto Poli. Todas estão elencadas na seção “Obras sobre Hartmann” que fazem
introduções à vida e obra do autor.

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Ensaio Ensaio Introdutório à filosofia de Nicolai Hartmann

dos séculos XII ao XIII no Mar Báltico3. Estas Terras serão particionadas em diversos
ducados, divididos entre lituanos, letões, poloneses, suecos e russos ao longo da história.
No entanto, as colônias de populações alemãs vão permanecer até o século XX, quando são
expulsas pelos locais em decorrência da derrota dos nazistas.

Durante alguns anos, Hartmann faz faculdade de medicina na Universidade de


Yuryev, situada hoje em Tartu (Estônia). Logo, prefere dedicar-se à filosofia e à filologia
grega clássica na Universidade Imperial de São Petersburgo. Em 1905, aparentemente
abraça o neokantismo de Marburgo, especialmente encabeçado por seus velhos mestres,
Hermann Cohen (1842-1918) e Paul Natorp (1854-1924). Ambos focavam na Crítica da
Razão Pura, particularmente na Lógica Transcendental, para dar um fundamento próprio
ao edifício kantiano sem precisar se enveredar pelas vias especulativas do idealismo
alemão. Esta postura “não-especulativa” vai ser premente por toda a obra de Hartmann.
Isso não significa uma proibição da especulação e da metafísica, mas sim uma tentativa de
manter certo refreamento para que a razão não extrapolasse exuberantemente os limites
do entendimento. Esta é a principal herança crítica dos (neo)kantianos para o realismo
crítico que Hartmann vai desenvolver ao longo de sua vida.

Curiosamente, tanto Cohen quanto Natorp eram entusiastas e especialistas em


Platão. De forma grosseira, podemos dizer que eles suplementavam o que havia de certa
necessidade de especulativo e de metafísico em Kant com lições platônicas. Um bom
exemplo é a recuperação do método hipotético que Platão apresenta no diálogo Mênon,
recuperação promovida por Cohen em seu Lógica do Conhecimento Puro (1902). Vindo de
uma formação filosófica e clássica, este interesse em cruzar lições críticas de Kant com as
filosofias platônicas são evidentes nas três primeiras grandes obras de Hartmann: O
Problema do Ser na Filosofia Grega antes de Platão (1907, sua tese de doutoramento);
Lógica do Ser em Platão (1909); e Elementos Filosóficos da Matemática de Próculo Diádoco
(também 1909, sua tese de habilitação).

§2.2 Vida e Obra: Fase de Marburgo

Depois da Primeira Guerra, na qual serviu como agente de inteligência e intérprete,


Hartmann começa sua carreira de professor universitário na Universidade de Marburgo.
Nesta época, a proximidade de Natorp com os primeiros fenomenólogos do século XX,

3 Embora não existam como uma nação, país ou região alemã independente nos dias de hoje, podemos citar
alguns outros Balto-Germânicos históricos notáveis, tais como o famoso biólogo Jakob von Uexküll, fundador
da biossemiótica; a família Struve, com pelo menos sete astrônomos importantes; Karl Ernst von Baer,
fundador da embriologia; Wilhelm Ostwald, fundador da físico-química; George Cantor, fundador da Teoria
dos Conjuntos; além de ninguém menos que Immanuel Kant.
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particularmente com Husserl e Heidegger, deixou Hartmann às portas da fenomenologia.


Além de Platão e Kant, Husserl se tornará uma de suas maiores inspirações, jamais
abandonando o método fenomenológico como ponto de partida para o realismo crítico –
ao menos, uma fenomenologia descritiva (cf. a §3 abaixo). Este heterodoxo conjunto de
influências vai culminar no seu primeiro livro autoral de filosofia que lhe assegura não
apenas a admiração de Husserl neste período, mas também um ponto de apoio firme para
o restante de sua carreira: Fundamentos de uma Metafísica do Conhecimento, lançado em
1921. No ano seguinte, até 1925, assume a cadeira de Professor Titular deixada pelo velho
Natorp que havia se aposentado.

No entanto, a recepção do Fundamentos não foi agradável para além de


Husserl e alguns admiradores. Diversas críticas proliferaram na época, quase todas
recaindo em dois grupos: aqueles que exigiam exaustivas provas de cada argumento
levantado no artigo – o que não seria possível em apenas um único texto; e aqueles que
simplesmente não entenderam o argumento inovador e exigiam a continuidade de erros e
exageros filosóficos comuns da época. O leitor do artigo que traduzimos neste volume da
Revista Anãnsi, o “Como é possível uma Ontologia Crítica?” poderá sentir que, em 1923,
Hartmann estava irritado por estas críticas que demandavam mais do que era possível ou
que apenas repetiam erros. O artigo traduzido explora a origem dos onze principais mal-
entendidos sobre sua filosofia, além de dividir tarefas para sua carreira filosófica ainda
porvir. Nas notas de tradução, observamos e indicamos estes momentos para que o público
consiga se localizar para onde a discussão irá. Logo em seguida, começa a produzir os dois
volumes de sua obra A Filosofia do Idealismo Alemão, o primeiro publicado ainda em 1923,
sobre a recepção das obras de Kant na Alemanha (nomes como Reinhold, Schulze e Bardilli)
e sobre a filosofia de Johann Gottlieb Fichte, Friedrich Schelling e dos românticos alemães
como Hölderlin e Novalis.

A carreira em Marburgo foi bastante tumultuada por críticos – mas nenhum


foi mais importante como rival filosófico de Hartmann do que Martin Heidegger. Talvez
incomodado pela recepção calorosa do mestre Husserl, Heidegger embarca, nos anos 20,
numa série de polêmicas contra a metafísica de Hartmann, curiosamente, sem menciona-
lo diretamente quase nunca. Ao contrário de Heidegger, que buscava aprisionar o que há-
aí (Dasein) numa metafísica antropocêntrica da intersubjetividade humana, Hartmann
buscava recuperar certo sentido de Ser no qual o humano, o valor da coragem, uma obra
de arte, uma lei físico-química e um leão podem compartilhar, sem a necessidade de
centrar-se no que o humano restritivamente pensa ser.

Entre os alemães, apenas Gottfried Leibniz e Christian Wolff haviam percebido esta
lição grega de que o Ser não tinha que ter nada a ver com o que o humano diz, acha que é,
tenta impor na existência. Natureza, humanos e suas criações todas são – e não havia

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motivos para não ser assim antes do antropocentrismo moderno como tese de política
metafilosófica. Hartmann inverte a relação: a epistemologia, com suas categorias
cognitivas, são parte da ontologia – assim, numa metafísica do conhecimento (tal como
defendido na obra de 1921), a ontologia jamais pode caber na epistemologia. O excesso, a
complexidade, o transobjetivo, todos são tão constituintes da realidade quanto o restrito
acesso humano a ela – e este acesso, portanto, de forma alguma pode ser pensado como
gabarito, como único, como totalizador daquilo que é, ou como limite do que há.

Incidentalmente, o velho Husserl também percebeu esta redução do Dasein ao


humano nas obras de seu ex-discípulo Heidegger, caracterizando depreciativamente o Ser
e Tempo como um “tratado de antropologia”. Este e outros incidentes subsequentes vão
levando à progressiva separação e até à hostilidade entre ambos, que culminará com
Heidegger, nomeado reitor da Universidade de Freiburg pelo próprio Adolf Hitler em
reconhecimento à sua contribuição crucial para a ideologia nazista, perseguindo
ativamente e expulsando Husserl, de ascendência judaica4. Destruindo ou colocando em
risco eminente muitos escritos de seu antigo mestre, vários deles teriam sido perdidos se
não fosse pela arriscada preservação do padre franciscano Herman van Breda, que
contrabandeou os escritos de Husserl para a Bélgica a despeito dos censores nazistas.

A relação entre reduzir o que há na realidade (Dasein em Leibniz-Wolff) ao que o


humano (Dasein em Heidegger) acha que é pode soar inofensiva à primeira vista. No
entanto, como Hartmann vai responder em 1935 no primeiro volume da Ontologia, esta é
uma falsificação da questão do Ser. A exagerada equação entre “Ser = ser humano”, pedra
fundamental de quaisquer antropocentrismos ou antropomorfismos, precisa ser
abandonada. Não porque o humano não “é”, mas porque o que “é”, não necessariamente é
humano, preso ao sentido humano, limitado ao que o humano diz, tentando vir a ser ou
voltar a ser humano, etc. Se seguíssemos por esta linha, tal como se vê no §9 do Ser e Tempo,
o mundo seria “em cada caso, meu” – e a verdade seria “em cada caso, minha”. Contra tal
atitude, Hartmann escreve:

A real falácia desta abordagem é que ser e o entendimento do ser são


demasiadamente misturados – ser e dadidade do ser são virtualmente
fundidos. É por isso que todas as distinções subsequentes que resultam da
análise ‘existencial’ são essencialmente aspectos de dadidade, e o todo
desta análise constitui uma análise da dadidade. No entanto, não faríamos
objeção a isso se, em cada estágio, o dado como tal fosse distinguido de seu
modo de dadidade e, então, ao menos retroativamente, a questão sobre o

4 A problemática relação entre Husserl e seu ex-aluno Heidegger é objeto de muita controvérsia. As
informações aqui podem ser encontradas no compilado de palestras, artigos e correspondências organizado
por Thomas Sheehan e Richard E. Palmer pela Kluwer Academic Publishers. O compilado é intitulado
Psychological and Transcendental Phenomenology and the Confrontation with Heidegger (1927-1931).
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ser seria retomada. No entanto, é exatamente isso que está faltando. Os


modos de dadidade são apresentados como modalidades ontológicas. 5

Em outras palavras, a abolição da distinção entre ontologia e epistemologia,


privilegiando o suposto primado da epistemologia por ser o conjunto de categorias da
intersubjetividade humana, é um dos maiores erros da história da filosofia. Perpetrado
pelo idealismo alemão, ele penetrou em quase todas as escolas subsequentes de filosofia,
mesmo as anti-idealistas: na equalização, a epistemologia é tomada como o que há no
mundo, sendo o restante da ontologia reduzida a algo irracional, tolo, supérfluo ou
perigoso, algo a ser controlado pela epistemologia política dos modernos. Quem decide
qual tipo de humano é o portador genuíno da chave misteriosa que dá acesso ao que há?

Reduzir a filosofia ao humano, por mais bonito que soe para um admirador do
humanismo renascentista, é reduzir a filosofia a este ou àquele tipo de humano. A raça
superior, a etnia vitoriosa, o império mais poderoso, o gênero mais dominador, o partido
mais romantizado – seja qual for a desculpa, cria-se a legitimidade autoevidente e
fraudulenta de que há aqueles que dominam as condições de dadidade do real, ativamente
afastando, menosprezando ou até mesmo destruindo pensamentos que não se adequam a
ele. Isso acontece em ambos os lados, seja para dominar do jeito previamente acordado,
seja para criticar a dominação na única tonalidade disponível. Transformam o outro, os que
estão “fora” do acordo de dominação (ou dos únicos critérios da crítica) em supersticiosos,
ultrapassados, pré-modernos, bons selvagens e outros a serem controlados – ou, até
mesmo, fisicamente perseguidos e eliminados. A conexão com os regimes totalitários do
século XX, mas também com formas de conversão e de colonização, parece ter se tornado
mais evidente.

Ademais, achar que ontologia é uma busca pelo “sentido do Ser” acaba por
gerar um monopólio da produção de sentido6. Hartmann acredita que uma investigação
meramente linguística do Ser não seria um bom caminho, talvez prenunciando que, caso a
filosofia seguisse por um tal “giro linguístico”, ficaríamos regionalizados no sentido do
sentido do sentido, infinitamente presos na incompetência para com o mundo. Ao
contrário, Hartmann sugere que pensemos não no sentido do ser, mas no ser do sentido –
movimento ressonante para com aquele que vê o humano como um Dasein entre outros

5 Hartmann, 1965, p. 40-1. Tradução nossa do trecho: “Die eigentliche Verfehlung im Ansatz dürfte überhaupt

darin liegen, daß Sein und Seinsverstehen einander viel zu sehr genähert, Sein und Seinsgegebenheit nahezu
verwechselt sind. Wie denn alle weiteren Bestimmungen, die sich in dieser „Existenzial-" Analyse ergeben,
im wesentlichen Gegebenheitsmomente sind, und die ganze Analyse sich als Gegebenheitsanalyse darstellt.
Dagegen wäre freilich, nichts einzuwenden, wenn bei jedem Schritt das Gegebene als solches wiederum vom
Gegebenheitsmodus unterschieden und so wenigstens nachträglich die Seinsfrage wiedergewonnen würde.
Aber eben daran fehlt es. Die Modi der Gegebenheit werden für Seinsmodalitäten ausgegeben”.
6 Tenho trabalhado esta como uma das principais críticas metafilosóficas que podemos extrair tanto de

Hartmann quanto da crítica ao correlacionismo a partir de Quentin Meillassoux. Cf. Meillassoux, 2008,
Meillassoux, 2020 e Maciel, 2017. Para acompanhar a publicação futura, cf. Maciel (2021).

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vários Dasein. Neste caso, já é uma pergunta mais ontológica e realista, no sentido de que
saber se algo é ou não tal como descreve o sentido, já é uma investigação do ente – embora
ainda não seja a investigação mais geral sobre o ser enquanto ser.

Mesmo nesta possível abordagem, o sentido ainda continua sendo o sentido para
alguém, por exemplo, para um Dasein humano. O “sentido em si” não faz sentido: ele só faz
sentido para alguém. Assim sendo, a ontologia, como estudo do ser enquanto ser, não deve
ter compromisso ou obrigação nenhuma de sempre fazer sentido pra mim ou para você. “O
ser das entidades é indiferente a tudo que o ser possa ser ‘para alguém’”7. Uma forma
popular de dizer isso pode ser encontrada numa conhecida frase do famoso astrofísico Neil
DeGrasse Tyson: “o universo não está sob nenhuma obrigação de fazer sentido para você”.
O trabalho da intuição não pode ser descartado como irracional ou inútil: muito da
pesquisa ontológica não estará formatado nos confortos intelectuais ou políticos desta ou
daquela escola de pensamento.

§2.3 Vida e Obra: Fase em Colônia

A tensão em Marburgo gerou incômodo nos círculos tradicionais. Nem mesmo


Husserl, agora totalmente embarcado num idealismo, parecia mais positivamente pré-
disposto a Hartmann, um dos incomodados pelo “giro transcendental”. Crescentes
desentendimentos levaram Hartmann a se mudar para a cidade de Colônia. Lá, encontrará
Max Scheler (1874-1928), com quem vai estabelecer uma profunda amizade e admiração
por toda a vida de Hartmann, a despeito da morte prematura de Scheler. Suas
preocupações com uma ética material de valores centrada na personalidade do agente
ético vão influenciar as obras de Hartmann decididamente. Assim como ele, Scheler
também via a fenomenologia como um tipo de método filosófico em geral, sem um
obrigatório compromisso com o idealismo husserliano tardio. Ademais, Scheler estava
mais interessado na ética e na filosofia da religião – e menos na fenomenologia “pura”.

Este fortuito e importante encontro ajudará a endereçar uma classe de problemas


que os críticos de Hartmann nesta época levantavam, com razão: se o ser enquanto ser é
indiferente e se há seres humanos que buscam disputar sentido, parece haver uma
bifurcação entre natureza e cultura, para usar os termos do filósofo britânico Alfred North
Whitehead. Vindo da física e da matemática, Whitehead corretamente observou8 que os
modernos acabaram por insistir que há um “abismo intransponível” entre a res cogitans e

7 Hartmann, 1965, p. 57. Tradução nossa do trecho: “Das Sein des Seienden steht indifferent zu allem, was
das Seiende „für jemand" sein könnte“. A influência em seu aluno Emil Cioran parece ser um pouco evidente
a partir destas considerações.
8 Cf. o capítulo 2 de Whitehead (1994).

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a res extensa, o sujeito e o objeto, o reino da liberdade espiritual e o reino da natureza


mecânica. Como fica a ética, a moral, o direito e outras disciplinas da tal “razão prática” no
meio disso tudo?

Há duas formas de pensar a ética neste cenário moderno. A primeira, notadamente


a partir de Kant, está em capitalizar na bifurcação entre liberdade e natureza. Esta
bifurcação progressivamente vai co-parasitar outra disformidade onipresente do
raciocínio moderno, o da suposta abolição entre sujeito e objeto a partir do idealismo
alemão. Se esta tese estiver correta, dada a centralização na metafísica da
intersubjetividade humana9, haveria um suposto “primado da razão prática”, onde se reduz
o que é ao que o humano (ou melhor, ao que este partido, esta ideologia, esta classe, este
gênero etc. de humanos) diz que deva ser a razão prática. Desta maneira, se subsume a
realidade inteira aos ditames práticos de certos humanos – sempre disfarçados com algum
universalismo regado de boas-vontades e/ou de truculências autolegitimadas pela
segurança de um grupo. No entanto, o outro lado desta mesma moeda é subsumir o prático
ao teórico, o que vemos geralmente em doutrinas evolucionistas, cientificistas ou
mecanicistas que reduzem o humano a um mero conjunto de células e mecanismos
predeterminados.

A segunda forma é mais sofisticada. Poderíamos chama-la de realismo complexo10.


Significa reconhecer que realidade do humano, do sentido, da ética, do direito, da ciência
física, das ficções artísticas, dos hábitos e dos sistemas sociais são tipos de realidades
diferentes que se sobrepõem em pontos específicos, mas não são redutíveis umas às outras.
Neste sentido, pensar a interação entre, por exemplo, categorias dos seres orgânicos e
categorias dos seres espirituais (socioculturais) não é uma relação direta, simples, gratuita,
evidente, predeterminada.

Hartmann vai solucionar esta contenda com um realismo verdadeiramente


complexo, pensando duas esferas do Ser, o Ideal e o Real. Na Esfera Ideal, notadamente sem
duração, temos a matemática, as leis da lógica, as essências fenomenológicas e,
curiosamente, os valores éticos. Na Esfera Real, onde há duração, há uma estratificação da
realidade entre o físico, o orgânico, o psíquico e o espiritual. A descrição de região
ontológica, bem como as relações inter-regionais, modais e categorias, são umas das

9 Termo do filósofo francês Quentin Meillassoux (2008, 2020) que o emprega para classificar filosofias que
são fundadas neste dogma filosófico. Para informações adicionais, cf. Maciel (2017).
10 Em Maciel (2017), propus esta alcunha como um termo guarda-chuva para aglomerar diversas filosofias

que não estão preocupadas em se fundarem num primado da prática, no da primado da teoria, ou em
antropocentrismos variados. Além de Hartmann e Whitehead, podemos enumerar alguns outros “realistas
complexos” como os gregos clássicos, Leibniz, Schelling, Henri Bergson, Charles S. Peirce, William James,
Niklas Luhmann, Bruno Latour e a maior parte dos realistas especulativos contemporâneos, além de algumas
das filosofias globais que não se comprometem com os aqui mencionados cânones da modernidade (filosofias
africanas, ameríndias, orientais, decoloniais e afins).

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principais tarefas do realismo crítico de Hartmann – e, na verdade, de todo realismo


complexo em geral. Todo o restante de sua obra é uma tentativa de preencher esta
gigantesca tarefa – levada a cabo especialmente pela Análise Categorial.

Uma das primeiras aplicações deste sofisticado corpo teórico aparece nos três
volumes da Ética, publicados em 1926, sob profunda influência e admiração com as obras
de Scheler e até mesmo de Nietzsche, mas já desenvolvidas sob este aspecto metafilosófico
crucial do complexo realismo crítico de Hartmann. Nos anos restantes em Colônia,
Hartmann vai ganhar grande notoriedade filosófica nacional em concorrência com outros
grandes nomes da época, especialmente Martin Heidegger e Ernst Cassirer. Ainda nestes
anos, completa o seu projeto do A Filosofia do Idealismo Alemão em 1929, publicando o
segundo volume sobre Hegel.

§2.4 Vida e Obra: Hartmann em Berlim

Filósofo então reconhecido por sua originalidade e detalhamento quase exaustivo


de todos os tópicos que lidava, Hartmann é convidado a ser Professor Titular na
Universidade de Berlim em 1931, onde vai lecionar até 1945. O público pode imaginar que
vai ser um período extremamente conturbado pelo nazismo e pela Segunda Guerra – e o
leitor estaria certo ao presumir isso. Curiosamente, nas obras de Hartmann, ele mantém
sua sobriedade filosófica e seu exaustivo nível de detalhamento o suficiente para deixar
clara sua posição no seu tempo, ainda que não expressada de forma direta pela pressão
imensa da ditadura nazista.

Todas as futuras grandes (em importância e em volume) obras filosóficas de


Hartmann são deste período, embora algumas tenham sido publicadas apenas
postumamente. Ao final deste ensaio, ofereço uma lista das obras A maior empreitada
deste período é sua monumental Ontologia, planejada em quatro volumes. Três são
lançados nesta época: Fundamentos da Ontologia (1935), Possibilidade e Atualidade (1938)
e o imenso A Fábrica do Mundo Real (1940). Em 1943 lança o pequeno Novos Caminhos da
Ontologia, que funciona como uma introdução geral ao seu pensamento complexo.

Por todas as suas obras, deixa firme e bem-fundamentada sua rejeição à filosofia
nazista, por exemplo, ao separar o estrato biológico de qualquer fundamentação espiritual,
o que nega haver uma suposta “biologia judaica” como argumento filosoficamente
fundamentado para o extermínio mediado pelo Estado. Negava, também, a teleologia da
história, presente em ideologias inspiradas em algumas teologias e no idealismo alemão
que acreditam que há algo como um “propósito da história”, por exemplo, a defesa do
Partido Nacional-Socialista ou do Partido Comunista como historicamente inevitáveis ou

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pré-programados – ou toadas similares. Rejeitava que a categoria do espaço (embora


presente no estrato físico e no orgânico) adentrasse o estrato espiritual, assim, afastando
a tese nazista do “Espaço Vital” para justificar a expansão territorial. Rejeitava
veementemente a redução da filosofia ao humano, particularmente ao “humano ariano”,
ou ao que quer que isso queira dizer, sempre enfatizando que ontologia não pode ser
reduzida a antropologia nenhuma.

Mais ainda, Hartmann rejeitava não apenas que a ontologia deva ser confundida
com “busca pelo sentido do Ser”, mas também rejeitava que este sentido devesse ser o “ser-
para-a-morte”. Vejamos como, mais uma vez, uma aparente tese filosófica inofensiva tem
implicações que levaram Hitler a corroborar: se o sentido do ser (humano) é contemplar o
ser-para-a-morte, a socialização desta contemplação é a teleologia da política. Mais ainda,
é o que um Estado, para ser um bom Estado, deve fazer. Se o nazismo teve sucesso em
alguma coisa foi em socializar a contemplação da morte, seja pela constante ameaça de
povos que julgavam a todo momento estarem prontos para invadir e matar os alemães
“puros”, seja no espalhamento do genocídio como política pública do Estado e de táticas de
guerra destinadas à eliminação maciça dos civis. Esta tática visava a eliminação de
cientistas, filósofos e lideranças que pudessem contribuir com o país que estava sendo
atacado. Embora todos os países na Segunda Guerra empregassem tal tática de
assassinatos em massa contra civis, apenas os nazistas celebraram a tática como filosofia
de guerra, a entronização do ser-para-a-morte num pedestal técnico e prático
metafisicamente fundamentado.

Por ativamente rejeitar todas as teses filosóficas nazistas ou nazi-friendly,


Hartmann era constantemente alvo de perseguições, investigações disciplinares-
administrativas e até mesmo atentados terroristas contra sua vida. Peterson relata11 que a
mais conhecida tentativa de assassinato contra Hartmann veio da sua pública e reiterada
rejeição de começar seus cursos com o mandatório “Heil, Hitler”, tornado obrigatório em
todas as universidades alemãs à medida em que o nazismo se tornava, além de uma
horrorosa ideologia desde o começo, uma caricatura de si mesmo devido às repetidas
derrotas.

Em meio a bombardeios e a um estresse existencial imensurável, Hartmann


mantém seu estilo sóbrio e impressionantemente detalhista. Nas centenas, ou talvez
milhares, de páginas escritas neste período, calmamente discute os problemas da filosofia,
afasta-se das ideologias fruto do idealismo (de todo espectro político radical dos anos 30 e

11Cf. o ensaio introdutório que Peterson fez na sua tradução para o inglês do primeiro volume da Ontologia
(Peterson in. Hartmann, 2019).

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40, seja o de Berlim, seja o de Moscou), dedicando-se à vida acadêmica a despeito de tudo,
talvez como uma forma de até manter o rigor e a sanidade em dia.

§2.5 Vida e Obra: Anos Finais e Legado

Dos escombros da Segunda Guerra, a figura monumental de Hartmann se erguia


como um dos baluartes alemães que resistiram e sobreviveram aos horrores que eles
mesmos infligiram na humanidade. Hartmann não apenas não se exilou ou fugiu, mas
manteve-se firme em sua rejeição ao regime nazista fundamentada numa sóbria e
detalhista filosofia complexa. Por sua imensa resiliência e sofisticação de sua obra, foi eleito
o primeiro presidente da Associação Filosófica Alemã no pós-guerra.

Talvez exausto da guerra, decide mudar-se para Göttingen, onde será


professor até o final de sua vida. Aqui, planejava o lançamento de três novas imensas obras,
publicando apenas a primeira, o Filosofia da Natureza (1950), o quarto volume da
Ontologia. Estavam programados para sair as mais de 600 páginas do Estética e o próximo
grande trabalho, o Pensamento Teleológico, estava já com cerca de duzentas páginas
escritas. Infelizmente, teve pouco tempo para avançar seu pensamento, morrendo em
consequência de um derrame em 1950.

Seu legado foi quase imediatamente soterrado. Suas lições vividas na pele
contra o aprisionamento na metafísica da intersubjetividade humana foram abafadas e,
finalmente, esquecidas. Alunos como Hans-Georg Gadamer e Emil Cioran vão dar a toada
da filosofia pós-Hartmann como justamente a ênfase na metafísica da intersubjetividade
humana: tudo é a linguagem, tudo é a existência humana, tudo é interpretação. Em
Frankfurt, tudo vira luta de classes, inconsciente, indústria cultural. A filosofia é proibida
de falar do que não seja intersubjetivo – agora, o que isso quer dizer, estava para jogo.

A filosofia analítica, a teoria crítica, as ondas do marxismo e da psicanálise, os


existencialismos cristãos ou seculares, talvez ainda sem se aperceberem, já estavam todos
funcionando a pleno vapor na locomotiva que já estava, desde 1950, apontada para o “tudo
pode” pós-moderno, que levou a filosofia ao aceleracionismo, ao negacionismo da ciência,
ao subjetivismo de Facebook. A reincidência pós-guerra do velho Heidegger não é surpresa
neste contexto, onde retornou o adágio de que a verdade é, “em cada caso, minha”. Markus
Gabriel diagnosticou este cenário da filosofia da seguinte maneira:

É loucura, mas é verdade: habituamo-nos a ver o mundo (ou pelo menos


uma parte surpreendentemente vasta dele) como uma construção nossa,
espécie de ‘alucinação coletiva’ transcendental mediada pela história do
desenvolvimento cultural da humanidade. (...). Além de tudo, ela tem a
vantagem psicológica de bajular nosso narcisismo. (Gabriel, 2016, p. 21).

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No entanto, nem tudo está perdido. O filósofo/antropólogo brasileiro, Eduardo


Viveiros de Castro, parece ter também intuído este estado de coisas narcisista dos
modernos. Jocosamente, em homenagem ao Anti-Édipo de Deleuze e Guattari, propôs
escrever o Anti-Narciso, mas acaba se contentando com o Metafísicas Canibais que se
propõe a ser um “exercício de descolonização permanente do pensamento e propor um
outro modo de criação de conceitos” (Viveiros, 2015, p. 32). Se por descolonização
pudermos entender, até mesmo a partir de dentro da chamada tradição
moderna/ocidental, este exercício de repensar, reformar, abandonar, adotar, reformular a
metafísica para produzir complexidades novas, Hartmann certamente é um filósofo com
renascimento marcado.

O florescimento da metafísica, o renascimento do realismo nas filosofias do século


XXI e a eminência das questões ecológicas reavivaram o interesse na realidade, no
concreto, no não-humano, no estranho, no “para-além” do humano que não é, de forma
alguma, limitado a este Partido ou àquele jogo de linguagem. Nomes como Bruno Latour,
Quentin Meillassoux, Graham Harman, Donna Haraway e Isabelle Stengers têm encabeçado
este retorno a um realismo complexo em suas diversas variantes, por assim dizer. Grandes
nomes como Leibniz, Schelling e Whitehead já têm sido ativamente procurados por nossa
contemporaneidade em busca de direcionamentos e importantes lições. Com uma
metafilosofia sofisticada, um complexo estudo da idealidade e da realidade, e uma
poderosa e detalhista disciplina como a Análise Categorial, acreditamos que a hora de
revisitarmos Nicolai Hartmann não poderia ser melhor.

§3 Algumas Linhas sobre a Filosofia de Hartmann


Não apenas uma biografia, mas também uma breve introdução à filosofia de
Hartmann pode ajudar a despertar interesse em mais pesquisadores. Para não nos
delongarmos tanto, vamos fazer uma seção sobre o método do realismo crítico, sobre a
divisão da investigação metafísica, uma breve abordagem das esferas e estratos do Ser e,
finalmente, um panorama sobre a Teoria das Categorias.

§3.1 Método do Realismo Crítico

Como toda disciplina que procura obter certa autonomia acadêmica, Hartmann
buscou pensar a Análise Categorial, a peça-chave de seu realismo crítico, como uma
investigação rigorosa com método próprio. Todavia, para o realismo crítico como um todo,
ele parece apresentar uma sequência de métodos – sequência esta que, em si, é o próprio
“método” de sua filosofia. O que queremos dizer com isso?

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Hegel já dizia, em seu monumental Ciência da Lógica, que o raciocínio não pode ser
particionado em caixinhas estanques e completamente bem-definidas. Embora ele “divida”
a sua Lógica-Real em três (o Formal, o Dialético e o Especulativo), recorrentemente ele nos
lembra de que são três “momentos” – e não três “partes”, como se fossem absolutamente
independentes. Em seus estudos monográficos sobre o idealismo alemão, Hartmann
parece ter adotado esta ideia, mantendo a noção de “três momentos” com uma sutil, porém
importante, diferença em relação a Hegel: não há, aqui, a crença de que a Razão impulsiona
os momentos de forma natural, automática ou “garantida”. O Ser, para Hartmann, não é
apenas racional, ordenado e lógico: precisa incorporar o irracional, o desapercebido e o
impossível, inclusive coisas que jamais serão conhecidas a despeito de qualquer suposto
avanço da Razão. Neste sentido, a passagem entre os três “momentos” não é garantida,
sequer é automática: precisa ser custosamente trabalhada a despeito da sempre-presente
chance de que a investigação possa cair em um beco sem saída para a razão – chance esta
que é perfeitamente natural, sem expectativas de absoluto.

A primeira etapa de seu método é um legado direto de Edmund Husserl. A porta de


entrada para qualquer ontologia crítica deve passar por um cuidadoso exame do que é
dado na realidade pelos concretos. O sutil intercurso de ações do que percebe, do que é
percebido e do como isso se opera é um dos motes da fenomenologia de matriz husserliana.
Para Hartmann, a beleza desta fenomenologia é o cuidado com a descrição da dadidade dos
fenômenos. O que aparece não necessariamente é o que queríamos ver, o que aparece não
é obrigado a se conformar com esta ou aquela tese ou preconceito de quem percebe, o que
aparece no que é dado nem sempre é “planejado” de ser dado assim ou de outra forma.
Assim, como nota Spiegelberg12, Hartmann, que jamais adotou para si a alcunha de
fenomenólogo, se aproxima mais do Husserl do Investigações Lógicas e dos subsequentes
grupos de fenomenólogos realistas.

A conexão entre fenomenologia e realismo não é tão evidente para o público


brasileiro. Geralmente focamos na fase idealista-transcendental de Husserl, o que acaba
tornando-o como se fosse um mero ponto de paragem em direção a filósofos considerados
mais relevantes para os interesses da metafísica da intersubjetividade humana, tais como
Heidegger, Sartre, Levinas e outros. Dividimos um “primeiro Husserl” do Investigações
Lógicas, próximo das filosofias da matemática e da ciência, e um “segundo Husserl”, que
seria “o que interessa”. Claro, este é um relatório grosseiro do que é feito, mas não por isso
está totalmente incorreto. O cuidado husserliano para com a realidade, que ele jamais
abandonou, permanece nas obras tardias, embora o enfoque cada vez mais mergulhado
dentro do sujeito incomodasse aqueles que vão, inclusive, se dissociar dele e de seus

12 Cf. Spiegelberg, 1994, p. 306 e ss.


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discípulos em Freiburg e fundar outros círculos e escolas de pesquisa, tais como os Círculos
de Munique e de Göttingen13

Hartmann via a ideia do realismo na fenomenologia descritiva com muito esmero


e atenção. Em vias da conclusão do primeiro volume da Ontologia, Hartmann abraça o
método husserliano da Wesensanschauung, a “visão-de-essências”14. Dissemos en passant
que o Ser Ideal, em Hartmann, é composto de lógica, matemática, essências
fenomenológicas e dos valores. Cada um é irredutível ao outro, cada um é uma classe de
objetos com leis próprias. Assim sendo, já há uma distinção em relação a Husserl e a outros
racionalistas clássicos, como Descartes, Spinoza e Leibniz: Hartmann rejeita que essências
sejam matemáticas ou lógicas. Exatamente por isso, o velho sonho da mathesis universalis,
um reino da exatidão concebível pela matemática, embora especulativamente imaginável,
não é ontológico-epistemologicamente acessível, pensável ou construtível.

Há outra diferença importante. Enquanto para estes filósofos, e até mesmo para o
platonismo, para a escolástica e até mesmo para os idealistas, as “ideias” ou “essências” são
as coisas mais relevantes, mais totalizantes e mais perfeitas. Todavia, Hartmann inverte o
raciocínio. O ideal é a parte mais baixa, mais estrutural, mais necessária – embora não seja
a mais relevante para a concretude do real. A ideia é que as essências, não necessariamente
matemáticas, são dependentes-do-real – então uma ciência que empreenda ser visão-de-
essências (Wesensanschauung) pode ser particularmente bastante útil para a prática
científica. Este método ajuda na concepção das evidências, o que é necessário para apoiar,
provar, refutar, comparar e modificar quaisquer disciplinas rigorosas tais como a
fenomenologia, a análise categorial e, inclusive, a matemática e as ciências físicas. O rigor
ontológico-gnoseológico de Hartmann não busca confundir as disciplinas, mas, sim,
encontrar uma obstinada atitude universal. Hartmann diz:

Ciência é interconexão, integração e visão sinóptica. Um critério ao menos


relativo de evidência resulta da síntese da intuição estigmática com a
conspectiva – comparável ao critério de cognição do real na síntese de
elementos a priori e a posteriori (Hartmann, 1965, p. 273)15

13 Estes círculos de fenomenólogos romperam com o tipo de pesquisa idealista e transcendental de Husserl
ao longo da década de 1910. Embora todos reconhecessem o valor da fenomenologia realista e descritivista
de Husserl, estavam abertos a mais influências de outros nomes do que tenho chamado de “realismo
complexo”, tais como Henri Bergson, Alexius Meinong, Hermann Lotze, William James, além do velho
professor de Husserl, Franz Brentano. Vários nomes, vários ainda praticamente desconhecidos no Brasil,
estão associados a várias inovações na fenomenologia, tais como Adolf Reinach, Alexander Pfänder, Hedwig
Conrad-Martius, Moritz Geiger, Roman Ingarden e até mesmo a beatificada Edith Stein.
14 Hartmann, 1965, Capítulo 47.
15 Tradução nossa do trecho: “Wissenschaft eben ist Zusammenhang, Einbau, Zusammenschau. In der

Synthese stigmatischer und konspektier Intuition ergibt sich ein wenigstens relatives Kriterium –
vergleichbar dem der Realerkenntnis in der Synthese apriorischer und aposteriorischer Elemente”.

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O que é mais relevante aqui é que este é o critério de rigor, no caso, das ciências.
Estas não funcionam devido a uma “garantia infalível absoluta” da Verdade – ou o que quer
que os racionalistas (ou os detratores da ciência) propaguem. O trecho citado aponta para
a sistematicidade da ciência, para uma autopoiese do sistema da ciência16 que cria, avalia,
elabora, exclui e estabiliza seus próprios processos, programas e elementos.

A segunda etapa parte da tentativa da razão de “fazer sentido” daquilo que foi
descrito pela etapa fenomenológica anterior. A visão-de-essências pode chegar em dados
que, avaliados racionalmente, são até mesmo contraditórios, impossíveis ou incoerentes.
Tentar entender estes resultados é tarefa do método aporético. Anton Schlittmaier
rastreia este método a Platão, para quem as “aporias não são apenas partes acessórias a
caminho da verdade que não têm relevância no final das contas – elas são partes da verdade
que não obedecem às leis da lógica”17. No entanto, a aplicação mais sistematizada é o
famoso Livro Beta da Metafísica de Aristóteles, onde a sistematização de problemas e a
tentativa de clarificação são mais relevantes do que a tentativa de forçar soluções para
agradar esta ou aquela ideologia, escola, igreja ou movimento filosófico. Aristóteles, e
Hartmann herda isso, não lida com os problemas para tentar resolve-los custe o que custar
– às vezes, os deixar mapeados e tentar lidar com as consequências assim como estão é o
suficiente.

Nisso, Hartmann é um pensador global18 ao preferir e justificar uma atitude


filosófica que não tem compromisso com o progresso absoluto da razão, com a conversão
dos problemas numa solução irracional ou religiosa, ou com o soterramento do problema
com ideologias políticas idealistas ou materialistas. Se o próprio Ser não é harmônico, como
se fora um bom-moço bem-aventurado, a própria realidade está composta de
irracionalidades, antinomias, contradições e complexidades para além da capacidade de
ordenamento19. Isso aponta para o cuidado e a sutileza do rigor filosófico em lidar com as

16 O fraseamento aqui é intencionalmente direcionado para Niklas Luhmann e sua Teoria dos Sistemas, mais
uma teoria que pode imensamente se beneficiar com alianças diplomáticas com o realismo crítico de
Hartmann.
17 Schlittmaier, 2001, p. 34. Tradução nossa de: “Aporias are not only accessory parts on the way to truth that

have no relevance in the end, but they are part of the truth, which no more complies with the laws of logic”.
18 Emprego esta alcunha, inspirada em Latour (Cf. Latour 2013, Maciel, 2017 e Maciel, 2021), para descrever

pensadores que não estão preocupados com o credo da modernidade como ponto de partida obrigatório ou
ponto de chegada inevitável para a razão – também, seja porque antecederam historicamente, seja porque
não têm compromisso algum com seus ditames, tais como filosofias orientais, africanas e ameríndias. O
filósofo francês utilizava a alcunha “não-moderno”, mas a definição ainda era centrada neles. Na última
década ele tem falado em “global”, “terráqueo” ou “terrestre”. Ou seja, o moderno se torna mais um jogador
à mesa: não é nem excluído, nem quem dá as regras.
19 Esta visão que combina razão, complexidade, transinteligível e até coisas científicas e bizarras é uma toada

comum na obra do escritor de horror cósmico Howard Phillips Lovecraft, um dos autores favoritos por entre
os realistas especulativos do século XXI. Escrevendo mais ou menos nas mesmas décadas que Hartmann, a
conexão filosófica entre ambos pode ser bastante curiosa e produtiva.
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coisas, não sendo uma desculpa nem para a adoção do irracionalismo (visto que o racional
também faz parte do real) ou de desistirmos em nome das pseudociências ou da ignorância.

Podemos fazer uma analogia com a medicina. Cuidar do corpo humano, por
exemplo, demanda um imenso cuidado, sutileza, anos ou até décadas de preparação e
treino. Dizer que a diferença entre medicina e inserção de “cristais da cura” em orifícios se
resume a uma “ser ciência” e a outra “ser pseudociência” é subestimar a poderosa
imensidão do preparo, das dezenas de milhares de horas de estudos e de interação com
coisas que não são resumidas ao que o médico quer que seja. O objeto, o corpo, o vírus, o
câncer: todos têm vontades, interesses, direções e constituições próprias que nem sempre
vão se conformar à razão médica. A diferença talvez seja isso: a medicina, assim como
outras disciplinas rigorosas, precisa ter a humildade de lidar com o verdadeiramente
transinteligível, não com o meramente ignorado ou subestimado. Não termos absoluto
domínio racional sobre a evolução dos vírus não significa que a virologia foi abolida,
cancelada ou que deva ser abandonada em nome de resumirmos a saúde pública a
remédios de verminoses e/ou de lúpus. A metafísica funciona de maneira análoga: é o
trânsito entre o que é dado fenomenologicamente e o que pode ser aporeticamente
sistematizado que dá o “progresso da metafísica” (dizemos assim para agradar a ouvidos
modernos) – e não se ela “resolveu” os problemas de uma vez por todas e fim.

Por estes e tantos outros motivos, Hartmann rejeita a dialética moderna,


especialmente a hegeliana, especificamente nestas linhas de achar que sempre haverá uma
solução – mesmo que seja uma solução provisória, seria mais um passo em direção ao
Absoluto do Real-Racional, que ele também rejeita como há pouco vimos. Acerca do
método dialético, Hartmann comenta:

É digno de nota que nem sequer as próprias cabeças da dialética tenham


podido descobrir o segredo de tal procedimento, pois têm e manejam um
método, sem poderem mostrar como o fazem. É manifesto que nem eles
próprios o sabem. É qualquer coisa de análogo ao que sucede com a criação
artística. O criador não “Conhece” a lei segundo a qual cria; mas, não
obstante, cria de acordo com ela. O que intui o criado tampouco o sabe, mas
intui segundo essa lei. Tanto o genial como o congenial seguem cegamente
uma legalidade, infalível, como se se tratasse de sonambulismo.
(Hartmann, 1983, p. 450)

Finalmente, a terceira etapa é a especulativa, teorética, racionalística. Com esta


terceira etapa, aparentemente vemos mais uma herança de Hegel, mas talvez o verdadeiro
inspirador seja o velho Kant. Na Crítica da Razão Pura, Kant diferencia o Entendimento (as
doze categorias, sua Analítica Transcendental, com suas lógicas e problemas próprios) e a
Razão, encarregada de especular, de extrapolar os dados, de tentar encontrar conexões

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onde, ao menos ainda, não haveriam evidências. Hartmann está interessado nesta versão
da especulação kantiana, mas procede de forma ainda mais cautelosa.

A fenomenologia e a aporética não podem ser “contraditas”, no sentido de


abandonas ou ignoradas à vontade dos caprichos do subjetivismo deste indivíduo ou
daquele agrupamento político. Continuando no exemplo da medicina, pensemos em uma
doença que fenomenologicamente seja a “mesma”, com algumas ligeiras diferenças – o que
podemos especular, de forma hartmanniana? Que o Absoluto jogou um raio de Espírito ou
que o vírus sofreu uma mutação? Esta mutação, ainda hipotética, visto que ainda não foi
devida atestada, é o que deve guiar o investigador hartmanniano – e não a presunção de
entidades místicas ou ideológicas “por trás” das coisas.

A especulação em Hartmann guarda poderosas ressonâncias com o que Whitehead


pensava acerca da filosofia especulativa. Whitehead concebia a especulação como uma
conexão complexa entre um lado racional, envolvido na lógica e na coerência, e um lado
empírico, representado na adequação e na adaptabilidade20. Ambos são necessários para
as teorias que Whitehead trabalha, tais como a generalização imaginativa, um sofisticado
esquema categorial e alianças com a ciência moderna e com as cosmologias gregas. Tanto
Hartmann quanto Whitehead têm um rigor metodológico e uma abertura para a metafísica
que são tão complexas e sofisticadas quanto raras no século XX.

§3.2 Divisão da Investigação Metafísica

Como já está evidente, a metafísica é uma área perfeitamente legítima de


investigação para Hartmann. O termo, no entanto, não é um termo originalmente de
Aristóteles. Em vida, funda o Liceu, sua escola de filosofia – que terá como escolarca,
séculos depois de sua morte, o famoso Andrônico de Rodes, no século I a.C., que vai
organizar o material produzido pelo fundador e pelos outros estudiosos da escola. Esta
organização envolveu a confecção de um livro que era, em si, composto de livros menores
e aparentemente desconexos do restante do Corpus Aristotelicum. No entanto, a temática
da realidade, da concretude, da idealidade, das formas, do ato-potência e outras abstrações
parecia fazer com que fosse uma disciplina própria, uma área de investigação em seu
próprio direito. Localizado ao lado da coletânea dos livros da Física, esta nova coletânea
seria a Meta-Física.

Sempre nos deleitamos em lembrar que μετά não significa necessariamente “além”,
no sentido do “reino do além”. Esta palavra comum na língua grega pode significar diversas
preposições ou locuções prepositivas: entre, em comum, ao lado, acima, sequência de

20 Cf. Whitehead, 1978, especialmente o Capítulo 1 da Parte I.


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(lugar, tempo ou colocação/ranquemaento)21. Visto que, na organização, era um livro que


seguia outro livro, entre outros livros, forçar a interpretação de μετά para significar o
“além” – ou o que quer que isso queira dizer – é mais uma das várias desonestidades
intelectuais cometidas contra Aristóteles.

A carga negativa do termo, já nos anos 20 e 30, foi exageradamente superestimada


por diversos pensadores da época até hoje. Rejeitar que a metafísica tenha que ser sobre
um Ser racional, eterno, perfeito e imutável não significa “destruir a metafísica” – da mesma
maneira que rejeitar que o humano seja mistura de terra, fogo, água e ar não seja “destruir
a antropologia”. De forma similar, rejeitar que as coisas existam em espaço newtoniano
absoluto não é “destruir a mecânica clássica”, e assim sucessivamente. A metafísica é uma
disciplina, uma área de estudos, não uma doutrina comprometida com esta religião ou com
aquela ideologia. Não obstante, para fins de “marketing filosófico”, Hartmann concorda que
insistir neste termo em meio a tantos mal-entendidos e detrações difusas pode ser
contraproducente. Então, busca retomar dois termos geralmente tratados comumente
como sinônimos: ontologia e filosofia primeira. A discussão destes termos é objeto da
tradução de Hartmann também publicada na presente Revista Anãnsi, então passaremos
apenas brevemente.

Uma definição recorrente da ontologia é que ela seria o estudo do “ser enquanto
ser”. Hartmann afirma, na seção 2 do texto que traduzimos, que o fundamento da ontologia
aristotélica está na doutrina do hilemorfismo (forma e matéria) e na doutrina do ato-
potência. A partir destas, Aristóteles concebe sua teoria das quatro causas, sua ideia do
motor imóvel e diversas outras concepções que povoam o senso-comum do que
geralmente se entende por metafísica ou ontologia. Não obstante, a necessidade lógica
formal, a conceitualidade e a noção de “destino das coisas” na teleologia aristotélica são
coisas que Hartmann afasta, como vemos no item 3.4 da tradução aqui divulgada.

Assim sendo, Hartmann, talvez ironicamente, quer ser mais aristotélico do que
Aristóteles, preferindo a verdadeira alcunha que o pensador macedônio utilizava: a πρώτη
φιλοσοφία (prima philosophia), uma “filosofia primeira”. Esta filosofia primeira não está
preocupada apenas com os temas que Aristóteles elegeu como os mais importantes.
Ademais, os princípios ontológicos (do ser enquanto ser) não são a única tarefa da prima
philosophia, que deve, também, se preocupar com o dever-ser, com os valores (éticos,
estéticos, pragmáticos etc.). Hartmann, portanto, nomeia sua área de estudos como filosofia
primeira, investigação auxiliada pelo método do realismo crítico (fenomenológico-
aporético-especulativo) que vimos anteriormente, dirigida primariamente pela Teoria das

21 Definições disponíveis no conhecido dicionário clássico de grego antigo Liddell-Scott-Jones.

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Categorias em toda sua tarefa de análise, classificação, mapeamento e de descobrimento e


manuseio das limitações da própria filosofia.

As disciplinas especiais da metafísica tradicionalmente eram, na escola de Leibniz-


Wolff, a teologia racional, a psicologia racional e a cosmologia racional – estas, áreas
particulares na “metafísica geral”. Interesante de ser notado é que Hartmann jamais
transforma a ciência, o direito, as artes ou o quotidiano em “inimigos” filosóficos, mas sim
em áreas, disciplinas, aliados e correligionários. A tarefa da arte não é substituir o
pragmático-quotidiano, a tarefa da filosofia não é se render ou eliminar a ciência – da
mesma forma que a botânica não “refuta” a zoologia, as áreas diferentes de investigação
teorética não têm a obrigação de se refutarem ou de competirem. Na verdade, uma aliança
metafilosófica entre todas elas é o horizonte que Hartmann busca conceber, décadas antes
de o transdisciplinar/multidisciplinar e afins se tornarem o desejável.

§3.3 Esferas do Ser, atos transcendentes e o projeto da Nova Ontologia

Predrag Cicovacki resume22 bem como a pesquisa será organizada de forma


panorâmica por Hartmann. Há três manifestações do ser: maneiras de ser, modos do ser e
momentos do ser. Há a maneira real e a maneira ideal, compondo duas esferas distintas,
porém conectadas pela esfera cognitiva. Há os diversos modos de ser (real, atual, possível
e seus contra-modos) que são articulados de formas diferentes. Os momentos são o ser-aí
(Dasein) e o ser-assim (Sosein), ambos se alternando a depender do que se avalia. No
exemplo de Hartmann, o Dasein da árvore é Sosein na floresta – e o Dasein do galho é o
Sosein na árvore23. A progressiva coleta de evidências vai ajudando a delinear os objetos,
que não necessariamente são apenas objetos “para” o humano: a articulação Dasein-Sosein
da floresta é também para todos os pássaros, vermes, mamíferos e minerais também, não
sendo uma articulação comprometida apenas com epistemologia, nem muito menos com
uma epistemologia antropocêntrica. Um pensamento ecológico é uma das várias
interessantíssimas consequências quase que automáticas de sua filosofia primeira.

A diferença entre a maneira de ser ideal e a real é, especificamente, a presença da


categoria do tempo na realidade. Assim sendo, não é possível dizer que o ideal é “eterno”,
no sentido de um tempo que não acaba – visto que no ideal não há a presença alguma do
tempo. Para nossos fins, será suficiente dizer que eternidade e atemporalidade não são
termos sinônimos. Uma relação matemática não é “agora e para todo sempre”,
simplesmente é, na maneira ideal, atemporal. Para Hartmann, isso é crucial para entender
a diferença entre as esferas de ser, mas também para entender como o conhecimento opera

22 Cicovacki, 2014, Capítulo 1.3


23 Hartmann, 2019, Capítulo 18
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entre ambas. Assim, a presença da categoria do tempo já indica que o real é temporalizado,
duracional, processual. Esta pode ser uma das principais heranças de Schelling, que não via
a história como uma coletânea de humanos relatando sobre humanos de forma narcisista
ou orientados para algum Partido ou Estado, mas sim pensava o tempo como ingrediente,
produto, condicionador e limitador da própria realidade.

Por que, em termos de Hartmann, esta “Nova Ontologia” se distingue da “Velha


Ontologia”? A Velha Ontologia confunde modos, momentos e maneiras de ser e, quando
cerceados por um enxame de paradoxos artificiais e irracionalidades dogmáticas, se viam
forçados ou a escolher um pedaço desta miscelânea inconsequente como o “mais
importante”, um “centro do sistema” ou um “destino porvir”. Por exemplo, acham que o ser
real é ser atual/concreto, confundindo uma maneira de ser (real) com um modo de ser
(atualidade). Tentavam dar ordem aos seus monismos reduzindo tudo a algo que
geralmente entenderam bem, como a lógica entre os spinozistas ou o mecanicismo entre
os cartesianos – mas que não se aplica muito para além de seus domínios restritos. Quando
a inépcia de tais projetos se revelava, sem surpresas, como impossível de serem em
realidade, prendiam o ser em algum dever-ser mítico, religioso, ideológico ou simplista,
como se o mundo “ainda viria a ser” tal como o pensador profetizou.

Assim, os novos caminhos da ontologia, que também é o nome de seu livro de 1943,
levam a esta prima philosophia que Hartmann busca inaugurar como área rigorosa de
pesquisas do realismo crítico. Suas lições sobre a epistemologia, ou melhor, a gnoseologia,
ajudam a operar este projeto esclarecendo como Hartmann enxerga o ato cognitivo. A
primeira ideia contraintuitiva com o que se deu na filosofia pós-idealismo alemão é que ele
trata o conhecimento como uma correlação entre algo que conhece e um “objeto = X”.
Emprego aqui propositalmente a notação que Kant empregava na primeira edição da
Crítica da Razão Pura. Do X, o que será descrito fenomenologicamente não é tudo que o X
é, visto que nem tudo será descrito agora, posteriormente, ou talvez sequer será descrito
da mesma maneira por outro observador. No entanto, em termos de fixação de referência,
observadores diferentes podem dizer sobre “objeto = X” e trocar, comparar, complementar
e até eliminar evidências da descrição.

Esta breve caracterização traz duas teses emaranhadas: uma defesa da polêmica
coisa-em-si e a ideia mesma de correlação. O que se dá ao conhecimento, seja por dação
ativa, seja por doação passiva, não exaure, esgota ou substitui o que há. O que há não se
esgota no objeto = X – e o que resta desta operação é transobjetivo, transinteligível24. Agora,
o que haveria de inovador em seu conceito de correlação? Afirmar que há algo que conhece
e algo que é conhecido não parece ser tão fora do senso comum, ou de experiências

24 Cf. especialmente Hartmann, 2019, capítulos 8 e 25.

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ordinárias: o problema, portanto, é justamente a estranheza artificial introduzida depois


do idealismo alemão. Resumir a realidade para dentro da razão prática de uma ontologia
social de humanos gera este efeito de estranheza. Para se contrapor a isso, Hartmann
conceitua o termo ato transcendente para deixar explícito o seu conceito de correlação.
Vejamos:

No que se segue, sempre queremos dizer com a frase ‘ato transcendente’


um ato que não se desdobra apenas na consciência – tal como são o
pensamento, representação ou imaginação – mas algo que transcende a
consciência, se estende além dela e se conecta com aquilo que existe
independente dela. O ato faz isso independentemente da coisa
independente ser algo material, psíquico ou espiritual. Atos
transcendentes são aqueles que estabelecem uma relação entre um sujeito
e um ente que, em si, não surge através daquele ato – ou, são atos que
tornam algo transobjetivo em um objeto (Hartmann, 1965, p. 146)25

Devemos esclarecer que a expressão “transcender” não tem nada de místico ou de


misterioso, sendo mais próximo do sentido de transcendo, no latim, similar ao verbo
“escalar”. Além disso, vejamos que tal conceito de transcendência não é dialético, ou seja,
não é reduzido a uma oposição ao “imanente”, visto que é apenas uma diferenciação entre
tipos de atos que vão para fora e atos que são reflexivos (pensar, imaginar, sonhar etc.).
Este curioso conceito, percebam, não dá nenhum privilégio à cognição como o principal ou
o central ou o mais relevante entre os atos transcendentes, visto que atos afetivos como o
desejo, a esperança, o amor, também são do interno ao externo. Atos transcendentes, entre
eles o conhecimento, são atos de tentativa de captura ou de com-preensão [Erfassen]. Não
obstante, assim como o amor, a correlação cognitiva não é garantia infalível, eterna, da
conexão – assim como Menelau, talvez sua Helena queira ser da Troia de Páris.

§3.4 Teoria Geral das Categorias e Estratificação do Ser

Hartmann, no entanto, adiciona ainda mais uma dificuldade à empreitada cognitiva.


O rigor e a indústria necessários para se conhecer algo, por mais ínfimo que seja, é ainda
mais complexificado quando prestamos atenção aos instrumentos da cognição. Hartmann
concorda que os conceitos são parte importante, mas nega que as categorias sejam tipos
de conceitos. Roberto Poli comenta:

25 Tradução nossa do trecho: “Unter einem „transzendenten Akt" soll im Folgenden immer ein solcher
verstanden werden, der nicht im Bewußtsein allein spielt — wie Denken, Vorstellen, Phantasieakt —,
sondern das Bewußtsein Überschreitet, aus ihm hinausreicht und es mit dem verbindet, was unabhängig von
ihm an sich besteht; und zwar ohne Unterschied, ob dieses Unabhängige ein dingliches, seelisches oder
geistiges Etwas ist. Es sind also Akte, die eine Relation herstellen zwischen dem Subjekt und einem Seienden,
das nicht erst durch den Akt entsteht; oder auch: Akte, die ein Übergegenständliche zum Gegenstande
machen”.
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A teoria das categorias de Hartmann rompe inteiramente com as teorias


das categorias de Kant ou Hegel ao explicitamente negar que categorias são
conceitos. Se categorias fossem conceitos, elas poderiam ser interpretadas
sem problema algum como ficções ou formas de representação mais ou
menos adequadas para a manipulação das coisas. Embora conceitos sejam
necessárias para referirmos às categorias, eles jamais capturam as
categorias inteiramente. Há sempre uma diferença entre categorias e seus
conceitos. (Poli, 2011, p. 4)26

Neste sentido, vemos que há uma dupla limitação da atividade cognitiva: ela não é
apenas limitada frente aos objetos do mundo, sejam eles físicos, matemáticos, éticos ou
biológicos. Esta limitação, já vislumbrada por Kant ao conceber a coisa-em-si, é apenas um
dos lados – o outro é a limitação do nosso conhecimento das categorias elas mesmas. A
categoria de espaço, por exemplo, é conhecida por diversas geometrias, até mesmo
conflitantes não apenas com o senso comum como também entre si mesmas – mas
nenhuma esgota a categoria do espaço. Há, então, uma dupla tarefa árdua e trabalhosa: o
conhecimento em direção às coisas, por assim dizer; e o conhecimento em direção às
categorias. Roberto Poli fez um compilado de diversos esforços e tarefas de pesquisa da
Análise Categorial que podemos elencar da seguinte maneira27:

▪ Categorias articulam o que é universal, necessário e que permanece idêntico;


▪ Categorias articulam em particular o Sosein das entidades, especificando
conformações, estruturas e conteúdo – mas não formas de existência;
▪ Categorias são princípios do ser, determinações fundamentais (o “restante” é a
cargo de sistemas como o direito, a ciência, a arte etc.);
▪ Categorias são imanentes às coisas, não são um “segundo mundo” separado;
▪ Categorias trazem camadas e articulações do interior das coisas;
▪ Não existe um contínuo homogêneo de categorias;
▪ Conhecemos categorias dos objetos preendendo os objetos. Ou seja, as categorias
não são numericamente limitadas. Além disso, o conhecimento resultante acerca
delas é mais provisional do que o da ciência;
▪ Categorias existem em conjuntos, nenhuma é absolutamente separável ou redutível
à outra. Poli escreve que “esta é uma lei categorial geral: categorias ontológicas são
mutuamente conectadas e formam uma rede de dependências recíprocas” (Poli,
2011, p. 12).28

26 Tradução nossa do seguinte trecho: “Hartmann’s theory of categories entirely breaks with Kant’s or Hegel’s
theories of categories by explicitly denying that categories are concepts. If categories were concepts, they
could be straightforwardly interpreted as fictions or forms of representation more or less suitable to the
manipulation of things. While we need concepts in order to refer to categories, they never capture categories
entirely. There is always a difference between categories and their concepts”.
27 Poli, 2011, p. 7-8
28 Tradução nossa do trecho: “This is a general categorial law: ontological categories are mutually connected

and form a network of reciprocal dependencies”.

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Ensaio Ensaio Introdutório à filosofia de Nicolai Hartmann

Obviamente, cada um destes pontos precisa ser exaustivamente explorado – e isso


Hartmann faz num nível de rigor e detalhe impressionantes ao longo de quase duas mil
páginas dos quatro volumes da Ontologia, o que está muito além das competências de um
mero ensaio introdutório como o nosso. Podemos, no entanto, apontar duas consequências
metodológicas da Análise Categorial: 1) seus frutos podem ser melhorados, abandonados,
modificados, incorporados em outros – assim como são as leis científicas, a depender da
preensão e da análise dos objetos e das categorias. Ou seja, há um caráter notadamente
experimental com propostas, frustrações, autocorreções, demanda por experiências e
avaliações críticas; e 2) as categorias são conhecidas obliquamente, tomando objetos, suas
relações, articulações e/ou configurações como instanciação. Ou seja, categorias
ontológicas, reais, jamais são conhecíveis a priori. Apenas categorias da esfera ideal podem
ser conhecidas a priori – no entanto, mesmo assim, elas dependem integralmente de serem
no concreto, senão não passam de ideias abstratas desconexas do real.

O estudo do “objeto = X” através da Análise Categorial, vimos, é duplo: em direção


ao que se quer conhecer e em direção às ferramentas mais sofisticadas para se conhecer.
Isso nos leva a uma diferenciação das categorias a partir do modo, da maneira e do
momento de ser. Não vamos exaurir tudo, mas já dissemos que, na Esfera Ideal, temos
objetos da lógica, da matemática, das essências fenomenológicas e dos valores. Na Esfera
Real, há uma estratificação do físico, do orgânico, do psíquico e do espiritual
(“sociocultural”). Todos eles são – nenhum “é mais” do que o outro. Não se trata de graus
de quem é “mais real” ou “menos real”: a ontologia da matemática é, e é independente da
ontologia do psíquico – todas são, embora sejam diferentes com categorias, interesses,
direcionamentos e limites próprios. Tomemos como exemplo a figura abaixo como uma
proposta desta divisão:

Há três grandes grupos de categorias. O primeiro é o das categorias modais,


trabalhadas ad nauseam no segundo volume da Ontologia. Trata do que há de real, atual,

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Otávio S.R.D. Maciel

possível, suas contrapartes negativas, bem como as leis intermodais. O segundo grupo é o
das categorias fundamentais, exaustivamente trabalhadas no terceiro volume da
Ontologia. Há algumas categorias individuais, mas a maioria delas são categorias pareadas.
Ao lado destas, há as categorias nivelares que lidam com a estratificação do ser. Além
destas, há as categorias intercategoriais, leis categoriais ou metacategorias, que são
categorias sobre as categorias elas mesmas e sobre suas relações. O terceiro grupo é o das
categorias especiais, que são exploradas em cada estrato específico da realidade.
Hartmann não teve tempo, praticamente sem surpresas para ninguém, de completar esta
gigantesca tarefa, mas ofereceu categorias especiais do estrato físico e do estrato orgânico
no quarto volume da Ontologia; e do estrato espiritual, em alguma medida, na obra O
Problema do Ser Espiritual. Neste, ele subdivide o Espírito em três subáreas, o espírito
pessoal (a personalidade dos indivíduos), o espírito objetivo (coisas como o direito, a
cultura, a linguagem) e o espírito objetivado (objetos técnicos, objetos da arte). Para
encerrarmos, ofereço alguns exemplos para ao menos saciar uma possível curiosidade
sobre quais seriam algumas destas categorias:

• Categorias fundamentais:

▪ Princípio-concreto, estrutura-modo, forma-matéria, internalidade-


exterioridade, determinação-dependência, quantidade-qualidade, unidade-
multiplicidade, harmonia-conflito, contraste-dimensão, discrição-
continuidade, substrato-relação, elemento-estrutura.

• Categorias especiais por estrato:

▪ Inorgânicas: espaço e tempo, processo e condição, substância e causalidade,


estrutura dinâmica e equilíbrio dinâmico.
▪ Animadas: adaptação e propósito, metabolismo, autorregulação,
autorrestauração, vida das espécies, constância e variação.
▪ Psíquicas: ato e conteúdo, prazer e desprazer, consciência e inconsciência.
▪ Espirituais: pensamento, conhecimento, vontade, liberdade, valoração e
personalidade.

§4 Conclusão

Esperamos calorosamente que este ensaio tenha conseguido cumprir sua função de
despertar interesse nos pesquisadores brasileiros e outros lusófonos na imensa e
intrigante obra de Nicolai Hartmann. Sua morte prematura deixou ainda continentes
inexplorados em sua vasta filosofia. Estudar Hartmann, hoje, é ainda mais recompensante
e estimulante, visto que o renascimento da metafísica no século XXI, as questões ecológicas

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prementes, as cada vez mais sofisticadas teorias da complexidade podem, perfeitamente,


aprender e ensinar muito em relação ao realismo crítico. A conexão de seu sofisticado
pensamento com o realismo especulativo, a ontologia orientada a objetos, a ética material
de valores, as novas filosofias da natureza certamente vão fazer várias alianças poderosas
neste território filosófico vasto que é o realismo complexo.

Lista de Obras de Hartmann


❖ 1907 – O Problema do Ser na Filosofia Grega antes de Platão
▪ Das Seinsproblem in der griechischen Philosophie vor Plato
❖ 1909 – Lógica do Ser em Platão
▪ HARTMANN, Nicolai. Platos Logik des Seins. Berlin: De Gruyter, 2010.
❖ 1909 – Elementos Filosóficos da Matemática de Próculo Diádoco
▪ HARTMANN, Nicolai. Des Proklus Diadochus philosophische
Anfangsgründe der Mathematik. Berlin: De Gruyter, 1909.
❖ 1912 – Problemas Filosóficos Fundamentais da Biologia
▪ HARTMANN, Nicolai. Philosophische Grundfragen der Biologie. Berlin:
De Gruyter, 1958.
❖ 1921 – Fundamentos de uma Metafísica do Conhecimento
▪ HARTMANN, Nicolai. Grundzüge einer Metaphysik der Erkenntnis.
Berlin: De Gruyter, 1921.
❖ 1923 e 1929 – Filosofia do Idealismo Alemão
▪ HARTMANN, Nicolai. A Filosofia do Idealismo Alemão. 2 volumes. 2ª ed.
Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1983.
❖ 1926 – Ética, 3 volumes
▪ HARTMANN, Nicolai. Ethik. Berlin: De Gruyter, 1962.
▪ HARTMANN, Nicolai. Ética. Madrid: Ediciones Encuentro, 2011.
▪ HARTMANN, Nicolai. Ethics. London: Transaction Press, 2002-2004.
❖ 1931 – Sobre o Problema da Dadidade da Realidade
▪ HARTMANN, Nicolai. Zum Problem der Realitätsgegebenheit. Berlin: De
Gruyter, 1931.
❖ 1933 – O Problema do Ser Espiritual: Investigações acerca do fundamento da
filosofia da história e das ciências humanas

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▪ HARTMANN, Nicolai. Das Problem des geistigen Seins. Untersuchungen


zur Grundlegung der Geschichtsphilosophie und der
Geisteswissenschaften. Berlin: De Gruyter, 1931.
▪ HARTMANN, Nicolai. El problema del ser espiritual: investigaciones
sobre el fundamento de la filosofía de la historia y las ciencias del
espíritu. Buenos Aires: Leviatán 2007.
❖ 1935 – Ontologia, volume 1: Sobre os Fundamentos da Ontologia
▪ HARTMANN, Nicolai. Ontologie, v.1 – Zur Grundlegungen der Ontologie.
Berlin: De Gruyter, 1965
▪ HARTMANN, Nicolai. Ontología I. Fundamentos. México: Fondo de
Cultura Económica 1986
▪ HARTMANN, Nicolai. Ontology: Laying the Foundations, Translation and
Introduction by Keith R. Peterson, Berlin: De Gruyter, 2019
❖ 1938 – Ontologia, volume 2: Possibilidade e Atualidade
▪ HARTMANN, Nicolai. Möglichkeit und Wirklichkeit. Berlin: Walter de
Gruyter, 2010
▪ HARTMANN, N. Possibility and Actuality. Berlin: Walter de Gruyter, 2013
▪ HARTMANN, Nicolai. Ontología II. Posibilidad y efectividad. México:
Fondo de Cultura Económica 1986
❖ 1940 – Ontologia, volume 3: A Fábrica do Mundo Real – Fundamentos de uma
Teoria Geral das Categorias
▪ HARTMANN, Nicolai. Der Aufbau der realen Welt – Grundriß der
allgemeinen Kategorienlehre. Berlin: De Gruyter, 2010
▪ HARTMANN, Nicolai. Ontología III. La fábrica del mundo real. México:
Fondo de Cultura Económica, 1986
❖ 1943 – Novos Caminhos da Ontologia
▪ HARTMANN, N. Neue Wege der Ontologie. Stuttgart: Kohlhammer, 1943
▪ HARTMANN, Nicolai. New Ways of Ontology. New Brunswick: Transaction
Publishers, 2012
❖ 1950 – Ontologia, volume 4: Filosofia da Natureza: Esboço de uma Teoria Especial
das Categorias
▪ HARTMANN, Nicolai. Philosophie Der Natur: Abriß Der Speziellen
Kategorienlehre. Berlin: De Gruyter, 2015

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▪ HARTMANN, Nicolai. Ontología IV. Filosofía de la naturaleza. Teoría


especial de las categorías. Categorías dimensionales. Categorías
cosmológicas. México: Fondo de Cultura Económica, 1986
❖ 1951, póstumo – O Pensamento Teleológico
▪ HARTMANN, Nicolai. Teleologisches Denken. Berlin: De Gruyter, 1966
▪ HARTMANN, Nicolai. Ontología V. Filosofía de la naturaleza. Teoría
especial de las categorías. Las categorías organológicas. El pensar
teleológico. México: Fondo de Cultura Económica, 1986
❖ 1953, póstumo – Estética
▪ HARTMANN, Nicolai. Ästhetik. Berlin: De Gruyter, 1953
▪ HARTMANN, Nicolai. Estética. México: UNAM, 1964
▪ HARTMANN, Nicolai. Aesthetics. Berlin: Walter de Gruyter, 2014

Obras sobre Hartmann


CICOVACKI, Predrag. The Analysis of Wonder – An introduction to the philosophy of
Nicolai Hartmann. London: Bloomsbury, 2014

DA RE, Antonio. ‘Objective Spirit and Personal Spirit in Hartmann’s Philosophy’ in.
Axiomathes, 12: 317-326, Kluwer, 2001

KELLY, Eugene. Material Ethics of Value: Max Scheler and Nicolai Hartmann. New
York: Springer, 2011

NASSER, Eduardo. ‘Sobre o caráter ontológico da ciência: possíveis contribuições de


Nicolai Hartmann para um problema do realismo especulativo’ in. Cadernos de Filosofia
Alemã, v. 23; n. 2, pp.67-79, jul.-dez. 2018

POLI, Roberto; SCOGNAMIGLIO, Carlo & TREMBLAY, Frederic. The Philosophy of Nicolai
Hartmann. Berlin: De Gruyter, 2011

PETERSON, Keith & POLI, Roberto. New Research on the Philosophy of Nicolai
Hartmann. Boston: De Gruyter, 2016

PETERSON, Keith R. ‘Translator’s Introduction: Hartmann’s Realist Ontology’ in.


HARTMANN, Nicolai. Ontology: Laying the Foundations. Boston: De Gruyter, 2019

PETERSON, Keith R. ‘Nicolai Hartmann and Recent Realisms’ in. Axiomathes (2017),
27:161-174

PETERSON, Keith. ‘Nicolai Hartmann’s Philosophy of Nature: Realist Ontology and


Philosophical Anthropology’ in. Scripta Philosophiae Naturalis 2, 143-179, 2012
Anãnsi: Revista de Filosofia, Salvador, v. 1, n. 2, 2020.
157
ISSN: 2675-8385
Otávio S.R.D. Maciel

POLI, Roberto. "Nicolai Hartmann" in. The Stanford Encyclopedia of Philosophy


(Winter 2017 Edition), Edward N. Zalta (ed.), Disponível em:
<https://plato.stanford.edu/archives/win2017/entries/nicolai-hartmann/>.

POLI, Roberto. ‘Hartmann’s theory of categories: introductory remarks” in. POLI, Roberto;
SCOGNAMIGLIO, Carlo & TREMBLAY, Frederic. The Philosophy of Nicolai Hartmann.
Berlin: De Gruyter, 2011

SCHLITTMAIER, Anton. ‘Nicolai Hartmann’s Aporetics and Its Place in the History of
Philosophy’ in. POLI, Roberto; SCOGNAMIGLIO, Carlo & TREMBLAY, Frederic. The
Philosophy of Nicolai Hartmann. Berlin: De Gruyter, 2011

SPIEGELBERG, Herbert. ‘Phenomenology in the Critical Ontology of Nicolai Hartmann


(1882-1950)’ in. The Phenomenological Movement. 3.ed. Dordrecht: Kluwer-Springer,
1994

TREMBLAY, Frédéric. ‘Historical Introduction to Nicolai Hartmann’s Concept of


Possibility’ in. Axiomathes 27:193–207, 2007

Obras Adicionais
GABRIEL, Markus. O sentido da existência: para um novo realismo ontológico. Rio de
Janeiro: Civilização Brasileira, 2016

LATOUR, Bruno. Jamais Fomos Modernos. Rio de Janeiro: Editora 34, 2013

MACIEL, Otávio S.R.D. Primeiro Esboço de um Tratado de Metametafísica:


Introdução ao Realismo Complexo. Tese (Doutorado em Filosofia) – UnB. Brasília,
2021. (manuscrito ainda não-publicado)

MACIEL, Otávio S. R. D. Meta-metafísica e correlacionismo: desafios e direções para


uma filosofia no século XXI. Monografia (Graduação em filosofia) – UnB. Brasília, 2017

MEILLASSOUX, Quentin. “O Tempo sem o Tornar-se” in. Anãnsi: Revista de Filosofia,


Salvador, v. 1, n. 1, 2020.

MEILLASSOUX, Quentin. After Finitude – An Essay on the Necessity of Contingency.


Transl.by Ray Brassier. London: Continuum, 2008.

WHITEHEAD, Alfred N. O Conceito de Natureza. São Paulo: Martins Fontes, 1994

WHITEHEAD, Alfred N. Process and Reality – an essay in cosmology. New York: The
Free Press, 1978.

158 Anãnsi: Revista de Filosofia, Salvador, v. 1, n. 2, 2020


ISSN: 2675-8385
Revista Anãnsi, Salvador, 2020
Ft./ Ana Amélia R. Souza (@urbanovoyeur2)
Tradução: As Tradições da Ciência

Universidade do Estado da Bahia, Campus I


Departamento de Educação

As Tradições da Ciência1, de Alfred N. Whitehead

Tradução e Notas de Rafael Ferreira Martins2

I – Conceitos Científicos Tradicionais

§1. O que é uma explanação física? A resposta para esta pergunta, mesmo quando
meramente implícita na imaginação científica, deve profundamente afetar o
desenvolvimento de cada ciência e, num nível especial, aquele da física especulativa.
Durante o período moderno, a resposta ortodoxa foi invariavelmente guiada em termos de
Tempo (fluindo igualmente em lapsos mensuráveis), de Espaço (atemporal, vazio de
atividade, euclidiano) e de Material no espaço (como matéria, éter ou eletricidade).

O princípio governante subjacente a este esquema é que a extensão, a saber, a


extensão no tempo ou a extensão no espaço, expressa desconexão. Este princípio resulta
na suposição de que a ação causal entre entidades separadas no tempo ou no espaço é
impossível e que a extensão no espaço e a unidade do ser são inconsistentes. Assim, o
material estendido (nesta visão) é, essencialmente, uma multiplicidade de entidades que,
conforme estendidas, são diversas e desconectadas. Este princípio governante deve ser
limitado com respeito à extensão no tempo. O mesmo material existe em tempos
diferentes. Esta concessão introduz as várias perplexidades centradas em torno da noção
de mudança que é derivada da comparação de vários estados de um material autoidêntico
em tempos diferentes.

1 Este trabalho consiste na tradução da primeira parte “As Tradições da Ciência” (The Traditions of Science),
do primeiro capítulo “Significado” (Meaning), da obra Uma Investigação Concernente aos Princípios do
Conhecimento Natural (WHITEHEAD, Alfred North. An Enquiry Concerning the Principles of Natural
Knowledge. 1ª Edição. Cambridge: University Press, 1919) – livro escrito pelo matemático e filósofo Alfred
North Whitehead (1861-1947) nas duas primeiras décadas do século XX. O livro inaugurou a ampla carreira
filosófica de Whitehead. É, especificamente, no capítulo aqui traduzido, que Whitehead expõe, pela primeira
vez, suas críticas ao tempo absoluto, ao espaço absoluto e ao conceito tradicional de “significado”, bem como
estreia seus conceitos de “percepção”, “extensão” e “relatividade”. Tais críticas e conceitos, inaugurados no
capítulo cuja tradução este trabalho apresenta, irão guiar e embasar a filosofia de Whitehead até seus últimos
dias – sendo o conceito de “extensão” facilmente classificável como a pedra angular de toda a sua filosofia.
2
Graduando em Filosofia pela Universidade de Brasília. E-mail: rafaelferreiramartins98@gmail.com.
Anãnsi: Revista de Filosofia, Salvador, v. 1, n. 2, 2020.
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Alfred N. Whitehead

§2. O fato último abrangendo a natureza é (neste ponto de vista tradicional) uma
distribuição de material ao longo de todo espaço em um instante de tempo sem duração, e
outro tal fato último será outra distribuição do mesmo material ao longo do mesmo espaço
em outro instante de tempo sem duração. As dificuldades desta declaração extrema são
evidentes e foram apontadas mesmo nos períodos clássicos, quando o conceito
primeiramente tomou forma. Alguma modificação é evidentemente necessária. Nenhum
espaço foi deixado para velocidade, aceleração, momento e energia cinética, os quais
certamente são quantidades físicas essenciais.

Nós devemos, por conseguinte, quanto ao fato último, além de onde as ciências
cessam sua análise, incluir a noção de um estado de mudança. No entanto, um estado de
mudança em um instante sem duração é uma concepção muito difícil. É impossível definir
velocidade sem alguma referência ao passado e ao futuro. Portanto, a mudança é
essencialmente a importação do passado e do futuro ao fato imediato incorporado no
instante presente sem duração.

Essa conclusão é destrutiva para a pressuposição fundamental de que os fatos


últimos para a ciência estão para serem encontrados em instantes de tempo sem duração.

§3. A recíproca ação causal entre materiais A e B é o fato de que seus estados de
mudança são parcialmente dependentes de seus locais relativos e naturezas. A desconexão
envolvida na separação espacial leva à redução de tal ação causal à transmissão de estresse
através da superfície delimitadora de materiais contíguos. Mas, o que é contato? Não há
dois pontos em contato. Assim, o estresse sobre a superfície, necessariamente, atua em
alguma massa do material encerrada no interior. Dizer que o estresse atua na imediata
contiguidade material é assumir volumes infinitamente pequenos. Não obstante, não há tal
coisa, apenas volumes cada vez menores. Ainda, segundo este ponto de vista, não pode ser
dito que a superfície age no interior.

Certamente, estresse tem a mesma reivindicação de ser considerado uma


quantidade física essencial quanto o momento e a energia cinética. Mas nenhuma
consideração inteligível de seu significado está para ser extraída do conceito de
distribuição contínua de diversas (pois estendidas) entidades através do espaço como um
fato científico final. Em algum estágio de nossa consideração sobre o estresse, nós somos
dirigidos ao conceito de qualquer quantidade de material estendido como uma unidade
única, cuja natureza é parcialmente explicável em termos de seu estresse superficial.

§4. Na biologia, o conceito de organismo não pode ser expressado em termos de um


material distribuído em um instante. A essência de um organismo é uma coisa que funciona
e é espalhada pelo espaço. Agora, funcionamento leva tempo. Logo, um organismo

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Tradução: As Tradições da Ciência

biológico é uma unidade com uma extensão espaço-temporal, a qual é da essência de seu
ser. Essa concepção biológica é, obviamente, incompatível com as ideias tradicionais. Esse
argumento não depende, de manheira nenhuma, de supor que fenômenos biológicos
pertençam a uma categoria diferente daqueles fenômenos físicos. O ponto central da crítica
aos conceitos tradicionais, que nos ocupou até aqui, é que o conceito de unidades,
funcionando e com extensões espaço-temporais, não pode ser extrudado dos conceitos
físicos. A única razão para introduzir a biologia é que, nessa ciência, a mesma necessidade
se torna mais clara.

§5. A hipótese fundamental, a ser elaborada no curso desta Investigação, é a de que


os fatos últimos da natureza, em termos os quais toda explanação física e biológica devem
ser expressadas, são eventos conectados por suas relações espaço-temporais e que essas
relações são centralmente redutíveis às propriedades dos eventos que eles podem conter
(ou estender-se sobre), outros eventos que são parte deles. Em outras palavras, no lugar
de enfatizar espaço e tempo em sua capacidade de desconexão, nós deveríamos construir
uma consideração de suas complexas essências, como derivação oriunda das maneiras
finais pelas quais essas coisas, últimas na ciência, são interconectadas. Desta forma, os
dados da ciência, aqueles conceitos a partir dos quais toda explanação científica deve ser
expressada, serão mais claramente apreendidos. Mas, antes de procedermos para nossa
tarefa construtiva, é necessária alguma realização adicional acerca das perplexidades
introduzidas pelos conceitos tradicionais.

II - Relatividade Filosófica

§1. O princípio filosófico da relatividade do espaço significa que propriedades do


espaço são, meramente, uma maneira de expressar relações entre coisas ordinariamente
ditas de estarem “no espaço”. A saber, quando duas coisas são ditas por estarem ‘ambas no
espaço’, o que significa é que elas estão mutuamente relacionadas em certo sentido
definido, o qual é denominado de “espacial”. É uma consequência imediata desta teoria que
todas as entidades espaciais, como pontos, linhas retas e planos, são meramente complexos
de relações entre coisas ou de possíveis relações entre coisas.

Considere o significado de dizer que a partícula P está no ponto Q. Esta declaração


transmite informação substancial e deve, por conseguinte, transmitir mais do que a infértil
asserção de autoidentidade “P é P”. Portanto, o que deve significar é que P possui certas
relações para com outras partículas P ', P '', etc., e que a possibilidade abstrata desse grupo
de relações é o que se denota pelo ponto Q.

Anãnsi: Revista de Filosofia, Salvador, v. 1, n. 2, 2020.


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Alfred N. Whitehead

O extremamente valioso trabalho sobre as fundações da geometria, produzido no


Século XIX, procedeu da premissa dos pontos como entidades últimas dadas. Essa
premissa, para o proposito lógico dos matemáticos, está completamente justificada. A
saber, os matemáticos perguntam: “Qual é a descrição lógica das relações entre pontos, das
quais todos os teoremas geométricos, respeitando tais relações, podem ser deduzidos?”. A
resposta para esta questão está agora praticamente completa; e se a velha teoria do espaço
absoluto é verdadeira, não há nada mais para ser dito, visto que os pontos são simples
existentes últimos, com suas relações mútuas descobertas pela nossa percepção da
natureza.

Todavia, se nós adotarmos o princípio da relatividade, estas investigações não


resolvem a questão das fundações da geometria. Uma investigação sobre as
fundamentações da geometria tem de explicar o espaço como um complexo de relações
entre coisas. Ela tem que descrever o que um ponto é – e tem que mostrar como as relações
geométricas entre pontos resultam das relações últimas entre as coisas últimas, que são os
objetos imediatos do conhecimento. Portanto, o ponto inicial de uma discussão sobre as
fundações da geometria é uma discussão do caráter dos dados imediatos da percepção. Não
está aberto agora aos matemáticos supor sub silentio [em silêncio] que os pontos estão
entre estes dados.

§2. Os conceitos tradicionais eram evidentemente formados em torno do conceito


de espaço absoluto, isto é, o conceito do persistente material último distribuído sobre os
persistentes pontos últimos em sucessivas configurações em instantes últimos sucessivos
de tempo. Aqui, último significa “não analisável (divisível) em um complexo de entidades
mais simples”. A introdução do princípio da relatividade adiciona à complexidade, ou
melhor, à perplexidade dessa concepção de natureza. A proposição, de caráter geral, do
fato último deve, agora, ser corrigida para “material último persistente com relações
mútuas sucessivas últimas em instantes últimos sucessivos de tempo”.

O espaço surge dessas relações mútuas da matéria em um instante. A primeira


crítica a ser feita a tal asserção é que ela aparenta ser um conto de fadas metafísico em
qualquer comparação com nosso real conhecimento perceptivo da natureza. Nosso
conhecimento do espaço é baseado em observações que levam tempo e que são
necessariamente sucessivas, mas as relações que constituem o espaço são instantâneas. A
teoria demanda que deve haver um espaço instantâneo correspondendo a cada instante,
mas não fornece correlação entre esses espaços; já a natureza, ela não nos dotou de
nenhum aparato para observá-los.

§3. É uma sugestão óbvia a que nós devemos consertar nossa proposição do fato
último, conforme modificada pela aceitação da relatividade. As relações espaciais devem,

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Tradução: As Tradições da Ciência

agora, esticar-se ao longo do tempo. Portanto, se P, P ', P ", etc. são partículas materiais,
existem relações espaciais definidas conectando P, P', P", etc. no tempo t com P, P ', P ", etc.;
no tempo t2, bem como tais relações entre P e P 'e P ", etc. no tempo t e tais relações entre
P e P' e P", etc. no tempo t2. Isso deve significar que P no tempo t2 tem uma posição definida
na configuração espacial constituída pelas relações entre P, P', P", etc. no tempo t1.

Por exemplo, o sol, em um certo instante de 1º de janeiro de 1900, tinha uma


posição definida no espaço instantâneo constituído pelas relações mútuas entre o sol e as
outras estrelas em um instante definido de 1º de janeiro de 1800. Tal afirmação só é
entendível (assumindo o conceito tradicional) pelo recurso ao espaço absoluto e, portanto,
abandonando a relatividade já que esta, de outra maneira, nega a completude do fato
instantâneo, que é a essência do conceito. Outra maneira de sair dessa dificuldade é pela
negação de que o espaço seja constituído pelas relações de P, P', P", etc. em um instante,
afirmando que isso resulta de suas relações ao longo das durações de tempo que, por sua
vez, prolongadas no tempo, são observáveis.

De fato, é óbvio que nosso conhecimento sobre espaço resulta de tais observações.
Porém, nós estamos solicitando à teoria para nos fornecer relações reais a serem
observadas. Esta última correção ou é somente uma confusa maneira de admitir que a
“natureza em um instante” não é o fato científico último, ou então é um apelo, ainda mais
confuso, de que embora não haja possibilidade de correlação entre espaços instantâneos
distintos, ainda que dentro de durações que são suficientemente curtas, tais correlações
inexistentes entram na experiência.

§4. A persistência do material carece de qualquer garantia observacional quando a


relatividade do espaço é admitida no conceito tradicional. Pois, em um instante, há material
instantâneo em seu espaço instantâneo conforme constituído por suas relações
instantâneas e, em outro instante, há material instantâneo em seu espaço instantâneo.
Como sabemos que as duas cargas de material, que carregam os dois instantes, são
idênticas? A resposta é que nós não percebemos fatos instantâneos isolados, mas uma
continuidade da existência – e que é essa continuidade observada da existência que garante
a persistência do material. Exatamente assim. No entanto, isso abdica de todo o conceito
tradicional, pois uma “continuidade de existência” deve significar uma duração
ininterrupta de existência. Desta maneira, admite-se que o fato último para o conhecimento
observacional é a percepção por meio de uma duração. Ou seja, que o conteúdo de um
presente especioso, não aquele do instante sem duração, é um datum3 último para a ciência.

3Manteve-se a palavra original em inglês ‘datum’, pois não há tradução precisa deste termo ao português na
maneira pela qual Whitehead o emprega, visto que significa ‘dados’ e, também, ‘ponto de origem’.

Anãnsi: Revista de Filosofia, Salvador, v. 1, n. 2, 2020.


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ISSN: 2675-8385
Alfred N. Whitehead

§5. É evidente que a concepção do instante de tempo como uma entidade última é
fonte para todas as dificuldades de explanação. Se existem tais entidades últimas, a
natureza instantânea seria um fato último.

Nossa percepção de tempo é como uma duração; estes instantes somente foram
introduzidos em virtude de uma suposta necessidade de pensamento. Na verdade, o tempo
absoluto quanto o espaço absoluto são monstruosidades metafísicas. A saída destas
perplexidades, bem como dos dados últimos da ciência, sob os termos dos quais a
explanação física deve ser expressada em instância última, é expressar os conceitos
científicos essenciais de tempo, espaço e material como resultantes de relações
fundamentais entre eventos, bem como do reconhecimento do caráter dos eventos. Estas
relações de eventos são aquelas imediatas entregas das observações às quais nos referimos
quando dizemos que eventos estão esticados ao longo do tempo e do espaço.

III - Percepção

§1. A concepção de uma única natureza universal que abrange as fragmentárias


percepções de eventos por um percipiente e as várias percepções de diversos percipientes
é cercada por dificuldades. Em primeiro lugar, existe aquilo que chamaremos de “Dilema
de Berkeley” que, crua e brevemente, pode ser apresentado como: percepções estão na
mente e a natureza universal está fora da mente, portanto, a concepção de natureza
universal não pode ter nenhuma relevância para nossa vida perceptiva. Esta não é a
maneira como Berkeley propôs sua crítica ao materialismo; ele estava pensando em
substância e matéria. Mas essa variação é um detalhe e sua crítica é fatal para qualquer um
dos tipos tradicionais de filosofias de “mentes-que-observam-as-coisas”, mesmo se essas
coisas forem eventos e não substância ou material. Suas críticas alcançam todo tipo de
percepção sensorial, embora ele se concentrasse particularmente na visão.

§2 – [Whitehead faz uma citação da obra Alcífron, publicada pelo Bispo Berkeley em
1732, mais precisamente da Seção 10 do Diálogo IV]:

Eufranor: Diga-me, Alcífron, você pode discernir as portas, janelas e ameias daquele mesmo castelo?

Alcífron: Não posso. A esta distância parece somente uma pequena torre redonda.

Eufranor: Mas eu, que estive nele, sei que não é uma pequena torre redonda, mas uma larga
construção quadrada com ameias e torres, as quais parece que você não vê.

Alcífron: O que você vai inferir daí?

Eufranor: Eu iria inferir que o próprio objeto que você estrita e apropriadamente percebe pela vista
não é aquela coisa que está a algumas milhas de distância.

Alcífron: Por que disso?

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Tradução: As Tradições da Ciência

Eufranor: Porque um pequeno e redondo objeto é uma coisa, e um grande e quadrado objeto é outra.
Não é assim?

Alcífron: Não posso negar.

Eufranor: Diga-me, não é a aparência visível o único apropriado objeto da visão?

Alcífron: É sim.

Eufranor: O que pensa agora (disse Eufranor, apontando para o céu) da aparência visível daquele
planeta ali? Não é um plano redondo luminoso, não maior do que uma moeda?

Alcífron: O que, então?

Eufranor: Diga-me, então, o que você pensa do planeta propriamente? Você não o concebe como um
vasto opaco globo, com muitas elevações desiguais e vales?

Alcífron: Sim, eu concebo.

Eufranor: Como pode você, então, concluir que o objeto apropriado de sua visão existe lá na
distância?

Alcífron: Confesso que eu não sei.

Eufranor: Para sua convicção ir além, considere aquela nuvem avermelhada. Pensa você que, se você
estivesse no mesmo lugar onde ela está, você a perceberia similar com aquilo que vê agora?

Alcífron: De maneira nenhuma. Eu perceberia somente uma névoa escura.

Eufranor: Não está claro, portanto, que nem o castelo, nem o planeta, nem a nuvem que você vê aqui
são aquelas reais que você supunha que existiam à distância?”

§3. Agora, a dificuldade a ser enfrentada é justamente essa. Nós não devemos
abandonar levianamente o castelo, o planeta e a nuvem avermelhada esperando manter o
olho, sua retina e o cérebro. Tal filosofia é muito simplória ou, ao menos, pode-se pensar
assim, exceto por sua ampla difusão.

Suponha que nós façamos uma limpa varredura. A ciência, então, torna-se uma
fórmula para calcular “fenômenos” mentais ou “impressões”. Mas, onde está a ciência? Nos
livros? Mas o castelo e o planeta levam embora suas bibliotecas com eles.

Não, ciência está na mente dos homens. Mas homens dormem e esquecem; e, na
melhor das hipóteses, entretém pensamentos escassos, salvo poucos momentos de insight.
Ciência, portanto, é nada mais que uma expectativa confiante de que pensamentos
relevantes vão ocasionalmente ocorrer. Mas, a propósito, o que aconteceu com o tempo e
o espaço? Eles devem ter ido atrás das outras coisas. Não, nós devemos distinguir: o espaço
se foi, claramente; mas o tempo permanece, conforme relaciona a sucessão de fenômenos.
Porém, isso não é o suficiente, pois essa sucessão só é conhecida pela recordação, sendo
esta também sujeita à mesma crítica aplicada por Berkeley ao castelo, ao planeta e à nuvem.

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Alfred N. Whitehead

Então, no final das contas, o tempo evapora com o espaço e, na partida deles, “você”
também os acompanha – e eu sobro, solitário, no caráter de um vazio da experiência sem
significância.

§4 – Neste ponto da argumentação já podemos interromper, tendo formado um


pequeno catálogo dos tipos de consideração que conduzem a partir do Dilema de Berkeley
a um ceticismo completo, o qual não se encontrava no próprio pensamento dele.

Há dois tipos de resposta para esta descida ao ceticismo. Uma é a do Dr. Johnson.
Ele bateu o pé na pedra do pavimento e seguiu seu caminho, satisfeito com a realidade da
pedra. Um escrutínio da filosofia moderna irá, se não estou enganado, mostrar que mais
filósofos deveriam ter o Dr. Johnson como mestre do que estariam dispostos a reconhecer.

O outro tipo de resposta foi primeiramente dado por Kant. Nós devemos distinguir
entre a forma geral que ele preparou para construir sua resposta à Hume e os detalhes de
seu sistema que, em diversos aspectos, são altamente questionáveis. O ponto essencial de
seu método é a pressuposição de que “significância” é um elemento essencial na
experiência concreta. O Dilema de Berkeley começa ignorando tacitamente esse aspecto da
experiência, assim apresentado, como expressão da experiência, concepções dela que não
têm relevância aos fatos. À luz do procedimento kantiano, a resposta de Johnson adquire
sentido. Ela é a afirmação de que Berkeley não expôs corretamente o que a experiência é
de fato.

O próprio Berkeley insistiu que a experiência é significante, inclusive, três quartos


de seus escritos são devotados a reforçar esta posição. Mas a posição de Kant é o oposto da
de Berkeley, isto é, que significância é experiência. Berkeley primeiro analisa a experiência,
então expõe sua visão acerca do significado dela, a saber, que é Deus se comunicando
conosco. Para Berkeley, a significância é destacável da experiência. É aqui que entra Hume.
Ele aceitou a afirmação de Berkeley de que experiência é algo dado, uma impressão, sem
referência essencial à significância, exibindo-a em sua mera insignificância. A comunicação
de Berkeley com Deus, então, torna-se um conto de fadas.

§5. O que é “significância”? Evidentemente, esta é uma questão fundamental para a


filosofia do conhecimento natural que não pode dar um passo até que tenha se decidido
quanto ao que se entende por esta tal “significância” que é a experiência.

“Significância” é a relacionalidade das coisas. Dizer que a significância é experiência


é afirmar que o conhecimento perceptual nada mais é do que uma apreensão da
relacionalidade das coisas – ou seja, de coisas em suas relações e conforme são
relacionadas. Certamente, se começarmos com o conhecimento das coisas e, então,
procurarmos por suas relações, nós não as encontraremos. “Conexão causal” é meramente

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uma típica instância da ruína universal da relacionalidade. Mas, então, estaríamos muito
enganados ao pensarmos que existe um conhecimento possível das coisas enquanto não-
relacionadas. Está, portanto, fora de cogitação começarmos com o conhecimento das coisas
antecedendo ao conhecimento de suas relações. As assim chamadas propriedades das
coisas podem sempre ser expressadas como sua relacionalidade para com outras coisas
não especificadas – e o conhecimento natural está exclusivamente concernido com a
relacionalidade.

§6. A relacionalidade que é o assunto do conhecimento natural não pode ser


entendida sem referência às características gerais da percepção. Nossa percepção dos
eventos naturais e objetos naturais é uma percepção de dentro da natureza; não uma
consciência contemplando toda a natureza imparcialmente vista de fora. Quando Dr.
Johnson “investigou a humanidade da China ao Peru”, ele o fez a partir de Pump Court, em
Londres, numa certa data. Mesmo Pump Court era demasiadamente ampla para seu
peculiar locus standi. Ele estava, na realidade, meramente consciente das relações de seus
eventos corporais com os eventos simultâneos espalhados pelo resto do universo. Assim,
percepção envolve um objeto percipiente, um evento percipiente, o evento completo (o
qual é toda a natureza simultânea com o evento percipiente) e os eventos particulares que
são percebidos como parte do evento completo. Esta análise geral da percepção será
elaborada na Parte II. O ponto a ser enfatizado aqui é que conhecimento natural é um
conhecimento de dentro da natureza, um conhecimento “aqui dentro da natureza” e “agora
dentro da natureza”, sendo um estar ciente [awareness] das relações naturais de um
elemento na natureza (a saber, o evento percipiente) para com o resto da natureza.
Igualmente, o que é conhecido não é apensas coisas, mas as relações das coisas – e não as
relações em abstrato, mas, especificamente, as coisas enquanto relacionadas.

Portanto, a visão de Alcífron do planeta é sua percepção de sua relacionalidade (isto


é, a relacionalidade de seu evento percipiente) para com outros elementos da natureza que,
conforme relacionados, ele chama de planeta. Ele admite no diálogo que certas outras
especificadas relações desses elementos são possíveis para outros eventos percipientes.
Nisto, ele pode estar certo ou errado. O que ele diretamente sabe é sua relação com alguns
outros elementos do universo – isto é eu, Alcífron, estou localizado em meu evento
percipiente “aqui e agora” e a aparência imediatamente percebida do planeta é, para mim,
uma característica de outro evento “lá e agora”. Na verdade, conhecimento perceptual é
sempre conhecimento da relação do evento percipiente com alguma outra coisa na

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Alfred N. Whitehead

natureza. Esta doutrina está em total acordo com a batida de pé do Dr. Johnson, pela qual
ele percebeu a alteridade4 da pedra de pavimentação.

§7. A concepção de conhecimento como contemplação passiva é muito inadequada


para atender aos fatos. A natureza está sempre originando seu próprio desenvolvimento e
o senso de ação é conhecimento direto do evento percipiente como tendo seu próprio ser
na formação de suas relações naturais. O conhecimento resulta desta insistência recíproca
entre esse evento e o resto da natureza, ou seja, as relações são percebidas no fazer e por
causa do fazer. Por esta razão, a percepção está sempre no ponto máximo da criação. Não
podemos nos colocar de volta nas Cruzadas para conhecer os eventos enquanto eles estão
acontecendo. Nós essencialmente percebemos nossas relações com a natureza porque elas
estão no fazer. O senso de ação é esse fator essencial no conhecimento natural, que o exibe
como um autoconhecimento entretido por um elemento da natureza no que diz respeito a
suas relações ativas com o todo da natureza em seus vários aspectos. Conhecimento
natural é meramente o outro lado da ação. O tempo que se move adiante exibe essa
característica da experiência que é essencialmente ação. Essa passagem da natureza ou, em
outras palavras, seu Avanço Criativo, é sua característica fundamental. O conceito
tradicional é uma tentativa de capturar a natureza sem a sua passagem.

§8. Assim, a ciência leva a uma inteiramente incoerente filosofia da percepção na


medida em que se restringe ao datum5 último do material no tempo e espaço, a
configuração espaço-temporal de tal material sendo o objeto de percepção. Essa conclusão
não é novidade para a filosofia, mas ela não levou a nenhuma explícita reorganização dos
conceitos realmente empregados na ciência. Implicitamente, a teoria científica está
completamente impregnada com noções que são, francamente, inconsistentes com seus
dados fundamentais explícitos

Esta confusão não pode ser evitada por nenhum tipo de teoria na qual a natureza é
concebida simplesmente como um complexo de um tipo de elementos inter-relacionados,
tais como coisas persistentes, eventos ou dados-sensoriais [sense-data]. Precisamos de
uma visão mais elaborada que tentaremos logo na sequência. Será suficiente aqui dizer que
resulta na afirmação de que, toda a natureza pode (em várias e diversas maneiras) ser
analisada como um complexo de coisas; assim, toda a natureza pode ser analisada como

4 “Alteridade” foi o termo escolhido, baseado no contexto geral da teoria de Whitehead e em sua posição
semântica, para traduzir o termo original ‘otherness’ que, por sua vez, não encontra bom cognato na língua
portuguesa. Apelando-se para um neologismo, ‘otherness’ poderia ser traduzido como “outressencia” ou
“outridade”.
5 Novamente, em igualdade com o relatado na nota de rodapé 3, manteve-se a palavra original em inglês

“datum”, pois não há tradução precisa deste termo ao português na maneira pela qual Whitehead o emprega,
visto que significa “dados” e, também, “ponto de origem”.

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Tradução: As Tradições da Ciência

um complexo de eventos e toda a natureza pode ser analisada como um complexo de


dados-sensoriais. Os elementos que resultam de tais análises, eventos e dados sensoriais
são aspectos da natureza de tipos fundamentalmente diferentes – e as confusões da teoria
científica têm surgido da ausência de qualquer reconhecimento claro da distinção entre as
relações próprias a um tipo de elemento e as relações próprias ao outro tipo de elemento.
É, certamente, um lugar-comum que elementos desses tipos são fundamentalmente
diferentes. O que se deve insistir aqui é a maneira pela qual a verdade deste lugar-comum
é importante para gerar uma análise dos dados últimos para a ciência que é mais elaborada
do que aquelas da tradição atual. Nós temos que lembrar que, embora a natureza seja
complexa com uma sutileza atemporal, o pensamento humano advém da simploriedade
[simple-mindedness] de seres cuja vida ativa é menor do que meio século.

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Revista Anãnsi, Salvador, 2020
Ft./ Ana Amélia R. Souza (@urbanovoyeur2)
Tradução: “A língua é pássaro em suas mãos”

Universidade do Estado da Bahia, Campus I


Departamento de Educação

“A língua é pássaro em suas mãos”, discurso de Toni Morrison ao


Nobel de Literatura, 1993

Tradução e Introdução de Simone Borges dos Santos1 e Alan Sampaio2

Introdução

Toni Morrison (1931-2019) foi uma escritora nova iorquina de sucesso, detentora
de vários prêmios literários. Sua trajetória de engajamento político se reflete em sua obra,
sobre as experiências dos negros e negras norte-americanos, de quem sofreu com a
escravidão, de quem tentava se adaptar à vida livre em um país racista pós abolição. Entre
suas obras principais estão O olho mais azul (1970), Compaixão (2008), Voltar para casa
(2012). Em 1993, ela recebe o prêmio Nobel de Literatura. Na ocasião, ela profere um
discurso ao Nobel, o qual intitulamos aqui de “A língua é pássaro em suas mãos”, como
espécie de síntese do amálgama de alegorias que é. A historinha de “Era uma vez...”, sobre
uma mulher cega que é confrontada por crianças com a perversa questão de se o pássaro
em suas mãos está vivo ou morto, logo se torna uma reflexão filosófica e social sobre a
língua, sobre as formas assumidas pela linguagem, com destaque para seus modos
opressores, vista a partir do olhar de uma escritora experiente. É como as alegorias
platônicas ou nietzschianas, com várias camadas de sentido. Aqui encontramos uma
reflexão sobre a linguagem desde sua vitalidade quando é feliz em “retratar a vida real,
imaginada e possível” até sua impotência em capturar a experiência ou mesmo de fixar,
“pin down”, as formas de terror extremos a povos racializados; desde sua potência para
alcançar o inefável, sua capacidade de fazer ver sem imagens, a qual torna possível uma
pessoa cega falar de cores, por exemplo, ou uma sofredora encontrar o nome para uma
experiência silelnciada ou indizível, até sua potência narcisista, reacionária, geradora de
diferenças cruéis. A língua, aparece como sistema, como coisa viva e, principalmente, como
agência, quer dizer, “como um ato com consequências”. “A linguagem opressiva faz mais do
que representar violência; ela é violência”, diz Morrison. Por isso, Judith Butler abre seu

1Graduanda em Filosofia pela Universidade do Estado da Bahia. E-mail: simone.bsantos72@gmail.com.


2Professor Adjunto da Universidade do Estado da Bahia. Doutor em Filosofia pela Universidade Federal da
Bahia. E-mail: alansampaio7@gmail.com.

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Toni Morrison

Excitable speech, de 1997, com a ponderação de Morrison acerca da vulnerabilidade


linguística no contexto em que discute a teoria dos atos de fala. A palestra de Toni Morrison
é também um ato de fala, e ela faz questão de frisá-lo, um que se dirige à instituição que
premia pela primeira vez uma escritora negra. Ao dizer tudo que ambas representam, no
teatro teórico literário que cria, Morrison espera por consequências. Nesta tradução,
optamos por manter as quebras e ritmo de sua escrita, em detrimento de uma linguagem
de mais fácil compreensão. Traduzimos “language” tanto por “língua” quanto por
“linguagem”, respeitando a amplitude de sentido que o termo inglês tem.

“A língua é pássaro em suas mãos”


Toni Morrison, Nobel de Literatura, 1993

“Era uma vez uma velha. Cega, mas sábia.” Ou era um velho? Um guru, talvez. Ou um
griot acalmando crianças inquietas. Já ouvi essa história, ou uma exatamente igual, na
tradição de diversas culturas.

“Era uma vez uma velha. Cega. Sensata.”

Na versão, sei que a mulher é filha de escravos, negra, americana, e mora sozinha
em uma casinha fora da cidade. Sua reputação de sabedoria é inigualável e indiscutível.
Entre seu povo, ela é ao mesmo tempo lei e sua transgressão. A honra que recebe e a
reverência em que se mantém vão além de sua vizinhança até lugares distantes; até à
cidade onde a inteligência dos profetas campestres é fonte de muita diversão.

Um dia, a mulher recebeu a visita de alguns jovens que pareciam estar decididos a
desmentir sua clarividência e denunciá-la pela fraude que acreditavam que ela era. O plano
deles é simples: entram em sua casa e fazem a única pergunta cuja resposta depende
apenas de sua diferença em relação a eles, uma diferença que consideram como uma
deficiência profunda: sua cegueira. Eles estão diante dela, e um deles diz: “Velha, tenho um
pássaro na mão. Diga-me se está vivo ou morto.”

Ela não responde e a pergunta é repetida.

“O pássaro que estou segurando está vivo ou morto?”

Mesmo assim ela não responde. Ela é cega e não pode ver seus visitantes, muito
menos o que está em suas mãos. Ela não sabe sua cor, gênero ou procedência. Ela apenas
conhece seus motivos.

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Tradução: “A língua é pássaro em suas mãos”

O silêncio da velha é tão longo que os jovens têm dificuldade em conter o riso.

Finalmente ela fala e sua voz é suave, porém severa. “Não sei”, diz ela. “Eu não sei se
o pássaro que você está segurando está vivo ou morto, mas o que eu sei é que ele está em
suas mãos. Está em suas mãos.”

Sua resposta pode ser entendida como significando: se ele está morto, você o
encontrou dessa forma ou o matou. Se estiver vivo, você ainda pode matá-lo. Se é para
permanecer vivo, a decisão é sua. Seja qual for o caso, é sua responsabilidade.

Por exibirem seu poder e sua impotência, os jovens visitantes são repreendidos,
informados de que são responsáveis não apenas pelo ato de zombaria, mas também pela
pequena nesga de vida sacrificada para atingir seus objetivos. A mulher cega desvia a
atenção das afirmações de poder para o instrumento através do qual esse poder é exercido.

A especulação sobre o que (além de seu próprio corpo frágil) aquele pássaro na mão
pode significar sempre me inquietou, mas especialmente pensando agora, como eu tenho
sido, sobre o trabalho que faço que me trouxe a esta corporação. Portanto, escolho ler o
pássaro como uma língua e a mulher como uma escritora experiente. Ela está preocupada
com a forma como a língua na qual ela sonha, dada a ela no nascimento, é tratada, posta em
serviço e até mesmo negada a ela por certos propósitos nefastos. Sendo escritora, ela pensa
na linguagem em parte como um sistema, em parte como uma coisa viva sobre a qual se
tem controle, mas principalmente como agência – como um ato com consequências. Então,
a pergunta que as crianças fizeram a ela – “Está vivo ou morto?” – não é irreal porque ela
considera a língua suscetível à morte, ao apagamento; certamente em perigo e recuperável
apenas por um esforço da vontade. Ela acredita que, se o pássaro nas mãos de seus
visitantes estiver morto, os guardiões são responsáveis pelo cadáver. Para ela, uma língua
morta não é apenas aquela que não é mais falada ou escrita, é uma língua inflexível que se
contenta em admirar a sua própria paralisia. Como língua estadista, censurada e
censuradora. Implacável em seus deveres de policiamento, ela não tem nenhum desejo ou
propósito além de manter o livre alcance de seu próprio narcisismo entorpecente, sua
própria exclusividade e dominação. Por mais moribunda, ela não é sem efeito, já que
ativamente frustra o intelecto, paralisa a consciência, suprime o potencial humano.
Indisposta ao interrogatório, ela não pode formar ou tolerar novas ideias, moldar outros
pensamentos, contar outra história, preencher silêncios desconcertantes. A língua oficial,
forjada para sancionar a ignorância e preservar o privilégio, é uma armadura polida com
um brilho relampejante, uma casca da qual o cavaleiro partiu há muito tempo. No entanto,
aí está: burra, predatória, sentimental. Reverência excitante em colegiais, fornecendo asilo
para déspotas, evocando falsas memórias de estabilidade, harmonia do público.

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Toni Morrison

Ela está convencida de que quando a língua morre, por descuido, desuso,
indiferença e ausência de estima, ou morta por decreto, não só ela mesma, mas todos os
usuários e criadores são responsáveis por sua morte. Em seu país, as crianças mordem a
língua fora e usam balas como alternativa para iterar a voz da mudez, da linguagem
incapacitada e incapacitante, da linguagem que os adultos abandonaram completamente
como um dispositivo para batalhar com sentido, fornecer orientação ou expressar amor.
Mas ela sabe que o suicídio da língua não é apenas a escolha das crianças. É comum entre
os infantis chefes de Estado e mercadores de poder cuja linguagem evacuada os deixa sem
acesso ao que resta de seus instintos humanos, pois eles falam apenas àqueles que
obedecem, ou para forçar a obediência.

O saque sistemático da língua pode ser reconhecido pela tendência de seus usuários
a renunciarem às suas propriedades de parteira matizadas e complexas por ameaça e
subjugação. A linguagem opressiva faz mais do que representar violência; é violência; faz
mais do que representar os limites do conhecimento; limita o conhecimento. Seja a língua
obscurecedora do Estado ou a linguagem falsa da mídia irracional; seja a orgulhosa, porém
petrificada linguagem da academia, ou a linguagem da ciência conduzida por commodities;
seja a linguagem maligna da lei-sem-ética, ou língua projetada para o estranhamento das
minorias, escondendo sua pilhagem racista em sua face literária – ela deve ser rejeitada,
alterada e exposta. É a língua que bebe sangue, abandona vulnerabilidades, enfia suas botas
fascistas sob as crinolinas de respeitabilidade e patriotismo enquanto se move
implacavelmente em direção ao final das contas e às mentes que já não dão mais conta.
Linguagem sexista, linguagem racista, linguagem teísta – todas são típicas das linguagens
policiais de domínio e não podem, não permitem novos conhecimentos ou encorajam a
troca mútua de ideias.

A velha sabe perfeitamente que nenhum mercenário intelectual, nem ditador


insaciável, nenhum político pago ou demagogo; nenhum jornalista falsificado seria
persuadido por seus pensamentos. Existe e haverá língua estimulante para manter os
cidadãos armados e se armando; abatidos e se abatendo em shoppings, tribunais, correios,
playgrounds, quartos e avenidas; língua emocionante e memorizante para mascarar a pena
e o desperdício da morte desnecessária. Haverá mais língua diplomática para apoiar
estupro, tortura, assassinato. Existe e haverá uma língua mais sedutora e mutante
destinada a estrangular as mulheres, a tapar suas gargantas como gansos produtores-de-
patê com suas próprias palavras indizíveis e transgressivas; haverá mais da língua da
vigilância disfarçada de pesquisa; da política e da história calculada para tornar mudo o
sofrimento de milhões; linguagem glamourizada para emocionar os insatisfeitos os
desencorajar de agredirem seus vizinhos; linguagem pseudo-empírica arrogante,
elaborada para trancar pessoas criativas em jaulas de inferioridade e desesperança.

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Tradução: “A língua é pássaro em suas mãos”

Por baixo da eloquência, do glamour, das associações acadêmicas, por mais


estimulantes ou sedutoras que sejam, o coração dessa língua está definhando, ou talvez
nem mesmo batendo – se o pássaro já estiver morto.

Ela tem pensado sobre o que poderia ter sido a história intelectual de qualquer
disciplina se ela não tivesse insistido ou sido forçada a perder tempo e vida que as
racionalizações e representações de dominação exigiam – discursos letais de exclusão
bloqueando o acesso à cognição, tanto para o excludente quanto para o excluído.

A sabedoria convencional da história da Torre de Babel é que o colapso foi uma


desgraça. Que foi a distração ou o peso de muitas línguas que precipitou a arquitetura
fracassada da torre. Essa única língua monolítica teria acelerado a construção e o céu teria
sido alcançado. O céu de quem, ela se pergunta? E de que tipo? Talvez a conquista do
Paraíso tenha sido prematura, um pouco apressada se ninguém podia se dar ao trabalho
de entender outras línguas, outras visões, outro período de narrativas. Se eles tivessem, o
céu que eles imaginaram poderia ter sido encontrado a seus pés. Complicado, exigente, sim,
mas uma visão do céu como vida; não o céu como pós-vida.

Ela não gostaria de deixar seus jovens visitantes com a impressão de que a língua
deveria ser forçada a permanecer viva apenas para existir. A vitalidade da língua reside em
sua capacidade de retratar a vida real, imaginada e possível de seus falantes, leitores,
escritores. Embora sua postura às vezes seja para deslocar a experiência, não é um
substituto para ela. Ele se curva em direção ao lugar onde o significado pode estar. Quando
um Presidente dos Estados Unidos pensou sobre o cemitério no qual seu país havia se
tornado, e disse: “O mundo pouco notará nem se lembrará por muito tempo do que
dizemos aqui. Mas ele nunca se esquecerá o que eles fizeram aqui”, suas palavras simples
são estimulantes em suas propriedades de suporte à vida, porque se recusaram a
encapsular a realidade de 600.000 homens mortos em uma guerra racial cataclísmica.
Recusando-se a monumentalizar, desprezando a “palavra final”, o preciso “somatório”,
reconhecendo seu “pobre poder de somar ou depreciar”, suas palavras sinalizam
deferência para com a incapturabilidade da vida que lamentam. É a deferência que a move,
o reconhecimento de que a linguagem nunca pode, de uma vez por todas, se equiparar à
vida. Nem deveria. A língua nunca pode “fixar” a escravidão, o genocídio, a guerra. Nem
deve desejar a arrogância de ser capaz de fazê-lo. Sua força, sua felicidade está em seu
alcance para o inefável.

Seja ela grande ou esguia, escavando, explodindo ou recusando-se a santificar; se ri


alto ou é um grito sem alfabeto, a opção da palavra, o silêncio escolhido, a língua intocada
surge em direção ao conhecimento, não à sua destruição. Mas quem não sabe da literatura

Anãnsi: Revista de Filosofia, Salvador, v. 1, n. 2, 2020.


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ISSN: 2675-8385
Toni Morrison

proibida porque é interrogativa; descreditada porque é crítica; apagada, porque


alternativa? E quantos ficam indignados com a ideia de uma língua autodestruída?

O trabalho com as palavras é sublime, ela pensa, porque é gerador; faz sentido que
assegura nossa diferença, nossa diferença humana – a maneira tal qual somos como
nenhuma outra vida.

Nós morremos. Esse pode ser o sentido da vida. Mas fazemos linguagem. Essa pode
ser a medida de nossas vidas.

“Era uma vez, …” visitantes fazem uma pergunta a uma velha. Quem são elas, essas
crianças? O que eles acharam daquele encontro? O que eles ouviram nessas palavras finais:
“O pássaro está em suas mãos”? Uma frase que aponta para a possibilidade ou uma que
solta uma trava? Talvez o que as crianças ouviram foi “Não é problema meu. Sou velha,
mulher, negra, cega. A sabedoria que tenho agora consiste em saber que não posso ajudá-
lo. O futuro da língua é de vocês.”

Eles estão lá. Suponha que nada estivesse em suas mãos? Suponha que a visita fosse
apenas um estratagema, um truque para conseguir falar, levado a sério como nunca foi
antes? Uma chance de interromper, de violar o mundo adulto, seu miasma de discurso
sobre eles, por eles, mas nunca para eles? Perguntas urgentes estão em jogo, incluindo a
que eles fizeram: “O pássaro que seguramos está vivo ou morto?” Talvez a pergunta
significasse: “Alguém poderia nos dizer o que é vida? O que é a morte?” Nenhum truque;
sem bobagens. Uma pergunta direta, digna da atenção de alguém sábio. Alguém velho. E se
os velhos e sábios que viveram a vida e enfrentaram a morte também não conseguem
descrever, quem pode?

Mas ela não; ela mantém seu segredo; sua boa opinião sobre si mesma; seus
pronunciamentos gnômicos; sua arte sem compromisso. Ela se mantém à distância,
reforça-a e recua para a singularidade do isolamento, em um espaço sofisticado e
privilegiado.

Nada, nenhuma palavra segue sua declaração de transferência. Esse silêncio é


profundo, mais profundo do que o significado disponível nas palavras que ela falou.
Estremece este silêncio e as crianças, irritadas, preenchem-no com uma língua inventada
na hora.

“Não há um discurso”, eles perguntam a ela, “nenhuma palavra que você possa nos
dar que nos ajude a superar seu dossiê de fracassos? Através da educação que você acabou
de nos dar, esta que não é educação nenhuma já que estamos prestando muita atenção

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Tradução: “A língua é pássaro em suas mãos”

tanto no que você fez, como também no que você disse? Na barreira que você ergueu entre
generosidade e sabedoria?

“Não temos pássaro qualquer em nossas mãos, nem vivo nem morto. Temos apenas
você e nossa pergunta importante. O nada em nossas mãos é algo que você não suportaria
contemplar, nem mesmo adivinhar? Você não se lembra de ser jovem quando a língua era
mágica sem significado? Quando o que você poderia dizer, poderia não significar? Quando
o invisível era aquilo que a imaginação se esforçou para ver? Quando as perguntas e
demandas por respostas queimaram tanto que você tremia de fúria por não saber?

“Temos que começar a consciência com uma batalha de heroínas e heróis como você
já lutou e perdeu, deixando-nos sem nada em nossas mãos, exceto o que você imaginou
estar lá? Sua resposta é engenhosa, mas sua engenhosidade nos embaraça e deveria te
constranger. Sua resposta é indecente em sua autocongratulação. Um roteiro feito para a
televisão que não faz sentido se não houver nada em nossas mãos.

“Por que você não estendeu a mão, nos tocou com seus dedos macios, atrasou a frase
de efeito, a lição, até saber quem éramos? Você desprezou tanto nosso truque, nosso modus
operandi que não percebeu que ficamos perplexos sobre como chamar sua atenção? Nós
somos jovens. Imaturos. Ouvimos durante toda a nossa curta vida que temos que ser
responsáveis. O que isso poderia significar na catástrofe que este mundo se tornou; onde,
como disse um poeta, ‘nada precisa ser exposto, pois tudo já está na cara’. Nossa herança é
uma afronta. Você quer que tenhamos seus velhos olhos vazios e vejamos apenas crueldade
e mediocridade. Você acha que somos estúpidos o suficiente para perjurar a nós mesmos
repetidamente com a ficção da nacionalidade? Como se atreve a nos falar sobre o dever
quando estamos mergulhados na toxina do seu passado até a cintura?

“Você nos banaliza e banaliza o pássaro que não está em nossas mãos. Não há
contexto para nossas vidas? Nenhuma música, nenhuma literatura, nenhum poema cheio
de vitaminas, nenhuma história ligada à experiência que você possa repassar para nos
ajudar a começar com força? Você é uma adulta. A velha, a sábia. Pare de pensar em salvar
sua cara. Pense em nossas vidas e conte-nos seu mundo particularizado. Invente uma
história. A narrativa é radical, criando-nos no exato momento em que está sendo criada.
Não culparemos você se o seu alcance exceder a sua compreensão; se o amor então inflama
suas palavras elas caem em chamas e nada resta além de sua queimadura. Ou se, com a
reticência das mãos de um cirurgião, suas palavras suturarem apenas os lugares por onde
o sangue pode fluir. Sabemos que você pode nunca fazer isso apropriadamente – de uma
vez por todas. A paixão nunca é suficiente; nem é habilidade. Mas tente. Por nossa causa e
pela sua, esqueça seu nome na rua; diga-nos o que o mundo tem sido para você, nos lugares
escuros e na luz. Não nos diga em que acreditar, o que temer. Mostre-nos a saia larga da

Anãnsi: Revista de Filosofia, Salvador, v. 1, n. 2, 2020.


231
ISSN: 2675-8385
Toni Morrison

crença e o ponto que desfaz o nó do medo. Você, velha, abençoada pela cegueira, pode falar
a língua que nos diz o que só a língua pode: como ver sem imagens. Só a língua nos protege
do terror das coisas sem nomes. Só a linguagem é meditação.

“Diga-nos o que é ser mulher para que possamos saber o que é ser homem. O que se
move na margem. O que é não ter um lar neste lugar. Para ficar à deriva daquele que você
conheceu. O que é viver na periferia de cidades que não suportam sua companhia.”

“Conte-nos sobre os navios que se afastaram da costa na Páscoa, placenta em um


campo. Conte-nos sobre uma carroça cheia de escravos, como cantavam tão baixinho que
sua respiração era indistinguível da neve que caía. Como eles sabiam pela curvatura do
ombro mais próximo que a próxima parada seria a última. Como, com as mãos orando em
seu sexo, eles pensaram no calor, depois no sol. Erguendo seus rostos como se estivesse lá
às suas mãos. Virando como se estivesse lá para ser tomado. Eles param em uma pousada.
O motorista e seu companheiro entram com a lâmpada, deixando-os zumbindo no escuro.
O vazio do cavalo flui na neve sob seus cascos e seu assobio e degelo são a inveja dos
escravos congelados.

“A porta da pousada se abre: uma menina e um menino se afastam da luz. Eles


sobem na carroceria. O menino terá uma arma em três anos, mas agora carrega um lampião
e uma jarra de cidra quente. Eles passam de boca em boca. A menina oferece pão, pedaços
de carne e algo mais: um olhar nos olhos de quem ela serve. Uma ajuda para cada homem,
duas para cada mulher. E uma olhada. Eles olham para trás. A próxima parada será a última.
Mas não esta. Esta aqui está aquecida.”

Tudo fica quieto novamente quando as crianças terminam de falar, até que a mulher
interrompe o silêncio.

“Finalmente”, ela diz, “eu confio em vocês agora. Eu confio em você com o pássaro
que não está em suas mãos porque você realmente o pegou. Vejam. Como é linda, essa coisa
que fizemos – juntos.”

232 Anãnsi: Revista de Filosofia, Salvador, v. 1, n. 2, 2020


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Revista Anãnsi, Salvador, 2020
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Resenha Sim, Fanon, novamente, no Brasil, principalmente...

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Departamento de Educação

Sim, Fanon, novamente, no Brasil, principalmente: Pele negra,


máscaras brancas (2020)
Flávio Rocha de Deus 1

Resenha de FRANTZ, Fanon. Pele Negra, máscaras brancas. Tradução de Sebastião


Nascimento e colaboração de Raquel Camargo; Prefácio de Grada Kilomba; Posfácio de
Deivison Faustino; Textos Complementares de Francis Jeanson e Paul Gilroy. São Paulo:
Ubu Editora, 2020.

***
Já tendo publicado neste mesmo ano Alienação e liberdade – Escritos psiquiátricos
(2020), obra de Frantz Fanon que reúne textos do autor acerca da relação entre alienação
colonial e doenças mentais, a Editora Ubu – São Paulo – lançou em novembro deste ano
uma nova edição do primeiro trabalho do filósofo e psiquiatra antilhano. Publicado pela
primeira vez em 1952, Pele negra, máscaras brancas, se tornou uma das principais
referências teóricas dos estudos (contra/pós/anti/des/de) coloniais ao mostrar como as
estruturas raciais de uma sociedade afetam a construção da subjetividade dos indivíduos,
seus desejos e a autopercepção de seus papeis sociais e existenciais. Fanon nos mostra
que o quão profundos são, e estão sendo, os efeitos da colonialidade.

Quando conheci Fanon, entrei em tamanho estado de autoanálise que não seria
exagero dizer que vasculhei quase todas as minhas memórias em busca de possíveis
“traumas” que justificassem a construção de uma “máscara branca”. É muito particular a
forma como Fanon nos coloca em diálogo crítico não apenas com a coletividade a nossa
volta, mas também com nossa subjetividade mais íntima. De qualquer maneira,
independente da existência ou não de tais máscaras, o que devemos admitir é que só
alguém com incontestável talento poderia ter escrito um texto tão cirúrgico com tamanha
sensibilidade. Grada Kilomba, no prefácio da nova edição brasileira, comunica-nos a

1Graduando em Filosofia pela Universidade do Estado da Bahia. Professor da rede privada de ensino,
Professor de Filosofia do Pré-Acadêmico Gradação da UFPE e Residente Pedagógico do Instituto Federal da
Bahia. Integra o Laboratório de Africologia e Estudos Ameríndios da UFRJ, a Associação Latino Americana
de Filosofia Intercultural (ALAFI) e o Grupo de Pesquisa Literatura, Cinema e a Nova Gramática Política.
Atualmente coordena o Projeto Euroáka, que investiga como o eurocentrismo se apresenta nas estruturas
epistémicas e curriculares dos cursos superiores de humanidades, letras e artes.

Anãnsi: Revista de Filosofia, Salvador, v. 1, n. 2, 2020.


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Flávio Rocha de Deus

história de sua descoberta da obra fanoniana e sua importância para sua formação; alega
nunca ter “lido nada assim” antes, “tão brilhante e inteligente, tão poderoso”, “seu estilo
literário transbordava em conteúdo e significado”. Ainda segundo a escritora portuguesa:
“a força da sua escrita era tal que, enquanto eu lia, o meu corpo precisava voltar a
superfície, para um fôlego de ar”2. Deivison Faustino, professor da Universidade Federal
de São Paulo e um dos mais sólidos pesquisadores das obras de Fanon, que assina o
posfácio da edição, nos recomenda após a leitura do livro: “fechá-lo por um estante,
respirar fundo e, como os sobreviventes de uma explosão apocalíptica que ainda nem
aconteceu, tatear dentro e ao redor de nós mesmos para aferir o tamanho do estrago.”3

A obra de Fanon possui uma tese central: nas sociedades coloniais4 o negro,
ordinariamente, encontra-se como um “não-ser” que busca o auto “embranquecimento”
de seus atos, vínculos e práticas para que, afastando-se de sua negritude, o mesmo possa
se considerar mais próximo do ideal. Fanon já nos deixa duas premissas: Primeiro, “os
brancos se consideram superiores aos negros”; e segundo: por meio de um complexo de
inferioridade, travestido nos desejos legítimos e performances miméticas decorrentes da
colonialidade, “os negros querem demostrar aos brancos, custe o que custar, a riqueza de
seu pensamento, o poderio equiparável da sua mente”.5 Fanon conclui: “pour le Noir, il n'y
a qu'un destin. Et il est blanc”. 6

As formas de se alcançar tal destino são as mais diversas, apesar de citar outros
exemplos, nesta obra Fanon dá centralidade a dois caminhos de busca pelo
embranquecimento. O primeiro deles é o domínio do idioma do colonizador, de acordo
com Fanon, através do domínio da língua da metrópole o negro da colônia adquire o senti-
mento de superioridade a seus conterrâneos, pois “tão mais branco será o negro das
Antilhas, quer dizer, tão mais próximo estará do homem verdadeiro, quanto mais tiver
incorporado a língua francesa.”. 7 “O ‘desembarcado’ [Negro que retorna as Antilhas após
estadia na França] desde seu primeiro contato, se afirma; só responde em francês e

2 Prefácio de Grada Kilomba, p. 13.


3 Posfácio de Deivison Faustino, p. 245.
4 Locais desconhecidos pelos europeus, povoados por coletividades autônomas, independentes, com seus

costumes, tradições, formações familiares e afetivas, epstemologias, crenças religiosas, amores e desejos
próprios – que, ao serem “descobertos” pelos próprios europeus, foram dominados. Comumente tal
dominação ocorre pela violência brutal, epstemicídio e aniquilação cultural, e posteriormente tais modos
de existências são enquadrados para se adequar ao papel subalterno de colônia (locais sistemicamente
saqueados por europeus), passando a se organizar mediante os interesses do colonizador. Em alguns casos,
especialmente nas américas, eles mesmos eram armas biológicas, pois, contaminados pelas doenças virais,
ao entrarem em contato com os povos originários, transmitiram para eles as doenças e enfermidades que
já eram comuns a seus corpos. Cf. “Como colonizadores infectaram milhares de índios no Brasil com
presentes e promessas falsas” (Disponível em: <bbc.com/portuguese/brasil-53452614>.) e “Revelada a
causa do misterioso ‘cocoliztli’, o mal que dizimou os índios das Américas” (Disponível em: <brasil.elpais.
com/brasil/2018/01/15/ciencia/1515997924_75 1783.html>)
5 Fanon, p. 24.

6 “Para o homem negro há apenas um caminho. E ele é branco”, p. 185 da primeira edição francesa.

7 Fanon, p. 31

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Resenha Sim, Fanon, novamente, no Brasil, principalmente...

muitas vezes deixa de entender o criolo”. 8 “Na França se diz: falar como um livro. Na
Martinica: falar como um branco”. 9

O outro caminho que ocupa, respectivamente, o segundo (A mulher de cor e o


branco) e terceiro capítulo (O homem de cor e a branca), refere-se a busca do negro por
reconhecimento que anceia, calcada na reciprocidade do afeto romântico do branco,
valorar a si enquanto digno ou não de amor. “Não quero ser reconhecido como negro, mas
como branco. [...] Quem pode me propiciar isso, se não a branca? Ao me amar era ela me
prova que sou digno de um amor branco. Sou amado como branco. Sou um branco.”, 10
assim diz o homem negro para si; e com igual busca pelo branqueamento da raça, a
mulher de cor “antilhana fará um esforço, em seus flertes ou em seus casos, para eleger o
menos negro”11.

Seus outros capítulos, “Sobre o suposto complexo de dependência do colonizado”;


“A experiência vivida do negro”; “O negro e a psicopatologia”; e o “o negro e o reconheci-
mento”, dão prosseguimento a crítica fanoniana que tem por objetivo “ajudar o negro a
se libertar do arsenal complexual que brotou no seio da situação colonial.”12. Em diálogo
com diversos outros pensadores como Marx, Mannoni, Sartre, Hegel, Freud, Cesárie, etc.,
Fanon constrói com muita originalidade, tanto estilística quanto intelectual, um texto que
abarca, substancialmente, as principais questões que atravessam o corpo negro colonial
– perdão pela redundância. Uma vez, em prosseguimento a meus estudos acerca do
reconhecimento em Fanon, um bom amigo ao ver meu espirito em êxtase, com o desejo
de conversar sobre meu tema de pesquisa, me perguntou: qual a parte do livro que eu
mais preciso ler? Diga que eu lerei. “Todas as 200 páginas. Sem exceção.” respondi.

Não é à toa que o capítulo que encerra tal obra antes a conclusão: “O negro e o
reconhecimento”, seja aquele em que Fanon em um diálogo opositor a Hegel, apropri-
ando-se da dialética do senhor e escravo mostra as barreiras para que uma relação
sistêmica entre colono/colonizador finde em uma síntese que desague no mútuo
reconhecimento. Fanon percebe que tais estruturas aprisionam negros e brancos em
essencialismos raciais que condicionam suas percepções próprias acerca de seus devidos
papeis na existência. “O movimento ético, político e estético inaugurado por Pele negra,
máscaras brancas, abre um espectro vastíssimo de possibilidade de reflexões,
(auto)análise e, sobretudo, ações.” 13 Ele nos aponta a necessidade dos indivíduos em
descentralizarem seus olhares e interromperem constante peregrinação do colono em
busca da aceitação do colonizador da metrópole como principal meta de autorrealização.

Pele negra, máscaras brancas foi escrito em 1950 como trabalho de conclusão dos
estudos de Fanon em Psiquiatria, porém, foi recusado pela banca que desejavam uma

8 Fanon, p. 38.
9 Fanon, p. 35.
10 Fanon, p. 79.
11 Fanon, p. 62.
12 Fanon, p. 45.
13 Posfácio Deivison Faustino, p. 262.

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Flávio Rocha de Deus

“abordagem ‘positiva’ [que tivesse] mais bases físicas para os fenômenos psicológicos”. 14
A questão é que “tratar do racismo antinegro no contexto francês soava estranho à
academia da época. Havia a ideia de que o racismo sistêmico era um problema dos
Estados Unidos, que não estava presente na França. Inclusive, esse pensamento existe até
hoje”15. Recusado não apenas por sua banca, mas também em territórios inteiros, o livro
inaugural de Fanon também chegou a ser proibido em alguns locais.

No final dos anos 1960 a obra foi traduzida em Portugal, no Porto, e de imediato
censurada e eliminada do mercado pelos serviços secretos, não voltando a
reaparecer até hoje. A sua circulação durou apenas alguns dias – após ter sido
distribuída para leitura, ela foi proibida.
No documento oficial de censura, lê-se ‘O autor é negro, comunista [...]. Trata-se
duma diatribe contra a civilização ocidental, numa pseudodefesa das civilizações
negra, oriental e índia. Para proibir.’ Com o verbo realçado. 16

O fato de que tal obra, atualmente tão relevante e aclamada, ter sido negada em
primeira estância pela banca e posteriormente pelos poderes governamentais, nos
direciona a duas importantes reflexões. A primeira delas refere-se a academia: as
instituições de ensino superior são pharmakos raciais, locais que podem ser tanto veneno
quanto remédio para à descolonialidade. Por serem instituições do conhecimento elas
podem nos ajudar a realizar, através da pesquisa, do ensino, das atividades de extensão e
principalmente das patiologias,17; a autoanálise, reflexão e desconstrução da coloni-
alidade, ajudando-nos na construção de organizações sistêmicas, artísticas e intelectuais
de combate ao racismo. Entretanto, por também ser uma instituição, as universidades
ainda nos direcionam a reproduzir as limitações da tradição, e como nossa tradição
também é europeia, também há colonialismo dentro de nós. Como bem nos aponta Fanon:
é o povo colonizado, um “povo em cujo seio se originou um complexo de inferioridade em
decorrência do sepultamento da originalidade cultural local”. 18

Lembro-me de uma história uma vez dita em um dos eventos do curso de Filosofia
da Universidade do Estado da Bahia. Conta-se que após anunciarem “Finalmente temos
um curso de Filosofia” para alguém do departamento, o interlocutor logo respondeu: “De
fato, agora podemos dizer que a universidade está completa, que é de fato uma
universidade”. Acredito que o mesmo pode ser dito sobre Fanon neste momento: uma
universidade brasileira que, tendo disponível, não possui um exemplar sequer deste
autor, talvez diga muito sobre o pouco que tem.

14 Prefácio de Lewis Gordon, Pele negra, máscara brancas. (Salvador: EDUFBA, 2008, p. 13)
15 Cf. “Por que ‘Pele negra, máscaras
brancas’ deve ser lido por brancos e negros”. Disponível em: <oglobo.gl
obo.com/cultura/por-que-pele-negra-mascaras-brancas-deve-ser-lido-por-brancos-negros-247 54752>.
16 Prefácio de Grada Kilomba, p. 14

17 Neologismo coloquial que indica debates e discursões de temas pertinentes a contemporaneidade de

seus interlocutores que ocorrem naturalmente nos espaços físicos das universidades para além da sala de
aula. Também pode ser entendido como: “saberes complementares desenvolvidos no pátio”.
18 Fanon, p. 32

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Resenha Sim, Fanon, novamente, no Brasil, principalmente...

E por fim, a segunda questão central: Se rejeitada no passado pela banca, e hoje
aclamado, traduzido para vários idiomas, publicado em dezena de países, em milhares de
estantes, com milhões de leitores em todo mundo, e já em sua segunda edição no Brasil é,
como evidencia nosso título, porque sim, Fanon está tão atual como nunca. Tão necessário
quanto nunca, principalmente nas terras tupiniquins. “É normal na Martinica sonhar com
uma salvação que consiste em branquear magicamente”, E ainda no Brasil tal sonho
também é sonhado. O ciclo de opressão e impossibilidades puras de reconhecimento
causado pelos complexos deixados pelos séculos de colonialismo ainda tornam o Brasil
um país estruturalmente racista e norte/eurocentralizado. Desde os padrões muito bem
determinados dos fenótipos físicos que compõe as classes sociais, até as metas
existenciais para felicidade, dignidade e autoafeto. No Brasil, o país que conseguiu
transformar o estupro sistemático de mulheres vulnerabilizadas pela condição racial no
orgulho alegre da “democracia racial" de um povo miscigenado, tem muito trabalho pela
frente que, provavelmente, pelas conjunturas políticas que nos circundam, será cada vez
mais difícil. Até lá, teremos boas iniciativas, em diversas esferas, incluindo a publicação e
popularização de importantes pensadores, como é o caso desta obra que aqui falamos,
como é o caso de pensadores como Fanon.

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Rafael Borges da Silva Vitorio

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Raça, corpo e existência: uma leitura pós-colonial em Fanon


Race, body and existence: a post-colonial reading in Fanon

Rafael Borges da Silva Vitorio 1

Resumo: No presente artigo, descrevemos a análise de Frantz Fanon no clássico Pele negra, máscaras
brancas sobre a posição psicoexistencial do negro, sua relação com o corpo, a subjetividade, o ser Outro e o
mundo nos campos da cultura, da sociedade e das ciências. Apresentamos, em uma perspectiva pós-colonial,
como a existência do sujeito negro se reflete, a partir da crítica de Fanon, nos conceitos estabelecidos pelo
Ocidente na Modernidade, como a representação do negro mistificado e as bases epistemológicas que
reforçam estereótipos destinados a ele.

Palavras-chave: Fanon; Negro; Pós-Colonial; Representação; Corpo.

Abstract: In this article we describe Fanon's analysis in the classical Black skin, white masks about the
psycho-existential position of black people, their relationship with their body, subjectivity, be Other one and
the world in the regarding to of culture, society and sciences. We present a postcolonial perspective about
how the existence of black people is reflected here, based on Fanon's critique about concepts established by
the West in Modernity, such as the representation of the mystified black person and the epistemological basis
that reinforce stereotypes intended for this individual.

Keywords: Fanon; Black; Postcolonial; Representation; Body.

Introdução Stuart Hall (2009) e Kwame Anthony


Appiah (1997), reivindicam em Fanon uma
Os estudos culturais ou pós-
ruptura com a noção hegeliana de
coloniais têm por base uma perspectiva
identidade, partindo do argumento de que
pós-estruturalista, o que têm levado
persiste uma interdição ontológica que
alguns autores a retomarem o estudo
leva o sujeito negro a não se reconhecer
sobre o colonialismo como discurso ou
numa ideia essencialista de homem. Do
paradigma na sociedade moderna, sendo
presente artigo, destacamos um Fanon que
esta promotora de experiências
não fala de uma concepção de mundo
racializadas. Autores pós-coloniais, como
restritamente metafísica, mas também

1Graduado em Filosofia pela Universidade Estadual da Bahia. Pesquisa na área de filosofia e teoria social:
gênero, questões etnorraciais, colonialismo e pós-colonialismo. E-mail: rafaelvitorio@gmail.com.

Anãnsi: Revista de Filosofia, Salvador, v. 1, n. 2, 2020 14


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Artigos Raça, corpo e existência: uma leitura pós-colonial em Fanon...

cultural, social, psicológica em suas negra, com base na representação que o


instâncias, e de todas as questões que sistema colonialista impõe sobre ela.
influem sobre a consciência do sujeito
As primeiras palavras de Fanon em
racializado. Este sujeito tende a branquear
Pele negra, máscaras brancas, ressoam o
ou desaparecer, não sendo dada nem a
problema do desejo enquanto realização
opção de adentrar numa relação dialética,
da existência humana: O que quer o
como teoriza Hegel. A dialética do senhor e
homem? O que quer o homem negro?
do escravo é a alegoria do problema do
Admitindo que, diante da sociedade, o
reconhecimento e o que fundamenta a
negro ainda não é um homem, dele não se
ética do Eu e do Outro na ontologia
espera desejo, vontade, humanidade. “Há
hegeliana. O reconhecimento é o que
uma zona de não-ser, uma região extraor-
propicia a certeza de si-mesmo, a expansão
dinariamente estéril e árida, uma rampa
na consciência de si universal, numa
essencialmente despojada” (ibid., p. 26). O
relação com o Outro. E o que Hegel busca
que Fanon admite, por meio da sua
explicar nessa conceituação é que cada
explanação sobre a filosofia hegeliana, é
consciência de si procura o absoluto (cf.
que é a partir do desejo que o homem é
FANON, 2008, p. 181). O que defendemos
considerado e realizado. Reconhecido
ao longo do texto, por base de uma crítica
como existência, ultrapassa o limite do
pós-colonial em Fanon, é que o sujeito
aqui-agora, da sua imediaticidade, do
racializado, reduzido a um corpo, é
enclausuramento à sua reificação,
interditado de uma ontologia, isto é,
objetificação. O homem é para além e para
impossibilitado de chegar a uma
outra coisa (cf. ibid., p. 181).
consciência de si, do seu desejo e da sua
realização existencial. Baseado na ideia de que o homem,
obrigado a projetar a si e ao mundo muitas
Pele negra, máscaras brancas é a
vezes, devido as dispersões e confusões
obra inaugural do pensamento fanoniano;
que são próprias da antinomia que lhe é
nela, o filósofo analisa os engendramentos
inerente, Fanon evidencia que ainda assim
da situação de países colonizados com
a consciência humana busca harmonia e
enfoque nos povos racializados, sujeitos a
afeto. Mesmo diante desta premissa,
uma política de ordem racista e
assevera que, do homem negro nada se
segregacionista. O discurso colonial
espera, a não ser que seja um homem
assujeita esses povos, criando em suas
negro, que nem pode ser ele mesmo em
subjetividades um complexo psicoexis-
suas possibilidades de existência. Animali-
tencial que os distanciam do ideal de
zado, inferiorizado, subordinado e comple-
humano. O artigo busca delinear os meios
xado através de alcunhas e imagens que
pelos quais o colonialismo sustenta e
definem o sujeito racializado. O desvio
forma esses tais complexos, mostrando
existencial do negro foi criado e imposto
argumentos de Fanon, e de alguns de seus
pela civilização e cultura brancas, o que fez
comentadores, sobre a questão da
o negro buscar outros sistemas de
existência e subjetividade de pessoas
referências. Eles, porém, ampliaram ainda
negras (o negro como não-ser), da noção
mais a sensação de vazio e desvio. Fanon
de raça (o mito negro) e da corporeidade

15 Anãnsi: Revista de Filosofia, Salvador, v. 1, n. 2, 2020


ISSN: 2675-8385
Rafael Borges da Silva Vitorio

não hesita em demonstrar a criação de um branco, já o negro mal, como o que se


sistema de figuras, personas, alegorias do encoleriza contra o senhor branco: “do
cinema, de jornais, livros, rótulos, cartazes negro exige-se que seja um bom preto”
publicitários que reforçam estereótipos e (ibid., p. 47). A representação do mal, do
alimentam o imaginário popular com a Diabo, do selvagem, do antropofágico ou
desmoralização do negro, com idealiza- primitivo é sempre figurada por
ções alienantes e mistificadoras deste arquétipos do negro ou do indígena2; ao
sujeito. O negro aparece não só como tentar fugir de tais estereótipos, o sujeito
objeto, mas como “um objeto em meio a negro procura adotar subjetivamente uma
outros objetos” (ibid., p. 103). atitude de branco ou identificar-se com a
figura do branco. Supomos esta adoção
O negro lança sobre si um olhar, de
subjetiva de uma consciência fabricada
acordo com Fanon, carregado de
pelo branco ao apontar que, por vezes, o
objetificação para chegar a um
negro reivindica ao lugar do colonizador,
conhecimento de si. Descobre sua
como aponta Fanon ao expor um
negridão, suas características étnicas e,
comportamento alienado dos que voltam
pelo discurso colonial alienante, pela
ao seu país natal (a colônia). Para que o
linguagem colonialista, novamente sua
“bom preto” permaneça inerte ao lugar
existência é subordinada a suas referên-
que lhe foi “compensado”, é preciso que ele
cias. Aprisionado pelo branco, desorien-
possua um sorriso y’a bon banania,3 ou que
tado, incapaz de estar no espaço aberto
seja a fiel cópia das representações
com o outro, o negro distancia-se para
exageradas de black face dos artistas
longe de si, do seu estar-aqui, da sua
americanos: às vezes, malandro,
corporeidade presente no espaço-tempo,
ameaçador, outras, orgulhoso, feio. Aná-
constituindo-se como objeto e não como
logo a essas prescrições contemporâneas a
sujeito. O negro não desejava tal recon-
Fanon, percebemos que não só homens,
sideração, tal esquematização. Ele quer ser
mas também mulheres negras e racializar-
homem em meio a outros homens, e não
das são enclausuradas a representações
objeto em meio a outros objetos. Quer
depreciativas. É preciso que a mulher
edificar o mundo conjuntamente, ser um
negra seja representada como a “nega
ser de ação, social, relacional, afetivo.
maluca” bem como na música de Evaldo
A construção do negro como um Ruy e Fernando Lobo de 1950, ou que seja
negro bom é aquela que obedece ao senhor a tentadora, fácil, hipersexual, raivosa,

2A expressão aqui utilizada, também presente em Fanon, corresponde à categoria dos nativos das colônias.
3Reproduzimos aqui a nota do tradutor Renato Silveira (In: FANON, 2008, p. 47) para explicar o sentido da
expressão: “A expressão y’a bon banania remete a rótulos e cartazes publicitários criados em 1915 pelo
pintor De Andreis, para uma farinha de banana açucarada instantânea a ser usada ‘por estômagos delicados’
no café da manhã. O produto era caracterizado pela figura de um tirailleur sénégalais (soldado de infantaria
senegalês usando armas de fogo), com seu filá vermelho e seu pompom marrom, característicos daquele
batalhão colonial. O ‘riso banania’ foi denunciado pelo senegalês Léopold Sedar Senghor em 1940, no prefácio
ao poema ‘Hóstias negras’, por ser um sorriso estereotipado e um tanto quanto abestalhado, reforço ao
racismo difuso dominante. Em 1957, o publicitário Hervé Morvan criou uma versão mais gráfica, mais
modernizada, do ‘sorriso banania’, permanecendo sua estilização em uso nas caixas do produto até o início
da década de 1980”.

Anãnsi: Revista de Filosofia, Salvador, v. 1, n. 2, 2020 16


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Artigos Raça, corpo e existência: uma leitura pós-colonial em Fanon...

perigosa; ou a boa mãe negra, a mãe de subitamente livre de asperezas, me


todos, empregada de todos e criança de devolveu uma leveza que eu pensava
perdida e, extraindo-me do mundo, me
todos.4 A linguagem e a cultura ocidental
entregou ao mundo. Mas, no novo mundo,
colonizadora são determinantes no logo me choquei com a outra vertente, e o
processo de alienação das imagens criadas outro, através de gestos, atitudes, olhares,
sobre o negro, a intenção dessas fixou-me como se fixa uma solução com um
representações é o aprisionamento do estabilizador. Fiquei furioso, exigi
explicações... não adiantou nada. Explodi.
sujeito a essas imagens, vítima eterna de
Aqui estão os farelos reunidos por um
uma essência, de um fenômeno, um outro eu. (Ibid., p. 103).
aparecer pelo qual não é responsável.
Tudo o que foge aos fenômenos O filósofo descreve o enclausu-
preestabelecidos ou às máscaras brancas ramento do negro como um processo de
de um sujeito negro é perigoso ao discurso fixação do olhar, da objetividade, do desejo
colonialista. do outro: o branco. A fixação, a imposição
esmagadora, reduz o sujeito a nada, a um
não-ser. O negro acaba por se ver pelo
O negro como não-ser: reflexo do outro. Mesmo que exista o
uma interdição ontológica momento do “ser para-o-outro” do qual
fala Hegel, “qualquer ontologia torna-se
Como o negro reage ao aprisi- irrealizável em uma sociedade colonizada
onamento às imagens criadas pelo e civilizada” (ibid., p. 103). O sistema
colonizador? Segundo Fanon, o negro, colonial é narcísico, produz um colonizado
desejando descobrir o sentido de si e das para ser semelhante ao colonizador, ao
coisas, processo existencial comum do mesmo tempo que o interdita de ser como
homem, se descobre objeto e entrega sua o colonizador. A cosmovisão do homem
objetividade ao outro (branco). Esta branco, imposta sobre subjetividades
“entrega” opera quando a existência negra, negras colonizadas, impede o acesso
alienada e irrefletida, sofre uma redução destas à sua própria condição de sujeito e
do seu corpo a uma aparência ou signo proíbe qualquer explicação ontológica:
fixados pela linguagem do colonizador. O
A ontologia, quando se admitir de uma vez
enclausuramento em uma objetividade
por todas que ela deixa de lado a
condiz com a interdição do negro ao existência, não nos permite compreender
domínio do desejo e da sua própria o ser do negro. Pois o negro não tem mais
subjetividade, sendo ele fixado somente de ser negro, mas sê-lo diante do branco.
nas condições de possibilidades (do real, [...] Aos olhos do branco, o negro não tem
resistência ontológica. De um dia para o
da linguagem e do conhecimento) do
outro, os pretos tiveram de se situar diante
mundo branco. de dois sistemas de referência. Sua
metafísica ou, menos pretensiosamente,
Enclausurado nesta objetividade
seus costumes e instâncias de referência
esmagadora, implorei ao outro. Seu olhar
foram abolidos porque estavam em
libertador, percorrendo meu corpo

4A feminista negra Carla Akotirene, aborda a denúncia que fez a pensadora e abolicionista afro-americana
Sojourner Truth sobre a infantilização da mulher negra: “Eu quero que você considere que sou uma criança
de alguém e, eu tenho idade suficiente para ser mãe de todo mundo aqui” (AKOTIRENE, 2018, p. 21).

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contradição com uma civilização que não centralizam o discurso euro-americano


conheciam e que lhes foi imposta. (Ibid., p. sobre o homem. Ambas categorias
103).
disseminam ideias acerca do animal-
Conforme aponta Fanon, o negro, homem: seja para justificar instintos
sendo colocado de frente a um sistema de inferiores ou para uma transfiguração do
referência que não era o seu, precisou mundo — mundo salvo pelo mítico negro
abolir ao seu próprio sistema: a sua africano, pela sua conexão com a natureza
cosmovisão, os seus entendimentos sobre e suas complexidades místicas. Entretanto,
o mundo, sua cultura, suas crenças e Mbembe acusa que todos os pensamentos
modos de existir, de viver. O que entra em acerca do negro foram construídos para
disputa, diante das condições de uma dominação racial, para fazê-lo mero
possibilidade de existência do sujeito espectador, observando externamente
negro e do racismo colonial, é que a como funcionam, ou devem funcionar,
interdição do negro ao seu sistema de seus corpos e suas vidas. O produto negro,
referência e a sua impossibilidade inventado pelas ciências biológicas e do
ontológica de entrar no sistema do branco, homem, pelo sistema colonial escravagista
o coloca na condição de não-ser. A e pelas tecnologias do capitalismo
denúncia de Fanon é que a racionalidade, o constituem o negro como produto de uma
humanismo e o antropocentrismo oci- máquina social (cf. MBEMBE, 2017, p. 19).
dental não eliminaram o problema do Assim como o negro é inventado pelo
preconceito, da distinção entre raças e da branco, o branco é fantasia da imaginação
animalização do homem negro. Como europeia que o Ocidente se esforçou por
exemplo, as ciências na Modernidade, com naturalizar e universalizar, fantasia ou
a biologização de corpos não brancos e não ficção disseminada e reproduzida por
masculinos relacionada com as teorias da dispositivos. A função destes dispositivos é
degeneração e os estudos antropológicos transformar tal fantasia em crença,
de povos nativos das colônias no século simultaneamente dogma e senso comum:
XIX, tentaram a todo custo comprovar a “o próprio Fanon dizia, aliás, a propósito
diferença entre as raças, acabando por de ambas as figuras, que o Negro não existe
inferiorizar os sujeitos racializados à mais do que o Branco” (ibid., p. 84). Ao
animalidade, reduzindo ou excluindo sua especificar o modo que opera a ordem
humanidade colonial, Mbembe entrecruza o que Fanon
diz sobre a colonização — uma ordem
Achille Mbembe, influenciado por
desordeira, onde a violência se manifesta
Fanon em seus estudos sobre a questão de
na sua forma mais pura5 — ao afirmar que
raça, da invenção do negro pelo branco,
“sua manutenção provém de modos de
propõe na Crítica da razão negra que o
exercício de poder cujas funções passam
significado fundamental de raça sempre
por fabricar raças, no sentido literal,
foi existencial. Os nomes negro e raça
classificando-as, e estabelecendo as neces-
carregam em si o mesmo signo e

5 Assim Fanon descreve a situação colonial de desordem absoluta e tensão constante ao colonizado: “O
colonialismo não é uma máquina de pensar, não é um corpo dotado de razão. Ele é violência em estado
natural, e só pode se inclinar diante de uma violência maior” (FANON, 2005, p. 78).

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sárias hierarquias entre si” (ibid., p. 104). dominado-dominador, coisa-proprietário


A raça atua como princípio do corpo — não existe autonomia ou
político, onde impera a dominação e a particularidade, é uma relação puramente
soberania de uma raça sobre a outra, onde codependente. Tudo o que situava o negro
a força é a lei e a lei é a força. Sem dúvida, em sua existência foi abolido e foi-lhe
Mbembe encontra em Fanon uma leitura imposta outra Weltanschauung6 (cf.
crucial, tanto para compreender a política FANON, 2008, p. 103).
de violência colonial como para elucidar o
lugar ausente do sujeito negro nas
construções ontológicas do Ocidente. O mito negro como construção
Entendemos que a noção de raça foi do não-ser
supracitada pela Modernidade, para
O sistema colonial, embasado pela
inscrever o negro nas relações de
estrutura racista, alimenta a construção de
interdição, exclusão, enclausuramento e
arquétipos sobre os negros que alienam
destruição, produzindo um não-ser.
suas subjetividades e corporeidades. Para
O branco, visto pela ótica de Fanon, é necessário e tardio alcançar a
humano universal, se apossou da destruição dos mitos criados sobre o
existência, excluindo tudo o que é outro. O negro. O negro na sociedade, precisa não
negro, reificado e animalizado, em sua ser negro, ele não pode errar, não pode ser
existência negada se torna a representação imperfeito. A ele, designadamente é
do Outro indesejável. Fanon assume que obrigatório alcançar uma espécie de
“sempre haverá um mundo — branco — “perfeição além-humana” para chegar a
entre vocês e nós” (FANON, 2008, p. 113), ser um pouco reconhecido como humano:
fazendo com que o negro não possua o o negro não pode ser negro. Ele deve estar
mesmo estatuto de sujeito do branco. além do humano para negar sua negridão
Alienado pelo sistema de referências do (cf. FANON, 2008, p. 123). A teórica pós-
colonialismo, o negro se encontra numa colonial Grada Kilomba relata a
zona de não-ser. Ao identificar em seu experiência do racismo e como ele
texto o problema do desejo, Fanon prejudica a condição de existência humana
demonstra que, por causa da estrutura da do sujeito negro:
matriz colonial, o ser do negro é posto de O racismo nos coloca fora da condição
lado inviabilizando o seu desejo, os seus humana e isso é muito violento. E muitas
sonhos, as suas fantasias. Justamente o que vezes nós achamos que alcançar essa
faz o homem ser diferente de outras humanidade se dá através da idealização.
espécies, deixa-se de lado a existência do Se o racismo diz que eu não sei, eu vou
dizer que sei ainda mais. E para mim é
negro: o que ele quer, o que ele anseia, o muito importante desmistificar isso. Eu
que ele pensa. Ao negro não se dá a quero ser eu, não quero ser idealizada e
possibilidade de ser negro, mas sê-lo nem inferiorizada. E eu, assim como todas
somente diante do branco — numa relação as pessoas, quero dizer que há dias em que
sei, e dias em que não sei. Às vezes eu

6“Weltanschauung” significa visão de mundo ou cosmovisão, é uma concepção universal, intuitiva ou pré-
teórica de como um indivíduo ou uma comunidade pressupõe o mundo, a vida em seu sentido mais geral.

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choro e às vezes eu rio, às vezes eu quero e clareza quanto ilusão. Clareza, ilusão e
às vezes eu não quero. Quero ter essa verossimilhança que são frutos de um
liberdade humana de ser eu. (KILOMBA; poder constitutivo do próprio mito: o de
RIBEIRO, 2016). dissolver, simbolicamente, as contradições
que existem em seu redor. (SOUSA, 1983,
O negro não deve ser ele e lhe é p. 25).
imposto aquilo que se espera dele: “Repito,
eu estava murado: nem minhas atitudes Neusa Sousa traz uma importante
polidas, nem meus conhecimentos contribuição nas teorias sobre a
literários, nem meu domínio da teoria dos subjetividade e identidade negra no Brasil.
quanta obtinham indulto” (FANON, 2008, Leitora de Fanon, pôde observar o quanto
p. 109). O racismo impossibilita o negro de as relações sociais e coloniais racistas
existir plenamente, de encontrar o sentido sustentam o mito do negro para suprimir
da sua vida, descer aos seus verdadeiros as diferenças e contradições existentes no
infernos, ou seja, de viver os conflitos sujeito. Na esteira de Fanon, ela faz uma
existenciais, próprios do sujeito. O crítica da concepção de sujeito branco
sociólogo Deividson Faustino evidencia a apenas enquanto como homem, enquanto
principal intenção do processo de o negro está enclausurado em ser um
racialização do mundo: homem negro; de um negro se espera
apenas a “conduta” de negro – para dizer
A racialização do mundo contemporâneo mais uma vez. De forma paradoxal, ao
implica, para Fanon, não o surgimento de
negro é dada uma cobrança muito maior. O
mais um conflito existencial – ou
discriminação ou preconceito –, mas a que se espera dele é a ação voltada a uma
impossibilidade, para os povos mistificação do seu ser, ao mesmo tempo
racializados, de viver plenamente os que lhe exigem não ser esse ser
conflitos existenciais que nos fazem mistificado. O que lhe sobra? Para Fanon, o
humanos. (FAUSTINO, 2015, p. 60).
negro nem sequer ainda é considerado um
Trazendo uma outra perspectiva homem: “mesmo expondo-me ao
teórica, a psicanalista Neusa Santos Sousa ressentimento de meus irmãos de cor,
permiti-nos compreender este processo direi que o negro não é um homem”
de apagamento da subjetividade negra em (FANON, 2008, p. 25). Eis a questão!
detrimento da construção ideológica de
Ao negro é imposto corresponder à
um “mito negro”. As representações do
expectativa do mundo do branco.
negro são baseadas em acidentes, sejam
Transformado em coisa: “O preto é um
biológicos, sociais, históricos, psicológicos,
brinquedo nas mãos do branco; então,
mas elevadas à categoria de essência, para
para romper este círculo infernal, ele
homogeneizar e enquadrar o ser do negro:
explode” (ibid., p. 126). Romper este
Quando a natureza toma o lugar da círculo infernal é urgente, mas a
história, quando a contingência se consequência deste rompimento é a
transforma em eternidade e, por um
angústia em descobrir o sentido do seu
“milagre econômico”, a “simplicidade das
essências” suprime a incômoda e existir. Pois, a existência negra é vasta,
necessária compreensão das relações ampla, mas desejam castrá-la, amputá-la:
sociais, o mito se instaura, inaugurando
um tempo e um espaço feitos de tanta

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Sinto-me uma alma tão vasta quanto o explica bem esse processo em A construção
mundo, verdadeiramente uma alma do Outro como não-ser como fundamento
profunda como o mais profundo dos rios,
do ser, mostrando que, na construção do
meu peito tendo uma potência de
expansão infinita. Eu sou dádiva, mas me modelo de humanidade, o ser branco se faz
recomendam a humildade dos enfermos... a partir da negação de uma alteridade
ontem, abrindo os olhos ao mundo, vi o céu racializada, por meio do dispositivo de
se contorcer de lado a lado. Quis me racialidade / biopoder, subordinando
levantar, mas um silêncio sem vísceras
racialmente as produções sociais,
atirou sobre mim suas asas paralisadas.
Irresponsável, a cavalo entre o Nada e o culturais, de vitalismo e mortandade,
Infinito, comecei a chorar. (Ibid., p. 126). produzindo discursos e práticas de saber e
de poder. A normatividade, o
O objetivo de Fanon com sua escrita
comportamento socialmente aceito, é
não é provar a igualdade ou dignidade do
estruturado pelo modelo social branco
negro em comparação ao branco, muito
cisheteropatriarcal, visto como universal.
menos provar a humanidade do mesmo,
Sueli Carneiro, ao comentar a obra de
pois o negro sabe que não é um animal.
Fanon, demonstra o processo de
Anseia por libertar o negro do arsenal de
assujeitamento racial que o modelo branco
complexos germinados no seio da situação
constrói, como ideal de ego, na psique do
colonial. Pois, ao negro, resta o querer ser
negro, enquanto relação opressor/
branco, para alcançar a condição de
oprimido:
humano que tanto lhe negaram e que o
branco reserva para si e seus semelhantes, No caso da racialidade negra em que o
apenas deixando para o negro as imagens corpo negro é em si mesmo, na sua
existência, uma transgressão no âmbito de
e a linguagem que lhe impuseram.
um ideal de ego de uma sociedade que se
Fanon alerta que o negro precisa deseja branca, civilizada nos parâmetros
da cultura ocidental e herdeira de seus
livrar-se das sombras que escondem a sua
códigos prescritivos no plano moral os
existência. Ao tentar exprimir a existência, ajustes que são impostos aos corpos
ele não encontra senão a inexistência. O negros constituem um código prescritivo
negro é condenado a não ser nem branco e cujo tipo ideal seria o negro de alma
nem negro em essência, mas puramente branca, ou seja, um negro ajustado,
governado por um alter ego branco.
um enclausurado.
Inegavelmente que em toda situação de
Sentimento de inferioridade? Não, sujeição o opressor é parte constitutiva da
sentimento de inexistência. O pecado é psicologia do oprimido, fato
preto como a virtude é branca. Todos estes exaustivamente estudado e demonstrado
brancos reunidos, revólver nas mãos, não por Frantz Fanon cujo título de um de seus
podem estar errados. Eu sou culpado. Não livros é auto-explicativo sobre esse tema:
sei de quê, mas sinto que sou um Pele negra, máscaras brancas. (CARNEIRO,
miserável. (Ibid., p. 125). 2005, p. 302).

O que o negro sente é o próprio O negro deve ser libertado do


sentimento da inexistência, e para existir dilema: branquear ou desaparecer. O
na sociedade, precisa alcançar o branco. A corpo negro aparece como signo, símbolo
filósofa e feminista negra Sueli Carneiro ou expressão do que não é ou do que não
se deve ser. Conforme Fanon (2008, p. 95),

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o negro “deve poder tomar consciência de pessoa. Em torno do corpo reina uma
uma nova possibilidade de existir”. E é a atmosfera densa de incertezas [...] lenta
construção de meu eu enquanto corpo, no
partir dessa perspectiva que o
seio de um mundo espacial e temporal, tal
compreendemos não somente como um parece ser o esquema. Este não se impõe a
autor fundamental ao pós-colonialismo, mim, é mais uma estruturação definitiva
mas também, a uma filosofia do eu e do mundo – definitiva, pois entre
existencialista negra, ou melhor, que não meu corpo e o mundo se estabelece uma
dialética efetiva. (FANON, 2008, p. 104).
deixe o negro ausente em sua ontologia.
Dialogando estreitamente com o O negro e o mundo, o negro e o
existencialismo francês de sua época, branco, efetiva dialética na qual a
Fanon demonstra que a vida humana é existência negra nem sequer é visibilizada
constituída de conflitos, contradições e como humana. Ser preto nesse esquema-
dilemas, e são essas as vias que histórico-racial corporal tem como peso o
possibilitam uma ampliação da nossa fato de ser preto, a maldição de suportar
consciência, das nossas escolhas: descer ser estranho a este mundo branco. Para
aos verdadeiros infernos e assumir a analisar a linguagem do sistema colonial,
responsabilidade pela nossa existência e Fanon utilizou de elementos da construção
dos outros. Segundo o filósofo, modos que o branco fez do negro, não como um
possíveis que o sujeito negro pode chegar Outro Eu na perspectiva ontológica, mas
a uma consciência de si e dos outros (cf. como suplemento de si mesmo:
FAUSTINO, 2015, p. 59). Existir para Fanon Os elementos que utilizei não me foram
é ser capaz de escolher a sua própria ação fornecidos pelos “resíduos de sensações e
diante das estruturas sociais e dos percepções de ordem sobretudo táctil,
conflitos subjetivos. espacial, cinestésica e visual”, mas pelo
outro, o branco, que os teceu para mim
através de mil detalhes, anedotas, relatos.
Eu acreditava estar construindo um eu
A corporeidade negra fisiológico, equilibrando o espaço,
localizando as sensações, e eis que exigiam
O olhar do branco traz ao negro um
de mim um suplemento. (Ibid., p. 105).
peso inusitado de opressão, exatamente
porque apenas o mundo branco assume-se Desmorona assim, no sistema
como verdadeiro. Por ser “muito corpo”, o colonial, um esquema corporal cedendo
negro encontra dificuldades na elaboração lugar a um esquema epidérmico racial,
de seu esquema corporal, ele vê seu corpo levando o negro a não se ver mais em
como estranho a si, olha a si mesmo em terceira, mas em tripla pessoa, “ao mesmo
terceira pessoa, como um corpo que não é tempo responsável pelo meu corpo,
o seu, por não ser considerado responsável pela minha raça, pelos meu
“verdadeiramente humano”: ancestrais” (ibid., p. 105). A busca pelo
sentido de vida, do seu corpo revelado à
No mundo branco, o homem de cor
consciência, não é vivida em plenitude
encontra dificuldades na elaboração de
seu esquema corporal. O conhecimento do exatamente porque o negro não reconhece
corpo é unicamente uma atividade de seu próprio corpo no mundo branco.
negação. É um conhecimento em terceira

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Segundo Faustino (2015, p. 26), fundamental do sistema colonialista,


Fanon afirmava que: “O corpo é o homem, exatamente por desassociar o sujeito
e o homem, seu corpo, mas esse corpo, negro da concepção de sujeito pensante,
quando negado pelas adversidades racional, tal qual foi construída a partir da
coloniais, se torna uma presença negada, ideia de homem enquanto detentor da
um ente que nem homem ou mulher chega razão.
a ser”. Fanon demonstra que, por isso, o
O preto é fixado no genital, ou pelo menos
homem negro é, dentro da sociedade aí foi fixado. Dois domínios: o intelectual e
colonial, negado como humano por ser o sexual. O pensador de Rodin em ereção,
muito corpo e afirmado como coisa, eis uma imagem que chocaria. Não se pode,
instrumento, animal. O macho preto, decentemente, “bancar o durão” toda hora.
O preto representa o perigo biológico. O
masculinizado, instrumentalizado em seu
judeu, o perigo intelectual. (FANON, 2008,
órgão genital, dessemelhante do branco, p. 143).
tem seu instrumento fálico reduzido a
ideia de força, virilidade e esses discursos Ainda que Fanon não cite as
procuram legitimar a escravização, o mulheres dentro desta noção de
trabalho forçado, pesado, destinado a corporeidade no esquema epidérmico
homens negros. Assim como a própria racial, ainda assim podemos analisar como
construção hegemônica de masculinidade, esses discursos também são utilizados
prejudicial e tóxica à existência do homem para a mesma animalização, hipersexua-
negro: lização e objetificação destinada a elas.
Isso tudo representa como as sociedades
Busca-se reconhecer que os “padrões coloniais se alimentaram da ideia de que a
hegemônicos de masculinidade”
estrutura corporal da mulher e do homem
apresentam cobranças e expectativas de
gênero que, se por um lado possibilitam o negro é diferente da do sujeito branco.
exercício de poder sobre as mulheres – Uma ideia que, estruturada, levou à
bem como sobre outros homens na concepção do preto ser apenas corpo,
intersecção com outras contradições corpo não dotado de razão, alma e
sociais e opressões – também alienam os
humanidade. A objetificação e
homens (negros) de sua própria
humanidade, fechando-os para tudo que animalização do negro se caracterizam
for arbitrariamente eleito como próprio do pela anormalização da sua corporeidade:
universo feminino, empobrecendo
O branco está convencido de que o negro é
drasticamente a sua socialização. (Ibid., p.
um animal; se não for o comprimento do
77).
pênis, é a potência sexual que o
O homem negro é atingido em sua impressiona. Ele tem necessidade de se
corporeidade, fixado no seu genital, defender deste “diferente”, isto é, de
caracterizar o Outro. O Outro será o
representado como perigo biológico. O
suporte de suas preocupações e de seus
racismo, segundo Fanon, em sua desejos. (Ibid., p. 147).
complexidade, não se limita a uma
hierarquia de raças, mas, sobretudo, na O corpo negro: colonizado,
fixação de atributos biológicos que incivilizado, aculturado, subjetivamente e
reforcem estereótipos raciais. Fixar o objetivamente alienado, não passa de um
negro em seu exterior é um mecanismo corpo negro: “Meu corpo era devolvido

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desancado, desconjuntado, demolido, todo Considerações finais


enlutado, naquele dia branco de inverno” A perspectiva analítica da repre-
(ibid., p. 106). Sua participação no mundo sentação do sujeito negro, é fundamental
foi rejeitada, amputaram seu entusiasmo. para a descrição dos processos raciais, de
Exigiam seu confinamento, seu corporeidade e existência dos sujeitos
encolhimento. A feiura, a maldade, a negros no colonialismo, e com base no
animalidade, associada ao negro são pensamento de Frantz Fanon, ele nos
internalizadas em sua consciência. Em um fornece subsídios epistêmicos necessários
dado momento o negro decide entrar na para compreender como se dão os
luta, reconhece a raiva, o fogo que estava mecanismos de dominação e sujeição do
morto e reacendeu. Desde que viu ser sistema colonial. Sistema que, constrói nas
impossível livrar-se de um pretenso subjetividades negras, representações que
“complexo inato”, que de fato é um não condizem plenamente com as suas
complexo construído socialmente e existências, alienando psiquicamente
imposto sobre ele, decide afirmar-se como corpos e mentes, tornando-as colonizadas.
negro. Na impossibilidade de reconheci- Em suma, compreendemos a formação
mento, faz-se conhecer. O negro é cultural e epistemológica ocidental como
sobredeterminado pelo exterior, pela sua responsável pela ideia do mundo como
aparição. Fixado, o negro é visto como um branco, logo, o branco como universal.
novo tipo de homem, um novo gênero.
O estudo do pós-colonialismo,
Visto pela superfície, lhe atribuem
contribui para uma analítica das
axiomas.
sociedades que vivenciam experiências de
Ao escrever a experiência do corpo
multirracialidade. Alicerçado pelo
negro no mundo, Fanon demonstra que,
racismo, o colonialismo constituiu-se e
este corpo só é visto por suas atribuições
firmou-se na produção imaginada de uma
ônticas7, sejam elas culturais ou biológicas.
divisão maniqueísta do mundo entre a
A experiência do corpo negro é ser
zona do ser e a zona do não-ser, que
reduzido genitalmente, desconjuntado
sujeitou o negro ao paradoxo existencial
socialmente e predeterminado pela sua
entre a negação da sua racionalidade e a
racialidade. Sua falta de humanidade se dá
subalternização do seu não-ser ao ser do
a partir de características fenotípicas e
branco. Expomos ainda que os sujeitos
morfológicas. É na corporeidade que se
negros, em particular, habitavam e/ou
atinge a existência do negro.
habitam na zona do não-ser e, por isso, são

7 Explicando em linhas gerais a filosofia de Heidegger, ôntico corresponde à dimensão concreta, física e
factual do ente, em oposição ao ontológico, que se refere a questões sobre o ser ou essência do ente.

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Artigos Raça, corpo e existência: uma leitura pós-colonial em Fanon...

invisibilizados pela negação de sua entre inferiores e superiores. Tendo seus


existência enquanto ser. Subsumido aos ideais internalizados em uma lógica
estereótipos, à personificação, e à colonial/capitalista, para uma distinção
mercantilização do seu corpo, caberá ao imaginada no que se denominou entre as
próprio negro o seu resgate, devendo zonas do ser e não-ser. As representações
buscar em sua existência negra e em sua simbólicas em conjunto à negação do
história silenciada, caminhos que ressoam negro, com as presentes leituras pós-
para sua (re)existência. Neste percurso, o coloniais supracitadas no decorrer do
negro pode tornar-se visível, numa relação texto, repensam as questões que cercam o
Eu e Outro, constituindo sua subjetividade negro, como o seu ser, o seu corpo e a sua
livre dos imperativos da norma branca, existência. Uma leitura pós-colonial de
tornando o seu corpo próprio de si mesmo. Fanon possibilita um diálogo aberto com
diversos teóricos e teóricas. Uma tal
A formulação da ideia de raça
leitura resgata os que outrora foram
constituiu-se enquanto um marcador
silenciados pelo conhecimento, ou melhor,
social entre grupos étnicos diferentes, na
pelas epistemologias eurocêntricas e
perspectiva do colonialismo, a ideia de
hegemônicas que conduziram a história do
raça sob este viés marcaria os sujeitos
pensamento Ocidental.

Referências

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Anãnsi: Revista de Filosofia, Salvador, v. 1, n. 2, 2020 26


ISSN: 2675-8385
Revista Anãnsi, Salvador, 2020
Ft./ Ana Amélia R. Souza (@urbanovoyeur2)
Artigo A infralinguagem de Latour e o problema da comensurabilidade...

Universidade do Estado da Bahia, Campus I


Departamento de Educação

A infralinguagem de Latour e o problema da


comensurabilidade nos estudos interculturais 1
The infralinguage of Latour and the problem of commensurability in
intercultural studies

Mateus Rodrigues Santos 2

Resumo: Já não é mais possível ignorar o relativismo cultural, o reconhecimento crescente de que toda
cultura e seus paradigmas são relativos a determinadas condições. Ao mesmo tempo, do relativismo
facilmente desabrocha a incomensurabilidade: em que cada cultura é completa e irrecuperavelmente
diferente de todas as outras. Cada um com a sua verdade e por fim ficamos todos sem certeza alguma; "não
há fatos, só interpretações". Estamos diante do desafio de levar a pluralidade epistemológica realmente a
sério e ao mesmo tempo tornar essa pluralidade comensurável, isto é, restituir a objetividade. Para tanto, é
preciso criar um instrumental capaz de fazer os paradigmas culturais se comunicarem de novo. Este trabalho
pretende apresentar uma ferramenta que pode contribuir para a solução desse problema. Trata-se aqui de
expor a infralinguagem tal como a concebe Bruno Latour, uma ferramenta de pesquisa que não possui outro
sentido além de permitir o deslocamento de um quadro de referência a outro. Nossa tese é a de que
infralinguagem - e sua branda metafísica de fundo - oferece uma maneira de manter (e enriquecer) a
pluralidade cultural, sem necessariamente instaurar uma completa incomensurabilidade.

Palavras-chave: Infralinguagem; Bruno Latour; Teoria Ator-Rede; Relativismo Cultural.

Abstract: It is no longer possible to ignore cultural relativism, the recognition that all culture and its
paradigms are relative to certain conditions. At the same time, relativism easily blossoms into
incommensurability, where each culture is completely and irrecoverably different from all others. Each one
with its own truth and finally we are all left with no certainty; "there are no facts, only interpretations". We
are in face of the challenge of taking epistemological plurality seriously and at the same time making that
plurality commensurable, which is, restoring objectivity. To do so, it is necessary to create an instrumental
capable of making the cultural paradigms communicate again. This work aims to present a tool that can
contribute to the solution of this problem. This study is about exposing the infralanguage as conceived by

1 Artigo desenvolvido a partir do trabalho final da disciplina de Atualização e Prática do Direito – Teoria dos
Sistemas e Teoria Ator-Rede (2020), ministrada pelo professor Otávio Souza e Rocha Dias Maciel na
Faculdade de Direito da Universidade de Brasília.
2 Graduando em Direito pela Universidade de Brasília. E-mail: mateusrodrigues1212@gmail.com.

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Bruno Latour, a research tool that has no other meaning than to allow the shift between one frame of
reference to another. Our thesis is that infralanguage - and its soft metaphysics of background - offers a way
to maintain (and enrich) cultural plurality, without necessarily establishing a complete incommensurability.

Keywords: Infralanguage. Bruno Latour. Actor-Network Theory. Cultural relativism.

Introdução que toda a especificidade de um


paradigma é perdida; ou seja, para haver
Um dos problemas patentes nos
comunicação seria preciso prescindir da
estudos interculturais é o que alguns
alteridade que motivou a própria
pensadores chamam de incomensurabili-
comunicação. É a esse problema que nos
dade dos paradigmas. Com o reconheci-
referimos quando falamos sobre a
mento crescente da condicionalidade e
incomensurabilidade dos paradigmas.
relatividade cultural em que toda tradição
está imersa, seus respectivos paradigma Diante disso, desponta um
de conhecimento, isto é, seu conjunto de problema que até então não existia. Com o
metarrelatos que dão origem a uma progressivo abandono da crença no
concepção de mundo com pressupostos privilégio epistemológico moderno, o
definidos e consequências esperadas, universalismo em que ele se apoiava
começam a ser questionados. Se todo começa a ruir e, em contrapartida, o
paradigma é só a decorrência de um relativismo cultural ganha espaço. Acerva-
conjunto contingente de fatores somados a se uma pluralidade de paradigmas sem
pressuposições igualmente desnecessá- que tenhamos as ferramentas para
rias e acidentais, então toda cultura, desde integrá-los. Esse cenário, não é de se
a perspectiva específica da sua condição, estranhar, é uma das causas, ao mesmo
sabe a verdade absoluta sobre o mundo. tempo que é um dos resultados, da agonia
Ao mesmo tempo, porém, assumir que pós-moderna frente a evanescência da
todo paradigma está certo é o mesmo que verdade. Na falta de instrumentos
dizer, sob outro ponto de vista, que todos hermenêuticos e analíticos capazes de
estão errados. De qualquer maneira, são oferecer uma locomoção em meio a uma
todos incomunicáveis, pois partem de miríade de paradigmas que parecem
metarrelatos distintos, edificam-se através radicalmente distintos, fica realmente
de noções ou conceitos diferentes e muito difícil de acreditar que a verdade
perfeitamente intraduzíveis e assumem pode ser reconquistada e mantida com um
pressupostos diversos. Assim, não sem mínimo de firmeza. O conhecimento se
demora nos damos conta de que talvez, por torna, quando muito, pura elucubração e
exemplo, o pensamento budista, ainda que especulação a respeito de um mundo que
compreensível, seja intraduzível – isto é, não se alcança mais (se é que a esse ponto
incomensurável – com o pensamento ainda acreditamos num mundo). Ou seja, o
científico moderno. Temos a impressão de mundo “de fato”, das certezas e do
que para que um seja inteligível ao outro conhecimento seguro é perdido em
seria preciso realizar uma tradução em detrimento de um mundo de fato

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contraditórios, contingentes e inseguros. utilidades do que ele chama de


Chegamos mesmo a se perguntar se aquele infralinguagem, uma ferramenta de
mundo de outrora não era só um delírio, pesquisa que tem sobretudo a função de
se, afinal de conta, só existem interpre- ser altamente adaptável e maleável. A
tações e nunca fatos. infralinguagem é um atributo ou uma
ferramenta de uma teoria mais vasta, a
Podemos notar como o problema
Teoria Ator-Rede (cuja sigla em inglês é
da incomensurabilidade entre paradigmas
ANT, Actor-Network Theory), e cujo o
pode gerar muitos outros. Mas nosso
motivo de assim se chamar ficará mais
escopo aqui, um pouco aquém desses
claro em breve. Cabe apenas fazer agora
desdobramentos – ainda que acreditamos
uma apresentação lacônica e exces-
ser essencial para resolvê-los –, é mais
sivamente geral sobre sua natureza
específico, e mais próprio dos estudos
metodológica e seus preceitos teóricos. A
interculturais: como levar a pluralidade
ANT (assim a chamaremos doravante) é
epistemológica realmente a sério, e assim
uma corrente de pesquisa que se originou
assumir que a tradição moderna junto de
a partir dos estudos sobre sociologia da
suas categorias e pressupostos é apenas
ciência e da tecnologia desde a década de
mais um dos cenários possíveis, e ao
1970. Sua principal característica é a
mesmo tempo tornar a pluralidade
reivindicação ontológica básica de que
comensurável, criando um instrumental
todas as entidades, ou atores, do mundo,
capaz de fazer cada um dos mundos se
sejam elas quais forem, são constituídas e
comunicarem? Ou seja, trata-se de
constituem-se em uma rede móvel e
reconquistar, ou talvez criar, um terreno
heterogênea de relações variadas (BLOK;
em comum apto a sediar um encontro
FARÍAS; ROBERTS, 2020). Esse preceito,
entre mundos que são radicalmente
como veremos, é o que possibilitará e
distintos entre si, e que não seja só a
estruturará a infralinguagem.
congregação de uma assembleia alienada
da realidade – como quer a postura pós- Nosso itinerário aqui parte da
moderna. identificação da necessidade prática de
uma ferramenta de análise altamente
Diante desse cenário, a proposta
volátil; em seguida apresenta a
aqui é examinar o que o pensamento de
infralinguagem como uma opção vantajosa
Bruno Latour tem a oferecer a essa
para o problema que decidimos enfrentar;
discussão. Nossa hipótese é a de que
depois expõe seus elementos, pressupos-
Latour pode nos oferecer um instrumental
tos e regras de funcionamento; para, por
tanto eficiente, quanto amplo, e que parte
fim, tentar explicitar por quais razões e
de pressupostos tão gerais quanto hábeis
como a infralinguagem pode ajudar na
em lidar com as idiossincrasias.
discussão. Em suma, o que queremos é
Entretanto, coisa que já podemos adiantar,
investigar uma ferramenta específica, e o
as pretensões aqui são modestas. Longe de
faremos sobretudo a partir de seu
ensaiar uma proposta de teoria geral,
desenvolvimento e aplicação feitos por
lançar-nos-emos tão somente numa breve
Bruno Latour em sua obra Reagregando o
avaliação a respeito das capacidades e
Social: uma introdução à teoria do Ator-

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Rede (2012). Caso ao fim ainda persista a completamente distintas. Numa mesma
impressão de que faltam muitas outras conversa, transeuntes costuram uma
peças e maiores esclarecimentos para sua colcha de retalhos com um punhado de
real aplicação, nós só poderemos conceitos químicos, algumas deidades
concordar. Escapa-nos aqui a populares, certas previsões econômicas e
possibilidade de uma apresentação um bocado de suposições psicanalíticas;
exaustiva e ampla de todas as nuances, num mesmo escritório congregam-se
peculiaridades, expectativas e pressupos- bugigangas chinesas, exames cardio-
tos da infralinguagem. Antes disso, nos vasculares, cadeiras suíças, literatura
contentaremos em realizar uma primeira russa e recibos de eletrodomésticos. O que
aproximação. logo vemos, por toda parte, é uma
miscelânea vertiginosa de coisas hetero-
gêneas que, ainda assim, coabitam
A infralinguagem normalmente. Mais do que isso, criam e
recriam o próprio ambiente.
Haveremos de concordar que o
primeiro passo para uma filosofia capaz de Ao começar em meio as coisas, no
reconquistar a comensurabilidade é traçar mundo concreto, nossa experiência logo
uma porção de preceitos suficientemente nos indica que não existe um ponto de
gerais e livres que permitam o livre partida incontroverso. Qualquer categoria
trânsito entre os paradigmas. Ocorre, que escolhêssemos para avaliar um
porém, que já estamos um bocado determinado evento poderia, sem muita
desconfiados de tais preceitos “gerais” e dificuldade, ser questionada. Avaliar a
“livres”. Não seriam eles mesmo pro- interlocução mencionada como produto
fundamente enviesados? Não estariam da micropolítica capitalista é tão arbitrário
desde sua concepção maculados por uma quanto entendê-la como mera conse-
“interpretação” do mundo específica? quência da graça divina. Ambas as
Certamente, mas nada impede que posturas encontrarão largos motivos a seu
façamos uma interpretação bastante favor e edificarão arranha-céus de
ampla, “desapegada”, que deixe espaço argumentação e dissecação analítica do
para o desenrolar dos eventos. Mas como evento sem, no entanto, ser possível
fazer isso? decretar um “vencedor” final. É
exatamente o que salta aos olhos nos
Bruno Latour acredita que o melhor
estudos interculturais: mesmo as noções
é começar em meio às coisas, isto é, ver o
mais incontestes para uma cultura é vista,
que nossa própria experiência pode nos
aos olhos de outra, como altamente
comunicar (LATOUR, 2012, p. 49). Se
questionáveis ou naturalmente incon-
lêssemos, por exemplo, um jornal, ou
cebíveis. Por isso mesmo, não podemos
observássemos uma conversa no meio da
delimitar ou estabilizar, de partida, uma
rua, ou ainda déssemos uma olhada no
lista de princípios ou categorias que de
ambiente mesmo em que estamos
alguma forma julgamos universais. Pode
situados, seria possível observar uma
parecer que não avançamos em nada, mas
mixórdia caótica de elementos de origens

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só se não usarmos essa insegurança como primeiro empirismo.3 O segundo


alicerce para novas elaborações. empirismo acredita que podemos supor
que um recibo impresso não é
Para Latour, o ponto de partida
simplesmente uma representação
deve ser precisamente essa controvérsia
intersubjetiva dos humanos, mas um
(LATOUR, 2012, p.52). Muito aquém de
objeto real e objetivo, ainda que, como
tentar fornecer inicialmente uma noção
todos os demais, tenha sua existência
estabilizadora ou conciliadora, devemos
assegurada pela sua relação com muitos
partir do que temos: muitas diferenças,
outros objetos. Um recibo, para existir,
fortes antagonismos e polêmicas profusas,
precisa de um complexo sistema
com, talvez, alguns poucos acordos e raras
econômico e tributário, uma fábrica
concordâncias. De forma que se não
produtora de papel, uma floresta de
pudéssemos avançar nem mais um palmo
eucaliptos, uma empresa que venda
em qualquer investigação, pelo menos já
alguma coisa e um comprador interessado
teríamos a certeza de que uma miríade de
em comprar essas coisas. Tudo isso é, para
elementos existem e persistem na
Latour, plenamente objetivo, e é o que nos
realidade. Mesmo se tudo o mais falhar, se
dá a possibilidade de reconhecer a
o projeto de um lugar de encontro comum
abundância de coisas diferentes no
se arruinar, ainda assim teríamos a
mundo.4 Falaremos mais sobre isso logo
pluralidade real de coisas no mundo.
adiante.
Aqui está uma consequência com a
O melhor a ser feito, então, diante
qual não nos delongaremos, mas que vale
de tantas controvérsias e embates, é
a pena ser pontuada. Diferentemente do
elaborar um vocabulário amplo, altamente
que se costuma pensar na tradição
adaptável e capaz de reconhecer e
filosófica, a ANT aposta na existência, de
acompanhar as controvérsias sem limitá-
fato, dos entes do mundo. Ela seria o que
las. Latour escolhe um vocabulário geral,
costumamos chamar de “empirista”, mas
um pouco banal e certamente vulgar, que
não como empirismo clássico com que
por isso mesmo não corre o risco de se
estamos acostumados. Latour utiliza
confundir ou litigar com os termos tão
aquilo que chama de segundo empirismo,
ricos e carregados dos próprios atores
em contraposição com aquele clássico, o
(LATOUR, 2012, p. 52). Ele prefere usar o

3 É imprescindível notar essa diferença. Latour não é empirista como Locke, mas é empirista como William
James, de quem ele apreende essa nova ideia de empirismo. Para explicitar seu tipo de empirismo, Latour
escreve: “O primeiro empirismo, aquele que impunha uma bifurcação entre as qualidades primárias e
secundárias, tinha a estranha peculiaridade de retirar da experiência todas as relações! O que restava? Uma
poeira ‘sensory data’ que o ‘espírito humano’ tinha de organizar ‘acrescentando’ as relações das quais haviam
sido previamente retiradas de todas as situações concretas [...] O que se poderia chamar de segundo empirismo
(James o chama de radical) pode se tornar novamente fiel à experiência à medida que começa a seguir as
nervuras, os condutos, as expectativas, as relações [...]. E essas relações estão indubitavelmente no mundo
com a condição de que esse mundo seja enfim desenhado para elas e para todas elas” (Latour, 2019: 151).
4 Esse ponto exigiria maiores esclarecimentos e uma explanação minimamente detalhada sobre a metafísica

de que parte tanto Latour como a ANT. Em suma, ambos assumem uma postura metafísica englobada no que
tem-se costumado chamar de filosofia do processo.

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que chama de infralinguagem, “algo que desde logo, ter as respostas para as
não possui outro sentido além de permitir querelas interculturais, mas sim que
o deslocamento de um quadro de oferece os termos mais voláteis possíveis
referência a outro” (LATOUR, 2012, p. 53). para seguir as discussões.
É um conjunto de termos que ao mesmo
Por esse motivo, como nota Latour,
tempo que assume como pressuposto a
é uma virtude dos termos infralinguísticos
instabilidade e a contingência de todos os
terem um significado tão profuso quanto
pontos de partida, também está habilitado
vazio. Podem, cada qual, significar muitas
a se conformar e exprimir ao que os
coisas, mas por si só não definem quase
próprios partícipes da discussão e
nada. São termos evasivos, vagos, e
membros de cada tradição têm a dizer.
também amplos, móveis, cujo maior
Que fique claro que não se trata de mérito é sua sensibilidade. Nos estudos
uma metalinguagem, pois correríamos o interculturais, os termos da infrali-
risco de competir dentro da discussão pela nguagem deveriam ser capazes de alternar
primado dos termos, afinal, cada cultura e entre os quadros de referência de várias
cada tradição tem também sua própria culturas e paradigmas se afeiçoando
metalinguagem plenamente reflexiva e àquilo que cada um tem de próprio; ou
elaborada (LATOUR, 2012, p. 53). Se fosse seja, sem trazer “de fora” ou estabelecer a
essa a proposta, não deixaríamos de tentar priori a chave interpretativa correta.
nos colocar acima da discussão, como um
Quais seriam esses termos? Latour
observador onisciente e pretensiosamente
costuma usar as palavras “ator”, “actante”,
mais qualificado que os demais para
“rede”, “grupo”, “coletivo”. Vejamos mais
decidir e julgar sobre a verdade das coisas.
de perto o que elas significam.
Ai de nós! Cairíamos de novo no mesmo
fosso de qual estamos tentado sair. A ANT
com sua infralinguagem, diferentemente,
Atores ou actantes
se põe atrás da discussão, acompanha-a
minuciosamente, se desloca de um quadro Seguindo os preceitos de uma boa
de referência a outro, toma nota do que é infralinguagem, um ator pode ser,
dito pelos interlocutores. Uma boa simplesmente, qualquer entidade real. É
infralinguagem, para Latour, é aquela em um ator ou um actante um peregrino, uma
que os conceitos figuram como mais fracos árvore, um templo ou um planeta, mas
do que aqueles que ela visa captar também o é um Deus, uma ideia, um país
(LATOUR, 2012, p. 53). Por exemplo, usar ou um espírito da floresta. Todas as
a palavra “usuário” de drogas e não entidades “imaginárias” ou “reais”, “ideais”
“viciado” é uma boa maneira de ver isso; a ou “concretas” são atores. Essa ideia
terminologia deixa a questão menos instaura, para todos os existentes, o
enviesada e suspende a forte carga mesmo plano ontológico. Os xapiri dos
valorativa que outros termos poderiam Yanomami não são mais ou menos reais do
impingir. Em nosso objetivo aqui, uma boa que a Ibovespa; ambos agem e resistem à
infralinguagem, portanto, seria aquela que sua maneira, permanecendo na existência.
não monopoliza o discurso, aspirando, Assim, a noção de actantes ou atores não

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pré-estabelece quais entidades são dignas muitos desses actantes sobreviveram, isto
de existir e quais não, quais devem ser é, resistiram. As histórias de conquista, os
levadas a sério e quais são puras criações arcos comemorativos e alguns exemplares
(inter)subjetivas e “simbólicas”. das armaduras, todos esses atores
resistiram ao fim de Roma e, por isso,
O que determina a existência de um
existem. O próprio Império Romano,
actante é simplesmente sua capacidade de
entendido de uma certa forma, ainda
resistir. Em seu Irreduções, Bruno Latour
existe – sua arte, sua história, suas ideias,
escreve: “Não há diferença entre o “real” e
seus edifícios –, não o fosse e sequer
o “irreal”; entre o “real” e o “possível”,
poderíamos falar sobre ele. Os atores,
entre o “real” e o “imaginário”. Ao
portanto, são tudo aquilo que resiste na
contrário, há todas as diferenças
realidade.
experienciadas entre aqueles que resistem
por muito tempo e os que não, os que Compreender as coisas dessa forma
resistem corajosamente e os que não” – perfeitamente permitida pela nossa
(LATOUR, 1988, aforismo1.1.5.25). Se experiência cotidiana – tem a qualidade de
forem capazes de resistir ao tempo e ao abrir a análise para uma forma de realismo
encontro com outros actantes, os atores expandido. Não é mais preciso reduzir
permanecem existindo e cocriando, com tudo, desde o início da discussão, a um
todos os demais atores, a realidade; caso mundo subjetivo e outro objetivo. As
não resistam, deixam de existir, de coisas não devem responder, desde logo, à
aparecer e de criar o mundo. Por exemplo, inquisição que demanda saber se são parte
com a dissolução do Império Romano, que da Natureza, do mundo exterior e “real”, ou
foi um congregado gigantesco de atores, se são apenas uma sombra da Cultura, o
suas legiões também se dissolveram, e isso mundo intersubjetivo e “representativo”.
significa que os povos germânicos não Pensar a partir de actantes abre-nos a
precisam mais temer qualquer invasão de possibilidade de ver uma concretude
seus vizinhos latinos. Traduzindo a generalizada: todo ente, todo ator tem o
situação para os termos latourianos, o ator direito de existir à sua maneira. Com isso,
“exército romano” não foi capaz de resistir tomando as palavras de Latour,
ao fim de Roma, o que quer dizer que ele “aceitaremos, como atores completos,
não existe mais. Ocorre que, por sua vez, o entidades que foram explicitamente
fato concreto “exército romano” era feito banidas da existência coletiva por mais de
de muitos atores; os escudos, as lanças, os um século” (LATOUR, 2012: p. 105, grifo
soldados, os generais, as histórias, as do autor). Assumir a infralinguagem
estátuas, os planos de guerra, os centros de restitui esse direito às coisas e nos permite
formação, tudo isso formava o exército de acompanhá-las na sua existência sui
Roma. Mesmo com as invasões bárbaras generis, seja ela concebida dentro de

5 Tradução para fins acadêmicos não-publicada por Otávio Souza e Rocha Dias Maciel. No original: “1.1.5.2
There is no difference between the "real" and the "unreal", the "real" and the "possible", the "real" and the
"imaginary." Rather, there are all the differences experienced between those that resist for long and those
that do not, those that resist courageously and those that do not, those that know how to ally or isolate
themselves and those that do not.”

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laboratórios em Londres ou em malocas isso sim, “que devem existir inúmeros


no baixo Amazonas. Para ser um ator, matizes metafísicos entre causalidade
basta cumprir um requisito: existir, seja lá plena e inexistência absoluta” (LATOUR,
como for; e para continuar sendo um ator, 2012, p. 108). Latour complementa: além
basta cumprir outro requisito igualmente de “determinar” ou servir de “pano de
complacente: continuar existindo. fundo” para a ação humana, “as coisas
precisam autorizar, permitir, conceder,
Está aqui em voga uma concepção
estimular, ensejar, sugerir, interromper,
muito distinta das teorias do sujeito
possibilitar, proibir, etc.” (LATOUR, 2012,
moderno. De fato, pensar em actantes nos
p. 109). Ninguém pretenderia ferver água,
faz abandonar a ideia de que existe no
na situação aqui descrita, sem que
mundo o sujeito de um lado e os objetos de
houvesse uma panela que possibilitasse
outro. Em que um é ativo, agente, dinâmico
essa ação.
e dotado de um pensamento significante; e
o outro é passivo, inerte, apático e sem
significado em si mesmo. Com efeito, a
Redes, grupos, coletivos ou associações
adoção dessa divisão parece nunca ter se
dado conta de que mesmo a mente mais Se já não ficou evidente com o
brilhante, com as categorias mais exemplo de Roma, um actante sempre
sofisticadas e o raciocínio mais afiado não depende de muitos outros. Cada ator
será capaz de ferver a água para fazer seu ganha sua força apenas ao se associar
almoço. É trivial pensar que é a panela e o (LATOUR, 1988, p. 160). Não só Júlio César
fogo que fervem a água, que é a faca que sozinho seria completamente incapaz de
corta os legumes e o é o sal que tempera os conquistar a Gália, como também o mais
alimentos, mas é exatamente o que nossas extenso dos exércitos poderia ser
teorias parecem se esquecer: os objetos facilmente derrotado se estivesse
também agem. Por isso que quando desprovido de armas. Numa perspectiva
dizemos “atores”, não devemos pensar só mais ampla, é igualmente recomendável
nos humanos; já é hora de alargar nossa associar-se devidamente a estratégias de
noção de ação. Realmente, “se a ação se ataque, a planos de provisões, ao
limita ao que os humanos fazem de patrocínio imperial, ao estado
maneira ‘intencional’ ou ‘significativa’, não psicoemocional dos soldados, a condições
se concebe como um martelo, um cesto, climatológicas favoráveis e à opinião
uma fechadura, um gato, um tapete, uma pública. Da mesma forma os xamãs têm de
caneca, um horário ou uma etiqueta se associar aos espíritos dos animais, das
possam agir” (LATOUR, 2012, p. 108). plantas e das montanhas se quiserem
Naturalmente, o que se advoga aqui não é curar um enfermo, assim como estão
que os objetos, por si só determinem ou aprendendo a se associar a instituições de
imponham ações. Não queremos dizer que preservação ambiental e de luta pelos
as panelas nos intimam a ferver água. Não direitos humanos para continuarem
se trata de transformar os objetos nas existindo em suas terras. Seja para os
causas cujos efeitos teriam a ação humana romanos, seja para os kayapós, associar-se
como mero intermediário, mas significa, é imprescindível para sua existência.

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Em sua jornada de sobrevivência e pré-concebida. No máximo seremos


resistência, os atores se unem, portanto, capazes de extrairmos um bom número de
em associações ou redes. Uma associação maus entendidos e de criar uma série de
ou uma rede é um conglomerado de atores, óbices inconvenientes para o diálogo.
um novelo emaranhado e complexo de Aceitar a possibilidade de redes como
relações entre entidades. Não importa simples conglomerados de actantes
como tenham se relacionado e nem quais resolve muito pouco a discussão, mas tem
entidades as constituem, na verdade é a virtude dar tanto espaço às coisas
tarefa do pesquisador descobrir sua mesmas quanto elas desejarem.
estrutura e inventariar seus componentes.

Se a noção de atores trazia uma


Como a infralinguagem pode ajudar
ontologia generosa, a noção de associações
viabiliza a proliferação de complexidade Com os atores e com as redes não
em prol de realismos mais lúcidos, em foi preciso, até agora, exigir que cada
nome do desdobramento das paradigma se adeque a uma
controvérsias e, assim, a favor de diálogos metalinguagem mais geral, capaz de
mais diplomáticos. Não há nada que traduzir em termos “mais verdadeiros” ou
inviabilize a priori qualquer conexão. Cada mais puros, os nomes que cada cultura e
ator está livre de uma teoria que pré- tradição resolveram dar, muito
estabeleça quais associações são possíveis, adequadamente, às coisas que experi-
“verdadeiras” ou legítimas. Da mesma mentam. Do contrário, é tarefa da
forma, não há uma norma sobre como as infralinguagem se impregnar do que cada
redes se estabilizam ou mudam, e nem se paradigma tem a dizer e seguir os rastros
sabe quais novidades serão engendradas das redes: “Registrar e não filtrar,
no momento do encontro entre duas redes descrever e não disciplinar: essas são as
antes separadas. Se pensamos no encontro Leis e os Profetas” (LATOUR, 2012, p. 88).
entre duas culturas – cada qual uma rede
Ao acompanhar o desenrolar das
absolutamente específica –, é exatamente
controvérsias e ir tomando nota da
o que acontece. Os sincretismos religiosos
emaranhada rede que se forma à medida
são prova cabal de que uma doutrina –
em que se mergulha nos paradigmas
associação ela mesma – nunca sabe no que
específicos de cada cultura, os estudos
se transformará quando se encontrar com
interculturais podem se dar conta de que
outras associações. Os atores e as redes
qualquer eventual resposta aos problemas
tem sempre de responder de alguma
que o incomoda vai exigir muito trabalho.
forma aos apelos de outros atores ou de
É isso mesmo, “infelizmente não encontrei
outras redes, nem que seja insistindo em
um meio de agilizar as coisas”, nos diz
manter intacto sua disposição, correndo
Latour. Encontrar uma teoria para uma
sempre o risco de não resistirem às
determinada mediação entre paradigmas
alterações do meio. Fato é que as redes
(e não estamos nem falando de uma teoria
podem ser edificar das formas mais
geral) “tem de ser tão lento quanto a
imprevistas, e de muito pouco nos
multiplicidade de objeções e objetos que
adiantará tentar forçar uma interpretação

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ele precisa registrar em seu caminho; tem encontrar um swami vedantino não
de ser tão custoso quanto a necessidade de pressupuséssemos que o que ele tem a
estabelecer conexões entre os muitos dizer está em consonância com a revelação
mediadores que pululam a cada passo; e cristã, ou que o sistema lógico dos jainistas
tem de ser tão reflexivo, articulado e segue perfeitamente os preceitos da lógica
idiossincrático quanto os atores que clássica ocidental. Pode ser que sim, é
cooperam em sua elaboração. Precisa provável que não; o que importa é estar
registrar diferenças, absorver multipli- apto a seguir a trilha que cada novo
cidade, reformular-se a cada novo caso” paradigma marca na realidade. E quanto a
(LATOUR, 2012, p. 179). isso, acredito que a infralinguagem de
Latour tem algo a oferecer.
De certa forma, a infralinguagem
não resolve problema algum, mas tenta Além disso, com a possibilidade de
despoluir a discussão de boa parte de seus seguir livremente as redes e de escutar
pressupostos inconvenientes. Como já está seriamente nossos informantes, ganhamos
claro, até aqui foi proposto muito pouco, a capacidade de formular uma metafísica
um punhado de noções difusas que empírica como ponto de chegada das
permitam ao investigador acompanhar o controvérsias (LATOUR, 2012, p. 81). De
que cada paradigma cultural tem a dizer. forma muito geral, a metafísica é uma
Entretanto, isso já é muito. Talvez o grande disciplina que almeja definir a estrutura
mérito da estratégia infralinguística de básica do mundo e delinear seus princípios
Latour é o de se colocar numa posição e sua natureza. Diante disso, depois de
inicial especialmente vantajosa para tomar termos percorrido a imbricada rede de
quase qualquer rumo em seguida. Sua actantes oferecidos por um paradigma
vantagem não é ser capaz de ver as coisas sempre em movimento, possivelmente
de cima, a partir da perspectiva do Todo, será possível traçar, como produto, uma
mas sim ser capaz de acompanhar as metafísica empírica. Talvez a metafísica
associações aonde quer que elas vão. Como empírica seja distinta da metafísica teórica
sabemos depois de anos de crítica, é de um certo paradigma cultural, mas se
impossível ao pesquisador suspender tivermos sido bem sucedidos, nem por isso
todos os seus preconceitos e categorias, nossos informantes ficarão insatisfeitos,
mas uma boa forma de lidar com a questão afinal, não desconsideramos nenhum dos
é escolher preconceitos e categorias actantes que eles conferem existência.6
bastante amplos. Já seria muito se ao Contudo, e uma vez mais, não podemos, de

6Essa suposição está quase completamente apoiada na minha própria experiência ao ler Investigações sobre
os modos de existência: uma antropologia dos modernos (2019), outra obra de Latour, em que põe em prática,
com a própria modernidade, o tipo de análise que tento explicitar aqui. O resultado foi um relato
impressionantemente aguçado que, embora estivesse em completa dissonância com a autonarrativa
moderna, oferece ao leitor uma visão excepcionalmente clara da modernidade. Um relato que salvaguardou
todos os actantes das complexas redes da modernidade, e que foi de encontro tão somente à aquilo que seus
próprios constituintes falavam sobre ela. Posso dizer que Latour traçou um relato capaz de esclarecer aos
modernos a própria rede que eles mesmos cocriaram, mas que ainda litigam por entender. A partir dessa
experiência, encontro alguma razão para acreditar que o mesmo pode ocorrer alhures.

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partida, limitar o volume e a natureza das alguma coisa e não ficam apenas
associações ou dos atores a fim de libertar observando” (LATOUR, 2012, p. 189, grifo
quem quer que seja da ilusão e do engano do autor). Eis um ponto essencial. Com
(LATOUR, 2012, p. 82). Os antropólogos efeito, se um actante não faz
mostraram repetidas vezes como “os absolutamente nada em uma rede, se não
atores se envolvem sem parar nas tem papel algum, se não contribui para que
construções metafísicas mais abstrusas, coisa alguma seja de determinada forma e
redefinindo todos os elementos do não de outra, então temos um ator que não
mundo” (LATOUR, 2012, p. 82). Só temos a oferece resistência alguma. Não havendo
perder se resolvermos traduzir sempre as diferença entre sua existência ou
complexas redes dinâmicas e multifa- inexistência para nada mais, simplesmente
cetadas de outras tradições através do não há modo de aferir sua concretude,
gabarito que a modernidade nos legou. outra forma de dizer que ele não resiste ao
Com efeito, como nota Latour, os atores seu apagamento. Posso até acreditar haver
cultivam muitas filosofias, mas os teóricos um elefante rosa ao meu lado, mas é fato
acham que deveriam ater-se somente a que o pobre elefante não resistiria a
umas poucas; os atores enchem o mundo nenhum dos possíveis teste de resistência
de ações, enquanto os teóricos lhe ensinam a que fosse submetido. O ator “elefante
de que tijolos seu mundo é “realmente” rosa”, assim, não faz absolutamente nada
edificado (LATOUR, 2012, p. 83). “Em nada na rede, por exemplo, que constitui o
me tranquiliza – diz Latour – saber que às cômodo em que me encontro; o elefante
vezes fazem isso por razões louváveis, rosa, portanto, não existe, e por isso não
para ser ‘politicamente corretos’ e devo inclui-lo em relato algum.
‘críticos’ a bem dos atores que desejam
Do contrário, em um relato ruim
‘libertar das cadeias dos poderes arcaicos’.
“somente um punhado de atores serão
Fosse isso excelente política - e não o é [...]
apontados como causas dos demais, cuja
– ainda assim seria má ciência” (LATOUR,
função se limitará à de pano de fundo ou
2012, p. 83).
substituição para os fluxos de eficácia
Como a infralinguagem tem o dever causal” (LATOUR, 2012, p. 191). Disso só
ser o mais maleável possível no esforço de resultará uma descrição padronizada,
entender a trama das coisas, ela deverá ser anônima, recheada de clichês que nada
capaz de traçar, ao fim, um bom relato alcançam de novo (LATOUR, 2012, p. 191).
sobre o que viu e presenciou. Mas o que é Um antropólogo que logo ao chegar numa
um bom relato? Latour diz que um bom aldeia yanomami resolve-se a entender os
relato é simplesmente aquele que tece uma xapiri, espíritos dos animais e das plantas
rede (LATOUR, 2012, p. 189). Diz ele: da cosmologia yanomami, como meras
“Refiro-me com isso a uma série de ações “representações simbólicas”, falhará
em que cada participantes é tratado como miseravelmente sem nem ter começado a
um mediador completo. Em palavras mais elatar sobre os yanomami. 7 Ao tomar essa
simples: um bom relato [...] é uma atitude, abdicará instantaneamente de
narrativa, uma descrição ou uma vislumbrar a ação de seres que ritual após
proposição na qual todos os atores fazem ritual reaparecem e resistem, isto é, agem

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ao longo da história daquele povo. Ao Conclusão


mesmo tempo, seu relato redundará em
Falamos no começo sobre a
mais uma redução premeditada e
necessidade de reestabelecer a
naturalmente inútil, uma vez que em nada
comensurabilidade entre paradigmas
acrescenta à compreensão dos coletivos
culturais diferentes. Talvez o leitor já
yanomamis. 7
tenha percebido que desde o início o
Por fim, com sorte, um bom relato problema foi resolvido em parte. Ao
pode ser útil às próprias redes que assumir o ponto de partida da
descreve e investiga. Esse cruzamento, na infralinguagem, recuperamos com aquelas
verdade, é bastante raro, “é um milagre”, poucas noções um brando terreno comum.
diz Latour (LATOUR, 2012, p. 219); muito Toda cultura e tradição, de uma forma ou
do que chamamos de “reflexão” “é apenas de outra, teria seus atores e suas redes que,
um modo de fazer perguntas totalmente arquitetados e articulados de maneiras
irrelevantes a pessoas que fazem outras específicas, dariam origem a sistemas
perguntas para as quais o analista não tem igualmente específicos e provavelmente
a mínima resposta!” (LATOUR, 2012, p. inéditos. Naturalmente, cada um dos
219). Aqui, ter relevância é um evento raro paradigmas tem uma terminologia
e extremamente trabalhoso (LATOUR, própria, uma metalinguagem sob medida
2012, p. 224), pois exige um longo e que é também engendrada pelas
demorado mergulho nas redes e uma associações. A ANT e sua infralinguagem,
paciência incansável para seguir os atores. partindo do pressuposto que todas as
redes podem ser analisadas e todos os
Ainda assim, acredito que é essa
atores podem ser seguidos – ainda que de
relevância que deve ser procurada. Mesmo
maneiras diferentes –, cria um exígua, mas
se tratando de uma raridade, penso que se
valiosa, comensurabilidade. Acredito que
quisermos realmente encontrar uma
não negaríamos a possibilidade de
alternativa para o problema que os
conhecer a cultura alheia, ainda que de
estudos interculturais apresentam hoje, e
forma claudicante, e é sobre isso que a
que interessa a muitos coletivos, é preciso
infralinguagem e a ANT se apoiam.
encarar o volume de trabalho que teremos
pela frente. A questão é nada menos do que Afinal, em toda essa querela há um
descrever, sem reduções inconsequentes, pressuposto que até agora não
as complexas redes que cada paradigma questionamos aqui: cremos que existe
cultural forma na sua maneira de viver, uma “unidade cultural”. Ocorre que,
perceber e entender o mundo. empiricamente, uma tal unidade se
verifica só de modo muito instável e

7 Falhará, é claro, a depender do objetivo do relato. Um aspecto que não citamos aqui, mas que incide
determinantemente em toda a discussão, é o propósito às vezes insuspeito e camuflado, às vezes explícito e
manifesto, da colonização. Reduzir os paradigmas não-modernos a meras elaborações ridículas, “primitivas”,
desviadas, “bárbaras”, míopes, ingênuas ou subjetivas é, sem dúvida, uma estratégia de dominação com
consequências odiosas. Assim, não é sem qualquer utilidade e com completa inocência que os estudos
comparados são marcados por hermenêuticas marcadamente mesquinhas e absolutistas.

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postiço. Acreditar que cada cultura, Não somos tradicionais, então? Também
tradição ou paradigma possui uma não. A ideia de uma tradição estável é uma
ilusão da qual os antropólogos há muito
essência transcendente ou se erige desde
nos livraram. Todas as tradições imutáveis
um núcleo sólido e imutável pode ser só mudaram anteontem. Ocorre com a maior
mais um dos credos que os estudos parte dos folclores ancestrais o mesmo que
comparados desavisadamente patro- aconteceu com o kilt “centenário” dos
cinaram. Do contrário, se cada cultura não escoceses, totalmente inventado no início
do século XIX (Hobsbawn, 1983, apud
é tão unificada e hermética quanto
Latour, 2013), ou como os Cavaleiros
poderíamos crer, o problema já parece ir provadores de vinho de minha pequena
se resolvendo naturalmente. Primeiro cidade na Borgonha, cujo ritual milenar
abandonamos uma categoria de análise não tem mais do que cinquenta anos
universal, e agora sugerimos a revisão do (Latour, 2013, p. 75).

“mito da unidade cultural”. A Aqui, a identidade ou a unidade que


infralinguagem e a ANT abriram o campo uma cultura entende ter só ganha
de possibilidades para muito além do que importância quando aparecer nos relatos.
era permitido antes. Isso não significa que tenhamos que
Não queremos dizer com isso que assumir as certezas do nosso interlocutor,
as culturas não têm unidade alguma. É mas significa notar que determinada
evidente que a têm, mas de uma forma não tradição se vê de uma forma específica.
a priori, ou seja, que se estabelece, ou Aplicar certa identidade sobre os relatos de
melhor, que se autoestabelece ao longo de nossos interlocutores contribui para o
sua existência. A Doutrina da Igreja ou a apagamento de atores e o embotamento de
exegese vedantina dos Vēdas, por redes. Por exemplo, aplicar a identidade
exemplo, precisaram de séculos de intenso índio ou indígena a todas os povos
trabalho hermenêutico, com longos autóctones do continente americano é, no
concílios e discussões e graves crises para mínimo, pô-los todos “no mesmo saco”.
se formarem. A “unidade cultural” que hoje Tratar as coisas assim dificulta
desfrutam não foi gratuita e não estava imensamente reconhecer que cada povo e
dada, mas é resultado de um árduo etnia podem ter práticas e identidades
trabalho entre actantes que envolve desde profundamente distintas. Nesse caso,
o manejo e a incorporação de novas redes, podemos compreender muito mais sobre
até a destruição de atores incômodos ou os colonizadores e seu entendimento
com alto potencial desestabilizador. Sem acerca dos povos autóctones do que desse
dizer os altos custos de manutenção dessa povos em si. Enfim, trata-se, uma vez mais,
unidade. Se todos os institutos de de seguir os atores, ouvir seus relatos e
educação católicos fechassem, em não percorrer suas redes, tudo isso sem
pouco tempo veríamos a tão imponente atalhos.
Doutrina da Igreja definhar e se Diante de tudo isso, ao seguir o
“corromper”. Em suma, não há uma projeto até o fim, delineando uma
“unidade cultural” fixa, de tal modo que a metafísica empírica, temos a possibilidade
própria ideia de “tradição” sofre alguns de uma conversa mais organizada, em que
ajustes: cada coletivo não só interage legiti-

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mamente com o mundo, mas tem a posturas são necessárias. Primeiro, é


oferecer novas conexões. Seria muito imprescindível levar os outros a sério
difícil, por exemplo, ter uma conversa desde o princípio. Desconsiderar as
sobre a arte da sapataria com um sapateiro descrições dos nossos informantes e julgar
que não sabe explicar aquilo que faz, ou de antemão através de alguma habilidade
pior, explica as coisas de uma forma crítica mágica a verdade ou a mentira, a
enquanto o vemos fazer de outra. Nada inexistência ou a existência de quaisquer
impede que ele faça e conserte sapatos atores, associações ou relações é a receita
perfeitamente bem, mas a incongruência perfeita para atravancar e inviabilizar o
entre seu discurso e sua ação é nociva. diálogo. Segundo, não acreditar que os
Toda uma sorte de mal-entendidos paradigmas alheios são irracionais ou
apareceriam e aprenderíamos muito ocultistas, pelo mesmo motivo da postura
pouco (ou aprenderíamos errado) sobre anterior. A irracionalidade estaria
seu ofício. Da mesma forma, é muito mais exatamente no ouvinte que, de partida,
difícil travar um diálogo intercultural considera as associações do outro como
quando ambas ou uma das partes fala de ilusória, tal como um crítico literário que
forma dissonante ou obscura a respeito de julga a qualidade de um livro que nunca
suas redes e associações. Nesse sentido, a leu. Terceiro, aceitar o risco e a
infralinguagem pode ser uma ferramenta contingência dos relatos. Refiro-me ao
utilíssima. relato que é feito ao fim do trabalho e que
pode dar origem a uma metafísica prática.
Além disso, é preciso haver um
Há sempre a chance, por sinal muito
trabalho de tradução mútua em que os
grande, de alguma coisa não ter sido
elementos de cada paradigma, ainda que
notada, de algum ator essencial ter sido
permaneçam conservados, terão suas
esquecido ou de algum mal-entendido ter
conexões e seus caminhos explicitados.
ocorrido. Além disso, todo relato pode ser
Acredito que assim os coletivos poderão
refeito e reestruturado; dificilmente uma
negociar condições, expandir, se quiserem,
rede ou um paradigma podem ser vistos só
suas redes, ou integrar novas associações
de uma maneira. É essa outra qualidade da
e atores. Afinal, soa-me razoável pensar
infralinguagem: permite-nos ver o mesmo
que muitos coletivos alterariam suas
objeto de diferentes ângulos, sem a
concepções caso lhes fosse mostrado
necessidade de estabelecer uma
outras associações mais vantajosas ou
perspectiva que seja “mais correta” ou
eficientes. E aqui, sempre de novo, não se
definitiva. Três coisas que a ANT e a
trata dos ocidentais irradiarem aos “povos
infralinguagem, ao meu ver, fazem muito
primitivos” as luzes da razão; é muito mais
bem.
um encontro onde todas as partes podem
se aperceber de algumas de suas Em suma, a infralinguagem se
limitações e pontos cegos. mostrou uma ferramenta modesta, mas
muito potente. Ela parece hábil em
Para que essa proposta se
possibilitar uma aproximação a uma
concretize e a infralinguagem não traia seu
ampla gama de paradigmas que ainda
próprio propósito, advogo que três
assim permanecem distintos e plurais. E se

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talvez não torne as coisas completamente Para a proposta que tínhamos aqui, a
comensuráveis de novo, e isso pode ser infralinguagem respondeu muito bem, e
uma grande vantagem, pelo menos ainda que certos aspectos exijam
reestabelece um plano em comum, e com explicações mais dignas, nem por isso é
isso a chance da comunicação, e mais tarde cabível abandonar o que ela tem a nos
a possibilidade de trocas e negociações. oferecer.

Referências

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Network Theory. Routledge, 2020.

HARMAN, Graham. Prince of Networks: Bruno Latour and Metaphysics. Melborne: re.press,
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César Cardoso de Sousa. Salvador: Edufba, 2012; São Paulo: Edusc, 2012.

LATOUR, Bruno. Jamais fomos modernos: ensaio de antropologia simétrica. Trad. Carlos
Irineu da Costa. São Paulo: Editora 34, 2013.

LATOUR, Bruno. Investigação sobre os modos de existência: uma antropologia dos modernos.
Trad. Alexandre Agabiti Fernandez. Petrópolis, RJ: Vozes, 2019

SEIBT, Johanna. "Process Philosophy", The Stanford Encyclopedia of Philosophy (Summer


2020 Edition), Edward N. Zalta (ed.). Disponível em: <https://plato.stanford.edu/archives
/sum2020/entries/process-philosophy>.

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