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Filosofia Modern a
e Contemporânea
Equipe Editorial/Editorial Team João Vergílio Gallerani Cuter (USP)
Joãosinho Beckenkamp (UFMG)
Jon Stewart (Universidade de Copenhagen)
Editor Chefe/Editor in Chief: Maria das Graças de Souza (USP)
Alexandre Hahn Oswaldo Giacoia Junior (UNICAMP)
(hahn.alexandre@gmail.com) Todd Ryan (Trinity College)
Zeljko Loparic (UNICAMP)
Editores Associados/Associated Editors:
Márcio Gimenes de Paula
Priscila Rossinetti Rufinoni Editores de Diagramação/Layout Editors:
Rodrigo Freire Alan Renê Antezana
Gregory Wagner Carneiro
Editores de Seção/Section Editors:
Fabio Mascarenhas Nolasco Capa/Cover:
Giovanni Zanotti Recorte de pintura. Obra intitulada Suporte, realizada
Isabella Holanda por Carol Peso, em 2018 (técnica: pintura acrílica sobre
João Renato Amorim Feitosa tela). Uso autorizado pela autora.
Lorrayne Colares Alexandre Hahn
Editores de Texto/Text Editors:
Agnaldo Cuoco Portugal Universidade de Brasília/University of Brasília
Alex Sandro Calheiros de Moura Reitora/Rector: Márcia Abrahão Moura
Cláudio Araújo Reis Vice-reitor/Vice Rector: Enrique Huelva
Erick Calheiros de Lima
Herivelto Pereira de Souza Instituto de Ciências Humanas/Institute of Hu-
Marcos Aurélio Fernandes man Sciences
Maria Cecília Pedreira de Almeida Diretor/Director: Neuma Brilhante Rodrigues
Phillipe Lacour Vice-diretor/Vice Director: Herivelto Pereira de Souza
1
O Ato Docente na Era da sua Reprodutibilidade Técnica: Aula, Educação
e Ensino Remoto
Denilson Soares Cordeiro . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 207
iv. Artigos / Articles . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 225
Rousseau e as Artes: Uma Leitura do Pigmaleão
Wilson Alves de Paiva . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 225
Nietzsche: Da Técnica da Memória à Técnica do Esquecimento?
Adilson Feiler . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 247
Cristianismo e a Renúncia de si no Último Foucault
Rafael Siqueira Monteiro . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 265
iv. Resenhas / Book Reviews . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 285
“How We Became Our Data: A Genealogy of the Informational Person”
de Colin Koopman
Graziano Mazzocchini, Rodolpho Venturini . . . . . . . . . . . . . . 285
iv. Traduções / Translations . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 293
“O Sangue Corre na Tunı́sia” de Simone Weil
Jade Oliveira Chaia, Michelly Alves Teixeira, Philippe Lacour . . . 293
v. Normas para Publicação / Guidelines for Authors . . . . . . . . 297
DOI: https://doi.org/10.26512/rfmc.v8i3.36226
Editorial
Revista de Filosofia Moderna e Contemporânea, Brasília, v.8, n.1, abr. 2020, p. 7-19 7
ISSN: 2317-9570
se incapazes de regular a vida inter- ubíquo e cirúrgico.
conectada e fazer valer suas regras. Os editores esforçaram-se por reu-
Esse fenômeno traz importantes ques- nir pesquisas em torno das novas tec-
tões para a vivência democrática nas so- nologias da informação e da comuni-
ciedades contemporâneas, para a segu- cação e dos desafios que seu desenvol-
rança e para a proteção da privacidade vimento opõe à democracia, ao direito,
e das liberdades individuais. A novo ca- ao mundo do trabalho e ao pensamento
pitalismo da informação assenta-se em filosófico enquanto atividade humani-
um modelo de negócio que pressupõe a zadora. Foram bem-vindos os traba-
conectividade, a transparência, a extra- lhos que aprofundaram filosoficamente
ção e a utilização maciças do fluxo de o tema, questionando como essas novas
informações e dos rastros digitais dos tecnologias mudam nossas vidas e tra-
indivíduos, que em troca de certos ser- zem consigo novos problemas, que fo-
viços são cada vez mais capturados por ram explorados em sua dimensão ética,
um complexo sistema baseado na vigi- política, epistemológica, social ou exis-
lância, na gestão de nossos comporta- tencial.
mentos futuros e no governo de nossas Abrindo o dossiê, apresentamos a en-
ações. trevista com Antoinette Rouvroy, pes-
É preciso aprofundar nossa compre- quisadora do FNRS no Centro de Pes-
ensão desse novo governo dos algorit- quisa em Informação, Direito e Socie-
mos, que se afasta em vários aspec- dade (CRIDS), localizado na Universi-
tos do governo em seu sentido tradici- dade de Namur, Bélgica. Nesta entre-
onal, que procurava influenciar as es- vista, a pesquisadora afirma que certas
colhas individuais pressupondo sujei- tecnologias teriam por pretensão elimi-
tos livres, capazes de deliberação. Com nar as incertezas sobre o futuro, interfe-
o governo dos algoritmos vemos emer- rindo e moldando comportamentos hu-
gir um novo regime de ação sobre o fu- manos. Apesar de tecer duras críticas
turo. Baseando-se em perfis, ambien- à atual “sociedade da otimização”, na
tes são configurados e respostas refle- qual se destacam, ao mesmo tempo, o
xas são produzidas. Os indivíduos são afã de otimização e a espantosa pas-
governados na medida em que é forma- sividade digital, Rouvroy também de-
tado o campo de suas ações possíveis. clara ter esperanças em um futuro não
Não é mais preciso dizer “não” ou ame- tão distópico. Segundo ela, “a melhor
açar, basta enviar sinais capazes de pro- forma de resistência é não se deixar fas-
vocar ou estimular determinados com- cinar pela Inteligência Artificial”. Por
portamentos. Desse modo, temos um fim, revela que é preciso lidar com o
governo mais eficiente e um poder que fato de que os dados são excessivamente
funciona de modo ainda mais insidioso, centralizados por grandes companhias
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EDITORIAL
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O dossiê traz ainda uma segunda tra- namentalidade algorítmica”.
dução, de um texto publicado original- O artigo de Carlos Henrique Barth
mente na França (Rendre la révolte im- examina um problema que atormenta
possible, Rue Descartes, 2013/1, n. 77, aqueles que refletem mais detidamente
pp. 121-128) pelo professor de filoso- sobre as benesses e os perigos da In-
fia política e ética na Universidade Li- teligência Artificial. Ele investiga por
vre de Bruxelas, Thomas Berns, autor que somos presas fáceis para uma mul-
de livros como Violence de la loi à la tiplicidade de sistemas, e mais especi-
Renaissance (Paris, Kimé, 2000), Droit, ficamente, se é seguro postular a neu-
souveraineté et gouvernementalité (Pa- tralidade do juízo de máquinas, mesmo
ris, Léo Scheer, 2005), Gouverner sans aquelas que desempenham atividades
gouverner: une archéologie politique repetitivas. A partir de uma análise am-
de la statistique (Paris, PUF, 2009) e pla da bibliografia abalizada, o autor
La guerre des philosophes (Paris, PUF, verifica que certos modelos algorítmi-
2019). “Tornar a revolta impossível” cos têm apresentado vieses, mais mar-
é um artigo que reflete sobre um novo cadamente no que diz respeito a gê-
tipo de normatividade, que se afasta nero e raça, atribuindo, surpreendente-
do modelo jurídico-discursivo e sub- mente, maior risco ou desfavorecendo
verte um aspecto fundamental daquilo mulheres e pessoas negras. Isso expli-
que entendemos tradicionalmente por cita o desafio de eliminar tais vieses,
norma: a possibilidade de desobedi- que vão muito além de meros proble-
ência. Berns procura discernir, nas mas técnicos, como mostra o autor. O
normatividades contemporâneas, uma enfrentamento ou a mitigação dos vie-
nova relação com a realidade, uma pre- ses algorítmicos dependerá do estabe-
tensão de governar a partir do real. Di- lecimento de um conjunto de valores e
ferentemente da norma jurídica, que do interesse público. Trata-se, uma vez
expressa um ato de vontade que pro- mais, de revelar a inexistência de uma
cura governar o real, tais normativida- suposta neutralidade dos dados e, ao
des são concebidas como imanentes ao contrário, assumir que a sua boa ges-
real, permitindo que as práticas de go- tão depende de um debate público, e
verno se tornem mais insidiosas, quase que não é despropositado questionar
imperceptíveis, como vemos na “gover- um certo “privilégio epistêmico”, co-
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mumente atribuído a certos modelos de vida o leitor a desafiar a tradição mo-
IA. derna da filosofia política que propõe
Em “Zero-order privacy violations um agir com ênfase no discursivo. A
and automated decision-making about tecnologia que envolve os big data per-
individuals”, Bernardo Alonso enfrenta mite a diluição do indivíduo e conse-
o problema da crescente vigilância e vi- quentemente a diminuição das formas
olação da privacidade, argumentando, discursivas da ação, destacando-se uma
de maneira coerente e bem fundamen- certa “modelagem” do sujeito, empre-
tada, que o acesso automatizado de má- endido pela tecnologia governamental e
quinas ao conteúdo de nossas intera- pelas máquinas políticas.
ções online não deixa também de ser No artigo “Algoritmos de mal-estar:
uma grave violação da privacidade. To- ciberpandemia e privacidade hacke-
mando por base os desenvolvimentos ada”, Marcelo Gonçalves Rodrigues
na área da filosofia da informação rea- analisa o impacto da vigilância, dos mo-
lizados por Luciano Floridi e o trabalho nitoramentos e da automação sobre a
sobre colonialismo de dados empreen- subjetividade humana, interpretando a
dido por Nick Coldry e Ulises Mejias, o experiência da pandemia de COVID-19
autor defende um novo tipo de violação como um momento no qual se acelera a
de ordem-zero, envolvida na coleta sis- Quarta Revolução Industrial. Ressalta-
temática e massiva em conjunção com se, a partir de um olhar da tradição
novas tecnologias de exploração de da- psicanalítica, a emergência de um mal-
dos. estar diante do esvaziamento das re-
O capitalismo de vigilância e a tec- presentações psicossociais, da precarie-
nopolítica estão no centro da discus- dade psíquica e da diminuição dos es-
são empreendida por Edson Teles. Em paços para a reflexão sobre a crise exis-
“Ação política híbrida e a dissolução da tencial.
cidadania”, o autor interroga sobre os Em “O governo das condutas e a
regimes de produção de subjetividades, constituição da subjetividade: um es-
que qualifica como híbrido e se cons- tudo da sociedade de controle de tipo
titui nas bordas do político. A rele- algorítmica”, Sérgio Fernando Corrêa e
vância do discurso na filosofia política Salomón Abastro Macías direcionam o
contemporânea é posta em xeque, uma olhar para a emergente sociedade de
vez que as relações de poder se dão por controle, nos termos propostos por De-
mecanismos, técnicas e ações maquí- leuze, como um desdobramento da so-
nicas artificiais. Utilizando-se de um ciedade disciplinar pensada por Fou-
rico instrumental conceitual e teórico cault, por meio da mediação das tecno-
de Arendt, Rancière, Latour, Foucault, logias de vigilância e do uso de big data.
Deleuze, e Donna Haraway Teles con- O artigo tem o mérito de esclarecer, as-
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EDITORIAL
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Uma face incontestável do mundo con- tempo.
temporâneo, as redes sociais e seu me- Fechando a edição, o inebriante en-
canismo de manipulação são o tema saio de Denilson Soares Cordeiro en-
examinado por Cristian Arão. Ele em- frenta uma questão que toca direta-
preende uma análise pormenorizada do mente todo o universo educacional não
acontecimento emblemático da Cam- apenas brasileiro, mas mundial: a tec-
bridge Analytica, que capturou e uti- nologia utilizada no ensino remoto. Por
lizou os big data de forma perversa e conta da pandemia de Covid 19, o en-
deliberada com a finalidade de influen- sino remoto, que já exercia uma força
ciar eleições. Apesar do exemplo, o ar- crescente no mercado, agora se torna
tigo discute a capacidade de tais siste- algo dado e inescapável. O autor aborda
mas de compreender e decifrar pessoas. a catástrofe do chamado “solucionismo
Diferentemente do que normalmente se tecnológico”, que a um só tempo oculta
pensa, a atividade humana é impres- o extrativismo de dados de grandes em-
cindível e desempenha aí um papel re- presas de tecnologia e permite que de-
levante. Abordando o pensamento de cisões políticas agravem ainda mais a
Freud, Fromm e Adorno, o texto ana- situação da já combalida educação pú-
lisa as noções de inconsciente, impotên- blica.
cia e a psicologia das massas, concei- Apesar do tema ser tão rico, polê-
tos cuja compreensão é essencial inclu- mico e cheio de nuances, o conjunto
sive para que a tecnologia algorítmica de textos aqui reunidos são bem su-
possa de fato “alcançar” pessoas. A pro- cedidos em abordar como, com o go-
posta do autor é que a manipulação mi- verno dos algoritmos, corremos o risco
diática e tecnológica, muitas vezes ca- de ver o campo da política esvaziado em
rimbada como uma “grande novidade”, grande medida. Tudo indica que ru-
nada mais é do que uma atualização mamos em ritmo acelerado a uma es-
de certas técnicas utilizadas há muito pécie de tecnocracia digital, que fun-
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ciona cada vez mais por meio de sis- quadro, a ação humana corre o risco de
temas computacionais autonômicos em ser colonizada por processos racionali-
termos apenas de eficiência, inovação e zados e autômatos. Os editores esperam
segurança. Reaviva-se mais uma vez o que a leitura desse dossiê, que analisa
sonho de resolver o problema da polí- o problema sob uma perspectiva emi-
tica por meio da ciência e da tecnolo- nentemente filosófica, possa contribuir
gia, substituindo a deliberação pelo cál- para delinear novos modos de pensar
culo. No lugar do árduo e lento trabalho esse problema, e sobretudo, recuperar a
de construção democrática de uma vida importância do político e igualmente a
em comum, avoluma-se o desejo pe- capacidade das gerações futuras de agi-
las soluções rápidas e eficientes das no- rem e tomarem decisões de uma ma-
vas máquinas inteligentes. Diante desse neira minimamente livre e refletida.
Maria Cecília Pedreira de Almeida (UnB) e Marco Antônio Sousa Alves (UFMG)
(Organizadores do Dossiê)
***
Além dos trabalhos que compõem o que elas causaram no coração humano.
Dossiê, o presente número também (2) Em “Nietzsche: Da Técnica da
conta com outras contribuições recebi- Memória à Técnica do Esquecimento?”,
das em fluxo contínuo. Adilson Feiler, professor da Universi-
(1) Wilson Alves de Paiva, profes- dade do Vale do Rio dos Sinos (Uni-
sor da Universidade Federal de Goiás sinos), discute a relevância dos escrito
(UFG), no artigo “Rousseau e as Artes: nietzschianos para uma reflexão sobre
Uma Leitura do Pigmaleão”, apresenta a técnica e sua aplicação à memória.
a tradução, acompanhada de uma dis- Neste sentido, visa mostrar que vigora
cussão, da peça Pygmalion de Rous- uma aporia no projeto nietzschiano de
seau. A discussão busca destacar que o transvaloracao dos valores, já que, a
filósofo genebrino, apesar condenar as despeito de questionar todos os meca-
artes como um dos elementos causado- nismos tecnicos, como aqueles relativos
res da corrupção humana, escreveu di- aos estabelecimentos de ensino, o filó-
versas obras artísticas, entre elas óperas sofo afirma a tecnica atraves dos meca-
e peças de teatro, pois via a utilização nismos do esquecimento.
das artes como remédio para os males (3) Rafael Siqueira Monteiro, profes-
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EDITORIAL
Os Editores
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ISSN: 2317-9570
p os=article=view=
DOI: https://doi.org/10.26512/rfmc.v8i3.34363
Resumo: Técnicas de inteligência artificial (IA) são utilizadas para modelar as atividades
humanas e gerar predições comportamentais. Estes sistemas têm apresentado vieses
diversos, inclusive de raça e gênero, tipicamente tomados como problemas de engenha-
ria. Realiza-se aqui um esforço argumentativo para mostrar que: 1) escapar dos vieses
demanda um sistema que compreenda a estrutura das atividades humanas e; 2) criar um
sistema que apresente tal compreensão demanda a solução de problemas fundacionais da
IA, em particular, o problema de como modelar o senso comum. No caso de plataformas
informacionais que usam desses modelos para intermediar interações com seus usuários,
ignorar estes problemas dá margem a uma ilusão de progresso, em que uma crescente
influência sobre nosso comportamento é tomada como uma crescente acurácia preditiva.
Nesse cenário, argumenta-se que o problema dos vieses está associado a questões não
técnicas que devem ser discutidas em espaços públicos.
Palavras-chave: Inteligência Artificial. Vieses Algorítmicos. Governamentalidade
Algorítmica.
Abstract: Artificial intelligence (AI) techniques are used to model human activities and
predict behavior. Such systems have shown race, gender and other kinds of bias, which
are typically understood as technical problems. Here we try to show that: 1) to get rid of
such biases, we need a system that can understand the structure of human activities and;
2) to create such a system, we need to solve foundational problems of AI, such as the
common-sense problem. Additionally, when informational platforms uses these models
to mediate interactions with their users, which is a commonplace nowadays, there is an
illusion of progress, for what is an increasingly higher influence over our own behavior
is took for an increasingly higher predictive accuracy. Given this, we argue that the bias
problem is deeply connected to non-technical issues that must be discussed in public
spaces.
Keywords: Artificial Intelligence. Algorithmic Bias. Algorithmic Governance.
* Agradeço à Rochelle Barth, Ernesto Perini, Felipe Nogueira, Eduarda Calado e Samuel Maia por comentários em versões anterio-
res desse material.
** Mestre em filosofia pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Atualmente realiza doutorado na mesma instituição,
com bolsa da CAPES. E-mail: carloshb@protonmail.com. ORCID: https://orcid.org/0000-0002-9327-9818.
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CARLOS HENRIQUE BARTH
1 É comum argumentar que o modelo está sendo usado para “auxiliar” o juízo humano, e não para substituí-lo. Raramente esse
é o caso, contudo. Se N documentos forem categorizados por um modelo como sendo uma demanda jurídica de tipo X, e se essa
categorização não for validada, documento a documento, por um ser humano, o que se fez foi substituir o uso do juízo humano nas
categorizações não revisadas. O problema, claro, é que a necessidade de revisar caso a caso mina o objetivo da aplicação dos modelos,
que seria justamente o de evitar a necessidade de analisar cada documento, um por um.
2 Sobre o COMPAS, ver Brennan e Dieterich (2017).
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É POSSÍVEL EVITAR VIESES ALGORÍTMICOS?
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CARLOS HENRIQUE BARTH
4 É preciso, claro, que o código fonte do sistema esteja disponível para análise, mas o ferramental conceitual necessário para tratar
disso, seja na esfera privada, seja na pública, já está bem estabelecido.
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É POSSÍVEL EVITAR VIESES ALGORÍTMICOS?
no mínimo, impreciso. Apesar disso, gras ou critérios que podem ser utili-
não são poucos os produtos comerci- zados para detectar a presença de um
ais que utilizam variantes do selo “con- elefante. Como o processo é automa-
tém IA” (de sistemas jurídicos a esco- tizado, a limitação que se apresentava
vas de dentes elétricas) graças à popu- nos modelos clássicos é mitigada: mo-
laridade dessa associação. Talvez “con- delos neurais são capazes de conden-
tém modelos inspirados em redes neu- sar uma quantidade gigantesca de crité-
rais” seja menos interessante comercial- rios interdependentes entre si. Ele pode
mente, embora mais preciso. Esse é um perceber, por exemplo, que a presença
ponto importante porque, em larga me- de presas de marfim é um elemento re-
dida, a confiança que se deposita nesse levante, mas não essencial, e o mesmo
tipo de sistema vem de sua associação ocorre com o número de patas, orelhas
com a IA. ou algumas de suas propriedades (cor,
Apesar dessa confiança, redes neu- tamanho, etc.). O mesmo tipo de proce-
rais também apresentam vieses, e como dimento pode ser utilizado para gerar
seu uso tem se intensificado nos últi- modelos minuciosos da atividade hu-
mos anos, é importante compreender mana, permitindo um juízo bastante re-
algumas de suas particularidades, a co- finado, personalizado e sensível a vari-
meçar pela estratégia de geração des- ações circunstanciais.
ses modelos. Enquanto modelos clás- Sendo assim, modelos neurais podem
sicos são desenhados diretamente pelo apresentar vieses tanto em função do
engenheiro, modelos neurais são gera- algoritmo de aprendizado, quanto em
dos indiretamente por um algoritmo de função do conteúdo presente nos da-
treinamento.5 Esse algoritmo é apli- dos utilizados para o treinamento. É
cado sobre uma base de dados e busca, possível, por exemplo, treinar um mo-
grosso modo, detectar correlações entre delo que compile os perfis históricos de
os elementos ali presentes. Se a base ocupantes de um determinado cargo e
de dados for composta por, digamos, fo- usá-lo para identificar perfis semelhan-
tos de elefantes, o resultado poderá ser tes em novos candidatos. Nesse cená-
um modelo capaz de distinguir se existe rio, ainda que o gênero não seja um
ou não um elefante numa foto, ainda critério explícito, a presença diminuta
que essa foto não esteja entre as que de mulheres no histórico de ocupan-
foram utilizadas para treiná-lo. O que tes daquele cargo pode fazer com que
o algoritmo de treinamento faz é aná- o modelo privilegie currículos masculi-
logo a tentar identificar, ele mesmo, re- nos. Contudo, seria apressado concluir
5 É comum que se fale também em “algoritmo de aprendizado”, ou “aprendizado de máquina” (machine learning). Todos esses
termos serão aqui utilizados como tendo o mesmo significado.
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CARLOS HENRIQUE BARTH
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É POSSÍVEL EVITAR VIESES ALGORÍTMICOS?
Uma das principais formas pelas (2019) mostraram que, ao tentar identi-
quais vieses podem se acomodar em ficar um certo tipo de peixe para o qual
modelos neurais, portanto, se dá no um modelo fora treinado, um dos crité-
modo como a generalização é realizada. rios era a presença de dedos humanos.
Preliminarmente, é importante notar o Esse tipo de peixe é rotineiramente to-
problema, antecipado por Hubert Drey- mado como um troféu por praticantes
fus6 , de que há incontáveis formas a de pesca, e a maior parte das fotos uti-
partir das quais os objetos podem ser lizadas para o treinamento era de pes-
semelhantes ou distintos. Proprieda- cadores segurando-os com as mãos.
des físicas como a presença abundante Como lidar com esse cenário? Uma
de água ou uma certa temperatura, es- primeira possibilidade é a de tentar
tão presentes tanto no corpo humano compensar uma tendência com outra:
quanto em um copo d’água. A forma se o modelo tende a priorizar a textura
pela qual um algoritmo de treinamento sobre a forma, ou priorizar um gênero
toma certas características como rele- sobre o outro, podemos reverter esse
vantes e outras como irrelevantes pode desvio introduzindo uma tendência
variar enormemente, portanto. Geirhos contrária. Em tese, isso pode ser feito
et al. (2019), por exemplo, descobri- tanto por meio de alterações diretas
ram que alguns modelos adquiriram no algoritmo de treinamento, quanto
um viés que os fazia atribuir prima- pela seleção cuidadosa das amostras
zia à textura de um objeto na hora de que constituirão a base de dados utili-
tentar reconhecê-lo, em detrimento de zada. Porém, mesmo nos casos em que
sua forma. Isso ajuda a entender o isso se mostra viável, não será uma ta-
porquê de uma criança conseguir re- refa simples. A compensação de um
conhecer um elefante, ainda que ele viés pode resultar na introdução de vá-
se apresente na forma de um rabisco rios outros, sem que se perceba. As-
simples, enquanto um modelo treinado sim, é preciso analisar detalhadamente
somente com fotos tende a falhar. De o modelo8 e tentar identificar a cadeia
fato, aquilo que é tomado como rele- de “raciocínio” que ele segue, e essa não
vante pode soar ainda mais estranho é uma tarefa acerca da qual seja pos-
do que uma mera propensão a achar sível garantir uma conclusão confiável
que a textura da pele é uma proprie- em todos os casos.
dade essencial para determinar a pre- Tudo isso sugere que a imagem ven-
sença de um elefante.7 Brendel e Bethge dida por Mullainathan (2019), segundo
6 Dreyfus expôs um argumento nessa linha na edição de 1992 do seu famoso What computers still can’t do, cuja primeira versão fora
publicada ainda em 1972. Ver a introdução adicionada em Dreyfus (1992).
7 O exemplo é utilizado por Gary Marcus (2018; 2019) em sua crítica ao deep learning.
8 A análise de agrupamentos (clusters) é um exemplo de ferramenta que pode ser utilizada para esse fim.
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CARLOS HENRIQUE BARTH
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É POSSÍVEL EVITAR VIESES ALGORÍTMICOS?
9 Em entrevista recente para Fridman (2019), Kasparov confessou ter ficado bastante abalado, visto que aquela não era sua primeira
derrota para um computador, mas sim sua primeira derrota em um jogo oficial.
10 Ver, por exemplo, o debate em Dennett e Dreyfus (2005).
11 Por “IA clássica” entendemos aqui a empreitada que se desenvolveu com mais ênfase entre os anos 1960 e 1980. Na literatura da
área, esse período costuma ser caracterizado pela ênfase no uso de modelos computacionais clássicos, sendo por vezes chamada de
IA simbólica ou, seguindo a famosa sugestão de Haugeland (1989), GOFAI (Good old fashioned AI).
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CARLOS HENRIQUE BARTH
12 Entre as abordagens mais famosas estão os scripts de Schank (1975) e os frames de Minsky (1997). Note que, em Minsky, o termo
frame é utilizado não para designar enquadramentos que caracterizam estruturas das atividades humanas, mas sim a estrutura de
dados utilizada para modelar computacionalmente esses enquadramentos.
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É POSSÍVEL EVITAR VIESES ALGORÍTMICOS?
ribus. Algo como “proceda de tal modo, ser inserido no sistema e que venha a
a menos que haja uma razão suficiente- se mostrar relevante na interpretação
mente forte em contrário”. Mas o que da atual situação por parte do jogador.
conta como uma razão suficientemente Seria possível, por exemplo, informar
forte? Essa questão será mais desen- ao jogador ou acrescentar a um modelo
volvida logo adiante. O importante a o número de vezes que cada peça foi
notar, por ora, é que a capacidade de usada, ou a média de movimentos que
seguir regras que contém cláusulas cete- cada peça costuma realizar antes de ser
ris paribus é dependente da capacidade tomada, mas nada disso seria relevante
de discernir quando, e em que medida, para modificar a compreensão de que
é adequado segui-las. Acompanhando o jogador (ou o modelo) tem da atual
uma tradição da IA sobre a qual fala- situação. Consequentemente, nenhum
remos logo adiante, vamos chamar essa destes fatos serão relevantes para deter-
capacidade de senso comum. minar o comportamento adequado.
Podemos agora sintetizar esse ponto Já em domínios abertos, como no caso
afirmando que a distinção entre o do- dos frames que caracterizam as estrutu-
mínio do xadrez e o domínio de um res- ras das atividades humanas, o contexto
taurante é que um comportamento ade- é insaturável. Isso significa que qual-
quado no interior do segundo depende quer fato pode se mostrar subitamente
do senso comum. Como essa depen- relevante na hora de determinar o que
dência emerge? Chamemos os domí- constitui um comportamento adequado
nios dependentes do senso comum de ou não naquela situação. Vejamos um
domínios abertos e os independentes de exemplo para tornar essa ideia mais
domínios fechados. Em domínios fecha- clara. Suponha-se que, por uma ra-
dos, um contexto (uma situação especí- zão qualquer, estejamos interessados
fica no decorrer do jogo, por exemplo) em prever se o cachorro de um vizi-
é sempre definido e articulado a partir nho latirá no próximo sábado.13 Se-
das regras que constituem aquele domí- riam as informações acerca do campeo-
nio. Se um jogador observa o tabuleiro e nato mundial de xadrez que se realizará
interpreta a disposição das peças como sábado, num país distante, relevantes
caracterizando uma ameaça ao seu rei, para nossa empreitada? Parece evidente
os únicos fatos relevantes para essa ca- que não. Contudo, bastam dois fatos
racterização são aqueles oriundos das para que isso se inverta radicalmente:
regras do jogo. Nesse sentido, o con- primeiro, que o vizinho em questão é
texto de “ameaça ao rei” é dito saturado. irmão de Magnus Carlsen, atual cam-
Não há nenhum fato novo que possa peão mundial de xadrez que defenderá
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seu posto no próximo sábado. Segundo, cimentos acerca da estrutura das ativi-
que ele tem por hábito comemorar as dades humanas (os frames que as cons-
vitórias do irmão com fogos de artifício. tituem) quanto um certo modo de fa-
Estes dois fatos tornam saliente uma zer uso dele. Modelar computacional-
parte de nosso conhecimento que, até mente essa forma caracteristicamente
aqui, parecia irrelevante: cães tendem humana pela qual se faz uso desse co-
a se assustar e latir em função de fogos nhecimento é um desafio bem conhe-
de artifício. Subitamente, esse conjunto cido pela IA desde seus primórdios, em
de fatos deixa claro que o campeonato 1956.15 Mccarthy (1968), um dos prin-
mundial de xadrez aumenta as chances cipais pesquisadores da época, detec-
de o cachorro latir no sábado.14 Esse tou esse desafio e dedicou-se a ele já
exemplo ilustra a tese de que, em domí- na largada da empreitada, sem grande
nios abertos, não há caracterização pré- sucesso, contudo. Uma das razões do
via de todos os fatores potencialmente fracasso é que modelar o senso comum
relevantes, tampouco do efeito que eles envolve tratar de um tipo de conheci-
podem vir a ter sobre o comportamento mento que nos soa tão evidente, que é
humano. difícil até mesmo explicitá-lo.
A distinção entre domínios abertos Um novo exemplo pode ajudar.
e fechados é importante para compre- Suponha-se um cenário em que se está
ender os problemas enfrentados pela a ensinar uma receita para alguém. A
IA porque, em modelos computacio- exposição das instruções parece trivial:
nais, todo contexto é forçosamente tra- apontam-se os ingredientes necessá-
tado como se fosse saturado. A tenta- rios, a quantidade adequada, o tempo
tiva de modelar contextos insaturáveis que devem permanecer ao fogo, etc.
enfrenta desafios que muitos autores Quão estranho seria, durante a expo-
entendem ser insuperáveis. Para nos- sição das instruções, ouvir perguntas
sos propósitos, o mais relevante deles como essa por parte do aluno: pode
é o que ficou conhecido como o pro- a cor do açúcar se alterar se eu tirá-lo
blema do senso comum. Já vimos que o do pacote e colocá-lo nesse pote? Se
senso comum envolve a capacidade de eu encostar a faca na manteiga, pode
lidar com cláusulas ceteris paribus, mas a faca derreter? Se eu colocar água na
ainda não sabemos exatamente em que jarra de vidro, ela vai retê-la? Notei que
isso consiste para as pesquisas em IA. você colocou uma faca na gaveta e não a
Numa primeira aproximação, o senso vejo mais, ela ainda existe? Percebi que
comum é tanto um conjunto de conhe- você deu exatamente 78 voltas ao tentar
14 Outro fato que se torna saliente é que o vizinho em questão é pouco sensível ao bem-estar canino.
15 Conforme Boden (2006).
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colegas de trabalho) podem ser rele- clássica. Era sua única opção.
vantes para caracterizar o contexto a Sendo esse o caso, como deve esse co-
partir do qual a atividade se dará, e es- nhecimento ser organizado? Uma exi-
sas possibilidades precisam estar pre- gência essencial é que essa estrutura
sentes nos modelos, ou o sistema agirá seja isomórfica à estrutura de frames
como se não existissem. Mas se esse é que caracterizam as atividades huma-
o caso, como distinguir, por princípio, nas. Na história da IA, esse problema
ausências relevantes das irrelevantes? organizacional ficou conhecido como
Podemos perceber agora a falta que nos frame problem.16 Ele se mostrou um
faz uma teoria geral da relevância, pois desafio especialmente difícil porque a
emerge aqui uma dificuldade crucial: organização adequada é, ela mesma,
um frame não pode ser computacional- dependente de contexto. Repare como
mente modelado tal como se fosse um a dificuldade do aprendiz de cozinha
script ou roteiro vago daquilo que é ade- não se dava pela completa ausência de
quado ou não e daquilo que é relevante conhecimento, mas pela sua desorga-
ou não em uma dada situação. Isso ge- nização. Ele dispunha de inúmeras
raria um comportamento inadequado informações sobre o mundo, mas não
por parte do sistema, pois a capacidade conseguia fazer bom uso delas, origi-
de seguir um tal script, sem se perder na nando perguntas descabidas no inte-
consideração de possibilidades esdrú- rior daquele frame. Espera-se que um
xulas e irrelevantes, pressupõe o senso ser humano seja capaz de reconhecer
comum. Ele é o responsável por re- que está no interior de um frame como
solver as vaguezas e preencher tudo o “aula de gastronomia”, e que guie sua
que não estiver explicitado no roteiro. compreensão dos contextos que ali en-
Para embutir o senso comum em mo- contrar a partir disso. Diante de uma
delos computacionais, resta então uma instrução como “mexa até ficar consis-
única alternativa: encontrar uma forma tente”, é essa capacidade que lhe per-
de “catalogar” e organizar todas as pos- mitirá entender que o verbo mexer diz
sibilidades lógicas, tratando domínios respeito ao preparo, e não a um talher
abertos como gigantescos domínios fe- (que pode se mexido fora da panela) ou
chados. Essa é a razão pela qual mode- ao seu corpo (que o aprendiz pode me-
los computacionais só conseguem tratar xer, mas sem qualquer efeito sobre o
de contextos como se fossem saturados. preparo). Essa mesma compreensão lhe
Não foi por acaso, portanto, que esse permitirá ordenar os conhecimentos,
caminho tenha sido escolhido pela IA priorizando os mais relevantes: como
16 Note que, na literatura da IA, o termo “frame” em “frame problem” pode ter significados distintos do que se vem chamando aqui
de frame, como é o caso em Minsky (1997). Contudo, a natureza do problema é a mesma. Para uma defesa dessa compreensão, ver
Barth (2018).
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17 O frame problem foi primeiro descrito por Mccarthy e Hayes (1969) e foi tema de ácidos debates nos anos 1980 e 1990, tendo sido
retomado por um pequeno círculo no início dos anos 2010, sem qualquer sucesso ou avanço na sua solução, contudo. Uma antologia
desses debates pode ser encontrada em Pylyshyn (1987), Ford e Pylyshyn (1996) e Kiverstein e Wheeler (2012). Contemporanea-
mente, no campo das ciências cognitivas (psicologia e neurociência), esse tipo de dificuldade é evitada por apelo a elementos não
computacionais. Isso originou variantes diversas da chamada cognição situada. Ver, por exemplo, Varela, Rosch e Thompson (1992),
Clark (1998) e Chemero (2009). Para esses autores, a inteligência humana não pode ser modelada em termos computacionais. No
caso da IA, contudo, aceitar isso seria equivalente a desistir.
18 Ver, por exemplo, Churchland (1989).
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que pode ser de difícil determinação.19 o tamanho do vocabulário que ele do-
Uma outra versão dessa mesma difi- mina em seu idioma natal. Essa rela-
culdade se mostra quando tentamos fa- ção pode ser caracterizada como causal
zer com que um modelo distinga quais, porque, em geral, crianças tendem a ter
dentre as regularidades ou correlações mãos e vocabulários menores que adul-
mapeadas, constituem relações causais. tos.20
O papel do senso comum pode ser ob- Historicamente, o problema do senso
servado tanto em exemplos de falsos comum foi evitado pela circunscrição
negativos (correlações que não impli- dos sistemas, por parte dos engenhei-
cam causalidade) quanto de falsos po- ros, a contextos artificialmente delimi-
sitivos (correlações que, apesar de es- tados. Esse é o resultado direto do foco
tranhas, caracterizam relações causais). em problemas específicos, tais como
Vigen (2015) exemplifica que, a consi- o de jogar xadrez, e nada mais. Isso
derar os dados entre 1999 e 2009, existe diz muito sobre a natureza do trabalho
uma correlação entre o número de fil- realizado pelo engenheiro de um sis-
mes em que Nicolas Cage aparece e o tema: o que ele está fazendo é dando
número de pessoas que morreram afo- origem a um domínio fechado ou re-
gadas ao cair numa piscina. Dado o plicando algum já existente.21 O en-
senso comum que partilhamos, é des- genheiro adota um contexto de ativi-
necessário argumentar que não há uma dade humana como ponto de partida e
relação causal entre uma coisa e outra. “recorta” um conjunto de elementos e
Mas essa compreensão está fora do al- regras que serão considerados relevan-
cance de um algoritmo de aprendizado, tes. O estado de coisas que não for de-
podendo ele concluir qualquer coisa a terminável a partir destes, não fará di-
respeito, bastando que seja algo com- ferença alguma no comportamento do
patível com os dados. Por outro lado, sistema. No caso do xadrez, o sistema
há correlações um tanto estranhas que não precisa se preocupar em descobrir
são, de fato, relações causais. É bem co- se o peso ou a cor das peças é relevante
nhecida, por exemplo, a relação entre para a próxima jogada, simplesmente
o tamanho da mão de um indivíduo e porque essas propriedades são inexis-
19 Como se vê, algoritmos de aprendizado tem pouco apreço pela navalha de Occam.
20 Esses exemplos ilustram bem uma dificuldade já apontada do frame problem: em quais circunstâncias os conhecimentos perten-
centes a um frame podem afetar conhecimentos pertinentes a outro frame? A estruturação do conhecimento que caracteriza o senso
comum precisa ser, ao mesmo tempo, rígida o suficiente para sabermos que fatos sobre os filmes de Nicolas Cage não são relevantes
para fatos sobre acidentes domésticos com piscinas, mas flexível o suficiente para que percebamos como, às vezes, fatos biológicos de
um organismo podem ser relevantes no tratamento de fatos sobre o vocabulário de um indivíduo.
21 Jogos são bons exemplos de domínios fechados criados por nós. Quando convencionamos um determinado conjunto de regras
ou elementos (cartas, peças, tabuleiros etc.) o que estamos fazendo é determinar, por princípio, aquilo que será relevante ou não
no interior daquele jogo. Um engenheiro que busque então criar um modelo computacional desse jogo já terá para si um domínio
fechado com o qual trabalhar.
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tentes nesse domínio. Isso se mostra de peso, forma, etc.), continuamos a tra-
forma um pouco mais clara no caso de tar de um sistema automatizado, não
sistemas que precisem interagir fisica- de um sistema inteligente. A razão para
mente com o mundo, pois nestes casos o essa recusa em lhe atribuir inteligência
mundo pode impor ao sistema situações precisa estar clara: por mais comple-
que estão fora daquelas previstas no in- xos que sejam, sistemas que operam em
terior de seu domínio fechado. Note-se domínios fechados só conseguem lidar
como, no caso de robôs em linhas de com contextos saturados e, nesse sen-
produção, é preciso alterar e constran- tido, dependem que algum agente do-
ger o ambiente em que o sistema será tado de senso comum garanta que ele
posto para rodar. Se ele foi programado opere num ambiente adequado às suas
para apanhar um certo tipo de peça e limitações. Um sistema legitimamente
encaixá-la em outra, é preciso que as inteligente, como o almejado pela IA,
peças certas estejam nos lugares certos, precisa ser independente do senso co-
no momento certo. O robô não precisa mum do engenheiro. O sistema precisa
tratar de situações em que uma dada ser capaz de descobrir “por si mesmo”
peça não seja a que ele espera porque o que é apropriado e o que não é, em
essa possibilidade inexiste nos modelos cada contexto específico, e para isso ele
que ele utiliza para guiar seu compor- precisa ser capaz de se reconhecer no
tamento. Uma vez que o mundo não se interior de diferentes frames, tal como
restringe ao que figura no modelo do nós o fazemos. Modelar os frames que
robô, contudo, é possível que uma peça caracterizam corretamente os contextos
não esteja onde deveria estar, mas se de atividade humana é, portanto, con-
isso ocorrer, será uma falha atribuível dição necessária para que se modele o
aos engenheiros que tinham a respon- senso comum, e como vimos, isso passa
sabilidade de adaptar o mundo ao mo- pela solução do frame problem.
delo que guia o robô, e não vice-versa. O que essa batalha da IA nos ensina
Esse é o caso de qualquer sistema au- é que o senso comum é uma condi-
tomatizado, em contraste com sistemas ção necessária para nossa capacidade
inteligentes, dos quais se esperaria a ca- de raciocínio lógico e matemático, e
pacidade de se adaptar a situações im- não um feito dela. A inteligência se
previstas. demonstra também na própria capaci-
Vale notar que esse caráter de sistema dade de circunscrever domínios aber-
automatizado permanece, mesmo que tos em sistemas fechados e estruturados
o robô seja extremamente complexo e “sob medida” para cada circunstância.
flexível. Ainda que ele consiga lidar Viabiliza-se assim o uso do raciocínio
com milhares de peças em dezenas de lógico no seu interior sem que nos per-
milhares de diferentes situações (local, camos em infindáveis inferências irre-
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22 Um exemplo é o GPT-3 da OpenAI, que se tornou famoso por sua capacidade de elaborar textos estruturalmente complexos a
partir da “leitura” de documentos ou livros. Contudo, tais modelos se baseiam apenas em análises estatísticas que correlacionam
palavras umas às outras. Eles não fazem a menor ideia do que estão falando e são alvos perfeitos para o argumento da sala chinesa
exposto por Searle (1980). Para a descrição do GPT-3, ver Brown et al. (2020). Para uma crítica de suas capacidades e bons exemplos
dos erros crassos que essa técnica costuma gerar, ver Marcus (2020) e Marcus e Davis (2020).
23 Exemplos comuns são estratégias como word2vec ou doc2vec, que representam estruturas sintáticas em vetores numéricos, típicos
dos modelos neurais. Isso permite uma comparação refinada da forma de um texto, mas ignora seu significado.
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24 Importante notar que novas categorias podem surgir mesmo na geração de modelos não destinados ao data mining. Os modelos
podem gerar categorias que funcionam como intermediárias para os fins estabelecidos pelos engenheiros (a classe das palavras-que-
contém-acentos-nos-dois-idiomas para os quais se efetua uma tradução, por exemplo).
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a relação entre o indivíduo e os espaços los deveria fazer com que tratássemos
que ele ocupa, bem como as institui- suas categorizações como hipóteses a
ções com as quais se relaciona, ocorre serem verificadas, não como descober-
de modo inescrutável. Não se trata ape- tas.25 Sem essa verificação, não temos
nas de não sabermos que tipo de infe- como saber se o sistema está se dei-
rência foi feita a nosso respeito a partir xando guiar por correlações espúrias,
dos nossos rastros, mas também de não por exemplo. Esse é o erro de Davis.
sabermos quando ou em que medida es- Estamos aceitando como verdadeiras
sas inferências estão sendo usadas para quaisquer correlações e categorias que
afetar aquilo que nos aparece como pos- estes sistemas apresentem, sem verifi-
sibilidade de ação. Temos assim um cação ou confirmação. Os modelos são
exercício de poder que atua direta e incapazes de compreender nossas moti-
acriticamente nos porões de nossa sub- vações, e por isso não se pode dizer que
jetividade: nosso campo de ação é de- nos conhecem melhor do que nós mes-
limitado e organizado por um processo mos, mas pode-se sim dizer que esta-
invisível de ordenação de preferências. mos deixando que eles nos guiem como
Cursos de ação são tornados salientes, se conhecessem.
ou ocultados, sem que nos seja dada a Diante desse argumento, um defen-
oportunidade de reflexão sobre as ra- sor da GA poderia insistir: se a ausên-
zões que guiaram essa ordenação. cia de senso comum fosse mesmo um
Por que permitimos, afinal, esse tipo entrave, essa dificuldade se manifesta-
de interferência em nosso horizonte de ria na forma de resultados erráticos ou
ações? Não se busca aqui dar uma res- de falhas grotescas nas predições que os
posta ampla a essa questão, mas apenas modelos fazem a nosso respeito. E não
enfatizar que uma boa resposta precisa parece ser esse o caso. Muitos modelos
levar em conta o injustificado privilé- usados em ambientes de GA aparentam
gio epistêmico atribuído aos modelos ter a capacidade de realizar predições
utilizados na GA, rotineiramente qua- acuradas sobre nosso comportamento.
lificados como “inteligentes”. Embora Como isso é possível? A explicação aqui
a GA não busque replicar a inteligên- oferecida para esse aparente sucesso é a
cia humana, mas apenas detectar novas de que estamos diante de uma forma de
categorias e utilizá-las para fazer seg- reflexividade presente no que Hacking
mentações de mercado hiper-refinadas, (1996) compreendeu como tipos huma-
a ausência de senso comum nos mode- nos.
25 A rigor, o senso comum é necessário, mas não suficiente. O senso comum permitiria compreender o que está em jogo, e isso
poderia viabilizar alguns feitos impressionantes como solicitar a uma IA que leia um conjunto de alguns milhares de artigos e expo-
nha as ideias que guardam relação com nossas pesquisas. Permaneceria em aberto, contudo, em que medida essa compreensão seria
confiável a ponto de justificar um privilégio epistêmico por parte do sistema.
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Esses tipos (categorias, no jargão que mulários de candidatura para vagas on-
utilizamos até aqui), quando aplicados line. A empresa tratou dessa informa-
a agentes humanos, tem caráter refle- ção como uma descoberta, e seus pro-
xivo: o fato de sermos classificados de cessos passaram a levar esse dado em
uma determinada forma influencia o conta na hora de decidir quem deve ou
modo como nos comportamos. Para não ser contratado. Ou seja, as “desco-
Hacking, esse efeito é o que distingue bertas” que os processos de geração de
tipos naturais (polietileno, polipropi- modelos para a GA fazem estão sendo
leno) de tipos humanos (adolescente, utilizadas para alterar os frames em que
refugiado). Quando uma pessoa é tipi- a atividade humana se dá. Aquilo que
ficada como um adolescente ou um re- se considera relevante para o correto
fugiado, altera-se o modo como aquele exercício de uma atividade foi revisto.
indivíduo compreende a si mesmo. Em Isso é suficiente para gerar uma pressão
geral, isso se deve a conotações morais normativa. O conhecimento dessa rela-
associadas ao tipo em questão: o in- ção (entre performance e uso de certo
divíduo pode, por exemplo, não acei- navegador), pode ser cobrado como
tar compreender a si mesmo como um algo que bons profissionais de RH de-
exemplar daquele tipo de pessoa. Essa vem levar em conta. Candidatos, por
manifestação pressupõe que o indiví- sua vez, sabendo que serão “julgados”
duo esteja, em algum nível, ciente de por um sistema que leva isso em con-
ser classificado de um tal modo, e que sideração, podem se sentir inclinados a
tenha condições de reagir a essa clas- fazer uso de um determinado navega-
sificação (aceitá-la, criticá-la, rejeitá-la, dor, a fim de aumentar suas chances.
etc.). Os sistemas utilizados na GA po- Há ainda outras formas de manifes-
dem dar vazão a esse efeito justamente tação da reflexividade que podem ser
por serem vistos como fontes confiáveis associadas ao que Hacking denomina ti-
de novas categorias. pos inacessíveis: nesses casos, o efeito so-
Tome-se um exemplo citado em re- bre o agente classificado se dá de modo
portagem da revista The Economist indireto, por meio de alterações no seu
(2013): uma determinada empresa ma- ambiente. O indivíduo não sabe que
peou uma correlação estatística entre seu horizonte de ações está sendo afe-
uma boa performance profissional, bem tado em função de uma dada categori-
como uma maior estabilidade no em- zação. A reflexividade opera então pelo
prego, e o uso de navegadores que não modo como o indivíduo é tratado pe-
vêm instalados por padrão nos siste- las pessoas ou pelas instituições em seu
mas operacionais26 para preencher for- entorno. Ora, como se viu, esse é preci-
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logia é norteado por interesses priva- ela faz com que essa influência trans-
dos. Consequentemente, por vezes, não borde para fora das plataformas, em es-
há sequer motivação para tratar de pro- paços ainda não colonizados por siste-
blemas mais fundamentais. Tanto pre- mas informacionais: mesmo dicas de
dições quanto incitações, por exemplo, conteúdo dadas por amigos trarão con-
são compatíveis com o modelo de ne- sigo os efeitos das plataformas sobre
gócios que sustenta o uso dos sistemas eles.
computacionais. Se deixadas em paz, Em síntese, por um lado, não é ra-
a tendência é que nenhuma das plata- zoável exigir das plataformas a solução
formas tome essa indistinção como um de problemas fundacionais da IA. Elas
problema. Essa é uma preocupação que não são centros de pesquisa dedicados
não emerge espontaneamente de moti- à questão, mas sim empresas que fazem
vações mercadológicas. uso da tecnologia para oferecer servi-
Contudo, como vimos, há um pro- ços. Por outro lado, é igualmente de-
blema ainda mais difícil envolvido. sarrazoado ignorar que o uso corrente
Ainda que se dispusessem a lidar ade- dessas tecnologias tem efeitos sociais
quadamente com a questão da reflexi- que não podem ser resolvidos ou mi-
vidade por pressão externa, as plata- tigados por mais tecnologia. Se quere-
formas teriam diante de si o problema mos lidar adequadamente com os vieses
do senso comum e o frame problem, e e outros efeitos nocivos, portanto, pre-
não está claro nem sequer se é possí- cisamos revogar o estatuto epistêmico
vel solucioná-los computacionalmente. privilegiado tipicamente atribuído aos
Uma vez que os modelos de IA não modelos computacionais. Isso não sig-
apresentam senso comum, a probabili- nifica, claro, uma rejeição do uso dos
dade de que, por pura sorte, estejam in- modelos para realizar descobertas. O
teragindo adequadamente com nossas que precisamos é tomar as inferências
motivações, é desprezível. Muito mais por eles realizadas, bem como as cate-
provável é que estejam afetando as es- gorias por eles detectadas, não como in-
truturas de frames subjacentes às nos- sights em seu valor de face, e sim como
sas atividades. Por isso, quando atribuí- hipóteses a serem validadas no interior
mos a eles um privilégio epistêmico in- de uma empreitada científica. Além
justificado e um poder descabido, per- disso, é fundamental compreender os
mitimos que afetem nossa compreensão modelos como aquilo que são: automa-
do mundo, e que os seus vieses e va- ções de atividades em domínios fecha-
lores privados embutidos tenham im- dos. Desse modo, não deixamos de en-
pacto sobre o nosso senso comum. A xergar que a caracterização desses do-
reflexividade das categorias humanas mínios, isto é, a determinação daquilo
acaba potencializando esse efeito, pois que deve ser levado em conta no “raci-
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Recebido: 28/09/2020
Aprovado: 18/01/2021
Publicado: 31/01/2021
68 Revista de Filosofia Moderna e Contemporânea, Brasília, v.8, n.3, dez. 2020, p. 39-68
ISSN: 2317-9570
DOI: https://doi.org/10.26512/rfmc.v8i3.34503
Bernardo Alonso*
* Professor of philosophy at the Universidade Federal do Mato Grosso (UFMT). PhD in philosophy from the Universidade Federal
do Rio de Janeiro (UFRJ). E-mail: berr.alonso@gmail.com. ORCID: https://orcid.org/0000-0003-3595-4907.
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BERNARDO ALONSO
1 “Personal data” refers to any piece of information that someone can use to identify, with some degree of accuracy, a person, for
instance, email address, internet protocol address (IP), name, surname, geolocation, home and job addresses, advertising identifiers,
gadgets identifiers, among others. “Sensitive data” makes reference to a subset of personal data which includes specific categories
such as genetic and biometric data, ethnic group, sex orientation, political opinions and/or affiliations, religious beliefs, philosophical
perspectives, purchase history, passwords, credentials, among other possible distinct information.
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are seemingly receiving advertisements tions, your privacy has not been vio-
about musical instrument stores, audio lated. However, the problem is not as
streaming websites and the like. If you simple as it seems or at least as some
send an email containing the term “Rio want to make it look like. With the ad-
de Janeiro” in the body of the text, ad- vancement of practices such as datami-
vertisements about hotels in Ipanema, ning and machine learning, that enable
tickets to Carnival in Sapucaí or invites artificial agents to identify patterns in
by social networking websites showing large data sets and sophisticated sta-
locals looking for the perfect match are tistical techniques that empower intel-
serious candidates to populate the com- ligent artificial agents to “learn” and
mercial space of your mailbox, as well potentially improve their performance,
as your near future web searches and three questions are asked: to what ex-
social media content. tent can agents access our sensitive in-
The Google company (LLC)2 de- formation3 ? Does it matter that it is
fends itself by pointing out the non- not a human who is reading my email?
involvement of humans in the process. Should we be concerned when informa-
tion that we would not trust humans,
as it concerns aspects of private life and
“The practice of automatic pro- information that users are not willing to
cessing has caused some to spe- share, is collected, stored and analysed
culate mistakenly that Google by a mere program? The first question
“reads” your emails. To be ab- is difficult and properly tackling it is
solutely clear: no one at Go- one of the ambitions of this article, on
ogle reads your Gmail, except the assumption that artificial and na-
in very specific cases where you tural agents make use of data and not
ask us to and give consent, or all uses might be leveraged for profit4 .
where we need to for security Nonetheless, it seems that we already
purposes, such as investigating have the answer to the last two ques-
a bug or abuse.” (Frey, S. 2018 tions. Yes, it matters that non-humans
p.1) access our data, and also yes, we must
In a nutshell, it is contented that be concerned that information is mani-
if humans do not directly read your pulated by programs, after all it is the
communications and private conversa- technical capabilities of programs and
2 A limited liability company (LLC) is a business structure in the United States whereby the owners are not personally liable for
the company’s debts or liabilities. Limited liability companies are hybrid entities that combine the characteristics of a corporation
with those of a partnership or sole proprietorship.
3 “Information” considered as well-formed, meaningful, truthful data (Floridi 2004).
4 For instance, data from a clinical trial of drugs commonly used to fight cholesterol was reused in a process to destroy a protein
associated with nearly half of all known cancers (Parrales et al. 2016).
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artificial agents that are relevant, not tained. In the case of Warren and Bran-
their ontological status. deis, a photograph taken by an auto-
matic device that is mounted outside a
person’s home constitutes a violation of
Value of Privacy privacy, as the resident has no control
over the dissemination of information.
In a seminal Harvard Law Review arti- The mere “leak of information” already
cle “The Right to Privacy” (1890), Sa- constitutes a breach of privacy, a bre-
muel Warren and Louis Brandeis argue ach that occurs when the photograph is
that “political, social and economic” taken and not when it is seen by some-
changes and “the right to be alone” one.
impose on the law that it offers pri- Three major American justice ca-
vacy protection of individuals. Res- ses echoed Warren and Brandeis’ con-
ponding to the technological changes cerns. The first, Olmstead v. United
of the time, the advent of photography, States (1928), is a surveillance case in
Warren and Brandeis claim that the which the United States Supreme Court
general right to privacy should pro- ruled that a warrant was not requi-
tect mental life that could be shared red for federal agents to implant wi-
with others in order to offer “peace of retapping. The court asserted that the
mind” and the “right to one’s perso- Fourth Amendment only protected citi-
nality”, interpreted as a protection of zens from “physical intrusions” by law
the individual’s autonomy (Warren and enforcement officials5 . In 1967 the Uni-
Brandeis 1890, p.200, 207). Although ted States Supreme Court changed that
the Fourth Amendment already offered decision in the Katz v. United States in
protection at a certain level of privacy judging that tapping telephone conver-
at the time – search in homes and its sations on public phones was a viola-
interiors – the authors argue that the tion of the Fourth Amendment. For the
new technology is potentially intrusive court it was a case of “reasonable ex-
and that it would be necessary to for- pectation of privacy” in public places.
malize protection under the rubric of Finally, in 1995 the United States mi-
privacy, a well-known formulation as litary court cited Katz’s case in deter-
the “control of information about one- mining that an individual has a reaso-
self”. This formulation does not say nable expectation of privacy in his pri-
anything about the identity of the agent vate email, even if stored and sent by an
who is in control of the information ob- online service. The right to privacy of
5 Without taking into account that federal agents at some point invade the private space to implant wiretaps. The invasion crite-
rion is taken in this case as non-physical due to the fact that electronic devices capture the conversations, and not people themselves,
which does not make sense if we take the eavesdropping as mere artefacts that facilitate the listening of agents in the end.
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information has since been understood files. No human eye saw my data and
not only against surveillance and mo- yet our intuitions regarding the sense
nitoring or searches without mandate, of dignity and personal autonomy were
but also against appropriation and mi- offended, as no permission was given by
suse of personal communications. us to search our files and we were held
It is important to note that such de- as potential suspects until the scan was
terminations make no distinction or over.
judgment based on the nature of the The principle of privacy is based on
agent that violates the citizen’s right to the intuition that we experience moral
privacy. A common point in modern damage in situations such as the exam-
analyses of information privacy is the ple of Lessig. In this way, the right
notion of “loss of autonomy”, when the to privacy, regardless the nature of the
appropriation of information happens agent involved in the violation, can be
without the individual’s consent. Les- understood with normative weight and
sig (2006, p.20) argues that the right to dignity as a moral good, as well as in-
privacy provides a measure of dignity. dividual autonomy. Understanding in-
He tests our intuitions with a hypothe- formational privacy as an expression of
tical situation: The United States Nati- autonomy and dignity, in addition to
onal Security Agency (NSA) releases a seeing it as a constitutional limitation
type of virus on the internet (worm) in to government and corporate power,
order to try to find a file that is missing enables the understanding of privacy
from your servers. This worm enters as a moral good, liable to be protec-
all computers on American soil resi- ted from the assaults that changes in
dents and scans their hard drives. If technological capabilities provide, due
it finds the file, the program sends a re- to increased efficiency in invasive scan-
port to the NSA, if it does not find it, it ning systems and datamining. When
continues scanning on other machines. we can say that an artificial agent and
This program is “smart” enough to use its owner “are informed” or “hold in-
only ideal machine cycles, making the formation” it is crucial to determine if
intrusion unnoticed. There is no dis- there was a breach in our privacy when
turbance, no content on the hard drive accessing our data. One of the main
was sent to the government, not even il- points to be made is that the ability
legal copies of music, books and movies of the artificial agent to pass the infor-
which were eventually there. An artifi- mation on to its owner is the relevant
cial agent, not a human, examined my factor to be considered in this scena-
6 Not to be mistaken with first degree, second degree privacy violation distinctions which are familiar to Law vocabulary. Second
order privacy violation first appears at R. v. Duarte, [1990] 1 S.C.R. 30 in Austin 2003, p.141 and then Etzioni 2014, p.641. It is not a
common terminology in Law parlance.
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rio, also known as second order privacy a major concern given the vast popula-
violation6 . Artificial agents should be rity of the platform. One of the answers
considered as repositories of legally re- that is usually given by the company
levant information on behalf of their is that users are free to give up part of
owners, a tempting approach if we con- their privacy, and are constantly asked
sider that most of the information held if they want to give it up in exchange
by large corporations and governments for certain services — the too long to
is in the form of electronic files. read infamous “privacy policy” —, and
A distinction is suggested between further says that there is no real pro-
electronic records ready to be used, blem of privacy violation based on the
considered as part of the corporation’s fact that humans are not reading users’
knowledge despite human knowledge emails.
of its contents7 , and physical records
about which no knowledge is presumed
without a human or artificial agent ha- 1. Is Google reading my
ving been effectively informed about its email? No. Google scans
contents. The attribution of knowledge, the text of Gmail messages in
therefore, does not depend on the tra- order to filter spam and de-
ditional notion of transmitting infor- tect viruses, just as all ma-
mation as in meetings, orders, letters, jor webmail services do. Goo-
bulletins or telephone calls between gle. . . uses this scanning tech-
members of a company’s management nology to deliver targeted text
hierarchy. Rather, it depends on the ads and other related informa-
functions granted to agents, natural or tion. This is completely auto-
artificial. If information is made avai- mated and involves no humans.
lable in corporation’s databases, even (http://mail.google.com/mail/
if no employee of the corporation has help/about_privacy.html).
read about that piece of information,
the corporation and its agents, human However, thirty-one international or-
and artificial, are the holders of the in- ganizations dealing with civil liberties
formation and liable to knowledge from have a different position:
it.
Who is reading my email? A well
known type of marketing and ad stra- 2. (...) a computer sys-
tegy used by Google in Gmail service is tem, with its greater storage,
memory, and associative abi-
7 Also new content that is systematically crunched and extracted through machine learning, data crossing and various other tech-
niques.
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8 Pace 2016 Cambridge Analytica US elections and Brexit scandals using Facebook, Google and Youtube data. Cambridge Analy-
tica alongside its parent company Strategic Communications Laboratories had worked in more than 200 elections across the world,
including Kenya, Brazil, Nigeria, Mexico, India and Malaysia (Kleinman 2018).
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ZERO-ORDER PRIVACY VIOLATIONS AND AUTOMATED DECISION-MAKING ABOUT INDIVIDUALS
what is done to content after its appro- data, modifying additional computers
priation. It is about the distribution of behaviours and networks. The relation
information and the process of drawing to zero-days vulnerabilities by itself is
attention to the public. sufficient to distinguish a zero-order
Diversely, a zero-order privacy viola- privacy violation from first and second
tion is not necessarily related to distri- order ones, given the spooky, omnipre-
bution of content as in cases of second sent and novel nature of such practice.
order violations, neither it is a direct vi- But, there is another peculiarity to a
olation like first order ones. Born in the zero-order violation making it rather
digital age or what Floridi calls Fourth heterogeneous to commonly known ty-
Revolution era (Floridi 2014), this type pes of privacy violations. Zero-order
of violation is a systematic and automa- privacy violations are also closely rela-
ted harvesting of data, linked to new ted to what Kit Fine calls zero-grounded
technologies exploitation — from so- statements (Fine 2012, p.47), but a dis-
cial media to IoTs (internet of things) cussion of this matter is way beyond
— and often associated with tracking the scope of this paper10 , yet I must
and profiling users, alongside informa- take into consideration a key point
tion asymmetry phenomenon9 . Every- about its grounding11 nature. Accor-
day users do not know the full range ding to Fine, there is a distinction to be
of data that connected devices gene- made between truths that do not have
rate or what is collected and extrac- grounds (ungrounded), and truths that
ted by servers, therefore they are not are grounded in the empty plurality of
able to commit into protecting them- truths T (Fine 2017). The truth that
selves. Zero-order violations are better “if it is raining then it is raining” is
understood through the perspective of an example of the latter. I take it that
what security industry calls zero-day, a zero-order violation can be read as
i.e., a computer-software vulnerability a mere “it leaks”, and if a vulnerabi-
that is unknown to those who should lity cannot be mitigated because of re-
be interested in mitigating the vulnera- asons yet to be known in a future time,
bility. So, until the vulnerability is pat- “if it leaks, then it leaks”. And when
ched, hackers can exploit it to adversely the cause of the leakage is known and
affect computer programs, harvesting named, the sentence can still be read
9 Concept developed in economics, which extends to non-economic behaviour such as International Relations theory. Roughly
speaking it deals with the study of decisions in transactions where one party has more or better information than the other. A
straightforward example is the asymmetric information between what national leaders know at a certain time t, given the discre-
pancy in resources, before going into war. (Jackson and Morelli 2011).
10 A detailed defence of zero-order privacy violations using the notion of Kit Fine’s truth maker semantics for grounds can be found
in Alonso, B. “What is a zero-order privacy violation?” forthcoming (2021).
11 Simply put, in a conditional the antecedent grounding or being a ground for the consequent fact, making some sort of modal
connection between explanandum and explanans (Fine 2012, p.38)
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leting personal information are made in why not mindset of having available in-
a very practical manner. In contempt of credibly large spaces of storage for ac-
keeping and deleting rivalry, three cate- cessible figures.
gories of what to delete are introduced (3) Could delete: Agents can in prin-
(plus prophylactic considerations when ciple delete all their information, tri-
suited): vially. However, taking for granted
(1) Have to delete: necessary for a some sort of strict necessitist stance,
healthy online life, this category is re- i.e. “agents necessarily can delete their
lated to basic urgent security measu- info”, is quite a naive move and would
res, such as deleting sensitive infor- make this category innocuous. The role
mation on social media platforms, cre- of this third category is of a relational
dit cards details from unprotected fi- nature: to package control/version con-
les, plain text passwords, payments trol what could actually be deleted and
data (can also be preventive by not let- thus avoid accidental deletion of files
ting websites and/or applications re- which necessarily can’t be erased given
cord data, if option available), old use- relevance criterion. Family pictures,
less files and garbage in general (obvi- doctoral thesis text files, work projects,
ous garbage like old system’s install fi- encrypted passwords, among others.
les, malware, uninstalled apps leftovers Promises of anonymization on the
and salient vulnerabilities); Web have to deal with the paradox
(2) Should delete: files that can be of learning nothing about an indivi-
compromising in long run scenarios, dual while learning useful informa-
such as internet cache, cookies, trackers tion about a population, and the fact
(minimize web fingerprints), most so- that data cannot be fully anonymized
cial media platforms’ content (not only and remain useful (Dwork Roth 2014,
sensitive information as in 1), files and p.217). As a rule internet users should
programs you no longer work with nor encrypt everything. The very nature of
will work anymore, e.g. that album of zero-order violations make the cat and
a band someone said it is incredible, mouse play a dangerous game, a virtu-
however after downloading it you disli- ally impossible to win one.
ked the music but kept it anyway since
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ISSN: 2317-9570
DOI: https://doi.org/10.26512/rfmc.v8i3.34494
Edson Teles*
Abstract: The objective of the article is to recognize and analyze certain conceptual
reflections about political action that present mechanical or functional forms, indicating
autonomous strategies for acting in relation to discursive aspects. Our hypothesis is that
traditional categories, such as sovereignty, representation, state institutions and civil
society are insufficient as instruments for understanding the political. The central issue
is that subjectivity-producing regimes find their greatest effectiveness at the intersection
or boundaries between discursive and functional modes. It seeks to introduce aspects
of a certain contemporary philosophy that, prior to surveillance capitalism and its
technopolitics, already focused on fabrication and machines as elements in the processes
of conducting individual and collective lives.
Keywords: Discourse. Strategy. Machine. Subjectification. Fabrication.
* Professor de filosofia política da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp). Doutor em filosofia pela Universidade de São
Paulo (USP). E-mail: edson.teles@unifesp.br. ORCID: https://orcid.org/0000-0002-6673-2234.
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1 Experimentamos a reflexão sobre o conceito enquanto ferramenta, com a qual ensaiamos a escrita sobre questões contemporâ-
neas, mediante o auxílio à leitura de uma entrevista de Félix Guattari, na qual ele discorre sobre a obra escrita junto com Deleuze:
“Nosso problema não era esse, mas sim chegar a um acordo sobre nossas ferramentas conceituais. Propus essa formula há muito
tempo, inclusive Michel Foucault, aliás, usou essa noção de ferramenta conceitual, ou seja, que era válido tomar uma parte, até
mesmo uma palavra, uma expressão, uma sutileza conceitual na obra de alguém para tentar fazer um certo tipo de montagem”
(Uno, 2016: p. 43-44). Entendemos que a apresentação parcial dos conceitos dos autores não indica o esgotamento da temática da
hibridização nas obras trabalhadas no artigo, mas visa antes fazer emergir o fenômeno de uma ação não apenas discursiva, buscando
fundamentalmente alargar o conceito da política e, com isso, contribuir para o investimento em análises que o percebam além dos
mecanismos do Estado de Direito e da democracia liberal.
2 Hannah Arendt distingue mundo moderno de era ou época moderna. O mundo moderno “veio à existência através da cadeia de
catástrofes deflagrada pela Primeira Guerra Mundial. A ruptura com os valores tradicionais, por meio da crítica dos pensadores do
século XIX, é o evento que separa a época do mundo modernos” (1997, p. 54).
3 O recurso de Hannah Arendt à ficção científica participa de seus argumentos sobre as dificuldades inerentes à política discursiva
trazidas pelos avanços técnicos e tecnológicos. Em várias passagens de sua obra o tema aparece. Em A promessa da política a autora
expõe a relação entre “o totalitarismo e a bomba atômica”, duas experiências que suscitaram a “pergunta sobre o significado da polí-
tica em nossa época. (...) Ignorá-las é como nunca ter vivido no mundo que é o nosso mundo” (2008, p. 163). Os avanços da ciência
participam da crise da tradição nas práticas sociais e no pensamento, como anunciado em seu livro de coletânea de ensaios, Entre o
passado e o futuro, no texto “A conquista do espaço e a estatura humana”, de 1963. Nele a autora relaciona a questão da tecnologia
aos problemas políticos e cotidianos, apontando as novas conquistas da ciência como um problema político: “a questão levantada
dirige-se ao leigo e não ao cientista, e inspira-se na preocupação do humanista para com o homem, distintamente da preocupação do
físico com a realidade do mundo físico” (1997, p. 326). Sobre a presença das criações da ficção científica na obra de Hannah Arendt
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ginação e as análises políticas3 . Pois, é o “que de modo algum podem ser retra-
“artifício humano do mundo”, as técni- duzidas em discurso” (Ibidem: p. 4).
cas e tecnologias de condução da ação, Hannah Arendt analisa como a cada
que realizam e afirmam “aquilo que os vez maior presença do elemento má-
homens haviam antecipado em sonhos” quina e das automações vêm transfor-
(Ibidem: p. 2). mando por completo as tradicionais
A questão arendtiana, diante das má- atividades humanas. Em uma socie-
quinas que falam e pensam por nós dade na qual o trabalho, em suas várias
(Ibidem: p. 4), ou conosco, se refere à formas conhecidas, dá lugar às “fabri-
perda da profundidade do pensamento cações”, o indivíduo se torna parte de
e, com isso, ao perigo de sermos incapa- um mecanismo maior cujos elementos,
zes de compreender os acontecimentos no entanto, funcionam independente-
que podemos produzir. Essa espécie de mente de um comando central: seria
“alienação do mundo” seria identificá- o “advento da automação” (Ibidem: p.
vel, segundo Arendt, no divórcio entre 5). Ao fazer a categorização das ativida-
os mecanismos e funções da ação po- des humanas4 , Arendt discorreu sobre
lítica e a cada vez maior capacidade a “obra”, atividade humana correspon-
de praticar o ato sem reflexão, como dente ao “mundo ‘artificial’ das coisas”,
que funcionando ao modo de “criaturas cujos territórios abrigam “cada vida in-
desprovidas de pensamento à mercê de dividual, embora esse mundo se destine
qualquer engenhoca tecnicamente pos- a sobreviver e a transcender todas elas”
sível” (Ibidem: p. 4). A perda de impor- (Ibidem: p. 8).
tância do discurso nas relações de poder É como se estivéssemos em uma po-
é em si um problema político contem- lítica na qual a vida seria apenas um
porâneo, pois “sempre que a relevância meio de fazer funcionar um regime de
do discurso está em jogo, as questões produção cujo produto não faria dis-
tornam-se políticas por definição” (Ibi- tinção entre o biológico e a coisa, en-
dem: p. 4). Porém, parece ser fato, para tre o natural e o artificial. Assim, os
a autora, que há uma série de sociabi- indivíduos seriam não só o meio, mas
lidades, interações e relações de forças também o produto da fabricação. Per-
e suas relações com a literatura do gênero, ver “Hannah Arendt e a ficção científica”, de Edgar Lyra (2011).
4 Hannah Arendt (2010) compreende o agir de três formas: com a natureza; com os objetos feitos pela mão humana; e, entre
as pessoas. Essas relações não são pensadas como um quadro esquemático e fixo, mas como fenômeno complexo e interativo, no
qual as atividades se apresentam relacionadas umas com as outras, complementando-se. As atividades que compõem a vita activa,
como Arendt as nomeou, são: trabalho, fabricação e ação. Cada uma dessas atividades corresponde a uma concepção do humano,
ora descrito enquanto animal laborans, quando o agente se encontra aprisionado às necessidades biológicas e trabalha para prover
sua subsistência; ora como homo faber, o indivíduo enquanto fabricante de artefatos duráveis, construindo um mundo por meio do
domínio de uma técnica; e, ora como zoon politikon, o agente da política, caracterizado pelo relacionamento com os outros na esfera
pública. Hannah Arendt diferencia trabalho, fabricação e ação pelo produto ou resultado final obtido; pelo tempo empreendido na
sua realização; pelo espaço ocupado ao colocar em prática o ato; e, através do comportamento humano ao se expressarem.
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deria em valor as verdades sobre uma ais da vida política a “uma emigração
política das esferas de diálogos e tro- dos homens da Terra para algum ou-
cas discursivas com o fito de persuadir tro planeta” (Ibidem: p. 11). Com cla-
o outro. Trata-se mais de produzir o reza de análise ela apresenta a condição
corpo-máquina capaz de funcionar, e de já estarmos habitando outro planeta,
fazer funcionar, as engrenagens das re- contudo, em plena ocupação terráquea.
lações agonísticas. O planeta que deixamos para trás é o
Sabemos que para a autora, a “ativi- da tradição de um pensamento político
dade política por excelência” é a que que insiste em nos prender às antigas
ocorre diretamente na pluralidade dis- amarras discursivas quando a política e
cursiva das expressões humanas sin- seus mecanismos já operam, com trans-
gulares. Entretanto, a própria Arendt formações ocorrendo em grande veloci-
discorre sobre o quanto a atual condi- dade, através de funções e estratégias6 .
ção humana “nasceu com as primeiras A “alienação do mundo, em sua du-
explosões atômicas” (Ibidem: p. 7) e pla fuga da Terra para o universo e do
se encontra profundamente apartada mundo para o si-mesmo” (Ibidem: p. 7),
de toda uma tradição ocidental. “O se realiza no “homem futuro (...), im-
que quer que toque a vida humana ou buído por uma rebelião contra a exis-
mantenha uma duradoura relação com tência humana tal como ela tem sido
ela assume imediatamente o caráter de dada”. Essa é a “questão política de pri-
condição da existência humana” (Ibi- meira grandeza” (Ibidem: p. 3). Ao nos
dem: p. 11). mantermos presos a uma filosofia po-
Seguindo a imagem do objeto artifi- lítica do discursivo e da ação na esfera
cial e ficcional5 que parecia realizar o pública, regulada pelos artefatos ins-
desejo de libertar “os homens de sua titucionais de estabilização dos confli-
prisão na Terra” (Ibidem: p. 1), Han- tos, “pode suceder que nós, que somos
nah Arendt compara as condições atu- criaturas ligadas à Terra e nos puse-
5 No “Prólogo” de A condição humana, ao falar sobre um objeto artificial a transformar a existência do ser humano, Hannah Arendt
se refere ao primeiro artefato lançado ao espaço, o Sputinik: “em 1957, um objeto terrestre, feito pelo homem, foi lançado ao universo,
onde durante algumas semanas girou em torno da Terra segundo as mesmas leis de gravitação que fazem girar e mantêm em movi-
mento os corpos celestes o Sol, a Lua e as estrelas” (2010, p.1). O Sputinik I, durante 22 dias, do lançamento até que suas baterias se
esgotassem, emitiu para a Terra um sinal “beep” que podia ser captado por rádio amador. Em meio à Guerra Fria, o satélite soviético
causou grande impacto no cenário ideológico, econômico e militar, impulsionando diretamente a chamada “corrida espacial” com a
disputa entre União Soviética e Estados Unidos. Para Arendt, contudo, um dos maiores impactos foi o filosófico existencial, pois se
constatava que, através da tecnologia, “a humanidade não permanecerá para sempre presa à Terra” ou à sua velha condição humana,
evidenciando aquilo que ficara desde sempre “relegado ao reino da literatura de ficção científica” (2010, p. 2).
6 Cf. artigo de minha autoria: TELES, E. “Governamentalidade algorítmica e as subjetivações rarefeitas”. Esse artigo problematiza
a racionalidade de governo gerida pelos algoritmos. Argumenta-se que a governamentalidade, tal como definida por Michel Fou-
cault, a saber, uma lógica de cálculos e estatísticas utilizada para conduzir a ação dos indivíduos, mesclada às funções das máquinas
autônomas, configura um novo regime de produção de subjetividades. Estruturando as relações entre o humano e a máquina em
velocidade instantânea e acessando o máximo de informações sobre os interesses e necessidades dos indivíduos, a governamentali-
dade algorítmica trabalha com a ideia de uma normatividade imanente ao próprio deslocamento e circulação dos dados, bloqueando
experiências sociais e políticas com a eliminação das esferas de debates e de criação do comum.
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7 Jacques Rancière problematiza a figura “povo” ao expor a dependência dessa categoria em relação às instituições de Estado: “Que
existe uma entidade chamada povo que é a fonte do poder e o interlocutor prioritário do discurso político, é o que afirmam as nossas
constituições e é a convicção que os oradores republicanos e socialistas de outrora desenvolveram sem titubear. (...) Pois ‘o povo’ não
existe. O que existe são várias figuras de povo, mesmo antagônicas, figuras construídas favorecendo certos modos de reunião, certos
traços distintivos, certas capacidades ou deficiências: povo étnico definido pela comunidade da terra ou do sangue; povo-rebanho
vigiado pelos bons pastores; povo democrático implementando a competência de quem não tem qualquer competência particular;
povo que ignora que os oligarcas mantêm distância etc.” (2013, pp. 138-139).
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8 Segundo Donna Haraway, “a ficção científica contemporânea está cheia de ciborgues – criaturas que são simultaneamente animal
e máquina, que habitam mundos que são, de forma ambígua, tanto naturais quanto fabricados” (2009, p. 36). Identifica-se uma
filosofia contemporânea, da qual Arendt teria sido uma das precursoras, que compreende certa maquinicidade ou a hibridização da
política.
9 No livro Ação política em Hannah Arendt refleti sobre a crítica arendtiana à política contemporânea a partir das experiências
totalitárias do século XX (Teles, 2019).
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10 Para Hannah Arendt, a era moderna “começou no século XVII, terminou no limiar do século XX” (2010, p. 7) e caracterizou-se
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pela alienação do mundo por um sujeito individualizado carente da convivência entre os pares e sofrendo com a ausência de pro-
fundidade no pensamento. Do ponto de vista da temática desse artigo o que nos interessa é o momento político e filosófico no qual
estratégicas mecânicas e funcionais ganham relevância nas relações de poder.
11 É o caso da eleição presidencial norte americana de 2016, na qual a empresa de marketing político Cambridge Analytica usou
de dados de milhões de usuários da rede social Facebook para conduzir eleitores a votarem em Donald Trump, que viria a se tornar
presidente. Produz-se uma política preditiva determinando decisões com base nos processos autômatos e eliminando em grande
medida uma característica fundamental da ação política, o “risco” de sua imprevisibilidade. Cf. “Presidente da Cambridge Analytica
confessa influência em eleições nos EUA”, in: O Estado de S. Paulo, de 21 de março de 2018, p. 18.
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12 A referência para um poder politico que exerce a condução, ou o pastoreio, das populações (corpo coletivo) pode ser lida em
Michel Foucault, no seminário Segurança, Território, População (2008), aula de 08 de março de 1978: “Da pastoral das almas ao
governo político dos homens”.
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rias. A atividade política, quanto mais Como pensar em uma política que
instrumentalizada e mecanizada se tor- transborde os limites da representação?
nou, mais foi se limitando à ação de Uma ação cujo funcionamento extra-
poucos. Os especialistas nos processos pole os significados expressos pelos dis-
de governo substituíram as possibili- cursos? Qual a profundidade do mundo
dades do agir imprevisível e inovador fabricado, artificial, sem o poder exclu-
fruto da reunião plural das singulari- sivo das palavras? Faria sentido per-
dades. guntarmos pelo sujeito da política di-
Em uma política fabricada, a ação e ante de uma ação definida por meio de
o discurso são considerados mais pela dispositivos com funções de controle?
efetividade de seu uso e efeitos do que
pelo conteúdo discursivo. Nesse con-
texto, o fundamento da ação política
Arquiteturas e técnicas políticas
é a “noção de que os homens só po-
dem viver juntos, de maneira legítima
Quando Michel Foucault se refere a
e política, quando alguns têm o direito
uma “microfísica do poder”13 ele expõe
de comandar e os demais são forçados
o deslocamento em relação a toda uma
a obedecer” (Arendt, 2010, p. 277).
política representacional e discursiva.
Portanto, o problema a ser tratado é o
O tipo de intervenção sobre o humano
modo de governo, a eficácia e o con-
e o ambiente em que este habita, sobre
trole que pode exercer. Pode-se obser-
o corpo individual ou coletivo, define-
var que a democracia representativa, de
se por funções diferentes e, ao mesmo
certo modo, sintetizou o controle da ca-
tempo, complementares, que remetem
pacidade política dos sujeitos em ter-
à reflexão sobre um agir político com-
mos como “participação” e “cidadania”,
preendido através dos efeitos que pro-
esvaziados na medida em que não vão
duz.
além de uma esfera pública e de uma
As técnicas que incidem sobre o
política discursiva com sérios limites.
corpo visam aprimorá-lo para que
“Seria necessário uma outra democra-
exerça melhor sua função produtiva nas
cia? Uma democracia estendida às coi-
relações de poder. Objetiva-se fabricar
sas?” (Latour, 2013, p. 17).
um corpo a ser utilizado em suas pos-
13 O diagnóstico sobre a existência de uma microfísica do poder visa desmontar a ideia universal de identificação entre poder e
Estado ao considerar toda uma rede de poderes entre as micro-relações, por toda parte, dentro ou fora das instituições. Aponta ainda
para o fato de os poderes agirem não só por meios repressivos, mas também disciplinares e reguladores. Para saber mais sobre as
micro-relações de poder há a publicação brasileira com coletânea de ensaios sobre o tema no livro Microfísica do poder (Foucault,
1979).
14 Um bom exemplo de visão da política como um poder produtivista, a partir de gestões da vida e do corpo por parte de institui-
ções, se encontra na entrevista do general Eduardo Villas Bôas, comandante do Exército durante os governos dos presidentes Dilma
Roussef (2º mandato) e Michel Temer. Perguntado sobre como resolver a questão da violência urbana, o destacado militar respon-
deu: “Somos um país carente de disciplina social, que prioriza os direitos individuais em relação ao coletivo e ao interesse social.
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E um ambiente de pouca disciplina favorece à diluição das responsabilidades. Por isso, há uma certa resistência a que se busque o
saneamento das condutas individuais e coletivas. Por outro lado, estamos vivendo uma imposição do politicamente correto, vivendo
uma verdadeira ditadura do relativismo e com uma tendência a que não se estabeleçam limites nas condutas. (...) Quando nós vemos
agressões a mulheres, abusos, quando vemos desrespeito, na raiz disso está a falta de limite e de disciplina que existe na sociedade”.
In: “Contaminação de tropas federais por facções criminosas preocupa”, in: O Estado de S. Paulo, de 15 de janeiro de 2018, p. 12.
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15 É interessante o exemplo do tempo gasto no trânsito, o que inclui espera em ponto de ônibus, circulação e transferências entre
tipos de transportes. Cada corpo paulistano, por exemplo, usuário do transporte público, chega a despender 45 dias por ano, em
média, na circulação urbana. Seria difícil imaginar que um indivíduo, ou sua multiplicidade (o que é exponencialmente mais po-
tente), pudesse prodigalizar tanto tempo diário com circulação entre trabalho, estudo (seu ou de seus filhos) e casa, se não fossem
seus corpos altamente adestrados, dóceis e submissos. O próprio transporte, seus objetos e indivíduos, é a instituição disciplinar e as
relações por ele e nele produzidas são a ação política de controle. Talvez pudéssemos levantar a hipótese de que a quantidade massiva
de ônibus queimados nas periferias das grandes cidades (em São Paulo, no ano de 2014, foram mais de 200 veículos incendiados) se
deva, ao menos em parte, ao grau abusivo e excessivo de uso da docilidade dos corpos para bloquear revoltas contra a baixa qualidade
dos serviços públicos na cidade. Cf. “Pesquisa sobre mobilidade urbana”, feito pela Rede Nossa São Paulo, publicada em setembro de
2016. Disponível em http://www.mobilize.org.br/midias/pesquisas/mobilidade-urbana-e-transporte-publico-em-sp.pdf, acesso em
setembro de 2020.
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simples seres viventes, Arendt refletiu biológico ou, pelo menos, uma
sobre a substituição da política tradici- certa inclinação que conduz ao
onal por uma política do biológico. A que se poderia chamar de esta-
ação instrumentalizada para o controle tização do biológico (Foucault,
da vida virou uma função sem sujeito, 1999, pp. 285-286).
cujas relações entre as pessoas, e des-
tas com as coisas e vice-versa, ocorreria
por meio de mecanismos próprios para Com a tecnologia biopolítica apa-
lidar com a gestão de processo produti- rece um novo personagem, a popula-
vos. ção, e com ela os fenômenos relacio-
Já para Michel Foucault, um poder nados, como: natalidade, mortalidade,
sobre o biológico surge antes das ex- longevidade, enchente, saúde pública,
periências do século XX e por estas é circulação nas cidades etc. Os novos
reforçado16 . As populações se tornam mecanismos se dedicarão às estatísticas,
alvo de distribuições a partir do fato de às previsões e às medições. “Trata-se
serem grupos de corpos biologicamente sobretudo de estabelecer mecanismos
(in)animados. Se o poder disciplinar lo- reguladores que, nessa população glo-
calizava, examinava e distribuía os in- bal com seu campo aleatório, vão poder
divíduos entre vivos, mortos e doentes, fixar um equilíbrio, manter uma mé-
um novo poder, a biopolítica, condu- dia” (Ibidem, p. 293). Na biopolítica,
zia as populações para mais viverem ou as tecnologias de governo dos corpos
para a morte, a partir da ideia central e da vida centralizarão suas ações nos
de que a vida (e os corpos) é a grande acontecimentos eventuais procurando
ferramenta política. intervir sobre eles antes que se concre-
tizem.
Para Hannah Arendt, como para ou-
Parece-nos que um dos fenô- tros pensadores, a ação é imprevisível,
menos fundamentais do século pois resulta da relação social entre su-
XIX foi, é o que se poderia de- jeitos singulares e discursos dissonantes
nominar a assunção da vida e, por mais que se criem modos de esta-
pelo poder: se vocês preferi- bilizar as profundas diferenças – como,
rem, uma tomada de poder so- por exemplo, as leis –, não se poderia
bre homem enquanto ser vivo, predizer totalmente o ato (2010, pp.
uma espécie de estatização do 303-308).
16 No seminário Em defesa da sociedade, Michel Foucault argumenta sobre o impacto da experiência da “sociedade nazista” na absolu-
tização do biopoder: “Tem-se, pois, na sociedade nazista, esta coisa, apesar de tudo, extraordinária: é uma sociedade que generalizou
absolutamente o biopoder, mas que generalizou, ao mesmo tempo, o direito soberano de matar. Os dois mecanismos, o clássico,
arcaico, que dava ao Estado direito de vida e de morte sobre seus cidadãos, e o novo mecanismo organizado em torno da disciplina,
da regulamentação, em suma, o novo mecanismo de biopoder, vêm, exatamente, a coincidir” (1999: p. 311).
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les Deleuze e Félix Guattari explicam mente por pequenas engenharias de go-
como máquinas de guerra micropolí- verno dos desejos. As máquinas trans-
ticas agem sobre o desejo de modo a formam a ação em cifras calculáveis e
tornar o fascismo um movimento de modulam a condução dos corpos por
massa, potente e catastrófico. É atra- meio de códigos informacionais cujas
vés de micro organizações, fluxos se combinações infinitas permitem certa
deslocando por entre segmentos mais previsibilidade e o ilimitado de uma
estáveis. “Mas o desejo nunca é sepa- política tecnocientífica. Quanto mais
rável de agenciamentos complexos que central e maior forem os dispositivos
passam necessariamente por níveis mo- de segurança, maior será a microgestão
leculares, microformações que moldam dos pequenos medos e das desesperan-
de antemão as posturas, as atitudes, as ças fluidas. Imperceptíveis ao olhar são,
percepções, as antecipações, as semióti- contudo, tão evidentes quanto o cheiro
cas, etc.”; os desejos resultam, mais do de algo podre do qual desconhecemos a
que de energias pulsionais, de “um en- proveniência.
gineering de altas interações” (Deleuze Bom exemplo é a expectativa posi-
e Guattari, 2012b, p. 101). tiva de que uma intervenção militar na
Tornamo-nos dispositivos aplicáveis gestão da segurança pública, no estado
de uma estrutura arquitetada a partir do Rio de Janeiro, resolveria por meio
de redes, um modo de governo prove- da violência, legal, a violência urbana
niente do capitalismo pós-industrial e crescente18 . Em um jogo de movimen-
capaz de lidar com as subjetividades tações molares e moleculares, entre, por
em suas formas mais capilares. As má- um lado, articulações institucionais que
quinas de guerra políticas, potências da vêm desde as Unidades de Polícia Paci-
sociedade de controle, atuam em um ficadora (UPPs) e os grandes eventos
âmbito molar17 , o das instituições e dos esportivos, e, de outro, imagens de te-
grandes centralismos (notadamente o levisão com arrastões e saques na Zona
Estado), e, através de fluxos molecu- Sul da cidade, se produziu um clamor
lares, atomizados, conduzidos massiva- conservador, pois demandante do uso
17 Gilles Deleuze e Félix Guattari desenvolveram os conceitos de molar e molecular. Molar se refere ao campo dos controles e das
representações e são gestados, normalmente, pelas instituições centralizadoras, como as do Estado. O molecular é a expressão dos
devires e dos desejos, por onde os fluxos se relacionam por meio de inúmeras conexões. “(. . . ) A política e seus julgamentos são
sempre molares, mas é o molecular, com suas apreciações, que a ‘faz’ ” (Deleuze e Guattari, 2012b, p. 112). Um e outro campo
podem existir conjuntamente, “um grupo de trabalho comunitário pode ter uma ação nitidamente emancipadora a nível molar, mas
a nível molecular ter toda uma série de mecanismos de liderança falocrática, reacionária, etc. Isso, por exemplo, pode ocorrer com a
igreja. Ou, o inverso: ela pode se mostrar reacionária, conservadora, a nível das estruturas visíveis de representação social, a nível do
discurso tal como ele se articula no plano político, religioso, etc., ou seja, a nível molar. E, ao mesmo tempo a nível molecular, podem
aparecer componentes de expressão de desejo, de expressão de singularidade, que não conduzem, de maneira alguma, a uma política
reacionária e de conformismo” (Guattari e Rolnik, 1999, p. 133).
18 Comentei o acontecimento “intervenção” no artigo “A revolta dos tuiutis”, publicado em https://www.peixe-eletrico.com/single-
post/2018/02/23/A-revolta-dos-Tuiutis, acesso em setembro de 2020.
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19 Uma referência é a publicação “Rio sob intervenção: medo, percepção de risco e vitimização na cidade do Rio de Janeiro”, de
PAIVA et alli (2018), do Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP).
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20 O termo Big Data se refere a um grande armazenamento de dados em velocidade, variedade e volume incalculáveis. Sua potência
está em que, através dos algoritmos, dele se pode extrair informações valiosas e eficientes sobre processos produtivos e, inclusive,
medidas preditivas a partir de detalhadíssimas informações sobre comportamentos, coisas ou seres animados, inclusive humanos.
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21 Aqui fazemos uma referência à crítica de Félix Guattari aos sujeitos universais e em favor da reflexão sobre os “componentes de
subjetivação” sob a superfície, não evidentes: “O sujeito não é evidente: não basta pensar para ser, como o proclamava Descartes, já
que inúmeras outras maneiras de existir se instauram fora da consciência, ao passo que o sujeito advém no momento em que o pensa-
mento se obstina em apreender a si mesmo e se opõe a girar como um pião enlouquecido, sem enganchar em nada dos territórios reais
da existência, os quais por sua vez derivam uns em relação aos outros, como placas tectônicas sob a superfície dos continentes. Ao
invés de sujeito, talvez fosse melhor falar em componentes de subjetivação trabalhando, cada um, mais ou menos por conta própria”
(1990: 17).
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zão eletrônica e biológica. Baseia-se na que Michel Foucault (2008) tenha apre-
profunda convicção de que não há mais sentado a governamentalidade como a
distinção entre seres vivos e máquinas” “ação de condução da ação do outro”
(Mbembe, 2020, p. 9, tradução nossa). por meio dos procedimentos técnicos
Máquinas, redes, objetos, estruturas, semelhantes aos acima descritos. Se na
diagramas, tecnologias agem não so- política discursiva, o que mais a carac-
mente por meio das objetividades que teriza seja o molde sobre o qual os sujei-
lhes são inerentes, mas possuem um re- tos universais serão representados, na
gime de subjetivação, ou de dessubjeti- política mecânica e tecnológica se des-
vação, pois procedem por sugestão, so- taca a modelagem e a dimensão do pro-
licitação, bloqueio, anulação, incentivo, cesso produtivo de subjetivação empre-
procedimento, cálculo. Digno de nota endido pelas máquinas políticas.
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Recebido: 30/09/2020
Aprovado: 18/01/2021
Publicado: 31/01/2021
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DOI: https://doi.org/10.26512/rfmc.v8i3.34499
Abstract: This article proposes an analysis of the global discontent situation resulting
from the pandemic period, of COVID-19, in which there was the intensification in
the uses of new technologies. The scenario points to a reality which effective material
objectivity, increasingly, a technocracy system, being the artificial intelligence of algo-
rithms, the structure for its definitive implementations with emphasis for monitoring,
surveillance, automation, forethrought and control bodies and minds. The coronavirus
crisis accelerated too radically the transformation in countless sectors of society and
human subjectivity. Therefore, this critical period of discontent has as direct product
the introduction of Forth Industrial Revolution or Industry 4.0 armed with ubiquitous
systems and of quantum computing interconnected for capture data and directing
human actions.
Keywords: Discontent. Artificial Intelligence. Algorithms. Industry 4.0.
* Docente e supervisor clínico no curso de Psicologia da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da Fundação Educacional de
Penápolis (SP). Mestre em Educação Escolar pela Universidade Estadual Paulista (UNESP - Araraquara) e psicólogo formado pela
UNESP - Bauru. E-mail: marcelo_gonc@yahoo.com.br. ORCID: https://orcid.org/0000-0001-6110-2594.
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entre os processos digitais, biológicos e dessa dinâmica no artigo. Para isso, per-
físicos1 . Sendo assim, é na propriedade passaremos por uma pontuação sobre o
dessas constelações que postulamos o mapeamento histórico das construções
objetivo deste artigo de discutir uma paradigmáticas de períodos críticos da
das consequências da crise do coronaví- civilização no século XX. Aliado a isto,
rus à vida em sociedade: a aceleração da ainda que breve, traremos uma leitura
revolução 4.0 e suas ingerências tecno- psicanalítica da guinada tecnocientífica
cráticas algorítmicas. É imprescindível e de seu entrelaçamento com o papel
refletir sobre os desafios futuros frente constitutivo da instância do Supereu
aos novos modos de existir e as novas como forma de controle, censura e mo-
regras em civilização com a intensifica- nitoramento da consciência.
ção dessa Quarta Revolução Industrial
e de seus subprodutos agregados. Se há
uma forma que não voltará como an-
tes do período de pandemia, esta é a No alvorecer da peste
própria tecnologia em renovação incan-
Sobreviver em civilização, como elu-
sável de seus sensores e antenas, con-
cida Freud (1930/2010), é reconhecer
sequentemente, de seus usos e das re-
a sensação da condição de mal-estar,
lações por ela mediadas na captura dos
oriunda, espectralmente, da renúncia
dados em tempo real.
às satisfações pulsionais: supressão e
A partir da grande reinicialização di-
repressão dos instintos poderosos. Essa
gital que bate à porta, quais cortes, fu-
esfalfada caracterização, abre o circuito
ros e costuras impactarão nas mutações
para reconsiderações sobre o esclareci-
subjetivas em andamento e nas que ad-
mento de cultura e civilização. Espe-
virão com esta revolução dos softwares
cificamente em referência ao moderno
de vigilância em massa? Certamente
estado das coisas técnicas digitalizando
essa temática possibilita aguçar o de-
a vida política e cultural junto da previ-
bate sobre os limites éticos e morais nos
são e determinação de suas ações, gra-
empregos da tecnologia e a demarca-
dativamente, em cookies, pontos quân-
ção entre o ser humano e a inteligência
ticos, algoritmos e controle.
artificial. Sem grandes pretensões de
O progresso vertiginoso desses ras-
fechar discussões e tampouco de res-
treadores inteligentes favorece ponde-
ponder em suas máximas essas ques-
rar o lugar da ética, das violações de
tões, propomo-nos tratar sucintamente
privacidade e da neutralidade quando
1 É importante lembrar que, conforme consta resumido na Agenda Brasileira para Indústria 4.0, do Governo Federal, a Primeira Re-
volução Industrial, em 1784, foi com a geração de energia que envolveu o tear mecânico e a utilização das forças da água e do vapor.
A Segunda Revolução Industrial, 1870, trouxe a industrialização e eletricidade. A Terceira Revolução Industrial, 1969, inaugurou a
automação eletrônica, programação lógica de sistemas controladores, informatização e digitalização dos dados.
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estes artefatos são projetados para ma- eficiência, o fato é que, ambas as com-
nipulação e persuasão dos usuários. posições não são independentes entre
Isso implica que não podem ficar à si.
revelia os direcionamentos e influên- Pelo contrário, são abastecidas por
cias sobre o comportamento de decisão estruturas de ambivalência, identifi-
político-moral do indivíduo que tran- cação e anomia social, muito embora
sita como eleitor, consumidor e objeto apresentem diferenças e sinalizem com
de avaliação mediante o processamento agudeza as contradições da vida em so-
onipresente. A construção do lugar ciedade, tão fundamentais para apontar
ético político é dicotômica, por conse- as problemáticas no curso temporal de
guinte, envolve a questão do processo suas ocorrências. Revelam, portanto, li-
civilizatório que remete, a um só tempo, mites e caminhos de interpretação para
a duas marcas. De um lado, a pretensão o pensamento de novas situações sem
de ressuscitar a Paideia idealizada, pe- ofuscar as lentes para os velhos pro-
ríodo de apogeu da educação e forma- blemas persistentes. Justamente, nesse
ção principescas vigente na Grécia an- viés, erudição, cultura e produções de
tiga. De outro, ao conjunto de regras de conhecimentos – ciência e tecnologia –
internalização simbólica de leis para se- não parecem ser antídotos à violência
rem aplicadas em modo vigilante, prin- e tampouco logradouros de felicidade,
cipalmente, em domínio público. Ver- não obstante a promessa ser exatamente
samos a este respeito, especialmente, esta. Tanto é verdade que a evolução
no valor dos termos “cultura”, herança tecnológica vem acompanhada de nor-
da sociedade alemã (Kultur), versus “ci- mativas de princípios de moralidade
vilização” como laço social proveniente com argumentos na linha de influen-
da sociedade francesa. ciar os sujeitos a bons comportamentos,
A contento ressaltamos que não como garantias de segurança, de saúde
houve entre tradutores um consenso e de justiça. As máquinas regulariam os
sobre as terminologias Kultur, e, Zivi- nortes dessas combinações de modela-
lization, inclusive Freud (1927/2014), gem. Apesar disso, os riscos de distopia
sublinha a recusa a distinguir entre os não podem ser desconsiderados em ra-
referidos conceitos. Em que pese esta zão da velocidade com que a alta tecno-
consideração do autor, é justo realçar logia tem interferido de modo customi-
que, seja por evolução cultural pos- zado na vida objetiva social.
suindo todas as magnânimas potenci- Por esse ângulo, é importante recu-
alidades plausíveis para dar sentido ao perar que, regimes totalitários, histori-
humano, seja pela demonstração con- camente, documentaram a complexifi-
creta das máximas construções tecno- cada rede de engenharia social, tecnoló-
científicas para lhe dar objetividade e gica e política. Tais governanças, nessa
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2 No realce das constatações a respeito da automação e inteligência artificial, é importante insistir que profissão/carreira alguma
estará imune de ser substituída pelas máquinas. É a tendência, aliás. A respeito do controle e previsão dos desejos e pensamentos
do ser humano como apontado, podemos evidenciar ensaios de terapias com robôs via aplicativos. Por ora, parece um teste, um
passatempo, porém, uma ferramenta inicial para ensinar o algoritmo a respeito das emoções humanas, assim, generalizar e discrimi-
nar prontamente essas informações perante novas situações. A defesa para utilização desse modelo é extensa e está demarcada para
tão logo: rapidez na análise de micro expressões faciais; capacidade infinita de armazenar palavras do paciente; menor censura do
paciente por estar diante de um robô; maior precisão de diagnóstico e uma melhor promoção da saúde mental, pois um maior con-
tingente se beneficiaria com um fácil e dinâmico acesso sem sair de casa. Fundado por Alison Darcy, ex-psicóloga, agora tecnóloga,
o aplicativo denominado Woebot: Your Self-Care Expert, foi o vencedor do prêmio Google Play, em 2019, como o aplicativo de bem-
estar. Este aplicativo fora abastecido pelos conhecimentos das técnicas da Terapia Cognitivo-Comportamental (TCC). A este respeito
também é preciso enfatizar que as técnicas da Análise do Comportamento, de B.F. Skinner, estão, talvez, desde o seu nascedouro a
serviço de abastecer a inteligência artificial com as famosas máquinas de ensinar e com suas caixas de condicionamento operante.
Não por menos, os teóricos do Behaviorismo têm o imperativo de que psicólogos e professores aprendam programação e linguagem
computacional para maior controle dos experimentos.
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laço social pela via antiética e o hipe- bal com a indústria bélica para investi-
rinvestimento libidinal na pulsão de mento militar, reiteramos, é impressi-
morte. onante. Consoante aos dados do Insti-
Neste propósito, a capacidade deter- tuto de Pesquisa sobre a Paz Internaci-
minativa de organizar e transformar a onal de Estocolmo (SIPRI), em 2018 o
totalidade das relações e da natureza valor destinado às forças armamentista
nos usos da agressão, dominação e vi- foi da ordem de 1,8 trilhões de dóla-
olência internalizada tem suas balizas res. Cifras lideradas por EUA, $ 649
sedimentadas no vir a ser social. Essa bilhões, e China, $ 250 bilhões, os dois
construção, aliás, não é novidade. Es- maiores capitalizadores do setor, res-
tudos antropológicos largamente dão pectivamente.
nota disso; Totem e Tabu (FREUD, 1912- A respeito dessa compreensão, é per-
1914/2012), faz um extenso percurso tinente nos concentrar, brevemente,
sobre a gênese dessa estrutura narra- nas tratativas dialogadas entre Freud
tiva civilizatória tanto quanto as esca- e Albert Einstein do Por que a guerra
vações filosóficas da Dialética do Escla- (1932/2010), quando o psicanalista
recimento (Adorno, Horkheimer, 1985), procura responder as demandas do fí-
e, A ideia de história natural (Adorno, sico apontando as relações de impasse
1932/1991), trabalhos contundentes e na forma de solucionar conflitos de in-
centralizados na reinterpretação dile- teresse via violência imediata. Argu-
tante do ocidente. Ensaios frankfurti- menta Freud que, de início a força bruta
anos que deslindam o telos histórico e era a principal via régia de enfrenta-
social enquanto um continuum de do- mentos. De fato, complementamos por
minação na civilização ao postular que, esse ínterim que, à medida que a capa-
história e natureza não são independen- cidade de integralização da abstração
tes e nem contraditórias entre si, como da subsunção no universal-particular
destacado ao longo dessa discussão. se estruturou – concreto pensado –, en-
Inclusive acerca desse quesito, pode- tão, os modos de objetivar a violência
mos sublinhar a regulação da moção urgiram para outros efeitos. A partir do
pulsional e de seus destinos na coli- desenvolvimento do pensamento lógico
são entre a alienação e a presentifica- em conjunto com habilidades humanas,
ção no aspecto do valor do tempo. Isto a determinação da inteligência, criação
significa evidenciar a utilização de re- e manipulação de leis e decretos, diri-
cursos/riquezas na construção da pro- giu as capacidades subjetivas na apre-
messa de uma morte em vida: passado, sentação do mecanismo técnico instru-
presente, futuro e principalmente a po- mental, para acréscimo, utilizamos as
lítica estão calcados na pulsão de morte. palavras de Freud:
O aumento significativo do ônus glo-
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imunização para se defender demasia- nica junto da eficiência não se pode as-
damente de alteridades, executa o des- sumir as debilidades ou fraquezas. A
conhecimento de si para reconhecer so- ideia de reinvenção ou resiliência dado
mente a si como referência. Um Eu fra- o sistema de conexão atual em relação
gilizado e absolutamente violento cuja à crise sistêmica global da pandemia,
resposta atende a critérios próprios do reforçam o ajuste generalizado forçado.
narcisismo. Tanto maior será a agressi- Não por menos, nossos traços sintomá-
vidade, quanto maior for a semelhança. ticos se intensificam nos usos que faze-
Espetáculos de investimentos narcísi- mos da tecnologia. Quanto maior o pro-
cos tão em voga na cultura do cance- gresso tecnológico e científico, maior a
lamento, no isolamento do outro e nos regressão ética. O fato considerado até
bloqueios virtuais via linguagem icô- aqui, é que parcelas dos grandes alcan-
nica das redes. ces de progresso da civilização foram
Assim, incidimos sobre o paradoxo incrementadas após fatídicos eventos
estrutural da tecnociência que des- críticos, por exemplo, a Terceira Revo-
liza entre controle, exclusão e conheci- lução Industrial ou era da informática
mento. Essa marca constitutiva e para- foi inaugurada após a Segunda Guerra
digmática da tecnologia e ciência forta- Mundial. Desse modo, discutiremos
lece uma violência progressivamente si- adiante a aceleração da Quarta Revo-
lenciada, qual seja, no mesmo momento lução Industrial a partir dos desdobra-
em que se avança para civilizar/habitar mentos da crise do coronavírus.
outros planetas, como Marte, exclui-se
da sensibilidade como que num vér-
tice peremptório de frieza, o continente
africano do nosso planeta. Tudo o que Ciberpandemia, conexões e vírus de
remeta a nossa origem tem que ser eli- mal-estar
minada e dar lugar à condição de seme-
lhança e poder da imago do mito divino A passagem simbólica do século XX
protetor. Vamos criar árvores, faz surgir para o XXI ocorreu de maneira capital
rios, cachoeiras e florestas. Transformar depois de nove meses, em 11/09/2001,
a natureza, controlá-la e eliminá-la de com a queda do maior centro financeiro
tudo o que possa lembrar o seu nasci- do mundo, as torres gêmeas. Marcando,
mento, sua origem e proximidade co- portanto, a morte do século XX e o nas-
nosco. cimento do terceiro milênio. Era como
Nesse sistema de programação téc- se os pilares totêmicos tão sólidos que
sustentavam as bases econômicas e os
3 Schwab (2016), em sua obra A quarta revolução industrial cita o estrategista de mídia Tom Goodwin quando este argumenta a
fluidez e liquidez subjacente dos ativos sem especificamente possuir uma materialidade ou um lastro, evidenciando uma descentra-
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paradigmas dos últimos 50 anos tives- cas das arenas do império romano para
sem colapsado e feito a transferência de decidir quem viveria ou morreria após
seus dados à computação na nuvem3 . o espetáculo de sangue.
Curiosamente, após esse acontecimento Essas recapitulações ficam ainda
trágico, as redes sociais que existiam de mais atualizadas quando as aproxima-
forma tímida em seus ensaios, aumen- mos de contextos críticos, que precipi-
taram significativamente. Começaram taram soluções imediatas, como o pro-
a se solidificar, ao passo que, novas leis vocado pela COVID-19, que gerou im-
antiterrorismo insurgiram sob a égide pactos na constituição dinâmica da es-
de mais segurança, proteção, o que, po- trutura subjetiva e de todo o estado ob-
tencializou as camadas de vigilância, jetivo funcional da sociedade. Funda-
captura de informações de tudo e de mentalmente, disparou uma intensifi-
todos através de servidores quânticos cação ou infestação nos usos da tecno-
digitais. logia. A transformação é radical, célere,
No mesmo ano, popularizaram- contínua e sem volta, pois destacou até
se programas, existentes desde 1999, então a urgência na reestruturação dos
como os reality shows, big brothers do modos de mercados para evitar a fa-
olho espião, em analogia ao grande ir- lência principalmente dos pequenos e
mão totalitário, do romance orwelliano. médios empreendedores e asfixia em
Isolados do mundo real, confinados tal muitos postos de trabalho. Conforme a
como infectados em quarentena, sendo OIT (Organização Internacional do tra-
vigiados e rastreados 24h/7 dias da se- balho), as micros e pequenas empresas
mana. Era necessário atingir um score (MPES) representam 70% do trabalho e
social, aprovação do público consumi- emprego em 99 países analisados. No
dor, para não ser eliminado do mundo Brasil, retratam 54% do emprego for-
virtual. Tão atual, se refletirmos sobre mal.
a série distópica do Black Mirror (2011), Nesse sentido, existe uma urgência
e os créditos ou pontuações sociais em de readequação de boa parcela dos tra-
operação na China determinando con- balhos existentes, sobretudo na repre-
troles, perda de liberdades e direitos, sentação da América Latina, já que a
quase a materialização de zonas de se- tendência está pavimentada para mi-
paração: quando e quem pode comprar, gração ao virtual com a indicação de
vender, trabalhar, ir e vir. Tão remoto exponenciais investimentos em tecno-
se lembrarmos de que like e dislike já logia, genética, automação e inteligên-
eram programações do lazer prototípi- cia artificial. As direções ao amanhã
lização e ruptura dos modelos financeiros. “O Uber, a maior empresa de táxis do mundo, não possui sequer um veiculo. O Facebook,
o proprietário de mídia mais famoso do mundo, não cria nenhum conteúdo. Alibaba, o varejista mais valioso, não possui estoques. E
o Airbnb, o maior provedor de hospedagem do mundo, não possui sequer um imóvel” (p.32).
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ALGORITMOS DE MAL-ESTAR: CIBERPANDEMIA E PRIVACIDADE HACKEADA
4 Conforme o Ministério da Justiça e Segurança pública do Governo Federal, para combater criminalidade, organizações crimino-
sas e corrupção, serão investidos 32 milhões pelos próximos quatro anos no projeto big data e inteligência artificial que integra quatro
ferramentas: Sinesp Big Data, o Sinesp Geo Inteligência, o Sinesp Tempo Real.
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5 Em sua obra Eu, Robô, Asimov (1969) enumera as três leis da robótica:
1- Um robô não pode ferir um ser humano ou, por omissão, permitir que um ser humano sofra algum mal.
2-Um robô deve obedecer as ordens que lhe sejam dadas por seres humanos, exceto nos casos em que tais ordens contrariem a Pri-
meira Lei.
3-Um robô deve proteger sua própria existência, desde que tal proteção não entre em conflito com a Primeira e a Segunda Leis.
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Recebido: 30/09/2020
Aprovado: 13/01/2021
Publicado: 31/01/2021
136 Revista de Filosofia Moderna e Contemporânea, Brasília, v.8, n.3, dez. 2020, p. 105-136
ISSN: 2317-9570
DOI: https://doi.org/10.26512/rfmc.v8i3.34460
Abstract: This article starts from the discreet transition between disciplinary societies
to control societies, what, in hypothesis, is realized out by the use of surveillance
technologies and the production of Big Datas. Based on this premise, the research
seeks in the relationship of data and algorithms the conditions for the possibility of
an algorithmic governmentality that transforms the subjectivities of individuals into
profiles generated by technologies, as a way of understanding society. With this, the
study aims to understand how algorithmic governmentality influences the construction
of subjective and social reality through communication and information technologies
that are fed with data, which soon, through Data Science, becomes something usable in
favor of population control. Finally, it is concluded that the future will be increasingly
intertwined with the algorithmic control society, and that, we need to be critical of events
related to technology, science and society.
Keywords: Governmentality. Algorithm. Big data. Data Science. Control.
Este artigo é o resultado parcial do projeto de pesquisa O Governo dos Algoritmos: subjetividade, vigilância e tecnologia desenvolvido
com recursos do Edital DG nº 26/2019 do Instituto Federal Catarinense, Campus Videira - SC.
* Professor de Filosofia do Instituto Federal Catarinense (IFC) – Campus Videira. Doutor em Filosofia pela UNISINOS. E-mail:
fer.ser29@gmail.com. ORCID: https://orcid.org/0000-0001-6386-1359.
** Acadêmico da oitava fase do Bacharelado em Ciência da Computação do Instituto Federal Catarinense (IFC) e Bolsista
do projeto O Governo dos Algoritmos: subjetividade, vigilância e tecnologia. E-mail: computacaosalomon@gmail.com. ORCID:
https://orcid.org/0000-0001-8698-1011.
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CONTROLE DE TIPO ALGORÍTMICA
lidade subjetiva e social. Por isso, se faz ao modo como os seres humanos a exe-
necessária a análise dos impactos das cutam não é uma questão nova, e re-
novas Tecnologias de Informação e Co- toma no nosso tempo a Alan Turing,
municação para constituição de valores que em 1936, bastante tempo antes
éticos e escolhas políticas dos sujeitos. de qualquer computador eletrônico ter
sido criado. No seu artigo On Com-
putable Numbers, Turing já defendia a
tese de que as máquinas computacio-
2. Execução da Tarefa Elementar: “A nais poderiam executar tarefas lógicas
Constituição da Subjetividade” do mesmo modo que os seres huma-
nos. Mais tarde, em 1950, aproximando
A produção de um artigo que tem a ver mais ainda a matemática e a ciência
com a tecnologia envolta com a ques- da computação da filosofia, Turing pu-
tão de algoritmos para uma revista de blica outro texto emblemático, Compu-
filosofia, carece responder a uma per- ting Machinery and Intelligence, no qual
gunta que todos aqueles que não são de fato explora o conhecido “Teste de
afeitos com a área da informática fa- Turing” em que comprova que as má-
zem: “o que é um algoritmo?” De forma quinas podem se assemelhar ao pensa-
simples e direta respondemos que um mento humano na execução de tarefa
algoritmo é o conjunto de etapas que e resolução de problemas (Cf.: MAC-
um indivíduo usa para executar uma CORMICK, 2018, pp. 317-329).
tarefa. Somos, portanto, antes de qual- Portanto, Turing sustentou que em se
quer coisa executores de algoritmos na tratando de cálculos lógicos, um com-
nossa vida cotidiana. Por exemplo, um putador poderá fazer qualquer coisa
morador do sul do Brasil que tem o cos- que o ser humano possa fazer e “Em
tume de tomar chimarrão, certamente 1950, estava pronto para expandir radi-
tem um algoritmo para preparar o seu calmente a hipótese Computing Machi-
mate: desde o modelo da cuia (a cabaça nery de maneira convincente, isto é, que
onde o gaúcho toma o chimarrão), pas- os computadores eventualmente imi-
sando pela qualidade da erva-mate, o tarão os seres humanos em conversa-
tipo de bomba usada para sugar o mate ção sobre qualquer tópico” (MACCOR-
e a temperatura ideal da água. Os algo- MICK, 2018, p. 326). E se a tarefa
ritmos executados por ‘computadores’ computacional dos algoritmos for a de
são cumpridores de tarefa assim como constituir e governar a subjetividade
nós e possuem ainda algo mais em co- humana, segundo algum interesse es-
mum: eles afetam também a vida coti- pecífico? Nesse caso, temos uma notícia
diana. bastante perturbadora para dar: “Algo-
A hipótese de que uma máquina ritmos são executados em computado-
pode executar uma tarefa semelhante
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res em todos os lugares — no seu lap- mica trabalha com a ideia de uma nor-
top, em servidores, no seu smartphone, matividade imanente ao próprio des-
em sistemas embutidos (como no seu locamento e circulação dos dados, blo-
carro, no seu forno de micro-ondas ou queando experiências sociais e políticas
em sistemas de ar condicionado) — em com a eliminação das esferas de debates
todos os lugares!” (CORMEN, 2014, p. e criação do comum” (TELES, 2018, p.
02). 429).
A partir do momento em que concei- Nesse processo de controle e consti-
tuamos o que é um algoritmo e o rela- tuição de subjetividades que une gover-
cionamos com a tradição Foucaultiana nos e corporações privadas (o Mercado)
e o conceito de governamentalidade1 , as tecnologias e, em especial os algo-
o qual foi elaborado, definido e ana- ritmos, assumem um papel preponde-
lisado por Michel Foucault e que tem rante. Como fizemos referência acima,
uma implicação direta com as “formas é certo que os algoritmos estão por trás
de controle ao ar livre”, segundo De- de uma “insignificante” pesquisa no
leuze, para as quais uma lógica de cál- portal Google, de anúncios publicitá-
culos e da estatística são utilizados para rios que estão sempre a nos espionar em
controlar e direcionar a ação dos indiví- qualquer página que clicamos e navega-
duos, temos uma ferramenta para ana- mos, da forma como nossa timeline no
lisar o governo dos algoritmos. O su- Facebook, no Twitter, no Instagram etc
jeito humano mesclado às funções das é organizada e apresentada para nós,
máquinas autônomas, está sujeitado a estão por detrás, também, da lista de
um novo regime de produção de subje- filmes que o Netflix nos apresenta assim
tividades, isto é, a biopolítica. que ligamos a smart tv. Essa familiari-
Como já apontara Alan Turing há 70 dade quase invisível com os algoritmos
anos, nessa nova forma de governar as faz com que as pessoas não se espantem
relações entre o humano e a máquina se com o fato de que são constantemente
fundem em velocidade instantânea de vigiadas e nem se perguntem pelas ra-
forma que a entrada de informações (in- zões e causas desse vigilantismo e desse
put) produz o máximo de informações controle quase que total da vida, que
sobre os interesses, desejos e necessida- produz subjetividades dóceis conforme
des dos indivíduos (output). Em razão a descrição foucaultiana.
disso, “a governamentalidade algorít- De um lado, os governos cada vez
1 Não temos espaço para fazer uma genealogia detalhada e uma análise minuciosa do conceito de governamentalidade em Fou-
cault. Para o escopo deste ensaio temos como referência a aula de 01 de fevereiro de 1978 do curso Segurança, Território e População
(FOUCAULT, 2008, pp. 143-144) em que o autor aglutina procedimentos, instituições, estratégias calculadas pela economia política
com a finalidade de conduzir as populações através de inúmeros procedimentos de segurança. Esse fator por si só une governos (po-
deres) e mercado (saberes) na busca da administração plena das populações. A hipótese desse artigo é que os algoritmos cumprem
essa tarefa de governamentalidade trazida por Foucault e que une Estado e Mercado num interesse comum.
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O GOVERNO DAS CONDUTAS E A CONSTITUIÇÃO DA SUBJETIVIDADE: UM ESTUDO DA SOCIEDADE DE
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muito ampla que escapa as capacidades sociais podem ser deduzidos e expli-
cognitivas de qualquer sujeito humano. cados por leis físicas e matemáticas: a
chamada física social. Com isso, temos
uma conclusão um pouco assustadora
para cientistas políticos tradicionais e,
3. A Execução da Tarefa Política: Dog em certa medida para os grandes co-
Whistle Politics municadores que eram capazes de mo-
bilizar as massas por meio de recursos
Literalmente a tarefa política dos algo- retóricos. O investimento numa car-
ritmos se assemelha a apitos para ca- reira política passa, por consequência,
chorros, pois individualizam os sujei- em pessoas com capacidade de dominar
tos a partir dos dados que eles mes- tecnologias e manipular grandes quan-
mos produzem. Daí a produção de con- tidades de dados.
teúdo visando o convencimento não de Essa hipótese de certa forma é sus-
uma massa de pessoas, mas de indiví- tentada na obra Armas de Destrucción
duos a partir do seu comportamento Matemática em que a autora analisa a
compartilhado em redes sociais e que forma algorítmica de agir de empre-
são reduzidos a dados disponíveis na sas de tecnologia famosas como a Go-
rede mundial. Hábitos da vida coti- ogle, Facebook, Amazon etc. Em relação
diana, preferências estéticas, opiniões a eleição americana de 2012, segundo
políticas e mesmo as emoções mais ín- a autora, o Facebook que à época con-
timas podem ser reduzidas a dado ma- tava com 1/3 de cidadãos americanos
temático. E ainda mais, com o advento com perfil ativo na plataforma de ma-
dos smartphones a possibilidade de ras- neira que a partir das publicações na
treamento e mobilização do indivíduo linha do tempo dos usuários foi pos-
está voluntariamente posta no bolso, de sível mensurar quais tipos de publica-
forma que “Essa profusão inédita de da- ções influenciavam o comportamento
dos – e os poderosos interesses econô- eleitoral das pessoas. Com a captura de
micos e políticos que ela representa – uma massa gigantesca de dados e com
está na raiz do novo papel dos físicos a utilização de algoritmos era possível
na política” (EMPOLI, 2020, p. 145). produzir um conhecimento muito rá-
Tal constatação nos leva ao tipo novo pido sobre as tendências do eleitorado
de cientista social, que trabalha com no- e, claro, influenciar na decisão desses
vas ferramentas e métodos novos, os fí- mesmos eleitores. “Em questão de ho-
sicos da política. Essa é a hipótese prin- ras, o Facebook poderia reunir informa-
cipal da obra Les Ingénieurs du Chaos ções sobre dezenas de milhões de pes-
que em sua argumentação retoma a ve- soas e calcular o impacto que suas pala-
lha premissa do Positivismo de Auguste vras e os links que compartilharam uns
Comte, qual seja, de que os fenômenos
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O GOVERNO DAS CONDUTAS E A CONSTITUIÇÃO DA SUBJETIVIDADE: UM ESTUDO DA SOCIEDADE DE
CONTROLE DE TIPO ALGORÍTMICA
com os outros” (O’NEIL, 2017, p. 145). ção dos dados. E é aí que pesa
Disso decorre a importância dos pro- a vantagem competitiva do fí-
fissionais treinados para trabalhar com sico, que, ao contrário do po-
uma grande quantidade de dados que lítico, está habituado a traba-
estão aglomerados e a partir dos quais é lhar com uma quantidade infi-
preciso inferir um comportamento mé- nita de dados (EMPOLI, 2020,
dio. O fato é que o físico está acostu- p. 147).
mado a trabalhar com grandes quanti-
dades de dados disformes que formam Uma empresa que capta uma grande
‘sistemas caóticos’ a partir dos quais in- quantidade de dados pode negociar es-
ferem uma ordem e um comportamento ses mesmos dados para aquele interes-
mediano através de ferramentas mate- sado que esteja disposto a pagar o preço
máticas e estatísticas. Quando o físico, mais alto num leilão em que o produto
com o auxílio de todas essas ferramen- é o material que acumulamos na Big
tas aplicadas aos algoritmos, entra para Data sobre nós mesmos e que pode ser
o campo da política temos a consuma- usado inclusive para manipular nossas
ção da utopia do positivismo de Comte: opiniões e decisões políticas no mundo.
a dedução e a modulação do compor- E ainda mais, as empresas que traba-
tamento humano interpretado e regido lham com grandes quantidades de da-
por leis físicas e matemáticas. De ma- dos como Google, Facebook, YouTube,
neira que Empoli pode escrever com ra- Amazon etc. não estão limitadas por
zão, que é preferível ter um físico traba- leis locais onde atuam, sua ação é glo-
lhando em política do que um cientista bal de forma que podem minerar dados
político: onde o cidadão tem seus dados prote-
gidos por leis do seu país e manipu-
lar esses mesmos dados a partir de um
Até cerca de dez anos atrás, os local onde essas leis são inexistentes,
dados para aplicar as leis físicas isto é, conhecem e sabem usar os siste-
aos aglomerados humanos não mas políticos: “As plataformas digitais
existiam. Hoje sim. Nós dispo- são infraestruturas globais com autono-
mos, até, de mais dados sobre os mia política suficiente para desafiar a
aglomerados humanos do que soberania dos Estados-nação de forma
sobre a maioria dos fenômenos muito interessantes, mas também são
físicos que temos o hábito de es- extremamente úteis para projetar essa
tudar [...]. Se você analisa o Fa- soberania e estendê-la para além das
cebook hoje, você tem quase tan- fronteiras do Estado que a exerce” (PEI-
tos captadores quanto molécu- RANO, 2019, p. 190).
las, ou seja, usuários. O pro- Entre os muitos dispositivos de segu-
blema passa a ser a interpreta- rança e controle que operam com tec-
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SERGIO FERNANDO M. CORRÊA; SALOMÓN ABASTO MACÍAS
nologia, Bruno (2013) descreve alguns para o escopo desta pesquisa: o profi-
como as câmeras de vigilância em luga- ling. Trata-se de um conceito trazido da
res públicos, semipúblicos e privados. engenharia do software que remete para
Em continuidade a essas tecnologias de a constituição do perfil do programa a
imagem a autora destaca as webcams ser desenvolvido. No caso, dos aparatos
pessoais ou institucionais, os sistemas de vigilância e captura da vida privada
de vídeo vigilância “inteligentes” e pro- se trata da criação de perfis computaci-
gramados para o monitoramento da ati- onais que, a partir de bancos de dados
vidade humana, usualmente voltados alimentados pelos próprios usuários e
para a detecção de condutas e situações de seus rastros deixados na internet,
suspeitas ou de risco; os sistemas de projetam padrões estatísticos de cate-
controle de trânsito (câmeras, pardais, gorias diversas, como a potencialidade
radares); sistemas de geolocalização; de cometimento de um crime, a ten-
fronteiras e portões eletrônicos (senhas dência para consumir certo produto e
e cartões de acesso, scanners para pes- formas comportamentais e de sociabili-
soas e objetos, sensores de detecção de dade etc.:
presença e movimento); mecanismos de
autenticação e controle de identidade Agregados em bancos de da-
(cartões de identidade; dispositivos de dos e submetidos a técnicas de
identificação biométrica como impres- mineração e profiling, tais da-
são digital, scanner de iris, topografia dos geram mapas e perfis de
facial, software de reconhecimento fa- consumo, interesse, comporta-
cial, scanner de mão; mecanismos de mento, sociabilidade, preferên-
autenticação da identidade no ciberes- cias políticas que podem ser
paço); redes de monitoramento e cruza- usados para os mais diversos
mento de dados informacionais (com- fins, do marketing à adminis-
pras, comunicações, trajetos, serviços); tração pública ou privada, da
sistemas digitais de monitoramento, co- indústria do entretenimento à
leta, arquivo, análise e mineração de indústria da segurança, entre
dados pessoais no ciberespaço (rastre- outros (BRUNO, 2013, p. 129).
adores de dados pessoais na Internet,
interceptadores de dados de comunica-
ção e navegação, softwares de captura e O fato é que os algoritmos são res-
mineração de dados; bancos de dados ponsáveis por essa hierarquização e se-
eletrônicos. leção de dados nas redes, realizados
Dentre esses mecanismos de vigi- através de cálculos que o próprio usuá-
lância, já tradicionais, citados pela au- rio alimenta sem que perceba, através
tora destaca-se um bastante importante das diferentes plataformas – dos mo-
tores de busca aos botões dos sites de
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rede social. Os cálculos realizados pe- fenômeno que agrega e congrega tec-
los algoritmos de cada plataforma aca- nologia digital, instâncias econômicas,
bam por modelar as formas de visibili- esferas políticas, culturas específicas,
dade das informações. Cardón (2015) formas de organização social de acelera-
na busca por compreender os seus efei- ção distributiva dos processos. Tal fenô-
tos na sociedade, propõe uma “radio- meno se caracteriza pela “Singular rela-
grafia crítica” dos algoritmos. A hipó- ção intensificadora das nanotecnologias
tese do autor é a de que o processo de com o fluxo temporal” (SODRÉ, 2013,
personalização gerado por esse modo p. 14), que no seu modus operandi traz
de seleção de conteúdos cria bolhas de a ideologia do individualismo econô-
predileção, modelando a maneira como mico, da supremacia mercadológica e
as pessoas se relacionam, no contexto do moralismo autoritário.
de uma “sociedade dos comportamen- Essa nova governamentalidade das
tos”. condutas e que determina modos de
O pesquisador destaca quatro fun- ser e de se constituir do sujeito pode
ções desempenhadas pelos cálculos au- ser caracterizada como uma era da go-
tomatizados, que podem ser entendidos vernamentalidade do ‘infocontrole’ e
como formas de regulação da circula- da ‘datavigilância’ em que o processo
ção dos conteúdos na web: populari- de patrulhamento contínuo não é mais
dade, autoridade, reputação e predile- uma prerrogativa centralizada no Es-
ção: “e parcours que nous allons entre- tado, mas também das organizações po-
prendre à travers ces quatre manières de líticas autônomas e das cooperações ca-
classer l’information numérique permet- pitalistas que podem ter interesses de
tra de dégager les différentes valeurs qui qualquer ordem, alheios ao interesse
nourrissent les choix que font les algorith- do indivíduo. Ora, isso nos coloca em
mes : la popularité, l’autorité, la réputa- frente à política algorítmica do con-
tion et la prédiction” (CARDÓN, 2015, sumo em que há uma fusão entre po-
p. 67). lítica, mercado de tipo neoliberal e tec-
A estocagem de grandes quantidades nologia digital. A política passa a ser
de dados, a sua rápida manipulação e um segmento empresarial, os partidos
circulação virtualiza o espaço e o tempo políticos – e as suas ideologias – assu-
da política de tal maneira que inclusive mem o papel de empresas que visam
valores éticos-políticos podem ser dis- atender as demandas dos ‘consumido-
tribuídos e consumidos numa ubiqui- res políticos’ que paradoxalmente são
dade cada vez mais intensa. Em ter- controlados algoritmicamente nos seus
mos políticos temos um fenômeno que desejos e valores políticos que
é a supressão da noção conceitual de
Estado-Nação. Há quem chame esse
No plano geopolítico já se mo-
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2 O texto foi traduzido e publicado no Brasil somente em 2004 pela revista Novos Olhares.
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sustenta que o dado mais valioso dos tação rápida chegando às redes sociais
smartphones nem são os elementos con- e os aplicativos de serviços de trans-
tidos em seus aplicativos ou a linha porte como o Uber podem ser enqua-
do tempo das redes socias e as men- drados na categoria de killer apps (tipos
sagens trocadas pelos usuários através de apps que se tornam necessários fí-
de aplicativos. Segundo a autora o dado sica e psicologicamente) dada a sua ca-
mais valioso de um smartphone é a sua pacidade de se inserir no cotidiano e na
capacidade de localizar o usuário geo- vida privada das pessoas e alterar pro-
graficamente no espaço e usar todas as fundamente as relações de trabalho e
informações produzidas pelo próprio os modos como as pessoas consomem
usuário para transformar em sugestões produtos e têm acesso às informações e
e criação de necessidades: “Os dados aos modos de socialização e organiza-
disponíveis para as informações mais ção política: “killer apps, que em uma
valiosas sobre uma pessoa não são seus tradução livre para o português signi-
e-mails pessoais, mas sua posição geo- fica “aplicações assassinas”. Killer apps
gráfica. Um smartphone relata todas as seriam bens ou serviços capazes de de-
preferências do usuário para os aplica- sarranjar, a partir da destruição criativa
tivos que carrega, uma mina de ouro que impõem, relações entre produtores,
sem fundo para a indústria de atenção” fornecedores e consumidores, oferta de
(PEIRANO, 2019, pp. 85-86). produtos e regulações governamentais”
Com isso, se apresenta outro aspecto (FIGUEIREDO, 2019, p. 161). O fato
importante para quem se debruça sobre é que esse tipo de aplicação adentra e
o estudo do governo dos algoritmos e a coloniza a vida cotidiana e transforma
sua capacidade de vigiar a constituição desde os afetos dos usuários, as relações
das subjetividades e que pode gerar um de consumo e as próprias legislações
promissor projeto de pesquisa. O prota- trabalhistas e de propriedade.
gonismo dos smartphones na sociedade
contemporânea e o seu potencial de in-
vasão do mundo da vida privada e co-
tidiana pelo Mercado, pelo Estado, por 4. Considerações Finais
Organizações políticas tem outra con-
sequência: a precarização do mundo do Gostaríamos de ser mais otimistas ao
trabalho e do emprego a partir de plata- fazer as considerações finais deste en-
formas digitais da chamada “economia saio. Como Pierre Levy, em Cybercul-
do compartilhamento”. ture (1997), queríamos indicar que a go-
Muitos dos aplicativos usados em vernamentalidade de tipo algorítmica
smartphones desde os de geolocalização, fosse a expressão de novas formas de
passando pelos de busca por alimen- sociabilidade e de comunicação que re-
sultasse em uma ampliação das demo-
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dos usos ideológicos que podem ser da- retomada do controle sobre o próprio
dos a essas concepções”. Há de se per- destino e compreender os mecanismos
guntar se o espaço e o tempo são cate- e eventos imperceptíveis de poder que
gorias relevantes para resistir a essa go- submetem a subjetividade.
vernamentalidade. Contra essa governamentalidade to-
Três verbos se tornam essenciais para tal, a Criptografia seria uma saída como
o êxito dessa governamentalidade dos sugeriu Assange (2013)? Quase que
algoritmos: conhecer, controlar e modi- num ato de fé ele escreveu: “Uma crip-
ficar. A ação desses verbos é executada tografia robusta é capaz de resistir a
por algoritmos sobre comportamentos uma aplicação ilimitada de violência.
humanos em vista do controle, da cap- Nenhuma força repressora poderá re-
tura mercadológica da vida e da mone- solver uma equação matemática” (AS-
tização do comportamento em que o su- SANGE, 2013, p. 33). Enfim, respos-
jeito é proscrito do seu próprio compor- tas a esse tipo de questão e a análise das
tamento. O comportamento, reduzido respostas e as narrativas já fornecidas
a dado, é transformado em mercado- nos levarão a construir outras perspec-
ria que pode ser negociada por aqueles tivas cuja trajetória depende e muito de
que tem a possibilidade técnica para in- estudiosos e técnicos que compreende-
fluenciar comportamentos e por aque- ram que a ignorância sobre os processos
les cujo interesse é comprar tal possi- não produz um novo processo civiliza-
bilidade. Por essa perspectiva, o de- tório automatizado.
safio ético-político por excelência é a
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Recebido: 30/09/2020
Aprovado: 13/01/2021
Publicado: 31/01/2021
Revista de Filosofia Moderna e Contemporânea, Brasília, v.8, n.3, dez. 2020, p. 137-153 153
ISSN: 2317-9570
DOI: https://doi.org/10.26512/rfmc.v8i3.34300
Resumo: Este artigo tem como objetivo discutir a governança gerenciada pela lógica dos
algoritmos. Trata-se de uma lógica de cálculos e estatísticas utilizada para conduzir as
ações individuais, mesclada às funções das máquinas, caracterizando um novo regime
de produção de subjetividades. Estruturando as relações entre o humano e a máquina e
recolhendo o máximo de informações sobre os desejos e necessidades dos indivíduos, a
governança algorítmica opera com a ideia de uma regulação inerente à própria circulação
intermitente de dados, afetando experiências pessoais e sociais, através da vigilância
sistêmica e do controle gradativo dos processos das manifestações subjetivas. Por fim,
contudo, serão trazidas reflexões, a partir de Michel Foucault, sobre o cuidado de si e o
conhecimento de si, enquanto possibilidades de transformações da subjetividade e até
mesmo de resistência às eventuais manipulações por esses sistemas.
Palavras-chave: Tecnologias. Algoritmos. Indivíduos. Subjetividade.
Abstract: This article aims to discuss the governance managed by the logic of algorithms.
It is a logic of calculations and statistics used to conduct individual actions, mixed with
the functions of machines, characterizing a new regime of production of subjectivities.
Structuring the relationship between the human and the machine and gathering the
maximum of information about the desires and needs of individuals, the algorithmic
governance operates with the idea of a regulation inherent in the intermittent circulation
of data itself, affecting personal and social experiences, through the systemic surveil-
lance and the gradual control of the processes of the subjective manifestations. Finally,
however, reflections will be brought, from Michel Foucault, on the care of oneself and
the knowledge of oneself, as possibilities for transformations of subjectivity and even
resistance to eventual manipulations by these systems.
Keywords: Technologies. Algorithms. Individuals. Subjectivity.
* Doutor em Filosofia pela Pontifícia Universidade Católica da São Paulo (PUC-SP). Professor do Centro Universitário Salesi-
ano de São Paulo (Unidade Lorena) e da Faculdade Canção Nova (Cachoeira Paulista). E-mail: je.filos@hotmail.com. ORCID:
https://orcid.org/0000-0002-2671-4621.
** Mestre em Direito pelo Centro Universitário Salesiano de São Paulo (Unisal). Professor do Unisal (Unidade Lorena) e da Facul-
dade Canção Nova (Cachoeira Paulista). E-mail: macielnahur@gmail.com. ORCID: https://orcid.org/0000-0001-8729-9719.
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jeitos. Nesse sentido, seus dizeres apon- dos àqueles desenvolvidos na sociedade
tam para a evolução da disciplina, até se disciplinar.
tornar uma técnica de exercício do po- A diferença a ser enfatizada entre a
der: “Os mecanismos disciplinares são, sociedade disciplinar e a do controle
portanto, antigos, mas existem em es- aponta para o relativo silenciamento
tado isolado, fragmentado, até os sécu- do potencial de resistência dos sujei-
los XVII e XVIII, quando o poder disci- tos. Na sociedade disciplinar, o efeito
plinar foi aperfeiçoado como uma nova do poder normalizador, por ser parcial,
técnica de gestão de homens.” (FOU- não obtinha êxito nas tentativas globa-
CAULT, 1984, p. 105). De fato, para lizantes de disciplinamento dos com-
além da sociedade disciplinar, a socie- portamentos subjetivos. Significa dizer
dade de controle não se baseia na divi- que, apesar de objetivar a transmissão
são do espaço, em localizações distintas de determinados valores, a submissão
e em demarcações por balizas. Na soci- aos imperativos não chegavam a ocor-
edade de controle, o poder se dispersa, rer de forma plena, porquanto o espaço
torna-se desterritorializado e dissemi- localizado fora de seus domínios ficava,
nado por entre os limites agora abertos permanentemente, reservado ao desvio,
pela queda dos muros de confinamento. à resistência e, até mesmo, à transgres-
Contudo, na sociedade disciplinar, a são. Em outras palavras, no tocante ao
eficiência do poder seja sempre parcial, sujeito disciplinado, ainda se reconhece
na medida em que é exercido dentro certa margem de liberdade para se ne-
de espaços fechados, na sociedade de gociar com as normalizações estabele-
controle, por sua vez, o poder se espa- cidas. Entre a subjetividade discipli-
lha, não mais se limitando a quaisquer nada e a subjetividade controlada há,
lugares específicos. Assim, na transi- pois, uma distinção em nível de singu-
ção de um modelo para outro tem-se a larização. A questão envolve processos
extensão generalizada do exercício do de moldagem e modulação. O processo
poder: o espaço estriado da sociedade de moldagem diz respeito à subjetivi-
disciplinar é, progressivamente, trans- dade disciplinada, porque submetida
formado no espaço liso característico a esquemas mais ou menos estáveis de
da sociedade de controle. Nesse sen- conformação das singularidades indivi-
tido, a sociedade de controle é definida duais. Já o processo de modulação está
como aquela que assiste à intensifica- relacionado subjetividade controlada,
ção e à extensão dos dispositivos de po- enquanto submetido a constantes iden-
der da sociedade disciplinar. Por sua tificações de perfis, padronizados por
vez, tal organização vai desembocar em análises selecionadoras de suas princi-
algumas mudanças nos modos de sub- pais características. A construção de
jetivação contemporâneos, se compara- uma subjetividade controlada passa a
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podem se manter conectados uns com tendem você de fato, mas existe
os outros em contínuos fluxos interati- poder nos números, sobretudo
vos. Não há isolamento espacial e co- nos grandes. (LANIER, 2018, p.
municativo, mas sim conectividade e 13).
hipercomunicação em ritmo frenético.
É essa interatividade intermitente que
Diferente do Panóptico “prisional”,
torna o controle total possível. Ela abas-
no panóptico digital dos algoritmos a
tece o Panóptico digital com todo tipo
observação e a vigilância ganham au-
de dados, ali lançados na intensidade
mento exponencial.
interativa. Não se quer dizer que a era
Todo esse universo digital é uma pro-
digital foi a exclusiva responsável por
messa de liberdade sem limites, con-
essa transição, mas, de certa maneira,
tudo não se podendo desconsiderar a
ela pode ser considerada um dos fato-
possibilidade de certo controle da vida
res bastante significativos para tal pas-
das pessoas. O fato é que esse universo
sagem, assim como se pode notar nos
digital, tal como a inteligência algorít-
dizeres de Jaron Lanier:
mica, abre um horizonte de novas con-
figurações da subjetividade, como se
Algo totalmente novo está abordará em seguida.
acontecendo. Nos últimos cinco
ou dez anos, quase todo mundo
começou a carregar consigo, 2. Inteligência algorítmica e subjeti-
o tempo todo, um aparelhi- vidades reconfiguradas
nho chamado smartphone, feito
sob medida para modificações Para Hannah Arendt, o mundo con-
de comportamento pelos algo- temporâneo caracteriza-se pela perda
ritmos. Muitos de nós tam- das experiências, afetivas e existenciais,
bém usam aparelhos chamados embora ela não chegasse a imaginar um
smart speakers (alto-falantes modo tecnológico de anulação do indi-
inteligentes) na bancada da co- víduo e de suas subjetividades. Em sua
zinha de casa ou no painel visão, na medida em que atos e pensa-
do carro. Estamos sendo ras- mentos se configuravam como um cál-
treados e avaliados constante- culo de consequências, uma espécie de
mente, e recebendo o tempo função cerebral, nos limites entre o pro-
todo um feedback artificial. [...] duzir e o fabricar, o humano foi lançado
Os algoritmos correlacionam o em “[...] um funcionamento puramente
que você faz com o que quase automático, [...] entorpecido e ‘tranqui-
todas as outras pessoas têm lizado’ de comportamento” (ARENDT,
feito. Os algoritmos não en- 2007, p. 402-403). Embora ela não te-
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nha vivenciado o mundo governado por e governados pelas tecnologias. Não se-
algoritmos, é possível extrair do seu ria o fim do indivíduo, nem mesmo sua
pensamento uma antecipação de um dessubjetivação, mas sim o nascimento
modo de vida automatizada em que os de outras subjetivações.
indivíduos podem estar imersos, sem É possível recordar aqui o Big Data
mesmo terem tal percepção. (“Grandes Dados”) e o Data Mining
A sociedade contemporânea, ainda (“Mineração de Dados”), comparando-
que se esforce para manter elementos os com o conceito de dispositivo de Mi-
estruturantes da vida como legitimi- chel Foucault. O Big Data é um sis-
dade, justiça, verdade e demais valores tema de coleta de dados em larga es-
dessa ordem, depara-se também com cala, com múltiplos conteúdos e sendo
um sistema organizador com outras ca- gerados em ritmo intenso estão a rei-
racterísticas e estratégias. Além de uma nar no universo sistêmico. O Data Mi-
ação política que transita pelas ideias ning constitui o processo de explorar
de Estado, representação dos interesses, grandes quantidades de dados à pro-
direitos e deveres, há uma expansiva cura de padrões consistentes. Como re-
governança da vida cotidiana, exercida gras de associação ou sequências tem-
por meio de máquinas e dispositivos de porais, para detectar relacionamentos
controle de subjetivações, que se vale sistemáticos entre variáveis, o “minera-
da combinação sistêmica de dados e de- dor” segue identificando novos subcon-
sejos dos indivíduos. juntos de dados. Ele é formado por um
A ação governante, agora, se desloca conjunto de ferramentas e técnicas que,
para o universo das tecnologias da in- através do uso de algoritmos de apren-
formação e da comunicação, estabele- dizagem ou classificação, baseados em
cendo mecanismos de poder e configu- redes de vasta capilaridade, são capazes
rando as relações interativas entre os de explorar um conjunto de dados, ex-
conectados. É a própria ideia de gover- traindo e evidenciando padrões nesses
nar que está em revisão. Assim, ela é dados coletados, para efeitos estatísti-
tida como a ação de condução das ações cos e cognitivos. Dentro da lógica de
dos outros e das coisas, fixando uma um processo eletivo, busca-se peneirar
dinâmica de cálculos baseados na ob- dados que interessam a determinada
servação dos fenômenos populacionais modelagem de comportamentos. Das
e dos fatos relacionados a tais eventos. massivas acumulações de dados, por-
Com o acesso a uma série de dados e tanto, começam a surgir informações
probabilidades regulares, são potencia- estatísticas oriundas das correlações de
lizadas políticas de otimização da capa- informações não selecionadas, não clas-
cidade de controle da vida, através de sificadas e não hierarquizadas, bastante
saídas e entradas nos processos geridos heterogêneas.
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não classificados. Esses dados podem menos são reais, ainda que es-
ser oriundos de redes sociais, de vei- tatísticos e indistintos. Mesmo
culadores de notícias, de sensores de em sua melhor forma, os al-
faces, sons e imagens, de endereços ele- goritmos da Bummer só con-
trônicos, geolocalizadores e autoriza- seguem calcular as chances de
ções de celulares, sistemas de cartões, uma pessoa agir de determi-
operações comerciais, pesquisas cien- nada maneira. Mas, em con-
tíficas, sistemas de segurança, entre junto, probabilidades individu-
outros. Esse volume astronômico de ais acabam se aproximando de
dados, todos armazenados eletronica- uma média de certeza quando
mente, podem ser inseridos por indi- falamos de um grande número
víduos, voluntariamente, em resposta de pessoas. (LANIER, 2018, p.
a alguma demanda, cedidos diante de 34).
determinada solicitação, ou, simples-
mente, mantidos em algum ambiente.
Nesse processo de agigantamento da
Ainda assim, não aparecem como sub-
inteligência algorítmica, pode se ope-
traídos sem autorização, pois aparen-
rar uma mudança no conceito de sub-
tam estarem dispersos e disponíveis em
jetividade. Tal subjetividade encon-
quaisquer lugares. As funções algorít-
tra, nessa nova forma de conhecimento,
micas têm a característica de produzi-
uma advertência inquietante, que pode
rem mecanismos de controle sem a ne-
ser aproximada das palavras de Michel
cessidade de acionar discursos e ideo-
Foucault:
logias como estratégias centrais de go-
verno.
Um acrônimo empregado por Jaron [...] sabemos que, no campo teó-
Lanier pode ser utilizado para ilustrar: rico moderno, o que se gosta
Bummer - Behaviors of User Modified, de inventar não são sistemas
and Made into an Empire for Rent, que demonstráveis, mas disciplinas
em português significa “Comportamen- cuja possibilidade se abre, cujo
tos de Usuários Modificados e Transfor- programa se delineia e cujo fu-
mados em um Império para Alugar”, turo e destino se confiam aos
tal como traduziu o referido autor (LA- outros. Ora, apenas acabado o
NIER, 2018, p.34). Explica ele o que é esboço de seu desenho, eis que
essa tal Bummer: elas desaparecem com seus au-
tores. (FOUCAULT, 2008b, p.
231).
[...] é uma máquina estatística
que vive nas nuvens da compu-
tação. Vale repetir: esses fenô- Embora o filósofo não esteja se refe-
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Esse modo de governar efetivado mica: quanto mais estradas forem aber-
por meio de algoritmos designa global- tas, maior será a livre circulação e, para-
mente certo tipo de racionalidade con- doxalmente, mais mecanismos regula-
troladora que repousa sobre “[...] a co- dores serão ativados. Certa normativi-
leta, agregação e análise automatizada dade surgirá a partir de operações cujas
de dados em quantidade massiva de funções são atualizadas pelos algorit-
modo a modelizar, antecipar e afetar, mos. O desvio ou a não operação nos
por antecipação, os comportamentos valores determinados, enquanto ano-
possíveis.” (ROUVROY; BERNS, 2015, malia, é configurada como “falha” ou
p. 42). Há uma descentralização do “erro”, alimentando as informações do
indivíduo, transformando o papel das algoritmo e redefinindo os fluxos tão
subjetivações comuns às formas dis- imediatamente quanto a “realidade” é
cursivas de ação política. Os sistemas lida pelas máquinas. Nesse sistema de
tecnológicos dispensam a tradicional controle e condução, as falhas ou erros
identificação dos indivíduos, com seus desaparecem no processo de reorgani-
nomes reais, cadastros de pessoas físi- zação dos dados que redefinem perfis e
cas, entre outras, para viabilizar circu- dirigem comportamentos.
lações e relações, embora isso não sig- Essa governança mantém a aparência
nifique que não sejam capazes de re- de estar sob a “liberdade” da plurali-
conhecerem os mais diversos desejos dade. O espaço público estaria garan-
de consumo. Desse modo, eles funci- tido pelo amplo acesso ao meio virtual
onam em um fluxo frenético, no qual e à conectividade, sem a necessidade
não se enclausuram indivíduos. No en- de debater sob quais interesses se en-
tanto, ao serem abertas as tantas ja- contra sua gestão. É um sistema que
nelas, verdadeiras vitrines de bens e busca evitar o imprevisível, sob a ga-
serviços, multiplicam-se os meios de rantia dessa “liberdade”, para cada um
consumo, sendo possível se chegar até ser plenamente quem de fato é. No en-
mesmo a uma certa manipulação de tanto, a sua maquinaria é engendrada
interesses e intenções dos indivíduos, para que o sujeito ceda espaço aos perfis
ainda que não se trate de um total con- que lhe são atribuídos de modo progra-
trole de consciências. Uma metáfora mado e alimentados por seus “traços”
do tráfego pelas estradas pode ser aqui depositados em suas entradas e saídas
suscitada. As estradas abertas permi- cotidianas nos sistemas tecnológicos de
tem que os indivíduos trafeguem livre- informação e comunicação. Ilustra bem
mente, mas isso não significa não pos- aqui a autora Shoshana Zuboff, no seu
sam estar sob alguma forma de mani- livro The age of surveillace capitalism -
pulação (DELEUZE, 1999, p. 5). Aqui the fight for a human future at the new
está o segredo da governança algorít- frontier of power, em que coloca o ques-
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ral”, o cuidado de si é uma espécie de de estar atento àquilo que se pensa se-
aguilhão a ser implantando “[...] na ria indissociável daquilo que se pratica
carne dos homens, cravado na sua exis- e que se exerce diante dos outros e di-
tência, e constitui um princípio de agi- ante do mundo. Por fim, o cuidado de
tação, um princípio de movimento, um si é marcado por um princípio de mo-
princípio de permanente inquietude vimento, que envolve deslocamento e
no curso da existência.” (FOUCAULT, ação. Ele designa um conjunto pre-
2004a, p. 11). ciso e austero de práticas, vale dizer,
Entretanto, para além de mero fenô- um conjunto de técnicas (tecnologias
meno, o cuidado de si expressa, sobre- do eu) que se exerce sobre si mesmo
maneira, um evento no pensamento. com o propósito de transformação, da
Como preceito básico de vida, o cui- modificação, da transfiguração de si.
dado de si refere-se, assim, a uma no- São práticas que sugerem um labor, ár-
ção bastante complexa, que diz respeito duo e contínuo, persistente e intermi-
a uma atitude, a uma forma de aten- nável, a partir dos quais o indivíduo se
ção e a um princípio de movimento em constrói, gradativamente, como sujeito.
termos de qualidade de transformação. Desse modo, tem-se todo um corpus de-
Por atitude, entende-se uma escolha da finindo formas de reflexão e maneiras
existência, que implica um modo espe- de ser que constituem uma espécie de
cífico de estar no mundo, de encará-lo fenômeno não somente na história das
e, igualmente, de enfrentá-lo. Ainda representações, nem somente na his-
que esteja falando do “si”, tal cuidado tória das noções teóricas, mas na pró-
é inseparável de uma atitude também pria história da subjetividade ou, até
diante do outro. Não há cuidado de si mesmo, na história das práticas da sub-
que não implique um outro. Aí se en- jetividade (FOUCAULT, 2004b, p. 15).
contra um dos pontos mais importantes A ênfase do cuidado de si (epimé-
dessa atividade consagrada a si mesmo: leia heautoû) está situada na exata me-
“[...] ela não constitui um exercício da dida de sua relação com o conheci-
solidão, mas sim uma verdadeira prá- mento de si (gnôthi seautón). Mais do
tica social.” (FOUCAULT, 1985, p. 57). que estar anelado ao cuidado de si, o
O cuidado de si pressupõe, ainda, conhecimento de si está a ele “subor-
como dito, uma forma de atenção e, dinado” (FOUCAULT, 2004b, p. 7).
como tal, uma forma particular de olhar É por meio do cuidado que o indiví-
para si mesmo. Trata-se de uma espécie duo mantém consigo mesmo que ele
de “conversão do olhar” (FOUCAULT, acede ao conhecimento sobre si e, por
2004b, p. 14). É ela que permite uma conseguinte, à própria transformação.
volta do exterior para o si e, com efeito, Não há, portanto, cuidado sem conhe-
para o próprio pensamento. A atitude cimento, como também não há conhe-
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de si, entre tantos outros, podem suge- perante possíveis manipulações. O su-
rir outras formas de fazer educação, de jeito deixa de ser passivo perante as ma-
investigar e, sobretudo, de produzir a nipulações e se torna um agitador para
nós mesmos, acolhendo o fato de que recuperar sua individualidade. Como
há escolhas ético-políticas que podem se tem dito, “Sócrates é sempre, essen-
ser feitas todos os dias. Ao serem fei- cial e fundamentalmente, aquele que
tas essas escolhas, não se teme a emer- interpelava os jovens na rua e lhes di-
gência da verdade e a aderência a ela, zia: “É preciso que cuideis de vós mes-
enquanto algo que ocorre no espaço vi- mos.” (FOUCAULT, 2006, p. 11). É com
goroso criado entre o gesto assumido essa prática que ainda se pode manter
e a autotransformação em nós operada viva a esperança de uma sociedade li-
por meio de um poder de se afetar a si vre, justa e fraterna, afastando todas as
e por si mesmo. Há aí outro modo de formas de manipulação das massas ou
falar e viver o que se entende por subje- manobra dos seus indivíduos.
tividade: ambos guardam relação com Nesse sentido, são imprescindíveis
poder e saber, por certo, mas não se li- aliados do avanço tecnológico o cui-
mitam a essa subordinação, indo além dado de si e o conhecimento de si, haja
dela, justamente, porque se está além vista que a reflexão sobre essa maes-
de jogos de poder e saber. tria de si socrática é realizada, na ótica
Vale ressaltar que o “[...] cuidado de foucaultiana, na perspectiva da filosofia
si é uma espécie de aguilhão que deve helenística estóica e epicurista (DREY-
ser implantado na carne dos homens, FUS; RABINOW, 1995, p. 259-260),
cravado na sua existência[...]” (FOU- além de não desconsiderar a autonomia
CAULT, 2006, p. 11). É no cuidado do sujeito moderno cartesiano e kan-
de si mesmo, na valorização da pró- tiano, tal como se encontra na entre-
pria subjetividade, que a tentativa de vista compilada como apêndice da obra
dominação, disciplinar ou tecnológica, Michel Foucault, uma trajetória filosófica:
perde sua força, porquanto o conheci- para além do estruturalismo e da herme-
mento de si mesmo traz a possibilidade nêutica. (DREYFUS; RABINOW, 1995,
não só de se perceber perante o sistema, p. 276-278). O cuidado de si e o co-
mas também de identificar as diversas nhecimento de si configuram formas de
tentativas de manipulação das massas. manter viva a subjetividade e suas pos-
Por isso, afirma Michel Foucault, o cui- sibilidades de ações livres, ainda que
dado de si é “[...] um princípio de agi- o panóptico do governo dos algoritmos
tação, de um movimento, um princípio esteja rodeando-a por todos os lados. O
permanente de inquietude no curso da sujeito deixa de ser número, estatística,
existência.” (FOUCAULT, 2006, p. 11). probabilidade e se torna senhor de sua
Tal é uma possibilidade de resistência própria história. Por isso, mesmo pe-
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rante o governo de algoritmos, a polí- bilidade, agora, são aquelas que estão
tica não precisa morrer, pois é possível dispostas ao alcance de um toque digi-
agir, movimentar pela valorização da tal. São perceptíveis as aberturas pro-
individualidade através do cuidado de piciadas pela tecnologia massiva de da-
si. Assim, mais do que uma estratégia dos, viabilizando o acesso a informa-
de poder e saber, sobretudo, trata-se de ções e redes, mas, por trás dessa dis-
uma relação consigo e, nesse sentido, de ponibilidade, há uma lógica de filtros
maneira genuína, se pode falar de arte e controles, especialmente na medida
de si e de células de resistência subjeti- em que os algoritmos são fabricados por
vas a múltiplas formas disciplinadoras, grandes empresas e monopólios dos sis-
controladoras, as quais vão ganhando, temas de comunicação. Este é o dilema
nos tempos hodiernos, inclusive, con- crucial que se encontra na governança
figurações e reconfigurações manipula- algorítmica e seus impactos na subjeti-
doras ou alienantes, sejam elas reais ou vidade.
virtuais. Na governança algorítmica, quanto
mais estradas forem abertas, maior será
a livre circulação e, paradoxalmente,
mais mecanismos reguladores serão ati-
Conclusão vados. A regulação segue a partir de
operações cujas funções são atualiza-
A instalação de uma vida panóptica não das pelos algoritmos. O desvio ou a
é nova. A partir da concepção de Je- não operação nos padrões determina-
remy Bentham sobre um panóptico pri- dos, enquanto anomalia, é lida como er-
sional, essa ideia de vigilância total dos ros, alimentando as informações do al-
corpos individuais teve bastante reper- goritmo, que se encarrega da redefini-
cussão devido a Michel Foucault, para ção dos fluxos tão rapidamente quanto
quem a sociedade seria organizada em a própria “realidade” é capturada pelas
conformidade com os desejos manifes- máquinas. Nesse sistema de controle e
tados em um sistema de controle e re- condução, as falhas detectadas devem
gulação da vida individual, de modo desaparecer no processo de reorganiza-
que os sujeitos se comportassem da ma- ção dos dados que irão redefinir perfis e
neira desejada pelo poder controlador. comportamentos. Essa governança con-
O poder dos algoritmos, encontrados serva a aparência de estar sob a “de-
em sistemas de coleta e seleção de da- mocracia” da pluralidade. Assegura-se
dos, tornou-se uma realidade. No pa- pleno acesso ao meio virtual e à conecti-
nóptico digital, a confiança entre sujei- vidade, sem a necessidade de se debater
tos não perde apenas seu espaço, mas sob quais interesses se encontra sua ges-
também seu significado e seu sentido. tão. Trata-se de um sistema que busca
As informações merecedoras de credi-
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FOUCAULT
Referências
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2007. 352 p.
BENTHAM, Jeremy. O Panóptico. Tradução de Guacira Lopes Louro, M. D. Magno, Tomaz Tadeu. 2. ed. Belo Horizonte:
Autêntica Editora, 2008. 87 p.
DELEUZE, Gilles. Foucault. Tradução de C. S. Martins. São Paulo: Brasiliense, 2006. 144 p.
DELEUZE, Gilles. O ato de criação. Tradução de J. M. Macedo. Folha de S. Paulo, 27 de junho de 1999, p. 4-5. Disponível
em http://intermidias.blogspot.com.br/2007/07/oato-de-criao-por-gilles-deleuze.html. Acesso em: 05 dez. 2016.
DREYFUS, Hubert L; RABINOW, Paul. Michel Foucault, uma trajetória filosófica: para além do estruturalismo e da herme-
nêutica. Tradução de Vera Porto Carrero. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1995. 299 p.
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ISSN: 2317-9570
JEFFERSON DA SILVA; MARCIUS TADEU MACIEL NAHUR
Recebido: 24/09/2020
Aprovado: 19/01/2021
Publicado: 31/01/2021
180 Revista de Filosofia Moderna e Contemporânea, Brasília, v.8, n.3, dez. 2020, p. 155-180
ISSN: 2317-9570
DOI: https://doi.org/10.26512/rfmc.v8i3.34292
Cristian Arão*
Abstract: The political world was taken aback in the middle of the past decade by the
discovery of the influence of advertising companies that would have used voters’ digital
tracks to manipulate them. With the help of Big Data and the algorithms, groups would
have been able to hack elections around the world, creating a new weapon of psycholo-
gical manipulation that would pose a threat to democracy. This article, however, intends
to shed light on another perspective: although technological advances require specific
analyzes, mechanisms of subjective social control are not new. Thus, the tactics used
today are not the invention of a new way of doing politics, they are updated versions of
an old manipulation system. If democracy is at risk because people are being targeted by
groups that try to influence them without their knowing it, it has always been, because
whenever public opinion was important, there were articulated systems to manipulate
it.
Keywords: Mass Psychology. Social Networks. Social Manipulation.
* Mestre em filosofia pela Universidade Federal da Bahia (UFBA). Atualmente realiza seu doutorado na mesma instituição, com
bolsa da CAPES. E-mail: cristian_arao@hotmail.com. ORCID: https://orcid.org/0000-0003-0042-4957.
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AS REDES SOCIAIS E A PSICOLOGIA DAS MASSAS: A INTERNET COMO TERRENO E VEÍCULO DO ÓDIO E DO
MEDO
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CRISTIAN ARÃO
cria-se uma peça publicitária específica. mos e o quanto eles podem, realmente,
Se uma pessoa é sensível às questões da nos controlar.
ecologia, por exemplo, ela passa a re-
ceber propagandas em que o candidato
em questão defende a agenda ecológica,
da mesma forma que recebe também O mito dos algoritmos
materiais em que o político rival soa
como alguém que não se importa com o Devido à ausência de transparência no
meio ambiente. funcionamento dos algoritmos que re-
A análise de grandes dados, portanto, gem os dados nas diversas localidades
surge como uma arma revolucionária da internet, existe uma preocupação
para a política contemporânea. De muito válida com a privacidade e tam-
acordo com Giuliano Da Empoli, em Os bém sobre como nossos dados pode-
engenheiros do caos (2020), o surgimento riam ser aplicados a uma perversa má-
do Big Data na política é comparável ao quina de manipulação social. Contudo,
advento do microscópio para as ciên- algumas pessoas não se convenceram
cias naturais (EMPOLI, 2020, p. 152). com a narrativa que atribuiu ares de
Com o uso correto, é possível, inclu- ficção científica a alguma coisa, onde
sive, silenciar facetas problemáticas de as pessoas são controladas pelas má-
um candidato e lançar luz sobre outras quinas. O matemático David Sumpter,
que o identifiquem com o eleitor alvo desconfiado das afirmações que mitolo-
da campanha publicitária. Com isso, o gizavam os números, resolveu investi-
político surge como algo mais que uma gar a história por trás de grupos como a
pessoa com uma proposta política; ele CA.
passa a ter um número enorme de fa- Utilizando um tutorial disponibili-
ces e a cada possível eleitor é oferecido zado pelo próprio Michal Kosinski (um
acesso somente às fisionomias que lhe dos responsáveis pelo método utilizado
agradam. pela Cambridge Analytica), criou um
São esses mesmos mecanismos que sistema para reproduzir a experiência
permitem também que recebamos pro- de classificação de personalidades. Du-
paganda personalizada de diversos ser- rante sua pesquisa, Sumpter percebeu
viços e produtos enquanto olhamos que o método funciona muito bem para
para páginas e aplicativos nas telas que descobrir a preferência política das pes-
usamos, e nos espantamos, muitas ve- soas sem a necessidade de informações
zes, com a capacidade dos anúncios de de “curtidas” sobre política. De acordo
saberem do que precisamos. Entre- com o modelo da CA é possível saber
tanto, é lícito questionar o quanto, de se alguém é republicano ou democrata
fato, somos apreendidos pelos algorit- mesmo se a pessoa não “curtiu” as pá-
ginas dos partidos ou de políticos como
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AS REDES SOCIAIS E A PSICOLOGIA DAS MASSAS: A INTERNET COMO TERRENO E VEÍCULO DO ÓDIO E DO
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AS REDES SOCIAIS E A PSICOLOGIA DAS MASSAS: A INTERNET COMO TERRENO E VEÍCULO DO ÓDIO E DO
MEDO
tema complexo o suficiente para captar putador Deep Blue da IBM vencer uma
todas as nossas particularidades. Não partida de xadrez contra o campeão
há nem no horizonte ainda a possibili- mundial Garry Kasparov. Contudo,
dade de que as máquinas possam captar esse não foi um marco significativo para
nossa personalidade sem os constantes o desenvolvimento da tecnologia de IA.
ajustes de trabalhadores, que além de O tipo de programação utilizado no
programadores (que executam a parte Deep Blue era uma técnica que funcio-
“braçal” do serviço) são também ex- nava “de cima para baixo”; isso quer di-
perts em comportamento. Esses especi- zer que os programadores alimentavam
alistas são a mente por trás dos algorit- a máquina com as informações sobre os
mos, eles que realizam a interpretação movimentos, as jogadas, etc. Nesse caso
e as combinações dos dados, são, con- específico o algoritmo foi munido com
forme o epíteto requisitado por Glenn 700.000 partidas dos melhores jogado-
McDonald, os “alquimistas dos dados”. res de xadrez. A partir daí, a máquina
Portanto, a máquina de influência con- faz cada jogada considerando todos os
temporânea não é regida por sistemas possíveis movimentos do seu adversá-
completamente automáticos, ao invés rio. Não é de espantar que nesse con-
disso, funciona através de trabalho hu- texto uma máquina dificilmente será
mano razoavelmente automatizado. surpreendida por um humano. Na ver-
A ideia de uma inteligência artificial dade, é possível, inclusive, que a má-
autônoma que consiga se equiparar à quina calcule todas as probabilidades
humana espanta e encanta a humani- tornando-se uma jogadora invencível.
dade há muito tempo, ao passo que Uma máquina suficientemente pode-
serve de inspiração para escritores de rosa pode computar todas as possibi-
ficção científica e fonte de renda e ob- lidades e tornar impossível sua supera-
jeto de trabalho de muitos cientistas. ção.
Entretanto, tudo indica que os softwa- Porém, o problema desse modo de
res utilizados pelas empresas com o in- programação é que ele só funciona
tuito de classificação da personalidade de maneira eficiente num universo
não funcionam sem constante interação onde todas as variáveis são conhecidas.
humana. Cabe então analisar em que Qualquer condição desconhecida pode
patamar está a atual tecnologia de inte- fazer com que o software não saiba o
ligência artificial para explicar por que que fazer. Por esse motivo, ainda que
os algoritmos de controle social não po- a máquina tenha vencido o homem, os
dem funcionar por conta própria. estudos acerca da inteligência artificial
Ao final do século passado, em 1997, não eram promissores entre o final do
os estudos sobre inteligência artificial século passado e o começo deste. Foi
ganharam grande projeção após o com- preciso, portanto, reformular a concep-
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ção da IA e para isso a estatística serviu guem planejar o futuro, mesmo que em
como base para os algoritmos contem- curto prazo” (SUMPTER, 2019, p. 240).
porâneos que executam programação Ou seja, por mais que os softwares sejam
“de baixo para cima”. No lugar de ensi- capazes de, de certa forma, se autopro-
nar a máquina a jogar, as novas tecno- gramar, ainda não conseguem ir muito
logias permitem criar mecanismos para além do que é imediato na reação às no-
a máquina aprender a jogar sozinha. vas variáveis.
Com essas novas técnicas, o software, Portanto, ainda que os donos das
através do método tentativa e erro, grandes empresas de tecnologia defen-
aprende e aprimora suas formas de su- dam que as IAs e os algoritmos nos
perar os desafios. Desse modo é possí- aproximam de uma realidade seme-
vel que a IA opere de forma satisfató- lhante a uma narrativa de ficção cien-
ria num ambiente novo, desconhecido. tífica, parece que ainda estamos muito
Essa nova configuração tornou possível, distantes de algo próximo a uma ver-
por exemplo, que as máquinas come- dadeira inteligência artificial. David
çassem a jogar videogames. Por irônico Sumpter, após concluir suas pesqui-
que pareça, é muito mais complicado sas acerca do controle social feito pe-
para um computador operar um jogo los algoritmos e pela inteligência arti-
eletrônico do que um de tabuleiro. Isso ficial, defende que o poder de influên-
acontece porque nos jogos de tabuleiro cia da tecnologia é muito menor do que
como xadrez, as variáveis, quantas se- normalmente se imagina. Em Domina-
jam, são conhecidas de antemão, o que dos pelos números, argumenta que so-
permite computar todas as probabili- mos dominados não pelos algoritmos,
dades daquele universo fechado. Entre- mas por uma espécie de fetichismo dos
tanto, nos jogos de computador, a má- números. Justamente por não conhe-
quina precisa aprender os padrões que cermos a fundo o sistema de funcio-
os jogos possuem e depois de muitas namento das tecnologias contemporâ-
horas de jogo, executar os movimentos neas, somos tentados a enxergar po-
que a permitam vencer. Em jogos com deres quase sobrenaturais em algo que
padrões mais previsíveis, o desempe- não é nada mais do que produto do tra-
nho das IAs é melhor, mas quando são balho humano.
confrontadas com uma maior variação Da hipérbole autopropagandística da
nos padrões, podem não conseguir al- Cambridge Analytica às palestras sen-
cançar o mesmo nível de um humano. sacionalistas acerca da inteligência arti-
A dificuldade das máquinas reside ficial de Elon Musk, todos possuem em
no fato de que elas não conseguem tra- comum o fato de que afirmar que os al-
çar estratégias que demandem paciên- goritmos são extremamente poderosos
cia e planejamento. “Elas não conse- é ver a si mesmo como alguém extre-
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o ódio expresso em redes como o Twit- parcela mental não consciente, foi o pri-
ter são um problema, mas não são nada meiro a sistematizar o problema com o
mais do que um reflexo de como as pes- devido rigor. É com base nesse conceito
soas “se sentem genuinamente” (SUMP- que a psicanálise funciona como uma
TER, 2020, p. 190). Contudo, partindo psicologia profunda comprometida em
da ideia de que os seres humanos res- investigar e interpretar os fenômenos
pondem à influência da sociedade e são que ocorrem além do que é conhecido
constituídos por outras dimensões que imediatamente pelo indivíduo. Trata-
não a racionalidade, percebe-se que há se, portanto, de compreender o que re-
muito pouco de genuíno nas preferên- almente move o ser humano, o que está
cias do indivíduo. por trás de cada ação e pensamento.
A teoria psicanalítica questiona coi-
sas que podem ser tomadas como ób-
vias, mas que se revelam muito pro-
O inconsciente e o sujeito contempo- fundas. Parece não ser possível, por
râneo exemplo, questionar afirmações como
“eu penso,” “eu quero” ou “eu sinto”.
O nascimento da filosofia moderna é, Entretanto, experiências com hipnose
em larga medida, marcado pela noção mostram que ideias e sentimentos to-
de sujeito plenamente autônomo e ra- mados como originais podem ter sido
cional; tal ideia trabalhada por Des- introduzidos por outra pessoa. Erich
cartes adquire importância de pilar de Fromm, em Medo à liberdade (1981), re-
todo pensamento moderno ocidental. lata um caso desse tipo e conclui afir-
Muito embora houvesse oposição por mando que:
parte de diversos filósofos modernos a
essa tese, é somente no século XIX que
o movimento epistemológico de crí- Podemos ter pensamentos, sen-
tica a essa noção de sujeito é feito de timentos, desejos e até im-
forma mais contundente, constituindo- pressões sensoriais, que sen-
se como uma das bases da filosofia con- timos subjetivamente como
temporânea. sendo nossos, e que no en-
Freud é um desses autores que refor- tanto, embora os experimen-
mulam o conceito de sujeito. Com a in- temos, foram-nos inculcados
trodução do problema do inconsciente, por alguém de fora, são basi-
defende que a maioria dos fenômenos camente estranhos a nós, e não
que ocorrem em nossa mente não é co- são o que pensamos, sentimos
nhecida. Ainda que não tenha sido etc (FROMM, 1981, p. 153).
o primeiro na história do pensamento
ocidental a postular a existência de uma Ainda sobre isso, Fromm afirma tam-
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bém que esses pensamentos não origi- censura não se mantém simplesmente
nais não são exclusivos do estado hip- escondido, mas reprimido.
nótico. Na verdade, os “atos mentais Nas Cinco lições de psicanálise (2006),
genuínos ou autóctones são exceções” para ilustrar o processo de censura que
(FROMM, 1981, p. 154). Desde Plo- cria o inconsciente, Freud narra uma
tino (e possivelmente desde antes dele) alegoria onde uma pessoa é expulsa e
há especulações sobre a existência de trancada do lado de fora de um audi-
algo inconsciente, todavia a história do tório. Nessa narrativa, o sujeito banido
pensamento ocidental foi marcada pelo termina por se esforçar em retornar à
paradigma do sujeito consciente. Não sala apesar da expulsão. O significado
por acaso, houve (e há) muita resis- da metáfora é a ideia de que o repri-
tência à ideia de que exista uma par- mido tende a querer retornar à cons-
cela da mente que, embora desconhe- ciência. Portanto, tudo o que foi guar-
cida, seja responsável por muitos de dado não permanece imóvel e mantém-
nossos pensamentos, desejos e ações. se à espreita, esperando oportunidade
De acordo com Freud, a parte consci- para emergir.
ente e racional (Eu) é tão pequena que
“não é nem mesmo senhor da sua pró-
pria casa” (FREUD, 2014, p. 52). Utili-
zando a imagem do iceberg como alego-
ria, explica que a consciência humana Psicologia das massas
é como a ponta da montanha de gelo
que tem quase sua totalidade imersa.
Ou seja, somos constituídos muito mais Muito embora existam críticas que acu-
pelo inconsciente do que pelo sistema sem a psicanálise de ser uma teoria que
consciente. se ocupa com o indivíduo isolado, a te-
Existe, entretanto, uma barreira que oria freudiana nunca tratou do homem
separa o sistema inconsciente do cons- como apartado do seu meio social. O
ciente e esse obstáculo é a censura. sujeito para Freud é, em larga medida,
Tudo aquilo que não foi aprovado no um resultado das influências que lhe
teste da censura acumula-se no incons- são inconscientes. Partindo de uma pre-
ciente; todos os traumas, desejos julga- missa diferente da narrativa que afirma
dos como impróprios e tudo mais que que o ser humano surge solitário e de-
seja contrário ao projeto racional fica pois constitui sociedade, defende que
reprimido. A descoberta do sistema originalmente o homem é um animal
inconsciente permitiu não só entender de bando. Isso quer dizer que ele não
que existem conteúdos escondidos, mas nasceu isolado e se associou a outros,
compreender que o que foi contido pela mas ele sempre esteve num contexto
social e mais especificamente agrupado
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1 Freud, inspirado por Darwin, afirma que a forma original da organização social da humanidade é, assim como no caso de muitos
mamíferos, uma horda comandada por um macho forte que subordinava as fêmeas e os outros machos.
2 No Brasil esse texto integra a obra Ensaios sobre psicologia social e psicanálise (2015).
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3 De acordo com Adorno “A alusão de Freud é obviamente válida somente para o ‘super-homem ‘ tal como se tornou popularizado
em slogans baratos” (ADORNO, 2015, p. 170)
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autoridade” (ADORNO, 2015, p. 172). rior. Surge daí a sede de obediência que
À vista disso, podemos compreen- constitui o poder de comando dos líde-
der o desejo de submeter-se que existe res. Eles respondem à necessidade de
na massa; tudo indica que a compul- direcionamento que o indivíduo julga
são à obediência deriva do sentimento ser incapaz de oferecer a si próprio.
de impotência. De acordo com Erich Dessa forma, o súdito sente-se forte e
Fromm, isso constitui um pensamento poderoso porque é a massa, e por isso,
masoquista. é também, de certo modo, o seu senhor.
A força e as conquistas do soberano são,
de alguma maneira, suas também.
O denominador comum a todo O processo de idealização do eu e os
pensamento autoritário é a con- demais atributos que constituem a psi-
vicção de que a vida é determi- cologia das massas são, portanto, carac-
nada por forças extrínsecas ao terísticas que propiciam a manipula-
ego do homem, e seus interes- ção. Na massa podemos ser conduzidos
ses e desejos. A única felici- inconscientemente através da explora-
dade possível está na submissão ção de sentimentos que ficaram repri-
a tais forças. A impotência do midos. O papel da liderança aí é sentir
homem é o estribilho da filoso- quais as frustrações, medos e raivas es-
fia masoquista [...] tão presentes no inconsciente e repre-
O caráter autoritário não tem sentar o papel de alguém que expõe
falta de coragem, atividade ou tudo isso que se manteve submerso.
crença. Essas qualidades, po- Foi explorando esses e outros atri-
rém, para ele significam algo butos que diversas organizações, em-
completamente diferente do presas e governos exerceram influência
que para uma pessoa que não sobre a psique da população muito an-
sonhe com a submissão. Para tes do invento da internet. Contudo,
ele a atividade está enraizada a perspectiva mais deflacionada acerca
em um sentimento básico de do poder de controle das redes sociais
impotência que ela tende a su- não diminui a responsabilidade das em-
perar; nesse sentido, a ativi- presas como a CA, o Facebook e o What-
dade quer dizer agir em nome sApp, mas pretende revelar que elas são
de algo superior ao eu da pes- somente o meio usado por técnicas de
soa (FROMM, 1982, p. 140). manipulação muito anteriores e consti-
tuem um sistema muito mais humano
do que maquinal.
Quanto mais o homem se sente im-
potente e despreparado, mais busca a
saída através de uma autoridade exte-
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que a imprensa mundial tenha repercu- mente em negros e indianos. Após pes-
tido de forma diferente o mesmo acon- quisas sobre a sociodinâmica, a demo-
tecimento4 , o fato é que Yar’Adua foi grafia e os costumes do povo, concluiu
devidamente empossado, apesar de ob- que a etnia dos seus clientes, o partido
servadores eleitorais da União Europeia indiano, possuía uma ligação hierár-
terem concluído a existência de fraude, quica familiar muito mais presente do
e somente em 2018 (após o datagate) que nos negros. Com isso em mente, ar-
a Nigéria abriu uma investigação para ticulou e criou um movimento político
apurar a interferência da CA na política que incitava os jovens a não votarem.
do país. A ideia principal era “‘Não vote’, por-
Na Colômbia, a intervenção de Nix e que não era maneiro” (KAISER, 2020,
seu grupo se deu na eleição para a pre- p. 265). A intenção era captar o sen-
feitura de Bogotá. Segundo Kaiser, a timento de revolta dos jovens que, por
empresa tinha concluído que a opinião se sentirem desprovidos de oportuni-
pública via todos os candidatos como dades, criaram uma forte reação ao go-
“um bando de trapaceiros, ladrões e verno e à política. Como resultado, a
mentirosos” (KAISER, 2020, p. 262). juventude abraçou a causa da absten-
Alexander propôs, então, uma campa- ção como um ato de protesto, e pas-
nha onde o candidato não aparecesse. sou a endossar a campanha de forma
Em vez de outdoors com fotos do polí- orgânica criando vídeos no YouTube e
tico, espalhou posters diferentes de pes- grafitando paredes. Em resumo, traba-
soas diferentes (médicos, professores, lhando para Alexander Nix de graça e
lojistas, etc.) com a frase “pessoas mu- o mais importante: de forma natural e
dam pessoas”. Dessa forma, era como sem que ninguém soubesse que aque-
se o candidato submergisse no mar de las ações espontâneas eram na verdade
homens e mulheres comuns. A partir fruto de uma estratégia política.
daquele momento os eleitores não vo- Explorando a sensação de pertenci-
tariam mais em um político corrupto, mento, o grupo conseguiu que houvesse
mas em alguém do povo, alguém como uma abstenção muito grande entre os
eles; quando o eleitor via possivelmente jovens. Contudo, Nix sabia que mui-
alguém com a sua profissão, gênero, tos jovens indianos não deixariam de
idade ou etnia, via, de alguma forma, votar devido à hierarquia familiar mais
ele mesmo. presente. Por mais que tivessem sido
Em Trindade e Tobago o desafio era tocados pela campanha, isso não seria
lidar com um país dividido politica- suficiente para que desobedecessem aos
4 De acordo com a BBC, “Violência e atrasos marcam início de eleição na Nigéria. Atrasos marcaram o início das eleições presiden-
ciais e legislativas na Nigéria, que vai neste sábado às urnas em uma votação histórica” (VIOLÊNCIA, 2007).
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pais e deixassem de votar. Dessa forma, bam? De acordo com Edward Bernays,
a tática consistiu em fazer com que o a resposta é sim. Bernays é um sobri-
maior número de abstenção fosse entre nho de Freud, considerado pai da pro-
os negros, o que garantiu que o partido paganda moderna e criador do termo
indiano fosse o vencedor da eleição. “relações públicas”. Durante a pri-
A partir desses relatos, é possível meira guerra mundial trabalhou para
concluir que a engenhosidade e a as- o governo dos EUA na Comissão Creel,
túcia de Alexander Nix não estão dire- que possuía o objetivo de influenciar
tamente ligadas ao conhecimento e ma- a opinião pública, para apoiar a parti-
nipulação de algoritmos. Ainda que a cipação dos Estados Unidos na guerra.
tecnologia facilite o trabalho de alcan- De acordo com Chomsky, a população
çar as pessoas, é indispensável o conhe- norte-americana não concordava com
cimento da sociedade e do ser humano. a entrada do país no conflito até a in-
De campanhas dentro dos padrões da tervenção do comitê que, após seis me-
legalidade como a de Bogotá, até liga- ses, conseguiu transformar o povo es-
ção com fraude eleitoral como na Nigé- tadunidense numa “população histé-
ria, passando por diversas zonas media- rica e belicosa que queria destruir tudo
nas eticamente duvidosas, a Cambridge que fosse alemão” (CHOMSKY, 2013, p.
Analytica deu continuidade e atualizou 11).
as práticas de manipulação social. Após a experiência com a comissão,
Não deveria ser espantoso para nin- Bernays deu continuidade ao seu tra-
guém, entretanto, que as empresas de balho com propaganda desenvolvendo
propaganda política contemporâneas o que ele chamou de “engenharia do
considerem que as campanhas apelam consentimento”. Ele conclui que os
ao sentimento e não ao fato e criam nar- mecanismos de controle usados du-
rativas diversas para o controle social. rante a guerra poderiam ser usados
Desde os anos vinte, pelo menos, sabe- também em tempos de paz. Para tal,
se que a psicologia invadiu a propa- aprofundou-se no estudo da psicaná-
ganda política para ajudar a manipular lise, valendo-se, sobretudo, do texto A
as emoções dos cidadãos. psicologia das massas e a análise do eu de
Freud. É a partir daí que cria o termo
“relações públicas”. Para ele, o termo
“propaganda” estaria demasiadamente
Edward Bernays e a propaganda polí- ligado às práticas alemãs, por isso foi
tica no século XX necessário criar uma nova nomencla-
tura. Ademais, segundo ele, a nova téc-
É possível controlar as pessoas, influ- nica que estava propondo seria muito
enciando seus gostos, suas ações, seus diferente do modo de fazer propaganda
medos e seus desejos sem que elas sai-
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5 World Of Warcraft é um jogo para computadores no estilo “mmo” (massive muliplayer on-line), onde os jogadores partilham um
mundo virtual com milhares de outros jogadores de todo globo. Funcionando muitas vezes como uma espécie de vida paralela,
muitos jogadores dedicam ao jogo quase toda parcela ativa do seu dia.
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usar o submundo dos fóruns de internet como a raiva e ódio se mantiveram nas
como terreno e força política. Esse lu- camadas profundas do inconsciente,
gar virtual que permite que as pessoas mantiveram-se também abaixo da su-
possam se esconder atrás de avatares e perfície da internet. Represados, mas
destilarem sua raiva reprimida contra não apagados, os preconceitos perma-
tudo e contra todos é onde parte con- neceram latentes à espera de uma opor-
siderável da militância é forjada.6 A tunidade para emergir. Os movimentos
sensação de não pertencimento, ocasio- da extrema direita surgem aí como um
nada em larga medida por um mundo canalizador que agrega as frustrações
em constante transformação e que dis- agrupando-as numa identidade conser-
tancia cada vez mais as pessoas através vadora.
do cultivo do individualismo, aliada à Utilizando esse ressentimento, a ex-
frustração de certos grupos por ter de trema direita moldou seus candidatos
disputar espaços com mulheres e pes- para responder a esses anseios. O po-
soas não brancas, fez com que das pro- lítico ideal nesse cenário não é o que
fundezas da web, surgissem as semen- usa palavras difíceis e expõe a real di-
tes da nova direita. ficuldade de resolução dos problemas
sociais; tudo isso passa a soar como en-
godo. No modo de vida no qual cada
Bannon utilizava nos EUA as li-
vez menos somos convidados a refletir
ções de sua breve incursão no
ou entender questões complexas, aque-
mundo dos videogames. Ele
les que prometem soluções simples fa-
sabe que, sob a superfície da
zem coincidir suas práticas e propostas
web, agitam-se correntes invi-
com o que ficou guardado no inconsci-
síveis, mas muito poderosas,
ente, possuem vantagem.
alimentadas pela frustração de
milhões de indivíduos que se
sentem à margem da sociedade
e pela “cólera inata e surda" da
Conclusão
América, da qual já falava Phi-
lip Roth em Pastoral americana.
Dessa forma, ainda que os novos líde-
Ele crê ter encontrado, enfim, a
res da extrema direita e as redes sociais
isca ideal para pescar esse senti-
apresentem especificidades, o que ve-
mento (EMPOLI, 2020, p. 104).
mos não é um ponto fora da curva e
nem uma coisa inédita. Se somos mais
Da mesma maneira que os afetos influenciáveis hoje não é porque a tec-
6 De acordo com Isabela Kalil, a base de apoio de Bolsonaro também é formada por “nerds”, “gamers”, “hackers” e “haters” (KALIL,
2020).
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nologia alcançou um nível que permitiu vez mais dissolvidas, nos encontramos
que as máquinas fizessem uma espécie cada dia mais isolados e por isso, ansi-
de lavagem cerebral. As redes sociais, osos por nos religarmos, e esse anseio
os algoritmos e as fake news apresentam por uma reconexão nos deixa vulnerá-
características específicas que deman- veis aos convites das massas psicológi-
dam atenção, mas a propaganda polí- cas.
tica atual não é nada mais do que fruto Portanto, analisar os mecanismos de
do desenvolvimento de técnicas que já controle contemporâneos partindo da
são utilizadas há muitas décadas. perspectiva de que são inéditos e uma
A nova extrema direita não inven- ameaça à democracia é um engano
tou uma forma de manipulação social, que embota nossa compreensão do pro-
ela somente deu continuidade a práti- blema. Se o sistema democrático repre-
cas que já foram testadas e aprovadas. sentativo foi hackeado, isso não começou
É incontestável que a abordagem indi- em 2016; sempre que a opinião pública
vidualizada e uma maior atenção por foi relevante, foi alvo de manipulação.
parte das pessoas nas redes sociais in- Para controlar as transformações so-
tensificaram o poder de controle social, ciais e manter o status quo é necessá-
mas isso porque o WhatsApp, os grupos rio não somente o uso do poder coerci-
e páginas de Facebook e demais espaços tivo, mas é preciso que as pessoas se-
virtuais são fortes aliados para a cria- jam manipuladas e a propaganda serve
ção de massas psicológicas. As bolhas como um poderoso instrumento de con-
digitais permitem que a narrativa ofi- trole subjetivo. Atuando, sobretudo, no
cial dos grupos fique devidamente as- inconsciente, ela consegue criar veícu-
segurada e imune a críticas. Da mesma los para incutir ideias, desejos, crenças
forma, protege também as pessoas do e medos que podem transformar a opi-
contágio de perspectivas que não per- nião pública.
tençam ao conjunto de verdades aceitas Contudo, sabe-se que essa manipula-
pelo grupo. ção não é completa, não é possível pa-
Ademais, as massas psicológicas são dronizar completamente o ser humano
mais facilmente construídas e mantidas transformando-o num ser que responde
porque o nosso modo de vida nos inibe efetivamente a todos os comandos. A
a capacidade reflexiva, porque estamos propaganda reconhece seu limite e sabe
sempre ocupados trabalhando e com- que seu funcionamento deve respeitá-
prando e a reflexão e a ponderação são lo. A manipulação social funciona, de
vistas como perda de tempo porque não alguma maneira, como uma negocia-
dão lucro. Aliado a isso, presenciamos ção, porque não possui o poder de al-
também o aumento do distanciamento terar completamente uma população.
social, e com as relações sociais cada “Você não pode persuadir toda uma ge-
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Recebido: 23/09/2020
Aprovado: 13/01/2021
Publicado: 31/01/2021
206 Revista de Filosofia Moderna e Contemporânea, Brasília, v.8, n.3, dez. 2020, p. 181-206
ISSN: 2317-9570
DOI: https://doi.org/10.26512/rfmc.v8i3.34772
Resumo: O ensaio aborda o chamado ensino remoto como a versão atualizada e político-
tecnológica do agravamento das decisões oficiais contra a educação pública e o direito à
educação de qualidade. Nesse sentido, procuro apresentar uma discussão tomando como
base relatos da minha própria experiência na docência universitária e na pesquisa que
tem como campo a escola pública, para, em seguida, discutir os termos contextuais do
problema no âmbito do “extrativismo de dados” das grandes empresas norte-americanas
de tecnologia, que gerem exclusivamente toda produção, transmissão e armazenamento
de dados no ensino remoto público, com base naquilo que Evgeny Morozov chama de
“solucionismo tecnológico”.
Palavras-chave: Educação, Ensino remoto. Solucionismo tecnológico.
* Professor da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), Campus Diadema. Doutor em filosofia pela Universidade de São Paulo
(USP). E-mail: denilson.cordeiro@unifesp.br. ORCID: https://orcid.org/0000-0002-0023-1605.
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1 A respeito disso, sugiro o excelente artigo de Ismail Xavier, “Melodrama, ou a sedução da moral negociada”. Revista Novos Es-
tudos Cebrap, n. 57, julho de 2000. Pelo melodrama tratado como conceito, o autor discute o efeito de “simplificações de quem não
suporta ambiguidades nem a carga de ironia contida na experiência social, alguém que demanda proteção ou precisa de uma fantasia
de inocência diante de qualquer mau resultado.” (pp. 81-2).
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em que prepara e apresenta suas au- cargos, funções e salários obrigam, ou-
las, o faz de um modo singular, porque tros simplesmente farão o que a maioria
tributário das condições do aqui e agora faz e, cientes e tranquilos com o fato de
de cada encontro, e, quando colhe êxito, que sempre houve excluídos, dormirão
também de uma maneira autêntica, cri- o sono dos justos.
ativa e fecunda. A desvinculação progressiva entre as
As denominadas Atividades Domi- promessas burocráticas fixadas nos pla-
ciliares Especiais (ADEs) não são au- nos de ensino e as práticas de realização
las, como o próprio nome, natureza será o primeiro choque de constatação
e regulação confirmam. São próteses das dificuldades no desenvolvimento
onde deveriam haver encontros presen- das ADEs. Patentes como percepção
ciais. Por isso, não podemos esperar nas eventuais avaliações, mas devida-
que cumpram o que somente a presença mente engavetadas na “transparência”
e a materialidade poderiam constituir. institucional. A organização dos estu-
Não “voltaremos às aulas”, como alguns dos estará mais do que nunca a cargo
alardeiam, não vamos “retomar os cur- exclusivo dos estudantes. Vídeos são
sos”, como outros pensam e dizem, va- formas que modificam a apreensão dos
mos, quando muito, fazer algo inédito, conteúdos, porque o meio é antes de
para o qual não estamos nem prepara- tudo a mensagem, quem estará à al-
dos, nem equipados, nem prevenidos, tura de abordá-los com o domínio crí-
sob a tutela de grandes empresas de tec- tico e técnico necessários para distin-
nologia cujo escopo é exclusivamente guir as peculiaridades? A multiplica-
vender dados. ção de preocupações de ordem técnica
E qual é a razão? Para cumprir ex- reduzirá a disponibilidade de profes-
clusivamente com as determinações bu- sores e estudantes na atenção necessá-
rocráticas oficiais dos calendários e as ria com as variadas frentes informativas
pressões do mercado. Nada mais. Não que as ADEs trazem e demandam. Mas
há argumentos pedagógicos que susten- desde que presentes virtualmente (!) e o
tem a decisão, estamos reféns de co- novo sistema das ADEs esteja rodando
mandos exclusivamente tecnocráticos. a todo vapor, tudo estará bem e avan-
Para os poderes instituídos, não con- çando no cumprimento das responsabi-
vém desfazer a ilusão de que “voltare- lidades públicas e políticas que a atual
mos às aulas”, menos ainda de que a universidade redefiniu para todos.
esperada “normalidade” esteja se resta- Isso não significa que não havia pro-
belecendo. Alguns encontrarão a jus- blemas nas aulas presenciais. E o ritmo
tificativa que procuram ansiosamente sempre frenético que a pandemia agora
para sentirem que trabalham, que cum- suspendeu poderia ser a oportunidade
prem com as responsabilidades a que de reavaliarmos e reestruturarmos pro-
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são liberados das experiências e respon- e os resultados éticos a que podem levar
sabilidades propedêuticas formativas, nossas propostas de crítica ou de mera
que, como no cinema, passaram a estar obediência às regras do jogo. Para essas
restritas exclusivamente ao olho. Com elaborações e respostas devemos, ne-
a internet, os inúmeros aplicativos e a cessariamente, recusar a ansiedade do
transformação dos celulares em compu- tempo emergencial em voga.
tadores de bolso (máquina de escrever,
fotográfica, câmera de filmagem, apare-
lho de reprodução de filmes, gravador
de voz, televisão, rádio e telefone), a re- Esperança residual
produção técnica alcançou um patamar
de disseminação que pode transformar A contraposição necessária, no entanto,
tudo em suas imagens, submetendo a não passa pelo esforço, ademais inútil,
modificações profundas, como conquis- de fazer apenas a crítica da ideologia e
tar e colonizar procedimentos e práticas dos interesses em voga, tentando apon-
antes exclusivamente educacionais para tar incoerências e contradições em seus
fins comerciais. próprios termos. Com as energias utó-
As perspectivas da educação em geral picas leigas tão em baixa, a esperança
e da aula em particular, seja na escola, residual sobrevive, se for possível di-
seja na universidade, durante a pande- zer tanto, somente pela determinação
mia e no cenário pós-pandêmico depen- intelectual de manter-se na resistência,
dem diretamente das nossas possibili- um pouco por princípio, por respon-
dades de aprofundar o diagnóstico do sabilidade, um tanto por orgulho, por
presente, praticar urgentemente aquilo costume, estudando, debatendo, inter-
que Gramsci chamou de “responsabili- vindo, ainda que a derrota seja diari-
dade histórica” e revalorizar o lugar da amente reeditada. Um trabalho de Sí-
humanidade diante da tecnologia. Se o sifo. Crer no processo que a resistência
que digo aqui faz algum sentido, é for- instaura, manter-se engajado no que de-
çoso reconhecer que “temos um grande sencadeia, orientar-se pelos êxitos pon-
passado pela frente”, como escreveu tuais e eventuais, precaver-se contra as
Millôr Fernandes. Não vejo nenhuma armadilhas dos esquematismos, exami-
chance de modificação dessa nefasta nar criticamente as conformações que
dinâmica sem começar por repolitizar chamam presente, pensar muitas ve-
as discussões, indagando, por exemplo, zes antes de ceder aos voluntarismos,
em benefício de quem são tomadas as manter-se fiel aos princípios nos quais
decisões oficiais, sobre os limites entre as pessoas são sempre mais importantes
aderir e recusar as determinações que do que as coisas e os procedimentos.
aprofundam essa lamentável realidade Como toda crise, esta de agora pro-
duz, dentre inúmeros agravamentos e
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Referências
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política. Obras escolhidas 1. Trad. Sergio Paulo Rouanet. São Paulo: Ed. Brasiliense, 1993.
BERTONI, F. Insegnare (et vivere) ai tempi del vírus. Bolonha: Ed. Semi/Nottetempo, 2020.
MOROZOV, E. Big Tech: a ascensão dos dados e a morte da política. Trad. Claudio Marcondes, São
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PÉCORA, A. “Letras e humanidades depois da crise”. Revista da Anpoll, n. 38, pp. 41-54, Florianó-
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XAVIER, I. “Melodrama, ou a sedução da moral negociada”. Revista Novos Estudos Cebrap, n. 57,
julho de 2000.
Recebido: 18/10/2020
Aprovado: 13/01/2021
Publicado: 31/01/2021
224 Revista de Filosofia Moderna e Contemporânea, Brasília, v.8, n.3, dez. 2020, p. 207-224
ISSN: 2317-9570
DOI: https://doi.org/10.26512/rfmc.v8i3.31941
Resumo: O presente texto apresenta uma tradução da peça Pygmalion, escrita pelo
filósofo genebrino Jean-Jacques Rousseau (1712-1778). A tradução foi feita direta do
original em francês, o qual está contido nos “Contes et Apologues” (Contos e Apólogos)
das Œuvres Complètes (Obras Completas), publicada em cinco volumes, na França, pelas
Edições Gallimard, da coleção Bibliothèque de la Pléiade, sob a direção de Bernard
Gagnebin e Marcel Raymond. Após a tradução, o artigo procura discutir que enquanto
Rousseau condenava as artes, dentre elas o teatro, como um dos elementos causadores
da corrupção humana, escreveu diversas obras artísticas, entre elas poesias, romances,
óperas e peças de teatro. Aliás, o autor pode ser considerado como um dos precursores
do romantismo, tendo influenciado nomes como o do grande escritor alemão Goethe.
Entretanto, a estética rousseauniana tem a perspectiva de se encontrar o remédio no
próprio veneno, isto é, a utilização das artes como remédio para os males que elas
causaram no coração humano.
Palavras-chave: Rousseau. Romantismo. Pigmaleão. Artes. Teatro.
Abstract: This text presents a translation of the theatre play Pygmalion, written by the
Swiss philosopher Jean-Jacques Rousseau (1712-1778). The translation has been made
directly from the original in French, which is part of the “Contes et Apologues” (Tales
and Apologists) of the Œuvres Complètes (Complete Works), published in five volumes,
in France, by the Gallimard Editions, of the Bibliothèque de la collection Pléiade, under
the direction of Bernard Gagnebin and Marcel Raymond. Following the translation, a
discussion is provided on the problem: while Rousseau condemned the arts, including
theater, as one of the elements that have caused human corruption, he wrote several
artistic works, including poetry, novels, operas and plays. In fact, the author can be
considered as one of the precursors of romanticism, having influenced names like
that of the great German writer Goethe. However, the Rousseaunian aesthetic has the
perspective of finding the remedy in the poison itself, that is, the use of the arts as a
remedy for the ills they have caused in the human heart.
Keywords: Rousseau. Romanticism. Pygmalion. Arts. Theatre.
* Professor da Universidade Federal de Goiás (UFG). Doutor em filosofia da educação pela Universidade de São Paulo (USP). E-
mail: scriswap@ufg.br. ORCID: https://orcid.org/0000-0001-5654-7193.
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ROUSSEAU E AS ARTES: UMA LEITURA DO PIGMALEÃO
Tradução
PIGMALEÃO,
Cena lírica.
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PIGMALEÃO.
Não há nelas nada de alma ou de vida; não passam de pedra. Jamais farei
alguma coisa de tudo isso.
Oh! Meu gênio, onde tu estás? Meu talento, para onde foste? Todo meu
fervor se apagou, minha imaginação ficou congelada, o mármore sai frio de
minhas mãos.
Ele lança fora suas ferramentas com desdém, em seguida caminha pensativo por um
pouco de tempo, com os braços cruzados.
E vós, jovens objetos, obras-primas da natureza que minha arte ousou imi-
tar, e em cujos passos os prazeres me atraíam sem cessar, vós, meus modelos
encantadores, que me incendiastes ao mesmo tempo com o fogo do amor e
do gênio, desde que vos superei, sois todos para mim indiferentes.
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ROUSSEAU E AS ARTES: UMA LEITURA DO PIGMALEÃO
Preso nesse ateliê por um encanto inconcebível, não consigo fazer nada e
não posso me afastar. Vagueio de grupo em grupo, de figura em figura.
Meu formão debilitado, errático, não reconhece mais seu guia: essas obras
grosseiras, deixadas em seu tímido esboço, não sentem mais a mão que an-
tes as animava...
Não adianta mais! Não adianta mais! Perdi meu gênio... Tão jovem ainda,
eu perdi meu talento.
Mas o que é então esse ardor interno que me devora? O que tenho em
mim que parece me incendiar? O quê! Na languidez de um gênio apagado,
sentem-se essas emoções, sentem-se esses impulsos de paixões impetuosas,
essa ansiedade instransponível, essa agitação secreta que me atormenta cuja
causa não consigo desvendar?
Receio que a admiração da minha própria obra não tenha causado a distra-
ção que acabei trazendo ao meu trabalho. Eu o escondi sob esse véu... mi-
nhas profanas mãos ousaram cobrir esse monumento de sua glória. Desde
que não posso mais vê-lo, estou mais triste e menos atento do que antes.
Como me será cara, como me será preciosa essa obra imortal! Quando mi-
nha mente apagada não produzir mais nada de grandioso, belo e digno de
mim, mostrarei minha Galateia e direi: eis minha criação! Ó minha Gala-
teia! Quando eu tiver perdido tudo, tu me restarás e então serei consolado.
Ele se aproxima da tenda e depois recua, vai e vem e às vezes para suspirando para
contemplá-la.
Mas por que escondê-la? O que ganho com isso? Reduzido à ociosidade, por
que me privar do prazer de contemplar a mais bela das minhas obras?... Tal-
vez ainda resta nela algum defeito que eu não tenha notado. Talvez pudesse
ainda acrescentar algum ornamento ao seu esplendor; pois nenhuma graça
que se imagine deve faltar em um objeto tão encantador... Talvez esse objeto
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Não sei que emoção eu sinto ao tocar esse véu; um pavor me toma; acho
que toco o santuário de alguma divindade... Pigmaleão! Mas é uma pedra,
criação tua. E o que importa?
Em nossos templos, servimos aos deuses que não são diferentes: feitos do
mesmo material e pela mesma mão humana.
Tremendo, ele tira o véu e se inclina. Vê-se a estátua de Galateia posta sobre
um pedestal muito pequeno, mas elevada por uma plataforma de mármore,
formada por alguns degraus semicirculares.
Quê! tantas belezas saem de minhas mãos? Minhas mãos logo as tocaram?
Minha boca então poderia... Pigmaleão! Vejo um defeito. Esse vestuário
cobre demasiado o nu; é preciso talhá-lo mais; os encantos que ele esconde
devem ser melhor revelados.
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Que tremor! Que perturbação! Seguro o formão com uma mão insegura...
não posso... não ouso... estragarei tudo.
Terror vão, cegueira tola!... Não, não tocarei em nada; os deuses me apavo-
ram. Sem dúvida já está a eles consagrada.
O que queres mudar? olha; que novos encantos queres lhe dar?... Ah! É
a perfeição que é o seu defeito... Divina Galateia! fosseis menos perfeita,
nada vos faltaria.
Ternamente.
Mas vos falta uma alma: vossa figura não pode ficar sem.
Quão bela deve ser a alma feita para dar vida a um corpo assim!
Ele se detém por um longo tempo, depois voltando a sentar-se, diz com
uma voz lenta e alterada.
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Que desejos ouso formar? Que anseios insensatos! O que é isso que eu
sinto? Oh, céu! O véu da ilusão tomba e eu não ouso ver o que está no meu
coração: teria muito a me indignar.
... Eis então a nobre paixão que me ilude! E é por causa desse objeto ina-
nimado que não ouso sair daqui!... Um mármore! Uma pedra! Uma massa
disforme e dura, talhada por este ferro!... Insensato, retorna a ti mesmo;
pranteia, encara teu erro... contemple tua loucura... Mas não...
Impetuosamente.
Não, não fiquei louco; não estou delirando; não posso me culpar de nada.
Não é por esse mármore sem vida que estou enamorado, mas de um ser
vivente que a ele se assemelha; da imagem que ele projeta em meus olhos.
Em qualquer lugar que esteja essa imagem adorável, qualquer corpo que a
porte, e qualquer mão que a faça, ela terá todos os votos do meu coração.
Sim, minha única loucura é a de discernir a beleza e meu único crime é de
poder senti-la. Não há nada nisso que me possa envergonhar.
Quantas labaredas parecem sair desse objeto para inflamar meus sentidos e
retornar com minha alma à sua fonte! Infelizmente ele permanece imóvel e
frio, enquanto meu coração arde por seus encantos. Quisera eu sair de meu
corpo para ir aquecer o seu. Eu creio, nesse meu delírio, poder lançar-me
fora de mim; creio poder lhe dar minha vida e animá-la com a minha alma.
Ah! Que Pigmaleão morra para viver em Galateia!... Oh, céus! O que estou
dizendo? Se eu fosse ela, não mais a veria, não seria mais aquele que a ama!
Não, que minha Galateia viva e eu não seja ela. Ah! Que eu seja sempre um
outro, para desejar sempre ser ela, para vê-la, para amá-la, para ser amado
por ela...
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ROUSSEAU E AS ARTES: UMA LEITURA DO PIGMALEÃO
Com entusiasmo.
E tu, essência sublime, que te escondes dos sentidos e te projetas nos co-
rações! alma do universo, princípio de toda a existência; tu que pelo amor
concedes harmonia aos elementos, vida à matéria, sentimento aos corpos e
a forma a todos os seres; fogo sagrado! Vênus celeste, por quem tudo se con-
serva e se reproduz sem cessar! Ah! Onde está teu equilíbrio? Onde está tua
força expansiva? Onde está a lei da natureza neste sentimento que sinto?
Onde está tua flama vivificante na inutilidade de meus vãos desejos? Todo
teu calor está concentrado no meu coração e o frio da morte permanece
nesse mármore; pereço pelo excesso de vida que lhe falta. Ai! Não espero
nenhum prodígio; existe, mas deve cessar; pois a ordem está perturbada, a
natureza está ultrajada; restaures o domínio deles à suas leis, restabeleças
seu curso benfazejo e despejes igualmente tua divina influência. Sim, fal-
tam dois seres à plenitude das coisas. Compartilhes entre eles esse ardor
devorador que consome um sem aquecer o outro. Es tu que formaste, por
minha mão, esses encantos e traços que aguardam tão só o sentimento e a
vida... Dá-lhe a metade da minha, dá-lhe toda, se for necessário, pois me
bastará viver nela. Oh, tu que te satisfazes das homenagens dos mortais!
Aquele que não sente nada não te adora. Amplia tua glória com tuas obras.
Deusa da beleza, poupes a natureza dessa afronta, a de que um modelo tão
perfeito seja a imagem do que não é.
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WILSON ALVES DE PAIVA
Mas essa confiança injusta engana aqueles que fazem desejos tolos... Infe-
lizmente! No estado em que me encontro invocamos de tudo e ninguém nos
escuta. A esperança que nos abusa é mais insensata que o desejo.
Envergonhado com tantos erros, não ouso mais contemplar a causa. Quando
quero elevar meus olhos para esse objeto fatal, sinto uma nova perturbação,
uma palpitação me sufoca, um medo secreto me impede...
O que foi que vi? Pelos deuses! O que acho que eu vi? A cor da carne...
um fogo nos olhos... ou mesmo um movimento... Não bastava esperar pelo
milagre; para piorar o estado de miséria, ao final, eu a vi...
Em extrema prostração.
Infeliz! Então é isso... teu delírio atingiu seu clímax; tua razão te aban-
dona assim como teu gênio!... Não te lamentes, ó Pigmaleão! Tua desrazão
cobrirá teu opróbrio...
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ROUSSEAU E AS ARTES: UMA LEITURA DO PIGMALEÃO
Eu.
Pigmaleão, emocionado.
Eu!
Pigmaleão.
Adorável ilusão que passa pelos meus ouvidos, ah! nunca abandones meus
sentidos.
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WILSON ALVES DE PAIVA
Pigmaleão, numa agitação e numa emoção que quase não consegue controlar,
segue todos os movimentos da estátua, ouvindo-a, observando-a
com uma atenção tão ávida que quase não consegue respirar.
Pigmaleão.
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ROUSSEAU E AS ARTES: UMA LEITURA DO PIGMALEÃO
(2018) chega a relatar alguns casos de mano à psiqué, a entrega final que o
“pigmaleonismo” reais que ocorreram Pigmaleão de Rousseau dedica à sua
no mundo helênico, devidamente docu- obra, mesmo que animada pela força
mentados por alguns escritores, como dos deuses, tem a ver mais com a fusão
um jovem de uma família abastada de do humano ao eros.
Cnido, no golfo de Cós, o qual se apai- Diferente da clara intervenção divina
xonou pela estátua de Afrodite feita por que acontece nos mitos gregos, na peça
Praxiteles (395-330 a.C.), um dos mai- de Rousseau a animação da pedra mais
ores escultores da Grécia Antiga, que parece um delírio do escultor, sua ima-
ficava no templo daquela cidade. Diz ginação que responde ao estado de de-
Licht (2108, p. 502) que o jovem “pas- sespero no qual se encontrava por ter
sava dias no templo e nunca se cansava perdido a inspiração. Assim, diante
de contemplar sem cessar a imagem di- da impaciência, da angústia, da tris-
vina”. teza, da irritação e do medo, seu per-
Ao chamar a experiência desse jovem sonagem pode ter apenas imaginado a
grego de “estética”, estamos longe do reação de sua obra. Um estado psico-
sentido epistemológico dado por Baum- lógico que vai da mais profunda tris-
garten (1936) de reflexão sobre o belo. teza à euforia de poder contemplar seu
Tal perspectiva só ganha estatuto no esforço sendo recompensado pelo fato
século XVIII, embora Aristóteles já ti- de que sua obra criou vida. Ademais,
vesse introduzido ambas as perspecti- como cristão, Rousseau não lança mão
vas, isto é, tanto a da reflexão sobre o dos mitos gregos a não ser como metá-
belo quanto à da experiência sensitiva. fora e recurso retórico. Portanto, longe
Porém, desde o mundo antigo ao início de ser um deus, eros é, para Rousseau
do moderno é a perspectiva das sen- uma força que canaliza um retorno à
sações e da contemplação que sempre unidade. É nesse sentido que o perso-
esteve em destaque. Tanto no jovem de nagem escultor emprega suas palavras
Cnido, quanto no Pigmaleão dos mi- finais de seu monólogo: “Sim, caro e en-
tos helênicos ou mesmo no Pigmaleão cantado objeto: sim, a mais digna obra-
da obra de Rousseau o que há é uma prima de minhas mãos, do meu coração
demonstração de uma experiência sen- e dos deuses... Es tu, es tu só: Eu te dei
sitiva que resulta da contemplação do todo o meu ser; não viverei mais a não
belo. Porém, uma sutil diferença entre ser por ti”.
os antigos e Rousseau deve ser desta- Entretanto, admitindo que, no final
cada: Se o fanatismo órfico do jovem da peça, os deuses realmente tenham
grego se fia, como nos demais mitos, na atendido o clamor de Pigmaleão, o ar-
metempsicose sobre o mármore para, a tista não assume a estátua animada
partir dela, operar uma fusão do hu- como resultado de uma metempsicose,
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mas como uma obra-prima que, dada na substituição de um objeto por uma
sua beleza, bem como a evocação do consciência”.
próprio escultor, recebeu uma interven- A relação de Rousseau com as artes
ção divina, ganhando anima com uma é emblemática e se desenvolve na con-
parte de sua própria alma para se mo- tramão do pensamento iluminista. Já é
ver e se sentir viva. Junção da Psiqué, bastante conhecido seu posicionamento
representada pela ação divina, com o a esse respeito e a obra que talvez te-
eros, representado pela ação humana nha chamado mais atenção tenha sido
do escultor, num ato conjunto de amor: o Primeiro Discurso, isto é, o Discurso
“do meu coração e dos deuses”. E, em sobre as ciências e as artes. Nela, Rous-
vez e exaltar alguma divindade, Pig- seau responde negativamente à questão
maleão afirma, dirigindo-se à própria proposta pela Academia de Dijon, se
estátua: “Es tu” e “Eu te dei todo meu o restabelecimento das ciências e das
ser”. Portanto, se no encerramento da artes teriam contribuído para melho-
peça o artista se entrega, dizendo: “não rar os costumes. Seu discurso, premi-
viverei mais a não ser por ti”, é porque ado em 1750 e publicado no Mercure
a obra é, primeiramente, manifestação de France no ano seguinte, contrariava
do trabalho humano sobre a natureza, o ideário iluminista com sua superva-
isto é, o mármore, e pela qual o humano lorização do conhecimento racional e
viverá. Não é, portanto, o triunfo do hu- seu papel no desenvolvimento moral.
mano sobre a natureza, nem o contrá- Então o que as artes proporcionam aos
rio, mas o triunfo de ambos, fundidos homens? Para que servem? A resposta
numa unidade estética. Como diz Sta- de Rousseau é incisiva: Tão somente
robinski (1991, p. 81), “Galatéia viva para criar “guirlandas de flores sobre as
não será mais uma obra, mas uma cons- cadeias de ferro de que estão eles carre-
ciência. Pigmalião, feliz, abandona seus gados, afogam-lhes o sentimento dessa
instrumentos; o amor de Galatéia lhe liberdade original, para a qual pare-
bastará; não esculpirá mais estátuas...”. ciam ter nascido, fazem com que amem
E o interessante é que o primeiro ato sua escravidão e formam assim o que se
de Galateia, depois que ganha vida, é chama povos policiados” (ROUSSEAU,
reconhecer-se, tomar consciência de si 1999b, p. 190).
mesma, mas também tendo consciência Para ele, então, o refinamento da cul-
que é fruto do trabalho humano. Ao tura se desenvolveu a partir do luxo,
tocar-se, ela diz: “eu”, mas ao tocar Pig- dos vícios e da ociosidade. Consequen-
malião, diz “ainda sou eu”: a suprema temente, provocou o afastamento da
fusão do amor. A grande jogada aqui, simplicidade e das disposições natu-
como bem a capta Starobinski (1991, rais, nada acrescentando à verdadeira
p. 82), é a seguinte: “O milagre está felicidade, acabou criando situações nas
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ROUSSEAU E AS ARTES: UMA LEITURA DO PIGMALEÃO
2 “Tudo é verdejante, fresco, vigoroso e a mão do jardineiro não aparece: nada desmente a ideia de uma Ilha deserta que me veio à
mente ao entrar e não percebo nenhum passo humano” (ROUSSEAU, 2006, p. 416).
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WILSON ALVES DE PAIVA
o primeiro passo tanto para a desigual- trar em Veneza, foi anterior à sua “con-
dade quanto para o vício” (ROUSSEAU, versão” no caminho de Vincennes, em
1999b, p. 92). E foi nesse sentido que 1749, quando foi visitar o amigo Di-
as ciências e as artes aprofundaram o derot, encarcerado, e teve sua epifania.
fosso moral e contribuíram para a de- Ao escrever seu Primeiro Discurso, já era
crepitude da espécie. Se a arte teve esse um homem novo, alguém que, pela ilu-
poder avassalador e Rousseau era cons- minação que tivera, passou a defender
ciente disso, por que, então, dedicou-se outro ponto de vista, aquele pelo qual
tanto à arte? Afinal, desde a sua ju- ficou conhecido, ou seja, o do crítico das
ventude era um amante da literatura, artes e denunciador de seus males.
da música e do teatro. Quando resi- Diante da questão, se o restabeleci-
diu na Itália, como secretário da Em- mento das ciências e das artes teria con-
baixada Francesa junto à República de tribuído para aprimorar os costumes,
Veneza, entre 1743 a 1744, apreendeu, proposta pela Academia de Dijon para
assim que lá chegou, a joie de vivre da seu concurso, a opção de Rousseau pela
cidade e soube aproveitar como nin- resposta negativa é, na escrita do Dis-
guém o refinamento cultural desse lu- curso sobre as ciências e as artes, o ponto
gar. Depois, de volta à França, escreveu de partida de uma relação complexa en-
diversas composições teatrais e musi- tre natureza e cultura que o autor vai
cais, além de um romance que o colocou desenvolver em outros escritos. De um
como um dos pais do romantismo lite- lado, a proposição interpretativa de que
rário, vindo a influenciar inclusive Go- tudo é certo ao sair das mãos da natu-
ethe e os demais representantes do mo- reza, por outro a de que o homem tudo
vimento proto-romântico alemão Sturm degenera e corrompe. De modo que as
und Drang (Tempestade e ímpeto). artes são impuras em suas origens, pois
Quanto a isso há várias considera- são geradas pelos vícios e paixões.3 São
ções. A primeira, é que, como diz como elementos substantivos, como o luxo, a
diz Cranston (1982), o Rousseau solitá- ociosidade, a vaidade e o desejo de re-
rio, devaneador e amante da natureza, conhecimento e exaltação sobre os de-
qualificativos pelos quais ficou tão co- mais, que dão sustentação às artes e até
nhecido, não é o mesmo Rousseau que à ciência.
desembarcou em Veneza, no Palácio da O problema da degenerescência não
Embaixada. Afinal, esse período de êx- está na arte em si, mas na forma como
tase pela arquitetura, pela ópera, pe- historicamente ela se desenvolveu. No
las danças, pela pintura e por todo esse início, nos primórdios da humanidade,
modo de vida refinado que foi encon- os povos simples souberam utilizar da
3 “As ciências e as artes devem, portanto, seu nascimento a nossos vícios” (ROUSSEAU, 1999b, p. 203).
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ROUSSEAU E AS ARTES: UMA LEITURA DO PIGMALEÃO
arte, como a dança, para o fortaleci- malefício ou a cura dos males. Tal pers-
mento dos laços humanitários e soci- pectiva reafirma o princípio do veneno
ais. Como ele diz, no Ensaio sobre a ori- como remédio e deixa claro que o pro-
gem das línguas: “Reúnem-se em torno blema não está na substância, mas na
de uma fogueira comum, aí se fazem prescrição. Nesse aspecto, o mal con-
festins, aí se dança. Os agradáveis la- tém seu remédio na medida em que for
ços do hábito aí aproximam, insensivel- utilizado para evitar um mal pior, como
mente o homem de seus semelhantes e, um antídoto, em benefício público. Se
nessa fogueira rústica, queima o fogo o veneno contém o seu antídoto, evi-
sagrado que leva ao fundo dos corações dentemente que ele não pode ser con-
o primeiro sentimento de humanidade” denado ou banido, mas bem utilizado
(ROUSSEAU, 1999a, p. 295). O que não para os fins de cura. Ou seja, as artes,
durou muito, pois logo desenvolveu-se a ciência e a própria razão na verdade
o amor-próprio. Naquele que queria se desfiguram o homem, pois o distanciam
destacar, ser superior, ter privilégio e da natureza e de suas disposições ori-
ter o domínio sobre os demais. Desse ginais. mas, também pode redefinir o
ponto em diante, o processo foi, lamen- destino da humanidade e propiciar o
tavelmente, para a decrepitude da es- reencontro do homem com seu valor
pécie. absoluto ou, melhor dizendo, com sua
Assim, tendo a humanidade aden- autenticidade e consigo mesmo, desde
trado um processo social de corrupção, que emulada por nobres propósitos.
a arte deixou de representar os estados Como diz ele, “as mesmas causas que
do coração e os sentimentos advindos corromperam os povos servem algu-
da alma. Mas passou a mascarar a in- mas vezes para prevenir uma corrupção
felicidade e disfarçar as injustiças e a maior” (ROUSSEAU, 1999a, p. 300).
escravidão. Isto é, passou a estender Rousseau reconhece a utilidade que
“guirlandas de flores sobre as cadeias as artes têm na implementação da vida
de ferro de que estão eles carregados” cotidiana. Na Última resposta ao Sr. Bor-
(ROUSSEAU, 1999b, p. 190). des, uma das diversas refutações aos
Entretanto, seu posicionamento con- ataques recebidos pelo Discursos sobre
trário não fez dele um inimigo das artes, as ciências e as artes, publicada no Mer-
mas alguém que soube utilizar-se delas cure de France, diz que:
para atacar seu efeito devastador. Como
ele diz no Emílio (p. 134), “a desco-
berta da causa do mal indica o remédio” As ciências são a obra-prima do
(ROUSSEAU, 1973, p. 134). Ou seja, gênio e da razão. O espírito
como um princípio ativo de um remé- de imitação produziu as belas-
dio, as artes podem ser utilizadas para o artes, e a experiência as aperfei-
çoou. Devemos às artes mecâ-
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ROUSSEAU E AS ARTES: UMA LEITURA DO PIGMALEÃO
4 Rousseau usa a palavra “barbárie” para diversos sentidos. No Primeiro discurso o termo se refere ao período da Idade Média: “A
Europa tinha tornado a cair na barbárie dos primeiros tempos”. Mas, ao colocar como epigrafe do mesmo discurso a frase de Ovídio:
Barbarus hic ego sum quia non intelligor illis que significa: “Aqui estou, o bárbaro, porque ninguém me entende” (Ovídio, Tristes, v.
Elegia 10, vl. 57, 1987), está sendo irônico e fazendo referência às críticas que recebeu de muitos de seus contemporâneos.
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tendo certeza de não valer me- gógico, por que o preceptor de Emílio
nos por isso. É verdade que o levou a um local desses? Ora, o po-
um dia poderão dizer: ‘Esse der pedagógico do teatro foi o “nervo
inimigo tão declarado das ci- do debate” (MATTOS, 2009, p. 8) en-
ências e das artes, todavia, fez tre Voltaire, Diderot e Rousseau. E, en-
e publicou peças de teatro’, e quanto os dois primeiros valorizaram a
tal discurso constituirá, con- pedagogia catártica dos palcos, Rous-
fesso, uma sátira muito amarga, seau só o via como vacina. Desde cedo
não a mim, mas a meu século” ele pôde perceber os efeitos maléficos
(ROUSSEAU 1999b, p. 302). do teatro. Isso é claro quando ele ad-
verte D’Alembert (O.C., T. V, p. 24), di-
zendo: “Quanto mais reflito sobre isso,
mais descubro que tudo que se coloca
Considerações finais em representação no teatro não se apro-
xima de nós, mas se distancia”.
Portanto, como Rousseau diz nas Con- No entanto, a representação teatral
fissões, que os passeios de gôndola pelo pode ser válida somente, segundo Naito
rio, que ele realizava quando era jo- (2014, p. 170) “se o que é represen-
vem e secretário da Embaixada, em Ve- tado no palco corresponde a uma reali-
neza, bem como as caminhadas que re- dade”. Desse modo, qual realidade po-
alizava pelas ruas da cidade lhe davam demos visualizar na cena lírica cuja tra-
muito prazer, mas bem mais atrativas dução aqui apresento? Na peça Pigma-
e apaixonantes eram, segundo ele, as leão, Rousseau retira a dimensão eró-
canções melodiosas que se ouviam por tica, a interferência de Vênus e a histó-
toda parte, na boca de todos. Então, ria da mulher depravada, do mito origi-
embora essas cenas se reportam à época nal, para ressaltar o poder criativo do
vivenciada antes de sua “conversão”, artista, sua imaginação e sua paixão.
no caminho de Vincennes, já havia em Vedrini (1989, p. 113) nos diz que “se
sua alma, no âmago de seu pensamento a Nova Heloísa foi um dos maiores su-
uma estética do comum, do cotidiano, cessos de livraria do século, talvez seja
do simples, do corriqueiro, do popular. porque Rousseau havia escrito o que vi-
Nesse sentido, as festas camponesas são venciou, ou melhor, viveu o que havia
mais autênticas que as festas luxuosas escrito ". Rousseau escreveu Pigmaleão
ou o teatro citadino. Mas, se a cura de durante um período de exaustiva de-
um mal pode ser encontrada no próprio pressão. Portanto, escreveu o que es-
veneno, isso nos leva compreender que tava vivenciando e vivenciava o que es-
todas as artes, inclusive o teatro, podem crevia. Nesse sentido, as palavras que
ser usadas de forma pedagógica. encerram a peça: “Es tu, es tu só: Eu te
Se o teatro não tem um efeito peda-
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ROUSSEAU E AS ARTES: UMA LEITURA DO PIGMALEÃO
dei todo o meu ser; não viverei mais a própria obra, pois é por ela que ele vive
não ser por ti”, pode nos remeter a um até hoje entre nós.
diálogo profundo entre Rousseau e sua
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Tradução de Lourdes Santos Machado. Introduções e notas de Paul Arbousse-Bastide e Lourival Gomes Machado.
S. Paulo: Nova Cultural, 1999b. (Coleção Os Pensadores; volume II)
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VEDRINI, Mireille. Les jardins secrets de Jean-Jacques Rousseau, préface de Bernard Gagnebin Chambery: Agraf, 1989.
Recebido: 04/06/2020
Aprovado: 01/01/2021
Publicado: 31/01/2021
Revista de Filosofia Moderna e Contemporânea, Brasília, v.8, n.3, dez. 2020, p. 225-245 245
ISSN: 2317-9570
DOI: https://doi.org/10.26512/rfmc.v8i3.31233
Adilson Feiler*
Abstract: The various memory techniques have privileged the constitution of an ins-
titutional apparatus. The Nietzschean project of overvaluing values imposed itself
against these dispositions of memory, therefore, it operates in an inverse movement,
by promoting techniques that privilege the dissolution of memory in forgetfullness. In
order to weaken the institutional moral apparatus and strengthen the project of values
that privilege life and its soul dispositions. However, in this Nietzschean project there
is an aporia: that of remaining in the sphere of the affirmation of the technique. If, on
the one hand, Nietzsche questions all technical mechanisms, namely those related to
educational establishments on the other, he does not go beyond this sphere, says the
technique through the mechanisms of forgetfulness, when questioning the techniques of
memory. To what extent do Nietzsche’s writings inspire fruitful reflection to think about
technique and its application to memory?
Keywords: Nietzsche. Technique. Memory. Forgetfulness. Culture
* Professor do Programa Pós-graduação em Filosofia da Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos). Doutor em Filosofia
pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS). E-mail: afeiler@unisinos.br. ORCID: https://orcid.org/0000-
0001-7352-927X
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NIETZSCHE: DA TÉCNICA DA MEMÓRIA À TÉCNICA DO ESQUECIMENTO?
Por mais que Nietzsche se oponha às futuro que demanda tempo para a sua
técnicas de memória, e possível tam- maturação, somos levados, além disso,
bém considera-lo como propulsor das a concepção de que a cultura não pode
mesmas. Esta ênfase na importância da se ater a produção de artefatos especí-
existência da memória Nietzsche apre- ficos que atendam às demandas desen-
senta em um dos aspectos que mais ele freadas da economia política. Outros-
e lembrado, a sua estilística. O estilo sim, a cultura não pode pactuar da ten-
de escrita de Nietzsche faz dele defen- dência massificadora que leva a ampliar
sor da importância de se reter na me- ao máximo os seus círculos. Diante dos
mória informações, fatos, ensinamen- desafios que nos colocamos para pensar
tos. Paradoxalmente o filósofo alemão a relação entre técnica e cultura em seus
atua numa via de mão dupla no tocante diversos mecanismos, como são aqueles
às técnicas de memória: por um lado, da memória e do esquecimento, fare-
ataca-as como técnicas que impossibi- mos um percurso em três momentos.
litam a descarga daquelas forças que No primeiro momento aprofundamos
necessitam ser extravasadas; por outro, as implicações da cultura, pelo cultivo
as defende como subsídios importantes demorado de si mesmo, frente às de-
para que a memória retenha todo esse mandas apressadas de uma tendência
lastro de experiências que marcam as movida pela técnica, ao qual intitula-
diferentes nuances do viver. A técnica mos “Da pressa da técnica ao demo-
poderia ser considerada como uma fer- rado cultivo da cultura em instantes de
ramenta para o desenvolvimento do gê- plenitude.” No passo seguinte, consi-
nio, daqueles espécimes seletos da cul- deramos as possíveis relações entre as
tura, aberta a totalidade para um apro- especialidades promovidas pela tecno-
fundamento maduro de si, em detri- logia e seu afã de atender às demandas
mento de uma técnica que promove o utilitaristas de um mercado competi-
desenvolvimento da massa, devotada a tivo e a capacidade de amplitude que
especialidade superficial e apressada? exige o estabelecimento da cultura; a
Em que medida a filosofia de Nietzsche este intitulamos “Os desafios de se pen-
pode ser considerada um aporte ao de- sar uma técnica que ultrapasse os li-
senvolvimento da técnica que perpassa mites de sua especificidade para a am-
diversas instâncias da cultura, como e plidão que demanda a cultura.” Final-
o caso da memória, mesmo que na con- mente, adentramos no maior de todos
tramão da técnica que se depreende dos os desafios a que nos propomos neste
estabelecimentos de ensino? trabalho: o de manter o compromisso
Ao pensarmos, a partir das reflexões com a técnica, como um dos meios de
nietzschianas, uma técnica que favo- favorecimento da cultura, para além da
reça a cultura, concebida enquanto um tendência massificadora, ao qual intitu-
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NIETZSCHE: DA TÉCNICA DA MEMÓRIA À TÉCNICA DO ESQUECIMENTO?
nossas atividades na pressa a tendên- mas e palavras, e que por mais belas e
cia é a de que os produtos resultantes esplêndidas que sejam, se não forem re-
sejam marcados por imperfeições e li- pensadas e ruminadas, acabam-se per-
mites. A tendência automatizadora que didas. Ou seja, retomar esta memó-
se depreende dos mecanismos da téc- ria criticamente, de modo que se possa
nica ao reduzir o tempo na realização ponderar o que dela é possível retomar
dos seus vários produtos leva a que es- a fim de que seja benéfica para a vida.
tes sejam marcados pelo vazio forma- Petar Ramanadovic possui uma reflexão
lista. Como podemos pensar em vazio bastante elucidativa a respeito de como
formalista aplicado a reflexão humana? se pode aproveitar, de acordo com Ni-
O hermetismo que se depreende deste etzsche, a memória passada para a vida
formalismo não dá conta das diferentes presente.
nuances que são próprias da humani-
dade. Portanto, consiste numa tarefa
que só o cultivo demorado e atento se- Como um antídoto para este
ria capaz de adentrar os seus interstí- predicamento ele sugere um
cios. O imediatismo se apoia numa téc- discurso crítico sobre o passado
nica de memória1 que torna a realidade que seria atento para as neces-
como imagem fotográfica, de modo a sidades do presente e apto para
em qualquer momento reconhecê-la e distinguir entre o que no pas-
reproduzi-la em sua integridade mne- sado é vantajoso e o que é des-
mónica, sem, contudo, repensar esta re- vantajoso para a vida. Assim
alidade, compreendendo-a como reali- esquecimento ‘ativo’ é um re-
dade viva, dinâmica e orgânica. Pelo lembrar seletivo, o reconheci-
contrário, quando demandamos tempo mento de que nem todo o pas-
para pensarmos uma realidade mnemó- sado é forma de conhecimento,
nica, há o cuidado de reproduzi-la com e nem toda a experiência é be-
discernimento, o que leva a não tomá- néfica para o vida presente e fu-
la em uma petricidade imutável, mas tura. Esquecimento ativo é en-
compreendendo-a como realidade or- tão parte de uma tentativa mais
gânica, em movimento. No dizer de Cí- geral para racionalizar a relação
cero, a memória é o repositório de todas para o passado e render cons-
as coisas2 , num orador é a guardiã de te- ciência – de modo a superar –
todos os eventos assombrosos
1 A “técnica de memória” ou “arte de memória” foi criada pelo poeta grego Simônides, baseada na técnica de apontar determina-
dos lugares e constituir pinturas mentais de objetos pertencentes a estes lugares, associando assim os lugares aos objetos por estes
ocupados. Esta técnica, se desenvolveu na Idade Média e na Renascença, com seus expoentes principais Tomás de Aquino e Giordano
Bruno. Cf. YATES, 2013, p. 17-18.
2 Cf. CÍCERO, Livro I, n. 18.
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NIETZSCHE: DA TÉCNICA DA MEMÓRIA À TÉCNICA DO ESQUECIMENTO?
embora ele às vezes se refira aos proble- pria da diversidade. Já que a não es-
mas enfrentados pelos indivíduos para pecialidade é uma das características
ilustrar os problemas enfrentados pelas próprias do humano, neste sentido, a
nações” (TURNER, 2018, p. 49). própria compreensão daquilo que o ser
Destas breves considerações, pude- humano é, bem como daquilo que ele se
mos avaliar as inúmeras vantagens que torna envolve uma diversidade de pers-
temos em termos de humanidade ao pectivas técnicas. Richard Schacht, a
aplicarmos o devido tempo aos meca- este respeito, sublinha o fato de que a
nismos da técnica, de modo que esta reinterpretação de tudo aquilo que diz
possa estar afinada à humanidade em respeito a vida humana envolve uma
sua realidade orgânica. Contudo, além gama diversa de materiais técnicos que
do tempo, um outro aliado forte da téc- Nietzsche entende como incremento da
nica em seu aporte humanista é a sua vida humana. “Ele está, ao mesmo
dimensão de totalidade, para tanto, é tempo, desenvolvendo e empregando
preciso vencer um novo obstáculo: o da as várias perspectivas e técnicas que lhe
tendência especializante dos mecanis- parecem relevantes para a compreensão
mos da técnica. do que passamos a ser e do que temos
em nós para nos tornarmos” (SCHA-
CHT, 2012, p. 102). Para uma compre-
ensão do que corresponde ao humano,
2. Os desafios de se pensar uma téc- faz-se necessário, pelos diversos meca-
nica que ultrapasse os limites de sua nismos e perspectivas técnicas, dar-se
especialidade para a amplidão que de- conta de tudo o que se impõe como obs-
manda a cultura táculo, como é o caso da moral, para
assim caminhar em direção a sua supe-
A especialidade é uma das marcas pró- ração.
prias de uma cultura dominada pela Preocupado com as dimensões que os
técnica. Longe de se atribuir um juízo efeitos da moral se fazem sentir sobre
moral à especialidade em si, o que se a cultura, Nietzsche percebe a necessi-
pretende é mostrar os limites de uma dade do emprego de um método que dê
cultura dominada unicamente pelo es- conta das diferentes formas que a mo-
pecialista. É próprio do humano a ral vai assumindo. Para tanto, a eficácia
marca da diversidade, que se expressa deste método deve residir em sua capa-
em seus vários domínios; neste sentido, cidade de profundida psicológica; é no
pensar em apenas um aspecto desta que, inclusive, Nietzsche se distingue,
imensa plêiade de caracteres e tendên- no dizer de um dos maiores pesquisa-
cias seria empobrecer a própria reali- dores de Nietzsche como Eugen Fink.
dade do humano, impedindo assim que Para este último, “(...) as realizações
esta se expresse em uma riqueza pró-
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psicológicas de Nietzsche são extraor- tos morais, para tanto, se faz necessário
dinárias: ele abriu nossos olhos para as traçar um caminho que abarque hori-
ambiguidades, os significados escondi- zontes mais amplos, de onde se possa
dos de alguma expressão espiritual e enxergar mais profundamente.
para outras ambiguidades incontáveis. Nietzsche vê na especialização um
Sua técnica e análise psicológica é alta- caminho que distancia da verdadeira
mente sofisticada” (FINK, 2003, p. 03). cultura, como acompanhamos a partir
A sofisticação desta técnica psicológica de suas próprias reflexões: “(...) um
de Nietzsche está em enxergar além dos erudito, exclusivamente especializado
pressupostos estabelecidos pela moral se parece com um operário de fábrica
que os mantém escondidos em espaços que durante toda sua vida , não faz
altamente reservados, e, por isso, ina- senão fabricar certo parafuso ou certo
cessíveis. Por essa razão, sua genealogia cabo para uma ferramenta ou máquinas
não pode consistir num procedimento determinadas (...) esta acanhada espe-
que se estabeleça num recôndido es- cialização de nossos eruditos e seu dis-
pecífico da cultura, mas que tenha o tanciamento cada vez maior da verda-
alcançe necessário para atingir os seus deira cultura” (NIETZSCHE, KSA, So-
diferentes espaços e formas – “(...) ne- bre o futuro de nossos estabelecimen-
cessitamos de uma crítica dos valores tos de ensino, Primeira Conferência,
morais, o próprio valor desses valores p. 670). Tal como numa fábrica em
deverá ser colocado em questão – para que cada funcionário deve dominar um
isto é necessário um conhecimento das âmbito específico no trabalho, também
condições e circunstâncias nas quais no âmbito acadêmico acaba se reprodu-
nasceram, sob as quais se desenvolve- zindo a mesma realidade através de um
ram e se modificaram.” (NIETZSCHE, erudito especializado. Sua erudição se
KSA, Para a genealogia da moral, Pró- torna comprometida, já que o erudito é
logo, 6, p.?). O método de investigação aquele que, por excelência, é capaz de
moral utilizado por Nietzsche, possui ter o devido distanciamento crítico da
um alcance muito maior do que aque- realidade, para sobre esta, poder tecer
les de seus predecessores, como recorda uma reflexão. “O sábio especializado
Matthew Kelley: “Nietzsche afirma que da universidade passara a uma condi-
os métodos tradicionais de investigar a ção análoga à do operário de fábrica. A
história dos conceitos morais são equi- imposição da cultura de Estado o con-
vocados e, na genealogia, ele argumenta finara numa única disciplina. A repeti-
que seu método genealógico aprimora o ção das mesmas tarefas o mantém afas-
método de seus antecessores” (KELLEY, tado dos problemas gerais da cultura”
2019, p. 08). O filósofo alemão busca (FRAGOSO, 1974, p. 286). Com este
atingir a raiz de onde brotam os concei- devido distanciamento, o erudito não
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terá como foco nenhum ponto especí- dor impossibilita desviar o olhar sobre
fico desta realidade, mas a realidade aquela particularidade lesada, atuando
mesma compreendida em seu todo, e assim como uma espécie de narcótico
na sua natureza de totalidade será ca- que se alheia a respeito da realidade
paz de perceber as relações que perfaz mais ampla. Essa técnica mnemônica
o conjunto múltiplo de partes em sua do emprego da dor é, inclusive, um ex-
disposição orgânica. pediente já bastante antigo, existente
Na medida em que se foca a reali- mesmo antes mesmo de que fossem uti-
dade em seu todo, tanto mais se terá lizadas para fins de punição. Maude-
condições de compreendê-la em maior marie Clark, por essa razão, recorda
profundidade. Assim, também, na me- que: “Nietzsche discute tais procedi-
dida em que as técnicas de memória mentos anteriormente no mesmo ensaio
deixam de se prenderem em seus as- (GM II: 3), e então estaria fazendo a ale-
pectos específicos da realidade para gação obviamente verdadeira de que as
fazer destes objetos mnemônicos uma técnicas para infligir sofrimento exis-
forma de compreensão da realidade to- tiam antes de seu emprego em puni-
tal, tanto mais a memória irá reter o ção” (CLARK, 1994, nota 14). Mais do
que há de mais essencial e universal, que punir, tais técnicas existiam sim-
não se perdendo em aspectos que fa- plesmente para fazer com que se so-
vorecem mais a uma disposição moral fresse, e desse sofrimento se extraísse
que a uma dimensão que açambarque uma memória. Desse modo, como ana-
um largo lastro histórico. Constitui lisa Michael Cowan, Nietzsche con-
este último, portanto, um contra mo- cebe o conjunto de práticas ascéticas
vimento àquele que tende a fixar-se em “(...) como técnicas de disciplina cor-
aspectos específicos, a fim de provocar poral suplementares designadas para
medo e impacto àqueles que os expe- compensar as incapacidades inerentes
rimentem, e assim, impedindo-os de do sujeito para inibir os impulsos do
abrir-se a dimensão de plenitude. Ni- corpo” (COWAN, 2005, p. 59). A disci-
etzsche constata em práticas medievais plina corporal atua como narcótico ini-
o quanto a dor exerce influência no sen- bitório, como técnica de memória inibi-
tido de desvirtuar a atenção de questões tória dos impulsos. “No entanto, é difí-
mais universais, para prender-se a par- cil perceber por que Nietzsche equipa-
ticularidades, como Stephen Mulhall se raria essas técnicas de violência a ‘uma
posiciona a esse respeito. Para ele “(...) sequência estrita de procedimentos’ ou
a contra-conquista da memória é esta- por que consideraria o procedimento
belecida e mantida pela imposição da o ‘elemento estável’ e o objetivo o as-
dor empregada como técnica mnemô- pecto ‘fluido’ da punição quando hou-
nica” (MULHALL, 2011, p. 257). A ver menos tantos procedimentos dife-
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em instâncias que não rendem frutos, de acordo com Nietzsche, seria o cami-
com uma consequente decadência da nho em direção aos mais altos cumes
cultura. Desse modo, a técnica pode da cultura: o do cultivo de si mesmo.
ser uma ferramenta importante na me- Ora, o que comumente se assiste é uma
dida em que, para além de constituir abdicação de si mesmo para cultuar os
um movimento massificador, esteja a astros da moda massificamente fetichi-
serviço do cultivo de si. zados. Ora, uma “(...) cultura não será
universalmente distribuída. Na hipó-
tese contrária - a da cultura de massa -
a barbárie seria completa” (FRAGOSO,
3. A técnica como ferramenta para o 1974, p. 286). O esquecimento do indi-
cultivo de si pela desconstrução das víduo em prol da massa impede o nas-
técnicas de memória massificantes cimento do gênio, daquele que é capaz
de reivindicar a cultura, de apostar no
O desenvolvimento da técnica para a novo, de romper estruturas fossiliza-
promoção de uma cultura de massa é das que se pretendem eternizar e assim
um outro desafio que se impõe. Como impedir o florescimento da vida, que a
fazer com que a técnica não se renda à todo o instante quer se renovar. Não é
cultura de massificação, típica de um um instante que muda conforme o de-
contexto marcado pela falta de discer- sejo da massa, mas um instante que se
nimento, indispensável para a promo- plenifica pelos mais altos pontos culmi-
ção da cultura. Os artefatos promovi- nantes de potência que o gênio é capaz
dos pela técnica, além de seguirem a ló- de atingir. Em que medida a tecnologia
gica de uma cultura da pressa e do ime- pode contribuir para o melhoramento
diatismo, da especialidade em detri- do humano, como é o caso da biotec-
mento da totalidade, se rende ao culto nologia, e, com isso, da cultura? Jelson
de um modismo massificante: como é, Roberto de Oliveira, a este respeito re-
por exemplo, o consumo de modernos corda que
aparelhos androides. Mais do que ver
nestes artefatos um meio de satisfação
de necessidades utilitárias, o que den- Todos os processos de melhora-
tro da concepção nietzschiana já cons- mento projetados pela via bio-
titui uma perda de rumo em direção à tecnológica, além disso, evocam
elevação da cultura, é ainda pior, uma o grave risco da padronização,
busca de reprodução de modelos repe- fazendo com que a guerra con-
tidos pela massa, por considerar isto tra a animalidade seja, por isso,
como ingresso nos mais altos escalões uma guerra contra o “pathos de
da sociedade. Quanto mais assim se distância” (GM I, 2), contra as
exercita, mais se distancia daquele que, forças que tornavam o homem
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petuar os desejos das massas sob o slo- nalmente identificará coisas diferentes,
gan da garantia da felicidade. A unifi- eternamente ela reduzirá a diversidade
cação da compreensão do humano, em dos motivos e das circunstâncias para
torno aos mecanismos promovidos pela apresentar uma imagem monumental”
tecnologia, se defronta com a defesa de (NIETZSCHE, I, Sobre a utilidade da
Nietzsche de que a verdade é múltipla, história para a vida, 2, p. ?). Esta ima-
uma multiplicidade que se expressa, gem monumental da memória solapa
não na unificação da vontade, mas na todas as diferenças para reduzir tudo a
vontade que se coloca contra a vontade. uma realidade única, monolítica, por-
Desse modo, no dizer de Frederick Co- tanto, são técnicas de memória miméti-
pleston, em sua interpretação de Ni- cas, “(...) com isso: segmentos inteiros
etzsche, o que nós necessitamos unifi- desta passado são esquecidos, despre-
car são as relações entre uma ou mais zados e escoam num fluxo cinzento e
forças – “A pluralidade de forças, unida uniforme, de onde somente alguns fa-
por um processo nutritivo comum, nós tos isolados mascarados emergem como
chamamos vida” (COPLSTON, 1963, p. ilhas isoladas” (NIETZSCHE, I, Sobre a
411). Em uma carta a Malvida von Mey- utilidade da história para a vida, 2, p.
senbug de 02 de janeiro de 1875, Ni- ?). Diante de técnicas de memória sola-
etzsche afirma “(...) que mesmo o ho- padoras das diferenças que, esquecidas
mem não quer mudar nada – é claro no passado, fazem com que este res-
a imperfeição da tecnologia” (NIETZS- sinta e consista numa força com dire-
CHE, KGB, 1875, V, 414, p. 07). A tec- ção invertida, ao invés de crescimento,
nologia, paradoxalmente, acaba sendo degenerescência. Sobre esta última, Ni-
mais um fator de comodismo, de modo etzsche se insurge contra, porque “(...)
a não se ousar coisas novas. Neste sen- ela sempre subestima o que está em ges-
tido, as técnicas de memória visam per- tação (...) ela impede o indivíduo de op-
petuar a memória da massa, aquela me- tar resolutamente pelo novo, assim ela
mória consignada em imagens na qual paralisa o homem de ação” (NIETZS-
todos estão obrigados a não esquecer, e CHE, I, Sobre a utilidade da história
a não esquecer em rebanho, de modo a para a vida, 3, p. ?). Pela direção da
estabelecer um controle para jamais ou- força que cria, pelo contrário, são ativa-
sar pensar distintamente. Em que todos das técnicas de memória que colhem no
passam a reproduzir fidedignamente os terreno do passado toda sorte de primí-
diversos eventos históricos no sentido cias, sempre novas e diversas.
daquilo que Nietzsche recorda em sua Contudo, as técnicas de memória não
descrição sobre a história monumen- promovem aquela memória genuína do
tal, “(...) fidelidade absoluta: eterna- indivíduo, aquela memória capaz de
mente ela aproximará, generalizará e fi- reinventar, como seria, por exemplo,
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a arte, a escrita, a música. Pelo con- têm veiculado os seus mais variados ar-
trário, se memorizam artefatos da téc- tefatos. Com isso, Nietzsche percebe as
nica, tudo aquilo que pode promover consequências que se fazem sentir so-
massificação, de onde emergem formas bre a reflexão filosófica, já que toda a
de controle institucional, como é o caso boa e madura reflexão demanda tempo
do Estado na instituição civil e a Igreja para a sua frutificação. Assim, além da
na instituição religiosa. Para escapar pressa, veiculada à técnica, também a
destes mecanismos só fazendo com que especialidade consiste num dos grandes
os artefatos tecnológicos estejam à ser- desafios a serem superados, o que re-
viço da emancipação do indivíduo, de fletimos na sequência de nosso traba-
modo que estes promovam, pelo al- lho. A especialidade, que acompanha
cance dos mais altos cumes de potência, a técnica, consiste em obstáculo para
uma cultura que se renova a cada ins- uma visão mais universal, da qual de-
tante e neste se plenifique pelos frutos manda a reflexão humana. A pressa e a
que marcam o paladar e a memória dos especialização trazem igualmente uma
que dele usufruem. terceira característica, própria da téc-
nica, a massificação, o que refletimos
na terceira e última parte de nossa pes-
quisa. A massificação é uma tendência
Considerações finais levada pelo gosto da moda, própria da-
queles que se aventuram a ser consumi-
Nosso percurso, pelas considerações ni- dores da técnica. Contudo, a sua super-
etzschianas em torno à técnica e sua ficialidade não permite uma continui-
aplicação à consciência, nos permitiu dade e aprofundamento quanto a refle-
avaliar e atestar a extemporaneidade do xão humana filosófica. Tanto a pressa
filósofo. Como podemos perceber pela como a especialidade e a massificação,
grande influencia da técnica no con- trazem influências para as técnicas da
texto hodierno, uma influência que se memória, tornando-a obstáculo para a
apresenta mesclada pela sua aberta re- superação da moral, veiculada àquelas
cepção e resistência. No decorrer dos imagens que engessam em forma de má
capítulos recolhemos da própria letra consciência. A pressa é uma técnica li-
de Nietzsche três aspectos que põem em gada à memória que se prende a dimen-
evidência a medida em que o filósofo são hermética da imagem e não a apro-
alemão concebe como conveniente o pa- funda, de modo a compreendê-la como
pel da técnica nos diferentes âmbitos da realidade viva. A especialidade faz com
vida humana. que a memória se prenda a detalhes e
Em primeiro lugar, é uma técnica que assim perca de vista a dimensão mais
não se rende aos mecanismos imediatis- universal, própria da reflexão filosófica.
tas, responsáveis pela pressa com que
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Recebido: 29/04/2020
Aprovado: 08/10/2020
Publicado: 31/01/2021
Revista de Filosofia Moderna e Contemporânea, Brasília, v.8, n.3, dez. 2020, p. 247-263 263
ISSN: 2317-9570
DOI: https://doi.org/10.26512/rfmc.v8i3.31766
Abstract: This article analyzed how Christianity produced a subjectivity through which
the subject renounced himself. We defend the hypothesis that this mode of Christian
subjectivation was only made possible due to two characteristics present in the relati-
onship between subject and truth in early Christianity: the obligatoriness to confess a
truth about oneself and the imperfection that characterizes human nature in Christian
anthropology. In other words, the self-truth confession has become a kind of cure for
sins arising from the imperfect nature of men. In this double movement which began
with a hermeneutics of the self and ended with the verbalization of the truth found
within one’s own self, the subject became entangled in a mesh of power constituted by
confessed truths that led him to renounce himself.
Keywords: Christianity. Self-renunciation. Truth. Subject. Confession.
* Professor da Secretaria de Educação do Estado do Pará (SEDUC/PA). Mestre em filosofia pela Universidade Federal do Pará
(UFPA). E-mail: epistemephilo@gmail.com. ORCID:
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RAFAEL SIQUEIRA MONTEIRO
1 Referências sugestivas ao ocidente oposto a um Oriente nietzschiano desde o prefácio à Folie et déraison (Loucura e desrazão) em
1961, diálogo com Georges Bataille, Maurice Blanchot ou Pierre Klossowski ao longo dos anos 1960, dossiês históricos da confissão
(1975) e da pastoral cristã (1978) abertos pelos cursos no Collège de France e, sobretudo, o esboço várias vezes retomado do empre-
endimento, entre 1978 e 1984, de um grande livro sobre Confissões da carne: Foucault não cessou de se interessar pelo cristianismo
(CHEVALIER, 2012, p. 45 ).
2 Começa-se, naturalmente, com uma sangria, logo seguida por uma purgação; destina-se uma semana aos banhos, à razão de duas
horas por dia, aproximadamente; purga-se outra vez e para encerrar esta primeira fase do tratamento impõe-se uma boa e completa
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CRISTIANISMO E A RENÚNCIA DE SI NO ÚLTIMO FOUCAULT
como parte do tratamento, tratadas em pelo pecado, mas que deseja ardente-
sua História da Loucura2 , até a obrigato- mente a salvação.
riedade da verdade de si, presente em Isso nos faz pensar que a abordagem
seus escritos da década de 1980. É jus- do cristianismo realizada por Foucault
tamente nessas abordagens realizadas esteja no interior de um projeto maior
em múltiplas perspectivas que a confis- da história do sujeito ocidental3 empre-
são aparece como central em suas pes- endida por ele, sobretudo na década de
quisas sobre o cristianismo, incidindo 1980. Pois, como o próprio Foucault
profundamente sobre a relação sujeito afirmou, algumas vezes, “busquei an-
e verdade no ocidente. Nesse sentido, tes produzir uma história dos diferen-
Senellart (2012, p. 73) afirma que: tes modos de subjetivação do ser hu-
mano em nossa cultura [...]. Assim, não
é o poder, mas o sujeito, que constitui o
Se os ângulos de abordagem va- tema geral de minha pesquisa ” (FOU-
riam, a análise foucaultiana, ao CAULT, 1994, p. 223, tradução nossa).
contrário, segue um fio condu- Assim, o cristianismo foi abordado
tor muito constante, através da por Foucault no intuito de descobrir o
problemática geral da confis- porquê do homem ocidental ser aquilo
são, ou seja, da relação especí- que ele é. Nesse processo histórico da
fica, na cultura cristã, que liga construção do sujeito ocidental, o cris-
o sujeito a sua própria verdade, tianismo foi um elemento fundamental
em vista de assegurar sua salva- no sentido de que, por meio de técnicas
ção. de si, ele infligiu a seus adeptos a obri-
gatoriedade da verdade de si, isto é, a
obrigação de confessar quer através do
O excerto acima nos mostra que
corpo, quer através da voz. Tal obriga-
quando tratamos do conceito “con-
toriedade culminou na constituição de
fissão” no cristianismo, a partir da
um sujeito que renunciou a si mesmo,
ótica do último Foucault, concomitan-
projetando-se, consequentemente, no
temente tratamos da questão da ver-
interior de uma malha de poder cujos
dade e da questão do sujeito. Porque
fios são constituídos de verdades con-
o que se confessa na confissão cristã é
fessadas.
uma verdade de si e quem confessa é
Logo, o interesse de Foucault pelo
um sujeito marcado ontologicamente
confissão. Podem começar então as fricções com mercúrio, toda a eficácia de que dispõem; prolongam-se por um mês, em cujo tér-
mino duas purgações e uma sangria devem expulsar os últimos humores morbíficos. Concedem-se quinze dias de convalescença.
Depois, após ter acertado as contas definitivamente com Deus, o paciente é declarado curado e mandado embora (FOUCAULT, 2019,
p.86).
3 Sobre a tese de que o interesse de Foucault pelo cristianismo esteja inserido na genealogia do sujeito ocidental, ver ALVES (2016),
MANICKI (2012), SENELLAR (2012).
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RAFAEL SIQUEIRA MONTEIRO
4 Para la historia de la subjetividad en Occidente, es fundamental la historia del cristianismo. En el cristianismo se da un registro
de la verdad donde se enganchan dos procesos: la iniciación en la verdad y el ejercicio probatorio de la verdad. Foucault es consciente
del carácter inédito de su trabajo cuando emprende la historia del “dime quién eres”. No se trata sólo de recorrer el camino del sujeto
hacia la verdad, sino de cómo éste queda obligado a decir quién es, dentro de una trama de poderes, pues, si no, nunca recorrerá este
camino: “el ser que es verdadero no se manifestará en ti – sintetiza así, Foucault, la voluntad de verdad cristiana en Du gouvernement
des vivants (1979-1980) – más que si tú manifiestas la verdad que eres” (SAUQUILLO, 2017, p. 386).
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CRISTIANISMO E A RENÚNCIA DE SI NO ÚLTIMO FOUCAULT
5 A vida dos primeiros mosteiros era orientada por uma regra de vida. Um conjunto de normas que orientava as ações dos monges
em diferentes situações do cotidiano: o trabalho, a oração, a alimentação, a caridade, a convivência entre os monges. Como exemplo
concreto podemos citar no século V a regra de Santo Agostinho e no século VI a famosa regra de São Bento que guia até os dias atuais
a vida dos monges beneditinos.
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CRISTIANISMO E A RENÚNCIA DE SI NO ÚLTIMO FOUCAULT
6 Obligación de manifestar la verdad sobre sí, eso es lo que forma parte del ritual de la penitencia: es la exomológesis, una especie
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RAFAEL SIQUEIRA MONTEIRO
de dramatización de sí mismo como pecador que se hace a través de la vestimenta, los ayunos, las pruebas, la exclusión de la co-
munidad, la actitud de suplicante a la puerta de la iglesia, etc.; dramatización de sí, expresión dramática de sí como pecador, por la
cual uno se reconoce a sí mismo como pecador, pero sin pasar – sin pasar necesariamente, en todo caso, sin pasar primeramente y
fundamentalmente – por el lenguaje. Es la exomológesis (FOUCAULT, 2017, p. 121).
7 Si l’exomologèse est si importante dans la pénitence, si elle fait corps avec celle-ci dans des rites publics et ostentatoires, c’est que
le penitent doit témoigner comme le martyre: exprimer son repentir, montrer la force que lui donne sa foi et rendre manifeste que ce
corps qu’il humilie n’est que poussière et mort, et que la vraie vie est ailleur (FOUCAULT, 2018a, p. 104).
8 “(...) le penitente a moins à “dire vrai” sur ce qu’il a fait qu’à “faire vrai” en manifestant ce qu’il est” (FOUCAULT, 2018a, p. 98).
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CRISTIANISMO E A RENÚNCIA DE SI NO ÚLTIMO FOUCAULT
meiro morrer para este mundo tãos eram perseguidos e muitas vezes,
e depois provar, provar publi- para se salvar, mentiam dizendo que
camente perante esse mesmo não eram cristãos ou simplesmente a
mundo, que se está pronto condição para não morrerem era negar
para sacrificá-lo, que se está seu mestre Jesus.
pronto para sacrificar-se neste Essas dificuldades enfrentadas pelos
mundo, a fim de chegar àquele cristãos geraram um grave problema
outro mundo. Ou seja, tem- nas primeiras comunidades. O que fa-
se aí uma veridicção sobre si zer com esses que negaram o nome de
mesmo, um ato ritual por meio Jesus? As práticas penitenciais respon-
do qual se mostra a verdade de diam a esse problema. A solução en-
si mesmo, mas em relação com contrada foi a penitência enquanto exi-
quê, em função de quê, em li- gência de uma verdade de si e como
gação com quê? Com a mortifi- punição para o crime cometido. A ver-
cação, ou seja, com o autosacri- dade exigida do penitente e a punição
fício. Só produz a verdade so- a ele imposta eram a exigência mínima
bre si mesmo quem é capaz de para ele voltar à Igreja dos mártires, da-
sacrificar-se. O sacrifício pela queles que não titubearam diante da
verdade sobre si mesmo, ou a fé, pois “a obrigação do penitente de se
verdade sobre si mesmo para manifestar, na verdade de sua condi-
o autosacrifício é o que está ção de pecador e na autenticidade de
no cerne do rito da exomoló- sua penitência, baseia-se muito mais
gesis penitencial (FOUCAULT, profundamente em sua relação com o
2018b, p.97). martírio”9 (FOUCAULT, 2018a, p.103,
tradução nossa).
Como se vê, nesses três primeiros
O excerto acima revela o martírio séculos a confissão como verbalização
como o modelo que inspira as práti- não aparece de forma significativa, em-
cas penitenciais cristãs. O martírio en- bora Foucault a mencione em alguns
quanto autosacrifício, renúncia de si e momentos dos ritos batismais e peni-
confissão eloquente do corpo. Para se tenciais da Igreja primitiva no decor-
entender o porquê desse vínculo tão rer de seus cursos de 1980. Todavia,
estreito entre martírio e veridicção é o corpo do pecador confessa a verdade
necessário levar em conta o contexto de si através de uma liturgia do sofri-
histórico dessas práticas penitenciais mento e da dramaticidade do corpo hu-
do século I ao III. Os primeiros cris-
9 l’obligation pour le penitent de se manifester, dans la vérité de son état de pécheur et dans l’authenticité de sa pénitence, se fonde
beaucoup plus profondément sur leur apport au martyre (FOUCAULT, 2018a, p.103).
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RAFAEL SIQUEIRA MONTEIRO
milhado, eis a grande marca desses três de uma relação consigo mesmo
primeiros séculos. –, mas também uma relação
com o outro, uma relação com o
mestre (FOUCAULT, 2018b, p.
A confissão como exagóreusis no cris- 109).
tianismo primitivo do IV ao V século
Essa necessidade do outro que es-
Na aula de 6 de maio de 1981 do curso cuta e orienta e a exigência da verba-
Malfazer, dizer verdadeiro, sobretudo lização da verdade de si foram as duas
a partir dos textos de Cassiano e do principais características da exagóreu-
Apophtegmata Patrum, Foucault ana- sis. Nesse sentido, Foucault, na aula
lisou como a obrigatoriedade da ver- de 13 de maio de 1981, definiu o con-
dade de si se desenvolveu nas insti- ceito exagóreusis como a “confissão per-
tuições monásticas nos séculos IV e V manente sobre si mesmo” (FOUCAULT,
em continuidade com as práticas peni- 2018b, p. 141). A vida do monge se
tenciais, mas trazendo uma novidade tornou a confissão permanente de seus
fundamental na relação que o sujeito pensamentos e desejos a um outro indi-
mantém com a verdade no cristianismo víduo que, revestido de autoridade, re-
primitivo. Não bastava somente produ- cebeu o poder de governá-lo, não tanto
zir uma verdade de si e confessá-la em pelo conteúdo dessa verdade, mas pelo
gestos corporais dramáticos, como ocor- ato em si de confessar.
ria nos três primeiros séculos, mas, sim, Não era o conteúdo da verdade
verbalizá-la a um outro encarregado de que interessava, mas o ato em si de
ouvir e orientar. confessar-se que trazia consigo um
modo existência, que reconhecia a pre-
O monasticismo – justamente sença de uma autoridade a quem se
por causa da situação na qual devia, obrigatoriamente, produzir uma
estava e da institucionalização verdade de si mesmo como gesto de ex-
do ascetismo individual – con- trema obediência e submissão. Nesse
siderará que essa purificação sentido, Chevallier (2011, p. 135) dirá
por mortificação e autoconhe- que:
cimento só poderá ser realizada
por meio de certa relação. Não O que une, na confissão religi-
simplesmente relação de si con- osa, não é, portanto, o enunci-
sigo – não simplesmente uma ado, mas unicamente a enun-
relação de conhecimento con- ciação, não é a verdade dentro
sigo ou uma relação de asce- do seu conteúdo, mas unica-
tismo e mortificação por meio mente o ato de produzir a ver-
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10 Ce qui lie, dans l’aveux religieux, n’est donc pas l’énoncé mais la seule énonciation ; non pas la vérité dans son contenu, mais le
seul acte de produire la vérité devant autrui. On peut même se demander si l’acte de verité ne s’efface pas finalement au profit d’un
simples acte énonciatif qui est d’abord reconnaissance d’une autorité, obéissance et soumission (CHEVALLIER, 2011, p. 135).
11 Dans la forme générale de l’obéissance et de la renonciation à la volonté propre, la direction a pour instrument majeur la prati-
que permanente de “l’examen-aveux”, ce que, dans le christianisme oriental, on appelle l’exagoreusis: “Chacun des subordonnés doit
d’une part éviter de tenir caché dans son for intérieur aucun mouvement de son âme; d’outre part se garder de lâcher une parole
quelconque sans controle et découvrir les secrets du coeur à ceux des frères qui ont reçu la mission de soigner les malades avec
sympathie et compréhension” (FOUCAULT, 2018a, p. 133).
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12 Na aula de 6 de maio de 1981, Foucault deixa claro que a relação cristianismo e filosofia se dá na superfície, mas que difere em
sua essência. Isto é, embora o cristianismo herde algumas práticas da filosofia antiga e as integre em seu universo religioso, ele as
modifica inteiramente em seu significado originário.
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15 Nesse viés, Foucault, na aula de 26 de março de 1980 do curso Do governo dos vivos, afirma: Como vocês estão vendo, é sempre
esse problema da perfeição e da necessidade ou, em todo caso, do objetivo que a Igreja cristã se deu contra um certo número de suas
tendências internas ou contra um certo número de suas proximidades, esse esforço que ela fez para distinguir a economia da salvação
da exigência de perfeição (FOUCAULT, 2018c, 265).
16 Para um maior esclarecimento da relação imperfeição e salvação no cristianismo, ver Chevallier (2012).
17 “Aquele que acha a sua vida, a perderá, mas quem perde sua vida por causa de mim, a achará” (Mt, 10, 39).
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18 Na aula de 26 de março de 1980, Foucault explicou o porquê do cuidado em examinar o pensamento em sua atualidade con-
forme podemos observar a seguir: O exame deve centrar-se na atualidade do pensamento e não, retrospectivamente, no que foi feito.
Trata-se de aprender o pensamento no momento em que começa a pensar, de apreender na raiz, quando estamos pensando no que
pensamos. No sentido estrito, o exame é um exame de passagem, um exame de passagem na atualidade e que tem por função o quê?
Exercer uma triagem, exercer [o que, precisamente, era chamado de] discriminatio. Não se trata portanto de medir a posteriori os atos
para saber se são bons ou ruins, mas de aprender os pensamentos no exato momento em que se apresentaram, depois procurar o
mais depressa possível, imediatamente, separar os que podemos acolher em nossa consciência e os que teremos de repelir, expulsar
da nossa consciência (FOUCAULT, 2018c, p. 272).
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cristianismo para procurar a genealo- zer sucumbir em meio aos seus infinitos
gia do sujeito ocidental. Pois, para ele desejos.
a subjetividade do homem ocidental é Teríamos, portanto, diante de nós,
cristã. uma crítica ao cristianismo que talvez
Nessa busca, Foucault constatou a esteja na esteira dos grandes críticos
importância da confissão na subjetiva- da religião em geral e do cristianismo
ção cristã. O ato de confessar-se, mais em particular? Possivelmente não, em-
do que a confissão em si, engendrou um bora concordamos que seja possível re-
poder próprio ao cristianismo, um con- tirar do pensamento de Foucault uma
trole dos indivíduos por meio da ver- crítica ao cristianismo, no sentido de
dade que esses produziam de si mes- que o cristianismo criou um modo de
mos. Um poder que impeliu o sujeito governar pela verdade. Todavia, esta-
cristão a renunciar a si mesmo. Através mos bem distantes de pensadores como
da confissão do corpo que se arrepende Marx, Nietsche e Freud para os quais
e da voz que admite os seus pecados o a religião foi respectivamente ópio, res-
cristianismo governou por meio da ver- sentimento e doença.
dade. Portanto, ao se debruçar sobre o cris-
O cristianismo, então, aparece como tianismo primitivo, Foucault buscou
a tábua de salvação para esse sujeito in- compreender a subjetividade do ho-
clinado ao mal. Deixa-se governar pela mem ocidental. Essa subjetivação cristã
verdade de si; verdade que o identifica que marcou profundamente o homem
essencialmente como pecador e incapaz ocidental possuía dois pilares: a exo-
de ser mestre de si. Por isso, deixa-se mologèse e a exagóreusis. Foi sobre
conduzir por outrem durante toda sua esses dois fundamentos que o cristia-
existência, nunca está pronto para to- nismo interpelou o sujeito a renunciar
mar suas próprias decisões, o mal está a si mesmo.
sempre lhe rodeando e pronto a lhe fa-
Referências
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Filosofias e Métodos Universidade Federal de São João del Rei, São João del Rei, 2016/2, n.17, pp. 76-88. Disponível
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Tradução de Pedro de Souza. In: CANDIOTTO, C.; SOUZA, P. (Orgs). Foucault e o cristianismo. Autêntica: Belo
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Pedro de Souza. In: CANDIOTTO, C.; SOUZA, P. (Orgs). Foucault e o cristianismo. Autêntica: Belo Horizonte,
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Recebido: 25/05/2020
Aprovado: 14/12/2020
Publicado: 31/01/2021
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ISSN: 2317-9570
DOI: https://doi.org/10.26512/rfmc.v8i3.34488
RESENHA
KOOPMAN, Colin. How We Became Our Data: A Genealogy of the
Informational Person. Chicago: University of Chicago Press, 2019.
Em How We Became Our Data: a gene- dutíveis àquelas produzidas pelo con-
alogy of the informational person (2019), trole dos corpos e das populações.
Colin Koopman, professor de filosofia Koopman realiza, em seu livro, dois
da Universidade do Oregon, EUA, apre- grandes movimentos. Em primeiro lu-
senta uma tese ousada acerca do modo gar, dedica-se a definir e demonstrar
como a informação e a política se entre- empiricamente a especificidade do “in-
laçaram ao longo do século XX e seus fopoder”, do seu modo de operação e
impactos nas formas contemporâneas de suas técnicas, e diferenciá-lo do po-
de subjetividade. O século XX teria der disciplinar e do biopoder, formas
conhecido a emergência de um “info- clássicas que influenciam boa parte das
poder”, um poder da informação, dos investigações sobre a relação entre polí-
data, que não pode ser reduzido a ou- tica e informação na atualidade. Em se-
tras formas específicas de poder tais gundo lugar, fornece uma releitura da
como o poder disciplinar e o biopo- história tradicional da ciência e tecno-
der, analisados por Michel Foucault ao logia da informação, sustentando a ne-
longo da década de 1970. A forma de cessidade de recuar a investigação para
poder que corre no interior das tecnolo- o início do século XX, privilegiando o
gias da informação possui mecanismos momento de formulação dessas tecno-
próprios e consequências políticas irre- logias, e não o de sua disseminação, que
* Mestre em filosofia pela Università di Bologna. Atualmente realiza doutorado em filosofia na Universidade Federal de Minas
Gerais (UFMG). E-mail: grazianomazzocchini@gmail.com. ORCID: https://orcid.org/0000-0002-3484-3669.
** Mestre em filosofia pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Atualmente realiza doutorado em filosofia na mesma
instituição. E-mail: rventuriniap@gmail.com. ORCID: https://orcid.org/0000-0001-7364-2483.
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KOOPMAN, COLIN. HOW WE BECAME OUR DATA: A GENEALOGY OF THE INFORMATIONAL PERSON.
CHICAGO: UNIVERSITY OF CHICAGO PRESS, 2019.
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ISSN: 2317-9570
GRAZIANO MAZZOCCHINI; RODOLPHO VENTURINI
ria política crítica” (KOOPMAN, 2019, lítica por si próprias. Aquilo que viria
p.161). Assim, segundo ele: a se tornar o infopoder já estava ins-
crito e estratificado nas camadas das
outras modalidades de poder (KOOP-
meu argumento é o de que com- MAN, 2019, p.163). Uma vez que elas
preender a política que opera se tornaram independentes, sua “teori-
em cada caso específico requer zação se torna uma tarefa urgente para
que a nossa atenção analítica a teoria crítica contemporânea” (KOOP-
seja estendida para além dos MAN, 2019, p.163).
limites do poder soberano, do Para Koopman, na contemporanei-
poder disciplina e do biopoder. dade, o infopoder é aquilo que produz
Minha reivindicação não é a de a informação, e não contrário. A infor-
que o infopoder toma o lugar ou mação, nesse contexto, nunca é neutra
nega esses outros modos de po- na medida em que é sempre já consti-
der – apenas de que ele opera tuída segundo os parâmetros do info-
além dos seus limites (KOOP- poder. De acordo com o esquema de
MAN, 2019, p.163). Koopman, o infopoder está baseado em
técnicas de Formatação (formatting) e
Trata-se, para Koopman, de sustentar operações de Fastening4 . Formatação e
a irredutibilidade do infopoder, mesmo Fastening se referem às técnicas espe-
aceitando que “táticas de informação cíficas do infopoder e ao “modo como
podem ser localizadas no interior das o poder opera por meio dessas técni-
formas anteriores de exercício do po- cas com operações de encapsulamento
der” (KOOPMAN, 2019, p.163)3 . Em e aceleração” das quais as “pessoas in-
um certo momento, essas táticas já ins- formacionais” são os sujeitos e os alvos
critas no interior das outras formas de (KOOPMAN, 2019, p.159). A Forma-
poder podem adquirir importância po- tação é o processo pelo qual a subjeti-
3 Cabe chamar atenção para o fato de que já em Vigiar e Punir, um aspecto absolutamente relevante da normalização e poder disci-
plinar é o de fazer a “individualidade entrar num campo documentário” (FOUCAULT, 1987, p.157). Segundo Foucault, o “exame que
coloca os indivíduos num campo de vigilância situa-os igualmente numa rede de anotações escritas; compromete-os em toda uma
quantidade de documentos que os captam e os fixam. Os procedimentos de exame são acompanhados imediatamente de um sistema
de registro intenso e de acumulação documentária. Um ‘poder de escrita’ é constituído como uma peça essencial nas engrenagens da
disciplina. Em muitos pontos, modela-se pelos métodos tradicionais da documentação administrativa. Mas com técnicas particulares
e inovações importantes” (FOUCAULT, 1987, p.157). Constituem-se, então, o que Foucault chama de “códigos de individualidade
disciplinar que permitem transcrever, homogeneizando-os, os traços individuais estabelecidos pelo exame: código físico de qualifi-
cação, código médico dos sintomas, código escolar ou militar dos comportamentos e dos desempenhos. Esses códigos eram ainda
muito rudimentares, em sua forma qualitativa e quantitativa, mas marcam o momento de uma primeira ‘formalização’ do individual
dentro de relações de poder” (FOUCAULT, 1987, p.158). Ainda, “entre as condições fundamentais de uma boa ‘disciplina’ (...) é
preciso incluir os processos de escrita que permitem integrar, mas sem que se percam, os dados individuais em sistemas cumulativos;
fazer de maneira que a partir de qualquer registro geral se possa encontrar um indivíduo e que inversamente cada dado do exame
individual possa repercutir nos cálculos de conjunto” (FOUCAULT, 1987, p.158)
4 O termo em inglês “fastening” é de difícil tradução, sobretudo em razão do duplo sentido explorado pelo autor, evocando ao
mesmo tempo as ideias de “captura” e “aceleração”. Por essa razão, optou-se por manter o termo em inglês.
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GRAZIANO MAZZOCCHINI; RODOLPHO VENTURINI
ladas previamente por Foucault, como imediato pós-guerra (1948), com o sur-
fazem outros autores, mas a necessi- gimento da então chamada “teoria da
dade de pensar a originalidade dessa informação” (KOOPMAN, 2019, p.16-
forma de poder que residiria no inte- 19). Diante desse consenso, a pergunta
rior da própria informação e não pode que Koopman se coloca é a seguinte:
ser subsumida pelas técnicas discipli- por que justamente em 1948 autores de
nares, cujo foco reside no controle do campos diversos tornaram-se tão preo-
corpo, ou pelas técnicas biopolíticas, cupados com os problemas de uma te-
cujo foco reside no controle da popu- oria da informação? A genealogia – e
lação. Koopman frisa que não fomos em certa medida a arqueologia, embora
sempre constituídos pelas nossas infor- o autor não use o termo – da teoria da
mações. As nossas informações passa- informação precisaria retroceder ainda
riam a ter primazia na constituição da mais historicamente para dar conta do
personalidade num momento bem defi- modo com a informação veio a se tor-
nido: os primeiros vinte anos do século nar uma preocupação urgente a ponto
XX, isto é, em um momento em que a de ser o objeto de uma multiplicidade
população já havia sido produzida en- de teorias.
quanto objeto de um saber estatístico e Ainda que Koopman reivindique a
as individualidades já formadas pelas historicidade desse poder da informa-
técnicas disciplinares e de confissão do ção, parece ser pertinente, no entanto,
fim do século XIX (KOOPMAN, 2019, colocar a questão sobre quão bem-
p.6). sucedido ele é ao estabelecer essa tese.
Ao situar o nascimento da infopolí- Essa dúvida surge sobretudo do fato de
tica no início do século XX, Koopman não ser fornecido um conceito claro de
visa atacar um consenso relativamente informação ao longo do texto. Koop-
bem estabelecido num espectro bas- man nunca chega a tratar do estatuto
tante amplo que vai da teoria dos novos da informação enquanto tal ou distin-
meios de comunicação à história da co- guir o conceito de informação de outros
municação, da ciência e da tecnologia. como, por exemplo, o de “saber” ou de
Segundo esse consenso, o traço infor- “linguagem”. Essa ausência parece fa-
macional da nossa subjetividade seria zer com que seu conceito de infopoder
produto de um acontecimento tecnoló- seja definido a partir de um esquema
gico muito recente, fruto dos últimos excessivamente genérico.
vinte ou trinta anos – isto é, remon- Segundo nossa hipótese interpreta-
taria, no máximo, à década de 1970. tiva, a pretensão de especificidade do
Além disso, as origens daquilo que para infopoder não se sustentaria uma vez
Donna Haraway é a “informática da do- que a definição fornecida por Koopman
minação” remontariam no máximo ao não proporciona elementos suficientes
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CHICAGO: UNIVERSITY OF CHICAGO PRESS, 2019.
para distinguir, a rigor, aquilo que ele própria noção de informação, tal como
entende por informação. Em especial ela é concebida enquanto interna ao
parece difícil distinguir a informação infopoder, no limite, não se distingui-
tal como pressuposta pelo infopoder, ria do próprio conceito de linguagem,
daquela caracterização mais geral do exatamente na medida em que esta úl-
entrelaçamento entre saber e poder que tima constitui um dispositivo segundo
Foucault chama de dispositivo . Em ou- a sugestão de Giorgio Agambem. Ou
tras palavras, em seu esforço de espe- seja, a informação, assim como a lin-
cificar o infopoder e fornecer uma ca- guagem, seria um dispositivo. Ao defi-
racterização concreta, Koopman acaba nir o dispositivo, Agambem, pensa essa
recorrendo a um esquema genérico que noção com Foucault, mas, ao mesmo
faz com que sua definição seja dema- tempo, força explicitamente os seus li-
siadamente abstrata. O esquema de mites, transpondo-o para o seu “avesso
captura e mobilização da subjetividade ontológico” (AGAMBEM, 2006, p.20-
aparece como um esquema muito geral 21)6 . Para o filósofo italiano, é pos-
preenchível a princípio por qualquer sível chamar de dispositivo “literal-
tecnologia de poder. Se isso for ver- mente qualquer coisa tenha de alguma
dade, a pretensão de levar a cabo a des- forma a capacidade de capturar, ori-
crição genealógica de uma verdadeira entar, determinar, interceptar, moldar,
“personalidade informacional” (KOOP- controlar e assegurar os gestos, as con-
MAN, 2019, p.36) não conseguiria, no dutas, as opiniões e os discursos dos
fim das contas, extrapolar a tautologia seres vivos” (AGAMBEM, 2006, p.21-
segundo a qual toda personalidade ou 22). O dispositivo, segundo a defini-
subjetividade é pré-formada ou, melhor ção de Agambem, é basicamente uma
dizendo, (in)formada, conforme deter- máquina de produção de subjetivações
minados modos de saber, ou ainda, de (AGAMBEM, 2006, p.29) e, nesse sen-
que a subjetividade é mediada pelo uni- tido, a linguagem poderia ser conside-
verso simbólico e linguístico no interior rada como “talvez o mais antigo entre
do qual se produz5 . os dispositivos, no qual milhares e mi-
Nessa linha, seria possível dizer que a lhares de anos atrás um primata (...)
5 Uma vez que o dispositivo é justamente aquilo torna visível organiza papeis e hierarquias de pessoas e funções (Bazzicalupo
2010, p.34-35).
6 Cf. o seguinte trecho retirado do capítulo 4 do livro de Koopman, no qual a própria técnica de formatação vem explicitamente
assimilada à estrutura do dispositivo foucaultiano, porém em termos tão gerais que podem lembrar também a definição agambeni-
ana da mesma noção: “A formatação em cada um de seus estágios de inputting, processamento e outputting exemplifica um poder
que conduz a nossa conduta. Ele prepara as pessoas para usos incontáveis, e também inesperadamente para muitos abusos. Este
trabalho de formatação não é em si necessariamente opressivo, dominador ou de outra forma violento. Os formatos, antes de coagir,
dispõem, se quisermos adoptar uma formulação cogente retirada da discussão de Davide Panagia em torno das aplicações midiáticas
do conceito foucaultiano de dispositif (um conceito, este, que resiste à tradução, mas que ressoa no meu uso de assembly). Funcio-
nando enquanto um dispositivo, a formatação pode tanto limitar a nossa liberdade (freedom) quanto dar abertura às nossas liberdades
(liberties)” (KOOPMAN, 2019, p.159).
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GRAZIANO MAZZOCCHINI; RODOLPHO VENTURINI
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Recebido: 30/09/2020
Aprovado: 23/01/2021
Publicado: 31/01/2021
292 Revista de Filosofia Moderna e Contemporânea, Brasília, v.8, n.3, dez. 2020, p. 285-292
ISSN: 2317-9570
DOI: https://doi.org/10.26512/rfmc.v8i3.35091
Simone Weil
Tradução
Philippe Claude Thierry Lacourii ; Jade Oliveira Chaiaiii ; Michelly Alves Teixeiraiv
“Sangue nas manchetes” dos jornais dos os milhões de proletários das colô-
operários. O sangue corre na Tuní- nias.
sia. Quem sabe? Talvez tenhamos que Primeiro, eles estão longe. Todos sa-
nos lembrar que a França é um pe- bem que o sofrimento diminui devido à
queno canto de um grande império e distância. Um homem que sofre com as
que, nesse império, milhões e milhões pancadas, exausto pela fome, trêmulo
de trabalhadores sofrem. perante seus chefes, na Indochina, isso
Há oito meses que a Frente Popular representa um sofrimento e uma injus-
está no poder, mas ainda não tivemos tiça muito menores que um metalúr-
tempo de pensar nela. Quando os me- gico da região parisiense que não obtém
talúrgicos de Billancourt estão com di- seus 15% de aumento, ou um funcioná-
ficuldades, Léon Blum recebe uma de- rio público vítima de decretos-lei. Deve
legação; ele se preocupa em ir à Expo- haver uma lei da física que se relaciona
sição Mundial falar com os construto- com o inverso do quadrado da distân-
res civis; quando lhe parece que os fun- cia. A distância tem o mesmo efeito so-
cionários resmungam, ele faz um belo bre a indignação e a simpatia que sobre
discurso por rádio especialmente para a gravidade.
eles. Mas, todos nós, tínhamos esqueci-
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SIMONE WEIL
1 [N.T.] Gíria francesa utilizada para referir-se aos nativos da África do norte.
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O SANGUE CORRE NA TUNÍSIA
nós e que, há oito meses, sem escândalo, são de que estamos mais preocupados
em silêncio, passam progressivamente com a escravatura colonial do que com
da esperança ao desespero. o tratamento dos funcionários, ele te-
Neste momento, há sangue derra- ria certamente dedicado às colônias o
mado. A tragédia colonial acabou por tempo que passou preparando um belo
tomar a forma de fait divers, acessível discurso aos funcionários públicos.
apenas à nossa sensibilidade e à nossa Seja como for, temos de confessar
inteligência rudimentar. A partir de que, até aqui, a obra colonial do go-
agora, já não podemos mais nos vanglo- verno se resume quase que à dissolução
riar de que a famosa “experiência” se da Étoile Nord-Africaine. Diremos que
realiza sem derramamento de sangue. as reformas coloniais não estavam pre-
De sangue se manchou. vistas no programa da Frente Popular.
É fácil falar de responsabilidades, de A dissolução sem fundamento da Étoile
sabotagem. Sem investigação, sabemos Nord-Africaine não estava prevista. Os
quem são e onde estão os responsáveis. mortos da Tunísia muito menos, aliás.
Se cada um de nós se olhar no espe- São mortes fora da programação.
lho, veremos um dos responsáveis. O Quando penso em uma possível
governo atual não governa em nome da guerra, uma ideia um pouco reconfor-
Frente Popular? Seus membros são di- tante se mistura, confesso, com o pavor
ficilmente questionados; sobrecarrega- e o horror que tal perspectiva me causa.
dos de trabalho, atormentados como es- É que uma guerra europeia poderia ser-
tão, é forçado que as suas atividades de- vir de sinal para uma grande revanche
pendam, em grande parte, das preocu- dos povos coloniais para punir nossa
pações que impusermos a eles. Se, por imprudência, nossa indiferença e nossa
exemplo, Léon Blum tivesse a impres- crueldade.
Recebido: 10/11/2020
Aprovado: 14/12/2020
Publicado: 31/01/2021
Revista de Filosofia Moderna e Contemporânea, Brasília, v.8, n.3, dez. 2020, p. 293-295 295
ISSN: 2317-9570
Normas para Publicação
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NORMAS
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dem crescente de publicação (primeiro a mais antiga e, em seguida,
as mais recentes). No caso de mais de uma obra por ano, estas de-
vem ser diferenciadas por letras.
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