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EDITORAÇÃO E DIAGRAMAÇÃO
CAPA E FOTOGRAFIAS
COLEGIADO DE FILOSOFIA
Alex Sandro Leite (Coordenação)
EDITORES RESPONSÁVEIS
Flávio Rocha de Deus (UNEB)
Luciano Costa Santos (UNEB)
EDITORES ADJUNTOS
Ângela Lima Calou (IFRN/UFBA)
Christian Andrés Ahumada (UChile, Chile)
María Magdalena Becerra (UChile, Chile)
Otávio Souza e Rocha Dias Maciel (UNB)
ASSISTENTE EDITORIAL
Mariza Farias Miranda do Nascimento (UNEB)
Salvador, 2020
CONSELHO EDITORIAL
Anãnsi: Revista de Filosofia, Salvador, 2020. a teia é sempre maior do que parece...
ISSN: 2675-8385
#sumário .
Editorial “Filosofar em tempos de pandemia globalitária” ............................... 07
Luciano Costa Santos, Universidade do Estado da Bahia.
/artigos. .
Filosofía y Arte desde el Abismo: Una mirada desde el Sur Global ……… 105
Carlo Zarallo Valdes, Universidade Federal de Santa Catarina.
/ traduções. .
/ resenhas. .
Editorial
Filosofar em tempos de pandemia globalitária
estruturas sociais, e já estava à espreita para retomar o seu posto bem antes do atual
estado de coisas.
Nesse sentido, é importante não perder de vista a ameaça regressiva
representada pelo Movimento Escola sem Partido já em 2015 (embora surgido em
2004), em pleno surto reacionário que desembocaria no Golpe de Estado do ano
seguinte. Concebido supostamente como instrumento legal para proteger o estudante
de indevida doutrinação ideológica, o Projeto Escola sem Partido, a reboque do
Movimento, acabou constituindo um engenhoso dispositivo de criminalização do
pensamento crítico e confisco da liberdade docente, chegando a fomentar um ambiente
de constrangimento à atividade docente em diversas instituições de ensino pelo país
afora, notadamente em aulas de componentes curriculares da área de Humanas.
Consumado o Golpe de Estado de 2016, convém também não perder de vista
que uma das primeiras iniciativas do presidente usurpador foi o encaminhamento ao
Congresso Nacional do Projeto de Emenda Constitucional 241 (ou 55 no Senado), a
chamada “PEC da Morte”, que congela por 20 anos investimentos em serviços públicos
essenciais, como Educação e Saúde, a fim de assegurar o pagamento de juros à classe
banqueira que patrocinou o Golpe. Com essa severa restrição orçamentária, o governo
golpista dava sinal inequívoco do lugar estratégico subalterno reservado à Educação
em seu programa. Enquanto tramitava a PEC da Morte, foi expedida pelo governo
federal a Medida Provisória 746/2016 – avalizada por instituições como Banco
Mundial e Organização Mundial do Comércio –, que propugnava a Reforma do Ensino
Médio, cuja proposta visa flexibilizar a formação do discente pelo direcionamento à(s)
área(s) de seu maior interesse e potencial especialização mercadológica. Reduzindo o
conteúdo curricular e conferindo a este um viés mais técnico que humanista, a Reforma
também propunha revogar a obrigatoriedade do ensino de Filosofia, Sociologia e Artes,
o que, se confirmado, terminaria por comprometer a própria ideia de Ensino Médio
como Educação Básica universal a serviço da formação crítica do sujeito-cidadão, vindo
a impor-se um modelo educacional voltado à provisão de mão de obra barata para
serviços menos qualificados no mercado. No final das contas, buscava-se manter a
classe trabalhadora no seu “devido” lugar histórico, freando os espasmos
emancipatórios que se vinham produzindo e assegurando a primazia do capital no
espaço social.
É, portanto, nessa perspectiva estratégica de amplo alcance que se deve
dimensionar o corte atual de recursos na área das Ciências Humanas, muito
especialmente no caso da Filosofia, que aqui nos toca de perto. A nosso juízo, não se
trata de um mero ajuste financeiro conjuntural, que vise dar alívio imediato às contas
públicas, mas de um movimento programado e progressivo de lenta asfixia do campo
Vitorio, que descreve a análise de Frantz Fanon, no clássico Pele negra, máscaras
brancas, acerca da posição psicoexistencial do negro, sua relação com o corpo, a
subjetividade, o ser Outro e o mundo nos campos da cultura, da sociedade e das
ciências.
O artigo Da biopolítica à necropolítica: veredas decoloniais entre Michel
Foucault e Joseph-Achille Mbembe, de Renan Vieira de Santana Rocha, Wesley
Barbosa Correia e Jeane Saskya Campos Tavares, tem por objetivo compreender se, e
em que medida, a construção do conceito de necropolítica, tal como se apresenta na
obra mbembiana, agrega uma perspectiva decolonial ao conceito foucaultiano de
biopolítica.
A infralinguagem de Latour e o problema da comensurabilidade nos
estudos interculturais, de Mateus Rodrigues Santos, tem por objetivo expor a
infralinguagem tal como a concebe Bruno Latour, uma ferramenta de pesquisa que
permite o deslocamento de um quadro de referência a outro. O artigo sustenta a tese
de que infralinguagem – e sua branda metafísica de fundo – oferece uma maneira de
manter (e enriquecer) a pluralidade cultural, sem necessariamente instaurar uma
completa incomensurabilidade entre as culturas.
Em A bifurcação Natureza/Cultura e o Correlacionismo Radical em Gender
Hurts: a feminist analysis of the politics of transgenderism, Kelle Cristina Pereira da
Silva analisa a obra “Gender Hurts: a feminist analysis of the politics of
transgenderism”, de Sheila Jeffreys, à luz das críticas ao correlacionismo de Quentin
Meillassoux e dos apontamentos acerca da bifurcação natureza/cultura levantados por
Bruno Latour. Busca-se demonstrar como tanto gênero, quanto a transgeneridade,
aparecem na obra como conceitos bifurcados.
As diversas acepções de Accent: Rousseau e Les Dictionnaires d’autrefois,
de Nilton Marlon Antônio, se propõe a identificar determinadas atribuições concedidas
ao conceito de accent dentro da obra de Rousseau e compará-las com as acepções
desenvolvidas por importantes dicionários franceses que antecederam a composição
das obras rousseaunianas. O trabalho reflete as diferentes significações que um
conceito pode tomar ao longo de uma obra — também ao longo dos anos — e como
essas diferenças, acarretando diferentes traduções, podem trazer complicações
interpretativas.
Em Alex Honneth e a Teoria do Reconhecimento: breves considerações
introdutórias acerca de Hegel, Mead e Winnicott, José Claudio de Sousa da Silva
aborda o conceito de reconhecimento no pensamento do filósofo contemporâneo Axel
Honneth, utilizando como obra principal o livro “Luta por reconhecimento: A gramática
moral dos conflitos sociais”.
A seção de ensaios é inaugurada com Filosofía y Arte desde el Abismo: una
mirada desde el Sur Global, de Carlo Zarallo Valdes, o qual tem como objetivo
mostrar a importância de assumir o espaço geográfico/epistemológico do Sul global
para poder pensar uma arte livre de conceitos implantados a partir do Centro – para o
autor, a realidade convida a pensar e criar novos espaços que, historicamente,
permaneceram silenciados, oprimidos, marginalizados.
Carlos Allencar Sérvulo Rezende-Pereira e João Víctor Moreira Gonçalves, em
Morrendo de rir: a (falta de) graça da existência visibilizada em Coringa, de Todd
Phillips, mostram que o entendimento da loucura como condição psíquica sustentada
e produzida socialmente, ganha novas referências no cinema a partir do filme Coringa
(Joker, 2019), dirigido por Todd Phillips. Nele, Joaquim Phoenix incorpora o icônico
personagem de modo a acender o debate sobre como, através de uma rede de relações
entre diversos atores sociais, os transtornos mentais são relegados a um lugar de
exclusão e estigma, operação que mantém dinâmicas instituídas e acirra processos de
vulnerabilização.
Encerrando a seção de Ensaios e abrindo a de Tradução, O Ensaio Introdutório
à filosofia de Nicolai Hartmann, de Otávio S.R.D. Maciel, e o texto Como é possível
uma Ontologia Crítica?, de Nicolai Hartmann – traduzido por Felipe Augusto Romão
e Otávio S.R.D. Maciel – contribuem para apresentar este filósofo ao público brasileiro
em geral, tendo em vista tratar-se de autor ainda pouco conhecido entre nós e mesmo
de restrita circulação em nível mundial, não obstante sua importância para o
revigoramento dos estudos metafísicos na contemporaneidade.
As Tradições da Ciência, Tradução de Rafael Ferreira Martins, da primeira
parte (The Traditions of Science), do primeiro capítulo (Meaning), da obra Uma
Investigação Concernente aos Princípios do Conhecimento Natural (An Enquiry
Concerning the Principles of Natural Knowledge) – escrito pelo matemático e filósofo
Alfred North Whitehead (1861-1947) no início do século XX.
"A língua é um pássaro em tuas mãos", com Tradução e Introdução de Simone
Borges e Alan Sampaio, apresenta o Discurso de Toni Morrison na cerimônia de
entrega do Prêmio Nobel de Literatura de 1993. Aqui a escritora faz uma reflexão
filosófica e social sobre a língua e as formas assumidas pela linguagem, com destaque
para seus modos opressores.
Fechando a seção de Traduções, A propaganda ameaça a democracia? Um
debate entre Edward Bernays e Ferdnand Lundberg (1938), com Tradução e
1. Introdução
1Primeira publicação em 1923. Texto original: HARTMANN, Nicolai. Wie ist kritische Ontologie überhaupt
möglich?“ in. Kleinere Schriften von Nicolai Hartmann. Band III – Vom Neukantismus zur Ontologie.
Berlin: Walter De Gruyter & Co., 1958. Tradução de referência: HARTMANN, Nicolai. “How Is Critical Ontology
Possible? Toward the Foundation of the General Theory of the Categories, Part One (1923)”, transl. by Keith
R. Peterson, in. Axiomathes (2012) 22:315–354
2 Graduando em Direito na Universidade de Brasília. E-mail: felipe.augusto.cmb@gmail.com
3Doutorando em Filosofia na Universidade de Brasília. E-mail: oe.maciel@gmail.com. O Ensaio Introdutório
pode ser encontrado também na presente Revista Anãnsi. As notas de rodapé que não estiverem marcadas
com “NT” (notas de tradução) são de autoria do próprio Hartmann.
4NT: Hartmann faz referência ao Livro Épsilon da Metafísica (1025b), no qual Aristóteles define como
objetivo da πρώτη φιλοσοφία (prima philosophia ou “filosofia primeira”, traduzido séculos depois como
“metafísica”) o estudo do ὅτι ᾗ ὄντα (“ser enquanto ser”, traduzido a partir do latim “ens qua ens”). Devido à
desconfiança no século XX contra questões “metafísicas”, Hartmann vai preferir empregar o termo prima
philosophia para se referir a este projeto de extração aristotélico.
Nicolai Hartmann
De qualquer forma, deparando-se com tal crítica, a questão precisa ser levantada:
há alguma outra pergunta teórica fundamental além daquela referente ao “ser enquanto
ser”? As teorias idealistas não propõem e respondem, a princípio, a mesma pergunta
quando tentam demonstrar a “idealidade do ser”? Não se pode duvidar de que eles estejam
trabalhando com a essência do ser, apenas a explicam diferentemente. A distinção existe
apenas na resposta à questão do ser, não na questão em si. Até o mais extremo dos
subjetivismos entende como necessário pelo menos explicar a “aparência” do Ser na
medida do que for capaz. O mesmo vale para o ceticismo, só que ao contrário. Até o
ceticismo lida com o Ser, sendo que ele consegue, com dificuldade, alcançar a epokhé a
respeito do ser. Em resumo, um teorizar que não seja, no fundo, ontológico, nunca existiu
e é algo impossível. Está na essência do pensamento ser capaz de se orientar não ao nada,
mas apenas em direção aos entes, ao que há5 [Seiendes]. Este era o sentido da tese eleática
antiga.
5 NT: Hartmann emprega com bastante frequência a distinção entre o Ser [Sein] e os Entes [Seiende].
Ocasionalmente, a tradução de Seiend pode soar melhor nas línguas latinas como “o que há”, para referir a
algo que simplesmente é-aí. Hartmann diverge crucialmente dos adeptos do heideggerianismo ao nomear de
Dasein qualquer coisa que há, qualquer ente, sem nenhum privilégio antropocêntrico e sem nenhum
centramento na existência humana. A metafísica, a ontologia e a filosofia lidam com o que há, com o ser
enquanto ser, não podendo ser arbitrariamente reduzida, por dogmas ou truques de prestidigitação, a uma
preocupação apenas ou majoritariamente humana. Estes podem e devem ser tópicos de investigação
filosófica, apenas não devem ser tomados como protagonistas ou gabarito, ou como pontos de partida ou de
chegada obrigatórios.
Este mal-entendido, no entanto, tem uma raiz mais profunda. O apriorismo é quem
o propagou. Esta “propagação” consiste em um mal-entendido sobre o a priori ele mesmo.
Tem sido repetido ad nauseam desde Kant que o conhecimento a priori é possível apenas
onde for o objeto do conhecimento mera aparência; pelo menos não se pode conhecer a
priori nada sobre algo existente em si. Neste caso, o objeto seria representado mesmo antes
de ele ser dado – e independentemente de ser dado. Sua essência teria de ser a mesma
daquela da representação, colocando um ponto final na reivindicação de ser uma entidade
existindo independentemente da representação.
Kant tinha clara ciência de todo esse problema. Ele não tinha perdido contato com
o problema ontológico fundamental do conhecimento. Isso inicialmente e
incrementalmente se perde no idealismo pós-kantiano. Tal processo é completado no
neokantismo. Acredita-se, agora, que devemos entender todo o problema do conhecimento
meramente como um problema lógico. Isso, sem dúvidas, dá asas ao apriorismo como tal,
mas deixa de ser um apriorismo epistemológico. É apenas o peso do elemento ontológico
do problema do conhecimento que pode trazer o apriorismo de volta para o chão e protegê-
lo de voos especulativos de fantasia conceitual. Apenas a severidade do que há de
6 NT: Hartmann faz aqui referência à divisão clássica da “Velha Ontologia” de Christian Wolff, a partir do
sistema leibniziano, que classificava como áreas de estudo a ontologia ou “metafísica geral”; e três áreas de
pesquisa metafísicas especiais: a cosmologia racional, a psicologia racional e a teologia racional,
respectivamente, o estudo da criação divina, o estudo da alma individual dada por Deus, e o estudo do
Criador.
7NT: Referência à segunda parte da Kritik der Urteilskraft (1790), a “Terceira Crítica” de Kant, traduzida no
Brasil como “Crítica da Faculdade de Julgar” (Editora Vozes) ou “Crítica da Faculdade de Juízo” (Editora
Forense).
O que constitui a essência da Teoria das Formas? Seria a tese do realismo medieval
de que as puras formae substatiales são as portadoras genuínas do ser absoluto e que todo
o resto são imitações feitas à sua imagem? Ou seria que essas Formas podem ser
concebidas como ideias de uma Razão-Mundo8, como pensamentos de uma inteligência
divina? Ambos não são possíveis – e diversas concepções similares variam
incessantemente de acordo com os preconceitos de seu tempo, enquanto a atitude
ontológica permanece a mesma.
8 NT: A ideia de Razão-Mundo [Weltvernunft] é a forma germânica de recepcionar o conceito grego de νοῦς
(“nous”), entendido como Inteligência ou Razão que articula o mundo. Este conceito parece ter sido
introduzido nas obras de Homero, repercutindo nas filosofias de Anaxágoras, Platão, Aristóteles e todo o
pensamento europeu subsequente, especialmente após a cristianização, onde a Inteligência deixa de ser uma
inteligência “do cosmos” e se torna do “intellectus divinus”.
9 NT: Na filosofia de Hartmann, todo conhecimento é um ato transcendente, algo que vai de si em direção a
algo que lhe é outro, algo para fora de si. Para operar este “greifen”, Hartmann usa a metáfora do Erfassen,
que pode ser traduzida como compreender, apreender, capturar, agarrar, pegar, num sentido ressonante com
algo de táctil, como um corriqueiro “pegar um copo”, ou “capturar o sentido” do que se quer dizer.
Traduzimos por preensão e, às vezes, por “com-preensão” para resumir todas estas noções num vocábulo
comum. Além disso, para aproveitar, aproximamos de Alfred N. Whitehead, outro pensador menos conhecido
do século XX mas que, também, é um dos mais sofisticados metafísicos ao lado do próprio Hartmann, embora
tenham trabalhado independentemente. Esta aproximação foi defendida por A. Zvie Bar-On em seu The
Categories and the Principle of Coherence (1987), no qual este filósofo mostra diversas proximidades e
ressonâncias entre ambos os autores.
10NT: Do grego, ὑπόθεσις, o método hipotético é desenvolvido por Platão, notadamente no diálogo Mênon,
como uma mistura de especulação racionalmente controlada que tenta orientar a busca por uma solução
internamente complexa e aparentemente simples, articulando diversos elementos de forma inteligível e
elegante. Este método foi “redescoberto”, em termos de sua aplicação na filosofia e na epistemologia no
século XX, pelo velho mestre de Hartmann, o fundador da Escola Neokantiana de Marburgo, Hermann Cohen
(ao lado de Paul Natorp). Para mais informações, cf. Cohen (1902).
11 NT: A palavra no original é Gesetzlichkeiten, que pode ser traduzido como legalidades, normatividades,
regularidades. A investigação acerca da legalidade do mundo vai englobar tanto as chamadas leis naturais
como também certas regularidades sociais que animam o jurídico – além das leis lógicas e leis matemáticas.
Embora não tenha desenvolvido explicitamente uma Teoria do Direito, Hartmann desenvolve sua teoria da
legalidade da natureza para além de uma noção simplista de causalidade moderna, geralmente reduzida a
um tipo de mecanicismo e, não raro, a fatalismos. Além disso, trabalhando sobre os princípios éticos
axiológicos, também há interessantes aplicações no direito. Sobre isso, cf. os quatro volumes do Ontologia e
os três da Ética. Sobre a relação de Hartmann e o Direito, cf. Adeodato (2019).
12 NT: O tradutor para o inglês, Keith Peterson, comenta acertadamente aqui que o conceito de irracional,
não-racional, a-racional ou ininteligível, em Hartmann, é bastante peculiar. Ele não emprega o termo
“irracional” tal como o faz a filosofia popular a partir dos existencialistas – mas define este conceito em função
do “transinteligível” e do “transobjetivo”, que permanecem no ente para além daquilo que dele foi
objetificado. Cf. o primeiro volume da Ontologia, especialmente nos capítulos 8, 26 e 51.
Assim, precisamos distinguir a ontologia do ser ideal da ontologia do ser real. Não
se pode decidir antecipadamente até onde ambos podem ser unificados – o que ainda
permanece a ser investigado. Ambas as esferas são inicialmente separadas completamente
da legalidade do pensamento – apesar da dependência da esfera real em relação a
estruturas ideais. Não estamos lidando aqui com a distinção entre ontologia “formal” e
“material”, como foi recentemente abordado pela perspectiva fenomenológica, pois nem a
esfera real carece de formas, nem a esfera ideal carece de matéria. Além disso, tal distinção
afetaria uma falsa estratificação desde o começo – como se tudo o que é real estivesse
13NT: Hartmann faz referência aos famosos Cinco Modos de Agripa, filósofo grego cético do Século I d.C., que
trazia cinco modos ou “tropos” que levam o cético a suspender seu juízo sobre as coisas: pluralidade de
divergências de opiniões; progresso/regresso ad infinitum; relação de proposições com outras indefinidas;
presunções tomadas e não explicadas; e circularidade argumentativa.
completamente sob formas ideais. Dessa forma, o velho preconceito seria fortalecido
novamente. Tudo isso precisa continuar aberto a questionamentos. As formas do real
podem muito bem serem diferentes também, se não totalmente, mas pelo menos em parte.
A esfera ideal não é, de qualquer modo, nem um pouco adequada a ser a esfera das formas
do real. Ela é o que é, puramente em si mesma, sendo quaisquer propósitos de suas
estruturas que podem servir ao real extrínsecas a ela.
Se nós conseguirmos alcançar uma determinação precisa dessas esferas, bem como
de suas relações entre si, então muito mais é realizado do que poderia ser suposto, dado o
caráter básico do problema. As determinações metafisicamente fundamentais do
conhecimento, do ethos, da consciência e dos objetos estéticos só podem ser consideradas
se baseadas em tal redefinição. O quanto isso se aplica a uma cognição a priori do real já foi
indicado acima. Isso se aplica à ética na medida que valores éticos são eles mesmos
entidades ideais, mas o comportamento de seres humanos sujeitos às suas normas é real.
A relevância desta distinção para o objeto estético é ainda mais fácil de se ver, pois, apesar
de sua unidade ostensiva, ele mesmo já se posiciona parcialmente na esfera do real e
parcialmente na esfera ideal. Em ambos os casos, o entendimento filosófico do problema
central está na relação entre as duas esferas do ser. O problema fundamental é sempre de
natureza ontológica. Esse amplo leque de problemas pertence, a princípio, essencialmente
à ontologia. Isso mostra como uma philosophia prima genuína, uma disciplina universal
fundamental, uma teoria de princípios de natureza universal, está de fato envolvida nos
seus problemas. É claro, nenhuma das outras mais especializadas disciplinas poderiam vir
antes dela em termos da ratio cognoscendi. Seu primado não é metodológico, é um primado
da coisa [da matéria, do assunto]. O método precisa antes de tudo elevar-se ao nível deste
prius14. Naturalmente, isso só pode ser feito apenas de dentro de cada uma das disciplinas
especiais.
Ao mesmo tempo, é claro que a ideia de tal philosophia prima não é coextensiva com
aquela da ontologia. Isso se deve ao fato de que toda a série de valores-princípios
implicados no objeto de investigação da philosophia prima evidentemente não são
meramente ontológicos. Não é uma teoria de princípios ontológicos apenas, seja do ser
ideal ou do ser real, mas uma teoria universal dos princípios. A razão para essa prioridade
há de ser buscada precisamente aqui. A diferença entre princípios ontológicos e axiológicos
(além da relação positiva entre eles) pode ser determinada apenas em seu solo e só é visível
neste ponto de vista. Se alguém fosse, mesmo assim, querer manter o nome de “Teoria das
Categorias” para ela – o que não é uma limitação em si – então, pelo termo “categoria”,
deve-se entender não apenas princípios do ser e do saber, mas também princípios de todos
14 NT: Referência ao cognitione prius, aquilo que “vem primeiro na ordem da cognição”, expressão cartesiana.
os tipos. Para a própria Teoria das Categorias, entendida como philosophia prima, a tarefa
surge da necessidade de determinar não apenas as categorias do ideal e do real em suas
relações, não apenas de articular as relações de ambas as esferas com as categorias da
cognição, mas, também, além de tudo isso, de investigar todo o complexo de todas essas
categorias teóricas de maneira correta e decisiva em sua relação com as categorias
axiológicas. Não se pode dizer de antemão se suas tarefas são exauridas por tudo isso. É
evidente que cada domínio adicional de princípios estruturados de maneira diferente,
supondo que eles existam, deve ser integrado da mesma maneira. Ou seja, o trabalho da
philosophia prima é um círculo inacabado, uma totalidade aberta πρός ἡμάς [para nós] de
tarefas parciais sobrepostas.
Nós vimos que os problemas usuais sobre a ontologia são facilmente retificados
assim que a espada da Crítica é voltada contra eles, embora dificuldades ainda maiores
surjam para a ontologia de uma outra perspectiva. O problema da ontologia levou a um
problema mais geral, o problema dos princípios, ou o das categorias. Aqui, o problema das
esferas do ser retorna, dessa vez em escala maior. Ele já está contido nos princípios básicos
de todas as áreas de especialização filosóficas, de fato sempre parecendo ser um problema
novo, pois cada vez ele é desalojado essencialmente ao mesmo tempo com as relações em
constante mudança entre as esferas entre si mesmas. Todavia, apenas a investigação sobre
as categorias caso a caso pode prover informações sobre essa relação. Categorias são os
elementos estruturais em fenômenos de todos os tipos e, dentro dos limites do seu caráter
racional, os únicos elementos filosoficamente compreensíveis. Mas quão bem tem sido o
problema das categorias compreendido filosoficamente?
Prover uma Teoria das Categorias desenvolvida significa nada menos do que aceitar
e lidar com as grandes aporias da Weltanschauung. Apenas a Análise Categorial, como a
explicação e precisa investigação sobre a estrutura de categorias individuais e suas
interrelações sistemáticas no todo, pode dar clarificação e adjudicação dessas aporias, pelo
menos até onde elas são acessíveis ao pensamento. A Teoria das Categorias se mostra como
uma philosophia prima também neste sentido. Até onde, todavia, pode esse caminho ser
trilhado? Isso ainda há de ser visto, pois apenas a própria Análise Categorial pode iniciar
esse tipo de investigação – e a pesquisa ainda não existe. A discussão do método anterior
ao trabalho metódico sobre o assunto é tão impossível para a Análise Categorial quanto o
é para a Fenomenologia, para Aporética, para a Analítica ou para a Dialética. Que progresso
se teve até agora sobre o problema de criar uma Teoria das Categorias?
Surpreendentemente pouco, quando consideramos a venerável idade do problema – os
antigos Pitagóricos já tinham uma tábua de categorias15. Ao longo de muitos séculos houve
poucas mentes que trabalharam seriamente no problema das categorias, com certeza
algumas das melhores mentes, ainda que nem todas, cujos próprios problemas
demandaram uma preocupação com categorias. Eles podem ser contados nos dedos: no
mundo antigo, Platão, Aristóteles, Plotino e Próculo; no período moderno, Descartes,
Leibniz, Kant, Hegel; entre esses dois grupos, alguns escolásticos idiossincráticos; e mais
recentemente Eduard von Hartmann e Hermann Cohen.16 18
15 NT: Não está claro ao que Hartmann faz referência aqui, mas provavelmente é sobre a caraterização
aristotélica de que os pitagóricos defendiam tudo ser Número. No entanto, a historiografia da filosofia antiga
diverge consideravelmente sobre esta caracterização, especialmente porque a noção de número entre os
Antigos não é redutível, curiosamente, à aritmética, à contabilidade e a usos quotidianos de meramente
enumerar coisas.
16 Trabalhos como os de Emil Lask (além de inúmeros outros), os quais levantam o problema das categorias
de forma geral, mas não elaboram em nenhuma categoria em si, não podem ser contados entre esses,
precisamente pois eles não levam a uma discussão das próprias categorias. O mesmo se aplica para muitos
trabalhos de eras anteriores. Em particular, devemos muito a muitos pensadores por informação relativa a
uma ou outra categoria, mas que mesmo assim mantiveram certa distância do problema.
17 NT: Eduard von Hartmann (1842-1906), apesar do nome, não é parente de Nicolai Hartmann. Era um
filósofo independente que desenvolveu uma teoria que ele nomeava de “realismo transcendental”,
combinando elementos da metafísica da vontade de Schopenhauer (bem como de seu pessimismo) com
elementos do idealismo alemão de Schelling e Hegel (especialmente sobre o Inconsciente e o
Incondicionado). Hermann Cohen (1882-1950), um dos fundadores da Escola de Marburgo, estabelece uma
praticamente ainda não foi descoberto historicamente, muito menos ainda posto em bom
uso. Ao mesmo tempo, todavia, esse sistema é o mais condicionado por certa perspectiva
idealista e uma avaliação devida requer uma visão absolutamente objetiva, a qual nós não
podemos de forma alguma ter hoje a respeito de Hegel. O peso metafísico do panlogismo
sobrecarrega a lógica hegeliana com preconceitos já desde seu começo – e até mesmo
alguns que podem ser atribuídos à velha ontologia – de forma que para chegar a uma
postura puramente “deste-lado”18 deles iria, sozinha, tomar o trabalho de uma vida. O
mesmo vale em menor grau para as tentativas clássicas, especialmente as mais recentes
(com certeza para as mais recentes), mas provavelmente vale menos ainda sobre as
tentativas feitas pelos antigos. O que é importante é tomar de cada um deles aquilo que é
de fato visível, incontestável e trans-histórico em sua interpretação do problema das
categorias; e atacar tudo o que for preconceito, ponto de vista ou construção de sistemas
de pensamento. Platão, Plotino, Descartes e Leibniz são exemplares nesse respeito. Os
limites pelos quais eles procuravam o conjunto interconectado de categorias, todavia, são
muito estreitos. Em Aristóteles nós já achamos uma produção mais rica de conteúdo,
apesar de ele estar bem mais atado por preconceitos metafísicos, especialmente quando
adicionamos os princípios regentes de sua metafísica com as suas chamadas “dez
categorias”. Hegel foi o primeiro a desenhar um sistema de categorias em larga escala e a
elaborar leis sobre as relações de umas com as outras. A lei do sistema, todavia, é tirada da
Ideia-de-Sistema [Systemidee], ao invés da essência das próprias categorias. A dialética
dedutiva unificante violenta o fenômeno. A lógica de Cohen se contrasta a isso com sua
ênfase nas ciências positivas. Nela, categorias individuais são tiradas dos fatos da cognição;
a interconexão emerge naturalmente e ela é uma interconexão de conteúdo. No entanto, a
diversidade de conteúdo é encolhida, sua perspectiva subjetivistamente limitada e o
domínio relevante de investigação é picotado por seu cientificismo.
É evidente que toda a tarefa da Teoria das Categorias é, acima de tudo, enfrentar a
retificação radical de todas essas transgressões, desalojamento de limites e presunções
especulativas. Assim, o que realmente se precisa para enfrentar de maneira favorável a
tarefa da Análise Categorial se tornará naturalmente visível. O princípio omnis
determinatio est negatio 19 (e vice-versa) também vale para o método. Quando nós
consideramos a abundância de questões amplas e problemáticas especificadas acima,
vertente do neokantismo dedicado ao estudo da Crítica da Razão Pura e da lógica transcendental – foi o velho
orientador de doutorado de Nicolai Hartmann.
18 NT: No primeiro volume da Ontologia, Hartmann cria esta expressão “Diesseits”, traduzida por “deste-lado”,
para significar uma postura vigorosamente incompromissada perante a disputa realismo x idealismo. O
ponto é que afirmar certo realismo, geralmente, significa algum tipo de submissão acrítica, seja à ciência ou
à política. Por outro lado, afirmar um idealismo significa a propagação de algum preconceito a priori que
restringe o que há, seja à mente, seja à intersubjetividade humana. Ao menos para começar uma ontologia
séria e rigorosa, o filósofo não pode optar por nenhuma delas de antemão, e deve começar “deste-lado” da
filosofia, um lado talvez pragmático, de um senso comum, de um ponto de partida mais ou menos ingênuo ou
não-enviesado, para seguir na investigação metafísica que admita tanto o real quanto o ideal. Embora, mais
tarde no livro, Hartmann opte pelo realismo, isso não pode ser tomado como determinação de antemão sem
antes perpassar todos os vários capítulos onde ele desenvolve o raciocínio em direção do que ele nomeia
“realismo crítico”.
Anãnsi: Revista de Filosofia, Salvador, v. 1, n. 2, 2020.
171
ISSN: 2675-8385
Nicolai Hartmann
3. Os Erros Tradicionais
19NT: “Toda determinação é negação”. Famosa enunciação de Spinoza, popularizada no Ciência da Lógica de
Hegel como um de seus princípios centrais.
20 NT: Hartmann não vai, exatamente, escrever apenas três capítulos, tal como ele achou que seria o
necessário em 1923. Em verdade, vai escrever quase duas mil páginas em quatro volumes sobre a Ontologia
ao logo de sua carreira, mais centenas para os três volumes da Ética (1926), além de tantos outros volumes
tentando dar conta desta gigantesca tarefa da Análise Categorial. Por sua morte repentina em 1950, apesar
das décadas escrevendo, muita coisa permaneceu inacabada ou ainda não projetada. Para mais informações,
confira o artigo “Ensaio Introdutório à Filosofia de Nicolai Hartmann” no presente volume desta Revista.
e tornaram-se desastrosos para a filosofia vão nos preocupar aqui. Talvez não seja
coincidência que são precisamente esses os quais se atrelaram aos nomes dos grandes
mestres – merecidamente ou não – de forma que somos involuntariamente tentados a
nomear os erros em relação a eles. De toda forma, a autoridade desses nomes é
parcialmente responsável pela tenacidade com a qual estes erros têm sido mantidos pela
tradição.
Não é nosso trabalho aqui rastrear as motivações intelectuais desses erros. Alguns
são de tipo bem subjetivo, enquanto outros são consequências de preconceitos sistêmicos
mais gerais. Muitos podem ser facilmente rastreados a motivos mitológicos, outros estão
enraizados na insuficiência de conceitos da ciência positiva que são inconscientemente
tomados como modelos. Todavia, essas motivações são quase inteiramente bem
transparentes e não têm nenhuma relação com as diversas consequências sistêmicas as
quais fluem destes erros. O resultado disso é que não é nada difícil revelar esses erros e
corrigi-los uma vez que compreendemos sua natureza – e tal compreensão quase conta
como o esforço de superá-los. Praticamente sem exceção, estes erros não têm peso
metafísico próprio. Este peso diz respeito exclusivamente aos conteúdos tratados
filosoficamente. Como tomar iniciativa positivamente frente ao insight conquistado pela
investigação é uma questão totalmente diferente de o que é justificadamente necessário
para consertar as transgressões. Inicialmente, a solução está em reconhecer tal erro, mas
isso é uma cura posterior21.
Ocupar-se com motivações históricas pode ser empolgante, mas é sistematicamente
trivial. Por enquanto, o que precisa ser feito consiste unicamente em uma fenomenologia
dos preconceitos eles mesmos, na medida em que a concepção da essência e do sistema das
categorias é influenciada por eles. Pelo menos isso fica claro desde o início – essa influência
existe no maior dos graus. De fato, nós não temos sequer uma tentativa de uma Teoria das
Categorias construída desta maneira crítica. O poder regente dos preconceitos tradicionais
é ainda incontestado por todas elas, mesmo que em graus diferentes por teorias diferentes.
A seção seguinte começa com os preconceitos historicamente mais antigos e mais
ingênuos, ascendendo até os mais diferenciados e teoricamente condicionados.
A dificuldade metafísica torna-se ainda pior quando consideramos que, desta forma,
uma dualidade dos dois mundos sem qualquer diferença qualitativa real é postulada, quase
uma tautologia vazia, uma duplicação do mundo sem enriquecimento genuíno do conteúdo
do mundo ou de sua compreensibilidade. Seria difícil de acreditar que o sentido da Teoria
das Ideias consista nisso. As concepções de methexis nos escritos mais bem conhecidos, de
qualquer forma, deixam essa impressão. A homogeneidade qualitativa da Ideia e da coisa
não pode ser inferida das formulações do próprio Platão, nem mesmo em seus escritos
mais tardios. Nestes, o conceito de symploke23 transforma o conceito de methexis, deixando
de ser um eixo vertical unidimensional para se tornar um eixo horizontal, no qual a
participação das Ideias entre elas mesmas substitui a noção da participação das coisas nas
Ideias. O conceito de uma arché é claramente concebido em sua pureza e sentido universal,
pois o ser-uma-condição da Ideia [Bedingugsein der Idee] para coisas é, e continua a ser, o
cerne da questão por todos os textos. No entanto, não se compreende que uma condição
não precisa ser similar ao condicionado – aliás, não se compreende que ela deva
necessariamente ser dissimilar ao condicionado. O Erro da Homogeneidade é baseado
nisso. Ele passou da Teoria das Ideias para uma inumerável série de sistemas (o quão
23 NT: O termo em grego é συμπλοκή (symploke), especialmente nos diálogos Parmênides e no Timeu. Tal
como Hartmann aponta, este conceito substitui a methexis individual por uma espécie de participação das
Ideias nas Ideias, uma “comunidade” das Ideias entre si mesmas, para indicar que uma não existe em absoluto
isolamento em relação a outras.
diferentes que possam ser), chegando até o período moderno. Pode-se chamá-lo, com
razão, de “Erro Platônico”.
Este Erro não é tão ingênuo quanto aparenta ser em Platão, que nunca se dedicou
sistematicamente a traçar todas as consequências dele e que, no final das contas, cancelou
[aufhebt] a duplicação do mundo. Princípios devem explicar o incompreensível no
fenômeno, mas como podem esses princípios explicarem as coisas se os princípios são
apenas a recorrência ao conteúdo agora purificado do que, de alguma maneira, já estava
nas coisas? O que ficou de ser explicado já é pressuposto nelas. Dessa forma, nada é
explicado por tais princípios. Como fundamentos metafísicos, eles são puros idem per idem
[uma definição circular] (lembre-se da mais recente teoria das “qualidades ocultas”!). Mais
precisamente, eles são generalizações descritivas daquilo que recorre com certa
regularidade (até mesmo com legalidade) na multiplicidade de coisas. Em muitas
concepções posteriores, a saber, no realismo conceitual escolástico, eles são de pronto a
hipóstase dessas generalizações. Eles não são, todavia, formulações daquela legalidade na
base da qual a recorrência do mesmo em meio à multiplicidade acontece.
24NT: Escrevendo mais ou menos na mesma época, embora independentes, Alfred N. Whitehead também
buscava repensar a herança de Platão sob a luz das ciências contemporâneas no começo do século XX. Em
Processo e Realidade (1929), Whitehead decididamente constrói um sistema de cosmologia metafísica que
combina elementos do Escólio de Isaac Newton com o Timeu de Platão, além de ele próprio ter desenvolvido,
concomitantemente a Einstein, uma teoria da relatividade e uma nova teoria da extensão. Cf. Mohanty (1957)
que foi um dos primeiros a trabalhar este pano de fundo platônico comum a Whitehead e a Hartmann.
demonstrar sua “aplicabilidade” aos objetos de experiência. Aqui também as categorias são
originalmente postuladas com certo chorismos – e o papel de “lugar celestial” é cumprido
aqui pelo “sujeito transcendental”. Não é autoevidente que a esfera dos objetos está contida
neste último, para dizer o mínimo, nem mesmo que é compreensível em termos da essência
das categorias em si. Categorias que deveriam ser pensadas como princípios das coisas
desde o começo obviamente não iriam requerer nenhuma dedução subsequente28.
O que é preciso, para o problema das categorias, é um modo de ser para seus
princípios que os faça, por sua natureza, imanentes a toda a amplitude de seu domínio de
validade [Geltungsgebiet]. Ou então, reversamente, o mundo das coisas para o qual os
princípios são válidos deve ser parcialmente imanente à esfera dos princípios – talvez
emergir deles ou ser suportado por eles. Toda outra concepção dos princípios é uma
distorção da ideia de uma categoria. O Platão tardio tinha a segunda das duas
possibilidades em mente quando ele levou a sério a ideia de que toda estrutura concreta
primeiramente vem a ser no entrelaçamento das Ideias. Da mesma forma, de acordo com
a concepção leibniziana de scientia generalis, a dedução real-ontológica de todas as coisas
está enraizada em um tipo de estratificação e contínuas dobras dos simplices.
28 Podemos também inverter a perspectiva histórica e, olhando para trás, ver as grandes investigações
dialéticas no Parmênides de Platão como um tipo de “dedução transcendental” das Ideias, sem nenhum
subjetivismo, claro. É precisamente a ponte entre o chorismos das Ideias que é precisamente feita por essas
investigações: a symploke leva à “contraparte da Ideia”, o concreto.
concreto é introduzida aqui. Ela se manifesta como uma completa insuficiência dos
princípios quando comparados com os problemas reais.
Esta não é sempre a única razão para a inadequação. No psicologismo, por exemplo,
temos o contrário, na medida em que as estruturas cognitivas ou do pensamento devem
ser explicadas a partir de elementos mentais, embora sua estrutura fundamental seja
objetiva-objectual29. A situação é, de novo, diferente com o logicismo, o qual
indiscriminadamente atribui a todos os fenômenos formas da esfera lógico-ideal. De forma
mais geral, sistemas como o panteísmo também estão aqui, impondo princípios
teleológicos à natureza. Também idealismos de todos os tipos, ao atribuírem categorias
subjetivas a objetos; bem como o personalismo, o qual tenta entender todas as regiões de
fenômenos por analogia com seres pessoais e inúmeros outros pontos de vista.
Todas as abordagens filosóficas que são conhecidas por seus “-ismos” cometem o
mesmo erro em princípio, não adiantando o quanto eles se diferenciem uns dos outros de
alguma forma. Um cerne da verdade está em todos eles – e os princípios com os quais eles
operam se aplicam legitimamente a uma pequena região da realidade, mas se tornam
ilegítimos quando aplicados ao todo. Hegel estava correto quando afirmou que todo
sistema filosófico tem seu lugar legítimo no todo da filosofia. Isso está correto apenas
dentro nos limites traçados pela estrutura de seus próprios princípios, todavia. Todo
sistema tem seu domínio central legítimo. É uma travessia ilícita de fronteiras quando ele
se estende para além de seu domínio central. O Erro da Heterogeneidade consiste nessa
aplicação ilícita além dos limites de um domínio adequado de uma categoria.
29NT: A expressão original é “objektiv-gegenständliche”. Embora seja inusual, há razões kantianas para este
uso. No decorrer de sua obra, Kant fala de pelo menos três tipos de objetos: a coisa como objeto a ser
conhecido (Sache); aquilo que aparece da coisa e é conformado com as categorias da experiência (Gegenstand
ou “objeto da experiência”); e aquilo sobre o que, vindo da experiência, podemos racionalmente refletir,
especular, fazer analogias, procurar postulados etc. (Objekt, ou “objeto da razão”). Vemos que Hartmann
mantém a lição kantiana ao pensar a cognição como algo que, embora se dê a partir da coisa (Sache) que
aparece (fenômeno), a estrutura cognitiva é uma de condições gerais da experiência com os objetos
(Gegenstand) que está direcionada a uma objetividade racional (Objekt) possível de ser manejada pela
ciência, pela especulação e pelo quotidiano. Assim como o velho Edmund Husserl, Hartmann se posiciona
decididamente contra o psicologismo por motivos semelhantemente kantianos, embora cada um acrescente
suas considerações próprias.
30O
requisito positivo para a Teoria das Categorias que resulta de todo o sobredito é
o seguinte: cada domínio dos fenômenos deve ter o seu próprio conjunto de categorias que
pertence apenas a ele. Na medida em que eles se estendem para um domínio de fenômeno
diferentemente construído, estruturalmente “superior”, por assim dizer, eles podem
apenas performar um papel subordinado e nunca dizer respeito ao que é distintivo sobre
esses fenômenos. Não se segue deste postulado que certos princípios não poderiam
também ter significância compreensiva como tal. Para descobrir como, em que medida e
para o quê eles são válidos é o trabalho de uma investigação particular, uma Análise
Categorial orientada para a particularidade do fenômeno em si – e a última palavra sobre
o assunto nunca pode estar em nada se não nisto31.
30 NT: Para esclarecer este ponto, pode ser útil ao público dizermos que Hartmann apresenta duas esferas do
Ser, cada uma com estratificações diferenciadas internas e com leis categoriais próprias. A esfera do ser ideal
engloba a lógica, a matemática, as essências fenomenológicas e os valores. A esfera do ser real, por sua vez,
tem os estratos físico, orgânico, psíquico e espiritual/social. A crítica de Hartmann é que cada um destes
estratos ou níveis têm uma autonomia ontológica própria – o que significa não um isolamento, mas uma
muito peculiar e muito bem trabalhada forma de interrelação entre as esferas e os estratos. Sua crítica aos “-
ismos” significa, em termos gerais, tomar uma região ontológica ou um elemento desta e generaliza-la todas
as outras ontologias: fisicalismo, logicismo, espiritualismo, psicologismo, biologismo, matematismo, e assim
sucessivamente. A “heterogeneidade” se torna mais evidente, assim: tratar leis da gravitação pelo biologismo,
ou tratar dos atos transcendentes afetivos pelo fisicalismo (e etc.) são erros por aplicarem leis categoriais em
domínios heterogêneos, diferentes, de sua esfera jurisdicional categorial próprias, por assim dizer. Situação
similar seria como confundir direito penal com direito das famílias, ou confundir a jurisdição de um país com
a de outro, trocar agravo de instrumento por agravo regimental, interpretar o princípio da legalidade no
direito civil como se fosse o mesmo no direito administrativo.
31 NT: Este é o trabalho da Análise Categorial de domínios específicos, tal como levado a cabo no quarto
volume da Ontologia em relação à ontologia regional do estrato físico e do estrato do orgânico. Além desse,
em O Problema do Ser Espiritual, Hartmann analisa as categorias do espírito pessoal (personalidade), do
espírito objetivo (coisas como história, cultura, linguagem e afins) e do espírito objetivado (objetos técnicos
e objetos da arte). Cada um com suas leis categoriais próprias e bem-definidas em sua especificidade que
existem ao lado de leis categoriais fundamentais, modais e leis metacategoriais (relação entre conjuntos de
categorias diferentes).
mesma para fora de si? Não deveria ela conter determinações, isto é, princípios sui generis?
Para Aristóteles, essas determinações eram “acidentais” (symbebekota). No entanto, tal
conclusão apenas adia a lida com o problema.
Para uma Teoria das Categorias que não deseje errar em seu alvo, há a demanda de
claridade incondicional sobre ambos os preconceitos aristotélicos.
Em segundo lugar, devemos conseguir chegar na mais difícil das conclusões: não há
razão alguma para se limitar a essência das categorias à forma ou à estruturas relacionadas,
tais como leis e relações. Categorias que não contenham nada de substrato (nada que não
possa ser reduzido a uma forma, lei ou relação32) nunca estarão em uma posição de
embasar as estruturas, que deveriam ser os princípios que supostamente estão por todas
as formas concretas, visto que tais estruturas têm substrato. Apenas podemos escapar do
cansativo dualismo da “forma e matéria”, de uma vez por todas, se incorporarmos o fator
material nos princípios. Não há absolutamente nenhum outro jeito. Todavia, incorporar o
fator material neles não é nada menos que paradoxal. Na verdade, isso pode ser
fenomenologicamente justificado com facilidade, se se baseia na Análise Categorial em si.
Há toda uma série de categorias – espaço, tempo, substância e causalidade sendo apenas
as mais representativas, mas de forma alguma as únicas – nas quais momentos de substrato
[Substratmomente] são claramente demonstráveis.
32 NT: Este argumento, um pouco inusual para os acostumados com o discurso filosófico da modernidade,
pode ser melhor explicado pela apropriação que o filósofo contemporâneo Graham Harman, da ontologia
orientada a objetos, faz do princípio das irreduções de Bruno Latour. Dizer que um objeto é uma quadratura
do que é real e do que é sensual, do que é objectual e do que é qualitativo, implica dizer, entre outras coisas,
que o objeto real não é redutível às suas qualidades sensuais (aparências, por exemplo) ou às suas qualidades
reais (que Hartmann nomeia como formas, leis e relações). Ou seja, os conceitos de objeto real de Harman e
o de substrato de Hartmann asseguram a irredutibilidade do objeto tanto em relação às suas partes
constitutivas, como também aos seus efeitos e leis. O objeto/substrato é sempre excessivo, é sempre
irredutível à sua composição e aos seus efeitos. Cf. Harman, 2018.
Provar isso é, claro, tarefa para outra investigação que pode acontecer apenas
mediante uma análise das categorias individuais elas mesmas.33 Para nosso propósito de
agora, será suficiente os insights de que a restrição a elementos formais não está na
essência das categorias de forma alguma; e que tal restrição tem sido introduzida
arbitrariamente na Teoria das Categorias por motivos puramente especulativos. É
imediatamente óbvio que, assim que este preconceito é abandonado, uma abundância de
aporias artificiais se desmancham – aporias estas que injustamente bloqueavam o caminho
para uma teoria dos princípios. Os mal-entendidos mais incuráveis têm sempre sido
nutridos na aparente oposição entre matéria e a essência dos princípios.
33Mais sobre isso pode ser encontrado em Logos, V, 1914–1915, ‘Über die Erkennbarkeit des Apriorischen,’
pp. 319ff., e nesse volume p. 211, além de em Grundzüge einer Metaphysik der Erkenntnis, Berlin 1921, pp.
208ff.
para ela através da relação entre sujeito e objeto. A relação entre princípio e concreto é
erroneamente pensada como equivalente desta relação sujeito e objeto. Tal relação
transcendental faz uma ponte entre os termos apenas por meio da “Dedução” – e esse é o
significado da prova da “aplicabilidade” dos conceitos puros do entendimento a “objetos
de experiência possível”. 34
Essa aporia é gnoseologicamente válida, pois o sujeito faz juízos sintéticos a priori
sob suas próprias categorias subjetivas; e é questionável sobre estas últimas se elas
também têm validade para o objeto. Ontologicamente, todavia, a aporia é falsa; i.e., nós não
podemos relacioná-la ao problema das categorias de forma alguma, visto que ela não surge
separada do problema do conhecimento a priori. Sob uma leitura ontológica, ele é uma
aporia artificial, gerada apenas pela perspectiva idealista, persistindo ou caindo com ela. É
um preconceito teórico que o objeto em si (e não meramente a cognição do objeto) também
tenha seus princípios no sujeito. Na verdade, o objeto evidentemente tem princípios
próprios que antecedem qualquer cognição e não precisa recebê-los primeiramente
advindos de outro lugar. A aporia gnoseológica válida no problema da Dedução torna-se
significativa, pela primeira vez, desta maneira. Apenas com base nisso que importa se os
princípios epistemológicos (de acordo com os quais os juízos sobre o objeto são feitos a
priori) também pertencem às determinações ontológicas do objeto existindo em si mesmo,
as quais estão abaixo de outros princípios, as categorias ontológicas.
34NT: Para esclarecer este ponto, o tradutor para o inglês, Keith Peterson, cita o trecho da Crítica da Razão
Pura no qual este “princípio supremo” aparece. Citamos da edição portuguesa: “O princípio supremo de todos
os juízos sintéticos é, pois, este: todo o objeto está submetido às condições necessárias da unidade sintética
do diverso da intuição numa experiência possível” (Kant, 2018, B197).
Praticamente não precisamos mencionar que o Erro Kantiano retorna com força
máxima no neokantismo. Não precisamos nos preocupar com todos os outros crescimentos
subsequentes do subjetivismo nos tempos recentes, especialmente com os numerosos
tipos de psicologismos. Julgando por suas atitudes e métodos, eles definitivamente não
podem ser contados como estando entre aqueles que lidam com o problema das categorias.
Mesmo onde eles, à sua maneira, falam de categorias, eles não estão familiarizados com o
problema. A deformação “pragmática” do problema também é de pouca preocupação para
nós. Aqueles que explicam as categorias como ficções (por exemplo Vaihinger36)
aparentemente não têm nem noção de que o que está em questão aqui é uma existência de
princípios independente que zomba de quaisquer “como-se” humanos.
Agora, o que a ideia de philosophia prima requer à luz desse problema? Isso é fácil
de se dizer. Ela requer o reestabelecimento da relação natural entre os pares contrastantes
“sujeito-objeto” e “princípio-concreto” em sua dimensionalidade cruzada ou
ortogonalidade [Senkrechtstellung]. Consciência e objeto devem, cada um, terem suas
próprias categorias, assim como eles são dois tipos de concretos completamente
heterogêneos. Como, então, os dois sistemas de princípios se relacionam um com o outro é
uma questão adiante para a pesquisa das categorias em si mesma, sendo impossível de se
decidir antes de tal pesquisa baseando-se apenas em perspectivas sistemático-
35 NT: Aqui, Hartmann faz referência ao νοῦς (nous), um conceito comum na filosofia grega antiga que, ao
menos desde Anaxágoras, significava algo como uma mente cósmica que ordenava aquilo que é. Embora sua
leitura fosse fisicalista/materialista, ela influenciou Sócrates e Platão a pensarem o nous como algo além do
que meramente dá “causa” às coisas, mas um desenho complexo dos deuses que aproxima as cosias do Bem.
Obviamente, o conceito é de difícil exposição e facilmente será apropriado pelas teologias do Oriente Médio,
passando a significar algo como o tal “intelecto divino” do deus judaico-cristão ou islâmico que os helenistas
tardios e escolásticos vão defender. Cf. também a nota 8.
36 NT: Hans Vaihinger (1852-1933) era um dos famosos neokantianos da época de Hartmann que é
especialmente conhecido pelo seu ficcionalismo, doutrina que aparece na sua obra “Filosofia do Como Se”,
reduzindo todo o conhecimento humano a uma coletânea de metáforas, ficções pragmaticamente úteis. Seu
antirrealismo chegava ao ponto de dizer que átomos e elétrons não existem, mas os cientistas dizem que sim,
“como se”, de fato, existissem, para fins puramente pragmáticos.
especulativas. É, de fato, fácil de se prever que eles devem pelo menos parcialmente
coincidir um com o outro, mas permanece aprioristicamente autoevidente que, mesmo em
sua coincidência relacional, uma tal categoria não pode simplesmente ser a mesma ao
cumprir um papel como categoria cognitiva e como categoria ontológica.
Toda a região do concreto deve ter seus próprios princípios; para a consciência,
princípios da consciência; para o conhecimento, princípios da cognição; para o ser
enquanto ser, seus próprios princípios ontológicos; e, claro, para o ser real, princípios do
real; para o ser ideal, princípios do ideal. O Erro da Subjetividade pode ser visto, desta
perspectiva, como um caso especial de Erro de Heterogeneidade, visto que ele também
consiste no empréstimo de certas categorias regionais e sua aplicação ao todo – neste caso,
usar categorias subjetivas para o objeto real. A diferença entre esta usurpação e outras
similares está apenas no maior grau de consequências para o problema das categorias do
ser, mas também na altura especulativa e no poder imanente dos sistemas que foram
baseados nela.
37NT: Heinrich Rickert (1863-1936), ao lado de seu orientador, Wilhelm Windelband, fundaram a chamada
Escola de Baden do neokantismo. Esta, diferentemente da de Marburgo, focava na Crítica da Razão Prática e
na discussão dos valores, da ética e do direito. Entre seus alunos, destacam-se os sociólogos George Simmel
e Max Weber – além de Martin Heidegger, que começa sua carreira como professor assistente de Rickert.
É bem conhecido como tal teleologia está conectada com a ideia de Deus, com a
crença na Providência, e mesmo com o antropomorfismo mitológico, e como os desejos
mais fortes e eternos da alma humana são mascarados nela como seus motivos mais
intrínsecos. Em certo sentido, todas as teleologias da natureza, do mundo e da história são,
formalmente falando, antropomorfismos. O que elas fazem é atribuir ao processo-mundo,
seja em parte ou no todo, precisamente a mesma ação-por-propósitos que conhecemos
como um fenômeno dado exclusivamente na atividade do ser humano.
38 NT: O termo subreptio vem do Direito Romano. Era caracterizado como um tipo de fraude em que uma
pessoa consegue algum cargo, benefício, honraria ou vantagem mediante meios fraudulentos, tal como
mentir no currículo para ganhar uma vaga; ou, no direito canônico, conseguir uma graça eclesiástica omitindo
pecados ou inventando milagres falsos. A tradição leibniz-wolffiana na qual Kant se formou, amplamente
influenciada pelo Direito Romano, apropriou-se filosoficamente do termo. O tradutor para o inglês, Keith
Peterson, observa que Kant emprega o termo para significar a confusão entre o que é dado empiricamente à
sensibilidade com alguma validade da representação no entendimento.
Uma ferida cancerígena no corpo da filosofia como um todo está escondida dentro
do Erro do Normativismo e de toda forma de teleologia ontológica intimamente
relacionada – um dos pecados originais da Velha Metafísica que nem mesmo a crítica
kantiana pôde arrancar pela raiz porque, apesar da Crítica do Juízo, ela não conseguia
realmente enxergar para além dele. Uma ontologia de fundamento crítico deve, acima de
tudo, proceder criticamente também sobre esse ponto. Remediar esse preconceito deve
estar tão próximo de seu coração quanto retificar a “prova ontológica da existência de
Deus”. Na verdade, esta pode servir como uma analogia-modelo, tanto em um sentido
positivo quanto negativo: assim como ninguém iria descartar o conceito de Deus apenas
porque o argumento “ontológico” não é bom, ninguém irá deixar a possibilidade de uma
teleologia-mundo ir embora só porque a analogia na qual ela é baseada é insuficiente para
a sua prova. Provas de premissas verdadeiras podem ser falsas. Como pressuposições
filosóficas especulativas, todavia, ambas as teses igualmente falham. Tanto o telos do
mundo como a existência de Deus não podem nem ser provados nem refutados
filosoficamente – tanto quanto também não podem ser incluídos sob os fundamentos
sistemáticos.
É em geral aceita a crença de que princípios são, por sua própria natureza,
“racionais”. Ambos os significados de “racional” (o lógico e o gnoseológico) pode alternar
quase sem afetar a tese. Se substituirmos “lógico” por “racional”, então a tese é quase a da
conceitualidade, o Erro Aristotélico. Quando tornamos “racional” um sinônimo de
“inteligível”, a situação é diferente. Trataremos aqui deste caso.
pensamento humano pode compreender do mundo das Ideias; e como ele requer um certo
método “hipotético”39, de forma a começar o trabalho de fazer contato com esse reino
inaproximável. A Ideia do Bem é retida de toda visão genuína. Plotino até cunhou para esta
a expressão “além do inteligível”, expressando a ininteligibilidade do princípio em um
conceito preciso.
Não há nem uma sombra de paradoxo de que o que é válido para os princípios da
cognição também se aplicam aos princípios ontológicos – e ainda em maior grau. Apenas o
preconceito da conceitualidade, assim como o da subjetividade, poderiam nos enganar
sobre isso. Em contraste, assim que se compreende que o objeto tem suas próprias
categorias para si mesmo, independentemente das categorias da consciência; e que toda
conceitualidade é apenas retrospectivamente expressada em conceitos pelo sujeito, então
torna-se evidente que não há razão alguma para se tratar os princípios do objeto como
sendo mais conhecíveis que o objeto concreto em si mesmo. Há, no entanto, um número de
razões irrefutáveis para o fato de que, na realidade, eles são ainda menos reconhecíveis –
o desenvolvimento disso, no entanto, mais uma vez, pertence à Análise Categorial ela
mesma, não podendo ser dado antes dela.41
41 Posso indicar ao menos as diretrizes gerais dos principais argumentos aqui: 1) Categorias que são, de
alguma maneira, concebíveis, são complexas, algumas de complexidade extraordinária, mas os elementos
categoriais últimos não são compreendidos; 2) Todas as categorias que são, de qualquer forma que seja,
dimensionais contêm momentos de infinitude [Unendlichkeitsmomente]; 3) Ao lado de elementos estruturais
(formas, leis, relações), a maioria das categorias também contém elementos de substratos que não podem,
de forma alguma, serem resolvidos; 4) Mesmo as estruturas (formas, leis, relações) como tais não são
completamente racionais; e 5) O que permanece ininteligível em todas as categorias é o “por quê”, a razão
para o seu Sosein [Ser-Assim]. Os maiores pontos desses argumentos podem ser achados em Logos V, ‘Über
die Erkennbarkeit des Apriorischen,’ pp. 313–325; neste volume pp. 206–217; assim como no Capítulo 30 do
“Fundamentos da Metafísica do Conhecimento”.
notae” e “cognitione prius.” Descartes acreditava em um intuitus purus que iria totalizar em
uma consciência imediata de princípios – e, aqui, está uma das raízes históricas do Erro
Kantiano. Quando se considera a matéria em si, pelo menos de um modo geral, isso é
precisamente o contrário. Princípios cognitivos são, como discutimos, o prius do
conhecimento, mas por essa razão eles não são conhecidos – portanto, também não
conhecidos a priori. Eles são o prius ontológico da cognição de objetos, mas não são eles
mesmos compreendidos como tais no processo de cognição. Embora sejam realmente
cognoscíveis, tal cognoscibilidade não é do tipo a priori, um resultado de intuição direta,
mas é precisamente de tipo indireto, condicionada no maior grau pelo posterius. Se se
perguntar como tais princípios são de todo conhecidos, então a única resposta possível é:
pelo concreto. O concreto é sempre – pelo menos no domínio da cognição do real – o dado
a posteriori. Princípios são elementos estruturais do concreto e podem apenas serem
apreendidos como tal e apenas no concreto – ou, mais precisamente, podem apenas ser
determinados a partir do concreto de uma forma analítica e reflexiva, com um impacto do
hipotético sempre dependendo do determinado. Desde a Antiguidade este método foi
chamado de o método analítico ou hipotético e, cientes de sua definitiva tendência
direcionada “para cima” (“anabasis”), este método tem sido contrastado com o método
apodítico dedutivo.
Isso não significa que nos resta apenas uma cognição empírica de princípios, pois
quando o caminho analítico nos leva às categorias, elas têm de ser, por sua vez, apreendidas
ou tornadas autoevidentes em si mesmas. Todavia, esta autoevidência e esta visão são
precisamente mediadas – e, de fato, mediada de maneira característica pelo posterius;
portanto, não é um conhecimento a posteriori genuíno, mas talvez possa-se dizer ex
posteriori. O prius da cognição não é, em si, todavia, nem um pouco afetado pela natureza
condicionada da cognição a categorias ex posteriori. Certamente não é essa cognição em si,
nem o seu princípio, mas é, na verdade, seu objeto, a categoria em si mesma.
Os seguintes são resultados de pesquisa categórica do que foi dito: (1) Categorias
existem inteiramente independentemente do grau de sua cognoscibilidade. (2) Elas são, na
verdade, apenas parcialmente cognoscíveis; a Análise Categorial vai encontrar, como pode-
se esperar, limites inamovíveis à racionalidade em todas as direções de seu avanço. (3) A
Teoria das Categorias tem de reconhecer tais limites e, na medida do possível, ajudar a
determina-los – mas não deve os entender como limites dos problemas, muito menos como
limites fundados nas coisas em si mesmas, ou seja, no ser categorial. Os limites são, de fato,
insuperáveis, mas são limites gnoseológicos, não ontológicos. (4) O sistema de categorias
que a Teoria pode articular deve necessariamente permanecer, na melhor das hipóteses,
apenas numa porção do todo – o sistema articulado pode apenas aproximadamente
coincidir com o inerentemente existente sistema de princípios que ele se esforça para
Não obstante, é precisamente essa a sua fraqueza. Eles contradizem o fenômeno tal
como ele é dado. Basta direcionarmos nossa atenção ao fenômeno da cognição para ver
isso. A cognição pode existir apenas onde há uma contraposição entre sujeito e objeto, ela
consiste em um certo tipo de relação entre eles. Se os dois coincidissem, então a relação
também colapsaria no nada. Uma relação apenas pode existir entre os não-idênticos.
Identidade é o cancelamento [Aufhebung] da relação. Toda estrita Filosofia da Identidade
cancela o problema do conhecimento. Não é de se admirar que o sistema de Schelling de
1801 não tinha nada para oferecer à epistemologia; e que Hegel quase converteu o
problema em seu oposto. Esta, que é uma das maiores teses metafísicas, também não
vingou na Antiguidade, como é evidente. Nem Platão, nem Plotino, que estavam mais
próximos a ela, ousaram implementá-la. É fácil ver que a mesma aporia do problema do
conhecimento deve também ser repetida para o problema da ação, para o problema da
vontade, além de outros. Aqui, também, a colocação-em-contraposição [Gegenüberstellung]
é uma condição para a relação.
A versão mais bem conhecida dessa ideia é a interpretação que Kant lhe deu:
experiência e objeto de experiência não são o mesmo, mas eles têm as mesmas “condições
de possibilidade”; lembrando da conhecida fórmula na conclusão da seção sobre o
princípio básico supremo de todos os juízos sintéticos44. A base gnoseológica para a
identidade de princípios é o fato de uma cognição a priori. Evidentemente, um sujeito
apenas pode conhecer sobre as determinações de um objeto heterogêneo a ele se os
princípios internos, sobre os quais esse conhecimento se baseia, correspondem aos
princípios do objeto. No fenômeno do conhecimento a priori, portanto, há um ponto de
partida extremamente valioso para a orientação da investigação das categorias: certa
identidade deve existir entre sujeito e objeto; não podemos estar lidando com dois
sistemas de categorias completamente heterogêneos.
Mesmo assim, a maior ênfase metafísica sobre a tese da identidade não está
presente em sistemas como o de Kant, nos quais à cognição a posteriori é atribuída uma
ampla e independente margem de manobra, mas sim em sistemas nos quais o apriorismo
é tornado absoluto, i.e., nos quais toda a cognição – e também o que é aparentemente
cognição a posteriori – é referenciada de volta a ele. Nós vemos o arquétipo de tal sistema
42 NT: Relembramos, como na nota de rodapé 29, que a palavra Gegenstand significa o “objeto da experiência”
na tradição kantiana. Hartmann traça uma relação quase literal entre o “gegen” de Gegenstand e o “gegen” de
Gegenüberstellung (colocar em contraposição). Podemos dizer tal como um trocadilho: “não há objeto-da-
experiência sem colocação-em-contraposição”.
43 NT:Podemos ilustrar esta diferença entre os dois Erros comparando-os com a distinção entre o panteísmo
e o panenteísmo. Enquanto o primeiro afirma que “tudo é Deus/Divino”, o segundo diz que, “em tudo, há algo
que participa/é misturado no Divino”, que estaria “misturado”, mas não seria coincidente. Teologicamente
falando, faz bastante diferença dizer que o humano, o sol e uma pedra “são Deus” ou que “têm algo misturado
no Divino”.
44 NT: Cf. a nota de rodapé 34 acima.
Até quando não se dá atenção a essa aporia metafísica, uma aporia gnoseológica
completamente diferente e inevitável acaba por surgir. Se as categorias cognitivas e
ontológicas são idênticas e sem sobras, então não deveria tudo o que existe ser conhecível,
inclusive conhecível a priori? Sem dúvidas essa também é a opinião de Leibniz. Mas ela
contradiz o fenômeno da cognição, no qual os limites da cognoscibilidade – e,
definitivamente, da cognoscibilidade a priori – desempenham um papel muito especial. Se
analisarmos o fenômeno da cognição de uma forma não-partidária, não pode haver
45 NT: Referência ao aforismo 7 da Monadologia de Leibniz: “Tampouco há meio de explicar como uma
Mônada poderia ser alterada ou transformada em seu interior por alguma outra criatura, pois nela nada se
poderia introduzir, nem se poderia conceber nela nenhum movimento interno que pudesse ser excitado,
dirigido, aumentado ou diminuído em seu interior, como é possível nos compostos, em que há mudanças
entre as partes. As Mônadas não têm janelas pelas quais algo possa entrar ou sair. Os acidentes não poderiam
separar-se nem se pôr a vaguear fora das substâncias, como faziam outrora as espécies sensíveis dos
escolásticos. Assim, nem substância nem acidente podem, de fora, entrar em uma Mônada” (Leibniz, 2004, p.
131-2, grifo nosso).
1. Primeiro, uma coisa que este assunto torna evidente é que as categorias ontológicas
jamais podem ser exauridas pelo problema do conhecimento. Portanto, é um erro
fundamental da filosofia contemporânea procurar superar o problema das
categorias com uma atitude gnoseológica. Ao invés disso, nós podemos
compreendê-lo apenas por um ponto de vista ontológico. Kant também não levou
em conta esse fato. Seu interesse no problema das categorias era apenas
gnoseológico. Não obstante, em Kant, diferentemente de Leibniz, percebemos uma
sensibilidade aos limites da identidade categorial: a objectalidade em si não é
exaurida como “objetos de possível existência” de acordo com Kant. Há para além
dele o “objeto transcendental”, o qual não é cognoscível como tal porque a
totalidade de suas condições não estão inclusas nas “condições da possibilidade de
experiência”. É por meio da doutrina da “coisa em si” como o númeno que Kant
superou sua própria caracterização do problema, preparando o ponto de partida
para uma ontologia crítica no problema do conhecimento em si. Neste ponto, sua
crítica se tornou crítica de si mesma. A doutrina da coisa-em-si é a maior conquista
da Crítica;
2. Há algo além que a Teoria das Categorias pode aprender deste assunto. Em uma
identidade parcial de categorias ontológicas e cognitivas, não é, de forma alguma,
necessário que categorias individuais de ordem superior (de complexidade), as
quais em si mesmas englobam todo um sistema de fatores categoriais, posicionem-
se completamente “deste-lado” ou completamente além do limite da identidade. É,
na verdade, bem possível que este limite atravesse pelo meio e divida uma categoria
em duas partes, por assim dizer, das quais apenas uma tem o caráter de um
princípio cognitivo, enquanto a outra é meramente um princípio ontológico. A tese
da identidade parcial não é cancelada por conta disso, mas envolve primariamente
apenas os elementos categoriais mais simples. Para a cognição a priori do objeto
(cognição esta que é, claro, apenas parcialmente legítima), obviamente é suficiente
que haja alguns elementos categoriais no complexo das categorias superiores que
sejam idênticos para sujeito e para objeto.
3. Nessa conexão, uma tarefa de maior importância surge para a investigação sobre as
categorias. As categorias individuais – ao menos as superiores – não são, em seus
papéis como categorias cognitivas, as mesmas como elas são categorias ontológicas.
Elas detêm os mesmos nomes em ambos os domínios (tal como espaço, tempo,
substância, causalidade) e com razão, pois há de haver algum elemento idêntico
subjacente nelas, mas seus conteúdos categoriais são, de diversas maneiras,
diferentes nos dois casos. Além disso, o limite da cognoscibilidade a priori do objeto
reside nesta diferença. A Análise Categorial, portanto, tem de estudar cada categoria
individual separadamente, como uma categoria ontológica e como uma categoria
gnoseológica, buscando determinar as suas variações específicas.
Isso pode também ser expressado da seguinte maneira. Toda categoria que entra
no reino da identidade está, ao mesmo tempo, designada a ambas as esferas (do
onticamente real e do gnoseologicamente atual). No entanto, ela só ultrapassa esta dupla
classificação apenas com parte de sua essência – em outra parte, esta essência é dividida
ou dilacerada. Obviamente, a divisão para cada categoria é também substancialmente
diferente, de tal forma que uma multiplicidade ilimitada de gradações entre os extremos
de total identidade e de completa não-identidade é possível. Aqui está um novo, até agora
inexplorado campo de pesquisa, sem dúvidas rico em consequências, com cujo
descobrimento e tratamento frutífero a tarefa da ontologia crítica pode, enfim, começar
genuinamente. A visão compreensiva que é necessária aqui não pode ser alcançada por
uma dedução de pontos de vista universais, podendo apenas ser conquistada por um
estudo fenomenológico-analítico detalhado das categorias individuais. É autoevidente que,
daqui em diante, o problema do conhecimento deve passar por um renascimento, o que
deve permitir uma penetração mais profunda nos detalhes substantivos que jamais foi
permitida por qualquer tipo de procedimento que ronda o universal.
4. As consequências, mais ainda, nos levam a outra direção. A relação entre esferas dos
dois tipos de categorias (que prova ser uma de identidade parcial) abre caminho
para o tratamento de toda relação similar entre esferas. Em verdade, a ontologia
não tem a ver com a oposição entre sujeito e objeto. O que existe traz outro tipo de
clivagem (que é indiferente à oposição sujeito e objeto), a saber, entre Ser Real e Ser
Ideal. Neste, entende-se que o ideal inclui o ser de estruturas lógicas, de objetos
matemáticos e de essências de todos os tipos48. Portanto, dentro do Ser, estão
contrapostas uma esfera real e uma ideal, ambas existindo completamente
independentemente com suas respectivas entidades, ambas as esferas sendo
objetos de cognição possíveis (ao menos dentro dos limites de sua racionalidade).
Essas duas esferas também estão sujeitas às categorias e, da mesma forma, sujeitas
a categorias parcialmente idênticas. As razões para isso podem ser analisadas na
relação entre a legalidade matemática e a legalidade natural, assim como em outros
lugares. Assim sendo, há também uma relação de identidade entre duas séries de
categorias aqui, de fato, uma diferente daquela entre categorias de objeto e
categorias cognitivas, sendo isso, também, uma identidade parcial.
É fácil prever que a fronteira dessa identidade, já que ela suporta as mesmas
categorias ontológicas que as últimas, mas também abrange o mesmo complexo de
categorias, também não pode parar na integridade desses complexos categoriais – a
fronteira deve passar direto por deles e precisa cortar seus caminhos. Por sua vez, a tarefa
da Teoria das Categorias é expandida e complexificada por uma dimensão de diversidade
de conteúdo. A diferença entre as esferas significa nada além de que uma e mesma
categoria não é, como categoria da esfera ideal, absolutamente a mesma enquanto
categoria do real. A Análise Categorial tem que investigar em quais elementos categoriais
o desvio [Abweichung] existe para cada categoria individual. Esse procedimento é ainda
mais significativo porque ele é o único jeito que nós temos para determinar a diferença e a
relação ontologicamente positiva entre as esferas ideal e real. Já que ele lida com a relação
entre dois modos de ser [Seinsweisen], a chave para essa investigação está no domínio das
categorias modais 49, cujo sentido e legalidade intermodal são, em verdade,
extraordinariamente diferentes em cada uma das esferas. 50
48 NT: Em obras posteriores, Hartmann vai incluir na Esfera Ideal do Ser não apenas seres lógicos,
matemáticos e essências (fenomenológicas), mas também os valores, como observamos na nota 27. Os três
volumes de sua Ética, que vão aparecer três anos mais tarde ao presente artigo, ou seja, 1926, busca justificar
e ampliar esta inusual escolha. Para fins de um esclarecimento perfunctório, a principal diferença entre o
Real e o Ideal é que, neste último, não há a categoria do tempo ou da duração: os seres ideais não existem no
tempo (o que é diferente de dizer que são “eternos”, pois isso seria um tipo específico de tempo). Justamente
por isso, o Ser Ideal é, de forma grosseira, “incompleto”, precisando ser atualizado ou concrescido pelos entes
reais para que o ideal tenha alguma relevância ontológica real. Aqui, o público pode se sentir mais confortável
com o nome “realismo crítico” que Hartmann escolhe para sua filosofia, visto que, embora comecemos “deste-
lado” do problema (ou seja, de forma apartidária), eventualmente, Hartmann opta pelo foco no real – foco
este que não abole, nem cancela o ideal, mas vai articula-lo, emprega-lo, se inspirar nele etc.
Isso é, claro, uma tarefa apta a levar a Análise Categorial a crescer e a se tornar toda
uma área distinta de estudo. Eu imagino a natureza e a ideia da ontologia crítica – e aquela
de uma philosophia prima genuína e legítima – orientada para a multiplicidade dos
fenômenos, que consiste na persecução das perspectivas tornadas possíveis por essa
tarefa. Nem precisaria ser dito que tal perspectiva sinóptica das esferas, como uma teoria
dos domínios fundamentais dos fenômenos em termos de seus conteúdos, constitui um
capítulo que se estende por toda a investigação das categorias e que somente por meio dela
pode ser completamente encerrada (apesar de apenas “em Ideia”).
Aqueles filósofos que se importam com a pesquisa de princípios, quase sem exceção,
procedem da pressuposição de que o sistema de princípios tem que culminar em um único
princípio superior, do qual todos os outros dependem. Essa pressuposição é prontamente
49 NT: Embora na nota posterior Hartmann faça referência a um trabalho seu de 1915, dois trabalhos
principais acerca destas categorias modais serão ainda publicados. Em 1937, como preparação para o
segundo volume da série Ontologia, Hartmann publica um artigo denominado “O conceito megárico e o
aristotélico de possibilidade: uma contribuição para a história do problema ontológico da modalidade”, então
com menos de 20 páginas. Para elaborar todas as consequências, o segundo volume do Ontologia, intitulado
Possibilidade e Atualidade, traz quase quinhentas páginas acerca deste assunto.
50Eu tentei providenciar um primeiro contato com a investigação indicada aqui em Kantstudien XX, 1915,
‘Logische und ontologische Wirklichkeit’. Neste volume, página 220.
51NT: Em 1923, num caráter ainda preliminar e experimental evidente no presente artigo, Hartmann parece
afirmar que há quatro esferas. Como mencionamos nas notas 30 e 31, à medida em que ele vai elaborando os
quatro volumes da Ontologia, o psíquico deixa de ser uma “esfera” e se torna um estrato da realidade (ou seja,
dentro da Esfera do Ser Real) – mais precisamente, localizado entre o orgânico e o espiritual (“sociocultural”).
entendida. Algum raciocínio tal como este está geralmente implícito: existem princípios
mais gerais e mais específicos – e a relação entre eles apenas pode ser uma de subsunção
lógica. O resultado é que o sistema assume a forma de uma “pirâmide”, o que
inevitavelmente requer um “cume”, uma espécie de ponto unitário no qual convergem
todos os fios de dependência.
Não há razão alguma para contestar o monismo neste sentido, tomado por si só. Ele
é tão pouco contraditório quanto é a teleologia-mundo, ou o conceito cosmológico de Deus.
Ele é também tão pouco corroborado por fenômenos. Isso faz dele errado, pelo menos
como uma expectativa. Se uma Análise Categorial tivesse nos levado a ele, seria outra
história. Não obstante, sempre que o encontramos, ninguém está falando em uma tal
descoberta – por todos os lugares ele é simplesmente pressuposto, seja explicitamente ou
implicitamente. Nicolau de Cusa e Plotino, Aristóteles e Platão, simplesmente seguem um
requisito metodológico-sistemático pela unidade, eles hipostatizam53 um postulado vazio.
52NT: Hartmann faz referência à única arché (princípio/origem) que a filosofia socrático-platônica admite, o
an-hypothetos (“não-hipotético”). Esta arché não-hipotética, notoriamente na conclusão do Livro Sexto da
República, é identificada com a “Ideia do Bem” (ἡ τοῦ ἀγαθοῦ ἰδέα).
53NT: A teoria da hipóstase (ὑπόστασις) à qual Hartmann faz referência é a dos chamados “neoplatônicos”.
Antes deles, o termo era usado para significar uma existência que “suporta” a mudança ou outras
características. Plotino faz amplo uso do termo, mas é com seu discípulo Porfírio que o termo ganha uma
Plotino merece reconhecimento por sua honestidade, pois ele pelo menos formulou
claramente esse problema metodológico. Nós podemos chamar esse preconceito de Erro
Plotiniano em sua honra.
tecnicidade nas filosofias do helenismo tardio. Tal teoria defende que há, por detrás ou abaixo dos fenômenos
do dia a dia, uma realidade “mais real”, algo “mais verdadeiro”, sendo as aparências menos relevantes na
busca do tal “Uno”.
54NT: Relembramos, mais uma vez, conforme na nota 12, que o “irracional” em Hartmann tem o peculiar
sentido de transinteligível. Ou seja, como se sabe algo daquilo o qual não se pode saber nada, seguindo a
definição de irracional? Esta é a aporia que Hartmann identifica no Erro Plotiniano e outros que dele se
seguirem.
Platão foi o primeiro a revelar esse estado de coisas nos seus últimos trabalhos
(Parmênides, Sofista), chamando-o de o “entrelaçar” das Ideias55. Ele alcançou a primeira
superação crítica do monismo categorial nesses escritos, em contraste ao seu próprio
ensinamento anterior sobre a “Ideia do Bem” (República, Livro VI). Ele afirma bem
explicitamente que o princípio supremo no mundo das Ideias não é “Uno”, mas é, na
verdade, uma κοινωνία (koinonia), uma comunidade por todos os lados e uma confluência
de princípios – assim, o sistema como tal, a interconexão de elementos coordenados. Neste
caso, se alguém objetar que a interconexão em si é, precisamente, o princípio superior da
unidade desta comunidade, então não terá entendido bem o caso. Ao contrário, o princípio
da interconexão está bem no meio do número de elementos que se interconectam56.
Aqueles que mantêm distância do problema das categorias, como a maioria dos
autores de hoje, e que não reconhecem este caráter sistemático como algo sempre
imanente em todas as categorias, sempre irão levantar a velha e favorita objeção: é um
pluralismo de princípios superiores sequer concebível? Não deveria haver uma unidade
acima, que dá a liga, já que eles necessariamente constituem um sistema? A resposta é que
a unidade de interconexão deve, claro, existir, mas ela não precisa ser nem uma única
unidade pontual, nem mesmo ser um princípio de ordem superior. Pode ser simplesmente
a unidade sistemática implícita existente nos elementos entre eles mesmos e em nada mais.
Isso se torna o mais evidente por analogia com problemas mais concretos. Teorias mais
antigas do cosmos assumiram que existia um corpo central material do universo:
primeiramente a Terra, depois o Fogo Central (Pitagóricos), depois o Sol (Copérnico), a
estrela Sirius (Kant), até que, finalmente, investigações mais precisas mostraram que não
existe tal corpo central, e que o sistema cósmico existe sem tal coisa. A situação é similar
para teorias biológicas. O princípio unificador da vida era buscado no organismo – no
sangue, no coração, no fígado, no cérebro, na alma como princípio vital, para finalmente
perceberem que em todos estes começos falsos não há um princípio unitário, há apenas
um sistema de órgãos (que é um sistema de sistemas) que, ademais, é um sistema que
possui seus processos, funções, interconexões, dependências e assim sucessivamente. Na
biologia, assim como na cosmologia, unidade é precisamente o momento categorialmente
secundário57. A demanda por uma unidade primária, inteligível em um ponto central, é um
postulado puramente subjetivo, um atavismo racionalístico do pensamento humano.
56 NT: Para tentar esclarecer esta sutil diferença, podemos pensar que há um plano divino ou místico que
unifica a diversidade de espécies biológicas na Criação, na Providência ou no Juízo Final – ou pensar,
diversamente, de maneira ecológica, que é a própria diversidade que é criada, mantida, destruída, renovada
e batalhada por todas as espécies em alianças e disputas é que dá vida à interconexão ecológica entre todos
os viventes. Assim, o planejamento místico de uma entidade sobrenatural não é ontologicamente necessário
para compreender tal interconexão ecológica real.
57NT: Poucas referências são tão claramente ancestrais da teoria da complexidade e da teoria dos sistemas
como este trecho de Hartmann. Pensadores como Ludwig von Bertalanffy, Edgar Morin e Niklas Luhmann
trabalham com esta ideia de sistemas de subsistemas, diferenças sem uma metaidentidade ordenadora e
princípios afins.
Essa correção não tem escopo sistemático insignificante. Se ela servisse apenas para
categorias ontológicas então a sua significância poderia aparentar ser pequena – o que é,
em última análise, uma impressão ocasionada principalmente pela alegação da unidade
suprema do ser! Mas o escopo amplo da philosophia prima estende-se do teórico para o
prático e para o estético, da ontologia para a axiologia. Neles, um interesse bem mais
imediato se junta à questão da unidade. Por exemplo, na ética, uma pluralidade original de
valores maiores significaria uma clivagem da vontade moral. A Ideia do “Bem”, portanto,
sempre falou acerca do postulado da unidade no reino dos valores. Todavia, até hoje uma
definição unívoca e substantiva desta Ideia não foi atingida; eras diferentes sempre
entenderam o “Bem” diferentemente. Se, todavia, com um método rigorosamente analítico,
nós penetrarmos naquilo que ainda é pouco inteligível, então perceberemos que, por trás
deste suposto relativismo do “Bem”, se esconde algo completamente diferente, a saber,
uma estrutura altamente complexa e unificada, não menos unificada por não ser um único
ponto. O “Bem” é todo um sistema de valores componentes e, consequentemente, ele é
sempre percebido apenas de forma fragmentária. A estreiteza da consciência de valores
humana não admite nenhuma outra maneira.
Ao lado do Platão tardio, Hegel deveria ser considerado como o pensador que tomou
a rejeição de uma unidade puntiforme superior mais seriamente. Quem vê em seu conceito
de “Razão” ou na “Ideia” tal ponto unificado incompreende fundamentalmente o caráter da
dialética hegeliana. As unidades superiores que emergem na dialética são sempre sínteses
superiores, mais complexas, tipos de estruturas mais sistemáticos, nunca mais simples.
Todos os estágios percorridos são “suprassumidos” [“aufgehoben”] neles – e “a verdade” é
sempre apenas no “Todo”. Em Platão, assim como em Hegel, é o método dialético que
permite esse pensamento profundo a amadurecer e o retira, por assim dizer, do letárgico
e habitual pensamento de um monismo puramente formal e preguiçoso. A dialética é o
inimigo natural do Erro Plotiniano. Tanto Hegel quanto Platão foram muito mal
compreendidos precisamente neste ponto.
Por outro lado, no entanto, esta conquista crítica parece ter sido paga com outra
tendência tão dogmática quanto – tendência esta que, é claro, não pertence apenas ao
pensamento dialético, mas geralmente emerge mais claramente dele do que em outros
lugares precisamente porque, aqui, outros erros já foram superados. Há a tendência para
o equilíbrio, à sintonização, à harmonia compreensiva.
58 NT: Esta “situação desfavorável” vai continuar na obra de Hartmann por décadas ainda. Apenas
postumamente, em 1953, que sua obra Estética será publicada, com centenas de páginas consolidando todo
este tempo refletindo sobre a arte, sobre a beleza e o sublime, sobre tipos específicos de artes, como a poesia,
belas artes, arquitetura, música e, especialmente, o teatro. Particularmente interessante é sua “ontologia do
objeto estético” (Capítulo 41), assegurando a autonomia filosófica do objeto de arte.
empenho em superar tais oposições pela unificação tão antigo quanto elas. Heráclito
precedeu a todos com sua tese da “harmonia oculta” pela qual tudo se resolve; nela, todos
os opostos coexistem sem destruição ou cancelamento, eles equilibram a balança 5960. Tal
heraclitismo prevalece por toda a Antiguidade Tardia sem exceção, mesmo onde dualismos
mais sérios, como o entre o bem e o mal, estão amplamente escancarados. A teodiceia dos
estoicos também se agarrou firmemente à harmonia do logos. A teodiceia leibniziana não
é diferente: este o mundo é o mais perfeito, a justificação do mal está garantida porque a
harmonia, também neste sentido, é preestabelecida.
Levou muito tempo para que a ideia desconfortável de uma antinômica conseguisse
alcançar pelo menos um pouco de reconhecimento em face ao postulado bem mais simples
que é o da harmonia. A dialética antiga não estava disposta a tal demanda. As antinomias
de Platão no diálogo Parmênides ficaram isoladas e permaneceram ignoradas; Aristóteles
as varreu do mapa com o princípio de não-contradição; Plotino considerava o ἕν [hen, o
Uno] como razão última; os escolásticos acreditavam na bondade e na sabedoria do Ser
Superior; Nicolau de Cusa resolveu todos os problemas com o coincidentia oppositorum. A
Crítica da Razão Pura foi a primeira a enfrentar seriamente o problema das antinomias
novamente. De acordo com Kant, estamos lidando com “Antinomias da Razão Pura” em si.
A Razão está em conflito consigo mesma, já que tanto a tese como a antítese são necessárias
pela própria natureza da Razão. Este insight foi uma conquista histórica. As soluções que
Kant propôs, todavia, não são igualmente valiosas, pois elas são condicionadas por seu
ponto de vista, sendo soluções puramente idealistas.
59NT: O “hen synechés” é uma referência ao Fragmento VIII do que restou do poema de Parmênides, onde
ele afirma que o Ser não “foi” nem “será”, ele é “por inteiro” ou “de uma vez”, ou expressões similares pelas
quais podemos traduzir o termo ἕν συνεχής.
60 NT: Referência à ἁρμονία ἀφανής (harmonia afanés) no Fragmento B54 de Heráclito.
porque eles são antinômicos. Kant também rejeitou a tese e antítese das “antinomias
matemáticas”, decidindo a favor da tese das antinomias “dinâmicas”. Seria possível um
meio termo entre tais extremos igualmente desconfortáveis? Não poderia a antinomia
existir com boa razão, sem ser resolvida, mas também, desta maneira, sem cancelar o
assunto ao qual ela se anexa? Por exemplo, se o mundo é extensão ou divisão infinita? Que
direito temos nós de abandonar um assunto e sua compreensibilidade? Em outras
palavras: e se a antinomia fosse real e constituísse exatamente a natureza interna da coisa
– e todas as tentativas de a resolver não fossem apenas uma empreitada impossível, mas
também algo, desde o início, equivocado?
O idealismo, é claro, não pode nem cogitar essa possibilidade, nem a admitir. A
“razão” enquanto princípios se rebela contra ela: sua lei é o princípio da não-contradição,
o qual ela não consegue infringir. A ontologia, no entanto, não está atrelada a esse ponto de
vista. Já que antinomias são aporias puramente ontológicas, estamos justificados em
admitir a possibilidade de outra forma de legalidade para o que há (cujas estruturas de
legalidade são com o que estamos preocupados) para além da legalidade da razão. Ou seja,
estamos autorizados a cancelar o princípio da contradição [den Satz des Widerspruchs
aufzuheben]61.
quer que estejam, realmente detectando inúmeros casos. Isto já era verdadeiro para a
dialética dos antigos e, para a dialética Hegeliana, é ainda mais o caso. Mas ela não pôde
colher os reais benefícios desta vantagem. Sua própria natureza estava no seu caminho.
Assim são as coisas sempre que Hegel tem de lidar com antinomias genuínas e
irresolvíveis. Isso vale para um grande número de teses e antíteses desenvolvidas. O
método dele cega a lâmina da Antinomia. Para a Teoria das Categorias, este é o momento
informante sobre Hegel – informante em um sentido negativo, é claro, o Erro Hegeliano. Na
verdade, nenhum filósofo chegou tão perto de superar o Postulado da Harmonia quanto
Hegel. Ao mesmo tempo, nenhum se utilizou tanto deste Postulado de uma maneira tão
sistemática ou sem limites quanto ele.
É importante ser claro neste ponto. Não basta dizer que a alegação tradicional de
que “todas as antinomias devem ter soluções racionais” é falsa e descartá-la, alegando, ao
invés disso, que podem haver antinomias irresolvíveis. Não: qualquer antinomia capaz de
ser solucionada dificilmente pode ser chamada de uma antinomia genuína – não havia uma
contradição bem fundamentada nela. Uma contradição que pode ser superada é uma que
nem mesmo existe. Ela devia ser uma contradição imaginária desde o início, mesmo se isso
fosse talvez uma imaginação subjetivamente necessária. Uma antinomia genuína nunca foi
solucionada. É a eterna grandiosidade de Zenão, que não pôde aceitar qualquer concessão
quanto a esse ponto decisivo. A maioria de suas antinomias ainda estão irresolvidas até
hoje – e, certamente, não por acaso! O mesmo se aplica para as antinomias kantianas,
apesar das “soluções” propostas por Kant – talvez com a exceção da antinomia da
liberdade, mas então ela não seria nem mesmo uma antinomia genuína.
Todas antinomias genuínas são necessariamente irresolvíveis. Isso não faz delas, de
forma alguma, insignificantes. Pelo contrário, apenas desta maneira que elas são
relevantes. Uma antinomia solucionável é uma “madeira de ferro”63. Falhar em reconhecer
esse ponto autoevidente é a raiz do Erro Hegeliano. É um preconceito racionalista sem
fundamento acreditar que os únicos problemas que devidamente existem são aqueles que
podem ser solucionados por meio da razão. Existem questões irresolvíveis em todo o lugar
– até de natureza não-antinômica – que ainda existem justificadamente e são, de fato,
absolutamente inevitáveis. Todas as questões metafísicas genuínas são desse tipo. Por que
deveria ser de outra forma justo com esse tipo de questão, uma antinomia? Em verdade, a
antinomia como tal significa precisamente o tipo de problemática sui generis na qual seu
caráter de ser irresolvível já é visível na forma do problema em si. Ou seja, na oposição
antitética, na óbvia, porém inevitável, contradição. De frente a tal problemática, todas as
chamadas “soluções” podem apenas ser soluções aparentes – ou mesmo uma visão
equivocada do problema. Todas elas têm apenas uma validade condicionada por um ponto
de vista – ou seja, elas não têm qualquer validade filosófica. Elas são tentativas de
unificação ou de harmonização do diferente, sem consideração prévia de se os termos
diferentes requerem ou são capazes de serem harmonizados. O entendimento humano, a
Ratio, tem a forma de unidade e univocidade, da qual brota sua tendência de fazer tudo que
é discrepante ser concordante, a força-lo sob o princípio de não-contradição a qualquer
custo. Esta é uma teleologia puramente subjetiva da ratio e é, no fundo, um caso especial
do mesmo racionalismo que encontramos no Erro Cartesiano: o grande, o macrocosmo, em
si indiferente a toda ratio, é mensurado pelo propósito meramente humano de querer o
conceber! Não surpreende que esta conta não fecha! O Erro Hegeliano é um surpreendente
testimonium paupertatis [testemunho da pobreza] da razão, precisamente no ápice de sua
Autoconsciência que está segura de sua vitória [siegesgewissen Selbstbewußtseins]. Aqui é
um dos principais pontos onde se deve inverter os métodos tradicionais da prática
filosófica para poder se colocar a caminho de uma ontologia realmente crítica e, além disso,
de uma philosophia prima crítica. Hegel corretamente viu que a oposição antinômica não é
a forma peculiar de algumas poucas questões cosmológicas, mas, sim, é a característica
universal das maiores questões fundamentais.
63NT: Tal expressão alemã, “hölzernes Eisen”, indica metaforicamente algo impossível. O tradutor para o
inglês, Keith Peterson, preferiu traduzir como um “círculo quadrado” para evidenciar isso.
por si só, significar coisas completamente diferentes. Parece ser evidente, de certa forma a
priori, que duas opções básicas são possíveis aqui, as quais trago provisoriamente e não
gostaria que fossem interpretadas como alternativas estritas, visto que o trabalho sobre
esse problema não é maduro o suficiente para uma completa disjunção das possibilidades.
Não temos que decidir por agora quais das duas possibilidades é a correta, ou se
existe uma terceira. Talvez possamos esperar por mais informações de uma Análise
Categorial detalhada de antinomias individuais. Outra possibilidade é a de que ambos os
casos existam lado-a-lado em antinomias diferentes, de forma que teríamos que distinguir
dois tipos de antinomia. De fato, no final das contas, os dois casos poderiam também serem
combinados em uma oposição antitética complexa, podendo um existir por trás do outro,
por assim dizer. Certamente não podemos decidir antes da Análise Categorial em favor de
uma ou de outra escolha. De toda sorte, é evidente que, em ambos os casos discutidos, está
claro acerca da natureza da antinomia que ela, em si, deva ser irresolvível.
64 O estado de coisas que existe nesse caso é contrariamente exprimido nas palavras do poeta:
Leicht beieinander wohnen die Gedanken,
[Pensamentos juntos vivem lado-a-lado com facilidade.]
Doch hart im Raume stossen sich die Sachen.
[Mas coisas colidem umas com as outras no espaço com brutalidade.]
O que esses versos dizem não é falso; muito do que é impossível no mundo real é facilmente construído sem
esforço pelo pensamento. É um erro acreditar que a fronteira inversa não existe. O pensamento também não
está em posição de trazer tudo sistematicamente por conta própria, cuja verdadeira síntese já existe no ser.
As antinomias mostram que, no mundo atual, elementos contraditórios coexistem sem machucarem uns aos
outros, mas o pensamento é muito estreito para admitir isso: na sua dimensão, os elementos contraditórios
repelem uns aos outros.
65 NT: A tradução para o português dos versos em alemão é de nossa autoria; quaisquer infelicidades
literárias são de nossa responsabilidade, em nada maculando a beleza da escrita de Schiller.
66 NT: Talvez este final de frase poderia ter sido melhor fraseado, baseando-nos
no que tem sido apresentado,
da seguinte forma: “esforçando-se para alcançar a postura crítica de renunciar à obrigatoriedade de
resolução das antinomias e ao postulado da harmonia”.
67 NT: O verbo em alemão wegdeuten encontra um cognato no inglês, o “to explain away”. No entanto, em
línguas latinas, não há cognato direto. Este verbo se refere ao que pode ser entendido como um truque escuso
de retórica de alguém que, quando confrontado com um problema ou falha, faz um artificioso discurso para
tentar minorar que este algo seja de fato um problema, geralmente relativizando ou minorando sua
relevância, desqualificando o status de problema e até mesmo transformando-o em mero incômodo ou
indiscrição irrelevante de considerações adicionais.
irresolvível quanto todas as outras antinomias genuínas. Sem ele, não haveria nada na vida
que o homem teria de decidir caso a caso por meio de sua própria responsabilidade. 68
ADEODATO, João Maurício. Filosofia do Direito. 6ª ed. São Paulo: Saraiva, 2019
BAR-ON, Abraham Z. The Categories and Principle of Coherence. Dordrecht, Martinus Nijhoff, 1987.
COHEN, Hermann. Logik der reinen Erkenntnis. Berlin: Bruno Cassirer, 1902.
HARMAN, Graham. Object-oriented ontology – A new theory of everything. London: Penguin, 2018.
KANT, Immanuel. Crítica da Razão Pura. 9ª ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2018.
LEIBNIZ, Gottfried. ‘Monadologia’ in. Discurso de Metafísica e outros textos. São Paulo: Martins
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LUHMANN, Niklas. O Direito da Sociedade. Trad. Saulo Krieger. São Paulo: Martins Fontes, 2016.
LUHMANN, Niklas. Introdução à Teoria dos Sistemas. Ed. Javier Torres Nafarrate, trad. Ana
Cristina Arantes Nasser. Petrópolis: Vozes, 2010.
MOHANTY, Jitendranath. Nicolai Hartmann and Alfred North Whitehead: A Study in Recent
Platonism. Calcutta: Progressive Publishers, 1957.
68 NT: A ideia de que devemos prestar atenção com especial vênia ao “conflito de valores” ou “conflito de
princípios” era comum na cena intelectual advinda do neokantismo de Baden. Outro filósofo e jurista
associado a esta Escola era Gustav Radbruch, autor de diversos livros sobre filosofia do direito nos quais ele
lida com este conflito de valores, tais como o respeito que um operador do direito deve ter para com o
soberano e a dignidade da pessoa humana. Seu trabalho foi ofuscado pelo positivismo grosseiro durante o
nazismo, retornando com toda força após a Segunda Guerra. Toda a jurisprudência contemporânea dos
princípios deve a Radbruch e ao americano Ronald Dworkin sua origem. O balanceamento de princípios
jurídicos, hodiernamente, é encabeçado mundialmente pelo filósofo e jurista alemão Robert Alexy, grande
entusiasta de Radbruch. Não podemos evitar de confabular como seria uma teoria dos princípios jurídicos
embasada nos três volumes da Ética de Hartmann. O Professor João Maurício Adeodato, associado à
Faculdade de Direito de Vitória (ES), escreveu um livro sobre filosofia do direito baseada na Ética e em outros
trabalhos de Hartmann (Adeodato, 2019), pavimentando o caminho para uma prospectiva pesquisa sobre
princípios jurídicos.
1
Does Propaganda Menace Democracy? A Debate. The Forum, June 1938, pp. 341-345
2Graduando em Filosofia pelo Departamento de Educação do Campus I da Universidade do Estado da Bahia.
Professor da rede privada de ensino, Professor Colaborado do Pré-Vestibular Gradação da Universidade
Federal de Pernambuco e Residente Pedagógico de Filosofia do Instituto Federal da Bahia. Integra também o
Grupo de Pesquisa Literatura, Cinema e a Nova Gramática Política. E-mail: rocha.iflavio@gmail.com
Bernays tinha uma visão pessimista acerca das possibilidades de autonomia dos
indivíduos com relação a seus desejos e impulsos imediatos, considerados pelo mesmo
como biológicos e instintivos. Para ele, a forma de direcionar tais pessoas para o caminho
mais adequado é a propaganda. Em muitas de suas obras, principalmente em seus ensaios
The Engineering of Consent (1947) e The Minority Rules (1927), ele expressa que a massa
cega precisa ser guiada e que os propagandistas são a minoria responsável por guiar tais
rebanhos para uma sociedade melhor. O que o mesmo prega é que a propaganda é um
instrumento para o entendimento das populações que pelo acesso as informações
selecionadas pela minoria responsável teriam melhores condições de opinar acerca da
sociedade que legisla. Para o autor, a propaganda pode ser entendida como um reflexo da
solidificação da democracia já que é o principal veículo para a liberdade de expressão. Ou
seja, é uma liberdade que deve ser garantida pelos regimes democráticos, pois proporciona
a livre apresentação, discussões e descarte de ideias, posicionamentos e opiniões
pertinentes ao debate público.
A revista The Forum (1885-1950), que por muito tempo foi o um dos poucos
jornais amplamente acessíveis à afro-americanos do estado de Nova York, era uma revista
reconhecida e respeitada pelos debates de proeminentes autores acerca das questões
políticas e sociais da época que tem se mostrado cada vez menos superáveis. O debate a
seguir protagonizado por Edward Bernays e Ferdnand Lundberg é um destes no campo da
discussão acerca dos limites e poderes que operam a as mídias e quais liberdades envolvem
o processo moderno, reprodutível, de propaganda.
A maioria das empresas hoje depende da opinião pública. A opinião pública é o fator
básico em todo projeto que envolve a sociedade ou qualquer parte dela. A Guerra Mundial
dramatizou para o mundo inteiro o fato de que a opinião pública poderia ser moldada. Hoje
percebemos que, para que qualquer projeto continue sendo bem-sucedido, é necessário
primeiro obter e depois manter o apoio público. A boa vontade é frequentemente o ativo
mais importante em um balanço.
Para sobreviver nesta luta pela aprovação do público e obter o apoio do público é
necessário um julgamento especializado. Isso levou ao nascimento e desenvolvimento de
uma nova atividade – o profissional de relações públicas. Interpretar de cliente para
público e do público para cliente tornou-se a função desta nova profissão. Grupos e
indivíduos dependentes de interesse público e apoio se valem dos conselhos deste novo
profissional.
A atividade do profissional de relações públicas deve ser julgada em termos dos fins
que ele serve. Ele pode ser uma força para fins sociais ou não sociais. Isso também é
característico de outras profissões. A mesma condição existe, por exemplo, na medicina e
na lei, que podem ser usadas socialmente ou abusadas socialmente.
sociais. Isso faz parte da nossa herança democrática. É importante, no entanto, que seja
empregado para fins socialmente sólidos. Os líderes com mentalidade social devem
conhecer o significado, a direção e o modo de funcionamento da opinião pública para
exercer influência. As atitudes e ações de homens e mulheres e como elas são determinadas
não podem ser ignoradas pelos interessados em manter a democracia. Em um mundo em
que milhares de jornais diários, milhões de rádios, filmes e outros canais apresentam
milhares e milhares de símbolos conflitantes para o interesse e a atenção do público, é
essencial que as causas do som sejam garantidas em todas as oportunidades de
sobrevivência.
II
A aceitação pública de novas ideias, na medicina, no serviço social, nos negócios, nos
processos políticos, foi provocada pela educação pública e pela propaganda.
Ele tenta uma maior aceitação de ideias antigas, de novas ideias e de objetos novos ou
antigos.
A palavra “livre” tem nuances de significado e um mal especial sobre a maior parte
da propaganda contemporânea é que ela não é "gratuita"3 pois custa dinheiro, que
geralmente está nas mãos de grupos antissociais dedicados a estreitar o interesse próprio
e não ao comum bem-estar. As críticas e discussões sobre propaganda hoje, o observador
astuto é obrigado a notar, não ocorreram porque a propaganda foi usada para ajudar a
sociedade; surgiu, pelo contrário, porque a propaganda e os propagandistas profissionais
tem sido hostis à sociedade. Por seu trabalho secreto e furtivo, os propagandistas se
esforçaram mais por derrotar do que por promover os fins da democracia, mesmo quando
aplaudiram a democracia para continuar suas atividades.
3 NT: Lundberg está apontando a dupla significação da palavra “free”, que pode significar tanto “livre” quanto
“gratuito”.
II
4 NT: O termo “whitewashing”, traduzido por calagem, é uma prática discursiva de se pegar coisas
consideradas problemáticas, politicamente incorretas ou muito grosserias/bizarras e “passar uma mão de
cal”, como dizem no Brasil, para tentar fazer parecer que é algo bom e aceitável – ou, pelo menos, inofensivo
e desimportante.
São as propagandas dos grupos que servem ao poder, às quais estão ligados os
propagandistas profissionais, sem exceções visíveis, que hoje causam mais alarme por
subversão da inteligência pública sólida. A própria existência desses propagandistas
profissionais implica para seus clientes poderosos que eles não precisam se preocupar em
apoiar ou incentivar reformas fundamentais. Tudo o que é necessário, está implícito, é um
pouco de "interpretação" do cliente para o público e um pouco de "moldagem" do público
no interesse do cliente. Tal estado de espírito em lugares altos, promovido por conselheiros
de relações públicas, pode apenas impedir o progresso normal e ordenado, pode
armazenar apenas ciclones sociais para o futuro. Em todos os países europeus dominados
por ditadores pode-se ver que a propaganda se tornou um substituto para o pão e também
para a inteligência.
III
Uma boa propaganda, como na atual campanha para educar as pessoas sobre a
sífilis, é franca. Ele declara e se analisa abertamente e sem equívocos. A má propaganda,
circulada em nome de um interesse egoísta por um fim privado que custará caro ao público,
não pode fazer isso sem se derrotar. A má propaganda – isto é, a maior parte da propaganda
– nada mais é do que um prato desagradável servido com molhos apetitosos. Se as pessoas
pudessem provar o prato sem o molho elas simplesmente iriam vomitar em nove de cada
dez vezes.
Bernays diz também que nenhum "projeto" pode ser bem-sucedido sem o apoio
do público, mas projeto é uma palavra dolorosamente vaga. A maioria dos projetos neste
mundo não merece apoio público. Os nazistas, por exemplo, têm um projeto que pede o
extermínio dos judeus. Sendo esse o caso, devemos aplaudir aqueles que se esforçam para
obter apoio público para o projeto?
Resumo: O presente estudo, estruturado sob o desenho de uma recensão crítica, tem por objetivo
compreender se a construção do conceito de necropolítica, tal e qual se apresenta na obra mbembiana,
configura-se com um status decolonial diante do conceito de biopolítica, tal e qual se apresenta na obra
foucaultiana. Para tal, em um primeiro momento, apresentamos considerações iniciais acerca da perspectiva
decolonial e do porquê de sua defesa no âmbito da produção de conhecimento; em um segundo momento,
apresentamos breve comentários sobre a obra foucaultiana, e sobre a definição de biopolítica; em um
terceiro momento, apresentamos comentários mais detidamente construídos sobre a obra mbembiana, e
sobre a definição de necropolítica; e, em um quarto e último momento, apresentamos considerações finais
acerca de como a perspectiva decolonial se apresenta na obra de Joseph-Achille Mbembe. Das análises
realizadas, com salvaguardas, ressalta-se ter sido possível constatar que o conceito mbembiano, deveras,
assume um status decolonial diante do conceito foucaultiano, ao ponderar, de maneira mais diretiva, a
realidade social, econômica e política do Eixo Sul Global.
Resumée: La présente étude, structurée sous la forme d'une revue critique, vise à comprendre si la
construction du concept de nécropolitique, tel qu'il apparaît dans l'ouvrage de Mbembian, est configuré avec
un statut décolonial face au concept de biopolitique tel qu'il est. apparaît dans l'œuvre de Foucault. À cette
fin, dans un premier temps, nous présenterons les premières considérations sur la perspective décoloniale
et pourquoi elle est défendue dans le cadre de la production de connaissances; dans un second temps, nous
1 Psicólogo, Mestre e Doutorando em Saúde Coletiva pela Universidade Federal da Bahia, Especialista em
Estudos Étnicos e Raciais pelo Instituto Federal da Bahia. Docente da Universidade Salvador. E-mail:
renanvsr@gmail.com. ORCID: orcid.org/0000-0003-4981-2854.
2 Graduado em Letras e Mestre em Literatura e Diversidade Cultural pela Universidade Estadual de Feira de
Santana, Doutor em Estudos Étnicos e Africanos pela Universidade Federal da Bahia. Docente do Instituto
Federal da Bahia. E-mail: wesleybcorreia@yahoo.com.br.
3 Psicóloga, Doutora em Saúde Pública pela Universidade Federal da Bahia. Docente da Universidade Federal
présenterons de brefs commentaires sur les travaux de Foucault et sur la définition de la biopolitique; dans
un troisième temps, nous présenterons des commentaires plus élaborés sur le travail de Mbembien, et sur la
définition des nécropolitiques; et, dans un quatrième et dernier moment, nous présenterons des
considérations finales sur la façon dont la perspective décoloniale se présente dans l'œuvre de Joseph-Achille
Mbembe. A partir des analyses effectuées, avec garde-fous, il est mis en évidence qu'il a été possible de
vérifier que le concept Mbembien, en effet, assume un statut décolonial face au concept foucaldien, en
considérant, de manière plus directive, la réalité sociale, économique et politique de l'Axe Sud Global.
4 Cabe registrar que, a princípio, ao propormos a ideia de decolonialidade, conforme aqui se apresenta, não
queremos reduzir uma importante discussão sobre epistemologia e metafilosofia a uma mera questão sobre
regionalismos. Contudo, para fins do presente estudo, parece-nos importante destacar como as questões
territoriais e geopolíticas possuem destaque nas análises das diferentes autoras e autores que se debruçam
sobre a defesa de uma perspectiva decolonial nas ciências e na filosofia.
de tipo dupla (por serem analisadas duas pedagógico para a compreensão da obra
obras), comparativa (por colocar ambas as foucaultiana do que uma distinção
obras analisadas em perspectiva de taxonômica proposta pelo próprio
convergências) e contrastiva (por, em Foucault. No entanto, nos interessa aqui
igual medida, colocar ambas as obras reproduzir esta categorização, de forma a,
analisadas em perspectiva de a partir dela, desvelarmos que a linha
divergências) – conforme se verá a seguir. histórica do pensamento foucaultiano foi
sempre diversa e fervilhante, fazendo de
seus conceitos uma malha nem sempre
Sobre Foucault, o Biopoder e a conforme de reflexões sobre o humano e
Biopolítica suas relações, mas sempre atenta ao
exercício de formas de influência, controle
Michel Foucault foi um filósofo
e dominação de seres humanos por seres
ensaísta francês, professor da cátedra de
humanos – o poder (FOUCAULT, 1979).
“História dos Sistemas do Pensamento”, no
Collège de France, de 1970 até 1984. Em Para iniciarmos, assim, uma
sua produção acadêmica e científica, reflexão sobre o pensamento de Foucault a
acabou por tornar-se o que, hoje, partir do biopoder e, principalmente, da
denominaríamos como um “intelectual de biopolítica, é preciso guarnecer-nos dos
vanguarda”, haja posto o caráter elementos constituintes da gênese desses
extremamente político e progressista de conceitos, com os quais poderemos melhor
suas produções, e seus posicionamentos guarnecer-nos da própria teoria fou-
firmes no sentido de uma análise do caultiana, presente no livro O nascimento
mundo e de suas relações sociais, da biopolítica 5, publicado originalmente
econômicas e políticas, especialmente também em 1979, oriundo das trans-
expressas em termos de relações de poder crições dos discursos proferidos por
(Cf. FERREIRINHA; RAITZ, 2010). Foucault no Collège de France, em curso
concebido e realizado entre os anos de
Pela complexidade de sua produção
1978 e 1979.
acadêmica e científica, Foucault é
compreendido, na literatura, a partir de Tanto o curso quanto o livro foram
três “fases”: uma que se dá em termos de produzidos em um momento histórico
uma arqueologia das ciências humanas; peculiar, que se dá no contexto do “pós-
outra que se dá em termos de uma Guerras Mundiais” – contexto de tensões e
genealogia das formas contemporâneas de disputas políticas entre os Estados Unidos
subjetivação; e uma última, inacabada, se da América (EUA) e a, hoje extinta, União
assim o podemos dizer, em que a ética é das Repúblicas Socialistas Soviéticas
definida como a expressão mais política e (URSS), cujo cenário de fundo apontava
potente de um cuidado de si (cf. ibidem). para uma disputa de âmbito muito maior,
Ressalta-se que estas “fases” possuem que seria entre dois modelos
muito mais um caráter didático- socioeconômicos radicalmente distintos e
5Aqui não trabalhamos com o curso de Foucault Em defesa da sociedade, obra em que discute o conceito de
o tema do racismo de Estado, sobretudo quanto ao “direito de conquista” reclamado pela colonialidade.
6 “Laissez faire, laissez aller, laissez passer, le monde va de lui-même”, que significa, literalmente, “Deixai
fazer, deixai ir, deixai passar, o mundo vai por si mesmo” (FOUCAULT, 2008).
de uma soberania que pressuponha a real de classes), a raça foi a sombra sempre
obediência a um certo padrão de presente sobre o pensamento e a prática
das políticas do Ocidente, especialmente
comportamento socialmente aceitável, em
quando se trata de imaginar a
certos momentos, necessitará lançar mão desumanidade de povos estrangeiros – ou
de tecnologias de morte – o que fará com dominá-los (ibidem, p. 128).
que Mbembe a defina, ao fechar o seu
Com efeito, ele dirá, acerca do
primeiro tópico, como “a diferença
racismo, que:
colocada em jogo pela violação de um
tabu” (ibidem, p. 127), ou seja, a serviço de [...] em termos foucaultianos, racismo é,
um possível “trabalho da morte”. acima de tudo, uma tecnologia destinada a
permitir o exercício do biopoder, ‘aquele
Em seu segundo tópico, intitulado velho direito soberano de morte’. Na
“O Biopoder e a Relação de Inimizade”, economia do biopoder, a função do
racismo é regular a distribuição de morte e
Mbembe procurará desenvolver a tese
tornar possível as funções assassinas do
aberta no tópico anterior, onde se diz que, Estado. Segundo Foucault, essa é ‘a
se a política pode ser o trabalho da morte, condição para a aceitabilidade do fazer
a soberania pode ser a expressão do morrer’ (ibidem, p. 128).
direito de matar, em prol de um tabu, e Dialogando com estas concepções,
assegurada pela existência de um Estado Mbembe dirá que o racismo funcionará de
legitimador de tal política. Ele tomará maneira primordial na legitimação de
como base o conceito de Estado de discursos que sustentem o direito à
Exceção, no qual, pensando experiências erradicação de vidas, ao apontar que, em
distintas, tal estrutura de Estado determinados tempos e espaços
rapidamente legitimou políticas de morte históricos, o discurso sobre as questões
em caráter físico e simbólico – como, por raciais apareceram como discursos, em
exemplo, nos ocorridos na experiência das verdade, acerca de possíveis questões que
câmaras de gás, do nazifascismo alemão; supostamente poderiam prejudicar
da guilhotina, na Revolução Francesa; e da determinadas populações em seu desen-
escravidão, em todo o continente africano. volvimento civilizatório. Aqui, ele toma
Mbembe pondera que estes novamente como exemplo o nazifascismo
exemplos acima citados, legitimados pela alemão, em que tais ideias ganharam
existência de Estados de Exceção, não tamanha força que tornaram possíveis, aos
podem ter descartada de sua análise a olhos da sociedade, as existências de
observação contundente dos loci onde foi tecnologias de morte como as câmaras de
posicionada a raça em tais tempos e gás e os “fornos” para a morte autorizada
espaços históricos. Pensando o biopoder de judeus. Esta morte autorizada não se
foucaultiano, especialmente no contexto processa, em Mbembe, a partir de uma
do encontro entre povos europeus e povos pura e simples crueldade; antes, ela
africanos, ele diz que: incorpora ideais socioeconômicos e
civilizatórios tais que, em defesa de um
Afinal de contas, mais do que o
certo projeto de sociedade, caberá, assim,
pensamento de classe (a ideologia que
define história como uma luta econômica “extirpar males”. Logo, a desumanização
falam de uma continuidade histórica das povos ditos civilizados e povos ditos
políticas de controle dos corpos, como selvagens, no neocolonialismo estas
veremos na terceira e última seção deste relações não mudam de propósito, apesar
estudo. O que vale notar, de imediato, é de assumirem “outros maqui-nários” para
que, em defesa do que seriam os modos o exercício do poder e das políticas de
“corretos” – ou brancos, ou europeus, ou morte; ainda é a violência a base para
civilizados, etc. – de funcionamento de assegurar o exercício do poder e o controle
uma dada sociedade, a partir de diretrizes dos corpos, dos viveres e dos morreres. E
assumidas pelo Estado, em seu exercício esta mesma violência, no neocolonialismo,
de soberania, tornam-se, como já vimos, intensifica a utilização dos recursos de
supostamente defensáveis posturas despersonalização a que nos referimos
violentas e políticas de morte em defesa de anteriormente, só que por vias outras, não
um discurso bastante convincente às necessariamente como tecnologias de vida
massas sociais: o discurso em defesa da e de morte assumidamente racistas ou
“paz”, a partir da própria “salvação dos violentadoras das subjetividades.
selvagens” (ainda que derivada, nas
Na expressão de violências (e,
palavras de Mbembe, de uma “guerra sem
destaque-se, tecnologias de morte) do
fim”). Tornaremos a tratar destes aspectos
neocolonialismo, o que se deseja, diz
mais à frente.
Mbembe, é intensificar o fosso, nos corpos
Em seu terceiro tópico, o maior do desviantes, entre a noção de “ser sujeito” e
ensaio aqui analisado, intitulado a de “ser objeto” (ou “sujeito objetificado”).
“Necropoder e Ocupação Colonial da Novamente a raça (e, portanto, o racismo)
Modernidade Tardia”, Mbembe se aparecem como instrumentos necessários
debruçará sobre os seus conceitos de à produção de discursos homogenei-
necropoder e necropolítica, passando de zadores, supostamente pacificadores e em
uma análise do colonialismo para uma ato de advogar por uma sociedade dita
análise mais acurada acerca do que ele mais civilizada; portanto, livre dos
denomina como “ocupação colonial tardo- elementos próprios das raças associadas,
moderna” (o que, visto em perspectiva, nos ainda, às pessoas tidas como “selvagens”.
aproxima da concepção do neocolonia- Novamente veremos a intencionalidade de
lismo e, por consequência, do neolibe- produção de negação de atributos
ralismo). Há condições mais viáveis para próprios aos sujeitos não-brancos, rumo a
proceder com tal propósito por já termos, uma suposta identificação com os ideais da
em seus dois primeiros tópicos, observado “brancura”. Toma-se, doravante, outro
uma análise do passado histórico que, exemplo marcante da história moderna e
agora, subsidia uma análise mais refinada contemporânea para pensar tais
do presente histórico. fenômenos: a experiência do apartheid sul-
africano.
Inicialmente, nota-se que, se o
colonialismo, ante as expressões apresen- Na experiência do apartheid, é
tadas, funcionou como uma espécie de inegável a utilização da violência física
exercício da soberania na relação entre como recurso de controle dos corpos e das
dores de energia elétrica; arrasar pistas de guerra. Se, antes, ampliava-se a dimensão
aeroporto; desabilitar os transmissores de simbólica da violência, neste momento
rádio e televisão; esmagar computadores;
volta-se a ampliar a dimensão física desta,
saquear símbolos culturais e político-
burocráticos do Proto-Estado Palestino; em uma conjunção literalmente mortal em
saquear equipamentos médicos. Em todas as esferas possíveis de vida para os
outras palavras, levar a cabo uma ‘guerra povos tidos como subalternizados ante a
infraestrutural’ (ibidem, p. 137, grifo do expressão de povos ditos como mais
autor).
civilizados e que, pelo uso da força,
Ora, ainda que o bulldozer de que acreditam na (ou defendem a) necessidade
fala Mbembe se apresente como uma de intervir, pela via da violência, em outras
estratégia, nitidamente, de guerra, no realidades geográficas/geopolíticas.
contexto de um exemplo bem especificado,
Para tal, Mbembe se ocupará de
a sua construção teórica nos convida a uma
analisar novas experiências, como a da
leitura mais ampliada do que tal conceito
Guerra do Golfo e da Campanha de Kosovo.
delimita: é a erradicação não apenas direta
Em ambas, ele analisa que o exercício
da vida; é uma erradicação paulatina, por
esmagador da força, da violência, das
destituição do direito de ser quem se é, ao
tecnologias de morte, teve lugar definitivo
serem usurpadas as condições básicas de
no desfecho destes combates, impondo
vida e as condições simbólicas do
uma outra variante da soberania: a
desenvolvimento de uma subjetividade
submissão. A submissão, nesse sentido,
comunitária positiva. Metaforicamente,
utilizar-se-á de uma conjunção dos vários
Mbembe diz que, neste exemplo, temos a
elementos que apresentamos até aqui: o
concatenação de três formas elementares
bulldozer, a força esmagadora, a
de poder, já aqui analisadas: o poder
espetacularização da violência e a
disciplinar (sobre o comportamento), o
despersonalização dos sujeitos. Conjunção
poder biopolítico (sobre o direito à vida) e
mortal, física e simbolicamente; não há
o poder necropolítico (sobre o direito de
dúvidas. Tal e qual, ele afirmará: “As
morte). Salta-nos aos olhos – e aos olhos de
guerras da época da globalização, assim,
Mbembe – uma possível expressão de
visam forçar o inimigo à submissão,
dominação absoluta.
independentemente de consequências
No tópico seguinte, o penúltimo, imediatas, efeitos secundários e ‘danos
intitulado “Máquinas de Guerra e colaterais’ das ações militares” (ibidem, p.
Heteronomia”, Mbembe irá avançar ainda 139).
mais na análise sobre as guerras
Mbembe retomará o contexto
contemporâneas, mas refinando o olhar
geopolítico atual do continente africano,
crítico acerca do status que a dimensão
para analisar como os conflitos que, em
militar-tecnológica passou a ter ante tais
grande medida, ainda acometem o
relações. Ele fala que o bulldozer passa a se
continente em questão são resultantes de
ampliar na afirmação de uma “força
modos colonialistas e neocolonialistas de
esmagadora ou decisiva”, unicamente
exercício da soberania, influenciados pelo
possível pelo desenvolvimento de um
neoliberalismo, e advindos das conse-
maior e mais avançado maquinário de
Referências
Resumo: O presente artigo tem por propósito analisar a obra “Gender Hurts: a feminist analysis of the politics
of transgenderism”, de Sheila Jeffreys, à luz das críticas ao correlacionismo de Quentin Meillassoux e dos
apontamentos acerca da bifurcação natureza/cultura levantados por Bruno Latour. Com base neste objetivo,
primeiramente, apresenta-se um breve resumo da obra, no qual são apresentados os fundamentos principais
da tese da autora. Em seguida, os conceitos de gênero e transgeneridade, pontos chaves do livro, são
apresentados e relacionados às ideias centrais das filosofias de base correlacionista. Outrossim, busca-se
demonstrar como tanto gênero, quanto a transgeneridade, aparecem na obra como conceitos bifurcados. Por
fim, sugere-se alguns autores que podem ajudar a pensar as questões de gênero fora, seja de um paradigma
correlacionista, seja de um conceito bifurcado.
Abstract: This article was aims to analyze the work “Gender Hurts: a feminist analysis of the politics of
transgenderism”, by Sheila Jeffreys, based on criticisms on correlationism, by Quentin Meillassoux and the
notes on the bifurcation of nature and culture raised by Bruno Latour. Based on this objective, first, a brief
summary of the work is presented, in which the main foundations of the author's thesis are presented. Then,
the concepts of gender and transgenderism, key points of the book, are presented and related to the central
ideas of correlationist-based philosophies. Furthermore, it seeks to demonstrate how both gender and
transgenderism appears in the work as bifurcated concepts. Finally, we suggest some authors who can help
thinking about gender issues outside either from a correlationist paradigm, or from a bifurcated concept.
1 Artigo desenvolvido a partir do trabalho final da disciplina de Atualização e Prática do Direito – Teoria dos
Sistemas e Teoria Ator-Rede (2020), ministrada pelo professor Otávio Souza e Rocha Dias Maciel na
Faculdade de Direito da Universidade de Brasília.
2 Graduanda em Direito pela Universidade de Brasília. E-mail: kellecristinap@gmail.com.
4Tradução nossa do trecho: “Forty years ago, radical feminist thinkers and activists were very clear in their
view that persons who were born biologically male and raised as males, but sought recognition as women in
the women’s liberation movement, were engaged in a form of colonialism and should be ejected”.
5
Ao longo de sua obra, Jeffreys refere-se às mulheres trans enquanto “homens”, pois não reconhece o fenômeno
transgênero.
6
Tradução nossa do trecho: “One form of explanation to be considered here is that transgenderism is attractive
because the societal hatred and subordination of women and of lesbians, and the valorisation of men, are forces that
make it more attractive for some women to escape their relegation to subordinate womanhood and seek the
advantages that the adoption of manhood will bring”.
7As afirmações da autora são ambiciosas, mas parecem duvidosas, considerando que pessoas trans são
marginalizadas na sociedade – quais seriam, dessa forma, seus privilégios ao mudar de casta? (ANTRA, 2020).
8 “Gender, as a caste system, creates advantage for men and disadvantage for women”.
9“The category ‘transgender’ was created by forces of male power, that it was created not just socially but
politically”.
Ao trazer tais narrativas, a autora 2014, p. 58). Apesar de alegar que são cada
demonstra aquilo que ela deseja que as vez mais comuns os casos de pessoas trans
pessoas vejam, casos que geram que se arrependem dos procedimentos
indignação e ódio contra todos aqueles cirúrgicos, a autora não apresenta dados
que, segundo ela, vestem-se de mulher, que confirmam tais alegações, apenas se
pois todos eles seriam potenciais baseia nessa afirmação genérica para
assediadores ou abusadores. A opção da exemplificar como a transgeneridade é
autora, durante toda a obra, em se referir capaz de machucar a todos, inclusive as
às mulheres trans como “homens vestidos pessoas transgêneros.
de mulher” mostra-se extremamente
O que a autora não percebe é que
conveniente quando da análise dessas
todas essas afirmações e argumentos por
situações, já que, para ela, como não
ela elencados são contingentes, ou seja,
existem diferenças entre homens cis e
podem ou não acontecer. No entanto, mais
mulheres trans, a autora não precisa se
do que um erro, tal insistência da autora
ater a casos em que evidentemente eram
em subordinar todo o movimento
mulheres que cometiam tais delitos. Para
transgênero a um só correlato (supre-
ela, nesses casos nem mesmo seria
macia masculina) é ressaltado por
possível a diferenciação.
Meillassoux como um propósito correla-
Aqui, não se busca negar que tais cionista: escamotear ou não perceber as
casos sejam possíveis, mas que estes não contingências, posto que se torna quase
podem ser generalizados como uma regra impossível explicar qualquer processo em
inescapável. Não é possível afirmar que que não se parta de tal correlação. Assim,
todos aqueles que adentraram os banhei- ao abandonar a contingência, tudo passa a
ros femininos, e causaram com suas ser necessário e em contrapartida tudo
condutas danos a mulheres, são mulheres tem a ver com dominação de gênero.
trans, ou ainda que todas as mulheres
Cumpre ressaltar que as proble-
trans, ao adentrarem esses espaços,
máticas aqui levantadas não se referem
apresentaram a mesma conduta que tais
propriamente aos correlatos que a autora
indivíduos. Mais uma vez, a autora aplica
utiliza, mas sim ao propósito de
um correlato absolutizante, relacionando
absolutização desses correlatos que é
necessariamente violência e abusos
própria do correlacionista radical.
sexuais à transgeneridade.
Ademais, não se questiona que a
Já em relação às pessoas trans em desigualdade de gênero exista. Como se
si, Jeffreys chama atenção para o problema sabe, afirmações como a de que homens
cada vez mais comum de arrependimento ganham mais do que mulheres são
entre pessoas transgênero, ou seja, os atestadas pelo Instituto Brasileiro de
sentimentos dos sobreviventes do Geografia e Estatística ano após ano. Em
tratamento que consideram que foram 2019, por exemplo, os dados indicaram
diagnosticados erroneamente e podem que as mulheres ainda ganham cerca de
desejar fazer uma cirurgia reconstrutiva 20,5% a menos que os homens (IBGE),
para reparar danos cirúrgicos (JEFFREYS,
a ciência do natural, argumenta que foi mas sempre presentes. É o que a autora
estabelecido que cabe à ciência a vem construindo ao longo de toda a obra,
representação dos não-humanos, sem que como na divisão entre o que é incumbência
esta possa fazer qualquer apelo à política, da psicologia e psiquiatria (mente), e o que
enquanto à política cabe a representação seria de responsabilidade médica de
dos cidadãos, mas lhe é vedada qualquer endocrinologistas e cirurgiões plásticos
relação com os não-humanos, objetos da (corpo).
ciência e da tecnologia (LATOUR, 1994, p.
O mesmo acontece quando esta
34).
busca separar o que é proveniente da
Isso porque, segundo Latour, a natureza, no caso as mulheres cis, e o que
Constituição Moderna inventa uma advém da cultura, as mulheres trans. Isso
separação entre o poder científico, porque, para a autora, o transexualismo é
encarregado de representar as coisas, e o um produto da indústria médica ou uma
poder político, encarregado de falha no desenvolvimento biológico que
representar os sujeitos (LATOUR, 1994, p. precisa ser reparada pela gentil atenção
35). Ademais, por meio do seu projeto de dos cirurgiões, e não um aspecto trans-
iluminação e de emancipação, a histórico e essencial da humanidade
modernidade consegue inventar a (JEFFREYS, 2014, p. 39).
hierarquia de pessoas, de políticas, de
Contudo, diferentemente do que
países, tudo isso com base na motivação
fazem os modernos em seu caminho de
ontológica de que o ser precisa ser
libertação, na cisão estabelecida entre
purificado. Dito isso, o caminho em direção
corpo e mente, em Gender Hurts é o corpo
à sociedade pura, livre, pressupõe o
que estabelece uma hierarquia pré
cancelamento da natureza, ou seja, o
determinativa, de modo que, se há um
abandono da pré-modernidade.
conflito entre ambos, é uma indicação
Contudo, a bifurcação, para além da evidente de que o indivíduo apresenta
luta pela separação entre condições mentais instáveis, pois o corpo,
natureza/cultura, pode assumir outras enquanto máquina biológica, nunca erra.
formas, como a separação passado/pre- Logo, se os modernos advogam pelo
sente, ciências da natureza/ciências do cancelamento da natureza e o caminho
social, mente/corpo e variações, sempre rumo à cultura, Sheila Jeffreys faz o
de modo a instituir uma hierarquia pré- movimento inverso ao defender o retorno
determinativa – seja para defender um do culto ao natural, ao biológico e o
polo, seja para defender o outro. cancelamento das construções sociais que
possibilitaram o surgimento das noções de
Em teses como as de Sheila Jeffreys,
gênero e transgeneridade.
nas quais se busca estabelecer o que é
natural e o que é social, ou ainda o que é Segundo a autora, o termo gênero
humano do que não é, os conceitos, ainda foi usado pela primeira vez com o
que sejam claramente bifurcados, aprese- propósito de normalização de bebês
ntam-se de maneiras camufladas, diluídas, intersexo, uma vez que permitiria aos
10 Tradução nossa do trecho: “The idea of gender was developed by the sexologists, John Money and others,
in the 1950s and understood as ‘the social performance indicative of an internal sexed identity’”.
11 “Female fetuses are aborted and female infants are killed because of sex, not ‘gender’ discrimination”.
p. 48) cis, a autora deixa de considerar que Nesse sentido, Gender Hurts funci-
o controle dos corpos e da sexualidade onaria como um material de apoio para
negras e indígenas, ambas associadas à todos aqueles que conseguem ver no
noção de parafilia e a doenças, faz parte do gênero a capacidade de machucar e de
projeto de novo mundo dos modernos. Ou ferir toda a coletividade de mulheres que
seja, não considera que o culto ao natural negam a transgeneridade e que defendem
ainda não se mostrou capaz de gerar mais a abolição do gênero como uma premissa
liberdade e menos opressão, como essencial para a superação do patriarcado.
pressupõe sua argumentação.
Todavia, como se pode ver no
Se, em Gender Hurts, o que Sheila decorrer do artigo, a teoria defendida pela
parece defender é que movimentos autora se traduz em duas grandes apostas:
políticos como o transfeminismo somente de um lado, a definição correlacionista de
são possíveis quando se considera que tal gênero e da transgeneridade; do outro, a
coisa como uma biologia não existe ou não bifurcação natureza/cultura, que na obra é
poderia existir (JEFFREYS, 2014, p. 53). De melhor representada pela dualidade
fato, sendo a biologia considerada como o corpo/mente. Ao contrastar os postulados
desvelamento de uma natureza pura e por da autora com as críticas feitas por
conseguinte, automaticamente boa e Quentin Meillassoux às teorias de base
sagrada, se jamais fomos modernos como correlacionista, ficou patente a
preceitua Latour, essa é uma afirmação impossibilidade de leitura da obra sem o
que somos levados a aceitar. correlato “supremacia masculina” ou
“patriarcado”, elemento fundante de todas
as coisas.
Conclusão
Ao construir toda uma teoria sob
Gender Hurts é escrito por Sheila um único pilar de sustentação, o que Sheila
Jeffreys como uma forma de protesto. A Jeffreys não parece perceber é a
exclusão da autora de alguns eventos dificuldade de generalização de seus
acadêmicos, bem como a vedação de sua pressupostos. Diversas foram as
participação em espaços de movimentos premissas feitas, mas poucas foram as
feministas não-radicais são elencados tentativas da autora de tentar prová-las.
como elementos motivacionais para a Afirmações como “o masoquismo é
escrita dessa obra. Como se buscou inerente às pessoas transexuais ou
demonstrar ao longo deste artigo, um transgêneros” foram feitas com base em
traço marcante da obra é o tom de argumentações de extrema subjetividade,
denúncia acerca da ausência de crítica à nas quais a autora recorre a evidências
construção social do gênero e da anedóticas para a sua comprovação,
transgeneridade, fenômenos que, segundo suprimindo, contudo, a contingência de
ela, desde o seu surgimento, acirraram os tais episódios ou relatos. De forma que
processos de opressão e de dominação apenas as conceituações, informações ,
masculina e que, além de tudo, afastam as dados e discursos que estejam conforme a
mulheres do feminismo. sua tese sejam aceitas. A tentativa de
Referências
JEFFREYS, Sheila. Gender hurts: A Feminist Analysis of the Politics of Transgenderism. Nova
York: Routledge, 2014.
MACIEL, Otávio S.R.D. Curso de Teoria dos Sistemas de Niklas Luhmann. Compilado de
Roteiros de Aula disponibilizados no Academia.edu – UnB. Brasília,2018.
];
Universidade do Estado da Bahia, Campus I
Departamento de Educação
Resumo: Ao longo do Ensaio sobre a origem das línguas é possível detectar uma série de importantes
conceitos utilizados por Jean-Jacques Rousseau no desenvolvimento de sua tese central. Entretanto, podemos
identificar que o conceito de acento possui uma importância específica no interior dessa obra, um pouco
peculiar aos outros conceitos trabalhados. As diferentes acepções atribuídas a esse conceito nos revelam o
cuidado especial que devemos ter ao trabalharmos com ele. Seja por interesse interpretativo ou com o intuito
de traduzir tal conceito, precisamos observar certos aspectos que a palavra acento toma o interior dessa obra.
Dito isso, o presente artigo se propõe a identificar determinadas atribuições concedidas ao conceito de acento
dentro da obra de Rousseau e as comparar com as acepções desenvolvidas por importantes dicionários
franceses que antecederam a composição das obras de Rousseau. Temos o objetivo de refletir sobre as
diferentes significações que um conceito pode tomar ao longo de uma obra — também ao longo dos anos —
e como essas diferenças, acarretando diferentes traduções, pode trazer complicações interpretativas.
Résumé: Au long de l’Essai sur l’origine des langues, il est possible de détecter une série d’importants
concepts utilisés par Jean-Jacques Rousseau pour développer sa thèse centrale. Cependant, on peut identifier
que le concept d’accent possède une importance spécifique au intérieur de cette oeuvre, un peu particulier
aux autres concepts travaillés. Les différentes acceptions attribuées à ce concept nous révèlent le soin spécial
qu’on doit prendre lorsqu’on travaille avec lui. Que ce soit par intérêt d'interprétation, que ce soit avec
l’intention de traduire tel concept, il faut observer certains aspects que le mot accent prend à l’intérieur de
cette oeuvre. Cela dit, le présent article se propose à identifier déterminées attributions concédées au concept
d’accent dans l’oeuvre de Rousseau et à établir un rapport avec les acceptions développées par importants
dictionnaires français que On a l’objectif de réfléchir sur les différentes significations qu’un concept pour
prendre au long d’une oeuvre — aussi au long des années — et comment ces différences, entraînent
différentes traductions, peut apporter complications d’interpretations.
2 “l' elevation, ou rabbaissement, ou contour de la voix en prononçant quelque diction, [...] consequemment signifie les
virgules et marques apposées aux mots indicans les endroits d' iceux où il faut hausser, ou rabbaisser, ou contourner la
voix” (grifo nosso).
que gera alguma inflexão ou variação na a saber, define Acento como sendo o
pronuncia, podendo ser acento agudo, acento ortográfico, dando exemplos de sua
grave, circunflexo, contornado ou pontu- utilização. Cito:
ações gramaticais no geral. Essa definição
Acento significa também uma pequena
dada pelo Thersor de 1606 se limita à marca que se coloca sobre uma silaba para
definição gramatical da palavra Acento, marcar uma pronunciação diferente ou
mesmo o apresentando como “elevação, uma diferença natural de uma palavra. [...]
rebaixamento ou contorno da voz na Colocamos um acento agudo sobre um é
fechado, por exemplo, sobre beauté, donné.
pronuncia de alguma dicção”, esse
Colocamos um acento grave sobre là,
dicionário estabelece uma consequência adverbio de lugar, para distinguir de la
direta entra as inflexões da voz e as pronome feminino. Colocamos um acento
marcações gramaticais. circunflexo sobre as palavras que tiveram
uma letra suprimida, como sobre a palavra
O Dictionnaire de l’Académie âge que outrora se escrevia aage (1694,
française de 1694 define acento, de n.p., tradução nossa)6.
maneira genérica, como sendo uma Podemos observar que as
“inflexão da voz, uma maneira de definições de acento colocadas pelo
pronunciar” (1694, n.p. tradução nossa)3. Dictionnaire de l’Académie française de
Além disso, o Dicionário da Academia 1684 são muito mais ricas que as
destaca que “não há mau acento” e que definições que encontramos no Thresor de
“conhecemos pelo acento de qual 1604. Ao longo de 1600, comparando as
província ele [a pessoa] é” (1694, n.p., definições dadas por esses dois dicio-
tradução nossa)4. Agora, em um sentido nários, a palavra Acento parece obter uma
mais preciso, esse dicionário indica mais quantidade maior de acepções7, tornando
duas significações que é valido evidenciar a sua utilização muito mais rica e variável.
aqui. A primeira diz que Acento “se liga, Acento ainda continua significando as
algumas vezes, por um certo tom que marcas gramaticais que apontam uma
marca a intenção da pessoa e que dá as mudança na nossa maneira de falar, porém
suas palavras um sentido diferente a sua significação se estende para os
daquele que elas possuem naturalmente” diferentes modos de pronuncia de cada
(1694, n.p., tradução nossa)5. Enquanto região, o que chamamos hoje de sotaque, e
que a segunda definição apresenta uma também para a forma como pronunciamos
acepção que nos parece ser a mais usual um sentença, demonstrando, por meio de
entre as definições obtidas em dicionários, uma maneira peculiar de pronuncia-la, a
différente nature d' un mot. [...] On met un accent aigu sur un é fermé, par exemple, sur beauté, donné. On met un accent
grave, sur là, adverbe de lieu; pour le distinguer de la, pronom féminin. On met un accent circonflexe sur les mots dont a
retranché une lettre, comme sur le mot âge qui s' écrivoit autrefois aage”. (grifo nosso).
7 É muito improvável que a palavra em questão tenha obtido diversas outras acepções com o passar de um século.
Entretanto, é fato que diferentes acepções que a palavra acento tinha ou obtivera com o passar do tempo pouco a pouco
foram se tornando mais usuais dentro e fora da corte francesa ao ponto de serem adicionadas nas definições
estabelecidas pelo dicionário da academia.
nossa intenção. O tom irônico, triste ou mais comum, a saber, o acento ortográfico.
colérico de nossa voz pode marcar a nossa É importante evidenciarmos que caracte-
intenção, tal alteração no nosso tom de voz rísticas atribuídas por Du Marsais ao
pode ser definida, aqui, como uma forma acento, no que diz respeito às inflexões da
de acento. fala, é essencial para compreendermos,
agora, a perspectiva de Rousseau.
Dentre os 35 volumes lançados pela
Observemos como o filosofo genebrino
Encyclopédie de Diderot e D’Alembert
desenvolve essa questão.
entre 1751 e 1772, um dos artigos que lá
encontramos é dedicado à palavra acento. Em um primeiro momento, em seu
Nela Du Marsais desenvolve as acepções Dicionário de música, Rousseau define
da palavra acento de uma maneira bem acento, segundo a acepção mais geral,
mais longa e descritiva do que encon- como “toda modificação de voz falada na
tramos nos dicionários que exploramos duração ou no tom das sílabas e das
anteriormente. No começo do artigo o palavras com as quais o discurso é
autor explicita como cada “nação, cada composto; o que mostra um relação muito
povo, cada província, mesmo cada cidade, precisa entre os dois usos dos Acentos e as
diferem uma das outras pela linguagem, duas partes da melodia, quais sejam, o
não somente porque nos servimos de Ritmo e a Entonação” (2012, p. 55). Sabe-
palavras diferentes, mas também pela se, então, que o acento é o responsável por
maneira de articular e de pronunciar as produzir a modificação da voz nas línguas
palavras” (DU MARSAIS, 1751, p. 63, e, consequentemente, no canto. É correto
tradução nossa)8. Continua Du Marsais: afirmar que é o próprio acento quem doa o
essa “maneira diferente de articular as aspecto de canto às línguas originárias do
palavras é chamada acento. Nesse sentido, Ensaio. Sendo assim, o acento é o
as palavras escritas não têm acentos, pois responsável pela não distinção entre fala e
acento, ou articulação modificada, afeta canto nessas primeiras línguas. É valido
somente a orelha” (1751, p. 63, tradução lembra que nessas primeiras línguas as
nossa)9. Por meio dessas passagens “articulações são poucas, os sons são
podemos observar como Du Marsais inúmeros e os acentos, que os distinguem,
estipula uma relação intrínseca entre podem do mesmo modo multiplicar-se”
acento e audição, afirmado que não há (ROUSSEAU, 1978, p. 165). A grande
acento que não fale aos ouvidos10. Sendo multiplicação de acentos nessas línguas
assim, dentro dessa concepção, Du Marsais torna-as canto, não havendo possibilidade
retira do acento uma de suas acepções de falar sem que se esteja cantando.
8 “Chaque nation, chaque peuple, chaque province, chaque ville même, differe d'un autre dans le langage, non-seulement
parce qu'on se sert de mots différens, mais encore par la maniere d'articuler & de prononcer les mots”.
9 “Cette maniere différente, dans l'articulation des mots, est appellée accent. En ce sens les mots écrits n'ont point
acento, o gramatical, a aspiração, os intervalos colocados no fim de uma proposição antes de começar outra e as variações
do tom patético (ironia, interrogação, cólera) (DU MARSAIS, 1751, p. 63), essa última muito parecida — para não dizer
idêntica — à concepção de acento patético ou oratório de Rousseau. Entretanto, aqui, daremos enfoque às acepções que
nos parece mais interessantes ao debate.
11O acento gramatical e o acento racional. Talvez não seja de todo correto igualarmos a noção de acento gramatical à de
acento racional, porém fazemos isso aqui em oposição ao acento oratório, este que se difere muito dos dois primeiros. Os
acentos gramatical e racional estão ligados ao movimento da escrita e por isso gostaríamos de destacar a grande diferença
existente entre esses dois primeiro, o acento gramatical e o racional, para com o terceiro, o acento patético ou oratório,
esse sim ligado diretamente à arte de falar. Nesse sentido, é valido destacar uma passagem do Ensaio que nos ajuda
compreender a diferença a arte da fala e aquela da escrita, fazendo-nos, assim, assimilar com mais precisão as diferenças
existentes entre as acepções de acento listadas por Rousseau. Cito: a “escrita, que parece dever fixar a língua, é justamente
o que a altera; não lhe muda as palavras, mas o gênio; substitui a expressão pela exatidão. Quando se fala, transmitem-se
os sentimentos, e quando se escreve, as ideias. Ao escrever, é-se obrigado a tomar todas as palavras em sua acepção
comum, porém aquele que fala varia suas acepções pelos tons, determina-as como lhe apraz” (ROUSSEAU, 1978 p. 170).
12 Acento oratório ou acento patético.
13Rousseau (1978, p. 173): “Os antigos hebreus não possuíam quaisquer pontos ou acentos [gramaticais], nem mesmo
vogais. Quando as outras nações se resolveram a falar hebreu e os judeus falaram outras línguas, a sua perdeu o seu
acento; tornaram-se necessários ponto e sinais para regulamentá-las e isso antes restabeleceu o sentido das palavras do
que a pronúncia da língua. Os judeus de hoje, falando hebreu, não mais seriam compreendidos por seus antepassados”
14É interessante destacamos como essa passagem se encontra no original em francês: Si l'on croit suppléer à l'accent par
les accents, on se trompe; on n'invente les accents que quand l'accent est déjà perdu" (ROUSSEAU, 1830, p. 344). Podemos
observar que a escolha de diferenciar acento de acentuação se dá apenas pelo uso do plural em francês, accent e accents.
Entretanto, essa distinção não é válida para todas as situações.
15 Na língua francesa, observamos a utilização do acento circunflexo em palavras que tiveram uma letra suprimida,
aparece comumente em palavras que perderam a letra S que existia em sua raiz no latim, como nas palavras hôpital, fête,
goût e impôt. Podemos verificar que a letra S não caiu nas respectivas palavras em português, hospital, festa, gosto e
imposto. Outras vezes, encontramos o acento circunflexo sendo utilizado de forma a evitar ambiguidade em monossílabos
que possuem a mesma escrita e a mesma pronúncia, como é o caso do article contracté du (de + le) com o particípio
passado masculino singular do verbo devoir, a saber, dû, este recebe um acento circunflexo apenas para evitar
ambiguidade na escrita. O mesmo acontecer com sur (sobre) e sûr (certo/seguro). Observamos que isso acontece de
forma similar na língua portuguesa, diferenciamos, por meio do acento circunflexo, por exemplo, o verbo ter no presente
da terceira pessoa do singular tem de têm, o mesmo verbo na terceira pessoa do plural. Da mesma forma que acontece
no francês, essa diferenciação só tem como objetivo evitar a ambiguidade na escrita.
16 Verbo Avoir (Ter) presente na terceira pessoa do singular.
17 As inflexões da voz.
18É importante salientar que, na tradução do Ensaio que estamos utilizando ao longo deste trabalho, a saber, a tradução
presenta na Coleção Os Pensadores da Abril Cultura de 1978, identificamos pequenos erros de tradução que podem
atrapalhar a interpretação da obra. Essa passagem, na tradução dos Pensadores de 1978, se encontra assim: “para
emocionar um jovem coração, para repelir um agressor injusto, a natureza impõe sinais, gritos e queixumes”
(ROUSSEAU, 1978, p. 164, grifo nosso) enquanto que em francês encontramos a mesma passagem da seguinte forma:
“mais pour émouvoir un jeune cœur, pour repousser un agresseur injuste, la nature dicte des accents, des cris, des
plaintes” (ROUSSEAU, 1830, p. 333, grifo nosso). Nessa passagem, a palavra em francês accents foi traduzida por sinais.
Essa tradução vai contra a ideia que Rousseau parece buscar exprimir. Apesar dos sinais serem igualmente naturais em
comparação com a linguagem da voz e, apesar da linguagem por meios de sinais ser até mesmo mais fácil, por depender
de menos convenções, Rousseau se refere, nessa passagem, sobre as maneiras pelas quais podemos emocionar um jovem
coração ou repelir um agressor injusto, ou seja, o autor está falando sobre as paixões, estas que excitam os acentos da
voz. Sendo assim, a tradução da palavra accents por sinais pode trazer embaraços interpretativos os quais temos a
intenção de esclarecer aqui.
19É interessante observar que a palavra gestos, aqui, vem da tradução da palavra em francês gestes, diferentemente do
que acontece na outra passagem, podemos observar claramente a distinção colocada entre gestes e accents (gestos e
acentos). Nessa passagem o autor tem a real intenção de falar sobre os gestos, o que poderíamos também interpretar
como linguagem de sinais. Observemos a passagem: “Les passions ont leurs gestes, mais elles ont aussi leurs accents…”
(ROUSSEAU, 1830, p. 330).
20 Nesse caso, mais acertadamente, a palavras accents foi traduzida por inflexões. Porém, mesmo que acento e inflexão
podem ter, aqui, um mesmo significado, gostaríamos de evidenciar ainda mais a importância central que o Acento ocupa
dentro do Ensaio. Assim, optamos por manter a palavra acento no lugar de inflexões, algo que é totalmente permitido pela
passagem em francês: “Les passions ont leurs gestes, mais elles ont aussi leurs accens, et ces accens qui nous font
tressaillir, ces accens auxquels on ne peut dérober son organe, pénètrent par lui jusqu'au fond du cœur, y portent malgré
nous les mouvemens qui les arrachent, et nous font sentir ce que nous entendons” (ROUSSEAU, 1830, p. 330).
21“Rousseau a fait confusion entre l'accent oratoire et l'accent proprement dit, en écrivant: Se piquer de n'avoir point
d'accent, c'est se piquer d'ôter aux phrases leur énergie”. Dictionnaire de la langue française.
22“En grandissant, les garçons devroient se corriger de ce défaut dans les collèges, et les filles dans les couvents; en effet,
les uns et les autres parlent en général plus distinctement que ceux qui ont été toujours élevés dans la maison paternelle.
Mais ce qui les empêche d'acquérir jamais une prononciation aussi nette que celle des paysans, c'est la nécessité
d'apprendre par coeur beaucoup de choses, et de réciter tout haut ce qu'ils ont appris; car, en étudiant, ils s'habituent à
barbouiller, à prononcer négligemment et mal: en récitant, c'est pis encore; ils recherchent leurs mots avec efforts, ils
traînent et allongent leurs syllabes: il n'est pas possible que, quand la mémoire vacille, la langue ne balbutie aussi. Ainsi
se contractent ou se conservent les vices de la prononciation. On verra ci-après que mon Emile n'aura pas ceux-là, ou du
moins qu'il ne les aura pas contractés par les mêmes causes.
Je conviens que le peuple et les villageois tombent dans une autre extrémité, qu'ils parlent presque toujours plus haut
qu'il ne faut, qu'en prononçant trop exactement ils ont les articulations fortes et rudes, qu'ils ont trop d'accent, qu'ils
choisissent mal leurs termes, etc.
Mais, premièrement, cette extrémité me paroît beaucoup moins vicieuse que l'autre, attendu que la première loi du
discours étant de se faire entendre, la plus grande faute qu'on puisse faire est de parler sans être entendu. Se piquer de
n'avoir point d'accent, c'est se piquer d'ôter aux phrases leur grâce et leur énergie. L'accent est l'ame du discours,
il lui donne le sentiment et la vérité. L'accent ment moins que la parole; c'est peut-être pour cela que les gens bien élevés
le craignent tant. C'est de l'usage de tout dire sur le même ton qu'est venu celui de persifler les gens sans qu'ils le sentent.
A l'accent proscrit succèdent des manières de prononcer ridicules, affectées, et sujettes à la mode, telles qu'on les
remarque surtout dans les jeunes gens de la cour. Cette affectation de parole et de maintien est ce qui rend généralement
l'abord du François repoussant et désagréable aux autres nations. Au lieu de mettre de l'accent dans son parler, il y met
de l'air. Ce n'est pas le moyen de prévenir en sa faveur”. (ROUSSEAU, 1830-1831, p. 73-74, grifos nossos).
tradução que podem mudar o tom da tradução deve ser extremamente caute-
sentença. Dessa forma, identificamos que losa. É necessário compreender em qual
accent foi traduzido, por vezes, por sentido a palavra está sendo empregada
inflexão e que seu plural, accents, poderia para, então, encontrarmos a tradução mais
ser traduzido por acentuação dependendo adequada para determinada situação. Por
da situação. Houve mesmo alguns mo- isso, é preciso emergimos nos variados
mentos em que, acarretando em alguns empregos das palavras utilizados no
embaraçosos interpretativos, accent havia vocabulário do autor, bem como
sido traduzido por sinais23. Devido à compreender as significações vigentes em
grande importância que esse conceito seu século, para então compreendermos
possui dentro do Ensaio — bem como em qual é a verdadeira acepção que o autor
toda a obra de Rousseau — a escolha de busca empregar ao longo de sua obra.
Referências
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Disponível em: <https://artfl-project.uchicago.edu/content/dictionnaires-dautrefois>.
ACCENT. In: Le Dictionnaire de l’Académie française. 1694. Disponível em: <https://artfl -
project.uchicago.edu/content/dictionnaires-dautrefois>.
ACCENT. In: DU MARSAIS, César Chesneau. Encyclopédie. Disponível em: <https://artfls
rv03.uchicago.edu/philologic4/encyclopedie1117/>.
BANDERA, Arco Júnior, Mauro Dela. A palavra cantada ou a concepção de linguagem de Jean-Jacques
Rousseau. Dissertação (Mestrado em Filosofia). São Paulo, FFLCH-USP Maria das Graças de Souza
(Orient.). 2012.
ROUSSEAU, Jean-Jacques. Essai sur l’origine des langues. In: Oeuvres complètes de Rousseau, Paris:
Armand-Aubrée, Tome II, p. 325-385, 1830.
ROUSSEAU, Jean-Jacques. Émilie ou de L’éducation. In: Oeuvres complètes de Rousseau, Paris:
Armand-Aubrée, Tome III et IV, 1830-1831.
ROUSSEAU, Jean-Jacques. Do contrato social; Ensaio sobre a origem das línguas; Discurso sobre a
origem e os fundamentos da desigualdade entre os homens; Discurso sobre as ciências e as artes.
Tradução de Lourdes Santos Machado. Introduções e notas Paul Arbouse-Bastide e Lourival Gomes
Machado. São Paulo: Abril cultural (Coleção Os Pensadores), 1978.
ROUSSEAU, Jean-Jacques. Emílio ou Da Educação. Tradução de Sérgio Milliet. Rio de Janeiro: Editora
Bertrand Brasil S.A., 1992.
ROUSSEAU, Jean-Jacques. O dicionário de música de Jean-Jacques Rousseau. introdução, tradução
parcial e notas de Fábio Yasoshima. São Paulo, FFLCH, 2012. Dissertação (Mestrado em Filosofia).
Luiz Fernando Batista Franklin de Matos (Orient.).
23A título de curiosidade, é interessante destacar que nas entradas dos dicionários listados percebemos que,
além do significado usual de acento ortográfico e dos outros sentidos que destacamos anteriormente, accent
pode ser muitas vezes facilmente traduzido por sotaque. Porém essa palavra não aparece nas traduções,
mesmo sendo uma tradução possível em algumas situações.
Abstract: The purpose of this article is to addres the concept of recognition in thought from contemporary
philosopher Axel Honneth. Therefore, this study uses as a work the main book “Fight for Recognition: The
Moral Grammar of Social Conflict”. In it, the author presents recognition as an essential factor for the
construction of social conflicts. Moreover, the thinker employs the concepts identified in the philosophy of
young Hegel and bases them on the empirical tests of George Herbert Mead and Donald Winnicott. The
research is summarized in two approaches: the young Hegel of Jena and the importance of Mead and
Winnicott in the reconstruction of the theory of recognition.
1 Este artigo é resultado das discussões iniciadas na construção da monografia: Os conflitos sociais
contemporâneos segundo a teoria crítica de Axel Honneth (2019) defendida no Centro de Humanidades da
Universidade Estadual do Ceará, sob orientação do Prof. Dr. José Aldo Camurça de Araújo Neto.
2Graduado em Filosofia Licenciatura pela Universidade Estadual do Ceará. Monitor do programa “Aprender
Mais” da Secretária Municipal de Educação de Fortaleza, Ceará. E-mail: claudioapc.sousa411@gmail.com.
3 Segundo Honneth: “[…] os escritos de Maquiavel preparam a concepção segundo a qual os sujeitos
individuais se contrapõem numa concorrência permanente de interesses [...] na obra de Thomas Hobbes, ela
se torna a base de uma teoria do contrato que fundamenta a soberania do Estado” (HONNETH, 2003, p. 31).
eticidade absoluta é esse processo confli- pelo filósofo alemão do séc. XIX como o
tuoso de reconhecer-se e ao mesmo tempo rompimento momentâneo da eticidade, da
de ser reconhecido. Honneth afirma o totalidade. Quando uma parte é lesionada,
seguinte: em sua honra ou em sua propriedade, isso
implica igualmente a lesão do todo. Ele
O conflito prático entre os sujeitos pode
ser entendido como um momento do representa o fim da totalidade orgânica.
movimento ético no interior do contexto Com esse conceito de crime o pensador
social da vida; desse modo, o conceito busca determinar uma explicação geral da
recriado de social inclui desde o início não luta por reconhecimento.
somente um domínio de tensões moral,
mas abrange ainda um médium social Enfim, no terceiro momento, a
através do qual elas são decididas de abordagem é acerca do momento em que a
maneira conflituosa (HONNETH, 2003, p.
vida ética absoluta esta realizada na
48).
constituição de um povo, na identidade
A violação dessas relações éticas de universal e do particular, isto é, é a
reconhecimento através de diversas subsunção absoluta do que é particular no
formas de luta, representada em um universal, ou no subjetivo. Com a
capítulo intermediário sob o título de pretensão de abordar o momento da
“crime”, conduz, segundo o pensador organização de um povo, Honneth aponta
contemporâneo, a um estado de integração que para Hegel a constituição de um povo
social, isto é, uma relação orgânica de pura em Estado faz com que a vida ética
eticidade. O filósofo identifica no escrito absoluta, segundo seu conceito, aniquile
hegeliano diversos passos para uma tudo o que é essencialmente relativo à vida
construção relativa à teoria da sociedade. ética natural: particularidade ou
Na primeira etapa, Hegel identifica uma subjetividade.
possibilidade de motivação capaz de
garantir uma socialização mais abrangente A destruição do todo ético ocasiona
do indivíduo que contribui para o o cumprimento da lei por meio da punição
surgimento de uma evolução moral da como forma de restabelecimento da
sociedade. liberdade. Portanto, o reconhecimento
deve ser compreendido como relações
Na segunda etapa, o filósofo alemão recíprocas (intersubjetivas) capaz de
aborda o crime como uma violação do constituir a base organizacional da
reconhecimento da eticidade natural, ou eticidade. Porém, no Sistema da vida ética,
seja, o indivíduo não é reconhecido em seu Hegel não dá continuidade à sua
todo, pois a origem de um crime é argumentação acerca da base que
atribuída ao fato de um reconhecimento constituía organização ética.
ter sido incompleto; “[…] nesse caso, o
motivo interno do criminoso é constituído Contudo, o conceito reaparece de
pela experiência de não ser reconhecido de forma sistemática vinculada à formação de
uma maneira satisfatória na etapa uma teoria da consciência na Filosofia do
estabelecida de reconhecimento mútuo”
(HONNTEH, 2003, p. 52-53). O crime é tido
Real6. Diferente de suas obras anteriores uma comunidade ética. Pois, essa relação
onde o processo do espírito era articulado apresenta na eticidade uma determinação
a partir de uma interpretação imediata da ideia de liberdade. Na forma
intersubjetiva. de uma relação constituída naturalmente.
A partir desse vínculo o indivíduo sai de
De acordo com a nova filosofia, o espírito é
aquele que tem a capacidade de sua subjetividade e insere-se como
autodiferenciação, que é capaz de membro, participando, assim, de um
exteriorizar-se e retornar a si, fazendo-se o conjunto de pessoas que possuem laços
outro de si mesmo num processo consanguíneos entre si que atua como uma
constante de reflexão e auto-reflexão. A
espécie de sentimento fraternal natural do
tarefa da filosofia seria, portanto, de
examinar gradualmente as etapas seio familiar.
reflexivas de sua constituição para então
Na esfera familiar, o amor repre-
compreender onde ele se diferencia
completamente – o final do processo – o senta o sentimento que proporciona uma
saber absoluto sobre si (RAVAGNANI, primeira forma de confirmação da
2009, p. 13). individualidade do sujeito, pois a
Ocorre aqui a utilização do individualidade dos sujeitos encontra suas
reconhecimento recíproco, desenvolvido confirmações primeiramente na
de modo introdutório no Sistema da vida experiência com o parceiro através do
ética, com o acréscimo do processo de experienciar-se a si mesmo como um
realização do espírito no interior da sujeito carente e desejante. A forma de
consciência humana. Na estrutura da obra confirmação do amor se dá através do
está exposta a distinção de três partes nascimento do filho. A unidade do amor é
essenciais de formação do espírito: a) a formação da criança representada por
Espírito subjetivo: representada na meio da união dos dois sujeitos. Desse
relação do indivíduo consigo próprio, o modo, Hegel compreende que a criança
espírito segundo seu conceito; b) Espírito representa a “corporificação” em seu mais
efetivo: onde as relações dos sujeitos entre elevado grau do amor entre o homem e a
si já se encontram institucionalizadas; e, mulher, pois nele, os parceiros intuem o
por último, c) Espírito absoluto: amor; a criança representa “sua unidade
compreendido como relações reflexivas consciente de si enquanto consciente de
dos sujeitos socializados com a totalidade si”. No entanto, a relação de
do mundo. reconhecimento do amor ainda não
representa um domínio do campo da
Interessa-nos aqui à questão do experiência por completo para a
espírito subjetivo, mais precisamente, constituição de uma pessoa de direito.
acerca da efetividade intersubjetiva pre-
sente na relação familiar, isto é, no movi- O jovem pensador, identificando
mento de formação como força motriz de que na relação do reconhecimento familiar
6Na Filosofia do Real ou Realphilosophie de1805/1806, o filósofo procurou evidenciar etapas pelas quais há
um desdobramento de novas formas de reconhecimento através de conceitos como espírito subjetivo e
espírito subjetivo.
Portanto, a partir dos trabalhos de nos escritos do filósofo alemão do séc. XIX
Winnicott, Honneth começa a desenvolver um potencial que, em meio as diferentes
o primeiro passo no processo de formas de compreender a socialização
construção de uma relação intersubjetiva, humana em sua estrutura, não se limita ao
buscando a fundamentação da atualização mero utilitarismo, ou até mesmo,
dos conceitos hegeliano de reconhecimen- formalismo. Pois foi apresentado nos
to. Para tal empreendimento, o autor escritos de Hegel à busca para superar
insere nos conceitos de Hegel os testes essas formas atomísticas dominante nos
empíricos de Mead e Winnicott. A partir debates de sua época. A proposta
dos conceitos do pensador, Honneth hegeliana era conceber uma sociedade que
identifica três processos fundamentais correspondesse a uma totalidade ética.
para alcançar o reconhecimento, sendo Dito de outro modo, a pretensão do jovem
eles: o amor, o direito e a solidariedade. filósofo era representar uma relação social
constituída segundo o reconhecimento da
individualidade de cada sujeito.
Considerações finais
Essa sociedade que constitui um
Na contemporaneidade, a busca sujeito individual pode corresponder a
para compreender o processo de um bem- uma interpretação no sentido de
estar social tem as suas mais variadas considerá-lo como atuante apenas a favor
pesquisas desenvolvidas. Entre elas tem se de seu egoísmo. Logo, Honneth utiliza para
destacado as pesquisas do Filósofo Axel solucionar essa problemática uma língua-
Honneth. O pensador utiliza em sua gem pós-tradicional, isto é, utiliza dos
abordagem uma reatualização do conceito critérios da psicologia social como aporte
de reconhecimento. Essa abordagem do teórico. O indivíduo, portanto, passa a ser
reconhecimento honnethiano foi desen- concebido como um sujeito que busca a
volvido neste artigo levando em conside- sua individualidade ao se identificar com
ração a importância desse conceito nos seus parceiros de interação de maneira
debates hodiernos sobre a identidade. intersubjetiva. Visto que o sujeito no seu
processo de individuali-zação não pode
Sendo assim, apresentamos os
excluir os parceiros de interação, mesmo
pensadores que forneceram uma base
em conflitos.
necessária à fundamentação da reatuali-
zação do conceito de reconhecimento; e Desse modo, a inclusão da psico-
também descrevemos os momentos de logia social na ideia hegeliana proporci-
reconhecimento que foram identificados onou a base necessária para fundamentar
nos escritos do jovem Hegel, nos escritos uma teoria social de teor normativo capaz
da psicologia social de Mead e nos testes de esclarecer, reportando-se as exigências
empíricos de Winnicott. inscritas de forma normativa na relação
recíproca de reconhecimento entre os
No primeiro momento, constata-
indivíduos, os processos de mudanças
mos que a proposta do filósofo é identificar
sociais.
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1 Mestre e Doutorando em Filosofia pela UFSC. Graduado em Filosofia y Teologia e Pós-Graduado em História
da Filosofia Antiga pela Universidade Católica del Maule (Chile). E-mail: carlo.zarallo@hotmail.com.
2 "Al absorber al individuo en la carrera por el nivel de vida, al legitimar la búsqueda de la realización
personal, al acosarlo de imágenes, de informaciones, de cultura, la sociedad del bienestar ha generado una
atomización o una desocialización radical [...] la era del consumo no sólo descalificó la ética protestante sino
que liquidó el valor y existencia de las costumbres y tradiciones, produjo una cultura nacional y de hecho
internacional en base a la solicitación de necesidades e informaciones, arrancó al individuo de su tierra natal
[...] el universo de los objetos, de la publicidad, de los mass media, la vida cotidiana y el individuo ya no tienen
un peso propio, han sido incorporados al proceso de la moda y de la obsolescencia acelerada: la realización
definitiva del individuo coincide con su desubstancialización, con la emergencia de individuos aislados y
vacilantes, vacíos y reciclables ante la continua variación de los modelos". (LIPOVETSKY, 2000, p.107).
3 Filósofo italiano que vinculó los tres legados básicos de la filosofía contemporánea: El nihilismo
nietzscheano, la crítica de Heidegger a la metafísica y las herramientas conceptuales de la hermenéutica.
4 Vattimo tomó de los postulados filosóficos de Nietzsche: cuando este anuncia la muerte de Dios, ya
anunciaba, según el italiano, el fin de la metafísica, por lo tanto, el fin del pensamiento fuerte.
Por lo mismo, creemos que se hace necesario destruir todos los discursos
estetizantes que se instalan precisamente para legitimar colonialidades6 internas que se
invisibilizan en cada espacio convirtiéndonos en consumidores manipulados por la
industria, ya sea por una foto, una canción, un millón de favelas pintadas con colores
llamativos, etc.
5 La traducción es nuestra.
6 Para entender lo que es la colonialidad interna debemos primero comprender lo que es el colonialismo. ver
MIGNOLO (2005). América Latina y África hoy son unos procesos finalizados. Con todo, las mismas formas
de dominación llevadas a cabo por los colonizadores todavía se mantienen, ahora desde realidad internas
subjetivas. Ver FANON (2011).
7 Vattimo, G. La sociedad transparente. Paidós. Barcelona. 1990
apenas cinco agencias8 que dominan las noticas en el mundo y una en Brasil, son ellas que
deciden las pautas en internet y las líneas culturales y publicitarias en todo el mundo, por
lo tanto, hablar de la inserción de minorías dentro de las mass media, sería desconocer todo
tipo de pensamiento hegemónico implantado por el centro.
II
Si no creemos en que la renovación del arte pueda venir de Europa o EEUU, tiene
que ver con el hecho de que las expresiones y las condicionantes del proyecto de
modernidad y contemporaneidad se fabrican allá y mientras son grandes núcleos emisores
de ideas y generadores de corrientes, el centro impone los padrones y desde ahí, establece
la repetición como regla. El centro como tal tiene la tendencia a exagerar sus pequeños
sucesos. Más la potencia que podrían tener estos sucesos naufraga en su complacencia, en
su retórica.
8 Dos norte americanas (destaca Associates Press), una francesa (France Press), una alemana (Reuters) y una
española (Efe).
9 La colonialidad es constitutiva de la modernidad: “la gran mentira [...] es hacer creer (o creer) que la
Hecha clá sica, desde la inventada Antigü edad (todas las culturas fueron preparatorias y tuvieron
como culminació n Grecia y Roma en un movimiento del oriente al occidente), la llamada Edad Media
(como período consecutivo mundial, con el hecho del aislamiento de Europa detrá s del “muro” que
construyó el arte islá mi- co, y al final el Imperio Otomano, que se cultivaba desde el occidente del
Atlá ntico con Marruecos hasta el oriente del Pacífico en la isla de Minda- nao en Filipinas) y, por
ú ltimo, la Modernidad (que se inicia con el 1492, simultá neamente con el capitalismo, la colonialidad,
el racismo aplicado mundialmente y el eurocentrismo como ontología e ideología dominante)
(DUSSEL, 2018, p. 25-26)
Tawantinsuyu andino hasta la China de los Ming es objeto de un juicio esteticida, una que
deja en la exterioridad del no-ser, en la exclusió n de considerarlas como obras esté ticas de
los pueblos de todas las culturas coloniales.
III
cultura y la transformación del arte en mero entretenimiento. Estos temas pueden haber sido
asimilados en parte por esta contemporánea de la moda, pero, sobre todo, como citas históricas
cristalizadas, en una perspectiva estética, vaciadas como estrategias para un enfrentamiento real con
los problemas del presente. (SYDOW, p. 24, 2010).
El presente, este tiempo que en gran parte se conjuga según nosotros de la siguiente
manera: Descontextualización, fragmentación de la conciencia, reflexión rápida y
superficial, un accionar permanente para despertenecerse , agotamiento de la cultura y del
lenguaje, desinterés por aquello que no sea yo ni hoy, todo eso – creemos - hace parte de
nuestro programa de vida contemporánea - que superando la colonización, aún mantiene
un discurso colonial - una concepción política de existencia que encuentra la misma
expresión en el rosto de la filosofía y las artes y porqué no decir, en el pensamiento en su
totalidad. Ahora, ¿cómo será posible combatir este programa aceptando y practicando los
valores que se propone, teniendo en cuenta nuestra realidad periférica latinoaméricana?10.
10 Es necesario pensar lo latino-americano, no tanto de un lugar geográfico, sino que desde un espacio
epistemológico. El pensamiento decolonial, del cual se toman ciertos enfoques tiene su raíz en la experiencia
latinoamericana, mas no se agota allí, siempre tiene un enriquecimiento global (Asia, África, norte América).
un deseo comunitario se hacen nuevas formas de vida y nuevos mundos posibles, en donde
conviven lo individual con lo colectivo 11
IV
El abismo nos expone a una desesperación del ser, del mismo modo que se expone
una herida abierta. Porque no hay ninguna sola herida, hoy en día, que no esté abierta y
por todas sangramos. Por eso, el poeta que se encamina al abismo, el filósofo y el artista
que es capaz de renacer en cada herida, de escavar en la sangre hasta llegar a la vida,
sabiendo que la vida, la verdadera vida, la que merece el nombre de tal es siempre y solo
pasión de vivir.
Una cultura por tanto que revalore su funció n de proximidad, de contacto, siempre
tendrá como horizonte sensible y estético la mesura, el tacto, la organicidad de la
experiencia comunitaria y de su vinculació n con la naturaleza, contraponié ndose a una
cultura sostenida ú nicamente por la hipertrofia de sus instituciones, por el monopolio del
poder/violencia, por los excesos de su normativa discursiva (el orden del discurso) y por
el alcance de sus fuerzas reificadoras. U marco aesthesico desde el sur globlal tendrá como
rasgo distintivo s su nexo indisoluble con una é tica y política. Si la idea de proximidad
comporta una vinculació n directa con el pró jimo y entre las diferentes culturas entre sí las
heridas y abismos que se ven en cada uno de los rincones de nuestra cultura, de las cuales
habla el poeta o el artista que resiste de manera simbólica a los discursos estetizantes en
la calle12 o el dramaturgo13 que lucha y resiste con su teatro y tanto ejemplo podemos
11Ver Los movimientos en la era progresista. Descolonizar la Rebeldía. Rául Zibechi (2014). Varios cambios se
están haciendo a nivel organizacional, dejando de lado la máquina capitalista y colocando en frente la
igualdad y auto-sustentabilidad y sobre todo la resistencia contra el capitalismo y sus representaciones
(políticas, culturales y económicas)
12Ver Entre la clandestinidad y las altas esferas: Street Art. Estéticas de la ruptura en el espacio urbano
moderno. Francisco de Parres Gómez
13 “Nuestro teatro nace de la decepción. Nos sentimos decepcionados ante el mundo, incapaz de ofrecer más
que ruido y vacío. Nos sentimos decepcionados ante el arte, que ha olvidado su impulso transgresor. Y ante
el artista, que ha perdido la fe en el oficio. Nos sentimos decepcionados, sobre todo, ante el teatro, que ha
mancillado su misterio. Nos sentimos decepcionados, solos e indefensos. Por eso hemos decidido juntarnos,
para protegernos y actuar en el primer espacio que habita nuestra decepción: nuestra propia casa”. Cortés, R
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VATTIMO, Gianne. La sociedad transparente. Barcelona: Paidos, 1990.
Em meio a ameaças, na arena política, aos direitos das pessoas com sofrimento
mental grave e persistente, conquistados pela Luta Antimanicomial, é urgente questionar
e reinventar caminhos coletivos contra a fabricação, de longa data, da amarra entre loucura
e periculosidade. Vinculação atualizada, de formas mais ou menos explícitas, como no filme
Coringa, lançado em 2019.
1 Graduando em Psicologia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro. Bolsista PROFAEX do Projeto de
Extensão "Psicologia e Justiça: Construção de outros processos". Iniciação científica em Produção de
Subjetividade e Psicoterapias (UFRJ). Estagiário no I Juizado de Violência Doméstica e Familiar contra a
Mulher (JVDFM), no Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro. E-mail: rezende.alencar@gmail.com.
2 Graduando em Psicologia na Universidade Federal do Rio de Janeiro. Estagiário em pesquisa do "Núcleo
Trabalho Vivo: pesquisas e intervenções em arte, trabalho e ações coletivas" do Programa de Pós-graduação
em Psicologia do Instituto de Psicologia a UFRJ. E-mail: joaovictor.mgoncalves@gmail.com.
Essa não é a existência de Arthur Fleck, e nessa disputa por instituir um modo de
organizar a vida e a cidade, o que o protagonista encontra como possíveis de si mesmo está
circunscrito em condições concretas que são típicas da marginalização urbana
Arthur Fleck é eclipsado pela força desses condicionantes e uma nova possibilidade
de ser emerge. Nos fragmentos entre as dimensões pública (articulada com uma
universalidade aparente) e privada (singular) de si mesmo, Gotham se estabelece como
elemento fundamental para operar essa transformação dialética. Ao lidar com os outros,
os objetos e as situações geradas pela experiência citadina em Gotham, Arthur reorganiza
sua existência – dialetizando o que ele é e o que ele pode ser, o que o mundo faz dele e o
que ele faz disso. Essa relação com a concretude e materialidade da cidade dá o tom das
transformações existenciais vividas pelo personagem e das relações nela estabelecidas.
Nesses ambientes hostis, outras ações marcaram Arth, não como arranhões e
feridas na pele, mas nem por isso, menos perturbadoras. O menino também sentia o peso
da missão endereçada por Penny: “trazer alegria e riso a esse mundo frio e sombrio”,
discurso reiterado pelo personagem ao longo da trama, em seus ambientes de trabalho,
relacionamento amoroso e imaginações acerca da participação em um talk-show.
Vale ratificar que a “escolha” mencionada não se refere a uma racionalidade, como
diria Sartre (2014), mas faz alusão ao conjunto de respostas que o sujeito apresenta
(reproduzir, ratificar, discordar, enfrentar, etc.) frente às experiências das primeiras
relações sociais (em família, na escola, entre outros), inseridas em conjuntos maiores
(relações sociais civilizatórias, patriarcais, classistas, manicomiais, etc.). Para além da
vontade e da lógica, o termo “escolha” sublinha a liberdade ontológica: não existe nenhuma
natureza humana, biológica ou moral, que definiria de antemão como cada sujeito iria
sentir, pensar, agir e ser em meio a sua situação originária
Visto que cada sujeito não possui um projeto, como planejamento lógico prévia e
milimetricamente calculado pelo córtex pré-frontal, mas é pro-jétil, como maneira de se
lançar para e no mundo, é preciso sublinhar que todo projeto de ser comporta
contradições. Cotidianamente, os sujeitos são estimulados por milhares de fatores
distintos, atravessados por diversos questionamentos, dificuldades e possibilidades de
recursos e alternativas. Dessa maneira, não é nenhuma surpresa que a projeção de cada
ser singular-universal não se desenhe em uma reta contínua.
O chefe de Arthur, Murphy (Berry O’Donell), não acredita que o “maluco”, em suas
palavras, teve sua placa publicitária roubada e, sem paciência, cobra o valor do produto.
Nessa e em outras disputas de versões, Arth sempre é lido, pela lente manicomial, como
mentiroso e irresponsável. O que é infelizmente esperado, já que a leitura estereotipada
engessa a figura do louco ou pela periculosidade ou pela alienação, sendo esses polos ativo
– criminoso perigoso – e passivo – vítima impotente – conectados pela ideia de que a
“loucura” esgotaria qualquer compreensão da pessoa sobre seus comportamentos, bem
como os motores e efeitos das suas ações.
O corpo subalternizado que não aguenta se dobrar a condições cada vez mais
precarizadas de serviços, não consegue vender sua força de trabalho, ou simplesmente não
destina muitos esforços a avançar no tabuleiro do “jogo da vida”, contrariando posturas,
falas e aparências prescritas, torna-se alvo da manicomialização, ilustrada pelas risadas e
depreciações que os colegas de trabalho de Arth o endereçavam. Os olhos fundos, cabelos
sebosos e extrema magreza de Arthur são heranças de sua infância, em que a expectativa
de um pai amoroso era contrastada pela concretude da crueldade dos adultos. Malnutrido
e sujo, o personagem se aproxima dos ratos reportados pelos noticiários que infestam a
cidade de Gotham.
Nesse quadro, Arth é corpo que, desde a infância, é violentado ou pelos castigos
físicos ou pela indiferença e repulsa de sua presença nos espaços. Sentindo diversas dores,
o personagem declara seu desejo por mais remédios que, no horizonte, anestesiariam, para
ele, o peso de tais violações e violências. No limite, tornar-se um corpo completamente
esvaziado, inclusive de experimentações satisfatórias, é o preço que Arthur estaria
disposto a enfrentar para não sentir mais o peso da desumanização provocada pelos
cidadãos de Gotham.
Capturados pelo cartesianismo que fantasia com a separação entre psíquico (res
cogita) e corporal (res extensa), a população da cidade encara como natural a negação da
corporeidade de Arthur – o nível mais elementar do corpo enquanto experiência de ser no
mundo -, uma vez que, em função de sua loucura, possuiria menos substância racional. Isto
ressoa com a tipificação e enclausuramento do louco na idade clássica, segundo Foucault
(2019), que não respondia a concepções racionais científicas médicas, mas a uma
racionalidade social, ética. Nesse período, loucos, sodomitas, bruxas e libertinos eram
percebidos como aparentados e unificados pela marca da desrazão moral.
Esses risos são interessantes para explorar a existência dos distintos níveis da
experiência e consciência. Enquanto suava no palco, engasgava e levava a mão à garganta
para tentar parar as risadas, Arth era consciência pré-reflexiva de seus trejeitos e barulhos.
Já durante as cenas em que oferece um cartão, que descreve o riso como doença
neurológica, para pessoas assustadas com seu comportamento, Arthur Fleck se projeta
para o mundo como aquele que sabe que seu riso é patológico. De forma introdutória,
podemos ainda classificar essa reflexão sobre si como impura, na medida em que cristaliza
uma essência, define certezas absolutas e não abre espaços para dúvidas e possibilidades,
para outra temporalização.
O que vislumbramos como possibilidade de ser (no futuro), está apoiado no que foi
possível ser (no passado). Isso nos altera, no presente. Essas dimensões estão intimamente
implicadas. A temporalidade psíquica, que consolida uma imagem essencialista da
consciência reflexiva (“eu sou assim”), é um desdobramento da temporalidade originária e
ontológica, relacionada à dimensão pré-reflexiva (“eu fui assim, mas posso ser diferente”).
A graça da alienação
A loucura deixa de ser erro da razão, como na época clássica, para ser, nos termos
do discurso médico-filosófico do século XVIII, alienação: perda da natureza, afastamento
do indivíduo de sua própria natureza, alterando sua sensibilidade e imaginação em função
de sua relação com a sociedade. A separação da massa antes unificada pela desrazão entre
pobres “válidos” – que podiam trabalhar – e a incapacidade produtiva dos loucos, além da
dificuldade de atendimento domiciliar às famílias, implicou na internação dos loucos em
espaços exclusivos e específicos onde não se buscava esquadrinhar sua verdadeira
essência, mas segregá-lo como perigoso (FOUCAULT, 2019). Sob a reafirmação do terreno
alienista, a graça do contato entre cinema e público se desloca da transformação subjetiva,
pelo contato sensível com outras narrativas, e questionamento de perspectivas pessoais,
para a reiteração da fantasia que expectadores possuíam de antemão: “Coringa é louco
porque sofreu muitos traumas na vida”.
Esse ato de “má-fé” (CASTRO E EHRLICH, 2016), como tentativa de justificativa ou,
pelo menos, suavização das irresponsabilidades e violências praticadas pelo
“traumatizado” é desonesta por afirmar uma ou outra situação do passado – especialmente
da infância – como determinantes a priori de um futuro unívoco. Tal desconsideração de
que todo sujeito é projeto que, a cada momento, refaz seu lançamento no mundo, não
começa e se encerra em “Coringa”. A desvalorização de produções artísticas pelos próprios
loucos em benefício dos filmes de suspense e ação sobre eles, assim como as teorizações e
diagnósticos da psiquiatria e psicologia que, frequentemente, pesam mais do que a
experiência sensível e a história contada pelos sujeitos, são desdobramentos do
silenciamento da experiência trágica da loucura, do Renascimento à Modernidade,
investigada por Foucault (2019) em “História da Loucura”.
Essa potência trágica da loucura, nos séculos XV e XVI, era expressada na leitura do
louco como o portador de um saber, um certo visionário, ilustrado em “O Rei Lear” de
Shakespeare, e figura errante que anuncia verdades secretas, cifradas, mas fundamentadas
na realidade, na pintura “O Navio dos Loucos” de Hieronymus Bosch. De personagem que
anuncia o fim do mundo, fala da felicidade e do julgamento supremo, o louco passou a ser
medido pela desrazão, alienação e doença mental, respectivamente. No cenário de
patologização da loucura, em função de condições econômicas, políticas e assistenciais, a
noção de alienismo emerge pela ideia de que a loucura não seria total, possibilitando o
terapeuta se apoiar no que haveria de racional no louco para “trazê-lo à razão”.
Na medida em que “o sujeito é, para Foucault, efeito das práticas discursivas”, como
lembra Sueli Carneiro (2005), o desafio das lutas democráticas e antimanicomiais é
reforçar os caminhos existentes e inventar novas rotas para delimitar o “eu” do “outro”
sem incorrer na tendência ocidental, sublinhada por Nietzsche (2008), de inferiorizar o
segundo em detrimento do primeiro. É preciso afirmar, na esteira de Deleuze (1976), a
positividade da fronteira porosa entre “eu” e “outro”, tomando a diferença, não como
hierarquia de opressões, mas como singularidade, subjetividade.
“A VIDA É ASSIM”
A partir da situação singular de Arthur – composta, por seus próximos, seu lugar,
seus arredores e seu passado – o personagem forja uma exis psíquica, isto é, definições
estabilizadas sobre si, uma identidade que, no presente, infesta tanto o passado quanto o
futuro (CASTRO, EHRLICH, 2016). O que ocorre na sequência de cenas orientadas por uma
totalização – sinônimo de retomadas da escolha original em novas situações -, como se
percebe na germinação do romance entre Arth e sua vizinha (Zazie Beetz). Essa experiência
psicótica não é menos verdadeira do que outras cenas em que as apreensões das
personagens era mais ou menos compartilhada e comentada.
Antes mesmo de ser demitido por portar uma arma em sua função de palhaço em
um hospital infantil, Arthur havia tentado comprar um revólver. O contato com o objeto
entregue a Arth por um colega de trabalho, para que ele se protegesse de futuros roubos,
nitidamente reverbera em sua corporeidade, intencionalidade e temporalidade. Sozinho
na sala, durante a madrugada, Arthur segura a arma e dança para uma dama que não está
ali. Contraindo seus músculos esguios, expira virilidade sendo aquele que controla uma
arma, até que um disparo não planejado o assusta. Essa experimentação de poder por
manipular algo perigoso que, até então, era negado à figura perigosa do louco, constitui
fator importante para outros posicionamentos frente a novas violências.
Enquanto sua mãe permanecia internada no hospital, Arthur parte, então, a procura
de Thomas Wayne, homem correto que, segundo ela, melhoraria a situação. Todavia, no
encontro, a figura esnobe de Wayne apresenta outra versão da história, compartilhando
não apenas que não seria o pai de Arth, mas que o menino havia sido adotado por Penny
durante o trabalho da mesma em sua mansão. Sendo a guarda da criança retirada da
paciente psiquiátrica após o consenso policial de que o ambiente e a negligência da postura
materna ameaçavam seu desenvolvimento e bem-estar. Ao que Arthur responde negando
veementemente. “Eu não entendo porque todo mundo é tão estranho. Minha intenção não
é ruim. Eu não quero tirar nada de você, quem sabe um pouco de carinho, talvez até um
abraço, pai” desembucha o personagem até ser interrompido por um soco do bilionário.
tratado como lixo” pela cidade inteira. E mais: nunca tendo sua vida reconhecida como
suficientemente significativa, o palhaço considera a existência, na dimensão singular e
universal, como uma piada de mau gosto. A esse projeto idealizado por um anjo torto, como
diria Drummond, para Coringa, só resta achar graça, saltitar em meio ao caos das
mobilizações e depredações populares contra o sistema, abrir os braços em meio a
palhaços mascarados e sorrir com a cidade, literalmente, pegando fogo.
A direção muda, afinal, não existe intencionalidade que não seja corpo: sua postura,
sua dança, seus gestos são ressignificados em sua experiência de vida. Podem ser
mostrados, exibidos publicamente. O que era abjeto até então passa a ser assumido como
símbolo de potência de vida, para viver uma vida diferente. A forma de organização coletiva
também se transforma. A exploração financeira, a decadência da qualidade de vida, os
privilégios, etc., deixam de ser naturalizados e considerados como realidade em si, e
passam a ser questionados. A população se revolta. Arthur se revolta. Arthur agora é
Coringa, assim como a cidade, que era bastante Nova York, é apenas Gotham agora. E esses
novos possíveis são exercidos com diligência.
segundo Foucault (2019), desde a modernidade – nas obras de Van Gogh, Gérard de Nerval,
Artaud e Nietzsche, por exemplo – e contribui para complicar narrativas tanto sobre corpos
em isolamento social permanente, quanto sobre os circulantes. É basilar, assim, que o
engajamento em movimentos de Luta Antimanicomial esteja apoiado no entendimento que
a lógica manicomial vigia, invade, marginaliza, pune e encarcera qualquer e todas as
subjetividades que desviam da régua euro-americana, branca, masculina,
cisheteronormativa e abastada
Referências
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BUTLER, Judith. Quadros de Guerra: quando a vida é passível de luto? 1. ed. Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira, 2015.
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2005. Tese (Doutorado em Educação). Universidade de São Paulo, São Paulo, 2005.
CASTRO, Fernando Gastal de; EHRLICH, Irene Fabrícia. Introdução à Psicanálise Existencial:
Existencialismo, Fenomenologia e Projeto de Ser. 1. ed. Curitiba: Juruá Editora, 2016.
FOUCAULT, Michel. História da Loucura. 11. ed. São Paulo: Perspectiva, 2019.
MINAYO, Maria Cecília de Souza. Conceitos, teorias e tipologias de violência: a violência faz
mal à saúde individual e coletiva. In: NJAINE, Kathie.; ASSIS, Njaine; Simone Gonçalves de;
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2007.
NIETZSCHE, Friedrich. Sobre verdade e mentira: no sentido extramoral. São Paulo: Hedra,
2008.
SCHWARCZ, Lilia. Sobre o autoritarismo brasileiro. São Paulo: Companhia das Letras, 2019.
YASUI, Silvio; LUZIO, Cristina Amélia; AMARANTE, Paulo. Atenção psicossocial e atenção
básica: a vida como ela é no território. Revista Polis e Psique, Porto Alegre, v. 8, n. 1, p. 173-
190, fev. 2018. Disponível em: <https://seer.ufrgs.br/PolisePsique/article/view/ 80426>.
Acesso em 15 de novembro de 2020.
Este breve ensaio seria publicado no corpo da tradução que fiz com Felipe Augusto
Romão do texto “Como é possível a Ontologia Crítica?”, escrito por Nicolai Hartmann em
1923. No entanto, o texto traduzido é consideravelmente grande e já bastante complexo,
como pode ser conferido nesta mesma edição da Revista Anãnsi. Além disso, o texto
traduzido é um dos textos de juventude, por assim dizer, visto que sua carreira como
filósofo independente estava praticamente ainda no começo. De 1923 até 1950, data de seu
falecimento, praticamente todos os detalhes que foram, digamos assim, prometidos no
longo artigo, serão cumpridas e demonstradas exaustivamente. Todavia, por ser um
filósofo ainda quase desconhecido no Brasil e no mundo, não é tão senso-comum para onde
sua obra vai. Por estes motivos, preferi não fazer apenas uma introdução à tradução do
artigo, mas, sim, uma introdução deste filósofo ao público brasileiro em geral.
Nos últimos anos, diversos pensadores têm tido sua vez de aparecer num
cenário mais generalizado de atenções. No Brasil, as inovadoras disciplinas de história da
filosofia brasileira têm grande peso nisso. Embora ainda esnobadas por defensores
Paul Nicolai Hartmann nasce em Riga em 1882. Embora hoje a cidade seja na
Letônia, a região histórica chamada Livônia era uma das províncias das Terras Marianas,
uma região dos vários estados de cruzados alemães e escandinavos estabelecidos ao longo
2 As referências biobibliográficas sobre Hartmann estão espalhadas por várias obras, especialmente nas de
Keith Peterson e Roberto Poli. Todas estão elencadas na seção “Obras sobre Hartmann” que fazem
introduções à vida e obra do autor.
dos séculos XII ao XIII no Mar Báltico3. Estas Terras serão particionadas em diversos
ducados, divididos entre lituanos, letões, poloneses, suecos e russos ao longo da história.
No entanto, as colônias de populações alemãs vão permanecer até o século XX, quando são
expulsas pelos locais em decorrência da derrota dos nazistas.
3 Embora não existam como uma nação, país ou região alemã independente nos dias de hoje, podemos citar
alguns outros Balto-Germânicos históricos notáveis, tais como o famoso biólogo Jakob von Uexküll, fundador
da biossemiótica; a família Struve, com pelo menos sete astrônomos importantes; Karl Ernst von Baer,
fundador da embriologia; Wilhelm Ostwald, fundador da físico-química; George Cantor, fundador da Teoria
dos Conjuntos; além de ninguém menos que Immanuel Kant.
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ISSN: 2675-8385
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Entre os alemães, apenas Gottfried Leibniz e Christian Wolff haviam percebido esta
lição grega de que o Ser não tinha que ter nada a ver com o que o humano diz, acha que é,
tenta impor na existência. Natureza, humanos e suas criações todas são – e não havia
motivos para não ser assim antes do antropocentrismo moderno como tese de política
metafilosófica. Hartmann inverte a relação: a epistemologia, com suas categorias
cognitivas, são parte da ontologia – assim, numa metafísica do conhecimento (tal como
defendido na obra de 1921), a ontologia jamais pode caber na epistemologia. O excesso, a
complexidade, o transobjetivo, todos são tão constituintes da realidade quanto o restrito
acesso humano a ela – e este acesso, portanto, de forma alguma pode ser pensado como
gabarito, como único, como totalizador daquilo que é, ou como limite do que há.
4 A problemática relação entre Husserl e seu ex-aluno Heidegger é objeto de muita controvérsia. As
informações aqui podem ser encontradas no compilado de palestras, artigos e correspondências organizado
por Thomas Sheehan e Richard E. Palmer pela Kluwer Academic Publishers. O compilado é intitulado
Psychological and Transcendental Phenomenology and the Confrontation with Heidegger (1927-1931).
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Reduzir a filosofia ao humano, por mais bonito que soe para um admirador do
humanismo renascentista, é reduzir a filosofia a este ou àquele tipo de humano. A raça
superior, a etnia vitoriosa, o império mais poderoso, o gênero mais dominador, o partido
mais romantizado – seja qual for a desculpa, cria-se a legitimidade autoevidente e
fraudulenta de que há aqueles que dominam as condições de dadidade do real, ativamente
afastando, menosprezando ou até mesmo destruindo pensamentos que não se adequam a
ele. Isso acontece em ambos os lados, seja para dominar do jeito previamente acordado,
seja para criticar a dominação na única tonalidade disponível. Transformam o outro, os que
estão “fora” do acordo de dominação (ou dos únicos critérios da crítica) em supersticiosos,
ultrapassados, pré-modernos, bons selvagens e outros a serem controlados – ou, até
mesmo, fisicamente perseguidos e eliminados. A conexão com os regimes totalitários do
século XX, mas também com formas de conversão e de colonização, parece ter se tornado
mais evidente.
Ademais, achar que ontologia é uma busca pelo “sentido do Ser” acaba por
gerar um monopólio da produção de sentido6. Hartmann acredita que uma investigação
meramente linguística do Ser não seria um bom caminho, talvez prenunciando que, caso a
filosofia seguisse por um tal “giro linguístico”, ficaríamos regionalizados no sentido do
sentido do sentido, infinitamente presos na incompetência para com o mundo. Ao
contrário, Hartmann sugere que pensemos não no sentido do ser, mas no ser do sentido –
movimento ressonante para com aquele que vê o humano como um Dasein entre outros
5 Hartmann, 1965, p. 40-1. Tradução nossa do trecho: “Die eigentliche Verfehlung im Ansatz dürfte überhaupt
darin liegen, daß Sein und Seinsverstehen einander viel zu sehr genähert, Sein und Seinsgegebenheit nahezu
verwechselt sind. Wie denn alle weiteren Bestimmungen, die sich in dieser „Existenzial-" Analyse ergeben,
im wesentlichen Gegebenheitsmomente sind, und die ganze Analyse sich als Gegebenheitsanalyse darstellt.
Dagegen wäre freilich, nichts einzuwenden, wenn bei jedem Schritt das Gegebene als solches wiederum vom
Gegebenheitsmodus unterschieden und so wenigstens nachträglich die Seinsfrage wiedergewonnen würde.
Aber eben daran fehlt es. Die Modi der Gegebenheit werden für Seinsmodalitäten ausgegeben”.
6 Tenho trabalhado esta como uma das principais críticas metafilosóficas que podemos extrair tanto de
Hartmann quanto da crítica ao correlacionismo a partir de Quentin Meillassoux. Cf. Meillassoux, 2008,
Meillassoux, 2020 e Maciel, 2017. Para acompanhar a publicação futura, cf. Maciel (2021).
vários Dasein. Neste caso, já é uma pergunta mais ontológica e realista, no sentido de que
saber se algo é ou não tal como descreve o sentido, já é uma investigação do ente – embora
ainda não seja a investigação mais geral sobre o ser enquanto ser.
Mesmo nesta possível abordagem, o sentido ainda continua sendo o sentido para
alguém, por exemplo, para um Dasein humano. O “sentido em si” não faz sentido: ele só faz
sentido para alguém. Assim sendo, a ontologia, como estudo do ser enquanto ser, não deve
ter compromisso ou obrigação nenhuma de sempre fazer sentido pra mim ou para você. “O
ser das entidades é indiferente a tudo que o ser possa ser ‘para alguém’”7. Uma forma
popular de dizer isso pode ser encontrada numa conhecida frase do famoso astrofísico Neil
DeGrasse Tyson: “o universo não está sob nenhuma obrigação de fazer sentido para você”.
O trabalho da intuição não pode ser descartado como irracional ou inútil: muito da
pesquisa ontológica não estará formatado nos confortos intelectuais ou políticos desta ou
daquela escola de pensamento.
7 Hartmann, 1965, p. 57. Tradução nossa do trecho: “Das Sein des Seienden steht indifferent zu allem, was
das Seiende „für jemand" sein könnte“. A influência em seu aluno Emil Cioran parece ser um pouco evidente
a partir destas considerações.
8 Cf. o capítulo 2 de Whitehead (1994).
9 Termo do filósofo francês Quentin Meillassoux (2008, 2020) que o emprega para classificar filosofias que
são fundadas neste dogma filosófico. Para informações adicionais, cf. Maciel (2017).
10 Em Maciel (2017), propus esta alcunha como um termo guarda-chuva para aglomerar diversas filosofias
que não estão preocupadas em se fundarem num primado da prática, no da primado da teoria, ou em
antropocentrismos variados. Além de Hartmann e Whitehead, podemos enumerar alguns outros “realistas
complexos” como os gregos clássicos, Leibniz, Schelling, Henri Bergson, Charles S. Peirce, William James,
Niklas Luhmann, Bruno Latour e a maior parte dos realistas especulativos contemporâneos, além de algumas
das filosofias globais que não se comprometem com os aqui mencionados cânones da modernidade (filosofias
africanas, ameríndias, orientais, decoloniais e afins).
Uma das primeiras aplicações deste sofisticado corpo teórico aparece nos três
volumes da Ética, publicados em 1926, sob profunda influência e admiração com as obras
de Scheler e até mesmo de Nietzsche, mas já desenvolvidas sob este aspecto metafilosófico
crucial do complexo realismo crítico de Hartmann. Nos anos restantes em Colônia,
Hartmann vai ganhar grande notoriedade filosófica nacional em concorrência com outros
grandes nomes da época, especialmente Martin Heidegger e Ernst Cassirer. Ainda nestes
anos, completa o seu projeto do A Filosofia do Idealismo Alemão em 1929, publicando o
segundo volume sobre Hegel.
Por todas as suas obras, deixa firme e bem-fundamentada sua rejeição à filosofia
nazista, por exemplo, ao separar o estrato biológico de qualquer fundamentação espiritual,
o que nega haver uma suposta “biologia judaica” como argumento filosoficamente
fundamentado para o extermínio mediado pelo Estado. Negava, também, a teleologia da
história, presente em ideologias inspiradas em algumas teologias e no idealismo alemão
que acreditam que há algo como um “propósito da história”, por exemplo, a defesa do
Partido Nacional-Socialista ou do Partido Comunista como historicamente inevitáveis ou
Mais ainda, Hartmann rejeitava não apenas que a ontologia deva ser confundida
com “busca pelo sentido do Ser”, mas também rejeitava que este sentido devesse ser o “ser-
para-a-morte”. Vejamos como, mais uma vez, uma aparente tese filosófica inofensiva tem
implicações que levaram Hitler a corroborar: se o sentido do ser (humano) é contemplar o
ser-para-a-morte, a socialização desta contemplação é a teleologia da política. Mais ainda,
é o que um Estado, para ser um bom Estado, deve fazer. Se o nazismo teve sucesso em
alguma coisa foi em socializar a contemplação da morte, seja pela constante ameaça de
povos que julgavam a todo momento estarem prontos para invadir e matar os alemães
“puros”, seja no espalhamento do genocídio como política pública do Estado e de táticas de
guerra destinadas à eliminação maciça dos civis. Esta tática visava a eliminação de
cientistas, filósofos e lideranças que pudessem contribuir com o país que estava sendo
atacado. Embora todos os países na Segunda Guerra empregassem tal tática de
assassinatos em massa contra civis, apenas os nazistas celebraram a tática como filosofia
de guerra, a entronização do ser-para-a-morte num pedestal técnico e prático
metafisicamente fundamentado.
11Cf. o ensaio introdutório que Peterson fez na sua tradução para o inglês do primeiro volume da Ontologia
(Peterson in. Hartmann, 2019).
40, seja o de Berlim, seja o de Moscou), dedicando-se à vida acadêmica a despeito de tudo,
talvez como uma forma de até manter o rigor e a sanidade em dia.
Seu legado foi quase imediatamente soterrado. Suas lições vividas na pele
contra o aprisionamento na metafísica da intersubjetividade humana foram abafadas e,
finalmente, esquecidas. Alunos como Hans-Georg Gadamer e Emil Cioran vão dar a toada
da filosofia pós-Hartmann como justamente a ênfase na metafísica da intersubjetividade
humana: tudo é a linguagem, tudo é a existência humana, tudo é interpretação. Em
Frankfurt, tudo vira luta de classes, inconsciente, indústria cultural. A filosofia é proibida
de falar do que não seja intersubjetivo – agora, o que isso quer dizer, estava para jogo.
Como toda disciplina que procura obter certa autonomia acadêmica, Hartmann
buscou pensar a Análise Categorial, a peça-chave de seu realismo crítico, como uma
investigação rigorosa com método próprio. Todavia, para o realismo crítico como um todo,
ele parece apresentar uma sequência de métodos – sequência esta que, em si, é o próprio
“método” de sua filosofia. O que queremos dizer com isso?
Hegel já dizia, em seu monumental Ciência da Lógica, que o raciocínio não pode ser
particionado em caixinhas estanques e completamente bem-definidas. Embora ele “divida”
a sua Lógica-Real em três (o Formal, o Dialético e o Especulativo), recorrentemente ele nos
lembra de que são três “momentos” – e não três “partes”, como se fossem absolutamente
independentes. Em seus estudos monográficos sobre o idealismo alemão, Hartmann
parece ter adotado esta ideia, mantendo a noção de “três momentos” com uma sutil, porém
importante, diferença em relação a Hegel: não há, aqui, a crença de que a Razão impulsiona
os momentos de forma natural, automática ou “garantida”. O Ser, para Hartmann, não é
apenas racional, ordenado e lógico: precisa incorporar o irracional, o desapercebido e o
impossível, inclusive coisas que jamais serão conhecidas a despeito de qualquer suposto
avanço da Razão. Neste sentido, a passagem entre os três “momentos” não é garantida,
sequer é automática: precisa ser custosamente trabalhada a despeito da sempre-presente
chance de que a investigação possa cair em um beco sem saída para a razão – chance esta
que é perfeitamente natural, sem expectativas de absoluto.
discípulos em Freiburg e fundar outros círculos e escolas de pesquisa, tais como os Círculos
de Munique e de Göttingen13
Há outra diferença importante. Enquanto para estes filósofos, e até mesmo para o
platonismo, para a escolástica e até mesmo para os idealistas, as “ideias” ou “essências” são
as coisas mais relevantes, mais totalizantes e mais perfeitas. Todavia, Hartmann inverte o
raciocínio. O ideal é a parte mais baixa, mais estrutural, mais necessária – embora não seja
a mais relevante para a concretude do real. A ideia é que as essências, não necessariamente
matemáticas, são dependentes-do-real – então uma ciência que empreenda ser visão-de-
essências (Wesensanschauung) pode ser particularmente bastante útil para a prática
científica. Este método ajuda na concepção das evidências, o que é necessário para apoiar,
provar, refutar, comparar e modificar quaisquer disciplinas rigorosas tais como a
fenomenologia, a análise categorial e, inclusive, a matemática e as ciências físicas. O rigor
ontológico-gnoseológico de Hartmann não busca confundir as disciplinas, mas, sim,
encontrar uma obstinada atitude universal. Hartmann diz:
13 Estes círculos de fenomenólogos romperam com o tipo de pesquisa idealista e transcendental de Husserl
ao longo da década de 1910. Embora todos reconhecessem o valor da fenomenologia realista e descritivista
de Husserl, estavam abertos a mais influências de outros nomes do que tenho chamado de “realismo
complexo”, tais como Henri Bergson, Alexius Meinong, Hermann Lotze, William James, além do velho
professor de Husserl, Franz Brentano. Vários nomes, vários ainda praticamente desconhecidos no Brasil,
estão associados a várias inovações na fenomenologia, tais como Adolf Reinach, Alexander Pfänder, Hedwig
Conrad-Martius, Moritz Geiger, Roman Ingarden e até mesmo a beatificada Edith Stein.
14 Hartmann, 1965, Capítulo 47.
15 Tradução nossa do trecho: “Wissenschaft eben ist Zusammenhang, Einbau, Zusammenschau. In der
Synthese stigmatischer und konspektier Intuition ergibt sich ein wenigstens relatives Kriterium –
vergleichbar dem der Realerkenntnis in der Synthese apriorischer und aposteriorischer Elemente”.
O que é mais relevante aqui é que este é o critério de rigor, no caso, das ciências.
Estas não funcionam devido a uma “garantia infalível absoluta” da Verdade – ou o que quer
que os racionalistas (ou os detratores da ciência) propaguem. O trecho citado aponta para
a sistematicidade da ciência, para uma autopoiese do sistema da ciência16 que cria, avalia,
elabora, exclui e estabiliza seus próprios processos, programas e elementos.
A segunda etapa parte da tentativa da razão de “fazer sentido” daquilo que foi
descrito pela etapa fenomenológica anterior. A visão-de-essências pode chegar em dados
que, avaliados racionalmente, são até mesmo contraditórios, impossíveis ou incoerentes.
Tentar entender estes resultados é tarefa do método aporético. Anton Schlittmaier
rastreia este método a Platão, para quem as “aporias não são apenas partes acessórias a
caminho da verdade que não têm relevância no final das contas – elas são partes da verdade
que não obedecem às leis da lógica”17. No entanto, a aplicação mais sistematizada é o
famoso Livro Beta da Metafísica de Aristóteles, onde a sistematização de problemas e a
tentativa de clarificação são mais relevantes do que a tentativa de forçar soluções para
agradar esta ou aquela ideologia, escola, igreja ou movimento filosófico. Aristóteles, e
Hartmann herda isso, não lida com os problemas para tentar resolve-los custe o que custar
– às vezes, os deixar mapeados e tentar lidar com as consequências assim como estão é o
suficiente.
16 O fraseamento aqui é intencionalmente direcionado para Niklas Luhmann e sua Teoria dos Sistemas, mais
uma teoria que pode imensamente se beneficiar com alianças diplomáticas com o realismo crítico de
Hartmann.
17 Schlittmaier, 2001, p. 34. Tradução nossa de: “Aporias are not only accessory parts on the way to truth that
have no relevance in the end, but they are part of the truth, which no more complies with the laws of logic”.
18 Emprego esta alcunha, inspirada em Latour (Cf. Latour 2013, Maciel, 2017 e Maciel, 2021), para descrever
pensadores que não estão preocupados com o credo da modernidade como ponto de partida obrigatório ou
ponto de chegada inevitável para a razão – também, seja porque antecederam historicamente, seja porque
não têm compromisso algum com seus ditames, tais como filosofias orientais, africanas e ameríndias. O
filósofo francês utilizava a alcunha “não-moderno”, mas a definição ainda era centrada neles. Na última
década ele tem falado em “global”, “terráqueo” ou “terrestre”. Ou seja, o moderno se torna mais um jogador
à mesa: não é nem excluído, nem quem dá as regras.
19 Esta visão que combina razão, complexidade, transinteligível e até coisas científicas e bizarras é uma toada
comum na obra do escritor de horror cósmico Howard Phillips Lovecraft, um dos autores favoritos por entre
os realistas especulativos do século XXI. Escrevendo mais ou menos nas mesmas décadas que Hartmann, a
conexão filosófica entre ambos pode ser bastante curiosa e produtiva.
Anãnsi: Revista de Filosofia, Salvador, v. 1, n. 2, 2020.
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Otávio S.R.D. Maciel
coisas, não sendo uma desculpa nem para a adoção do irracionalismo (visto que o racional
também faz parte do real) ou de desistirmos em nome das pseudociências ou da ignorância.
Podemos fazer uma analogia com a medicina. Cuidar do corpo humano, por
exemplo, demanda um imenso cuidado, sutileza, anos ou até décadas de preparação e
treino. Dizer que a diferença entre medicina e inserção de “cristais da cura” em orifícios se
resume a uma “ser ciência” e a outra “ser pseudociência” é subestimar a poderosa
imensidão do preparo, das dezenas de milhares de horas de estudos e de interação com
coisas que não são resumidas ao que o médico quer que seja. O objeto, o corpo, o vírus, o
câncer: todos têm vontades, interesses, direções e constituições próprias que nem sempre
vão se conformar à razão médica. A diferença talvez seja isso: a medicina, assim como
outras disciplinas rigorosas, precisa ter a humildade de lidar com o verdadeiramente
transinteligível, não com o meramente ignorado ou subestimado. Não termos absoluto
domínio racional sobre a evolução dos vírus não significa que a virologia foi abolida,
cancelada ou que deva ser abandonada em nome de resumirmos a saúde pública a
remédios de verminoses e/ou de lúpus. A metafísica funciona de maneira análoga: é o
trânsito entre o que é dado fenomenologicamente e o que pode ser aporeticamente
sistematizado que dá o “progresso da metafísica” (dizemos assim para agradar a ouvidos
modernos) – e não se ela “resolveu” os problemas de uma vez por todas e fim.
onde, ao menos ainda, não haveriam evidências. Hartmann está interessado nesta versão
da especulação kantiana, mas procede de forma ainda mais cautelosa.
Sempre nos deleitamos em lembrar que μετά não significa necessariamente “além”,
no sentido do “reino do além”. Esta palavra comum na língua grega pode significar diversas
preposições ou locuções prepositivas: entre, em comum, ao lado, acima, sequência de
Uma definição recorrente da ontologia é que ela seria o estudo do “ser enquanto
ser”. Hartmann afirma, na seção 2 do texto que traduzimos, que o fundamento da ontologia
aristotélica está na doutrina do hilemorfismo (forma e matéria) e na doutrina do ato-
potência. A partir destas, Aristóteles concebe sua teoria das quatro causas, sua ideia do
motor imóvel e diversas outras concepções que povoam o senso-comum do que
geralmente se entende por metafísica ou ontologia. Não obstante, a necessidade lógica
formal, a conceitualidade e a noção de “destino das coisas” na teleologia aristotélica são
coisas que Hartmann afasta, como vemos no item 3.4 da tradução aqui divulgada.
Assim sendo, Hartmann, talvez ironicamente, quer ser mais aristotélico do que
Aristóteles, preferindo a verdadeira alcunha que o pensador macedônio utilizava: a πρώτη
φιλοσοφία (prima philosophia), uma “filosofia primeira”. Esta filosofia primeira não está
preocupada apenas com os temas que Aristóteles elegeu como os mais importantes.
Ademais, os princípios ontológicos (do ser enquanto ser) não são a única tarefa da prima
philosophia, que deve, também, se preocupar com o dever-ser, com os valores (éticos,
estéticos, pragmáticos etc.). Hartmann, portanto, nomeia sua área de estudos como filosofia
primeira, investigação auxiliada pelo método do realismo crítico (fenomenológico-
aporético-especulativo) que vimos anteriormente, dirigida primariamente pela Teoria das
entre ambas. Assim, a presença da categoria do tempo já indica que o real é temporalizado,
duracional, processual. Esta pode ser uma das principais heranças de Schelling, que não via
a história como uma coletânea de humanos relatando sobre humanos de forma narcisista
ou orientados para algum Partido ou Estado, mas sim pensava o tempo como ingrediente,
produto, condicionador e limitador da própria realidade.
Assim, os novos caminhos da ontologia, que também é o nome de seu livro de 1943,
levam a esta prima philosophia que Hartmann busca inaugurar como área rigorosa de
pesquisas do realismo crítico. Suas lições sobre a epistemologia, ou melhor, a gnoseologia,
ajudam a operar este projeto esclarecendo como Hartmann enxerga o ato cognitivo. A
primeira ideia contraintuitiva com o que se deu na filosofia pós-idealismo alemão é que ele
trata o conhecimento como uma correlação entre algo que conhece e um “objeto = X”.
Emprego aqui propositalmente a notação que Kant empregava na primeira edição da
Crítica da Razão Pura. Do X, o que será descrito fenomenologicamente não é tudo que o X
é, visto que nem tudo será descrito agora, posteriormente, ou talvez sequer será descrito
da mesma maneira por outro observador. No entanto, em termos de fixação de referência,
observadores diferentes podem dizer sobre “objeto = X” e trocar, comparar, complementar
e até eliminar evidências da descrição.
Esta breve caracterização traz duas teses emaranhadas: uma defesa da polêmica
coisa-em-si e a ideia mesma de correlação. O que se dá ao conhecimento, seja por dação
ativa, seja por doação passiva, não exaure, esgota ou substitui o que há. O que há não se
esgota no objeto = X – e o que resta desta operação é transobjetivo, transinteligível24. Agora,
o que haveria de inovador em seu conceito de correlação? Afirmar que há algo que conhece
e algo que é conhecido não parece ser tão fora do senso comum, ou de experiências
25 Tradução nossa do trecho: “Unter einem „transzendenten Akt" soll im Folgenden immer ein solcher
verstanden werden, der nicht im Bewußtsein allein spielt — wie Denken, Vorstellen, Phantasieakt —,
sondern das Bewußtsein Überschreitet, aus ihm hinausreicht und es mit dem verbindet, was unabhängig von
ihm an sich besteht; und zwar ohne Unterschied, ob dieses Unabhängige ein dingliches, seelisches oder
geistiges Etwas ist. Es sind also Akte, die eine Relation herstellen zwischen dem Subjekt und einem Seienden,
das nicht erst durch den Akt entsteht; oder auch: Akte, die ein Übergegenständliche zum Gegenstande
machen”.
Anãnsi: Revista de Filosofia, Salvador, v. 1, n. 2, 2020.
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ISSN: 2675-8385
Otávio S.R.D. Maciel
Neste sentido, vemos que há uma dupla limitação da atividade cognitiva: ela não é
apenas limitada frente aos objetos do mundo, sejam eles físicos, matemáticos, éticos ou
biológicos. Esta limitação, já vislumbrada por Kant ao conceber a coisa-em-si, é apenas um
dos lados – o outro é a limitação do nosso conhecimento das categorias elas mesmas. A
categoria de espaço, por exemplo, é conhecida por diversas geometrias, até mesmo
conflitantes não apenas com o senso comum como também entre si mesmas – mas
nenhuma esgota a categoria do espaço. Há, então, uma dupla tarefa árdua e trabalhosa: o
conhecimento em direção às coisas, por assim dizer; e o conhecimento em direção às
categorias. Roberto Poli fez um compilado de diversos esforços e tarefas de pesquisa da
Análise Categorial que podemos elencar da seguinte maneira27:
26 Tradução nossa do seguinte trecho: “Hartmann’s theory of categories entirely breaks with Kant’s or Hegel’s
theories of categories by explicitly denying that categories are concepts. If categories were concepts, they
could be straightforwardly interpreted as fictions or forms of representation more or less suitable to the
manipulation of things. While we need concepts in order to refer to categories, they never capture categories
entirely. There is always a difference between categories and their concepts”.
27 Poli, 2011, p. 7-8
28 Tradução nossa do trecho: “This is a general categorial law: ontological categories are mutually connected
possível, suas contrapartes negativas, bem como as leis intermodais. O segundo grupo é o
das categorias fundamentais, exaustivamente trabalhadas no terceiro volume da
Ontologia. Há algumas categorias individuais, mas a maioria delas são categorias pareadas.
Ao lado destas, há as categorias nivelares que lidam com a estratificação do ser. Além
destas, há as categorias intercategoriais, leis categoriais ou metacategorias, que são
categorias sobre as categorias elas mesmas e sobre suas relações. O terceiro grupo é o das
categorias especiais, que são exploradas em cada estrato específico da realidade.
Hartmann não teve tempo, praticamente sem surpresas para ninguém, de completar esta
gigantesca tarefa, mas ofereceu categorias especiais do estrato físico e do estrato orgânico
no quarto volume da Ontologia; e do estrato espiritual, em alguma medida, na obra O
Problema do Ser Espiritual. Neste, ele subdivide o Espírito em três subáreas, o espírito
pessoal (a personalidade dos indivíduos), o espírito objetivo (coisas como o direito, a
cultura, a linguagem) e o espírito objetivado (objetos técnicos, objetos da arte). Para
encerrarmos, ofereço alguns exemplos para ao menos saciar uma possível curiosidade
sobre quais seriam algumas destas categorias:
• Categorias fundamentais:
§4 Conclusão
Esperamos calorosamente que este ensaio tenha conseguido cumprir sua função de
despertar interesse nos pesquisadores brasileiros e outros lusófonos na imensa e
intrigante obra de Nicolai Hartmann. Sua morte prematura deixou ainda continentes
inexplorados em sua vasta filosofia. Estudar Hartmann, hoje, é ainda mais recompensante
e estimulante, visto que o renascimento da metafísica no século XXI, as questões ecológicas
DA RE, Antonio. ‘Objective Spirit and Personal Spirit in Hartmann’s Philosophy’ in.
Axiomathes, 12: 317-326, Kluwer, 2001
KELLY, Eugene. Material Ethics of Value: Max Scheler and Nicolai Hartmann. New
York: Springer, 2011
POLI, Roberto; SCOGNAMIGLIO, Carlo & TREMBLAY, Frederic. The Philosophy of Nicolai
Hartmann. Berlin: De Gruyter, 2011
PETERSON, Keith & POLI, Roberto. New Research on the Philosophy of Nicolai
Hartmann. Boston: De Gruyter, 2016
PETERSON, Keith R. ‘Nicolai Hartmann and Recent Realisms’ in. Axiomathes (2017),
27:161-174
POLI, Roberto. ‘Hartmann’s theory of categories: introductory remarks” in. POLI, Roberto;
SCOGNAMIGLIO, Carlo & TREMBLAY, Frederic. The Philosophy of Nicolai Hartmann.
Berlin: De Gruyter, 2011
SCHLITTMAIER, Anton. ‘Nicolai Hartmann’s Aporetics and Its Place in the History of
Philosophy’ in. POLI, Roberto; SCOGNAMIGLIO, Carlo & TREMBLAY, Frederic. The
Philosophy of Nicolai Hartmann. Berlin: De Gruyter, 2011
Obras Adicionais
GABRIEL, Markus. O sentido da existência: para um novo realismo ontológico. Rio de
Janeiro: Civilização Brasileira, 2016
LATOUR, Bruno. Jamais Fomos Modernos. Rio de Janeiro: Editora 34, 2013
WHITEHEAD, Alfred N. Process and Reality – an essay in cosmology. New York: The
Free Press, 1978.
§1. O que é uma explanação física? A resposta para esta pergunta, mesmo quando
meramente implícita na imaginação científica, deve profundamente afetar o
desenvolvimento de cada ciência e, num nível especial, aquele da física especulativa.
Durante o período moderno, a resposta ortodoxa foi invariavelmente guiada em termos de
Tempo (fluindo igualmente em lapsos mensuráveis), de Espaço (atemporal, vazio de
atividade, euclidiano) e de Material no espaço (como matéria, éter ou eletricidade).
1 Este trabalho consiste na tradução da primeira parte “As Tradições da Ciência” (The Traditions of Science),
do primeiro capítulo “Significado” (Meaning), da obra Uma Investigação Concernente aos Princípios do
Conhecimento Natural (WHITEHEAD, Alfred North. An Enquiry Concerning the Principles of Natural
Knowledge. 1ª Edição. Cambridge: University Press, 1919) – livro escrito pelo matemático e filósofo Alfred
North Whitehead (1861-1947) nas duas primeiras décadas do século XX. O livro inaugurou a ampla carreira
filosófica de Whitehead. É, especificamente, no capítulo aqui traduzido, que Whitehead expõe, pela primeira
vez, suas críticas ao tempo absoluto, ao espaço absoluto e ao conceito tradicional de “significado”, bem como
estreia seus conceitos de “percepção”, “extensão” e “relatividade”. Tais críticas e conceitos, inaugurados no
capítulo cuja tradução este trabalho apresenta, irão guiar e embasar a filosofia de Whitehead até seus últimos
dias – sendo o conceito de “extensão” facilmente classificável como a pedra angular de toda a sua filosofia.
2
Graduando em Filosofia pela Universidade de Brasília. E-mail: rafaelferreiramartins98@gmail.com.
Anãnsi: Revista de Filosofia, Salvador, v. 1, n. 2, 2020.
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ISSN: 2675-8385
Alfred N. Whitehead
§2. O fato último abrangendo a natureza é (neste ponto de vista tradicional) uma
distribuição de material ao longo de todo espaço em um instante de tempo sem duração, e
outro tal fato último será outra distribuição do mesmo material ao longo do mesmo espaço
em outro instante de tempo sem duração. As dificuldades desta declaração extrema são
evidentes e foram apontadas mesmo nos períodos clássicos, quando o conceito
primeiramente tomou forma. Alguma modificação é evidentemente necessária. Nenhum
espaço foi deixado para velocidade, aceleração, momento e energia cinética, os quais
certamente são quantidades físicas essenciais.
Nós devemos, por conseguinte, quanto ao fato último, além de onde as ciências
cessam sua análise, incluir a noção de um estado de mudança. No entanto, um estado de
mudança em um instante sem duração é uma concepção muito difícil. É impossível definir
velocidade sem alguma referência ao passado e ao futuro. Portanto, a mudança é
essencialmente a importação do passado e do futuro ao fato imediato incorporado no
instante presente sem duração.
§3. A recíproca ação causal entre materiais A e B é o fato de que seus estados de
mudança são parcialmente dependentes de seus locais relativos e naturezas. A desconexão
envolvida na separação espacial leva à redução de tal ação causal à transmissão de estresse
através da superfície delimitadora de materiais contíguos. Mas, o que é contato? Não há
dois pontos em contato. Assim, o estresse sobre a superfície, necessariamente, atua em
alguma massa do material encerrada no interior. Dizer que o estresse atua na imediata
contiguidade material é assumir volumes infinitamente pequenos. Não obstante, não há tal
coisa, apenas volumes cada vez menores. Ainda, segundo este ponto de vista, não pode ser
dito que a superfície age no interior.
biológico é uma unidade com uma extensão espaço-temporal, a qual é da essência de seu
ser. Essa concepção biológica é, obviamente, incompatível com as ideias tradicionais. Esse
argumento não depende, de manheira nenhuma, de supor que fenômenos biológicos
pertençam a uma categoria diferente daqueles fenômenos físicos. O ponto central da crítica
aos conceitos tradicionais, que nos ocupou até aqui, é que o conceito de unidades,
funcionando e com extensões espaço-temporais, não pode ser extrudado dos conceitos
físicos. A única razão para introduzir a biologia é que, nessa ciência, a mesma necessidade
se torna mais clara.
II - Relatividade Filosófica
§3. É uma sugestão óbvia a que nós devemos consertar nossa proposição do fato
último, conforme modificada pela aceitação da relatividade. As relações espaciais devem,
agora, esticar-se ao longo do tempo. Portanto, se P, P ', P ", etc. são partículas materiais,
existem relações espaciais definidas conectando P, P', P", etc. no tempo t com P, P ', P ", etc.;
no tempo t2, bem como tais relações entre P e P 'e P ", etc. no tempo t e tais relações entre
P e P' e P", etc. no tempo t2. Isso deve significar que P no tempo t2 tem uma posição definida
na configuração espacial constituída pelas relações entre P, P', P", etc. no tempo t1.
De fato, é óbvio que nosso conhecimento sobre espaço resulta de tais observações.
Porém, nós estamos solicitando à teoria para nos fornecer relações reais a serem
observadas. Esta última correção ou é somente uma confusa maneira de admitir que a
“natureza em um instante” não é o fato científico último, ou então é um apelo, ainda mais
confuso, de que embora não haja possibilidade de correlação entre espaços instantâneos
distintos, ainda que dentro de durações que são suficientemente curtas, tais correlações
inexistentes entram na experiência.
3Manteve-se a palavra original em inglês ‘datum’, pois não há tradução precisa deste termo ao português na
maneira pela qual Whitehead o emprega, visto que significa ‘dados’ e, também, ‘ponto de origem’.
§5. É evidente que a concepção do instante de tempo como uma entidade última é
fonte para todas as dificuldades de explanação. Se existem tais entidades últimas, a
natureza instantânea seria um fato último.
Nossa percepção de tempo é como uma duração; estes instantes somente foram
introduzidos em virtude de uma suposta necessidade de pensamento. Na verdade, o tempo
absoluto quanto o espaço absoluto são monstruosidades metafísicas. A saída destas
perplexidades, bem como dos dados últimos da ciência, sob os termos dos quais a
explanação física deve ser expressada em instância última, é expressar os conceitos
científicos essenciais de tempo, espaço e material como resultantes de relações
fundamentais entre eventos, bem como do reconhecimento do caráter dos eventos. Estas
relações de eventos são aquelas imediatas entregas das observações às quais nos referimos
quando dizemos que eventos estão esticados ao longo do tempo e do espaço.
III - Percepção
§2 – [Whitehead faz uma citação da obra Alcífron, publicada pelo Bispo Berkeley em
1732, mais precisamente da Seção 10 do Diálogo IV]:
Eufranor: Diga-me, Alcífron, você pode discernir as portas, janelas e ameias daquele mesmo castelo?
Alcífron: Não posso. A esta distância parece somente uma pequena torre redonda.
Eufranor: Mas eu, que estive nele, sei que não é uma pequena torre redonda, mas uma larga
construção quadrada com ameias e torres, as quais parece que você não vê.
Eufranor: Eu iria inferir que o próprio objeto que você estrita e apropriadamente percebe pela vista
não é aquela coisa que está a algumas milhas de distância.
Eufranor: Porque um pequeno e redondo objeto é uma coisa, e um grande e quadrado objeto é outra.
Não é assim?
Alcífron: É sim.
Eufranor: O que pensa agora (disse Eufranor, apontando para o céu) da aparência visível daquele
planeta ali? Não é um plano redondo luminoso, não maior do que uma moeda?
Eufranor: Diga-me, então, o que você pensa do planeta propriamente? Você não o concebe como um
vasto opaco globo, com muitas elevações desiguais e vales?
Eufranor: Como pode você, então, concluir que o objeto apropriado de sua visão existe lá na
distância?
Eufranor: Para sua convicção ir além, considere aquela nuvem avermelhada. Pensa você que, se você
estivesse no mesmo lugar onde ela está, você a perceberia similar com aquilo que vê agora?
Eufranor: Não está claro, portanto, que nem o castelo, nem o planeta, nem a nuvem que você vê aqui
são aquelas reais que você supunha que existiam à distância?”
§3. Agora, a dificuldade a ser enfrentada é justamente essa. Nós não devemos
abandonar levianamente o castelo, o planeta e a nuvem avermelhada esperando manter o
olho, sua retina e o cérebro. Tal filosofia é muito simplória ou, ao menos, pode-se pensar
assim, exceto por sua ampla difusão.
Suponha que nós façamos uma limpa varredura. A ciência, então, torna-se uma
fórmula para calcular “fenômenos” mentais ou “impressões”. Mas, onde está a ciência? Nos
livros? Mas o castelo e o planeta levam embora suas bibliotecas com eles.
Não, ciência está na mente dos homens. Mas homens dormem e esquecem; e, na
melhor das hipóteses, entretém pensamentos escassos, salvo poucos momentos de insight.
Ciência, portanto, é nada mais que uma expectativa confiante de que pensamentos
relevantes vão ocasionalmente ocorrer. Mas, a propósito, o que aconteceu com o tempo e
o espaço? Eles devem ter ido atrás das outras coisas. Não, nós devemos distinguir: o espaço
se foi, claramente; mas o tempo permanece, conforme relaciona a sucessão de fenômenos.
Porém, isso não é o suficiente, pois essa sucessão só é conhecida pela recordação, sendo
esta também sujeita à mesma crítica aplicada por Berkeley ao castelo, ao planeta e à nuvem.
Então, no final das contas, o tempo evapora com o espaço e, na partida deles, “você”
também os acompanha – e eu sobro, solitário, no caráter de um vazio da experiência sem
significância.
Há dois tipos de resposta para esta descida ao ceticismo. Uma é a do Dr. Johnson.
Ele bateu o pé na pedra do pavimento e seguiu seu caminho, satisfeito com a realidade da
pedra. Um escrutínio da filosofia moderna irá, se não estou enganado, mostrar que mais
filósofos deveriam ter o Dr. Johnson como mestre do que estariam dispostos a reconhecer.
O outro tipo de resposta foi primeiramente dado por Kant. Nós devemos distinguir
entre a forma geral que ele preparou para construir sua resposta à Hume e os detalhes de
seu sistema que, em diversos aspectos, são altamente questionáveis. O ponto essencial de
seu método é a pressuposição de que “significância” é um elemento essencial na
experiência concreta. O Dilema de Berkeley começa ignorando tacitamente esse aspecto da
experiência, assim apresentado, como expressão da experiência, concepções dela que não
têm relevância aos fatos. À luz do procedimento kantiano, a resposta de Johnson adquire
sentido. Ela é a afirmação de que Berkeley não expôs corretamente o que a experiência é
de fato.
uma típica instância da ruína universal da relacionalidade. Mas, então, estaríamos muito
enganados ao pensarmos que existe um conhecimento possível das coisas enquanto não-
relacionadas. Está, portanto, fora de cogitação começarmos com o conhecimento das coisas
antecedendo ao conhecimento de suas relações. As assim chamadas propriedades das
coisas podem sempre ser expressadas como sua relacionalidade para com outras coisas
não especificadas – e o conhecimento natural está exclusivamente concernido com a
relacionalidade.
natureza. Esta doutrina está em total acordo com a batida de pé do Dr. Johnson, pela qual
ele percebeu a alteridade4 da pedra de pavimentação.
Esta confusão não pode ser evitada por nenhum tipo de teoria na qual a natureza é
concebida simplesmente como um complexo de um tipo de elementos inter-relacionados,
tais como coisas persistentes, eventos ou dados-sensoriais [sense-data]. Precisamos de
uma visão mais elaborada que tentaremos logo na sequência. Será suficiente aqui dizer que
resulta na afirmação de que, toda a natureza pode (em várias e diversas maneiras) ser
analisada como um complexo de coisas; assim, toda a natureza pode ser analisada como
4 “Alteridade” foi o termo escolhido, baseado no contexto geral da teoria de Whitehead e em sua posição
semântica, para traduzir o termo original ‘otherness’ que, por sua vez, não encontra bom cognato na língua
portuguesa. Apelando-se para um neologismo, ‘otherness’ poderia ser traduzido como “outressencia” ou
“outridade”.
5 Novamente, em igualdade com o relatado na nota de rodapé 3, manteve-se a palavra original em inglês
“datum”, pois não há tradução precisa deste termo ao português na maneira pela qual Whitehead o emprega,
visto que significa “dados” e, também, “ponto de origem”.
Introdução
Toni Morrison (1931-2019) foi uma escritora nova iorquina de sucesso, detentora
de vários prêmios literários. Sua trajetória de engajamento político se reflete em sua obra,
sobre as experiências dos negros e negras norte-americanos, de quem sofreu com a
escravidão, de quem tentava se adaptar à vida livre em um país racista pós abolição. Entre
suas obras principais estão O olho mais azul (1970), Compaixão (2008), Voltar para casa
(2012). Em 1993, ela recebe o prêmio Nobel de Literatura. Na ocasião, ela profere um
discurso ao Nobel, o qual intitulamos aqui de “A língua é pássaro em suas mãos”, como
espécie de síntese do amálgama de alegorias que é. A historinha de “Era uma vez...”, sobre
uma mulher cega que é confrontada por crianças com a perversa questão de se o pássaro
em suas mãos está vivo ou morto, logo se torna uma reflexão filosófica e social sobre a
língua, sobre as formas assumidas pela linguagem, com destaque para seus modos
opressores, vista a partir do olhar de uma escritora experiente. É como as alegorias
platônicas ou nietzschianas, com várias camadas de sentido. Aqui encontramos uma
reflexão sobre a linguagem desde sua vitalidade quando é feliz em “retratar a vida real,
imaginada e possível” até sua impotência em capturar a experiência ou mesmo de fixar,
“pin down”, as formas de terror extremos a povos racializados; desde sua potência para
alcançar o inefável, sua capacidade de fazer ver sem imagens, a qual torna possível uma
pessoa cega falar de cores, por exemplo, ou uma sofredora encontrar o nome para uma
experiência silelnciada ou indizível, até sua potência narcisista, reacionária, geradora de
diferenças cruéis. A língua, aparece como sistema, como coisa viva e, principalmente, como
agência, quer dizer, “como um ato com consequências”. “A linguagem opressiva faz mais do
que representar violência; ela é violência”, diz Morrison. Por isso, Judith Butler abre seu
“Era uma vez uma velha. Cega, mas sábia.” Ou era um velho? Um guru, talvez. Ou um
griot acalmando crianças inquietas. Já ouvi essa história, ou uma exatamente igual, na
tradição de diversas culturas.
Na versão, sei que a mulher é filha de escravos, negra, americana, e mora sozinha
em uma casinha fora da cidade. Sua reputação de sabedoria é inigualável e indiscutível.
Entre seu povo, ela é ao mesmo tempo lei e sua transgressão. A honra que recebe e a
reverência em que se mantém vão além de sua vizinhança até lugares distantes; até à
cidade onde a inteligência dos profetas campestres é fonte de muita diversão.
Um dia, a mulher recebeu a visita de alguns jovens que pareciam estar decididos a
desmentir sua clarividência e denunciá-la pela fraude que acreditavam que ela era. O plano
deles é simples: entram em sua casa e fazem a única pergunta cuja resposta depende
apenas de sua diferença em relação a eles, uma diferença que consideram como uma
deficiência profunda: sua cegueira. Eles estão diante dela, e um deles diz: “Velha, tenho um
pássaro na mão. Diga-me se está vivo ou morto.”
Mesmo assim ela não responde. Ela é cega e não pode ver seus visitantes, muito
menos o que está em suas mãos. Ela não sabe sua cor, gênero ou procedência. Ela apenas
conhece seus motivos.
O silêncio da velha é tão longo que os jovens têm dificuldade em conter o riso.
Finalmente ela fala e sua voz é suave, porém severa. “Não sei”, diz ela. “Eu não sei se
o pássaro que você está segurando está vivo ou morto, mas o que eu sei é que ele está em
suas mãos. Está em suas mãos.”
Sua resposta pode ser entendida como significando: se ele está morto, você o
encontrou dessa forma ou o matou. Se estiver vivo, você ainda pode matá-lo. Se é para
permanecer vivo, a decisão é sua. Seja qual for o caso, é sua responsabilidade.
Por exibirem seu poder e sua impotência, os jovens visitantes são repreendidos,
informados de que são responsáveis não apenas pelo ato de zombaria, mas também pela
pequena nesga de vida sacrificada para atingir seus objetivos. A mulher cega desvia a
atenção das afirmações de poder para o instrumento através do qual esse poder é exercido.
A especulação sobre o que (além de seu próprio corpo frágil) aquele pássaro na mão
pode significar sempre me inquietou, mas especialmente pensando agora, como eu tenho
sido, sobre o trabalho que faço que me trouxe a esta corporação. Portanto, escolho ler o
pássaro como uma língua e a mulher como uma escritora experiente. Ela está preocupada
com a forma como a língua na qual ela sonha, dada a ela no nascimento, é tratada, posta em
serviço e até mesmo negada a ela por certos propósitos nefastos. Sendo escritora, ela pensa
na linguagem em parte como um sistema, em parte como uma coisa viva sobre a qual se
tem controle, mas principalmente como agência – como um ato com consequências. Então,
a pergunta que as crianças fizeram a ela – “Está vivo ou morto?” – não é irreal porque ela
considera a língua suscetível à morte, ao apagamento; certamente em perigo e recuperável
apenas por um esforço da vontade. Ela acredita que, se o pássaro nas mãos de seus
visitantes estiver morto, os guardiões são responsáveis pelo cadáver. Para ela, uma língua
morta não é apenas aquela que não é mais falada ou escrita, é uma língua inflexível que se
contenta em admirar a sua própria paralisia. Como língua estadista, censurada e
censuradora. Implacável em seus deveres de policiamento, ela não tem nenhum desejo ou
propósito além de manter o livre alcance de seu próprio narcisismo entorpecente, sua
própria exclusividade e dominação. Por mais moribunda, ela não é sem efeito, já que
ativamente frustra o intelecto, paralisa a consciência, suprime o potencial humano.
Indisposta ao interrogatório, ela não pode formar ou tolerar novas ideias, moldar outros
pensamentos, contar outra história, preencher silêncios desconcertantes. A língua oficial,
forjada para sancionar a ignorância e preservar o privilégio, é uma armadura polida com
um brilho relampejante, uma casca da qual o cavaleiro partiu há muito tempo. No entanto,
aí está: burra, predatória, sentimental. Reverência excitante em colegiais, fornecendo asilo
para déspotas, evocando falsas memórias de estabilidade, harmonia do público.
Ela está convencida de que quando a língua morre, por descuido, desuso,
indiferença e ausência de estima, ou morta por decreto, não só ela mesma, mas todos os
usuários e criadores são responsáveis por sua morte. Em seu país, as crianças mordem a
língua fora e usam balas como alternativa para iterar a voz da mudez, da linguagem
incapacitada e incapacitante, da linguagem que os adultos abandonaram completamente
como um dispositivo para batalhar com sentido, fornecer orientação ou expressar amor.
Mas ela sabe que o suicídio da língua não é apenas a escolha das crianças. É comum entre
os infantis chefes de Estado e mercadores de poder cuja linguagem evacuada os deixa sem
acesso ao que resta de seus instintos humanos, pois eles falam apenas àqueles que
obedecem, ou para forçar a obediência.
O saque sistemático da língua pode ser reconhecido pela tendência de seus usuários
a renunciarem às suas propriedades de parteira matizadas e complexas por ameaça e
subjugação. A linguagem opressiva faz mais do que representar violência; é violência; faz
mais do que representar os limites do conhecimento; limita o conhecimento. Seja a língua
obscurecedora do Estado ou a linguagem falsa da mídia irracional; seja a orgulhosa, porém
petrificada linguagem da academia, ou a linguagem da ciência conduzida por commodities;
seja a linguagem maligna da lei-sem-ética, ou língua projetada para o estranhamento das
minorias, escondendo sua pilhagem racista em sua face literária – ela deve ser rejeitada,
alterada e exposta. É a língua que bebe sangue, abandona vulnerabilidades, enfia suas botas
fascistas sob as crinolinas de respeitabilidade e patriotismo enquanto se move
implacavelmente em direção ao final das contas e às mentes que já não dão mais conta.
Linguagem sexista, linguagem racista, linguagem teísta – todas são típicas das linguagens
policiais de domínio e não podem, não permitem novos conhecimentos ou encorajam a
troca mútua de ideias.
Ela tem pensado sobre o que poderia ter sido a história intelectual de qualquer
disciplina se ela não tivesse insistido ou sido forçada a perder tempo e vida que as
racionalizações e representações de dominação exigiam – discursos letais de exclusão
bloqueando o acesso à cognição, tanto para o excludente quanto para o excluído.
Ela não gostaria de deixar seus jovens visitantes com a impressão de que a língua
deveria ser forçada a permanecer viva apenas para existir. A vitalidade da língua reside em
sua capacidade de retratar a vida real, imaginada e possível de seus falantes, leitores,
escritores. Embora sua postura às vezes seja para deslocar a experiência, não é um
substituto para ela. Ele se curva em direção ao lugar onde o significado pode estar. Quando
um Presidente dos Estados Unidos pensou sobre o cemitério no qual seu país havia se
tornado, e disse: “O mundo pouco notará nem se lembrará por muito tempo do que
dizemos aqui. Mas ele nunca se esquecerá o que eles fizeram aqui”, suas palavras simples
são estimulantes em suas propriedades de suporte à vida, porque se recusaram a
encapsular a realidade de 600.000 homens mortos em uma guerra racial cataclísmica.
Recusando-se a monumentalizar, desprezando a “palavra final”, o preciso “somatório”,
reconhecendo seu “pobre poder de somar ou depreciar”, suas palavras sinalizam
deferência para com a incapturabilidade da vida que lamentam. É a deferência que a move,
o reconhecimento de que a linguagem nunca pode, de uma vez por todas, se equiparar à
vida. Nem deveria. A língua nunca pode “fixar” a escravidão, o genocídio, a guerra. Nem
deve desejar a arrogância de ser capaz de fazê-lo. Sua força, sua felicidade está em seu
alcance para o inefável.
O trabalho com as palavras é sublime, ela pensa, porque é gerador; faz sentido que
assegura nossa diferença, nossa diferença humana – a maneira tal qual somos como
nenhuma outra vida.
Nós morremos. Esse pode ser o sentido da vida. Mas fazemos linguagem. Essa pode
ser a medida de nossas vidas.
“Era uma vez, …” visitantes fazem uma pergunta a uma velha. Quem são elas, essas
crianças? O que eles acharam daquele encontro? O que eles ouviram nessas palavras finais:
“O pássaro está em suas mãos”? Uma frase que aponta para a possibilidade ou uma que
solta uma trava? Talvez o que as crianças ouviram foi “Não é problema meu. Sou velha,
mulher, negra, cega. A sabedoria que tenho agora consiste em saber que não posso ajudá-
lo. O futuro da língua é de vocês.”
Eles estão lá. Suponha que nada estivesse em suas mãos? Suponha que a visita fosse
apenas um estratagema, um truque para conseguir falar, levado a sério como nunca foi
antes? Uma chance de interromper, de violar o mundo adulto, seu miasma de discurso
sobre eles, por eles, mas nunca para eles? Perguntas urgentes estão em jogo, incluindo a
que eles fizeram: “O pássaro que seguramos está vivo ou morto?” Talvez a pergunta
significasse: “Alguém poderia nos dizer o que é vida? O que é a morte?” Nenhum truque;
sem bobagens. Uma pergunta direta, digna da atenção de alguém sábio. Alguém velho. E se
os velhos e sábios que viveram a vida e enfrentaram a morte também não conseguem
descrever, quem pode?
Mas ela não; ela mantém seu segredo; sua boa opinião sobre si mesma; seus
pronunciamentos gnômicos; sua arte sem compromisso. Ela se mantém à distância,
reforça-a e recua para a singularidade do isolamento, em um espaço sofisticado e
privilegiado.
“Não há um discurso”, eles perguntam a ela, “nenhuma palavra que você possa nos
dar que nos ajude a superar seu dossiê de fracassos? Através da educação que você acabou
de nos dar, esta que não é educação nenhuma já que estamos prestando muita atenção
tanto no que você fez, como também no que você disse? Na barreira que você ergueu entre
generosidade e sabedoria?
“Não temos pássaro qualquer em nossas mãos, nem vivo nem morto. Temos apenas
você e nossa pergunta importante. O nada em nossas mãos é algo que você não suportaria
contemplar, nem mesmo adivinhar? Você não se lembra de ser jovem quando a língua era
mágica sem significado? Quando o que você poderia dizer, poderia não significar? Quando
o invisível era aquilo que a imaginação se esforçou para ver? Quando as perguntas e
demandas por respostas queimaram tanto que você tremia de fúria por não saber?
“Temos que começar a consciência com uma batalha de heroínas e heróis como você
já lutou e perdeu, deixando-nos sem nada em nossas mãos, exceto o que você imaginou
estar lá? Sua resposta é engenhosa, mas sua engenhosidade nos embaraça e deveria te
constranger. Sua resposta é indecente em sua autocongratulação. Um roteiro feito para a
televisão que não faz sentido se não houver nada em nossas mãos.
“Por que você não estendeu a mão, nos tocou com seus dedos macios, atrasou a frase
de efeito, a lição, até saber quem éramos? Você desprezou tanto nosso truque, nosso modus
operandi que não percebeu que ficamos perplexos sobre como chamar sua atenção? Nós
somos jovens. Imaturos. Ouvimos durante toda a nossa curta vida que temos que ser
responsáveis. O que isso poderia significar na catástrofe que este mundo se tornou; onde,
como disse um poeta, ‘nada precisa ser exposto, pois tudo já está na cara’. Nossa herança é
uma afronta. Você quer que tenhamos seus velhos olhos vazios e vejamos apenas crueldade
e mediocridade. Você acha que somos estúpidos o suficiente para perjurar a nós mesmos
repetidamente com a ficção da nacionalidade? Como se atreve a nos falar sobre o dever
quando estamos mergulhados na toxina do seu passado até a cintura?
“Você nos banaliza e banaliza o pássaro que não está em nossas mãos. Não há
contexto para nossas vidas? Nenhuma música, nenhuma literatura, nenhum poema cheio
de vitaminas, nenhuma história ligada à experiência que você possa repassar para nos
ajudar a começar com força? Você é uma adulta. A velha, a sábia. Pare de pensar em salvar
sua cara. Pense em nossas vidas e conte-nos seu mundo particularizado. Invente uma
história. A narrativa é radical, criando-nos no exato momento em que está sendo criada.
Não culparemos você se o seu alcance exceder a sua compreensão; se o amor então inflama
suas palavras elas caem em chamas e nada resta além de sua queimadura. Ou se, com a
reticência das mãos de um cirurgião, suas palavras suturarem apenas os lugares por onde
o sangue pode fluir. Sabemos que você pode nunca fazer isso apropriadamente – de uma
vez por todas. A paixão nunca é suficiente; nem é habilidade. Mas tente. Por nossa causa e
pela sua, esqueça seu nome na rua; diga-nos o que o mundo tem sido para você, nos lugares
escuros e na luz. Não nos diga em que acreditar, o que temer. Mostre-nos a saia larga da
crença e o ponto que desfaz o nó do medo. Você, velha, abençoada pela cegueira, pode falar
a língua que nos diz o que só a língua pode: como ver sem imagens. Só a língua nos protege
do terror das coisas sem nomes. Só a linguagem é meditação.
“Diga-nos o que é ser mulher para que possamos saber o que é ser homem. O que se
move na margem. O que é não ter um lar neste lugar. Para ficar à deriva daquele que você
conheceu. O que é viver na periferia de cidades que não suportam sua companhia.”
Tudo fica quieto novamente quando as crianças terminam de falar, até que a mulher
interrompe o silêncio.
“Finalmente”, ela diz, “eu confio em vocês agora. Eu confio em você com o pássaro
que não está em suas mãos porque você realmente o pegou. Vejam. Como é linda, essa coisa
que fizemos – juntos.”
***
Já tendo publicado neste mesmo ano Alienação e liberdade – Escritos psiquiátricos
(2020), obra de Frantz Fanon que reúne textos do autor acerca da relação entre alienação
colonial e doenças mentais, a Editora Ubu – São Paulo – lançou em novembro deste ano
uma nova edição do primeiro trabalho do filósofo e psiquiatra antilhano. Publicado pela
primeira vez em 1952, Pele negra, máscaras brancas, se tornou uma das principais
referências teóricas dos estudos (contra/pós/anti/des/de) coloniais ao mostrar como as
estruturas raciais de uma sociedade afetam a construção da subjetividade dos indivíduos,
seus desejos e a autopercepção de seus papeis sociais e existenciais. Fanon nos mostra
que o quão profundos são, e estão sendo, os efeitos da colonialidade.
Quando conheci Fanon, entrei em tamanho estado de autoanálise que não seria
exagero dizer que vasculhei quase todas as minhas memórias em busca de possíveis
“traumas” que justificassem a construção de uma “máscara branca”. É muito particular a
forma como Fanon nos coloca em diálogo crítico não apenas com a coletividade a nossa
volta, mas também com nossa subjetividade mais íntima. De qualquer maneira,
independente da existência ou não de tais máscaras, o que devemos admitir é que só
alguém com incontestável talento poderia ter escrito um texto tão cirúrgico com tamanha
sensibilidade. Grada Kilomba, no prefácio da nova edição brasileira, comunica-nos a
1Graduando em Filosofia pela Universidade do Estado da Bahia. Professor da rede privada de ensino,
Professor de Filosofia do Pré-Acadêmico Gradação da UFPE e Residente Pedagógico do Instituto Federal da
Bahia. Integra o Laboratório de Africologia e Estudos Ameríndios da UFRJ, a Associação Latino Americana
de Filosofia Intercultural (ALAFI) e o Grupo de Pesquisa Literatura, Cinema e a Nova Gramática Política.
Atualmente coordena o Projeto Euroáka, que investiga como o eurocentrismo se apresenta nas estruturas
epistémicas e curriculares dos cursos superiores de humanidades, letras e artes.
história de sua descoberta da obra fanoniana e sua importância para sua formação; alega
nunca ter “lido nada assim” antes, “tão brilhante e inteligente, tão poderoso”, “seu estilo
literário transbordava em conteúdo e significado”. Ainda segundo a escritora portuguesa:
“a força da sua escrita era tal que, enquanto eu lia, o meu corpo precisava voltar a
superfície, para um fôlego de ar”2. Deivison Faustino, professor da Universidade Federal
de São Paulo e um dos mais sólidos pesquisadores das obras de Fanon, que assina o
posfácio da edição, nos recomenda após a leitura do livro: “fechá-lo por um estante,
respirar fundo e, como os sobreviventes de uma explosão apocalíptica que ainda nem
aconteceu, tatear dentro e ao redor de nós mesmos para aferir o tamanho do estrago.”3
A obra de Fanon possui uma tese central: nas sociedades coloniais4 o negro,
ordinariamente, encontra-se como um “não-ser” que busca o auto “embranquecimento”
de seus atos, vínculos e práticas para que, afastando-se de sua negritude, o mesmo possa
se considerar mais próximo do ideal. Fanon já nos deixa duas premissas: Primeiro, “os
brancos se consideram superiores aos negros”; e segundo: por meio de um complexo de
inferioridade, travestido nos desejos legítimos e performances miméticas decorrentes da
colonialidade, “os negros querem demostrar aos brancos, custe o que custar, a riqueza de
seu pensamento, o poderio equiparável da sua mente”.5 Fanon conclui: “pour le Noir, il n'y
a qu'un destin. Et il est blanc”. 6
As formas de se alcançar tal destino são as mais diversas, apesar de citar outros
exemplos, nesta obra Fanon dá centralidade a dois caminhos de busca pelo
embranquecimento. O primeiro deles é o domínio do idioma do colonizador, de acordo
com Fanon, através do domínio da língua da metrópole o negro da colônia adquire o senti-
mento de superioridade a seus conterrâneos, pois “tão mais branco será o negro das
Antilhas, quer dizer, tão mais próximo estará do homem verdadeiro, quanto mais tiver
incorporado a língua francesa.”. 7 “O ‘desembarcado’ [Negro que retorna as Antilhas após
estadia na França] desde seu primeiro contato, se afirma; só responde em francês e
costumes, tradições, formações familiares e afetivas, epstemologias, crenças religiosas, amores e desejos
próprios – que, ao serem “descobertos” pelos próprios europeus, foram dominados. Comumente tal
dominação ocorre pela violência brutal, epstemicídio e aniquilação cultural, e posteriormente tais modos
de existências são enquadrados para se adequar ao papel subalterno de colônia (locais sistemicamente
saqueados por europeus), passando a se organizar mediante os interesses do colonizador. Em alguns casos,
especialmente nas américas, eles mesmos eram armas biológicas, pois, contaminados pelas doenças virais,
ao entrarem em contato com os povos originários, transmitiram para eles as doenças e enfermidades que
já eram comuns a seus corpos. Cf. “Como colonizadores infectaram milhares de índios no Brasil com
presentes e promessas falsas” (Disponível em: <bbc.com/portuguese/brasil-53452614>.) e “Revelada a
causa do misterioso ‘cocoliztli’, o mal que dizimou os índios das Américas” (Disponível em: <brasil.elpais.
com/brasil/2018/01/15/ciencia/1515997924_75 1783.html>)
5 Fanon, p. 24.
6 “Para o homem negro há apenas um caminho. E ele é branco”, p. 185 da primeira edição francesa.
7 Fanon, p. 31
muitas vezes deixa de entender o criolo”. 8 “Na França se diz: falar como um livro. Na
Martinica: falar como um branco”. 9
Não é à toa que o capítulo que encerra tal obra antes a conclusão: “O negro e o
reconhecimento”, seja aquele em que Fanon em um diálogo opositor a Hegel, apropri-
ando-se da dialética do senhor e escravo mostra as barreiras para que uma relação
sistêmica entre colono/colonizador finde em uma síntese que desague no mútuo
reconhecimento. Fanon percebe que tais estruturas aprisionam negros e brancos em
essencialismos raciais que condicionam suas percepções próprias acerca de seus devidos
papeis na existência. “O movimento ético, político e estético inaugurado por Pele negra,
máscaras brancas, abre um espectro vastíssimo de possibilidade de reflexões,
(auto)análise e, sobretudo, ações.” 13 Ele nos aponta a necessidade dos indivíduos em
descentralizarem seus olhares e interromperem constante peregrinação do colono em
busca da aceitação do colonizador da metrópole como principal meta de autorrealização.
Pele negra, máscaras brancas foi escrito em 1950 como trabalho de conclusão dos
estudos de Fanon em Psiquiatria, porém, foi recusado pela banca que desejavam uma
8 Fanon, p. 38.
9 Fanon, p. 35.
10 Fanon, p. 79.
11 Fanon, p. 62.
12 Fanon, p. 45.
13 Posfácio Deivison Faustino, p. 262.
“abordagem ‘positiva’ [que tivesse] mais bases físicas para os fenômenos psicológicos”. 14
A questão é que “tratar do racismo antinegro no contexto francês soava estranho à
academia da época. Havia a ideia de que o racismo sistêmico era um problema dos
Estados Unidos, que não estava presente na França. Inclusive, esse pensamento existe até
hoje”15. Recusado não apenas por sua banca, mas também em territórios inteiros, o livro
inaugural de Fanon também chegou a ser proibido em alguns locais.
No final dos anos 1960 a obra foi traduzida em Portugal, no Porto, e de imediato
censurada e eliminada do mercado pelos serviços secretos, não voltando a
reaparecer até hoje. A sua circulação durou apenas alguns dias – após ter sido
distribuída para leitura, ela foi proibida.
No documento oficial de censura, lê-se ‘O autor é negro, comunista [...]. Trata-se
duma diatribe contra a civilização ocidental, numa pseudodefesa das civilizações
negra, oriental e índia. Para proibir.’ Com o verbo realçado. 16
O fato de que tal obra, atualmente tão relevante e aclamada, ter sido negada em
primeira estância pela banca e posteriormente pelos poderes governamentais, nos
direciona a duas importantes reflexões. A primeira delas refere-se a academia: as
instituições de ensino superior são pharmakos raciais, locais que podem ser tanto veneno
quanto remédio para à descolonialidade. Por serem instituições do conhecimento elas
podem nos ajudar a realizar, através da pesquisa, do ensino, das atividades de extensão e
principalmente das patiologias,17; a autoanálise, reflexão e desconstrução da coloni-
alidade, ajudando-nos na construção de organizações sistêmicas, artísticas e intelectuais
de combate ao racismo. Entretanto, por também ser uma instituição, as universidades
ainda nos direcionam a reproduzir as limitações da tradição, e como nossa tradição
também é europeia, também há colonialismo dentro de nós. Como bem nos aponta Fanon:
é o povo colonizado, um “povo em cujo seio se originou um complexo de inferioridade em
decorrência do sepultamento da originalidade cultural local”. 18
Lembro-me de uma história uma vez dita em um dos eventos do curso de Filosofia
da Universidade do Estado da Bahia. Conta-se que após anunciarem “Finalmente temos
um curso de Filosofia” para alguém do departamento, o interlocutor logo respondeu: “De
fato, agora podemos dizer que a universidade está completa, que é de fato uma
universidade”. Acredito que o mesmo pode ser dito sobre Fanon neste momento: uma
universidade brasileira que, tendo disponível, não possui um exemplar sequer deste
autor, talvez diga muito sobre o pouco que tem.
14 Prefácio de Lewis Gordon, Pele negra, máscara brancas. (Salvador: EDUFBA, 2008, p. 13)
15 Cf. “Por que ‘Pele negra, máscaras
brancas’ deve ser lido por brancos e negros”. Disponível em: <oglobo.gl
obo.com/cultura/por-que-pele-negra-mascaras-brancas-deve-ser-lido-por-brancos-negros-247 54752>.
16 Prefácio de Grada Kilomba, p. 14
seus interlocutores que ocorrem naturalmente nos espaços físicos das universidades para além da sala de
aula. Também pode ser entendido como: “saberes complementares desenvolvidos no pátio”.
18 Fanon, p. 32
E por fim, a segunda questão central: Se rejeitada no passado pela banca, e hoje
aclamado, traduzido para vários idiomas, publicado em dezena de países, em milhares de
estantes, com milhões de leitores em todo mundo, e já em sua segunda edição no Brasil é,
como evidencia nosso título, porque sim, Fanon está tão atual como nunca. Tão necessário
quanto nunca, principalmente nas terras tupiniquins. “É normal na Martinica sonhar com
uma salvação que consiste em branquear magicamente”, E ainda no Brasil tal sonho
também é sonhado. O ciclo de opressão e impossibilidades puras de reconhecimento
causado pelos complexos deixados pelos séculos de colonialismo ainda tornam o Brasil
um país estruturalmente racista e norte/eurocentralizado. Desde os padrões muito bem
determinados dos fenótipos físicos que compõe as classes sociais, até as metas
existenciais para felicidade, dignidade e autoafeto. No Brasil, o país que conseguiu
transformar o estupro sistemático de mulheres vulnerabilizadas pela condição racial no
orgulho alegre da “democracia racial" de um povo miscigenado, tem muito trabalho pela
frente que, provavelmente, pelas conjunturas políticas que nos circundam, será cada vez
mais difícil. Até lá, teremos boas iniciativas, em diversas esferas, incluindo a publicação e
popularização de importantes pensadores, como é o caso desta obra que aqui falamos,
como é o caso de pensadores como Fanon.
Resumo: No presente artigo, descrevemos a análise de Frantz Fanon no clássico Pele negra, máscaras
brancas sobre a posição psicoexistencial do negro, sua relação com o corpo, a subjetividade, o ser Outro e o
mundo nos campos da cultura, da sociedade e das ciências. Apresentamos, em uma perspectiva pós-colonial,
como a existência do sujeito negro se reflete, a partir da crítica de Fanon, nos conceitos estabelecidos pelo
Ocidente na Modernidade, como a representação do negro mistificado e as bases epistemológicas que
reforçam estereótipos destinados a ele.
Abstract: In this article we describe Fanon's analysis in the classical Black skin, white masks about the
psycho-existential position of black people, their relationship with their body, subjectivity, be Other one and
the world in the regarding to of culture, society and sciences. We present a postcolonial perspective about
how the existence of black people is reflected here, based on Fanon's critique about concepts established by
the West in Modernity, such as the representation of the mystified black person and the epistemological basis
that reinforce stereotypes intended for this individual.
1Graduado em Filosofia pela Universidade Estadual da Bahia. Pesquisa na área de filosofia e teoria social:
gênero, questões etnorraciais, colonialismo e pós-colonialismo. E-mail: rafaelvitorio@gmail.com.
2A expressão aqui utilizada, também presente em Fanon, corresponde à categoria dos nativos das colônias.
3Reproduzimos aqui a nota do tradutor Renato Silveira (In: FANON, 2008, p. 47) para explicar o sentido da
expressão: “A expressão y’a bon banania remete a rótulos e cartazes publicitários criados em 1915 pelo
pintor De Andreis, para uma farinha de banana açucarada instantânea a ser usada ‘por estômagos delicados’
no café da manhã. O produto era caracterizado pela figura de um tirailleur sénégalais (soldado de infantaria
senegalês usando armas de fogo), com seu filá vermelho e seu pompom marrom, característicos daquele
batalhão colonial. O ‘riso banania’ foi denunciado pelo senegalês Léopold Sedar Senghor em 1940, no prefácio
ao poema ‘Hóstias negras’, por ser um sorriso estereotipado e um tanto quanto abestalhado, reforço ao
racismo difuso dominante. Em 1957, o publicitário Hervé Morvan criou uma versão mais gráfica, mais
modernizada, do ‘sorriso banania’, permanecendo sua estilização em uso nas caixas do produto até o início
da década de 1980”.
4A feminista negra Carla Akotirene, aborda a denúncia que fez a pensadora e abolicionista afro-americana
Sojourner Truth sobre a infantilização da mulher negra: “Eu quero que você considere que sou uma criança
de alguém e, eu tenho idade suficiente para ser mãe de todo mundo aqui” (AKOTIRENE, 2018, p. 21).
5 Assim Fanon descreve a situação colonial de desordem absoluta e tensão constante ao colonizado: “O
colonialismo não é uma máquina de pensar, não é um corpo dotado de razão. Ele é violência em estado
natural, e só pode se inclinar diante de uma violência maior” (FANON, 2005, p. 78).
6“Weltanschauung” significa visão de mundo ou cosmovisão, é uma concepção universal, intuitiva ou pré-
teórica de como um indivíduo ou uma comunidade pressupõe o mundo, a vida em seu sentido mais geral.
choro e às vezes eu rio, às vezes eu quero e clareza quanto ilusão. Clareza, ilusão e
às vezes eu não quero. Quero ter essa verossimilhança que são frutos de um
liberdade humana de ser eu. (KILOMBA; poder constitutivo do próprio mito: o de
RIBEIRO, 2016). dissolver, simbolicamente, as contradições
que existem em seu redor. (SOUSA, 1983,
O negro não deve ser ele e lhe é p. 25).
imposto aquilo que se espera dele: “Repito,
eu estava murado: nem minhas atitudes Neusa Sousa traz uma importante
polidas, nem meus conhecimentos contribuição nas teorias sobre a
literários, nem meu domínio da teoria dos subjetividade e identidade negra no Brasil.
quanta obtinham indulto” (FANON, 2008, Leitora de Fanon, pôde observar o quanto
p. 109). O racismo impossibilita o negro de as relações sociais e coloniais racistas
existir plenamente, de encontrar o sentido sustentam o mito do negro para suprimir
da sua vida, descer aos seus verdadeiros as diferenças e contradições existentes no
infernos, ou seja, de viver os conflitos sujeito. Na esteira de Fanon, ela faz uma
existenciais, próprios do sujeito. O crítica da concepção de sujeito branco
sociólogo Deividson Faustino evidencia a apenas enquanto como homem, enquanto
principal intenção do processo de o negro está enclausurado em ser um
racialização do mundo: homem negro; de um negro se espera
apenas a “conduta” de negro – para dizer
A racialização do mundo contemporâneo mais uma vez. De forma paradoxal, ao
implica, para Fanon, não o surgimento de
negro é dada uma cobrança muito maior. O
mais um conflito existencial – ou
discriminação ou preconceito –, mas a que se espera dele é a ação voltada a uma
impossibilidade, para os povos mistificação do seu ser, ao mesmo tempo
racializados, de viver plenamente os que lhe exigem não ser esse ser
conflitos existenciais que nos fazem mistificado. O que lhe sobra? Para Fanon, o
humanos. (FAUSTINO, 2015, p. 60).
negro nem sequer ainda é considerado um
Trazendo uma outra perspectiva homem: “mesmo expondo-me ao
teórica, a psicanalista Neusa Santos Sousa ressentimento de meus irmãos de cor,
permiti-nos compreender este processo direi que o negro não é um homem”
de apagamento da subjetividade negra em (FANON, 2008, p. 25). Eis a questão!
detrimento da construção ideológica de
Ao negro é imposto corresponder à
um “mito negro”. As representações do
expectativa do mundo do branco.
negro são baseadas em acidentes, sejam
Transformado em coisa: “O preto é um
biológicos, sociais, históricos, psicológicos,
brinquedo nas mãos do branco; então,
mas elevadas à categoria de essência, para
para romper este círculo infernal, ele
homogeneizar e enquadrar o ser do negro:
explode” (ibid., p. 126). Romper este
Quando a natureza toma o lugar da círculo infernal é urgente, mas a
história, quando a contingência se consequência deste rompimento é a
transforma em eternidade e, por um
angústia em descobrir o sentido do seu
“milagre econômico”, a “simplicidade das
essências” suprime a incômoda e existir. Pois, a existência negra é vasta,
necessária compreensão das relações ampla, mas desejam castrá-la, amputá-la:
sociais, o mito se instaura, inaugurando
um tempo e um espaço feitos de tanta
Sinto-me uma alma tão vasta quanto o explica bem esse processo em A construção
mundo, verdadeiramente uma alma do Outro como não-ser como fundamento
profunda como o mais profundo dos rios,
do ser, mostrando que, na construção do
meu peito tendo uma potência de
expansão infinita. Eu sou dádiva, mas me modelo de humanidade, o ser branco se faz
recomendam a humildade dos enfermos... a partir da negação de uma alteridade
ontem, abrindo os olhos ao mundo, vi o céu racializada, por meio do dispositivo de
se contorcer de lado a lado. Quis me racialidade / biopoder, subordinando
levantar, mas um silêncio sem vísceras
racialmente as produções sociais,
atirou sobre mim suas asas paralisadas.
Irresponsável, a cavalo entre o Nada e o culturais, de vitalismo e mortandade,
Infinito, comecei a chorar. (Ibid., p. 126). produzindo discursos e práticas de saber e
de poder. A normatividade, o
O objetivo de Fanon com sua escrita
comportamento socialmente aceito, é
não é provar a igualdade ou dignidade do
estruturado pelo modelo social branco
negro em comparação ao branco, muito
cisheteropatriarcal, visto como universal.
menos provar a humanidade do mesmo,
Sueli Carneiro, ao comentar a obra de
pois o negro sabe que não é um animal.
Fanon, demonstra o processo de
Anseia por libertar o negro do arsenal de
assujeitamento racial que o modelo branco
complexos germinados no seio da situação
constrói, como ideal de ego, na psique do
colonial. Pois, ao negro, resta o querer ser
negro, enquanto relação opressor/
branco, para alcançar a condição de
oprimido:
humano que tanto lhe negaram e que o
branco reserva para si e seus semelhantes, No caso da racialidade negra em que o
apenas deixando para o negro as imagens corpo negro é em si mesmo, na sua
existência, uma transgressão no âmbito de
e a linguagem que lhe impuseram.
um ideal de ego de uma sociedade que se
Fanon alerta que o negro precisa deseja branca, civilizada nos parâmetros
da cultura ocidental e herdeira de seus
livrar-se das sombras que escondem a sua
códigos prescritivos no plano moral os
existência. Ao tentar exprimir a existência, ajustes que são impostos aos corpos
ele não encontra senão a inexistência. O negros constituem um código prescritivo
negro é condenado a não ser nem branco e cujo tipo ideal seria o negro de alma
nem negro em essência, mas puramente branca, ou seja, um negro ajustado,
governado por um alter ego branco.
um enclausurado.
Inegavelmente que em toda situação de
Sentimento de inferioridade? Não, sujeição o opressor é parte constitutiva da
sentimento de inexistência. O pecado é psicologia do oprimido, fato
preto como a virtude é branca. Todos estes exaustivamente estudado e demonstrado
brancos reunidos, revólver nas mãos, não por Frantz Fanon cujo título de um de seus
podem estar errados. Eu sou culpado. Não livros é auto-explicativo sobre esse tema:
sei de quê, mas sinto que sou um Pele negra, máscaras brancas. (CARNEIRO,
miserável. (Ibid., p. 125). 2005, p. 302).
o negro “deve poder tomar consciência de pessoa. Em torno do corpo reina uma
uma nova possibilidade de existir”. E é a atmosfera densa de incertezas [...] lenta
construção de meu eu enquanto corpo, no
partir dessa perspectiva que o
seio de um mundo espacial e temporal, tal
compreendemos não somente como um parece ser o esquema. Este não se impõe a
autor fundamental ao pós-colonialismo, mim, é mais uma estruturação definitiva
mas também, a uma filosofia do eu e do mundo – definitiva, pois entre
existencialista negra, ou melhor, que não meu corpo e o mundo se estabelece uma
dialética efetiva. (FANON, 2008, p. 104).
deixe o negro ausente em sua ontologia.
Dialogando estreitamente com o O negro e o mundo, o negro e o
existencialismo francês de sua época, branco, efetiva dialética na qual a
Fanon demonstra que a vida humana é existência negra nem sequer é visibilizada
constituída de conflitos, contradições e como humana. Ser preto nesse esquema-
dilemas, e são essas as vias que histórico-racial corporal tem como peso o
possibilitam uma ampliação da nossa fato de ser preto, a maldição de suportar
consciência, das nossas escolhas: descer ser estranho a este mundo branco. Para
aos verdadeiros infernos e assumir a analisar a linguagem do sistema colonial,
responsabilidade pela nossa existência e Fanon utilizou de elementos da construção
dos outros. Segundo o filósofo, modos que o branco fez do negro, não como um
possíveis que o sujeito negro pode chegar Outro Eu na perspectiva ontológica, mas
a uma consciência de si e dos outros (cf. como suplemento de si mesmo:
FAUSTINO, 2015, p. 59). Existir para Fanon Os elementos que utilizei não me foram
é ser capaz de escolher a sua própria ação fornecidos pelos “resíduos de sensações e
diante das estruturas sociais e dos percepções de ordem sobretudo táctil,
conflitos subjetivos. espacial, cinestésica e visual”, mas pelo
outro, o branco, que os teceu para mim
através de mil detalhes, anedotas, relatos.
Eu acreditava estar construindo um eu
A corporeidade negra fisiológico, equilibrando o espaço,
localizando as sensações, e eis que exigiam
O olhar do branco traz ao negro um
de mim um suplemento. (Ibid., p. 105).
peso inusitado de opressão, exatamente
porque apenas o mundo branco assume-se Desmorona assim, no sistema
como verdadeiro. Por ser “muito corpo”, o colonial, um esquema corporal cedendo
negro encontra dificuldades na elaboração lugar a um esquema epidérmico racial,
de seu esquema corporal, ele vê seu corpo levando o negro a não se ver mais em
como estranho a si, olha a si mesmo em terceira, mas em tripla pessoa, “ao mesmo
terceira pessoa, como um corpo que não é tempo responsável pelo meu corpo,
o seu, por não ser considerado responsável pela minha raça, pelos meu
“verdadeiramente humano”: ancestrais” (ibid., p. 105). A busca pelo
sentido de vida, do seu corpo revelado à
No mundo branco, o homem de cor
consciência, não é vivida em plenitude
encontra dificuldades na elaboração de
seu esquema corporal. O conhecimento do exatamente porque o negro não reconhece
corpo é unicamente uma atividade de seu próprio corpo no mundo branco.
negação. É um conhecimento em terceira
7 Explicando em linhas gerais a filosofia de Heidegger, ôntico corresponde à dimensão concreta, física e
factual do ente, em oposição ao ontológico, que se refere a questões sobre o ser ou essência do ente.
Referências
APPIAH, Kwame Anthony. Na casa de meu pai: a África e a filosofia na cultura. Trad. Vera
Ribeiro. Rio de Janeiro: Contratempo, 1997.
CARNEIRO, Aparecida Sueli. A construção do Outro como não-ser como fundamento do ser.
São Paulo: FEUSP, 2005. (Tese de doutorado).
FANON, Frantz. Pele negra, máscaras brancas. Trad. de Renato da Silveira. Salvador:
EDUFBA, 2008.
FANON, Frantz. Condenados da Terra. Tradução: Enilce Albergaria Rocha, Lucy Guimarães.
Rio de Janeiro: Editora UFFJ, 2005.
FAUSTINO, Deivison Mendes. Por que Fanon? Por que agora? Frantz Fanon e os fanonismos
no Brasil. São Carlos. 260 p. Tese de Doutorado em Sociologia. UFSCar. 2015.
FAUSTINO, Deivison Mendes. O pênis sem o falo: algumas reflexões sobre homens negros,
masculinidades e racismo in: Blay, Eva Alterman. Feminismos e masculinidades: novos
caminhos para enfrentar a violência contra a mulher. São Paulo: Cultura Acadêmica, 2014.
HALL, Stuart. Da diáspora: identidades e mediações culturais. Liv Sovik (org); Tradução de
Adelaine La Guardia Resende. Belo Horizonte: Editora UFMG (Humanitas), 2009.
KILOMBA, Grada; RIBEIRO, Djamila. “O racismo é uma problemática branca” diz Grada
Kilomba. Carta Capital, 30 mar. 2016. Disponível em: <https://www.cartacapital.com.br/
politica/201co-racismo-e-uma-problematica-branca201d-uma-conversa-com-grada-kilo
mba>. Acesso em: 05 ago. 2019.
Resumo: Já não é mais possível ignorar o relativismo cultural, o reconhecimento crescente de que toda
cultura e seus paradigmas são relativos a determinadas condições. Ao mesmo tempo, do relativismo
facilmente desabrocha a incomensurabilidade: em que cada cultura é completa e irrecuperavelmente
diferente de todas as outras. Cada um com a sua verdade e por fim ficamos todos sem certeza alguma; "não
há fatos, só interpretações". Estamos diante do desafio de levar a pluralidade epistemológica realmente a
sério e ao mesmo tempo tornar essa pluralidade comensurável, isto é, restituir a objetividade. Para tanto, é
preciso criar um instrumental capaz de fazer os paradigmas culturais se comunicarem de novo. Este trabalho
pretende apresentar uma ferramenta que pode contribuir para a solução desse problema. Trata-se aqui de
expor a infralinguagem tal como a concebe Bruno Latour, uma ferramenta de pesquisa que não possui outro
sentido além de permitir o deslocamento de um quadro de referência a outro. Nossa tese é a de que
infralinguagem - e sua branda metafísica de fundo - oferece uma maneira de manter (e enriquecer) a
pluralidade cultural, sem necessariamente instaurar uma completa incomensurabilidade.
Abstract: It is no longer possible to ignore cultural relativism, the recognition that all culture and its
paradigms are relative to certain conditions. At the same time, relativism easily blossoms into
incommensurability, where each culture is completely and irrecoverably different from all others. Each one
with its own truth and finally we are all left with no certainty; "there are no facts, only interpretations". We
are in face of the challenge of taking epistemological plurality seriously and at the same time making that
plurality commensurable, which is, restoring objectivity. To do so, it is necessary to create an instrumental
capable of making the cultural paradigms communicate again. This work aims to present a tool that can
contribute to the solution of this problem. This study is about exposing the infralanguage as conceived by
1 Artigo desenvolvido a partir do trabalho final da disciplina de Atualização e Prática do Direito – Teoria dos
Sistemas e Teoria Ator-Rede (2020), ministrada pelo professor Otávio Souza e Rocha Dias Maciel na
Faculdade de Direito da Universidade de Brasília.
2 Graduando em Direito pela Universidade de Brasília. E-mail: mateusrodrigues1212@gmail.com.
Bruno Latour, a research tool that has no other meaning than to allow the shift between one frame of
reference to another. Our thesis is that infralanguage - and its soft metaphysics of background - offers a way
to maintain (and enrich) cultural plurality, without necessarily establishing a complete incommensurability.
Rede (2012). Caso ao fim ainda persista a completamente distintas. Numa mesma
impressão de que faltam muitas outras conversa, transeuntes costuram uma
peças e maiores esclarecimentos para sua colcha de retalhos com um punhado de
real aplicação, nós só poderemos conceitos químicos, algumas deidades
concordar. Escapa-nos aqui a populares, certas previsões econômicas e
possibilidade de uma apresentação um bocado de suposições psicanalíticas;
exaustiva e ampla de todas as nuances, num mesmo escritório congregam-se
peculiaridades, expectativas e pressupos- bugigangas chinesas, exames cardio-
tos da infralinguagem. Antes disso, nos vasculares, cadeiras suíças, literatura
contentaremos em realizar uma primeira russa e recibos de eletrodomésticos. O que
aproximação. logo vemos, por toda parte, é uma
miscelânea vertiginosa de coisas hetero-
gêneas que, ainda assim, coabitam
A infralinguagem normalmente. Mais do que isso, criam e
recriam o próprio ambiente.
Haveremos de concordar que o
primeiro passo para uma filosofia capaz de Ao começar em meio as coisas, no
reconquistar a comensurabilidade é traçar mundo concreto, nossa experiência logo
uma porção de preceitos suficientemente nos indica que não existe um ponto de
gerais e livres que permitam o livre partida incontroverso. Qualquer categoria
trânsito entre os paradigmas. Ocorre, que escolhêssemos para avaliar um
porém, que já estamos um bocado determinado evento poderia, sem muita
desconfiados de tais preceitos “gerais” e dificuldade, ser questionada. Avaliar a
“livres”. Não seriam eles mesmo pro- interlocução mencionada como produto
fundamente enviesados? Não estariam da micropolítica capitalista é tão arbitrário
desde sua concepção maculados por uma quanto entendê-la como mera conse-
“interpretação” do mundo específica? quência da graça divina. Ambas as
Certamente, mas nada impede que posturas encontrarão largos motivos a seu
façamos uma interpretação bastante favor e edificarão arranha-céus de
ampla, “desapegada”, que deixe espaço argumentação e dissecação analítica do
para o desenrolar dos eventos. Mas como evento sem, no entanto, ser possível
fazer isso? decretar um “vencedor” final. É
exatamente o que salta aos olhos nos
Bruno Latour acredita que o melhor
estudos interculturais: mesmo as noções
é começar em meio às coisas, isto é, ver o
mais incontestes para uma cultura é vista,
que nossa própria experiência pode nos
aos olhos de outra, como altamente
comunicar (LATOUR, 2012, p. 49). Se
questionáveis ou naturalmente incon-
lêssemos, por exemplo, um jornal, ou
cebíveis. Por isso mesmo, não podemos
observássemos uma conversa no meio da
delimitar ou estabilizar, de partida, uma
rua, ou ainda déssemos uma olhada no
lista de princípios ou categorias que de
ambiente mesmo em que estamos
alguma forma julgamos universais. Pode
situados, seria possível observar uma
parecer que não avançamos em nada, mas
mixórdia caótica de elementos de origens
3 É imprescindível notar essa diferença. Latour não é empirista como Locke, mas é empirista como William
James, de quem ele apreende essa nova ideia de empirismo. Para explicitar seu tipo de empirismo, Latour
escreve: “O primeiro empirismo, aquele que impunha uma bifurcação entre as qualidades primárias e
secundárias, tinha a estranha peculiaridade de retirar da experiência todas as relações! O que restava? Uma
poeira ‘sensory data’ que o ‘espírito humano’ tinha de organizar ‘acrescentando’ as relações das quais haviam
sido previamente retiradas de todas as situações concretas [...] O que se poderia chamar de segundo empirismo
(James o chama de radical) pode se tornar novamente fiel à experiência à medida que começa a seguir as
nervuras, os condutos, as expectativas, as relações [...]. E essas relações estão indubitavelmente no mundo
com a condição de que esse mundo seja enfim desenhado para elas e para todas elas” (Latour, 2019: 151).
4 Esse ponto exigiria maiores esclarecimentos e uma explanação minimamente detalhada sobre a metafísica
de que parte tanto Latour como a ANT. Em suma, ambos assumem uma postura metafísica englobada no que
tem-se costumado chamar de filosofia do processo.
que chama de infralinguagem, “algo que desde logo, ter as respostas para as
não possui outro sentido além de permitir querelas interculturais, mas sim que
o deslocamento de um quadro de oferece os termos mais voláteis possíveis
referência a outro” (LATOUR, 2012, p. 53). para seguir as discussões.
É um conjunto de termos que ao mesmo
Por esse motivo, como nota Latour,
tempo que assume como pressuposto a
é uma virtude dos termos infralinguísticos
instabilidade e a contingência de todos os
terem um significado tão profuso quanto
pontos de partida, também está habilitado
vazio. Podem, cada qual, significar muitas
a se conformar e exprimir ao que os
coisas, mas por si só não definem quase
próprios partícipes da discussão e
nada. São termos evasivos, vagos, e
membros de cada tradição têm a dizer.
também amplos, móveis, cujo maior
Que fique claro que não se trata de mérito é sua sensibilidade. Nos estudos
uma metalinguagem, pois correríamos o interculturais, os termos da infrali-
risco de competir dentro da discussão pela nguagem deveriam ser capazes de alternar
primado dos termos, afinal, cada cultura e entre os quadros de referência de várias
cada tradição tem também sua própria culturas e paradigmas se afeiçoando
metalinguagem plenamente reflexiva e àquilo que cada um tem de próprio; ou
elaborada (LATOUR, 2012, p. 53). Se fosse seja, sem trazer “de fora” ou estabelecer a
essa a proposta, não deixaríamos de tentar priori a chave interpretativa correta.
nos colocar acima da discussão, como um
Quais seriam esses termos? Latour
observador onisciente e pretensiosamente
costuma usar as palavras “ator”, “actante”,
mais qualificado que os demais para
“rede”, “grupo”, “coletivo”. Vejamos mais
decidir e julgar sobre a verdade das coisas.
de perto o que elas significam.
Ai de nós! Cairíamos de novo no mesmo
fosso de qual estamos tentado sair. A ANT
com sua infralinguagem, diferentemente,
Atores ou actantes
se põe atrás da discussão, acompanha-a
minuciosamente, se desloca de um quadro Seguindo os preceitos de uma boa
de referência a outro, toma nota do que é infralinguagem, um ator pode ser,
dito pelos interlocutores. Uma boa simplesmente, qualquer entidade real. É
infralinguagem, para Latour, é aquela em um ator ou um actante um peregrino, uma
que os conceitos figuram como mais fracos árvore, um templo ou um planeta, mas
do que aqueles que ela visa captar também o é um Deus, uma ideia, um país
(LATOUR, 2012, p. 53). Por exemplo, usar ou um espírito da floresta. Todas as
a palavra “usuário” de drogas e não entidades “imaginárias” ou “reais”, “ideais”
“viciado” é uma boa maneira de ver isso; a ou “concretas” são atores. Essa ideia
terminologia deixa a questão menos instaura, para todos os existentes, o
enviesada e suspende a forte carga mesmo plano ontológico. Os xapiri dos
valorativa que outros termos poderiam Yanomami não são mais ou menos reais do
impingir. Em nosso objetivo aqui, uma boa que a Ibovespa; ambos agem e resistem à
infralinguagem, portanto, seria aquela que sua maneira, permanecendo na existência.
não monopoliza o discurso, aspirando, Assim, a noção de actantes ou atores não
pré-estabelece quais entidades são dignas muitos desses actantes sobreviveram, isto
de existir e quais não, quais devem ser é, resistiram. As histórias de conquista, os
levadas a sério e quais são puras criações arcos comemorativos e alguns exemplares
(inter)subjetivas e “simbólicas”. das armaduras, todos esses atores
resistiram ao fim de Roma e, por isso,
O que determina a existência de um
existem. O próprio Império Romano,
actante é simplesmente sua capacidade de
entendido de uma certa forma, ainda
resistir. Em seu Irreduções, Bruno Latour
existe – sua arte, sua história, suas ideias,
escreve: “Não há diferença entre o “real” e
seus edifícios –, não o fosse e sequer
o “irreal”; entre o “real” e o “possível”,
poderíamos falar sobre ele. Os atores,
entre o “real” e o “imaginário”. Ao
portanto, são tudo aquilo que resiste na
contrário, há todas as diferenças
realidade.
experienciadas entre aqueles que resistem
por muito tempo e os que não, os que Compreender as coisas dessa forma
resistem corajosamente e os que não” – perfeitamente permitida pela nossa
(LATOUR, 1988, aforismo1.1.5.25). Se experiência cotidiana – tem a qualidade de
forem capazes de resistir ao tempo e ao abrir a análise para uma forma de realismo
encontro com outros actantes, os atores expandido. Não é mais preciso reduzir
permanecem existindo e cocriando, com tudo, desde o início da discussão, a um
todos os demais atores, a realidade; caso mundo subjetivo e outro objetivo. As
não resistam, deixam de existir, de coisas não devem responder, desde logo, à
aparecer e de criar o mundo. Por exemplo, inquisição que demanda saber se são parte
com a dissolução do Império Romano, que da Natureza, do mundo exterior e “real”, ou
foi um congregado gigantesco de atores, se são apenas uma sombra da Cultura, o
suas legiões também se dissolveram, e isso mundo intersubjetivo e “representativo”.
significa que os povos germânicos não Pensar a partir de actantes abre-nos a
precisam mais temer qualquer invasão de possibilidade de ver uma concretude
seus vizinhos latinos. Traduzindo a generalizada: todo ente, todo ator tem o
situação para os termos latourianos, o ator direito de existir à sua maneira. Com isso,
“exército romano” não foi capaz de resistir tomando as palavras de Latour,
ao fim de Roma, o que quer dizer que ele “aceitaremos, como atores completos,
não existe mais. Ocorre que, por sua vez, o entidades que foram explicitamente
fato concreto “exército romano” era feito banidas da existência coletiva por mais de
de muitos atores; os escudos, as lanças, os um século” (LATOUR, 2012: p. 105, grifo
soldados, os generais, as histórias, as do autor). Assumir a infralinguagem
estátuas, os planos de guerra, os centros de restitui esse direito às coisas e nos permite
formação, tudo isso formava o exército de acompanhá-las na sua existência sui
Roma. Mesmo com as invasões bárbaras generis, seja ela concebida dentro de
5 Tradução para fins acadêmicos não-publicada por Otávio Souza e Rocha Dias Maciel. No original: “1.1.5.2
There is no difference between the "real" and the "unreal", the "real" and the "possible", the "real" and the
"imaginary." Rather, there are all the differences experienced between those that resist for long and those
that do not, those that resist courageously and those that do not, those that know how to ally or isolate
themselves and those that do not.”
ele precisa registrar em seu caminho; tem encontrar um swami vedantino não
de ser tão custoso quanto a necessidade de pressupuséssemos que o que ele tem a
estabelecer conexões entre os muitos dizer está em consonância com a revelação
mediadores que pululam a cada passo; e cristã, ou que o sistema lógico dos jainistas
tem de ser tão reflexivo, articulado e segue perfeitamente os preceitos da lógica
idiossincrático quanto os atores que clássica ocidental. Pode ser que sim, é
cooperam em sua elaboração. Precisa provável que não; o que importa é estar
registrar diferenças, absorver multipli- apto a seguir a trilha que cada novo
cidade, reformular-se a cada novo caso” paradigma marca na realidade. E quanto a
(LATOUR, 2012, p. 179). isso, acredito que a infralinguagem de
Latour tem algo a oferecer.
De certa forma, a infralinguagem
não resolve problema algum, mas tenta Além disso, com a possibilidade de
despoluir a discussão de boa parte de seus seguir livremente as redes e de escutar
pressupostos inconvenientes. Como já está seriamente nossos informantes, ganhamos
claro, até aqui foi proposto muito pouco, a capacidade de formular uma metafísica
um punhado de noções difusas que empírica como ponto de chegada das
permitam ao investigador acompanhar o controvérsias (LATOUR, 2012, p. 81). De
que cada paradigma cultural tem a dizer. forma muito geral, a metafísica é uma
Entretanto, isso já é muito. Talvez o grande disciplina que almeja definir a estrutura
mérito da estratégia infralinguística de básica do mundo e delinear seus princípios
Latour é o de se colocar numa posição e sua natureza. Diante disso, depois de
inicial especialmente vantajosa para tomar termos percorrido a imbricada rede de
quase qualquer rumo em seguida. Sua actantes oferecidos por um paradigma
vantagem não é ser capaz de ver as coisas sempre em movimento, possivelmente
de cima, a partir da perspectiva do Todo, será possível traçar, como produto, uma
mas sim ser capaz de acompanhar as metafísica empírica. Talvez a metafísica
associações aonde quer que elas vão. Como empírica seja distinta da metafísica teórica
sabemos depois de anos de crítica, é de um certo paradigma cultural, mas se
impossível ao pesquisador suspender tivermos sido bem sucedidos, nem por isso
todos os seus preconceitos e categorias, nossos informantes ficarão insatisfeitos,
mas uma boa forma de lidar com a questão afinal, não desconsideramos nenhum dos
é escolher preconceitos e categorias actantes que eles conferem existência.6
bastante amplos. Já seria muito se ao Contudo, e uma vez mais, não podemos, de
6Essa suposição está quase completamente apoiada na minha própria experiência ao ler Investigações sobre
os modos de existência: uma antropologia dos modernos (2019), outra obra de Latour, em que põe em prática,
com a própria modernidade, o tipo de análise que tento explicitar aqui. O resultado foi um relato
impressionantemente aguçado que, embora estivesse em completa dissonância com a autonarrativa
moderna, oferece ao leitor uma visão excepcionalmente clara da modernidade. Um relato que salvaguardou
todos os actantes das complexas redes da modernidade, e que foi de encontro tão somente à aquilo que seus
próprios constituintes falavam sobre ela. Posso dizer que Latour traçou um relato capaz de esclarecer aos
modernos a própria rede que eles mesmos cocriaram, mas que ainda litigam por entender. A partir dessa
experiência, encontro alguma razão para acreditar que o mesmo pode ocorrer alhures.
partida, limitar o volume e a natureza das alguma coisa e não ficam apenas
associações ou dos atores a fim de libertar observando” (LATOUR, 2012, p. 189, grifo
quem quer que seja da ilusão e do engano do autor). Eis um ponto essencial. Com
(LATOUR, 2012, p. 82). Os antropólogos efeito, se um actante não faz
mostraram repetidas vezes como “os absolutamente nada em uma rede, se não
atores se envolvem sem parar nas tem papel algum, se não contribui para que
construções metafísicas mais abstrusas, coisa alguma seja de determinada forma e
redefinindo todos os elementos do não de outra, então temos um ator que não
mundo” (LATOUR, 2012, p. 82). Só temos a oferece resistência alguma. Não havendo
perder se resolvermos traduzir sempre as diferença entre sua existência ou
complexas redes dinâmicas e multifa- inexistência para nada mais, simplesmente
cetadas de outras tradições através do não há modo de aferir sua concretude,
gabarito que a modernidade nos legou. outra forma de dizer que ele não resiste ao
Com efeito, como nota Latour, os atores seu apagamento. Posso até acreditar haver
cultivam muitas filosofias, mas os teóricos um elefante rosa ao meu lado, mas é fato
acham que deveriam ater-se somente a que o pobre elefante não resistiria a
umas poucas; os atores enchem o mundo nenhum dos possíveis teste de resistência
de ações, enquanto os teóricos lhe ensinam a que fosse submetido. O ator “elefante
de que tijolos seu mundo é “realmente” rosa”, assim, não faz absolutamente nada
edificado (LATOUR, 2012, p. 83). “Em nada na rede, por exemplo, que constitui o
me tranquiliza – diz Latour – saber que às cômodo em que me encontro; o elefante
vezes fazem isso por razões louváveis, rosa, portanto, não existe, e por isso não
para ser ‘politicamente corretos’ e devo inclui-lo em relato algum.
‘críticos’ a bem dos atores que desejam
Do contrário, em um relato ruim
‘libertar das cadeias dos poderes arcaicos’.
“somente um punhado de atores serão
Fosse isso excelente política - e não o é [...]
apontados como causas dos demais, cuja
– ainda assim seria má ciência” (LATOUR,
função se limitará à de pano de fundo ou
2012, p. 83).
substituição para os fluxos de eficácia
Como a infralinguagem tem o dever causal” (LATOUR, 2012, p. 191). Disso só
ser o mais maleável possível no esforço de resultará uma descrição padronizada,
entender a trama das coisas, ela deverá ser anônima, recheada de clichês que nada
capaz de traçar, ao fim, um bom relato alcançam de novo (LATOUR, 2012, p. 191).
sobre o que viu e presenciou. Mas o que é Um antropólogo que logo ao chegar numa
um bom relato? Latour diz que um bom aldeia yanomami resolve-se a entender os
relato é simplesmente aquele que tece uma xapiri, espíritos dos animais e das plantas
rede (LATOUR, 2012, p. 189). Diz ele: da cosmologia yanomami, como meras
“Refiro-me com isso a uma série de ações “representações simbólicas”, falhará
em que cada participantes é tratado como miseravelmente sem nem ter começado a
um mediador completo. Em palavras mais elatar sobre os yanomami. 7 Ao tomar essa
simples: um bom relato [...] é uma atitude, abdicará instantaneamente de
narrativa, uma descrição ou uma vislumbrar a ação de seres que ritual após
proposição na qual todos os atores fazem ritual reaparecem e resistem, isto é, agem
7 Falhará, é claro, a depender do objetivo do relato. Um aspecto que não citamos aqui, mas que incide
determinantemente em toda a discussão, é o propósito às vezes insuspeito e camuflado, às vezes explícito e
manifesto, da colonização. Reduzir os paradigmas não-modernos a meras elaborações ridículas, “primitivas”,
desviadas, “bárbaras”, míopes, ingênuas ou subjetivas é, sem dúvida, uma estratégia de dominação com
consequências odiosas. Assim, não é sem qualquer utilidade e com completa inocência que os estudos
comparados são marcados por hermenêuticas marcadamente mesquinhas e absolutistas.
postiço. Acreditar que cada cultura, Não somos tradicionais, então? Também
tradição ou paradigma possui uma não. A ideia de uma tradição estável é uma
ilusão da qual os antropólogos há muito
essência transcendente ou se erige desde
nos livraram. Todas as tradições imutáveis
um núcleo sólido e imutável pode ser só mudaram anteontem. Ocorre com a maior
mais um dos credos que os estudos parte dos folclores ancestrais o mesmo que
comparados desavisadamente patro- aconteceu com o kilt “centenário” dos
cinaram. Do contrário, se cada cultura não escoceses, totalmente inventado no início
do século XIX (Hobsbawn, 1983, apud
é tão unificada e hermética quanto
Latour, 2013), ou como os Cavaleiros
poderíamos crer, o problema já parece ir provadores de vinho de minha pequena
se resolvendo naturalmente. Primeiro cidade na Borgonha, cujo ritual milenar
abandonamos uma categoria de análise não tem mais do que cinquenta anos
universal, e agora sugerimos a revisão do (Latour, 2013, p. 75).
talvez não torne as coisas completamente Para a proposta que tínhamos aqui, a
comensuráveis de novo, e isso pode ser infralinguagem respondeu muito bem, e
uma grande vantagem, pelo menos ainda que certos aspectos exijam
reestabelece um plano em comum, e com explicações mais dignas, nem por isso é
isso a chance da comunicação, e mais tarde cabível abandonar o que ela tem a nos
a possibilidade de trocas e negociações. oferecer.
Referências
BLOK, Anders; FARÍAS, Ignacio; ROBERTS, Celia (Ed.) The Routledge Companion to Actor-
Network Theory. Routledge, 2020.
HARMAN, Graham. Prince of Networks: Bruno Latour and Metaphysics. Melborne: re.press,
2009.
LATOUR, Bruno. The Pasteurization of France. Cambridge, MA: Harvard University Press,
1988.
LATOUR, Bruno. Reagregando o Social: uma introdução à teoria do Ator-Rede. Trad. Gilson
César Cardoso de Sousa. Salvador: Edufba, 2012; São Paulo: Edusc, 2012.
LATOUR, Bruno. Jamais fomos modernos: ensaio de antropologia simétrica. Trad. Carlos
Irineu da Costa. São Paulo: Editora 34, 2013.
LATOUR, Bruno. Investigação sobre os modos de existência: uma antropologia dos modernos.
Trad. Alexandre Agabiti Fernandez. Petrópolis, RJ: Vozes, 2019