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Revista de

Filosofia Modern a
e Contemporânea
Equipe Editorial/Editorial Team João Vergílio Gallerani Cuter (USP)
Joãosinho Beckenkamp (UFMG)
Jon Stewart (Universidade de Copenhagen)
Editor Chefe/Editor in Chief: Maria das Graças de Souza (USP)
Alexandre Hahn Oswaldo Giacoia Junior (UNICAMP)
(hahn.alexandre@gmail.com) Todd Ryan (Trinity College)
Zeljko Loparic (UNICAMP)
Editores Associados/Associated Editors:
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Priscila Rossinetti Rufinoni Editores de Diagramação/Layout Editors:
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Editores de Seção/Section Editors:
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Isabella Holanda por Carol Peso, em 2018 (técnica: pintura acrílica sobre
João Renato Amorim Feitosa tela). Uso autorizado pela autora.
Lorrayne Colares Alexandre Hahn
Editores de Texto/Text Editors:
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Alex Sandro Calheiros de Moura Reitora/Rector: Márcia Abrahão Moura
Cláudio Araújo Reis Vice-reitor/Vice Rector: Enrique Huelva
Erick Calheiros de Lima
Herivelto Pereira de Souza Instituto de Ciências Humanas/Institute of Hu-
Marcos Aurélio Fernandes man Sciences
Maria Cecília Pedreira de Almeida Diretor/Director: Neuma Brilhante Rodrigues
Phillipe Lacour Vice-diretor/Vice Director: Herivelto Pereira de Souza

Departamento de Filosofia/Philosophy Depart-


Conselho Científico/Scientific Council: ment
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Alessandro Pinzani (UFSC) Vice-chefe/Vice Head: Agnaldo Cuoco Portugal
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César Augusto Battisti (UNIOESTE) Programa de Pós-graduação em Filosofia/Graduate
Daniel Omar Perez (UNICAMP) Program in Philosophy
Elisabete M. J. de Sousa (Universidade de Lisboa) Coordenador/Coordinator: Rodrigo Freire

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Revista de Filosofia Moderna e Contemporânea CiteFactor, CLASE, Diadorim, DOAJ, DRJI, Latin-
Universidade de Brasília dex, Sumários, Periódicos, PhilBrasil, Phipapers,
Departamento de Filosofia SHERPA/RoMEO
Programa de Pós-Graduação em Filosofia
ICC Ala Norte - Bloco B - 1º Andar (B1 624) Qualis CAPES – B2
Telefone: (61) 3107-6677 / 6680 / 6679
Campus Universitário Darcy Ribeiro
70910-900 – Brasília – Distrito Federal – Brasil DOI: https://doi.org/10.26512/rfmc.v8i3
E-mail: rfmc@unb.br
A Revista de Filosofia Moderna e Contemporânea é uma
publicação quadrimestral do Departamento de Filosofia e do
Programa de Pós-graduação em Filosofia da Universidade de
Brasília (UnB)
The Journal of Modern and Contemporary Philosophy is a
triannual publication of the Department of Philosophy and the
Graduate Program in Philosophy of the University of Brasília

Brasília, volume 8, número 3, dezembro de 2020


ISSN 2317-9570 (publicação eletrônica)
http://periodicos.unb.br/index.php/fmc
Pareceristas desta Edição/Reviewers of this Issue:

Andityas Matos (UFMG), André Duarte (UFPR), Caio Augusto Teixeira


Souto (UEAP), Carlos Peres de Figueiredo Sobrinho (UFS), Castor Bartolomé
Ruiz (Unisinos), Christian Gilioti (IFSP), Cláudio Araújo Reis (UnB), Daniel
Arruda Nascimento (UFF), Daniel Nery da Cruz (UEFS), Diego Reis
(UFPB), Elton Rogério Corbanezi (UFMT), Ernesto Perini Santos (UFMG),
Fabiano Veliq (PUC-MG), Fábio Abreu Passos (UFPI), Gilberto Tedeia
(UnB), Giovanni Zanotti (UnB), Jarlee Oliveira Silva Salviano (UFBA),
Jonnefer Barbosa (PUC-SP), José Silva Xavier, Leonardo Masaro (USP), Luiz
Candido (UFMG), Márcio Gimenes de Paula (UnB), Márcio Rimet Nobre
(FANS), Marco Aurélio Alves (UFSJ), Maria Cecília Pedreira de Almeida
(UnB), Nadia Laguardia de Lima (UFMG), Philippe Claude Thierry Lacour
(UnB), Raquel Rodrigues Rocha (UFBA), Regiane Lorenzetti Collares
(UFCA), Verlaine Freitas (UFMG), Vital Francisco Celestino Alves (UnB),
Wellington Lima Amorim (UFMA).
Sumário / Summary

i. Páginas Iniciais / Initial Pages . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 01


ii. Editorial . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 07
iii. Dossiê: O Governo dos Algoritmos: A Morte da Polı́tica? . . . 15
Entrevista com Antoinette Rouvroy: Governamentalidade Algorı́tmica
e a Morte da Polı́tica
Antoinette Rouvroy; Maria Cecı́lia Pedreira de Almeida, Marco An-
tonio Sousa Alves . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 15
Tornar a Revolta Impossı́vel
Thomas Berns; Maria Cecı́lia Pedreira de Almeida, Marco Antonio
Sousa Alves . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 29
É Possı́vel Evitar Vieses Algorı́timicos?
Carlos Henrique Barth . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 39
Zero-Order Privacy Violations and Automated Decision-Making about
Individuals
Bernardo Alonso . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 69
Ação Polı́tica Hı́brida e a Dissolução da Cidadania
Edson Teles . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 81
Algoritmos de Mal-Estar: Ciberpandemia e Privacidade Hackeada
Marcelo Gonçalves Rodrigues . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 105
O Governo das Condutas e a Constituição da Subjetividade: Um Estudo
da Sociedade de Controle de Tipo Algorı́tmica
Sergio Fernando M. Corrêa, Salomón Abasto Macı́as . . . . . . . . 137
Governo Algorı́tmico e Conexões: Novos Aspectos da Subjetividade a
partir de Michel Foucault
Jefferson Silva, Marcius Tadeu Maciel Nahur . . . . . . . . . . . . 155
As Redes Sociais e a Psicologia das Massas: A Internet como Terreno
e Veı́culo do Ódio e do Medo
Cristian Arão . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 181

1
O Ato Docente na Era da sua Reprodutibilidade Técnica: Aula, Educação
e Ensino Remoto
Denilson Soares Cordeiro . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 207
iv. Artigos / Articles . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 225
Rousseau e as Artes: Uma Leitura do Pigmaleão
Wilson Alves de Paiva . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 225
Nietzsche: Da Técnica da Memória à Técnica do Esquecimento?
Adilson Feiler . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 247
Cristianismo e a Renúncia de si no Último Foucault
Rafael Siqueira Monteiro . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 265
iv. Resenhas / Book Reviews . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 285
“How We Became Our Data: A Genealogy of the Informational Person”
de Colin Koopman
Graziano Mazzocchini, Rodolpho Venturini . . . . . . . . . . . . . . 285
iv. Traduções / Translations . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 293
“O Sangue Corre na Tunı́sia” de Simone Weil
Jade Oliveira Chaia, Michelly Alves Teixeira, Philippe Lacour . . . 293
v. Normas para Publicação / Guidelines for Authors . . . . . . . . 297
DOI: https://doi.org/10.26512/rfmc.v8i3.36226

Editorial

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A Revista de Filosofia Moderna e Con- neira mais ou menos racional e siste-


temporânea tem a satisfação em apre- mática, visando fins específicos. Trata-
sentar o dossiê “O governo dos algorit- se de uma atividade que afeta, guia
mos: a morte da política?”, publicado e formata nossa ação. O foco do go-
neste número. verno reside assim em “conduzir con-
É inegável que a internet, os dispo- dutas” e “ordenar a probabilidade”, ou
sitivos móveis e as plataformas digi- seja, no direcionamento dos comporta-
tais provocaram uma verdadeira revo- mentos por meio de incitação, indução,
lução no modo como produzimos, faze- sedução ou constrangimento e proibi-
mos circular e recebemos informações. ção, de modo a tornar mais ou me-
As mudanças são de tal ordem que é nos provável um determinado curso de
comum se falar em revolução, em uma ação. Nesse sentido, podemos dizer
nova realidade e em um modo de vida que uma nova estratégia de governo é
inédito no seio de uma nascente socie- colocada em funcionamento por meio
dade da informação. Essas transforma- de complexos algoritmos, que cada vez
ções trazem, contudo, novos problemas mais direcionam nossas condutas e in-
e desafios, sendo preciso avaliar criti- fluenciam decisivamente nossas práti-
camente o mundo que se avizinha, que cas de consumo, nossas escolhas polí-
está longe de ser simplesmente uma ticas e a formação de nossas opiniões.
utopia enfim realizada. Nesse contexto, Esse novo governo baseia-se fundamen-
convém refletir também sobre o futuro talmente na vigilância e extração auto-
da política em diversas de suas dimen- matizada de dados (dataveillance) que
sões, tocando em temas como a defor- são processados, filtrados e correlacio-
mação da esfera pública, a crise institu- nados (datamining) de modo a permitir
cional, os retrocessos sociais e o desmo- a elaboração algorítmica de perfis (pro-
ronamento das democracias liberais. filing), capazes de antecipar comporta-
O que podemos entender por um mentos e agir sobre as ações futuras.
“governo dos algoritmos”? Em seu sen- Em certa medida, somos cada vez
tido mais próprio, de acordo com Mi- mais governados por algoritmos e não
chel Foucault, governar envolve dirigir por leis. O direito e os instrumentos tra-
a si mesmo ou a outrem de uma ma- dicionais de poder soberano mostram-

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se incapazes de regular a vida inter- ubíquo e cirúrgico.
conectada e fazer valer suas regras. Os editores esforçaram-se por reu-
Esse fenômeno traz importantes ques- nir pesquisas em torno das novas tec-
tões para a vivência democrática nas so- nologias da informação e da comuni-
ciedades contemporâneas, para a segu- cação e dos desafios que seu desenvol-
rança e para a proteção da privacidade vimento opõe à democracia, ao direito,
e das liberdades individuais. A novo ca- ao mundo do trabalho e ao pensamento
pitalismo da informação assenta-se em filosófico enquanto atividade humani-
um modelo de negócio que pressupõe a zadora. Foram bem-vindos os traba-
conectividade, a transparência, a extra- lhos que aprofundaram filosoficamente
ção e a utilização maciças do fluxo de o tema, questionando como essas novas
informações e dos rastros digitais dos tecnologias mudam nossas vidas e tra-
indivíduos, que em troca de certos ser- zem consigo novos problemas, que fo-
viços são cada vez mais capturados por ram explorados em sua dimensão ética,
um complexo sistema baseado na vigi- política, epistemológica, social ou exis-
lância, na gestão de nossos comporta- tencial.
mentos futuros e no governo de nossas Abrindo o dossiê, apresentamos a en-
ações. trevista com Antoinette Rouvroy, pes-
É preciso aprofundar nossa compre- quisadora do FNRS no Centro de Pes-
ensão desse novo governo dos algorit- quisa em Informação, Direito e Socie-
mos, que se afasta em vários aspec- dade (CRIDS), localizado na Universi-
tos do governo em seu sentido tradici- dade de Namur, Bélgica. Nesta entre-
onal, que procurava influenciar as es- vista, a pesquisadora afirma que certas
colhas individuais pressupondo sujei- tecnologias teriam por pretensão elimi-
tos livres, capazes de deliberação. Com nar as incertezas sobre o futuro, interfe-
o governo dos algoritmos vemos emer- rindo e moldando comportamentos hu-
gir um novo regime de ação sobre o fu- manos. Apesar de tecer duras críticas
turo. Baseando-se em perfis, ambien- à atual “sociedade da otimização”, na
tes são configurados e respostas refle- qual se destacam, ao mesmo tempo, o
xas são produzidas. Os indivíduos são afã de otimização e a espantosa pas-
governados na medida em que é forma- sividade digital, Rouvroy também de-
tado o campo de suas ações possíveis. clara ter esperanças em um futuro não
Não é mais preciso dizer “não” ou ame- tão distópico. Segundo ela, “a melhor
açar, basta enviar sinais capazes de pro- forma de resistência é não se deixar fas-
vocar ou estimular determinados com- cinar pela Inteligência Artificial”. Por
portamentos. Desse modo, temos um fim, revela que é preciso lidar com o
governo mais eficiente e um poder que fato de que os dados são excessivamente
funciona de modo ainda mais insidioso, centralizados por grandes companhias

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e fora de qualquer controle de natureza tituições possam exercer algum papel,


democrática. Portanto, segundo Rou- garantindo a transparência e a finali-
vroy, é preciso repensar profundamente dade de sua utilização.
a situação dos dados, para que as ins-

***
O dossiê traz ainda uma segunda tra- namentalidade algorítmica”.
dução, de um texto publicado original- O artigo de Carlos Henrique Barth
mente na França (Rendre la révolte im- examina um problema que atormenta
possible, Rue Descartes, 2013/1, n. 77, aqueles que refletem mais detidamente
pp. 121-128) pelo professor de filoso- sobre as benesses e os perigos da In-
fia política e ética na Universidade Li- teligência Artificial. Ele investiga por
vre de Bruxelas, Thomas Berns, autor que somos presas fáceis para uma mul-
de livros como Violence de la loi à la tiplicidade de sistemas, e mais especi-
Renaissance (Paris, Kimé, 2000), Droit, ficamente, se é seguro postular a neu-
souveraineté et gouvernementalité (Pa- tralidade do juízo de máquinas, mesmo
ris, Léo Scheer, 2005), Gouverner sans aquelas que desempenham atividades
gouverner: une archéologie politique repetitivas. A partir de uma análise am-
de la statistique (Paris, PUF, 2009) e pla da bibliografia abalizada, o autor
La guerre des philosophes (Paris, PUF, verifica que certos modelos algorítmi-
2019). “Tornar a revolta impossível” cos têm apresentado vieses, mais mar-
é um artigo que reflete sobre um novo cadamente no que diz respeito a gê-
tipo de normatividade, que se afasta nero e raça, atribuindo, surpreendente-
do modelo jurídico-discursivo e sub- mente, maior risco ou desfavorecendo
verte um aspecto fundamental daquilo mulheres e pessoas negras. Isso expli-
que entendemos tradicionalmente por cita o desafio de eliminar tais vieses,
norma: a possibilidade de desobedi- que vão muito além de meros proble-
ência. Berns procura discernir, nas mas técnicos, como mostra o autor. O
normatividades contemporâneas, uma enfrentamento ou a mitigação dos vie-
nova relação com a realidade, uma pre- ses algorítmicos dependerá do estabe-
tensão de governar a partir do real. Di- lecimento de um conjunto de valores e
ferentemente da norma jurídica, que do interesse público. Trata-se, uma vez
expressa um ato de vontade que pro- mais, de revelar a inexistência de uma
cura governar o real, tais normativida- suposta neutralidade dos dados e, ao
des são concebidas como imanentes ao contrário, assumir que a sua boa ges-
real, permitindo que as práticas de go- tão depende de um debate público, e
verno se tornem mais insidiosas, quase que não é despropositado questionar
imperceptíveis, como vemos na “gover- um certo “privilégio epistêmico”, co-

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mumente atribuído a certos modelos de vida o leitor a desafiar a tradição mo-
IA. derna da filosofia política que propõe
Em “Zero-order privacy violations um agir com ênfase no discursivo. A
and automated decision-making about tecnologia que envolve os big data per-
individuals”, Bernardo Alonso enfrenta mite a diluição do indivíduo e conse-
o problema da crescente vigilância e vi- quentemente a diminuição das formas
olação da privacidade, argumentando, discursivas da ação, destacando-se uma
de maneira coerente e bem fundamen- certa “modelagem” do sujeito, empre-
tada, que o acesso automatizado de má- endido pela tecnologia governamental e
quinas ao conteúdo de nossas intera- pelas máquinas políticas.
ções online não deixa também de ser No artigo “Algoritmos de mal-estar:
uma grave violação da privacidade. To- ciberpandemia e privacidade hacke-
mando por base os desenvolvimentos ada”, Marcelo Gonçalves Rodrigues
na área da filosofia da informação rea- analisa o impacto da vigilância, dos mo-
lizados por Luciano Floridi e o trabalho nitoramentos e da automação sobre a
sobre colonialismo de dados empreen- subjetividade humana, interpretando a
dido por Nick Coldry e Ulises Mejias, o experiência da pandemia de COVID-19
autor defende um novo tipo de violação como um momento no qual se acelera a
de ordem-zero, envolvida na coleta sis- Quarta Revolução Industrial. Ressalta-
temática e massiva em conjunção com se, a partir de um olhar da tradição
novas tecnologias de exploração de da- psicanalítica, a emergência de um mal-
dos. estar diante do esvaziamento das re-
O capitalismo de vigilância e a tec- presentações psicossociais, da precarie-
nopolítica estão no centro da discus- dade psíquica e da diminuição dos es-
são empreendida por Edson Teles. Em paços para a reflexão sobre a crise exis-
“Ação política híbrida e a dissolução da tencial.
cidadania”, o autor interroga sobre os Em “O governo das condutas e a
regimes de produção de subjetividades, constituição da subjetividade: um es-
que qualifica como híbrido e se cons- tudo da sociedade de controle de tipo
titui nas bordas do político. A rele- algorítmica”, Sérgio Fernando Corrêa e
vância do discurso na filosofia política Salomón Abastro Macías direcionam o
contemporânea é posta em xeque, uma olhar para a emergente sociedade de
vez que as relações de poder se dão por controle, nos termos propostos por De-
mecanismos, técnicas e ações maquí- leuze, como um desdobramento da so-
nicas artificiais. Utilizando-se de um ciedade disciplinar pensada por Fou-
rico instrumental conceitual e teórico cault, por meio da mediação das tecno-
de Arendt, Rancière, Latour, Foucault, logias de vigilância e do uso de big data.
Deleuze, e Donna Haraway Teles con- O artigo tem o mérito de esclarecer, as-

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sumindo uma postura crítica, como a subjetividade a partir de Michel Fou-


governamentalidade algorítmica exerce cault”, analisam o governo dos algorit-
um importante papel na constituição mos como um novo regime de produção
da subjetividade, na construção da re- de subjetividades. Os autores destacam
alidade social e no controle populacio- como o cuidado de si e o conhecimento
nal. de si, nos termos foucaultianos, como
Jeferson da SIlva e Marcius Tadeu um exercício da liberdade, constituem
Maciel Nahur, em “Governo algorít- possibilidades de resistência e de trans-
mico e conexões: novos aspectos da formação de si.

***
Uma face incontestável do mundo con- tempo.
temporâneo, as redes sociais e seu me- Fechando a edição, o inebriante en-
canismo de manipulação são o tema saio de Denilson Soares Cordeiro en-
examinado por Cristian Arão. Ele em- frenta uma questão que toca direta-
preende uma análise pormenorizada do mente todo o universo educacional não
acontecimento emblemático da Cam- apenas brasileiro, mas mundial: a tec-
bridge Analytica, que capturou e uti- nologia utilizada no ensino remoto. Por
lizou os big data de forma perversa e conta da pandemia de Covid 19, o en-
deliberada com a finalidade de influen- sino remoto, que já exercia uma força
ciar eleições. Apesar do exemplo, o ar- crescente no mercado, agora se torna
tigo discute a capacidade de tais siste- algo dado e inescapável. O autor aborda
mas de compreender e decifrar pessoas. a catástrofe do chamado “solucionismo
Diferentemente do que normalmente se tecnológico”, que a um só tempo oculta
pensa, a atividade humana é impres- o extrativismo de dados de grandes em-
cindível e desempenha aí um papel re- presas de tecnologia e permite que de-
levante. Abordando o pensamento de cisões políticas agravem ainda mais a
Freud, Fromm e Adorno, o texto ana- situação da já combalida educação pú-
lisa as noções de inconsciente, impotên- blica.
cia e a psicologia das massas, concei- Apesar do tema ser tão rico, polê-
tos cuja compreensão é essencial inclu- mico e cheio de nuances, o conjunto
sive para que a tecnologia algorítmica de textos aqui reunidos são bem su-
possa de fato “alcançar” pessoas. A pro- cedidos em abordar como, com o go-
posta do autor é que a manipulação mi- verno dos algoritmos, corremos o risco
diática e tecnológica, muitas vezes ca- de ver o campo da política esvaziado em
rimbada como uma “grande novidade”, grande medida. Tudo indica que ru-
nada mais é do que uma atualização mamos em ritmo acelerado a uma es-
de certas técnicas utilizadas há muito pécie de tecnocracia digital, que fun-

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ciona cada vez mais por meio de sis- quadro, a ação humana corre o risco de
temas computacionais autonômicos em ser colonizada por processos racionali-
termos apenas de eficiência, inovação e zados e autômatos. Os editores esperam
segurança. Reaviva-se mais uma vez o que a leitura desse dossiê, que analisa
sonho de resolver o problema da polí- o problema sob uma perspectiva emi-
tica por meio da ciência e da tecnolo- nentemente filosófica, possa contribuir
gia, substituindo a deliberação pelo cál- para delinear novos modos de pensar
culo. No lugar do árduo e lento trabalho esse problema, e sobretudo, recuperar a
de construção democrática de uma vida importância do político e igualmente a
em comum, avoluma-se o desejo pe- capacidade das gerações futuras de agi-
las soluções rápidas e eficientes das no- rem e tomarem decisões de uma ma-
vas máquinas inteligentes. Diante desse neira minimamente livre e refletida.

Maria Cecília Pedreira de Almeida (UnB) e Marco Antônio Sousa Alves (UFMG)
(Organizadores do Dossiê)

***

Além dos trabalhos que compõem o que elas causaram no coração humano.
Dossiê, o presente número também (2) Em “Nietzsche: Da Técnica da
conta com outras contribuições recebi- Memória à Técnica do Esquecimento?”,
das em fluxo contínuo. Adilson Feiler, professor da Universi-
(1) Wilson Alves de Paiva, profes- dade do Vale do Rio dos Sinos (Uni-
sor da Universidade Federal de Goiás sinos), discute a relevância dos escrito
(UFG), no artigo “Rousseau e as Artes: nietzschianos para uma reflexão sobre
Uma Leitura do Pigmaleão”, apresenta a técnica e sua aplicação à memória.
a tradução, acompanhada de uma dis- Neste sentido, visa mostrar que vigora
cussão, da peça Pygmalion de Rous- uma aporia no projeto nietzschiano de
seau. A discussão busca destacar que o transvaloracao dos valores, já que, a
filósofo genebrino, apesar condenar as despeito de questionar todos os meca-
artes como um dos elementos causado- nismos tecnicos, como aqueles relativos
res da corrupção humana, escreveu di- aos estabelecimentos de ensino, o filó-
versas obras artísticas, entre elas óperas sofo afirma a tecnica atraves dos meca-
e peças de teatro, pois via a utilização nismos do esquecimento.
das artes como remédio para os males (3) Rafael Siqueira Monteiro, profes-

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sor da Secretaria de Educação do Es- sofia da Universidade de Brasília, com-


tado do Pará (SEDUC/PA), em seu ar- posto por alunos da graduação e pós-
tigo “Cristianismo e a Renúncia de si graduação em filosofia, e coordenado
no Último Foucault”, propõe refletir so- pelo professor Philippe Lacour. Logo
bre como o cristianismo produziu uma em seguida, Graziano Mazzocchini e
subjetividade por meio da qual o sujeito Rodolpho Venturini, ambos doutoran-
renunciou a si mesmo. Defende, nesse dos em filosofia na Universidade Fede-
sentido, a hipótese de que esse modo ral de Minas Gerais (UFMG), nos apre-
de subjetivação cristã somente foi possí- sentam o livro "How We Became Our
vel graças a duas características presen- Data: A Genealogy of the Informational
tes na relação sujeito e verdade no cris- Person" de Colin Koopman.
tianismo primitivo: a obrigatoriedade Gostaríamos de aproveitar o ensejo
de confessar uma verdade de si e a im- para agradecer a todos os autores, por
perfeição que caracteriza a natureza hu- terem honrado a nossa Revista com as
mana na antropologia cristã. suas produções, bem como aos mem-
Por fim, temos ainda uma tradução bros do corpo editorial, avaliadores,
e uma resenha. A tradução inédita do editores e leitores de provas, pela fun-
texto "O Sangue Corre na Tunísia" de damental colaboração na confecção da
Simone Weil foi realizada pelo Grupo presente edição.
de Tradução do departamento de filo-

Os Editores

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p os=article=view=
DOI: https://doi.org/10.26512/rfmc.v8i3.34363

É Possível Evitar Vieses Algorítmicos?*


[Is It Possible to Avoid Algorithmic Bias?]

Carlos Henrique Barth**

Resumo: Técnicas de inteligência artificial (IA) são utilizadas para modelar as atividades
humanas e gerar predições comportamentais. Estes sistemas têm apresentado vieses
diversos, inclusive de raça e gênero, tipicamente tomados como problemas de engenha-
ria. Realiza-se aqui um esforço argumentativo para mostrar que: 1) escapar dos vieses
demanda um sistema que compreenda a estrutura das atividades humanas e; 2) criar um
sistema que apresente tal compreensão demanda a solução de problemas fundacionais da
IA, em particular, o problema de como modelar o senso comum. No caso de plataformas
informacionais que usam desses modelos para intermediar interações com seus usuários,
ignorar estes problemas dá margem a uma ilusão de progresso, em que uma crescente
influência sobre nosso comportamento é tomada como uma crescente acurácia preditiva.
Nesse cenário, argumenta-se que o problema dos vieses está associado a questões não
técnicas que devem ser discutidas em espaços públicos.
Palavras-chave: Inteligência Artificial. Vieses Algorítmicos. Governamentalidade
Algorítmica.

Abstract: Artificial intelligence (AI) techniques are used to model human activities and
predict behavior. Such systems have shown race, gender and other kinds of bias, which
are typically understood as technical problems. Here we try to show that: 1) to get rid of
such biases, we need a system that can understand the structure of human activities and;
2) to create such a system, we need to solve foundational problems of AI, such as the
common-sense problem. Additionally, when informational platforms uses these models
to mediate interactions with their users, which is a commonplace nowadays, there is an
illusion of progress, for what is an increasingly higher influence over our own behavior
is took for an increasingly higher predictive accuracy. Given this, we argue that the bias
problem is deeply connected to non-technical issues that must be discussed in public
spaces.
Keywords: Artificial Intelligence. Algorithmic Bias. Algorithmic Governance.

* Agradeço à Rochelle Barth, Ernesto Perini, Felipe Nogueira, Eduarda Calado e Samuel Maia por comentários em versões anterio-
res desse material.
** Mestre em filosofia pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Atualmente realiza doutorado na mesma instituição,
com bolsa da CAPES. E-mail: carloshb@protonmail.com. ORCID: https://orcid.org/0000-0002-9327-9818.

Revista de Filosofia Moderna e Contemporânea, Brasília, v.8, n.3, dez. 2020, p. 39-68 39
ISSN: 2317-9570
CARLOS HENRIQUE BARTH

I peito. . . ). Uma vez identificadas, estas


categorias permitem realizar predições
Com o advento da inteligência artifi- com um grau de acurácia presumivel-
cial (IA), o temor de que a humanidade mente superior ao que um ser humano
possa ser dominada por suas próprias seria capaz de alcançar. Qual o risco
criações ganhou novo fôlego. Máquinas de conceder liberdade condicional a um
de inteligência superior poderiam nos detento? Deve um determinado candi-
subjugar facilmente, dizem alguns. Po- dato ser contratado? Há chances consi-
rém, já é sabido que o poder de nossos deráveis de inadimplência, caso se con-
artefatos sobre nós mesmos independe ceda um empréstimo? Esse é o tipo de
de capacidades sobre-humanas. Somos pergunta cuja resposta é, cada vez mais,
igualmente vulneráveis a sistemas que dependente daquilo que os sistemas in-
não sabem o que fazem. Nesse texto formacionais têm a dizer.
buscamos elucidar, ainda que parcial- Não por acaso, há um crescente uso
mente, como isso é possível. desses modelos para substituir o juízo
Nos últimos anos, consolidou-se a humano, particularmente em ativida-
prática de gerar modelos computaci- des repetitivas.1 Uma das principais
onais das atividades humanas. Seus vantagens da automação desses proces-
registros constituem gigantescos volu- sos é, ou deveria ser, a possibilidade de
mes de dados (Big Data) a partir dos realizar juízos mais neutros, ou seja, de
quais é possível, em tese, descobrir no- aplicar os critérios relevantes de modo
vos fatos sobre elas e, portanto, so- ponderado e não tendencioso. O que se
bre nós. Em particular, tais modelos vê na prática, porém, está longe de ser
permitem automatizar a descoberta e satisfatório. Não raro, os modelos têm
a aplicação de categorias. Estas po- apresentado vieses, atribuindo um peso
dem ser tão amplas quanto “bom pa- inadequado a certos critérios de modo
gador” ou tão específicas quanto “in- sistemático. Os exemplos mais marcan-
divíduos que compram sem ponderar tes envolvem vieses de gênero e raça.
muito à noite”. Para além de carac- No caso do COMPAS (Correctional of-
terísticas individuais, claro, esse pro- fender management profiling for alterna-
cesso de categorização pode ser apli- tive sanctions), ferramenta utilizada nos
cado também a comportamentos es- EUA para categorizar detentos e auxi-
pecíficos (adequado, inadequado, sus- liar na decisão sobre a concessão de li-

1 É comum argumentar que o modelo está sendo usado para “auxiliar” o juízo humano, e não para substituí-lo. Raramente esse
é o caso, contudo. Se N documentos forem categorizados por um modelo como sendo uma demanda jurídica de tipo X, e se essa
categorização não for validada, documento a documento, por um ser humano, o que se fez foi substituir o uso do juízo humano nas
categorizações não revisadas. O problema, claro, é que a necessidade de revisar caso a caso mina o objetivo da aplicação dos modelos,
que seria justamente o de evitar a necessidade de analisar cada documento, um por um.
2 Sobre o COMPAS, ver Brennan e Dieterich (2017).

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berdade condicional2 , detectou-se que ficar essa confiança?


ela atribui um maior risco de reincidên- O objetivo desse texto é mostrar que
cia a pessoas negras (ANGWIN et al., uma boa resposta a essa pergunta de-
2016). Foi também detectado viés racial pende de uma análise mais profunda
em sistemas de saúde (OBERMEYER et e abrangente do que se tem feito até
al., 2019), e viés de gênero (desfavorá- o momento. Para isso, adotou-se a se-
vel à mulher) em sistemas de análise fi- guinte estratégia: na seção 2, serão in-
nanceira (PEACHEY, 2019). Desde que troduzidas algumas características ge-
esses e outros casos vieram à tona, teve rais dos modelos computacionais, e o
início uma ampla discussão sobre se e modo como vieses podem sedimentar-
como é possível eliminar, ou ao menos se. Na seção 3, faremos uma conexão
mitigar, esse efeito em modelos compu- entre problemas clássicos das pesqui-
tacionais. sas em IA e o desafio de mitigar ou
Em defesa desses sistemas, há quem eliminar vieses, concluindo preliminar-
argumente que vieses algorítmicos são mente que, embora isso seja possível,
mais facilmente tratáveis que vieses é um erro conceber essa tarefa como
presentes em juízos humanos: é mais sendo a de buscar um juízo neutro ou
fácil alterar um código do que um co- desinteressado. Pelo contrário: um
ração.3 Talvez seja verdade, mas isso juízo algorítmico não enviesado é pre-
não significa que eliminar vieses algo- cisamente aquele que tem como pano
rítmicos seja fácil. O grau de dificul- de fundo os valores e interesses da co-
dade depende, em parte, da transparên- munidade em que o sistema atua, ou
cia com que o modelo aplica os critérios seja, nas regulações que essa comuni-
de categorização. Se for possível averi- dade estabelece. Na seção 4, já mu-
guar em função de quê um dado mo- nidos de ferramental conceitual mais
delo aplica uma certa categoria a um in- adequado, aprofundaremos a questão
divíduo, objeto ou comportamento, será da confiança nos modelos computacio-
possível submeter essa aplicação à crí- nais, desenvolvendo a tese de que essa
tica do juízo humano. Contudo, mesmo confiança injustificada é parcialmente
sendo opacos quanto ao seu funciona- responsável pela introdução de vieses
mento, esses modelos costumam gozar no modo como as atividades humanas
da confiança das pessoas e isso significa se estruturam e, consequentemente, em
que, muitas vezes, não há sequer mo- nossas tentativas de mitigá-los.
tivação suficiente para que se busque
averiguar a existência de vieses. Mas é
possível, num cenário como esse, justi-

3 Isso é defendido por Mullainathan (2019).

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II car parte da acurácia e utilizar heurísti-


cas, isto é, regras que podem falhar, mas
que capturam um número aceitável dos
Podemos tomar como ponto de partida casos desejados. É perfeitamente possí-
a seguinte pergunta: como vieses se vel que bons pagadores tenham enfren-
estabelecem em modelos computacio- tado dificuldades nos últimos 12 meses,
nais? Uma boa resposta deve considerar e pode-se acrescentar ao sistema algu-
a existência de, pelo menos, dois tipos mas regras que tentem reduzir o peso
de modelos computacionais: os clássi- desse critério, caso o candidato receba
cos e os neurais. Modelos clássicos são boa classificação em outros, mas nem
aqueles que fazem uso de estatística tra- sequer se cogita abarcar todas as pos-
dicional. São desenhados diretamente síveis variações circunstanciais. Busca-
por engenheiros a partir de categorias se apenas atingir margens de erro acei-
já conhecidas e com critérios de demar- táveis, a depender dos objetivos com o
cação claros. Trata-se do tipo de mo- uso do modelo.
delo utilizado na maioria dos softwares O uso de regras hiper-refinadas para
de gestão tradicionais. Neles, as cate- aplicar categorias, contudo, é o ponto
gorizações são feitas por satisfação de forte dos modelos neurais. A ideia de
regras explícitas que expressam condi- utilizar uma arquitetura inspirada na
ções necessárias e suficientes. Regras estrutura cerebral é antiga, mas ganhou
como “será considerado um bom paga- fôlego renovado na década de 1980 em
dor o candidato que não apresentar re- função do trabalho de McClelland et
gistros de inadimplência nos últimos 12 al. (1987) e Rumelhart et al. (1986).
meses”. Sendo tanto a estruturação dos Contudo, o protagonismo contemporâ-
dados quanto a elaboração das regras neo desse tipo de modelo nas pesquisas
uma atribuição dos engenheiros, a pre- em IA veio apenas muito recentemente,
sença de vieses será de sua responsabi- já na década de 2010, numa variante
lidade. Vem daí a importância da trans- que se convencionou chamar de deep le-
parência característica desses modelos: arning. Esse protagonismo resultou em
estando as regras explícitas, é possível uma associação direta entre a constru-
auditá-las e analisá-las a fim de detec- ção de modelos neurais e a construção
tar vieses.4 A limitação desse tipo de de sistemas inteligentes, como se um
sistema, contudo, aparece já na largada: sistema pudesse ser considerado inteli-
a necessidade de explicitar todas as re- gente apenas em função de ter sido pro-
gras utilizadas, uma a uma. Em fun- jetado numa arquitetura neural. Isso é,
ção disso, há uma tendência em sacrifi-

4 É preciso, claro, que o código fonte do sistema esteja disponível para análise, mas o ferramental conceitual necessário para tratar
disso, seja na esfera privada, seja na pública, já está bem estabelecido.

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no mínimo, impreciso. Apesar disso, gras ou critérios que podem ser utili-
não são poucos os produtos comerci- zados para detectar a presença de um
ais que utilizam variantes do selo “con- elefante. Como o processo é automa-
tém IA” (de sistemas jurídicos a esco- tizado, a limitação que se apresentava
vas de dentes elétricas) graças à popu- nos modelos clássicos é mitigada: mo-
laridade dessa associação. Talvez “con- delos neurais são capazes de conden-
tém modelos inspirados em redes neu- sar uma quantidade gigantesca de crité-
rais” seja menos interessante comercial- rios interdependentes entre si. Ele pode
mente, embora mais preciso. Esse é um perceber, por exemplo, que a presença
ponto importante porque, em larga me- de presas de marfim é um elemento re-
dida, a confiança que se deposita nesse levante, mas não essencial, e o mesmo
tipo de sistema vem de sua associação ocorre com o número de patas, orelhas
com a IA. ou algumas de suas propriedades (cor,
Apesar dessa confiança, redes neu- tamanho, etc.). O mesmo tipo de proce-
rais também apresentam vieses, e como dimento pode ser utilizado para gerar
seu uso tem se intensificado nos últi- modelos minuciosos da atividade hu-
mos anos, é importante compreender mana, permitindo um juízo bastante re-
algumas de suas particularidades, a co- finado, personalizado e sensível a vari-
meçar pela estratégia de geração des- ações circunstanciais.
ses modelos. Enquanto modelos clás- Sendo assim, modelos neurais podem
sicos são desenhados diretamente pelo apresentar vieses tanto em função do
engenheiro, modelos neurais são gera- algoritmo de aprendizado, quanto em
dos indiretamente por um algoritmo de função do conteúdo presente nos da-
treinamento.5 Esse algoritmo é apli- dos utilizados para o treinamento. É
cado sobre uma base de dados e busca, possível, por exemplo, treinar um mo-
grosso modo, detectar correlações entre delo que compile os perfis históricos de
os elementos ali presentes. Se a base ocupantes de um determinado cargo e
de dados for composta por, digamos, fo- usá-lo para identificar perfis semelhan-
tos de elefantes, o resultado poderá ser tes em novos candidatos. Nesse cená-
um modelo capaz de distinguir se existe rio, ainda que o gênero não seja um
ou não um elefante numa foto, ainda critério explícito, a presença diminuta
que essa foto não esteja entre as que de mulheres no histórico de ocupan-
foram utilizadas para treiná-lo. O que tes daquele cargo pode fazer com que
o algoritmo de treinamento faz é aná- o modelo privilegie currículos masculi-
logo a tentar identificar, ele mesmo, re- nos. Contudo, seria apressado concluir

5 É comum que se fale também em “algoritmo de aprendizado”, ou “aprendizado de máquina” (machine learning). Todos esses
termos serão aqui utilizados como tendo o mesmo significado.

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que a presença de vieses é sempre re- de critério disponível depende de con-


sultado direto de um desequilíbrio esta- trafactuais (“se lhe houvesse sido con-
tístico. O estudo de Rambachan e Roth cedida liberdade condicional, ele te-
(2019), por exemplo, sugere que a rela- ria cometido um crime, logo, evitamos
ção é menos direta, e que o modelo re- um crime”), mas esse é o tipo de afir-
sultante poderia apresentar, inclusive, o mação que supõe a acurácia do mo-
viés inverso, a depender do modo como delo, justamente aquilo que precisaria
o treinamento se deu. Isso significa ter sido demonstrado. Se realmente fi-
que, para detectar um viés num modelo zermos uso desse tipo de raciocínio, es-
neural, não é suficiente fazer uma aná- taremos ou incorrendo numa falácia (no
lise dos dados utilizados para o treina- caso, petição de princípio), ou confi-
mento. Igualmente insuficiente é veri- ando numa nada objetiva sensação de
ficar se o modelo apresenta os resulta- que, não fosse pelo uso do modelo, os
dos esperados contra um conjunto de resultados seriam ainda piores.
casos utilizados para testá-lo. Um re- Por isso, é importante compreender
sultado correto não garante que o “raci- que tipo de estratégia os modelos neu-
ocínio” utilizado pelo modelo seja ade- rais utilizam em suas categorizações.
quado a ponto de podermos confiar nas Em geral, tenta-se lidar com casos no-
suas predições em casos novos. vos a partir de uma espécie de gene-
Uma das razões para essa dificuldade ralização. O que o algoritmo de trei-
é que nem sempre existe uma referên- namento tenta fazer, de modo simpli-
cia clara contra a qual se possa mensu- ficado, é encontrar um grau adequado
rar a eficiência de um modelo. Caso o de tolerância à diferença. É preciso que
objetivo seja detectar elefantes ou iden- ela seja grande o suficiente para detec-
tificar pessoas usando máscaras numa tar elefantes que tenham característi-
multidão, então é possível averiguar o cas nunca encontradas (na cor da pele
desempenho, afinal, se o sistema con- ou na textura, por exemplo) e em con-
fundir um esquilo com um elefante, o dições nunca encontradas (perspectiva,
erro será evidente. O mesmo não acon- distância, iluminação, etc.). Por outro
tece, contudo, quando se faz uso desse lado, a tolerância não pode ser grande a
tipo de modelo para predizer compor- ponto de fazer o modelo reconhecer ele-
tamentos futuros. Como avaliar o grau fantes onde não existem, gerando falsos
de eficácia nesses casos? O único tipo positivos.

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Uma das principais formas pelas (2019) mostraram que, ao tentar identi-
quais vieses podem se acomodar em ficar um certo tipo de peixe para o qual
modelos neurais, portanto, se dá no um modelo fora treinado, um dos crité-
modo como a generalização é realizada. rios era a presença de dedos humanos.
Preliminarmente, é importante notar o Esse tipo de peixe é rotineiramente to-
problema, antecipado por Hubert Drey- mado como um troféu por praticantes
fus6 , de que há incontáveis formas a de pesca, e a maior parte das fotos uti-
partir das quais os objetos podem ser lizadas para o treinamento era de pes-
semelhantes ou distintos. Proprieda- cadores segurando-os com as mãos.
des físicas como a presença abundante Como lidar com esse cenário? Uma
de água ou uma certa temperatura, es- primeira possibilidade é a de tentar
tão presentes tanto no corpo humano compensar uma tendência com outra:
quanto em um copo d’água. A forma se o modelo tende a priorizar a textura
pela qual um algoritmo de treinamento sobre a forma, ou priorizar um gênero
toma certas características como rele- sobre o outro, podemos reverter esse
vantes e outras como irrelevantes pode desvio introduzindo uma tendência
variar enormemente, portanto. Geirhos contrária. Em tese, isso pode ser feito
et al. (2019), por exemplo, descobri- tanto por meio de alterações diretas
ram que alguns modelos adquiriram no algoritmo de treinamento, quanto
um viés que os fazia atribuir prima- pela seleção cuidadosa das amostras
zia à textura de um objeto na hora de que constituirão a base de dados utili-
tentar reconhecê-lo, em detrimento de zada. Porém, mesmo nos casos em que
sua forma. Isso ajuda a entender o isso se mostra viável, não será uma ta-
porquê de uma criança conseguir re- refa simples. A compensação de um
conhecer um elefante, ainda que ele viés pode resultar na introdução de vá-
se apresente na forma de um rabisco rios outros, sem que se perceba. As-
simples, enquanto um modelo treinado sim, é preciso analisar detalhadamente
somente com fotos tende a falhar. De o modelo8 e tentar identificar a cadeia
fato, aquilo que é tomado como rele- de “raciocínio” que ele segue, e essa não
vante pode soar ainda mais estranho é uma tarefa acerca da qual seja pos-
do que uma mera propensão a achar sível garantir uma conclusão confiável
que a textura da pele é uma proprie- em todos os casos.
dade essencial para determinar a pre- Tudo isso sugere que a imagem ven-
sença de um elefante.7 Brendel e Bethge dida por Mullainathan (2019), segundo

6 Dreyfus expôs um argumento nessa linha na edição de 1992 do seu famoso What computers still can’t do, cuja primeira versão fora
publicada ainda em 1972. Ver a introdução adicionada em Dreyfus (1992).
7 O exemplo é utilizado por Gary Marcus (2018; 2019) em sua crítica ao deep learning.
8 A análise de agrupamentos (clusters) é um exemplo de ferramenta que pode ser utilizada para esse fim.

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quem é mais fácil mudar algoritmos e especificidades de cada situação. As-


do que corações, pode ser enganosa- sim, não parece possível uma teoria ge-
mente simplista. Vieses algorítmicos ral da relevância que aponte regras ge-
nem sempre podem ser facilmente de- rais como “será relevante todo elemento
tectados, tampouco facilmente resolvi- que. . . .” de um modo independente das
dos. Dado o que se discutiu até aqui, situações concretas. Em vez de uma te-
contudo, não vimos razão para deixar oria, o resultado seria uma lista sem fim
de pensar que se trata de um problema de possíveis tarefas que se possa vir a
de engenharia. Os resultados questio- querer realizar em diferentes situações,
náveis apresentados por sistemas atu- indexando cada possível combinação a
ais seriam explicáveis por técnicas fa- uma lista dos elementos que lhe seriam
lhas ou pouco amadurecidas que po- relevantes.
dem vir a ser corrigidas. Nessa perspec- Algo análogo se dá no caso dos vie-
tiva, a eliminação dos vieses é questão ses. Não parece possível criar uma te-
de tempo. oria geral do viés, que permita aos en-
Porém, há armadilhas. A principal genheiros elaborar uma solução geral
delas é que tratar de vieses é um pro- para a questão. A depender dos objeti-
blema geral para o qual existem ape- vos específicos e das situações concre-
nas soluções particulares. Para enten- tas com as quais lidamos, o que pode
der a natureza desse problema, pode-se ser adequado num caso pode se mos-
fazer uma analogia com o conceito de trar inadequado em outro. Isso sugere
relevância: um objeto só se torna rele- que pode haver uma dificuldade mais
vante no interior de uma tarefa especí- profunda envolvida na tentativa de ge-
fica. Se o gerente de uma empresa quer rar modelos isentos de viés. Uma difi-
repassar uma tarefa a um funcionário e culdade que não depende da existência
manda-lhe uma mensagem como “pre- ou não de boas técnicas de engenharia,
ciso que você realize uma tarefa, então e que não pode, portanto, ser tomada
vá separando todos os materiais rele- como um mero problema técnico. Não
vantes e, em meia hora chego aí e lhe seria a primeira vez em que uma em-
explico o que preciso”, gera-se um pro- preitada científica se depara com desa-
blema. Como é possível supor o que fios análogos. Em particular, problemas
será relevante antes de saber qual a ta- de relevância aparentemente insolúveis
refa adequada? A relevância não é uma são velhos conhecidos dos pesquisado-
propriedade intrínseca dos materiais res em IA, e o conhecimento acumu-
em questão, mas sim do papel que eles lado em torno das tentativas (falhas) de
exercem no interior de algum processo. solucioná-los se mostra bastante útil.
Esse papel pode variar radicalmente
em função dos objetivos, expectativas

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III tou reproduzir essa capacidade a partir


do mesmo ferramental lógico e mate-
Classicamente, a inteligência foi conce- mático que utilizava para outros fei-
bida como algo muito próximo da capa- tos, como o de jogar xadrez. A natu-
cidade para o raciocínio lógico e mate- reza das dificuldades encontradas, con-
mático. Não por acaso, ainda nos anos tudo, sugere que algo radicalmente di-
1990, quando o sistema Deep Blue ven- ferente está em jogo: a sensibilidade ao
ceu Kasparov numa partida de xadrez9 , contexto não é um feito da capacidade
muitos tomaram o evento como uma de raciocínio lógico, mas uma condi-
prova do sucesso da IA e da validade ção necessária para que ela seja pos-
dos seus pressupostos: a inteligência sível. Como veremos, na ausência de
humana pode ser modelada computa- um contexto bem delineado, qualquer
cionalmente, afinal.10 Como o Deep raciocínio tende a se perder em infin-
Blue conseguia antecipar um número dáveis inferências completamente irre-
de jogadas muito maior do que um ser levantes. Mas por que a sensibilidade
humano consegue, parecia possível di- ao contexto é um desafio? Para enten-
zer que o computador tinha, de fato, der isso, é importante conhecer o modo
não apenas apresentado um comporta- como esse problema se manifestou na
mento legitimamente inteligente, mas história pregressa da IA.
também que o fez num grau superior Toda situação em que uma dada ação
ao nosso. ou decisão ocorre pode ser caracteri-
Contemporaneamente, contudo, zada, ainda que de modo vago, por
pode-se afirmar que essa concepção de um enquadramento (também chamado
inteligência abarcava somente a ponta de frame), tal como: estar em casa,
do iceberg. Isso se mostra quando dei- estar de férias, realizar uma compra,
xamos de prestar atenção aos alegados etc. Quando adentramos o carro de um
sucessos da IA, e passamos a focar nas motorista de aplicativo, por exemplo,
razões dos seus fracassos. Foram eles o comportamento adequado, tanto de
que tornaram saliente a importância da nossa parte, quanto por parte do moto-
sensibilidade ao contexto, isto é, a ca- rista, depende de compreendermo-nos
pacidade de se adaptar, de modo rá- no interior de um mesmo frame. Na
pido e fluido, às mais variadas nuanças IA clássica11 , houve uma tentativa di-
circunstanciais. Inicialmente, a IA ten- reta de modelar esses frames na forma

9 Em entrevista recente para Fridman (2019), Kasparov confessou ter ficado bastante abalado, visto que aquela não era sua primeira
derrota para um computador, mas sim sua primeira derrota em um jogo oficial.
10 Ver, por exemplo, o debate em Dennett e Dreyfus (2005).
11 Por “IA clássica” entendemos aqui a empreitada que se desenvolveu com mais ênfase entre os anos 1960 e 1980. Na literatura da
área, esse período costuma ser caracterizado pela ênfase no uso de modelos computacionais clássicos, sendo por vezes chamada de
IA simbólica ou, seguindo a famosa sugestão de Haugeland (1989), GOFAI (Good old fashioned AI).

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de conjuntos de regras, mais ou menos tamos num restaurante e encontramos


como os que constituem e regulam as ali um colega de trabalho, uma série
ações adequadas num jogo de xadrez. de regras ligadas a esse outro domínio
Assim como o Deep Blue tinha por base pode se fazer valer ali (talvez seja pru-
um modelo daquilo que é adequado ou dente beber menos do que o desejado).
não, a depender da disposição de cada O mesmo vale para encontros que tra-
peça no tabuleiro, havia a crença de que gam más lembranças, uma notícia ruim
o mesmo poderia ser feito para guiar que chega ao celular ou uma mosca a
comportamentos em restaurantes, esco- incomodar.
las e festas. Tais modelos funcionariam Apesar disso, seria um erro inferir
como pequenos roteiros que descrevem que restaurantes não constituem um
as estruturas das atividades, ao menos domínio distinto. Frames são uma es-
em condições normais.12 Num restau- pécie de domínio aberto, isto é, um do-
rante, poderíamos dizer que a entrada mínio cujas bordas são borradas, mas
é servida primeiro, e que é aceitável re- não a ponto de se dissolverem: há sim
jeitar uma sobremesa, mas que deixar regras que guiam, ainda que de modo
de pedir um prato principal demanda- vago e geral, nossa compreensão do que
ria uma justificativa plausível. Em tese, caracteriza um comportamento ade-
isso permitiria que um sistema gui- quado ou inadequado em restauran-
ado por tais modelos “soubesse” como tes. Contudo, ao contrário do xadrez,
se comportar naquele ambiente, assim essas regras não tratam explicitamente
como “sabem” se comportar num jogo de todas as situações possíveis que po-
de xadrez. dem ocorrer naquele ambiente. No xa-
A despeito do otimismo quanto a essa drez, podemos dizer algo como: “mo-
abordagem, logo descobriu-se que jo- ver uma torre na transversal é ilegal, e
gos de xadrez e restaurantes funcionam você deve, portanto, voltar atrás nessa
de modo bastante distinto. Restauran- jogada”. Já num restaurante, não faria
tes não parecem tratáveis nos termos sentido dizer: “correr não consta nas
de um conjunto de regras porque não regras que guiam os comportamentos
constituem domínios autônomos, isto é, possíveis em restaurantes, por isso só
nosso comportamento em restaurantes me resta ignorar o seu aviso de fogo”.
não se deve apenas àquilo que sabemos Um modo de compreendermos essa di-
sobre restaurantes. Há uma interação ferença é percebendo que toda regra
marcante com vários outros domínios, vigente no interior de um frame car-
mesmo em condições normais: se es- rega consigo uma cláusula ceteris pa-

12 Entre as abordagens mais famosas estão os scripts de Schank (1975) e os frames de Minsky (1997). Note que, em Minsky, o termo
frame é utilizado não para designar enquadramentos que caracterizam estruturas das atividades humanas, mas sim a estrutura de
dados utilizada para modelar computacionalmente esses enquadramentos.

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ribus. Algo como “proceda de tal modo, ser inserido no sistema e que venha a
a menos que haja uma razão suficiente- se mostrar relevante na interpretação
mente forte em contrário”. Mas o que da atual situação por parte do jogador.
conta como uma razão suficientemente Seria possível, por exemplo, informar
forte? Essa questão será mais desen- ao jogador ou acrescentar a um modelo
volvida logo adiante. O importante a o número de vezes que cada peça foi
notar, por ora, é que a capacidade de usada, ou a média de movimentos que
seguir regras que contém cláusulas cete- cada peça costuma realizar antes de ser
ris paribus é dependente da capacidade tomada, mas nada disso seria relevante
de discernir quando, e em que medida, para modificar a compreensão de que
é adequado segui-las. Acompanhando o jogador (ou o modelo) tem da atual
uma tradição da IA sobre a qual fala- situação. Consequentemente, nenhum
remos logo adiante, vamos chamar essa destes fatos serão relevantes para deter-
capacidade de senso comum. minar o comportamento adequado.
Podemos agora sintetizar esse ponto Já em domínios abertos, como no caso
afirmando que a distinção entre o do- dos frames que caracterizam as estrutu-
mínio do xadrez e o domínio de um res- ras das atividades humanas, o contexto
taurante é que um comportamento ade- é insaturável. Isso significa que qual-
quado no interior do segundo depende quer fato pode se mostrar subitamente
do senso comum. Como essa depen- relevante na hora de determinar o que
dência emerge? Chamemos os domí- constitui um comportamento adequado
nios dependentes do senso comum de ou não naquela situação. Vejamos um
domínios abertos e os independentes de exemplo para tornar essa ideia mais
domínios fechados. Em domínios fecha- clara. Suponha-se que, por uma ra-
dos, um contexto (uma situação especí- zão qualquer, estejamos interessados
fica no decorrer do jogo, por exemplo) em prever se o cachorro de um vizi-
é sempre definido e articulado a partir nho latirá no próximo sábado.13 Se-
das regras que constituem aquele domí- riam as informações acerca do campeo-
nio. Se um jogador observa o tabuleiro e nato mundial de xadrez que se realizará
interpreta a disposição das peças como sábado, num país distante, relevantes
caracterizando uma ameaça ao seu rei, para nossa empreitada? Parece evidente
os únicos fatos relevantes para essa ca- que não. Contudo, bastam dois fatos
racterização são aqueles oriundos das para que isso se inverta radicalmente:
regras do jogo. Nesse sentido, o con- primeiro, que o vizinho em questão é
texto de “ameaça ao rei” é dito saturado. irmão de Magnus Carlsen, atual cam-
Não há nenhum fato novo que possa peão mundial de xadrez que defenderá

13 O exemplo é inspirado em Samuels (2010).

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seu posto no próximo sábado. Segundo, cimentos acerca da estrutura das ativi-
que ele tem por hábito comemorar as dades humanas (os frames que as cons-
vitórias do irmão com fogos de artifício. tituem) quanto um certo modo de fa-
Estes dois fatos tornam saliente uma zer uso dele. Modelar computacional-
parte de nosso conhecimento que, até mente essa forma caracteristicamente
aqui, parecia irrelevante: cães tendem humana pela qual se faz uso desse co-
a se assustar e latir em função de fogos nhecimento é um desafio bem conhe-
de artifício. Subitamente, esse conjunto cido pela IA desde seus primórdios, em
de fatos deixa claro que o campeonato 1956.15 Mccarthy (1968), um dos prin-
mundial de xadrez aumenta as chances cipais pesquisadores da época, detec-
de o cachorro latir no sábado.14 Esse tou esse desafio e dedicou-se a ele já
exemplo ilustra a tese de que, em domí- na largada da empreitada, sem grande
nios abertos, não há caracterização pré- sucesso, contudo. Uma das razões do
via de todos os fatores potencialmente fracasso é que modelar o senso comum
relevantes, tampouco do efeito que eles envolve tratar de um tipo de conheci-
podem vir a ter sobre o comportamento mento que nos soa tão evidente, que é
humano. difícil até mesmo explicitá-lo.
A distinção entre domínios abertos Um novo exemplo pode ajudar.
e fechados é importante para compre- Suponha-se um cenário em que se está
ender os problemas enfrentados pela a ensinar uma receita para alguém. A
IA porque, em modelos computacio- exposição das instruções parece trivial:
nais, todo contexto é forçosamente tra- apontam-se os ingredientes necessá-
tado como se fosse saturado. A tenta- rios, a quantidade adequada, o tempo
tiva de modelar contextos insaturáveis que devem permanecer ao fogo, etc.
enfrenta desafios que muitos autores Quão estranho seria, durante a expo-
entendem ser insuperáveis. Para nos- sição das instruções, ouvir perguntas
sos propósitos, o mais relevante deles como essa por parte do aluno: pode
é o que ficou conhecido como o pro- a cor do açúcar se alterar se eu tirá-lo
blema do senso comum. Já vimos que o do pacote e colocá-lo nesse pote? Se
senso comum envolve a capacidade de eu encostar a faca na manteiga, pode
lidar com cláusulas ceteris paribus, mas a faca derreter? Se eu colocar água na
ainda não sabemos exatamente em que jarra de vidro, ela vai retê-la? Notei que
isso consiste para as pesquisas em IA. você colocou uma faca na gaveta e não a
Numa primeira aproximação, o senso vejo mais, ela ainda existe? Percebi que
comum é tanto um conjunto de conhe- você deu exatamente 78 voltas ao tentar

14 Outro fato que se torna saliente é que o vizinho em questão é pouco sensível ao bem-estar canino.
15 Conforme Boden (2006).

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bater os ingredientes, funcionaria tam- colossal, mas há quem tente realizá-la.


bém com 77? E com 79? O exemplo mais lembrado é o CYC de
O conhecimento que evitaria esse Lenat et al. (1990). Ele iniciou seus
tipo de pergunta é o que constitui o trabalhos na década de 1980 e, embora
senso comum. Note que não se trata de tenha conseguido gerar um produto co-
um saber obtido via educação formal, mercial aplicável a automações, não há
pois espera-se que mesmo uma criança, nenhum avanço significativo no obje-
por mais imaginativa que seja, não te- tivo mais amplo de modelar o senso co-
nha dúvidas como essas. Isso sugere mum. Segundo o site da empresa Cy-
que, para que um modelo computaci- corp (2020), sua base de conhecimento
onal seja capaz de realizar aquela ati- dedicada ao senso comum possui hoje
vidade, ele precisa que figure ali, de mais de dez mil predicados, 25 milhões
modo explícito numa espécie de lista de asserções e milhões de coleções de
gigantesca, essas e outras incontáveis fatos e conceitos. Seria um tanto sur-
“obviedades”. Sem isso, o sistema não preendente se realmente precisássemos
será capaz de raciocinar como um ser supor a existência de todo esse volume
humano, dando vazão a comportamen- informacional em nosso aparato cogni-
tos bizarros. tivo apenas para explicar a capacidade
Elaborar essa lista parece trabalhoso, de concluir que uma faca não deixa de
mas por que acreditar que esse pode existir ao ser guardada.
ser um problema insolúvel? Um pri- Acumular informações, no entanto, é
meiro desafio é o de gerar a informação. a parte fácil. Mesmo um sistema que
Pode-se imaginar que o Big Data é de detenha toda a informação necessária
grande valia, mas as informações tipi- acerca de todos os possíveis contextos,
camente presentes nele raramente ser- precisa também ser capaz de estruturá-
vem a esse fim. O que existe ali são da- la adequadamente, ou não poderá cir-
dos sobre decisões tomadas e comporta- cunscrever a porção desse saber que é
mentos adotados, não sobre aquilo que relevante para a situação específica em
os motivou ou sobre a cadeia de raci- que se encontra. Como vimos anteri-
ocínio que lhes deu origem. É prová- ormente, os contextos que caracterizam
vel que as informações necessárias para nossa estruturação do mundo têm ca-
evitar as perguntas estranhas do apren- ráter insaturável. Isso significa que,
diz de cozinha não existam em base de aquilo que é adequado ou não a uma
dados alguma. Parece que dependemos, dada circunstância pode variar enorme-
portanto, de um esforço reflexivo para mente em função de uma quantidade
tentar identificar em larga escala todos potencialmente infinita de elementos.
os pequenos conhecimentos que carac- No exemplo do restaurante, mesmo fa-
terizam o senso comum. É uma tarefa tos sobre elementos ausentes (no caso,

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colegas de trabalho) podem ser rele- clássica. Era sua única opção.
vantes para caracterizar o contexto a Sendo esse o caso, como deve esse co-
partir do qual a atividade se dará, e es- nhecimento ser organizado? Uma exi-
sas possibilidades precisam estar pre- gência essencial é que essa estrutura
sentes nos modelos, ou o sistema agirá seja isomórfica à estrutura de frames
como se não existissem. Mas se esse é que caracterizam as atividades huma-
o caso, como distinguir, por princípio, nas. Na história da IA, esse problema
ausências relevantes das irrelevantes? organizacional ficou conhecido como
Podemos perceber agora a falta que nos frame problem.16 Ele se mostrou um
faz uma teoria geral da relevância, pois desafio especialmente difícil porque a
emerge aqui uma dificuldade crucial: organização adequada é, ela mesma,
um frame não pode ser computacional- dependente de contexto. Repare como
mente modelado tal como se fosse um a dificuldade do aprendiz de cozinha
script ou roteiro vago daquilo que é ade- não se dava pela completa ausência de
quado ou não e daquilo que é relevante conhecimento, mas pela sua desorga-
ou não em uma dada situação. Isso ge- nização. Ele dispunha de inúmeras
raria um comportamento inadequado informações sobre o mundo, mas não
por parte do sistema, pois a capacidade conseguia fazer bom uso delas, origi-
de seguir um tal script, sem se perder na nando perguntas descabidas no inte-
consideração de possibilidades esdrú- rior daquele frame. Espera-se que um
xulas e irrelevantes, pressupõe o senso ser humano seja capaz de reconhecer
comum. Ele é o responsável por re- que está no interior de um frame como
solver as vaguezas e preencher tudo o “aula de gastronomia”, e que guie sua
que não estiver explicitado no roteiro. compreensão dos contextos que ali en-
Para embutir o senso comum em mo- contrar a partir disso. Diante de uma
delos computacionais, resta então uma instrução como “mexa até ficar consis-
única alternativa: encontrar uma forma tente”, é essa capacidade que lhe per-
de “catalogar” e organizar todas as pos- mitirá entender que o verbo mexer diz
sibilidades lógicas, tratando domínios respeito ao preparo, e não a um talher
abertos como gigantescos domínios fe- (que pode se mexido fora da panela) ou
chados. Essa é a razão pela qual mode- ao seu corpo (que o aprendiz pode me-
los computacionais só conseguem tratar xer, mas sem qualquer efeito sobre o
de contextos como se fossem saturados. preparo). Essa mesma compreensão lhe
Não foi por acaso, portanto, que esse permitirá ordenar os conhecimentos,
caminho tenha sido escolhido pela IA priorizando os mais relevantes: como

16 Note que, na literatura da IA, o termo “frame” em “frame problem” pode ter significados distintos do que se vem chamando aqui
de frame, como é o caso em Minsky (1997). Contudo, a natureza do problema é a mesma. Para uma defesa dessa compreensão, ver
Barth (2018).

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detectar a consistência? Deve-se usar que se trata de um restaurante? Não.


as capacidades motoras, de modo a sen- Note-se como todos esses elementos são
tir a crescente resistência do preparo também compatíveis com quartos de
aos movimentos, ou deve-se priorizar hospitais e mesmo refeitórios de cer-
o conhecimento matemático, de modo tos presídios. O que fazer diante disso?
a contar o número de voltas que a co- É suficiente aumentar a quantidade de
lher usada faz? Não é difícil imaginar elementos verificados? Acrescentemos,
pequenas variações contextuais que al- por exemplo, a informação de que há
terariam completamente a prioridade talheres de plástico. Isso conta pontos a
atribuída a cada parcela de conheci- favor da hipótese do refeitório no presí-
mento do senso comum. Assim, o frame dio e do hospital, mas também torna sa-
problem não é apenas o problema de en- liente a possibilidade de ser um restau-
contrar “o” modo certo de organizar a rante com uma área infantil. Quantas
informação que caracteriza o senso co- características a mais deveríamos che-
mum, mas sim o problema de como mo- car então, antes de concluirmos com se-
delar a nossa capacidade de rever con- gurança? A depender do contexto, um
tinuamente essa organização (e as pri- único elemento saliente pode ser sufici-
oridades atribuídas a cada parcela em ente, enquanto em outros casos, mesmo
função de sua relevância na situação que chequemos dezenas, a questão per-
concreta), e isso para todo e qualquer manecerá em aberto. Além disso, a
contexto, mesmo aqueles com os quais qualquer momento uma nova informa-
nunca tivemos contato prévio. ção pode nos fazer rever o significado e
Para entender porque esse é um pro- a relevância de todos os elementos ante-
blema grave, basta notar que essa or- riormente considerados, como quando
ganização é fruto de nos compreender- uma investigação policial sofre uma re-
mos no interior de um dado contexto viravolta em função de novas evidên-
caracterizado por um dado frame: “es- cias.
tou agora numa sala assistindo a uma A lição a extrair desse exemplo é que
aula de gastronomia”. Mas que tipo os critérios utilizados para detectar se
de critério pode ser usado para con- um certo cenário recai ou não sob uma
cluir a natureza dos contextos em que dada categoria são, eles mesmos, de-
nos encontramos? Imagine-se que al- pendentes de contexto. Não há critérios
guém está descrevendo objetos presen- gerais. Para tentar lidar com isso, pode-
tes num cenário e nós tenhamos que ríamos seguir muitos dos pesquisado-
adivinhar que cenário é esse. Já sabe- res da IA clássica e imaginar que frames
mos que ali há copos, colheres, mesas, se organizam de forma hierárquica: o
comida, líquidos, alguém servindo e al- frame “restaurante” seria uma espécie
guém sendo servido. Podemos concluir do gênero “evento social”. Um modelo

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computacional poderia então proceder tam do mundo humano como um gi-


segundo essa hierarquia: dado que se gantesco domínio fechado onde todos
trata de um evento social, pode-se des- os fatos que podem vir a ser relevantes
cartar a possibilidade de ser um hospi- precisam estar previamente explicita-
tal ou um presídio. Contudo, não é bem dos. Isso é desastroso, pois significa
assim. Essa hierarquia pode represen- que não há como modelar o senso co-
tar o que é típico, mas os contextos em mum sem que disso resultem proble-
que realizamos nossas atividades não mas computacionalmente intratáveis.17
estão limitados a essa tipicidade. Emer- Assim caracterizado, o frame problem
gências hospitalares podem ocorrer em parece associado ao uso de modelos
restaurantes, e jantares românticos po- computacionais clássicos. Neles, o de-
dem se dar em hospitais. Gera-se, as- safio toma a forma da tediosa e proibi-
sim, a necessidade de multiplicar inde- tiva tarefa de elaborar uma gigantesca
finidamente o número de frames e de lista de regras que delineie cada possí-
variações possíveis destes. O modelo vel contexto humano, bem como suas
computacional precisaria antever e or- propriedades e as possíveis relações en-
ganizar todas as variações circunstan- tre eles. Não por acaso, essa abordagem
ciais possíveis, bem como todos os ca- foi deixada de lado. Mas permanece em
minhos a partir dos quais os contextos aberto a questão sobre se os modelos
se alternam ou se mesclam entre si (um neurais teriam condições de evitar que
jantar romântico se torna uma emer- o problema venha à tona. Afinal, como
gência hospitalar caso alguém passe vimos, uma de suas principais vanta-
mal, e o fato de os dois serem colegas de gens era justamente a de se mostrar sen-
trabalho pode ter efeitos enormes sobre sível a um grande número de circuns-
o que se considera um comportamento tâncias sem a necessidade de modelar
adequado nessa situação). explicitamente um grande conjunto de
Em síntese, o que temos é um cená- regras. Vários autores depositaram suas
rio onde parece inescapável que trate- esperanças nisso.18 Infelizmente, esse
mos as situações do mundo humano tal tipo de modelo enfrenta sua própria
como tratamos jogos de xadrez. O frame versão dessa dificuldade.
problem nos limita a modelos que tra-

17 O frame problem foi primeiro descrito por Mccarthy e Hayes (1969) e foi tema de ácidos debates nos anos 1980 e 1990, tendo sido
retomado por um pequeno círculo no início dos anos 2010, sem qualquer sucesso ou avanço na sua solução, contudo. Uma antologia
desses debates pode ser encontrada em Pylyshyn (1987), Ford e Pylyshyn (1996) e Kiverstein e Wheeler (2012). Contemporanea-
mente, no campo das ciências cognitivas (psicologia e neurociência), esse tipo de dificuldade é evitada por apelo a elementos não
computacionais. Isso originou variantes diversas da chamada cognição situada. Ver, por exemplo, Varela, Rosch e Thompson (1992),
Clark (1998) e Chemero (2009). Para esses autores, a inteligência humana não pode ser modelada em termos computacionais. No
caso da IA, contudo, aceitar isso seria equivalente a desistir.
18 Ver, por exemplo, Churchland (1989).

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Algoritmos de treinamento também deveria ser 10, e assim por diante. A


enfrentam o desafio de arregimentar e um ser humano, bastam estes exem-
organizar toda a informação necessá- plos para que se perceba a regra sub-
ria para caracterizar o senso comum. O jacente: f(x)=x, ou seja, dado um nú-
que distingue essa abordagem é o modo mero qualquer, a resposta certa é esse
pelo qual se busca superar o problema: mesmo número. Contudo, no conjunto
em vez de tentar modelar a estrutura de dados utilizado para geração do mo-
diretamente, busca-se encontrar a base delo haviam apenas números pares. Se
de dados correta, isto é, aquela que per- o modelo gerado conseguir abstrair a
mita ao algoritmo de treinamento infe- regra desejada dos dados, segue-se que,
rir os frames que deram origem ao com- mesmo diante de um número ímpar
portamento registrado. Em parte, vem com o qual ele nunca teve contato pré-
daí a ideia comum de que um maior vio, ele não se acanhará e aplicará a
volume de dados pode resolver qual- mesma regra: se entrada for 3, a saída
quer problema de aprendizado, afinal, será 3. Isso não aconteceu. O sistema
quanto maior a base de treinamento, mostrava um número par qualquer, de
maiores as chances de que um subcon- forma um tanto errática, deixando claro
junto dela seja exatamente o que é pre- que ele não conseguiu abstrair a re-
ciso para inferir as estruturas subjacen- gra adequada, e que estava se guiando
tes à atividade em questão. Como vi- por algum outro critério. Isso é possí-
mos, em modelos neurais, inferir a es- vel porque há múltiplas regras que são
trutura de frames certa (isto é, aquela compatíveis com os dados.
que de fato originou o comportamento Soma-se a isso a já mencionada di-
humano registrado) significa encontrar ficuldade de compreender que tipo de
o modo certo de generalizar ou “abs- critério ou padrão está norteando as in-
trair” os critérios, regras ou padrões ferências do modelo: como vimos, não é
que o guiam. suficiente analisar os dados nem os re-
Um primeiro problema, portanto, é sultados. Suponha-se que tentemos cor-
o de que há um número indeterminado rigir o modelo de Marcus treinando-o a
de abstrações compatíveis com os da- partir de um conjunto de dados que in-
dos. Marcus (1998) fornece uma ilus- clui uns poucos números ímpares. Isso
tração dessa dificuldade. O autor trei- significa que ele agirá de acordo com a
nou modelos que deveriam receber um regra f(x)=x? Talvez, mas não necessa-
número, processá-lo e apresentar o re- riamente. O sistema poderá “concluir”
sultado adequado. A ideia era simples: que a regra adequada é “se x é par, a
se a entrada fosse 2, a saída deveria ser saída será x; se x é ímpar, a saída será x-1”
2; se a entrada fosse 6, a saída deve- ou ainda alguma outra regra qualquer,
ria ser 6, se a entrada fosse 10, a saída

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que pode ser de difícil determinação.19 o tamanho do vocabulário que ele do-
Uma outra versão dessa mesma difi- mina em seu idioma natal. Essa rela-
culdade se mostra quando tentamos fa- ção pode ser caracterizada como causal
zer com que um modelo distinga quais, porque, em geral, crianças tendem a ter
dentre as regularidades ou correlações mãos e vocabulários menores que adul-
mapeadas, constituem relações causais. tos.20
O papel do senso comum pode ser ob- Historicamente, o problema do senso
servado tanto em exemplos de falsos comum foi evitado pela circunscrição
negativos (correlações que não impli- dos sistemas, por parte dos engenhei-
cam causalidade) quanto de falsos po- ros, a contextos artificialmente delimi-
sitivos (correlações que, apesar de es- tados. Esse é o resultado direto do foco
tranhas, caracterizam relações causais). em problemas específicos, tais como
Vigen (2015) exemplifica que, a consi- o de jogar xadrez, e nada mais. Isso
derar os dados entre 1999 e 2009, existe diz muito sobre a natureza do trabalho
uma correlação entre o número de fil- realizado pelo engenheiro de um sis-
mes em que Nicolas Cage aparece e o tema: o que ele está fazendo é dando
número de pessoas que morreram afo- origem a um domínio fechado ou re-
gadas ao cair numa piscina. Dado o plicando algum já existente.21 O en-
senso comum que partilhamos, é des- genheiro adota um contexto de ativi-
necessário argumentar que não há uma dade humana como ponto de partida e
relação causal entre uma coisa e outra. “recorta” um conjunto de elementos e
Mas essa compreensão está fora do al- regras que serão considerados relevan-
cance de um algoritmo de aprendizado, tes. O estado de coisas que não for de-
podendo ele concluir qualquer coisa a terminável a partir destes, não fará di-
respeito, bastando que seja algo com- ferença alguma no comportamento do
patível com os dados. Por outro lado, sistema. No caso do xadrez, o sistema
há correlações um tanto estranhas que não precisa se preocupar em descobrir
são, de fato, relações causais. É bem co- se o peso ou a cor das peças é relevante
nhecida, por exemplo, a relação entre para a próxima jogada, simplesmente
o tamanho da mão de um indivíduo e porque essas propriedades são inexis-

19 Como se vê, algoritmos de aprendizado tem pouco apreço pela navalha de Occam.
20 Esses exemplos ilustram bem uma dificuldade já apontada do frame problem: em quais circunstâncias os conhecimentos perten-
centes a um frame podem afetar conhecimentos pertinentes a outro frame? A estruturação do conhecimento que caracteriza o senso
comum precisa ser, ao mesmo tempo, rígida o suficiente para sabermos que fatos sobre os filmes de Nicolas Cage não são relevantes
para fatos sobre acidentes domésticos com piscinas, mas flexível o suficiente para que percebamos como, às vezes, fatos biológicos de
um organismo podem ser relevantes no tratamento de fatos sobre o vocabulário de um indivíduo.
21 Jogos são bons exemplos de domínios fechados criados por nós. Quando convencionamos um determinado conjunto de regras
ou elementos (cartas, peças, tabuleiros etc.) o que estamos fazendo é determinar, por princípio, aquilo que será relevante ou não
no interior daquele jogo. Um engenheiro que busque então criar um modelo computacional desse jogo já terá para si um domínio
fechado com o qual trabalhar.

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tentes nesse domínio. Isso se mostra de peso, forma, etc.), continuamos a tra-
forma um pouco mais clara no caso de tar de um sistema automatizado, não
sistemas que precisem interagir fisica- de um sistema inteligente. A razão para
mente com o mundo, pois nestes casos o essa recusa em lhe atribuir inteligência
mundo pode impor ao sistema situações precisa estar clara: por mais comple-
que estão fora daquelas previstas no in- xos que sejam, sistemas que operam em
terior de seu domínio fechado. Note-se domínios fechados só conseguem lidar
como, no caso de robôs em linhas de com contextos saturados e, nesse sen-
produção, é preciso alterar e constran- tido, dependem que algum agente do-
ger o ambiente em que o sistema será tado de senso comum garanta que ele
posto para rodar. Se ele foi programado opere num ambiente adequado às suas
para apanhar um certo tipo de peça e limitações. Um sistema legitimamente
encaixá-la em outra, é preciso que as inteligente, como o almejado pela IA,
peças certas estejam nos lugares certos, precisa ser independente do senso co-
no momento certo. O robô não precisa mum do engenheiro. O sistema precisa
tratar de situações em que uma dada ser capaz de descobrir “por si mesmo”
peça não seja a que ele espera porque o que é apropriado e o que não é, em
essa possibilidade inexiste nos modelos cada contexto específico, e para isso ele
que ele utiliza para guiar seu compor- precisa ser capaz de se reconhecer no
tamento. Uma vez que o mundo não se interior de diferentes frames, tal como
restringe ao que figura no modelo do nós o fazemos. Modelar os frames que
robô, contudo, é possível que uma peça caracterizam corretamente os contextos
não esteja onde deveria estar, mas se de atividade humana é, portanto, con-
isso ocorrer, será uma falha atribuível dição necessária para que se modele o
aos engenheiros que tinham a respon- senso comum, e como vimos, isso passa
sabilidade de adaptar o mundo ao mo- pela solução do frame problem.
delo que guia o robô, e não vice-versa. O que essa batalha da IA nos ensina
Esse é o caso de qualquer sistema au- é que o senso comum é uma condi-
tomatizado, em contraste com sistemas ção necessária para nossa capacidade
inteligentes, dos quais se esperaria a ca- de raciocínio lógico e matemático, e
pacidade de se adaptar a situações im- não um feito dela. A inteligência se
previstas. demonstra também na própria capaci-
Vale notar que esse caráter de sistema dade de circunscrever domínios aber-
automatizado permanece, mesmo que tos em sistemas fechados e estruturados
o robô seja extremamente complexo e “sob medida” para cada circunstância.
flexível. Ainda que ele consiga lidar Viabiliza-se assim o uso do raciocínio
com milhares de peças em dezenas de lógico no seu interior sem que nos per-
milhares de diferentes situações (local, camos em infindáveis inferências irre-

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levantes. menta torres na transversal ou cavalos


O que isso significa para a discussão na horizontal não é uma implementa-
sobre vieses? Nota-se aqui uma razão ção enviesada de xadrez. O programa
profunda para que a presença de viés sequer está jogando xadrez. Essa dis-
não seja concebida como a presença de tinção não é sempre evidente porque,
perspectivas ou interesses dos agentes não raro, o engenheiro realiza tanto a
envolvidos. Um raciocínio isento de estruturação do domínio (o que será ou
viés não é aquele que ignora tais ele- não relevante, e em que medida) quanto
mentos, atribuindo igual peso a todas as sua modelagem computacional. Nesse
possibilidades lógicas, mas sim aquele sentido, estamos concedendo a eles (ou
que atribui pesos adequados, conforme aos que lhes financiam) um grande po-
o contexto, a cada interesse ou expec- der sobre como nós mesmos devemos
tativa envolvidos. Determinar o peso estruturar nossas atividades. Ao enge-
adequado, como se viu, depende do nheiro, deve caber somente a responsa-
senso comum, e a tentativa de calculá- bilidade sobre a implementação com-
los na ausência do senso comum leva ao putacional adequada de um dado do-
frame problem. Isso não ocorre no caso mínio fechado. A constituição desse
de domínios fechados suficientemente domínio, bem como a aceitação ou re-
pequenos, mas dado que tais domínios jeição de seu uso para um dado fim, são
são, eles mesmos, realizações da inte- temas de debate público. Deve o algo-
ligência humana, o viés pode se dar já ritmo tratar a todos de modo formal-
na sua concepção. Aquilo que tomamos mente idêntico, ou deve ele compensar
como enviesado, portanto, dependerá certas desigualdades materiais? A res-
do modo como nós mesmos circunscre- posta a esse tipo de pergunta não é de
vemos os domínios fechados no interior ordem técnica, mas sim política. A mi-
dos quais queremos automatizar a rea- tigação dos vieses, portanto, depende
lização de certas linhas de raciocínio. de um pano de fundo regulatório que
Segue-se disso que a mitigação de vi- envolve, necessariamente, o conjunto
eses é possível, mas não é uma tarefa de valores e interesses públicos vigen-
técnica. Não é algo que deva ficar ex- tes. Tratá-la como uma questão técnica
clusivamente nas mãos de engenhei- é chegar tarde demais.
ros. A caracterização de um sistema
como enviesado não se dá em função do
modo como ele é computacionalmente
modelado. Um algoritmo que não im- IV
plemente um dado domínio fechado de
modo correto não é enviesado, mas sim Tudo o que foi discutido até aqui torna
falho. Um software de xadrez que movi- saliente o quão potencialmente peri-
goso é o abuso do termo “inteligência”

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para caracterizar sistemas automatiza- de palavras poderá fazer as vezes des-


dos. A recepção que essas tecnologias ses termos chave.23 Nenhum modelo
vêm obtendo nas organizações públi- dentre os atualmente disponíveis seria
cas e privadas raramente leva em conta capaz de compreender, por exemplo, se
sua incapacidade de tratar adequada- o presente texto está a extrair lições da
mente o caráter insaturável dos con- história da IA para então aplicá-las a
textos subjacentes às motivações huma- um debate sobre vieses algorítmicos ou
nas. Isso afeta mesmo tarefas aparen- se, ao contrário, está a tratar de dificul-
temente simples como a de categorizar dades da IA que originam tais vieses.
textos ou documentos como sendo so- A confiança rotineiramente deposi-
bre um determinado tema. Tais tarefas tada na tecnologia, contudo, vai além,
são dependentes da capacidade de com- e sempre há o risco de um “delírio”, fi-
preender linguagens naturais por parte xado no modelo pelo uso de uma es-
dos modelos, e essa capacidade é de- tratégia de generalização distinta da
pendente do senso comum.22 Apesar utilizada por seres humanos, ser con-
disso, não é raro encontrar instituições siderado um insight. Como se viu, no
que confiem nos resultados apresenta- caso de modelos neurais, o treinamento
dos, fazendo deles base para tomada de pode se dar tanto para fins previamente
decisão. Em alguns casos é possível, especificados, como o de gerar um mo-
claro, identificar temas pela presença delo capaz de mapear correlações entre
de certas palavras-chave, mas isso se dá termos de diferentes idiomas (gerando
em função de convenções instituciona- assim um modelo que busca simular a
lizadas. Nesses espaços, podemos en- atividade humana da tradução) quanto
contrar regras como “todo documento com objetivos menos definidos, como
sobre X deve ter o termo ‘X’ explici- o de descobrir correlações ocultas en-
tado em seu cabeçalho”. Por si só, a tre os dados, quaisquer que sejam. Essa
linguagem natural não tem nenhuma tentativa de descobrir relações não pre-
demanda análoga a essa. Pode-se escre- viamente supostas é denominada data
ver um livro inteiro sobre filosofia me- mining (mineração de dados). Ela per-
dieval sem que essa expressão apareça mite a geração de modelos que “descu-
uma vez sequer. Seria igualmente ilusó- bram” novas categorias.
rio acreditar que um arranjo complexo Um exemplo clássico é o de fazer uso

22 Um exemplo é o GPT-3 da OpenAI, que se tornou famoso por sua capacidade de elaborar textos estruturalmente complexos a
partir da “leitura” de documentos ou livros. Contudo, tais modelos se baseiam apenas em análises estatísticas que correlacionam
palavras umas às outras. Eles não fazem a menor ideia do que estão falando e são alvos perfeitos para o argumento da sala chinesa
exposto por Searle (1980). Para a descrição do GPT-3, ver Brown et al. (2020). Para uma crítica de suas capacidades e bons exemplos
dos erros crassos que essa técnica costuma gerar, ver Marcus (2020) e Marcus e Davis (2020).
23 Exemplos comuns são estratégias como word2vec ou doc2vec, que representam estruturas sintáticas em vetores numéricos, típicos
dos modelos neurais. Isso permite uma comparação refinada da forma de um texto, mas ignora seu significado.

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desses modelos para aprender padrões lativamente baixo: caso se posicione o


de compra. Ele pode trazer à tona uma amendoim próximo à cerveja de trigo
correlação como: clientes que gostam e não se observe um aumento no con-
de amendoim tendem a preferir cerveja sumo, nenhum grande dano foi feito.
de trigo. Isso origina uma nova ca- Contudo, se concedêssemos a um mo-
tegoria, a dos clientes-que-gostam-de- delo o poder que Davis sugere, o po-
amendoim-e-cerveja-de-trigo, que pode tencial para dano seria colossal. A má
ser utilizada para formular estratégias notícia é que, embora não cogitemos
comerciais a partir de uma hiperseg- (ainda?) a sério atribuir poder político
mentação mercadológica numa escala a um sistema de IA de modo tão direto,
sem precedentes.24 Diante disso, a per- estamos sim permitindo que eles regu-
gunta que nos interessa agora é: por lem nossas vidas em larga escala, e isso
que confiamos tão prontamente nas cor- está relacionado aos efeitos dos vieses
relações indicadas por esses modelos, algorítmicos.
tomando-as como descobertas? Até o momento, tratamos dos vieses
Essa confiança é exemplificada pelo como um desvio sistemático em rela-
artigo de Joshua Davis na Wired (2017), ção a um pano de fundo que caracte-
onde ele explicita sua expectativa de em riza o que se considera adequado num
breve poder substituir o presidente do domínio. Contudo, há um segundo
seu país (EUA) por uma IA. Para Da- sentido, talvez mais profundo, em que
vis, um tal sistema seria capaz de emi- eles podem se mostrar: algoritmos po-
tir juízos menos enviesados e de des- dem introduzir vieses no modo como
cobrir fatos que nos são inacessíveis, nós mesmos compreendemos a estru-
sendo assim capaz de conhecer aquilo tura de nossas atividades, isto é, nos-
que queremos e precisamos melhor do sos frames. Nesse caso, os vieses al-
que nós mesmos. Nessa discussão, já gorítmicos não seriam apenas desvios
vimos algumas razões para sermos re- sistemáticos que ocorrem em modelos
ticentes quanto a esse alegado privilé- computacionais, mas sim um fenômeno
gio epistêmico. Na ausência do senso em que nossa própria compreensão do
comum, os modelos são incapazes de que é adequado ou não estaria sob sua
distinguir entre correlações espúrias e influência, afetando assim nosso senso
correlações que caracterizam legítimas comum. Como isso é possível?
relações causais, por exemplo. Na mai- Esse é um dos efeitos daquilo que
oria dos casos, contudo, o custo a pagar Rouvroy (2019; 2015) denominou
pela confiança em eventuais erros é re- governamentalidade algorítmica (GA).

24 Importante notar que novas categorias podem surgir mesmo na geração de modelos não destinados ao data mining. Os modelos
podem gerar categorias que funcionam como intermediárias para os fins estabelecidos pelos engenheiros (a classe das palavras-que-
contém-acentos-nos-dois-idiomas para os quais se efetua uma tradução, por exemplo).

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Trata-se de uma forma de governo, en- exemplo, na relação entre indivíduos


tendido aqui como um modo de lidar e empresas como a Google, Facebook
com as incertezas associadas à con- e Amazon. Nelas, o perfil individual
duta dos governados, produzindo as- de cada usuário é levado em conta na
sim certas regularidades em torno do hora de apresentar resultados das bus-
que se considera adequado ou desejá- cas ou para decidir o que será apresen-
vel. Tal regime está presente em vá- tado em destaque, numa tentativa de
rias plataformas informacionais, tanto predizer a relevância do conteúdo em
as puramente virtuais (sistemas de função dos interesses do usuário. Essa
busca) quanto as híbridas (aplicativos prática fez com que, paulatinamente, a
de transporte) e tende a transbordar ra- ideia da internet como um oceano a ser
pidamente para outras dimensões da desbravado de igual modo por todos,
vida, tais como a política, o direito e a fosse substituída pela imagem de uma
saúde. Rouvroy descreve a GA como lagoa artificial construída sob medida
fruto da articulação de três práticas es- para cada indivíduo. A mesma estraté-
pecíficas: primeiro, a extração capila- gia pode ser adotada, claro, na venda de
rizada de informações sobre atividades bens e serviços em espaços não virtuais.
humanas. Segundo, o uso das informa- É o que fazem hoje algumas redes de
ções para gerar modelos computacio- farmácias que apresentam ofertas es-
nais dessas atividades. Terceiro, o uso pecíficas (não necessariamente vantajo-
desses modelos na geração de perfis in- sas) em função do perfil de cada com-
dividuais usados para intermediar as prador.
relações destes indivíduos (nós), com De que modo o uso dessas tecnolo-
instituições diversas, virtuais ou não. gias pode caracterizar um tipo de go-
A primeira e segunda práticas já fo- vernamentalidade? A força da GA, nas
ram aqui desenvolvidas: trata-se tão palavras de Rouvroy (2019, p. 33), está
somente da propensão a registrar cada em “. . . separar os sujeitos de sua capaci-
vez mais aspectos de cada vez mais ati- dade de fazer ou não fazer certas coisas”.
vidades que realizamos, e de gerar mo- Não há ali oferta de motivações para
delos computacionais a partir destes sugerir um determinado curso de ação.
dados. A terceira prática, contudo, é Os filtros são aplicados de modo a mi-
mais específica: não se trata apenas de tigar, ou mesmo impedir, as chances de
gerar perfis comportamentais individu- que um dado comportamento venha a
ais e tentar realizar predições a partir ser. Nas palavras de Rouvroy:
deles, mas de usá-los para afetar ou
modular o comportamento individual
via mediação das relações entre indiví- A governamentalidade algorít-
duos e instituições. É o que se vê, por mica, portanto, apresenta uma
nova estratégia de gerencia-

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mento da incerteza que con- dades de ação são apresentadas a cada


siste em minimizar a incerteza indivíduo a partir do seu perfil.
associada à agência humana: Tal estratégia é utilizada não apenas
a capacidade dos seres huma- para personalizar o ambiente, contudo,
nos de fazer ou não fazer tudo mas também para fazer valer regras
aquilo que são fisicamente ca- de conduta. Nesses espaços, como em
pazes de fazer. Efetuado atra- quaisquer outros, demanda-se algum
vés da reconfiguração de arqui- tipo de regulação ou controle acerca do
teturas informacionais e físi- que se considera um comportamento
cas e/ou ambientes dentro dos desejável. Na medida em que crescem,
quais certas coisas se tornam o volume de casos em que esse controle
impossíveis ou impensáveis, e precisa ser exercido se amplia. Ao fazer
lançando alertas ou estímulos uso das estratégias de personalização
produzindo respostas reflexas com esse fim, a GA não atua por meio
ao invés de interpretação e re- de sanções ou de caracterizações deon-
flexão; isso afeta indivíduos em tológicas daquilo que deve ser obser-
sua agência que é, em sua ina- vado. Não se estipula o que deve ou não
tualidade, dimensão virtual da ser feito, mas sim o que aparece ou não
potencialidade e da espontanei- ao sujeito como uma ação possível ou
dade (. . . ) (ROUVROY, 2019, p. adequada. O contraste com outros regi-
34) mes é claro: neles, o sujeito compreende
que tem diante de si um sem número
de possibilidades de ação, mas também
Exemplos de uso dessa estratégia compreende que, a depender do cami-
abundam, pois ela é aplicada em pra- nho adotado, ele estará sujeito a con-
ticamente toda plataforma que obje- sequências de ordem social ou penal.
tiva fornecer conteúdo personalizado: Uma vez que o conjunto de comporta-
plataformas de notícias, áudio ou ví- mentos possíveis extrapola o conjunto
deo que organizam as opções em fun- de comportamentos desejáveis, existem
ção do que consideram que será mais sanções ou orientações. Em um regime
interessante são o exemplo mais co- de GA, contudo, tais possibilidades são
mum. Também são exemplos os siste- afastadas, ou mesmo negadas ao su-
mas que almejam fornecer “sugestões” jeito, e o espaço dos comportamentos
para processos de tomada de decisão, possíveis tende a ser coextensivo com o
apresentando apenas um subconjunto espaço dos comportamentos aceitáveis.
dos caminhos disponíveis por conside- É fundamental notar como toda essa
rar os demais indesejáveis ou irrelevan- articulação ocorre de modo invisível ao
tes. Todos são casos de reconfiguração usuário. O modo como o perfil media
no modo como as diferentes possibili-

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a relação entre o indivíduo e os espaços los deveria fazer com que tratássemos
que ele ocupa, bem como as institui- suas categorizações como hipóteses a
ções com as quais se relaciona, ocorre serem verificadas, não como descober-
de modo inescrutável. Não se trata ape- tas.25 Sem essa verificação, não temos
nas de não sabermos que tipo de infe- como saber se o sistema está se dei-
rência foi feita a nosso respeito a partir xando guiar por correlações espúrias,
dos nossos rastros, mas também de não por exemplo. Esse é o erro de Davis.
sabermos quando ou em que medida es- Estamos aceitando como verdadeiras
sas inferências estão sendo usadas para quaisquer correlações e categorias que
afetar aquilo que nos aparece como pos- estes sistemas apresentem, sem verifi-
sibilidade de ação. Temos assim um cação ou confirmação. Os modelos são
exercício de poder que atua direta e incapazes de compreender nossas moti-
acriticamente nos porões de nossa sub- vações, e por isso não se pode dizer que
jetividade: nosso campo de ação é de- nos conhecem melhor do que nós mes-
limitado e organizado por um processo mos, mas pode-se sim dizer que esta-
invisível de ordenação de preferências. mos deixando que eles nos guiem como
Cursos de ação são tornados salientes, se conhecessem.
ou ocultados, sem que nos seja dada a Diante desse argumento, um defen-
oportunidade de reflexão sobre as ra- sor da GA poderia insistir: se a ausên-
zões que guiaram essa ordenação. cia de senso comum fosse mesmo um
Por que permitimos, afinal, esse tipo entrave, essa dificuldade se manifesta-
de interferência em nosso horizonte de ria na forma de resultados erráticos ou
ações? Não se busca aqui dar uma res- de falhas grotescas nas predições que os
posta ampla a essa questão, mas apenas modelos fazem a nosso respeito. E não
enfatizar que uma boa resposta precisa parece ser esse o caso. Muitos modelos
levar em conta o injustificado privilé- usados em ambientes de GA aparentam
gio epistêmico atribuído aos modelos ter a capacidade de realizar predições
utilizados na GA, rotineiramente qua- acuradas sobre nosso comportamento.
lificados como “inteligentes”. Embora Como isso é possível? A explicação aqui
a GA não busque replicar a inteligên- oferecida para esse aparente sucesso é a
cia humana, mas apenas detectar novas de que estamos diante de uma forma de
categorias e utilizá-las para fazer seg- reflexividade presente no que Hacking
mentações de mercado hiper-refinadas, (1996) compreendeu como tipos huma-
a ausência de senso comum nos mode- nos.

25 A rigor, o senso comum é necessário, mas não suficiente. O senso comum permitiria compreender o que está em jogo, e isso
poderia viabilizar alguns feitos impressionantes como solicitar a uma IA que leia um conjunto de alguns milhares de artigos e expo-
nha as ideias que guardam relação com nossas pesquisas. Permaneceria em aberto, contudo, em que medida essa compreensão seria
confiável a ponto de justificar um privilégio epistêmico por parte do sistema.

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Esses tipos (categorias, no jargão que mulários de candidatura para vagas on-
utilizamos até aqui), quando aplicados line. A empresa tratou dessa informa-
a agentes humanos, tem caráter refle- ção como uma descoberta, e seus pro-
xivo: o fato de sermos classificados de cessos passaram a levar esse dado em
uma determinada forma influencia o conta na hora de decidir quem deve ou
modo como nos comportamos. Para não ser contratado. Ou seja, as “desco-
Hacking, esse efeito é o que distingue bertas” que os processos de geração de
tipos naturais (polietileno, polipropi- modelos para a GA fazem estão sendo
leno) de tipos humanos (adolescente, utilizadas para alterar os frames em que
refugiado). Quando uma pessoa é tipi- a atividade humana se dá. Aquilo que
ficada como um adolescente ou um re- se considera relevante para o correto
fugiado, altera-se o modo como aquele exercício de uma atividade foi revisto.
indivíduo compreende a si mesmo. Em Isso é suficiente para gerar uma pressão
geral, isso se deve a conotações morais normativa. O conhecimento dessa rela-
associadas ao tipo em questão: o in- ção (entre performance e uso de certo
divíduo pode, por exemplo, não acei- navegador), pode ser cobrado como
tar compreender a si mesmo como um algo que bons profissionais de RH de-
exemplar daquele tipo de pessoa. Essa vem levar em conta. Candidatos, por
manifestação pressupõe que o indiví- sua vez, sabendo que serão “julgados”
duo esteja, em algum nível, ciente de por um sistema que leva isso em con-
ser classificado de um tal modo, e que sideração, podem se sentir inclinados a
tenha condições de reagir a essa clas- fazer uso de um determinado navega-
sificação (aceitá-la, criticá-la, rejeitá-la, dor, a fim de aumentar suas chances.
etc.). Os sistemas utilizados na GA po- Há ainda outras formas de manifes-
dem dar vazão a esse efeito justamente tação da reflexividade que podem ser
por serem vistos como fontes confiáveis associadas ao que Hacking denomina ti-
de novas categorias. pos inacessíveis: nesses casos, o efeito so-
Tome-se um exemplo citado em re- bre o agente classificado se dá de modo
portagem da revista The Economist indireto, por meio de alterações no seu
(2013): uma determinada empresa ma- ambiente. O indivíduo não sabe que
peou uma correlação estatística entre seu horizonte de ações está sendo afe-
uma boa performance profissional, bem tado em função de uma dada categori-
como uma maior estabilidade no em- zação. A reflexividade opera então pelo
prego, e o uso de navegadores que não modo como o indivíduo é tratado pe-
vêm instalados por padrão nos siste- las pessoas ou pelas instituições em seu
mas operacionais26 para preencher for- entorno. Ora, como se viu, esse é preci-

26 É o caso do Firefox, em contraste com o Edge, em computadores com Windows.

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samente o modo pelo qual a GA opera: cação bem-sucedida de estatística ou


alterando o horizonte de possibilidades com um efeito da reflexividade. No pri-
de ação do indivíduo, ou seja, alterando meiro caso, teremos um modelo que re-
o modo como o mundo lhe aparece e, produz adequadamente um dado con-
consequentemente, o modo como ele se texto de atividade humana. No se-
comportará. gundo, teremos um modelo que mo-
Um exemplo de mecanismo psicoló- dificou com sucesso os contextos nos
gico por meio dos quais essa interferên- quais essa atividade é realizada. Tal-
cia no ambiente pode se dar, são aqueles vez a Netflix (ou a Google, ou o Face-
responsáveis pelos efeitos de priming. book, etc.) não esteja nos conhecendo
Como demonstraram Hasher, Goldstein cada vez melhor, mas nós estejamos nos
e Toppino (1977), a simples repetição é restringindo, sem perceber e com cres-
suficiente: o fato de algum conteúdo cente ênfase, àquilo que o perfil que
aparecer reiteradamente como dispo- intermedeia nossa relação com ela nos
nível aumenta as chances de que ele prescreve. Não surpreende, portanto,
venha a figurar em nossos interesses. a sensação de que as sugestões de con-
Além disso, são conhecidos os efeitos teúdo oferecidas pelas plataformas nos
que se dão por associação (pensar em pareçam cada vez mais certeiras.
gatos tende a tornar cachorros mais sa-
lientes, aumentando a chance de que
venham a figurar no raciocínio) ou por
categorização semântica (pensar em lo- V
bos pode aumentar as chances de que
cachorros venham a figurar no pensa- O cenário exposto sugere que o desa-
mento). fio de mitigar vieses está intimamente
Diante da reflexividade das catego- conectado a uma questão maior sobre
rias humanas, emerge uma questão cru- onde, quando e como queremos fazer
cial: como distinguir uma predição uso de modelos computacionais. Por
bem-sucedida de uma incitação bem- sua vez, essa questão é profundamente
sucedida? Aquilo que aparece como influenciada pela confiança depositada
uma crescente capacidade de predizer nas promessas das tecnologias envolvi-
uma preferência pode ser, na verdade, das. Como nos lembra Pariser (2011),
uma crescente capacidade de incitá-la, essa esperança tem mitigado o ques-
propositadamente ou não. Assim, di- tionamento e a demanda pela respon-
ante de um modelo computacional cujo sabilização das instituições que fazem
uso vem apresentando resultados satis- uso delas. Na medida em que confia-
fatórios para a GA, não sabemos por mos a solução dos problemas a esfor-
certo se estamos lidando com uma apli- ços de engenharia, tendemos a deixar
de lado o fato de que o uso da tecno-

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logia é norteado por interesses priva- ela faz com que essa influência trans-
dos. Consequentemente, por vezes, não borde para fora das plataformas, em es-
há sequer motivação para tratar de pro- paços ainda não colonizados por siste-
blemas mais fundamentais. Tanto pre- mas informacionais: mesmo dicas de
dições quanto incitações, por exemplo, conteúdo dadas por amigos trarão con-
são compatíveis com o modelo de ne- sigo os efeitos das plataformas sobre
gócios que sustenta o uso dos sistemas eles.
computacionais. Se deixadas em paz, Em síntese, por um lado, não é ra-
a tendência é que nenhuma das plata- zoável exigir das plataformas a solução
formas tome essa indistinção como um de problemas fundacionais da IA. Elas
problema. Essa é uma preocupação que não são centros de pesquisa dedicados
não emerge espontaneamente de moti- à questão, mas sim empresas que fazem
vações mercadológicas. uso da tecnologia para oferecer servi-
Contudo, como vimos, há um pro- ços. Por outro lado, é igualmente de-
blema ainda mais difícil envolvido. sarrazoado ignorar que o uso corrente
Ainda que se dispusessem a lidar ade- dessas tecnologias tem efeitos sociais
quadamente com a questão da reflexi- que não podem ser resolvidos ou mi-
vidade por pressão externa, as plata- tigados por mais tecnologia. Se quere-
formas teriam diante de si o problema mos lidar adequadamente com os vieses
do senso comum e o frame problem, e e outros efeitos nocivos, portanto, pre-
não está claro nem sequer se é possí- cisamos revogar o estatuto epistêmico
vel solucioná-los computacionalmente. privilegiado tipicamente atribuído aos
Uma vez que os modelos de IA não modelos computacionais. Isso não sig-
apresentam senso comum, a probabili- nifica, claro, uma rejeição do uso dos
dade de que, por pura sorte, estejam in- modelos para realizar descobertas. O
teragindo adequadamente com nossas que precisamos é tomar as inferências
motivações, é desprezível. Muito mais por eles realizadas, bem como as cate-
provável é que estejam afetando as es- gorias por eles detectadas, não como in-
truturas de frames subjacentes às nos- sights em seu valor de face, e sim como
sas atividades. Por isso, quando atribuí- hipóteses a serem validadas no interior
mos a eles um privilégio epistêmico in- de uma empreitada científica. Além
justificado e um poder descabido, per- disso, é fundamental compreender os
mitimos que afetem nossa compreensão modelos como aquilo que são: automa-
do mundo, e que os seus vieses e va- ções de atividades em domínios fecha-
lores privados embutidos tenham im- dos. Desse modo, não deixamos de en-
pacto sobre o nosso senso comum. A xergar que a caracterização desses do-
reflexividade das categorias humanas mínios, isto é, a determinação daquilo
acaba potencializando esse efeito, pois que deve ser levado em conta no “raci-

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ocínio” realizado no interior dos mode- a GA em particular, está sendo facili-


los, precisa ficar sob nossa responsabi- tada sem que nos apercebamos das con-
lidade, e não submetida ao arbítrio dos sequências, e isso dificulta a discussão
engenheiros ou das plataformas que os sobre possíveis formas de emancipação
financiam. Na ausência desse posicio- (se assim desejarmos) ou sobre o que ca-
namento, a concessão de poder e espaço racteriza uma regulação adequada dos
para sistemas de IA em geral, e para espaços informacionais.

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Recebido: 28/09/2020
Aprovado: 18/01/2021
Publicado: 31/01/2021

68 Revista de Filosofia Moderna e Contemporânea, Brasília, v.8, n.3, dez. 2020, p. 39-68
ISSN: 2317-9570
DOI: https://doi.org/10.26512/rfmc.v8i3.34503

Zero-Order Privacy Violations and Automated Decision-Making


about Individuals
[Violações de Privacidade de Ordem Zero e Tomada de Decisão Automatizada sobre
Indivíduos]

Bernardo Alonso*

Abstract: In this article, it is presented the notion of zero-order privacy violation as a


grounding practice within a new type of human exploitation, namely, data colonialism:
the massive appropriation of social life through data extraction, acquiring digital “ter-
ritory” and resources from which economic value can be extracted by capital (Couldry
Mejias, 2019). At first, I claim that privacy violations do not depend on the nature of the
agents involved. Robots read your email, and not having humans involved in the process
does not make it less of a violation. It is considered that the harvested data stream
is better understood as being a commodity when clean, well-formed, meaningful data
standards are respected. Then, it is suggested that scenarios like the covid-19 pandemic
make a perfect case to expand surveillance via tracking applications. Companies and
governments with pre-existing tendencies to secrecy, tech-enabled authoritarianism,
and austerity, capitalize on disinformation strategies. Finally, remarks on the value of
encryption, and strategic deleting as measures to reinforce privacy are made.
Keywords: Zero-Order Privacy Violations. Privacy. Artificial Agents. Data. Information.

Resumo: Neste artigo, é apresentada a noção de violação de privacidade de ordem zero


como uma prática fundadora dentro de um novo tipo de exploração humana, a saber, o
colonialismo de dados: a apropriação massiva da vida social através da extração de dados,
adquirindo “território” digital e recursos dos quais pode ser extraído valor econômico
pelo capital (Couldry Mejias, 2019). A princípio, alego que as violações de privacidade
não dependem da natureza dos agentes envolvidos. Os robôs leem seu e-mail, e não ter
pessoas envolvidas no processo não o torna menos violento. Considera-se que o fluxo
de dados coletados é melhor compreendido como uma mercadoria quando os padrões
de dados limpos, bem formados e significativos são respeitados. Em seguida, sugere-se
que cenários como a pandemia do covid-19 sejam um caso perfeito para expandir a
vigilância por meio de aplicativos de rastreamento. Empresas e governos com tendências
pré-existentes ao sigilo, autoritarismo capacitado pela tecnologia, e austeridade capita-
lizam estratégias de desinformação. Finalmente, são feitas observações sobre o valor da
criptografia e exclusão estratégica como medidas para reforçar a privacidade.
Palavras-chave: Violações de Privacidade de Ordem Zero. Privacidade. Agentes Artifi-
ciais. Dados. Informação.

* Professor of philosophy at the Universidade Federal do Mato Grosso (UFMT). PhD in philosophy from the Universidade Federal
do Rio de Janeiro (UFRJ). E-mail: berr.alonso@gmail.com. ORCID: https://orcid.org/0000-0003-3595-4907.

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BERNARDO ALONSO

Each individual is continually engaged in a personal adjustment


process in which he balances the desire for privacy with the desire
for disclosure and communication of himself to others, in light of
the environmental conditions and social norms set by the society in
which he lives.
— Alan Westin, Privacy and Freedom, 1968

Introduction privacy of users. Some can point out


that you should not be worried with
At a glance, even though the only entity digital privacy if you have nothing to
accessing our personal data is an arti- hide, in the sense of doing something
ficial agent, e.g. “google bot”, it does you are not supposed to. For those
not change the fact that a privacy vio- there is a simple but overwhelming
lation has occurred. Privacy to be un- answer. I have nothing to hide, but I
derstood in a normative way, treated have nothing to show you either, and as
as a collective moral value and human Edward Snowden once said “Arguing
right. What is relevant, in the case of that you don’t care about the right to
email, is what the artificial agent is ca- privacy because you have nothing to
pable of doing with that information, hide is no different than saying you
taking into account that mechanisms of don’t care about free speech because
natural language processing, data ex- you have nothing to say” (Snowden
traction and recognition of intents as 2015). A well-known mechanism that
well as domains of users’ spoken and challenges our best intuitions about
written language utterances are increa- non-humans violating privacy is the so
singly efficient (Liu et al. 2020, Vedula called Google AdSense, a program that
et al. 2020), be it language-specific or allows publishers to serve automatic
many languages approach (Pyysalo et text, image, video, or interactive media
al. 2020). advertisements, targeted to site content
One major concern is the colossal and audience. As an illustration, ima-
amount of personal and sensitive data1 gine a musician who exchanges emails
being stored daily in databases of com- with a friend about his guitar that is
panies and governments, whose access being repaired. After email exchan-
policies do not necessarily respect the ges both the musician and his friend

1 “Personal data” refers to any piece of information that someone can use to identify, with some degree of accuracy, a person, for
instance, email address, internet protocol address (IP), name, surname, geolocation, home and job addresses, advertising identifiers,
gadgets identifiers, among others. “Sensitive data” makes reference to a subset of personal data which includes specific categories
such as genetic and biometric data, ethnic group, sex orientation, political opinions and/or affiliations, religious beliefs, philosophical
perspectives, purchase history, passwords, credentials, among other possible distinct information.

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are seemingly receiving advertisements tions, your privacy has not been vio-
about musical instrument stores, audio lated. However, the problem is not as
streaming websites and the like. If you simple as it seems or at least as some
send an email containing the term “Rio want to make it look like. With the ad-
de Janeiro” in the body of the text, ad- vancement of practices such as datami-
vertisements about hotels in Ipanema, ning and machine learning, that enable
tickets to Carnival in Sapucaí or invites artificial agents to identify patterns in
by social networking websites showing large data sets and sophisticated sta-
locals looking for the perfect match are tistical techniques that empower intel-
serious candidates to populate the com- ligent artificial agents to “learn” and
mercial space of your mailbox, as well potentially improve their performance,
as your near future web searches and three questions are asked: to what ex-
social media content. tent can agents access our sensitive in-
The Google company (LLC)2 de- formation3 ? Does it matter that it is
fends itself by pointing out the non- not a human who is reading my email?
involvement of humans in the process. Should we be concerned when informa-
tion that we would not trust humans,
as it concerns aspects of private life and
“The practice of automatic pro- information that users are not willing to
cessing has caused some to spe- share, is collected, stored and analysed
culate mistakenly that Google by a mere program? The first question
“reads” your emails. To be ab- is difficult and properly tackling it is
solutely clear: no one at Go- one of the ambitions of this article, on
ogle reads your Gmail, except the assumption that artificial and na-
in very specific cases where you tural agents make use of data and not
ask us to and give consent, or all uses might be leveraged for profit4 .
where we need to for security Nonetheless, it seems that we already
purposes, such as investigating have the answer to the last two ques-
a bug or abuse.” (Frey, S. 2018 tions. Yes, it matters that non-humans
p.1) access our data, and also yes, we must
In a nutshell, it is contented that be concerned that information is mani-
if humans do not directly read your pulated by programs, after all it is the
communications and private conversa- technical capabilities of programs and

2 A limited liability company (LLC) is a business structure in the United States whereby the owners are not personally liable for
the company’s debts or liabilities. Limited liability companies are hybrid entities that combine the characteristics of a corporation
with those of a partnership or sole proprietorship.
3 “Information” considered as well-formed, meaningful, truthful data (Floridi 2004).
4 For instance, data from a clinical trial of drugs commonly used to fight cholesterol was reused in a process to destroy a protein
associated with nearly half of all known cancers (Parrales et al. 2016).

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BERNARDO ALONSO

artificial agents that are relevant, not tained. In the case of Warren and Bran-
their ontological status. deis, a photograph taken by an auto-
matic device that is mounted outside a
person’s home constitutes a violation of
Value of Privacy privacy, as the resident has no control
over the dissemination of information.
In a seminal Harvard Law Review arti- The mere “leak of information” already
cle “The Right to Privacy” (1890), Sa- constitutes a breach of privacy, a bre-
muel Warren and Louis Brandeis argue ach that occurs when the photograph is
that “political, social and economic” taken and not when it is seen by some-
changes and “the right to be alone” one.
impose on the law that it offers pri- Three major American justice ca-
vacy protection of individuals. Res- ses echoed Warren and Brandeis’ con-
ponding to the technological changes cerns. The first, Olmstead v. United
of the time, the advent of photography, States (1928), is a surveillance case in
Warren and Brandeis claim that the which the United States Supreme Court
general right to privacy should pro- ruled that a warrant was not requi-
tect mental life that could be shared red for federal agents to implant wi-
with others in order to offer “peace of retapping. The court asserted that the
mind” and the “right to one’s perso- Fourth Amendment only protected citi-
nality”, interpreted as a protection of zens from “physical intrusions” by law
the individual’s autonomy (Warren and enforcement officials5 . In 1967 the Uni-
Brandeis 1890, p.200, 207). Although ted States Supreme Court changed that
the Fourth Amendment already offered decision in the Katz v. United States in
protection at a certain level of privacy judging that tapping telephone conver-
at the time – search in homes and its sations on public phones was a viola-
interiors – the authors argue that the tion of the Fourth Amendment. For the
new technology is potentially intrusive court it was a case of “reasonable ex-
and that it would be necessary to for- pectation of privacy” in public places.
malize protection under the rubric of Finally, in 1995 the United States mi-
privacy, a well-known formulation as litary court cited Katz’s case in deter-
the “control of information about one- mining that an individual has a reaso-
self”. This formulation does not say nable expectation of privacy in his pri-
anything about the identity of the agent vate email, even if stored and sent by an
who is in control of the information ob- online service. The right to privacy of

5 Without taking into account that federal agents at some point invade the private space to implant wiretaps. The invasion crite-
rion is taken in this case as non-physical due to the fact that electronic devices capture the conversations, and not people themselves,
which does not make sense if we take the eavesdropping as mere artefacts that facilitate the listening of agents in the end.

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information has since been understood files. No human eye saw my data and
not only against surveillance and mo- yet our intuitions regarding the sense
nitoring or searches without mandate, of dignity and personal autonomy were
but also against appropriation and mi- offended, as no permission was given by
suse of personal communications. us to search our files and we were held
It is important to note that such de- as potential suspects until the scan was
terminations make no distinction or over.
judgment based on the nature of the The principle of privacy is based on
agent that violates the citizen’s right to the intuition that we experience moral
privacy. A common point in modern damage in situations such as the exam-
analyses of information privacy is the ple of Lessig. In this way, the right
notion of “loss of autonomy”, when the to privacy, regardless the nature of the
appropriation of information happens agent involved in the violation, can be
without the individual’s consent. Les- understood with normative weight and
sig (2006, p.20) argues that the right to dignity as a moral good, as well as in-
privacy provides a measure of dignity. dividual autonomy. Understanding in-
He tests our intuitions with a hypothe- formational privacy as an expression of
tical situation: The United States Nati- autonomy and dignity, in addition to
onal Security Agency (NSA) releases a seeing it as a constitutional limitation
type of virus on the internet (worm) in to government and corporate power,
order to try to find a file that is missing enables the understanding of privacy
from your servers. This worm enters as a moral good, liable to be protec-
all computers on American soil resi- ted from the assaults that changes in
dents and scans their hard drives. If technological capabilities provide, due
it finds the file, the program sends a re- to increased efficiency in invasive scan-
port to the NSA, if it does not find it, it ning systems and datamining. When
continues scanning on other machines. we can say that an artificial agent and
This program is “smart” enough to use its owner “are informed” or “hold in-
only ideal machine cycles, making the formation” it is crucial to determine if
intrusion unnoticed. There is no dis- there was a breach in our privacy when
turbance, no content on the hard drive accessing our data. One of the main
was sent to the government, not even il- points to be made is that the ability
legal copies of music, books and movies of the artificial agent to pass the infor-
which were eventually there. An artifi- mation on to its owner is the relevant
cial agent, not a human, examined my factor to be considered in this scena-

6 Not to be mistaken with first degree, second degree privacy violation distinctions which are familiar to Law vocabulary. Second
order privacy violation first appears at R. v. Duarte, [1990] 1 S.C.R. 30 in Austin 2003, p.141 and then Etzioni 2014, p.641. It is not a
common terminology in Law parlance.

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rio, also known as second order privacy a major concern given the vast popula-
violation6 . Artificial agents should be rity of the platform. One of the answers
considered as repositories of legally re- that is usually given by the company
levant information on behalf of their is that users are free to give up part of
owners, a tempting approach if we con- their privacy, and are constantly asked
sider that most of the information held if they want to give it up in exchange
by large corporations and governments for certain services — the too long to
is in the form of electronic files. read infamous “privacy policy” —, and
A distinction is suggested between further says that there is no real pro-
electronic records ready to be used, blem of privacy violation based on the
considered as part of the corporation’s fact that humans are not reading users’
knowledge despite human knowledge emails.
of its contents7 , and physical records
about which no knowledge is presumed
without a human or artificial agent ha- 1. Is Google reading my
ving been effectively informed about its email? No. Google scans
contents. The attribution of knowledge, the text of Gmail messages in
therefore, does not depend on the tra- order to filter spam and de-
ditional notion of transmitting infor- tect viruses, just as all ma-
mation as in meetings, orders, letters, jor webmail services do. Goo-
bulletins or telephone calls between gle. . . uses this scanning tech-
members of a company’s management nology to deliver targeted text
hierarchy. Rather, it depends on the ads and other related informa-
functions granted to agents, natural or tion. This is completely auto-
artificial. If information is made avai- mated and involves no humans.
lable in corporation’s databases, even (http://mail.google.com/mail/
if no employee of the corporation has help/about_privacy.html).
read about that piece of information,
the corporation and its agents, human However, thirty-one international or-
and artificial, are the holders of the in- ganizations dealing with civil liberties
formation and liable to knowledge from have a different position:
it.
Who is reading my email? A well
known type of marketing and ad stra- 2. (...) a computer sys-
tegy used by Google in Gmail service is tem, with its greater storage,
memory, and associative abi-

7 Also new content that is systematically crunched and extracted through machine learning, data crossing and various other tech-
niques.

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lity than a human’s, could liffs at work, individuals motivated by


be just as invasive as a hu- mere curiosity or even those who arrive
man listening to the com- at such websites by accident. Howe-
munications, if not more so. ver, it is known that other groups of in-
(http://www.privacyrights.org/ dividuals have interests, say, not at all
ar/GmailLetter.htm). innocent on those topics. Information
of this nature is an extremely valuable
commodity in today’s world.
The fact that humans are not invol- Profiling can go very wrong depen-
ved in reading users’ personal electro- ding on context, depending on govern-
nic correspondence does not seem to ments, depending on maybe too many
be relevant either in the legal or mo- variables. The profiling of billions of
ral spheres. The same argument ex- users who daily interact with different
tends to various social media platforms, services of companies like Google al-
virtual reality gadgets, smartphones, low any well tailored advertising to be
smartwatches, and virtually all techno- super efficient, and as companies natu-
logical services and artefacts that col- rally aim at profit, we have to admit the
lect personal data and usage statistics. grim possibility of any well tailored ad-
However, the Google privacy policy vertising to the highest bidder.
recognizes the automated process of re- While the big data collected and
ading emails and it is also said that if crunched by companies can be proces-
the information extracted through the sed and analysed in order to find pat-
automated reading process were pas- terns and paths that lead to potential
sed on to third parties, such a prac- malefactors, also services and applica-
tice would be a misdeed, allowing most tions offered by tech companies have an
users feel free to exchange emails of increasingly abundant reach and power
all sorts of subjects and levels of inti- to collect data, compute and generate
macy. But, that comfort is not a defence patterns, profiling, and whatever they
against breach of privacy. At this time, want to sell with amazing efficiency,
Google is able to identify users who are even elections results8 .
interested in terrorism, Nazism or child
pornography. People with interests in
such matters may have reasons conside-
red pertinent or sometimes even inno-
cent, whether they are academics, bai-

8 Pace 2016 Cambridge Analytica US elections and Brexit scandals using Facebook, Google and Youtube data. Cambridge Analy-
tica alongside its parent company Strategic Communications Laboratories had worked in more than 200 elections across the world,
including Kenya, Brazil, Nigeria, Mexico, India and Malaysia (Kleinman 2018).

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Zero-Order Violations the end valuable information can be ex-


tracted. This can be done not only by
the types of subjects matters internet
I claim that a new kind of violation of users refer to, but also by the type of
privacy called zero-order privacy viola- relationship a user has with the subject
tion is a grounding practice within a and what reactions to the referenced to-
new type of human exploitation, na- pics have possibly been expressed.
mely, data colonialism: massive appro- Empowered by tech companies, ad-
priation of social life through data ex- vertisers can go deeper and deeper into
traction, acquiring digital territory and the consumer’s desires. Based on con-
resources from which economic value sumer’s expectations, general charac-
can be extracted by capital (Couldry teristics, social class, skin colour, re-
Mejias, 2019). But, first I need to ex- ligious affiliations, sexual preferences,
plain what a zero-order privacy viola- political tendencies, intellectual aspi-
tion is. rations, fears and desires, tech compa-
It seems that Google does not read my nies are able to draw increasingly ac-
email, as software do not yet have a se- curate profiles of their target audience.
mantic analysis capability that we can Perhaps companies such as Google do
commonly call “reading” in a strong not yet read my email in the strict sense,
sense. However, we can argue that the but actively use information extracted
process of extracting information from from communications for their own
sets of data is compromising enough. purposes in a non-transparent way,
It also seems that artificial agents do which constitutes a severe risk to pri-
not know what we are saying and what vacy.
emotions we want to express about Etzioni (2014, p.642) says that when
what we are talking about. Be that as Warren and Brandeis published their
it may, companies can refine their soft- innovative article “considered the ‘ge-
ware to allow content (or part of it) nesis of the right of privacy,’ they were
on the web to be scanned and gradu- not concerned about gossip per se (a
ally assimilated and known by the pro- first order privacy violation), but about
grams. Machine learning algorithms the wider distribution of intimate de-
build mathematical models based on tails through the media”, i.e., second or-
sample data, known as “training data”, der privacy violations are not about di-
in order to make predictions or decisi- rect violations of privacy such as pocket
ons without being explicitly program- inspections by jealous lovers, peeping
med to do so (Caliskan et al. 2017). tom, wiretapping or any sort of direct
Systems can categorize data in a way unsolicited appropriations of informa-
that clean, well formed and meaningful tion. Second order violations concern
data standards are respected, so that in

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ZERO-ORDER PRIVACY VIOLATIONS AND AUTOMATED DECISION-MAKING ABOUT INDIVIDUALS

what is done to content after its appro- data, modifying additional computers
priation. It is about the distribution of behaviours and networks. The relation
information and the process of drawing to zero-days vulnerabilities by itself is
attention to the public. sufficient to distinguish a zero-order
Diversely, a zero-order privacy viola- privacy violation from first and second
tion is not necessarily related to distri- order ones, given the spooky, omnipre-
bution of content as in cases of second sent and novel nature of such practice.
order violations, neither it is a direct vi- But, there is another peculiarity to a
olation like first order ones. Born in the zero-order violation making it rather
digital age or what Floridi calls Fourth heterogeneous to commonly known ty-
Revolution era (Floridi 2014), this type pes of privacy violations. Zero-order
of violation is a systematic and automa- privacy violations are also closely rela-
ted harvesting of data, linked to new ted to what Kit Fine calls zero-grounded
technologies exploitation — from so- statements (Fine 2012, p.47), but a dis-
cial media to IoTs (internet of things) cussion of this matter is way beyond
— and often associated with tracking the scope of this paper10 , yet I must
and profiling users, alongside informa- take into consideration a key point
tion asymmetry phenomenon9 . Every- about its grounding11 nature. Accor-
day users do not know the full range ding to Fine, there is a distinction to be
of data that connected devices gene- made between truths that do not have
rate or what is collected and extrac- grounds (ungrounded), and truths that
ted by servers, therefore they are not are grounded in the empty plurality of
able to commit into protecting them- truths T (Fine 2017). The truth that
selves. Zero-order violations are better “if it is raining then it is raining” is
understood through the perspective of an example of the latter. I take it that
what security industry calls zero-day, a zero-order violation can be read as
i.e., a computer-software vulnerability a mere “it leaks”, and if a vulnerabi-
that is unknown to those who should lity cannot be mitigated because of re-
be interested in mitigating the vulnera- asons yet to be known in a future time,
bility. So, until the vulnerability is pat- “if it leaks, then it leaks”. And when
ched, hackers can exploit it to adversely the cause of the leakage is known and
affect computer programs, harvesting named, the sentence can still be read

9 Concept developed in economics, which extends to non-economic behaviour such as International Relations theory. Roughly
speaking it deals with the study of decisions in transactions where one party has more or better information than the other. A
straightforward example is the asymmetric information between what national leaders know at a certain time t, given the discre-
pancy in resources, before going into war. (Jackson and Morelli 2011).
10 A detailed defence of zero-order privacy violations using the notion of Kit Fine’s truth maker semantics for grounds can be found
in Alonso, B. “What is a zero-order privacy violation?” forthcoming (2021).
11 Simply put, in a conditional the antecedent grounding or being a ground for the consequent fact, making some sort of modal
connection between explanandum and explanans (Fine 2012, p.38)

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as a plausibly zero-grounded necessity known as much about their citizens as


if conceded that cases of kripkean ne- they do.
cessities a posteriori such as “water is
H2 O” are also zero-grounded (De Rizzo
2020), i.e., it was always leaking, but we
did not know about it (nor had a name Final remarks
for it).
Scenarios like Covid-19 pandemic Some convincing arguments see in Big
make a perfect case to expand surveil- Data processing the mechanism for a
lance via tracking applications, since new stage of capitalism (Cohen 2018),
governments, international agencies while others critically point out that
and tech companies have all announ- data colonialism is a combination of
ced measures to help contain the spread predatory extractive practices of his-
of the Coronavirus, facilitating unpre- torical colonialism with the abstract
cedented levels of data exploitation quantification methods of computing
around the world. Complicity between (Couldry Meijas 2019, p.121), when
tech giants and governments to libe- data abstracts life by converting it into
ralise international data flows in the information that can be stored and pro-
name of saving economies and keeping cessed by computers and appropriates
world populous healthy allow corpo- life by converting it into value for a
rations for cross-border data transfers third party. We have learned that du-
without regard for rules that guarantee ring periods of global distress not only
minimum data protection standards. companies capitalise on mass surveil-
Governments’ poor understandings of lance and tracking grounded on zero-
technology, and their hopes for an easy order violations, but also governments
fix only empower huge corporations use crisis as an opportunity to expand
to consolidate and expand their domi- their powers via planned authoritaria-
nium. Eventually governments started nism.
to capitalise on tracking as well, since As a rule, agents assume that some
elections in many countries happened content is by default an instance of in-
or are about to happen in the middle of formation. What they often speculate
the pandemic period. Opposition and and generally disagree upon is whether
dissidents can be easily tracked, pos- and how far that content may contri-
sibly having their behaviour predicted bute to the formulation of their choices,
and manipulated. With worldwide con- the development of their decision pro-
tact tracing apps working without any cesses and goals. In the face of contem-
regard to privacy in a temporary emer- porary challenges to privacy and auto-
gency period, no government has ever nomy, last remarks on the value of cryp-
tography and the simple practice of de-

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ZERO-ORDER PRIVACY VIOLATIONS AND AUTOMATED DECISION-MAKING ABOUT INDIVIDUALS

leting personal information are made in why not mindset of having available in-
a very practical manner. In contempt of credibly large spaces of storage for ac-
keeping and deleting rivalry, three cate- cessible figures.
gories of what to delete are introduced (3) Could delete: Agents can in prin-
(plus prophylactic considerations when ciple delete all their information, tri-
suited): vially. However, taking for granted
(1) Have to delete: necessary for a some sort of strict necessitist stance,
healthy online life, this category is re- i.e. “agents necessarily can delete their
lated to basic urgent security measu- info”, is quite a naive move and would
res, such as deleting sensitive infor- make this category innocuous. The role
mation on social media platforms, cre- of this third category is of a relational
dit cards details from unprotected fi- nature: to package control/version con-
les, plain text passwords, payments trol what could actually be deleted and
data (can also be preventive by not let- thus avoid accidental deletion of files
ting websites and/or applications re- which necessarily can’t be erased given
cord data, if option available), old use- relevance criterion. Family pictures,
less files and garbage in general (obvi- doctoral thesis text files, work projects,
ous garbage like old system’s install fi- encrypted passwords, among others.
les, malware, uninstalled apps leftovers Promises of anonymization on the
and salient vulnerabilities); Web have to deal with the paradox
(2) Should delete: files that can be of learning nothing about an indivi-
compromising in long run scenarios, dual while learning useful informa-
such as internet cache, cookies, trackers tion about a population, and the fact
(minimize web fingerprints), most so- that data cannot be fully anonymized
cial media platforms’ content (not only and remain useful (Dwork Roth 2014,
sensitive information as in 1), files and p.217). As a rule internet users should
programs you no longer work with nor encrypt everything. The very nature of
will work anymore, e.g. that album of zero-order violations make the cat and
a band someone said it is incredible, mouse play a dangerous game, a virtu-
however after downloading it you disli- ally impossible to win one.
ked the music but kept it anyway since

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Received / Recebido: 30/09/2020


Approved / Aprovado: 13/01/2021
Published / Publicado: 31/01/2021

80 Revista de Filosofia Moderna e Contemporânea, Brasília, v.8, n.3, dez. 2020, p. 69-80
ISSN: 2317-9570
DOI: https://doi.org/10.26512/rfmc.v8i3.34494

Ação Política Híbrida e a Dissolução da Cidadania


[Hybrid Political Action and the Dissolution of Citizenship]

Edson Teles*

Resumo: O objetivo do artigo é reconhecer e analisar determinadas reflexões conceituais


acerca da ação política que apresentem as formas mecânicas ou funcionais, indicando
estratégias do agir autônomas em relação aos aspectos discursivos. Nossa hipótese é a
de que categorias tradicionais, tais como a soberania, a representação, as instituições
do Estado e da sociedade civil são insuficientes como instrumentos de compreensão
do político. A questão central é a de que os regimes de produção de subjetividades
encontram sua maior eficácia na intersecção ou nas fronteiras entre os modos discursivos
e os funcionais. Busca-se introduzir aspectos de certa filosofia contemporânea que,
antecedendo o capitalismo de vigilância e suas tecnopolíticas, já se debruçava sobre
a fabricação e as máquinas enquanto elementos dos processos de condução das vidas
individuais e coletivas.
Palavras-chave: Discurso. Estratégia. Máquina. Subjetivação. Fabricação.

Abstract: The objective of the article is to recognize and analyze certain conceptual
reflections about political action that present mechanical or functional forms, indicating
autonomous strategies for acting in relation to discursive aspects. Our hypothesis is that
traditional categories, such as sovereignty, representation, state institutions and civil
society are insufficient as instruments for understanding the political. The central issue
is that subjectivity-producing regimes find their greatest effectiveness at the intersection
or boundaries between discursive and functional modes. It seeks to introduce aspects
of a certain contemporary philosophy that, prior to surveillance capitalism and its
technopolitics, already focused on fabrication and machines as elements in the processes
of conducting individual and collective lives.
Keywords: Discourse. Strategy. Machine. Subjectification. Fabrication.

* Professor de filosofia política da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp). Doutor em filosofia pela Universidade de São
Paulo (USP). E-mail: edson.teles@unifesp.br. ORCID: https://orcid.org/0000-0002-6673-2234.

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ISSN: 2317-9570
EDSON TELES

Introdução lhamos com a hipótese de que a forma


central com que as relações de poder
atuam diz respeito ao governo, suas téc-
Há a produção, no mundo contemporâ- nicas, tecnologias e funções, bem como
neo, de uma espécie de economia polí- seus regimes de produção de subjetivi-
tica, com seus dispositivos e mecanis- dades.
mos estratégicos, cuja função seria a Como pensar uma política que trans-
articulação entre os modos capitalistas borde os limites da representação?
de mercado e o governo das subjetivi- Uma ação cujo funcionamento extra-
dades. Diferentes modos de interação pole os significados expressos pelas fa-
entre pessoas e tecnologias são expe- las? Como lidar com os conflitos sociais
rimentados cotidianamente reforçando e políticos aparentemente restritos às
a sobreposição das estratégias funcio- representações da linguagem e da pa-
nais nas subjetividades e nas estruturas lavra inscritas na lei? Como agir nos
sociais indicando outras formas da po- limites do Estado de Direito se a ação o
lítica. A interconexão entre máquinas e transborda?
humanos parece borrar os limites entre A política, stricto sensu, seria a ca-
o discursivo e o funcional. pacidade humana de lidar com a soci-
Trata-se de compreender como ocor- abilidade, seus saberes e experimenta-
rem os regimes de produção de subje- ções, suas significações e produções, de
tividades presentes nas formas de go- modo a permitir o entendimento en-
verno da vida. A sociedade capitalista tre as diversas singularidades que nos
nos lança num duplo sistema de con- compõem. Em uma abordagem clássica
trole. Por um lado, somos “humaniza- da teoria política o elemento de com-
dos” por meio da construção de indiví- preensão dessas interações seria a rele-
duos com papéis previamente estabele- vância do discursivo como forma de os
cidos. Num outro viés, não “humani- indivíduos, quando em condição plu-
zado”, somos controlados por um agen- ral, serem capazes de se comunicarem
ciamento sem a divisão sujeito e objeto, e estabelecerem acordos. Entretanto,
natureza e cultura, a coisa e sua repre- no mundo contemporâneo, a filosofia
sentação, público e privado, humano e política se depara frequentemente com
não humano. a questão sobre como os indivíduos se
Esse lugar híbrido indica algo que relacionam, interagem e se entendem
nos parece se constituir nas bordas do além do modo discursivo.
político, em territórios periféricos. Pen- As subjetividades e seus regimes de
samos não em subjetividades enquanto produção parecem nos mostrar que a
algo acabado, mas em sua produção. É experiência contemporânea do ser hu-
um processo cultural e social, uma certa mano, ao menos nas formas ocidentais
economia da vida que as produz. Traba-

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AÇÃO POLÍTICA HÍBRIDA E A DISSOLUÇÃO DA CIDADANIA

de sociabilidade, não se realiza em es- dentro da filosofia contemporânea, as-


feras distintas entre o político e o não pectos que apontem para a hibridização
político, o discursivo e o funcional, o da ação política e das práticas sociais
público e o privado, as instituições e (Latour, 2013).
a rua. Antes, a própria efetivação das
relações de poder ocorre mediante me-
canismos e técnicas de governo em uma Entre a tradição e o mundo fabricado
ampla dimensão, tornando as vidas, os
corpos e as relações entre eles tão ar- Para Hannah Arendt, autora cuja obra é
tificiais quanto biológicas. Através da caracterizada pelo elogio das formas di-
hibridização das estratégias discursivas alógicas, verbais e discursivas, as mar-
com as funções técnicas e tecnológicas a cas da política “já não se prestam à ex-
política vem cada vez mais aparecendo pressão normal no discurso e no pensa-
como o processo e o resultado de ações mento” (2010, p. 3).
maquínicas. No Prólogo de sua obra A condição hu-
Salientamos que este artigo não está mana, publicado em 1958, Arendt usou
voltado à explicação exaustiva dos ar- de figuras da “ficção científica” para
gumentos dos autores mobilizados, mas expor a condição política fabricada no
objetiva introduzir as reflexões sobre “mundo moderno”2 . Segundo a autora,
a ruptura com os ecos de uma tradi- apesar de que à ficção científica, “in-
ção política moderna, representacio- felizmente, ninguém deu até agora a
nal, discursiva e soberana. Pretende- atenção que merece como veículo dos
mos utilizar os conceitos enquanto fer- sentimentos e desejos”, ela se configura
ramentas1 que nos auxiliem a perceber, como apropriada para alimentar a ima-

1 Experimentamos a reflexão sobre o conceito enquanto ferramenta, com a qual ensaiamos a escrita sobre questões contemporâ-
neas, mediante o auxílio à leitura de uma entrevista de Félix Guattari, na qual ele discorre sobre a obra escrita junto com Deleuze:
“Nosso problema não era esse, mas sim chegar a um acordo sobre nossas ferramentas conceituais. Propus essa formula há muito
tempo, inclusive Michel Foucault, aliás, usou essa noção de ferramenta conceitual, ou seja, que era válido tomar uma parte, até
mesmo uma palavra, uma expressão, uma sutileza conceitual na obra de alguém para tentar fazer um certo tipo de montagem”
(Uno, 2016: p. 43-44). Entendemos que a apresentação parcial dos conceitos dos autores não indica o esgotamento da temática da
hibridização nas obras trabalhadas no artigo, mas visa antes fazer emergir o fenômeno de uma ação não apenas discursiva, buscando
fundamentalmente alargar o conceito da política e, com isso, contribuir para o investimento em análises que o percebam além dos
mecanismos do Estado de Direito e da democracia liberal.
2 Hannah Arendt distingue mundo moderno de era ou época moderna. O mundo moderno “veio à existência através da cadeia de
catástrofes deflagrada pela Primeira Guerra Mundial. A ruptura com os valores tradicionais, por meio da crítica dos pensadores do
século XIX, é o evento que separa a época do mundo modernos” (1997, p. 54).
3 O recurso de Hannah Arendt à ficção científica participa de seus argumentos sobre as dificuldades inerentes à política discursiva
trazidas pelos avanços técnicos e tecnológicos. Em várias passagens de sua obra o tema aparece. Em A promessa da política a autora
expõe a relação entre “o totalitarismo e a bomba atômica”, duas experiências que suscitaram a “pergunta sobre o significado da polí-
tica em nossa época. (...) Ignorá-las é como nunca ter vivido no mundo que é o nosso mundo” (2008, p. 163). Os avanços da ciência
participam da crise da tradição nas práticas sociais e no pensamento, como anunciado em seu livro de coletânea de ensaios, Entre o
passado e o futuro, no texto “A conquista do espaço e a estatura humana”, de 1963. Nele a autora relaciona a questão da tecnologia
aos problemas políticos e cotidianos, apontando as novas conquistas da ciência como um problema político: “a questão levantada
dirige-se ao leigo e não ao cientista, e inspira-se na preocupação do humanista para com o homem, distintamente da preocupação do
físico com a realidade do mundo físico” (1997, p. 326). Sobre a presença das criações da ficção científica na obra de Hannah Arendt

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ginação e as análises políticas3 . Pois, é o “que de modo algum podem ser retra-
“artifício humano do mundo”, as técni- duzidas em discurso” (Ibidem: p. 4).
cas e tecnologias de condução da ação, Hannah Arendt analisa como a cada
que realizam e afirmam “aquilo que os vez maior presença do elemento má-
homens haviam antecipado em sonhos” quina e das automações vêm transfor-
(Ibidem: p. 2). mando por completo as tradicionais
A questão arendtiana, diante das má- atividades humanas. Em uma socie-
quinas que falam e pensam por nós dade na qual o trabalho, em suas várias
(Ibidem: p. 4), ou conosco, se refere à formas conhecidas, dá lugar às “fabri-
perda da profundidade do pensamento cações”, o indivíduo se torna parte de
e, com isso, ao perigo de sermos incapa- um mecanismo maior cujos elementos,
zes de compreender os acontecimentos no entanto, funcionam independente-
que podemos produzir. Essa espécie de mente de um comando central: seria
“alienação do mundo” seria identificá- o “advento da automação” (Ibidem: p.
vel, segundo Arendt, no divórcio entre 5). Ao fazer a categorização das ativida-
os mecanismos e funções da ação po- des humanas4 , Arendt discorreu sobre
lítica e a cada vez maior capacidade a “obra”, atividade humana correspon-
de praticar o ato sem reflexão, como dente ao “mundo ‘artificial’ das coisas”,
que funcionando ao modo de “criaturas cujos territórios abrigam “cada vida in-
desprovidas de pensamento à mercê de dividual, embora esse mundo se destine
qualquer engenhoca tecnicamente pos- a sobreviver e a transcender todas elas”
sível” (Ibidem: p. 4). A perda de impor- (Ibidem: p. 8).
tância do discurso nas relações de poder É como se estivéssemos em uma po-
é em si um problema político contem- lítica na qual a vida seria apenas um
porâneo, pois “sempre que a relevância meio de fazer funcionar um regime de
do discurso está em jogo, as questões produção cujo produto não faria dis-
tornam-se políticas por definição” (Ibi- tinção entre o biológico e a coisa, en-
dem: p. 4). Porém, parece ser fato, para tre o natural e o artificial. Assim, os
a autora, que há uma série de sociabi- indivíduos seriam não só o meio, mas
lidades, interações e relações de forças também o produto da fabricação. Per-

e suas relações com a literatura do gênero, ver “Hannah Arendt e a ficção científica”, de Edgar Lyra (2011).
4 Hannah Arendt (2010) compreende o agir de três formas: com a natureza; com os objetos feitos pela mão humana; e, entre
as pessoas. Essas relações não são pensadas como um quadro esquemático e fixo, mas como fenômeno complexo e interativo, no
qual as atividades se apresentam relacionadas umas com as outras, complementando-se. As atividades que compõem a vita activa,
como Arendt as nomeou, são: trabalho, fabricação e ação. Cada uma dessas atividades corresponde a uma concepção do humano,
ora descrito enquanto animal laborans, quando o agente se encontra aprisionado às necessidades biológicas e trabalha para prover
sua subsistência; ora como homo faber, o indivíduo enquanto fabricante de artefatos duráveis, construindo um mundo por meio do
domínio de uma técnica; e, ora como zoon politikon, o agente da política, caracterizado pelo relacionamento com os outros na esfera
pública. Hannah Arendt diferencia trabalho, fabricação e ação pelo produto ou resultado final obtido; pelo tempo empreendido na
sua realização; pelo espaço ocupado ao colocar em prática o ato; e, através do comportamento humano ao se expressarem.

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deria em valor as verdades sobre uma ais da vida política a “uma emigração
política das esferas de diálogos e tro- dos homens da Terra para algum ou-
cas discursivas com o fito de persuadir tro planeta” (Ibidem: p. 11). Com cla-
o outro. Trata-se mais de produzir o reza de análise ela apresenta a condição
corpo-máquina capaz de funcionar, e de já estarmos habitando outro planeta,
fazer funcionar, as engrenagens das re- contudo, em plena ocupação terráquea.
lações agonísticas. O planeta que deixamos para trás é o
Sabemos que para a autora, a “ativi- da tradição de um pensamento político
dade política por excelência” é a que que insiste em nos prender às antigas
ocorre diretamente na pluralidade dis- amarras discursivas quando a política e
cursiva das expressões humanas sin- seus mecanismos já operam, com trans-
gulares. Entretanto, a própria Arendt formações ocorrendo em grande veloci-
discorre sobre o quanto a atual condi- dade, através de funções e estratégias6 .
ção humana “nasceu com as primeiras A “alienação do mundo, em sua du-
explosões atômicas” (Ibidem: p. 7) e pla fuga da Terra para o universo e do
se encontra profundamente apartada mundo para o si-mesmo” (Ibidem: p. 7),
de toda uma tradição ocidental. “O se realiza no “homem futuro (...), im-
que quer que toque a vida humana ou buído por uma rebelião contra a exis-
mantenha uma duradoura relação com tência humana tal como ela tem sido
ela assume imediatamente o caráter de dada”. Essa é a “questão política de pri-
condição da existência humana” (Ibi- meira grandeza” (Ibidem: p. 3). Ao nos
dem: p. 11). mantermos presos a uma filosofia po-
Seguindo a imagem do objeto artifi- lítica do discursivo e da ação na esfera
cial e ficcional5 que parecia realizar o pública, regulada pelos artefatos ins-
desejo de libertar “os homens de sua titucionais de estabilização dos confli-
prisão na Terra” (Ibidem: p. 1), Han- tos, “pode suceder que nós, que somos
nah Arendt compara as condições atu- criaturas ligadas à Terra e nos puse-

5 No “Prólogo” de A condição humana, ao falar sobre um objeto artificial a transformar a existência do ser humano, Hannah Arendt
se refere ao primeiro artefato lançado ao espaço, o Sputinik: “em 1957, um objeto terrestre, feito pelo homem, foi lançado ao universo,
onde durante algumas semanas girou em torno da Terra segundo as mesmas leis de gravitação que fazem girar e mantêm em movi-
mento os corpos celestes o Sol, a Lua e as estrelas” (2010, p.1). O Sputinik I, durante 22 dias, do lançamento até que suas baterias se
esgotassem, emitiu para a Terra um sinal “beep” que podia ser captado por rádio amador. Em meio à Guerra Fria, o satélite soviético
causou grande impacto no cenário ideológico, econômico e militar, impulsionando diretamente a chamada “corrida espacial” com a
disputa entre União Soviética e Estados Unidos. Para Arendt, contudo, um dos maiores impactos foi o filosófico existencial, pois se
constatava que, através da tecnologia, “a humanidade não permanecerá para sempre presa à Terra” ou à sua velha condição humana,
evidenciando aquilo que ficara desde sempre “relegado ao reino da literatura de ficção científica” (2010, p. 2).
6 Cf. artigo de minha autoria: TELES, E. “Governamentalidade algorítmica e as subjetivações rarefeitas”. Esse artigo problematiza
a racionalidade de governo gerida pelos algoritmos. Argumenta-se que a governamentalidade, tal como definida por Michel Fou-
cault, a saber, uma lógica de cálculos e estatísticas utilizada para conduzir a ação dos indivíduos, mesclada às funções das máquinas
autônomas, configura um novo regime de produção de subjetividades. Estruturando as relações entre o humano e a máquina em
velocidade instantânea e acessando o máximo de informações sobre os interesses e necessidades dos indivíduos, a governamentali-
dade algorítmica trabalha com a ideia de uma normatividade imanente ao próprio deslocamento e circulação dos dados, bloqueando
experiências sociais e políticas com a eliminação das esferas de debates e de criação do comum.

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mos a agir como se fôssemos habitan- localização. “A ascensão da administra-


tes do universo, jamais sejamos capazes ção, de suas atividades, seus problemas
de compreender, isto é, de pensar e de e dispositivos organizacionais” alterou
falar sobre as coisas que, no entanto, so- o significado e a importância da separa-
mos capazes de fazer” (Ibidem: p. 4). ção de espaços próprios para determi-
O lugar habitado, este “outro pla- nadas atividades humanas, “ao ponto
neta” que transbordou irremediavel- de torna-los quase irreconhecíveis” (Ibi-
mente os limites da tradição, aparece dem, p. 46).
como uma localização indistinta entre Concebe-se que, ao invés de agir com
o humano e o artificial na qual essas os demais, os indivíduos se comportam
categorias só podem ser abordadas en- de acordo com uma “moderna ciência
quanto classificações teóricas. A expe- da economia”, enquanto “instrumento
rimentação das novas localizações do técnico” de governo das relações sociais
político informa que: (Ibidem, p. 51). Ainda que para Arendt
as “leis da estatística” controlem ape-
As coisas e os homens consti- nas dados de grandes e longos eventos,
tuem o ambiente de cada uma o que deixaria escapar os acontecimen-
das atividades humanas, que tos originados na ação dos singulares,
não teriam sentido sem tal loca- veremos com outros autores que certa
lização; e, no entanto, esse am- revolução tecnológica e política trans-
biente, o mundo no qual nasce- bordou esses limites. O modo arend-
mos, não existiria sem a ativi- tiano de lidar com o controle exercido
dade humana que o produziu, pelos cálculos de governo é a valoriza-
como no caso de coisas fabrica- ção das “ocorrências raras da vida coti-
das; que dele cuida, como no diana”. Afinal, dizia Arendt, seria “inú-
caso das terras de cultivo; ou til buscar o significado da política” sem
que o estabeleceu por meio da considerar os eventos específicos e as
organização, como no caso do ações comuns (Ibidem: p. 52).
corpo político (Ibidem, p. 26).

O contemporâneo turvou as distin- O “desvio” no projeto político da mo-


ções entre o público e o privado, as coi- dernidade
sas e o humano, o sujeito e o objeto.
Assim, sem as clássicas compreensões Seguindo à tradição moderna das teo-
sobre a política, o discursivo, a partici- rias políticas, Jacques Rancière expôs a
pação cidadã e a representação se des- síntese de um agir com ênfase no dis-
valorizam em meio às fronteiras indis- cursivo. Para ele, seria preciso se obser-
tintas do que antes se pensava ser sua var três aspectos na política: primeiro,

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AÇÃO POLÍTICA HÍBRIDA E A DISSOLUÇÃO DA CIDADANIA

é necessário haver uma esfera de apa- blema na localização da política, como


rência do povo7 , um “campo da expe- falar em um povo? Sobre o que o enten-
riência, de um visível que modifica o dimento na esfera pública iria operar?
regime do visível”; segundo, o povo da A vida sem o discurso “deixa de ser
aparência não pertence à unidade de uma vida humana” (Ibidem: p. 221), fa-
grupos determinados, pois “a democra- zendo da política a efetivação de uma
cia é a instituição de sujeitos que não utilidade, um meio para se atingir um
coincidem com partes do Estado ou da fim. Lembra a autora que alguns dos
sociedade”, o sujeito não-identitário; e, significados da palavra “agir”, que de-
terceiro, o palco no qual o povo se exibe signa a atividade política, vem do grego
é o lugar do conflito social, não entre “archein” e “prattein” (a primeira signi-
partes, mas um litígio que põe em jogo ficando “começar”, “conduzir”, “gover-
a própria situação de conflito (1996, pp. nar” e, a segunda, “realizar”, “acabar”).
102-103). Nessa definição da política, Na política em que o discurso perde em
apenas o “visível” e seus sujeitos inte- importância tem-se apenas como su-
ragem por entre os objetos de suporte jeito político “robôs executores a rea-
à ação (Estado, leis, esfera pública, ins- lizar coisas” (Ibidem: p. 223). Arendt
tituições) para, entre si, decidirem dis- compreendia que o discurso, apesar de
cursivamente sobre o desentendimento. muito útil como elemento de comuni-
Apesar de partilhar, de modo seme- cação e informação, “poderia ser subs-
lhante a Rancière, da leitura tradicio- tituído por uma linguagem de signos”
nal, Hannah Arendt desenvolveu uma operada por processos automatizados
crítica na qual a política teria perdido o (Ibidem: p. 224).
seu sentido. A relação direta entre ação
e fala teria se tornado inoperante, ou
diminuído em importância, pois hoje A ação e o discurso necessi-
habitamos “um mundo no qual as pa- tam tanto da presença circun-
lavras perderam o seu poder” (Arendt, vizinha de outros quanto a fa-
2010, p. 12). Talvez pudéssemos esten- bricação necessita da presença
der a percepção crítica arendtiana, pois circunvizinha da natureza, da
se vivemos uma indistinção entre o pú- qual obtém seu material, e de
blico e o privado, efetivando-se um pro- um mundo onde coloca o pro-
duto acabado. A fabricação é

7 Jacques Rancière problematiza a figura “povo” ao expor a dependência dessa categoria em relação às instituições de Estado: “Que
existe uma entidade chamada povo que é a fonte do poder e o interlocutor prioritário do discurso político, é o que afirmam as nossas
constituições e é a convicção que os oradores republicanos e socialistas de outrora desenvolveram sem titubear. (...) Pois ‘o povo’ não
existe. O que existe são várias figuras de povo, mesmo antagônicas, figuras construídas favorecendo certos modos de reunião, certos
traços distintivos, certas capacidades ou deficiências: povo étnico definido pela comunidade da terra ou do sangue; povo-rebanho
vigiado pelos bons pastores; povo democrático implementando a competência de quem não tem qualquer competência particular;
povo que ignora que os oligarcas mantêm distância etc.” (2013, pp. 138-139).

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circundada pelo mundo e está duzir e de fabricar, exceto que


em permanente contato com o produzir, dada a sua munda-
ele; a ação e o discurso são cir- nidade e inerente indiferença à
cundados pela teia de atos e vida, era agora visto como ape-
palavras de outros homens, e nas uma outra forma de tra-
estão em permanente contato balho, como uma função mais
com ela (Ibidem: p. 235). complicada, mas não mais mis-
teriosa, do processo vital (Ibi-
dem: p. 402).
Para a filósofa alemã o mundo atual
se caracteriza pela perda da experiên-
cia na medida em que as ações e os A fabricação arendtiana é determi-
pensamentos configuram-se como um nada por um duplo sentido de finali-
“cálculo de consequências”, uma espé- dade: por um lado, o fazer do homo fa-
cie de “função do cérebro”. “A ação ber segue a um projeto específico e pre-
logo passou a ser, e ainda é, concebida viamente definido e, por outro, é uma
em termos de produzir e de fabricar”, atividade que se encerra quando o re-
lançando o humano em “um funciona- sultado final é atingido. Assim, a ati-
mento puramente automático, (...) en- vidade do homo faber “chega a um fim
torpecido e ‘tranquilizado’ de compor- com seu produto final, que não só so-
tamento” (Ibidem: pp. 402-403). Como brevive à atividade de fabricação como
em uma narrativa de ficção científica, daí em diante tem uma espécie de ‘vida’
Arendt imagina a cena em que os indi- própria” (Arendt, 1997, p. 91). Tal
víduos, em um processo de fabricação, percurso próprio, automático, revestido
perdem sua condição de serem funda- pelo fabricar de um processo previa-
mentalmente separados das coisas, na- mente conhecido pelo especialista, ca-
turais ou artificiais8 , e “(...) os corpos racterizariam as funções e estratégias
humanos começam gradualmente a ser de uma ação política contemporânea9 .
revestidos por uma carapaça de aço” A indistinção entre o humano e o
(Ibidem: p. 404). fabricado, mas também, entre o arti-
ficial e o natural, o sujeito e o objeto,
a cultura e a natureza transformariam
A ação logo passou a ser, e ainda irremediavelmente o cenário político e
é, concebida em termos de pro- de governo. Arendt, apesar de parti-

8 Segundo Donna Haraway, “a ficção científica contemporânea está cheia de ciborgues – criaturas que são simultaneamente animal
e máquina, que habitam mundos que são, de forma ambígua, tanto naturais quanto fabricados” (2009, p. 36). Identifica-se uma
filosofia contemporânea, da qual Arendt teria sido uma das precursoras, que compreende certa maquinicidade ou a hibridização da
política.
9 No livro Ação política em Hannah Arendt refleti sobre a crítica arendtiana à política contemporânea a partir das experiências
totalitárias do século XX (Teles, 2019).

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lhar da percepção de uma política fa- tureza permaneceu longínqua e


bricada, ainda considerou em sua obra dominada, ainda se parecia va-
a esperança de que ações políticas e não gamente com o polo constitu-
políticas pudessem manter suas distin- cional da tradição. Parecia re-
ções tradicionais. Em vários momentos servada, transcendental, ines-
de suas reflexões ela sustentou a invia- gotável, longínqua. Mas como
bilidade da “esperança utópica de que classificar o buraco de ozônio,
seja possível tratar os homens como se o aquecimento global do pla-
tratam outros ‘materiais’ “ (2010, p. neta? Onde colocar estes híbri-
236). A autora estabelece limites en- dos? Eles são humanos? Sim,
tre formas do agir, bem como entre ob- humanos pois são nossa obra.
jeto e sujeito. Entretanto, ela mesma São naturais? Sim, naturais por-
anuncia a impossibilidade de limitar os que não foram feitos por nós.
modos da existência política, seja qual São locais ou globais? Os dois.
for a atividade: “a ilimitabilidade da As massas humanas que as vir-
ação é apenas o outro lado de sua tre- tudes e os vícios da medicina
menda capacidade de estabelecer rela- e da economia multiplicaram
ções” (Ibidem: p. 239). também não são fáceis de ma-
A divisão da filosofia moderna en- pear. Em que mundo abrigar
tre aquilo que é por natureza e o que estas multidões? Estamos no
é por fabricação do humano se desfaz. campo da biologia, da sociolo-
Ambas atividades movimentam os hí- gia, da história natural, da so-
bridos, aqueles que são quase humanos ciobiologia? É nossa obra, e no
e, ao mesmo tempo, quase objetos, le- entanto as leis da demografia e
vando a política além do meramente da economia nos ultrapassam
discursivo. infinitamente. A bomba demo-
Segundo Bruno Latour: gráfica é global ou local? Os
dois. Portanto, tanto do lado
da natureza quanto do lado do
(...) talvez o quadro moderno
social, não podemos mais reco-
houvesse conseguido se man-
nhecer as duas garantias consti-
ter por mais algum tempo caso
tucionais dos modernos: as leis
seu próprio desenvolvimento
universais das coisas, os direi-
não houvesse estabelecido um
tos imprescritíveis dos sujeitos
curto-circuito entre a natureza,
(2013, p. 54).
de um lado, e as massas huma-
nas, de outro. Enquanto a na-

10 Para Hannah Arendt, a era moderna “começou no século XVII, terminou no limiar do século XX” (2010, p. 7) e caracterizou-se

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A “era moderna”10 , segundo Hannah turo”, mas também a imprevisibilidade


Arendt, é marcada pela valorização das dos efeitos de seus resultados (Ibidem:
ferramentas e dos instrumentos. As re- p. 239). A ação é imprevisível, pois
voluções nas formas de vida provêm do resulta das relações entre sujeitos sin-
impacto da fabricação, o encontro da gulares e discursos dissonantes e, por
“parafernália de instrumentos” em co- mais que se criem modos de estabili-
nexão com as “capacidades produtivas zar as profundas diferenças – como,
do homem” (2010, p. 369). Os moder- por exemplo, as leis –, não se poderia
nos seguiram e alimentaram a ideia de predizer o ato (Ibidem: 248-59). Justa-
que o homem poderia conhecer aquilo mente por essa característica certa po-
que ele mesmo faz. Este novo olhar lítica fabricada ou das máquinas políti-
para o conhecimento fez com que ocor- cas cresce em importância no contem-
resse a troca das questões na história da porâneo. Em busca de predizer os atos,
ciência do “o quê” ou “por quê” para o processos e artefatos acionados são uma
“como” algo existe. O experimento se- série de mecanismos de governo para
ria o processo no qual se poderia obter a conduzir as etapas da ação e estabele-
resposta ao “como” fazer algo e produ- cer estratégias de controle11 .
zir determinado efeito. A partir desse
ponto, agir e conhecer passou a ser um
ato de produção e fabricação. O foco
do conhecimento saiu das coisas uni- A ação e o esvaziamento da cidadania
versais e priorizou a história dos pro-
cessos, pois se “sabia que um processo Do ponto de vista da valorização de
de produção precede necessariamente a uma política mecânica e tecnológica,
existência efetiva de todo objeto” (Ibi- em detrimento da esfera pública do dis-
dem: p. 371). cursivo, persuasivo e dialógico, a consi-
A imensa dificuldade em manter a deração do experimento, do saber sobre
política dentro de bordas delimitadas o “como” e do domínio processual têm
se traduz na sua imprevisibilidade. resultado na instrumentalização da rea-
Dela não se antecipa o que ocorrerá – lidade para se atingir determinados ob-
“pois se assim fosse um computador jetivos. Considerando ainda que a ação
eletrônico seria capaz de predizer o fu- política tem como função principal, se-

pela alienação do mundo por um sujeito individualizado carente da convivência entre os pares e sofrendo com a ausência de pro-
fundidade no pensamento. Do ponto de vista da temática desse artigo o que nos interessa é o momento político e filosófico no qual
estratégicas mecânicas e funcionais ganham relevância nas relações de poder.
11 É o caso da eleição presidencial norte americana de 2016, na qual a empresa de marketing político Cambridge Analytica usou
de dados de milhões de usuários da rede social Facebook para conduzir eleitores a votarem em Donald Trump, que viria a se tornar
presidente. Produz-se uma política preditiva determinando decisões com base nos processos autômatos e eliminando em grande
medida uma característica fundamental da ação política, o “risco” de sua imprevisibilidade. Cf. “Presidente da Cambridge Analytica
confessa influência em eleições nos EUA”, in: O Estado de S. Paulo, de 21 de março de 2018, p. 18.

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gundo certa filosofia política12 , a con- tica e encontravam-se atomizadas soci-


dução dos indivíduos, inclusive para almente.
que a imprevisibilidade dos eventos te-
nha seus efeitos contornados, os artefa-
O termo massa só se aplica
tos e a fabricação passaram a atuar fun-
quando lidamos com pessoas
damentalmente sobre a vida e os cor-
que, simplesmente devido ao
pos.
seu número, ou à sua indife-
Seria “como se a vida individual” ti-
rença, ou a uma mistura de
vesse um “funcionamento puramente
ambos, não se podem integrar
automático”, “submersa no processo vi-
numa organização baseada no
tal global” (Arendt 2010: 403). Aban-
interesse comum, seja partido
donada a um modelo “funcional, entor-
político, organização profissi-
pecido e ‘tranquilizado’ de comporta-
onal ou sindicato de trabalha-
mento” (Ibidem: p. 403), a individuali-
dores. Potencialmente, as mas-
dade deixaria de ser uma unidade sin-
sas existem em qualquer país e
gular de potencialidades da ação para
constituem a maioria das pes-
se tornar apenas saídas e entradas de
soas neutras e politicamente in-
dados e reações nos processos geridos
diferentes, que nunca se filiam
pelas tecnologias. Não seria o fim do
a um partido e raramente exer-
indivíduo, porém, a anulação dos sujei-
cem o poder de voto (Arendt,
tos congelados em bolhas cada vez mais
1989, p. 361).
controladas e limitadas.
O indivíduo na condição de átomo,
na qual “cada partícula tem, aparen- O princípio da igualdade presente
temente, a ‘liberdade’ de comportar-se no ordenamento de qualquer Estado-
como quiser” (Ibidem: p. 404), dissolve- nação entrou em colapso. Desse modo,
se na massa de elementos que se com- o totalitarismo destruiu as redes sociais
portam como uma multidão. O colapso de comunicação e as esferas públicas
do Estado-nação e as consequências visando mobilizar as massas despoliti-
da Primeira Guerra Mundial criaram zadas. A desvalorização da experiên-
as condições para desfazer as caracte- cia comum foi um processo que conti-
rísticas tradicionais de sociabilidade e nuou nas democracias do pós-guerra,
cidadania na Europa. As massas de ainda que institucionalmente as estru-
apátridas produzidas se definiam pelo turas fossem outras e discursivamente
grande volume, pela indiferença polí- se reconhecesse as estratégias autoritá-

12 A referência para um poder politico que exerce a condução, ou o pastoreio, das populações (corpo coletivo) pode ser lida em
Michel Foucault, no seminário Segurança, Território, População (2008), aula de 08 de março de 1978: “Da pastoral das almas ao
governo político dos homens”.

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rias. A atividade política, quanto mais Como pensar em uma política que
instrumentalizada e mecanizada se tor- transborde os limites da representação?
nou, mais foi se limitando à ação de Uma ação cujo funcionamento extra-
poucos. Os especialistas nos processos pole os significados expressos pelos dis-
de governo substituíram as possibili- cursos? Qual a profundidade do mundo
dades do agir imprevisível e inovador fabricado, artificial, sem o poder exclu-
fruto da reunião plural das singulari- sivo das palavras? Faria sentido per-
dades. guntarmos pelo sujeito da política di-
Em uma política fabricada, a ação e ante de uma ação definida por meio de
o discurso são considerados mais pela dispositivos com funções de controle?
efetividade de seu uso e efeitos do que
pelo conteúdo discursivo. Nesse con-
texto, o fundamento da ação política
Arquiteturas e técnicas políticas
é a “noção de que os homens só po-
dem viver juntos, de maneira legítima
Quando Michel Foucault se refere a
e política, quando alguns têm o direito
uma “microfísica do poder”13 ele expõe
de comandar e os demais são forçados
o deslocamento em relação a toda uma
a obedecer” (Arendt, 2010, p. 277).
política representacional e discursiva.
Portanto, o problema a ser tratado é o
O tipo de intervenção sobre o humano
modo de governo, a eficácia e o con-
e o ambiente em que este habita, sobre
trole que pode exercer. Pode-se obser-
o corpo individual ou coletivo, define-
var que a democracia representativa, de
se por funções diferentes e, ao mesmo
certo modo, sintetizou o controle da ca-
tempo, complementares, que remetem
pacidade política dos sujeitos em ter-
à reflexão sobre um agir político com-
mos como “participação” e “cidadania”,
preendido através dos efeitos que pro-
esvaziados na medida em que não vão
duz.
além de uma esfera pública e de uma
As técnicas que incidem sobre o
política discursiva com sérios limites.
corpo visam aprimorá-lo para que
“Seria necessário uma outra democra-
exerça melhor sua função produtiva nas
cia? Uma democracia estendida às coi-
relações de poder. Objetiva-se fabricar
sas?” (Latour, 2013, p. 17).
um corpo a ser utilizado em suas pos-

13 O diagnóstico sobre a existência de uma microfísica do poder visa desmontar a ideia universal de identificação entre poder e
Estado ao considerar toda uma rede de poderes entre as micro-relações, por toda parte, dentro ou fora das instituições. Aponta ainda
para o fato de os poderes agirem não só por meios repressivos, mas também disciplinares e reguladores. Para saber mais sobre as
micro-relações de poder há a publicação brasileira com coletânea de ensaios sobre o tema no livro Microfísica do poder (Foucault,
1979).
14 Um bom exemplo de visão da política como um poder produtivista, a partir de gestões da vida e do corpo por parte de institui-
ções, se encontra na entrevista do general Eduardo Villas Bôas, comandante do Exército durante os governos dos presidentes Dilma
Roussef (2º mandato) e Michel Temer. Perguntado sobre como resolver a questão da violência urbana, o destacado militar respon-
deu: “Somos um país carente de disciplina social, que prioriza os direitos individuais em relação ao coletivo e ao interesse social.

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sibilidades máximas, produzindo mais, tiplicação através de novas conexões,


melhor e por mais tempo14 . E, ao re- utilizando os corpos enquanto um todo.
produzir funções e mecanismos políti- Trata-se de uma técnica econômica,
cos, diminuir a potência de revolta e de com cada passo permanentemente cal-
resistência, neutralizando sua capaci- culado em minúcias.
dade de se indispor à ordem (Foucault,
2009).
Dispositivo importante, pois
Em período semelhante ao que
automatiza e desindividualiza
Arendt nomeou por “era moderna”
o poder. Este tem seu prin-
(algo que se inicia entre os séculos XVII
cípio não tanto numa pessoa
e XVIII), Michel Foucault identificou o
quanto numa certa distribuição
surgimento de técnicas visando à fabri-
concertada dos corpos, das su-
cação de soldados por meio de máqui-
perfícies, das luzes, dos olhares:
nas de adestramento do corpo. Atra-
numa aparelhagem cujos meca-
vés de “automatismos do hábito” (Ibi-
nismos internos produzem a re-
dem: p. 131) se descobre o corpo como
lação na qual se encontram pre-
suporte e alvo das relações de poder.
sos os indivíduos. As cerimô-
A noção central mobilizada por estas
nias, os rituais, as marcas pelas
técnicas é a de “docilidade”: “é dó-
quais se manifesta no soberano
cil um corpo que pode ser submetido,
o mais-poder são inúteis. Há
que pode ser utilizado, que pode ser
uma maquinaria que assegura
transformado e aperfeiçoado” (Ibidem:
dissimetria, o desequilíbrio, a
p. 132).
diferença. Pouco importa, con-
As disciplinas desmembram, redu-
sequentemente, quem exerce o
zem as forças dos grandes blocos, reor-
poder. (...) É uma máquina ma-
denam e fabricam indivíduos. Suas téc-
ravilhosa que, a partir dos dese-
nicas tomam “os indivíduos ao mesmo
jos mais diversos, fabrica efeitos
tempo como objetos e como instrumen-
homogêneos de poder (Ibidem:
tos de seu exercício” (Ibidem: p. 164). A
pp. 191-192).
singularização das unidades mínimas
em torno do indivíduo é um modo de
melhor aplicar, em seus ínfimos deta- A economia funcional e contínua, a
lhes, as técnicas de adestramento do partir dos próprios corpos singulares e
corpo. Contudo, a estratégia visa à mul- suas multiplicidades, ainda que se in-

E um ambiente de pouca disciplina favorece à diluição das responsabilidades. Por isso, há uma certa resistência a que se busque o
saneamento das condutas individuais e coletivas. Por outro lado, estamos vivendo uma imposição do politicamente correto, vivendo
uma verdadeira ditadura do relativismo e com uma tendência a que não se estabeleçam limites nas condutas. (...) Quando nós vemos
agressões a mulheres, abusos, quando vemos desrespeito, na raiz disso está a falta de limite e de disciplina que existe na sociedade”.
In: “Contaminação de tropas federais por facções criminosas preocupa”, in: O Estado de S. Paulo, de 15 de janeiro de 2018, p. 12.

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sira em uma hierarquia, leva os disposi- Tecnologias de governo da vida


tivos disciplinares a operarem não só de
cima para baixo, mas também em sen- No século XX, houve uma apropria-
tido inverso, bem como lateralmente e ção do biológico pela institucionaliza-
transversalmente: “organiza-se assim ção do Estado realizada pelos regimes
como um poder múltiplo, automático e totalitários. Tais regimes eliminaram
anônimo” (Ibidem: p. 170). As disci- não só a esfera pública, mas também
plinas funcionam por movimentações e qualquer possibilidade de espontanei-
atos relacionais que se sustentam em dade humana, interferindo nas ativida-
seus próprios mecanismos, desinves- des essenciais à existência. Para tanto
tindo as ações políticas da persuasão destruíram as teias sociais de comu-
discursiva e das oposições binárias ide- nicação e convivência e mobilizaram
ológicas. as massas despolitizadas, as quais se
Sua espacialidade não se define por definiam pelo volume grande de pes-
um território ou local específico. “(...) soas, pela apatia e indiferença política,
O lugar que alguém ocupa numa classi- se encontrando atomizadas socialmente
ficação, o ponto em que se cruzam uma (Arendt, 1989).
linha e uma coluna, o intervalo numa Ao totalitarismo não bastava a eli-
série de intervalos que se pode percor- minação dos opositores, mas havia a
rer sucessivamente” (Ibidem: pp. 140- necessidade da posse de todo o tecido
141). São os processos e o adestramento social, impondo o controle absoluto e
operacional que importam, as “disci- incondicional. O novo regime colocou
plinas” fazem com que os corpos sejam em questão os conceitos tradicionais de
distribuídos e circulem em uma rede de poder político ao apresentar uma con-
acordo com as demandas de produção e cepção sem precedentes de dominação,
dominação15 . expondo os limites das instituições po-
líticas em manterem a estabilidade dos
direitos e das leis. Com a experiência
dos campos de concentração, na qual os
indivíduos se encontravam reduzidos a

15 É interessante o exemplo do tempo gasto no trânsito, o que inclui espera em ponto de ônibus, circulação e transferências entre
tipos de transportes. Cada corpo paulistano, por exemplo, usuário do transporte público, chega a despender 45 dias por ano, em
média, na circulação urbana. Seria difícil imaginar que um indivíduo, ou sua multiplicidade (o que é exponencialmente mais po-
tente), pudesse prodigalizar tanto tempo diário com circulação entre trabalho, estudo (seu ou de seus filhos) e casa, se não fossem
seus corpos altamente adestrados, dóceis e submissos. O próprio transporte, seus objetos e indivíduos, é a instituição disciplinar e as
relações por ele e nele produzidas são a ação política de controle. Talvez pudéssemos levantar a hipótese de que a quantidade massiva
de ônibus queimados nas periferias das grandes cidades (em São Paulo, no ano de 2014, foram mais de 200 veículos incendiados) se
deva, ao menos em parte, ao grau abusivo e excessivo de uso da docilidade dos corpos para bloquear revoltas contra a baixa qualidade
dos serviços públicos na cidade. Cf. “Pesquisa sobre mobilidade urbana”, feito pela Rede Nossa São Paulo, publicada em setembro de
2016. Disponível em http://www.mobilize.org.br/midias/pesquisas/mobilidade-urbana-e-transporte-publico-em-sp.pdf, acesso em
setembro de 2020.

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simples seres viventes, Arendt refletiu biológico ou, pelo menos, uma
sobre a substituição da política tradici- certa inclinação que conduz ao
onal por uma política do biológico. A que se poderia chamar de esta-
ação instrumentalizada para o controle tização do biológico (Foucault,
da vida virou uma função sem sujeito, 1999, pp. 285-286).
cujas relações entre as pessoas, e des-
tas com as coisas e vice-versa, ocorreria
por meio de mecanismos próprios para Com a tecnologia biopolítica apa-
lidar com a gestão de processo produti- rece um novo personagem, a popula-
vos. ção, e com ela os fenômenos relacio-
Já para Michel Foucault, um poder nados, como: natalidade, mortalidade,
sobre o biológico surge antes das ex- longevidade, enchente, saúde pública,
periências do século XX e por estas é circulação nas cidades etc. Os novos
reforçado16 . As populações se tornam mecanismos se dedicarão às estatísticas,
alvo de distribuições a partir do fato de às previsões e às medições. “Trata-se
serem grupos de corpos biologicamente sobretudo de estabelecer mecanismos
(in)animados. Se o poder disciplinar lo- reguladores que, nessa população glo-
calizava, examinava e distribuía os in- bal com seu campo aleatório, vão poder
divíduos entre vivos, mortos e doentes, fixar um equilíbrio, manter uma mé-
um novo poder, a biopolítica, condu- dia” (Ibidem, p. 293). Na biopolítica,
zia as populações para mais viverem ou as tecnologias de governo dos corpos
para a morte, a partir da ideia central e da vida centralizarão suas ações nos
de que a vida (e os corpos) é a grande acontecimentos eventuais procurando
ferramenta política. intervir sobre eles antes que se concre-
tizem.
Para Hannah Arendt, como para ou-
Parece-nos que um dos fenô- tros pensadores, a ação é imprevisível,
menos fundamentais do século pois resulta da relação social entre su-
XIX foi, é o que se poderia de- jeitos singulares e discursos dissonantes
nominar a assunção da vida e, por mais que se criem modos de esta-
pelo poder: se vocês preferi- bilizar as profundas diferenças – como,
rem, uma tomada de poder so- por exemplo, as leis –, não se poderia
bre homem enquanto ser vivo, predizer totalmente o ato (2010, pp.
uma espécie de estatização do 303-308).

16 No seminário Em defesa da sociedade, Michel Foucault argumenta sobre o impacto da experiência da “sociedade nazista” na absolu-
tização do biopoder: “Tem-se, pois, na sociedade nazista, esta coisa, apesar de tudo, extraordinária: é uma sociedade que generalizou
absolutamente o biopoder, mas que generalizou, ao mesmo tempo, o direito soberano de matar. Os dois mecanismos, o clássico,
arcaico, que dava ao Estado direito de vida e de morte sobre seus cidadãos, e o novo mecanismo organizado em torno da disciplina,
da regulamentação, em suma, o novo mecanismo de biopoder, vêm, exatamente, a coincidir” (1999: p. 311).

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Diante da imprevisibilidade da ação (...), vai-se fixar de um lado uma


e das formas biopolíticas de condução média considerada ótima e, de-
das populações teremos duas implica- pois, estabelecer os limites do
ções: será preciso obter cada vez mais aceitável, além dos quais a coisa
dados sobre os acontecimentos procu- não deve ir. É portanto toda
rando antecipá-los; e, obrigará uma uma outra distribuição das coi-
ação que vincule as tecnologias de go- sas e dos mecanismos que assim
verno com as técnicas disciplinares e se esboça (Foucault, 2008, p. 9).
os mecanismos da soberania, os quais
agem no controle ou na repressão pre-
ventiva. Não há déficit, desvio ou falha. Há
A economia de governo, na passa- processos, meios e circulações a serem
gem do século XVIII para o XIX, se- conduzidos. A compreensão da ação
gundo Foucault, buscou criar dispositi- política a partir das técnicas e tecnolo-
vos que agissem sobre o fenômeno, mas gias de controle dos espaços e de suas
sem alterá-lo, danificá-lo ou eliminá-lo. circulações possibilita à filosofia polí-
A estratégia seria fazer uso dos acon- tica aprofundar as análises das relações
tecimentos, aproveitando a sua reali- de poder enquanto funções e mecanis-
dade e em conexão com várias outras mos de controle. Bem como estratégias
realidades, de modo a gradativamente de poder se efetivando entre o biológico
compreendê-lo, exercendo certo freio, e o social, o discursivo e o mecânico, nos
controle e, ao fim, podendo mesmo permite identificar em Foucault uma
eliminá-lo. Conectado à realidade do ação política híbrida cuja potência re-
evento os dispositivos de governo vão side justamente na intersecção entre es-
cada vez mais se utilizar dessas osci- sas diferentes e complementares formas
lações do fenômeno sem tentar previa- de controle, gestão e condução da vida.
mente impedi-lo. Na normatização da Afinal, “o corpo é o lugar de uma justa-
biopolítica trata-se de: posição, de uma sucessão, de uma mis-
tura de espécies diferentes” (Foucault,
p. 9). Os corpos, suas subjetivações e
(...) inserir o fenômeno em suas ações são tanto biológicas, quanto
questão (...) numa série de culturais, assim como mecânicas e au-
acontecimentos prováveis. Em tomatizadas.
segundo lugar, as reações do
poder ante esse fenômeno vão
ser inseridas num cálculo que A gestão maquínica das subjetivações
é um cálculo de custo. Enfim,
em terceiro lugar, em vez de No livro Mil platôs, ao comentar sobre
instaurar uma divisão binária as técnicas fascistas de atuação, Gil-

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les Deleuze e Félix Guattari explicam mente por pequenas engenharias de go-
como máquinas de guerra micropolí- verno dos desejos. As máquinas trans-
ticas agem sobre o desejo de modo a formam a ação em cifras calculáveis e
tornar o fascismo um movimento de modulam a condução dos corpos por
massa, potente e catastrófico. É atra- meio de códigos informacionais cujas
vés de micro organizações, fluxos se combinações infinitas permitem certa
deslocando por entre segmentos mais previsibilidade e o ilimitado de uma
estáveis. “Mas o desejo nunca é sepa- política tecnocientífica. Quanto mais
rável de agenciamentos complexos que central e maior forem os dispositivos
passam necessariamente por níveis mo- de segurança, maior será a microgestão
leculares, microformações que moldam dos pequenos medos e das desesperan-
de antemão as posturas, as atitudes, as ças fluidas. Imperceptíveis ao olhar são,
percepções, as antecipações, as semióti- contudo, tão evidentes quanto o cheiro
cas, etc.”; os desejos resultam, mais do de algo podre do qual desconhecemos a
que de energias pulsionais, de “um en- proveniência.
gineering de altas interações” (Deleuze Bom exemplo é a expectativa posi-
e Guattari, 2012b, p. 101). tiva de que uma intervenção militar na
Tornamo-nos dispositivos aplicáveis gestão da segurança pública, no estado
de uma estrutura arquitetada a partir do Rio de Janeiro, resolveria por meio
de redes, um modo de governo prove- da violência, legal, a violência urbana
niente do capitalismo pós-industrial e crescente18 . Em um jogo de movimen-
capaz de lidar com as subjetividades tações molares e moleculares, entre, por
em suas formas mais capilares. As má- um lado, articulações institucionais que
quinas de guerra políticas, potências da vêm desde as Unidades de Polícia Paci-
sociedade de controle, atuam em um ficadora (UPPs) e os grandes eventos
âmbito molar17 , o das instituições e dos esportivos, e, de outro, imagens de te-
grandes centralismos (notadamente o levisão com arrastões e saques na Zona
Estado), e, através de fluxos molecu- Sul da cidade, se produziu um clamor
lares, atomizados, conduzidos massiva- conservador, pois demandante do uso

17 Gilles Deleuze e Félix Guattari desenvolveram os conceitos de molar e molecular. Molar se refere ao campo dos controles e das
representações e são gestados, normalmente, pelas instituições centralizadoras, como as do Estado. O molecular é a expressão dos
devires e dos desejos, por onde os fluxos se relacionam por meio de inúmeras conexões. “(. . . ) A política e seus julgamentos são
sempre molares, mas é o molecular, com suas apreciações, que a ‘faz’ ” (Deleuze e Guattari, 2012b, p. 112). Um e outro campo
podem existir conjuntamente, “um grupo de trabalho comunitário pode ter uma ação nitidamente emancipadora a nível molar, mas
a nível molecular ter toda uma série de mecanismos de liderança falocrática, reacionária, etc. Isso, por exemplo, pode ocorrer com a
igreja. Ou, o inverso: ela pode se mostrar reacionária, conservadora, a nível das estruturas visíveis de representação social, a nível do
discurso tal como ele se articula no plano político, religioso, etc., ou seja, a nível molar. E, ao mesmo tempo a nível molecular, podem
aparecer componentes de expressão de desejo, de expressão de singularidade, que não conduzem, de maneira alguma, a uma política
reacionária e de conformismo” (Guattari e Rolnik, 1999, p. 133).
18 Comentei o acontecimento “intervenção” no artigo “A revolta dos tuiutis”, publicado em https://www.peixe-eletrico.com/single-
post/2018/02/23/A-revolta-dos-Tuiutis, acesso em setembro de 2020.

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de mais violência. A efetivação da “in- cia de agenciamento de seus desloca-


tervenção” passa ao largo das principais mentos, territórios e elementos. Ao in-
elaborações de propostas de políticas de vés de enfatizar os sujeitos, seus discur-
segurança pública por parte de especi- sos, os espaços estáveis e previamente
alistas e pesquisadores19 . Produz-se o definidos, os agenciamentos maquíni-
medo e a desesperança, bem como as cos privilegiam os processos, o “como”
demandas e os desejos, de tal modo que da ação política, as tecnologias e es-
a “fórmula dos ministérios do interior tratégias aplicadas. Seria justamente
poderia ser: uma macropolítica da so- no mundo híbrido, no entre os “quase-
ciedade para e por uma micropolítica sujeitos” e os “quase-objetos” (Latour,
da insegurança” (Deleuze e Guattari, 2013) que os agenciamentos de forças e
2012b, p. 102). fluxos se processam.
No Manifesto ciborgue, Donna Ha-
raway desenvolve a ideia do ciborgue,
A política opera por macro-
“um organismo cibernético, um híbrido
decisões e escolhas binárias,
de máquina e organismo, uma criatura
interesses binarizados; mas o
de realidade social e também uma cri-
domínio do decidível perma-
atura de ficção” (2009, p. 36). Aqui
nece estreito. E a decisão polí-
se assemelha aos processos maquíni-
tica mergulha necessariamente
cos, dos encontros entre a política re-
num mundo de microdetermi-
presentativa e institucional e os desejos
nações, atrações e desejos, que
emergentes dos processos moleculares.
ela deve pressentir ou avaliar
Já Haraway se refere à realidade social
de um outro modo. (...) Boa ou
como a fricção entre as experiências
má, a política e seus julgamen-
concretas com a ficção da transforma-
tos são sempre molares, mas é
ção do mundo, uma efetiva construção
o molecular, com suas apreci-
política. “O ciborgue é nossa ontologia;
ações, que a “faz” (Ibidem: pp.
ele determina nossa política” (Ibidem, p.
111-112).
37). Se o enfoque deleuzo-guattariano
está nos processos, para a filósofa o des-
As máquinas políticas não se consti- taque é o caráter híbrido do “ciborgue”.
tuem somente como um espaço de téc- Ele não participa de qualquer narrativa
nicas e peças fabricadas para compo- sobre o momento “original”, como os
rem suas engrenagens e sistemas. São, sujeitos universais das teorias políticas,
sobretudo, compostas de fluxos e multi- e se constitui em um telos dos proces-
plicidades de forças dotadas da potên-

19 Uma referência é a publicação “Rio sob intervenção: medo, percepção de risco e vitimização na cidade do Rio de Janeiro”, de
PAIVA et alli (2018), do Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP).

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sos contemporâneos de dominação, das truosas e ilegítimas: em nossas


subjetividades “libertas” e impressas presentes circunstâncias políti-
no indivíduo usuário das tecnologias cas, dificilmente podemos es-
de satisfação do desejo e da segurança. perar ter mitos mais potentes
Os corpos e as coisas passam a compor, de resistência e reacoplamento
ou ainda, a serem máquinas políticas de (Ibidem: p. 46).
alta performance.
As potências do hibridismo abrem a
política para outras possibilidades de Os híbridos seriam relações, junções
experimentações criativas se forem ex- e desmembramentos de elementos he-
postas às estratégias maquínicas de su- terogêneos, transformando as forças,
jeição e controle. Em seu interior, a impulsionando ou anulando seus flu-
ação híbrida, discursiva e, ao mesmo xos, descodificando continuamente o
tempo, funcional, se compreendida em que está posto. A transformação con-
seus processos e mecanismos pode ge- tínua se aplica a complexos tecnológi-
rar uma explosão em dessubjetivações cos, elaborações culturais ou de hábitos
das novas formas de vida, ainda em do cotidiano, assim como nos desejos e
condição de servidão e docilidade. Em afetos dos indivíduos e nos regimes de
um mundo ciborguiano pode ocorrer de produção de subjetividades. “Não há
as pessoas se apropriarem das afinida- mais de uma parte a humanidade e de
des ou da indistinção entre seres vivos outra um sistema de objetos em rela-
e seres fabricados, de modo que “não ção aos quais os humanos se situariam
temam identidades permanentemente como uma saliência” (Mbembe, 2020,
parciais e posições contraditórias” (Ibi- p. 17, tradução nossa). Modificam-se
dem, p. 46). Manifesta Donna Haraway: regras, normas, códigos, ferramentas,
equipamentos.
As articulações entre o orgânico e o
A luta política consiste em ver a inorgânico, os códigos e os meios, o mo-
partir de ambas as perspectivas lecular e o molar, a micropolítica e os
ao mesmo tempo, porque cada equipamentos de Estado, o discursivo
uma delas revela tanto domina- e o funcional se constituem nos fenô-
ções quanto possibilidades que menos e acontecimentos da ação polí-
seriam inimagináveis a partir tica. Mais do que uma ontologia, ou
do outro ponto de vista. Uma uma biosfera pública, discursiva e está-
visão única produz ilusões pio- vel, se tem uma espécie de “mecanos-
res do que uma visão dupla ou fera” (Deleuze e Guattari, 2012a) na
do que a visão de um monstro qual os elementos mecânicos e técni-
de múltiplas cabeças. As uni- cos encontram-se em simbiose e aliança
dades ciborguianas são mons- com o humano e o biológico. E não ape-

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nas como meios ou instrumentos, mas discursiva. É uma máquina


igualmente enquanto elementos do fa- quase muda e cega, embora seja
zer político. ela que faça ver e falar (Deleuze
2006: 44).

Nem humanos, nem máquinas, mas


estratégias e processos Investe-se em uma economia do polí-
tico enquanto fabricação, maquinismos,
Segundo o argumento da tradição, ao sujeitos ciborgues, hibridismo entre as
propor a separação entre as coisas da antigas formas da política, da represen-
natureza e as fabricadas, a política seria tação e dos discursos, e as novas, dos
“os homens no plural, isto é, os homens processos, da previsibilidade, dos ar-
na medida em que vivem, se movem e tefatos e das técnicas. Intensificam-se
agem neste mundo, [e] só podem expe- as formas de uso das tecnologias e nor-
rimentar a significação porque podem mas em proveito das máquinas políti-
falar uns com os outros e se fazer enten- cas, sofisticando os regimes de subjeti-
der aos outros e a si mesmos” (Arendt vações. Intensifica-se uma governança
2010: 5). Já para Deleuze, as relações por meio de algoritmos, caracterizando
de poder operam por meio de diagra- “globalmente um certo tipo de raciona-
mas de mecanismos e tecnologias, má- lidade (a)normativa ou (a)política que
quinas operando de modo autônomo a repousa sobre a coleta, agregação e aná-
toda forma conteudística: lise automatizada de dados em quan-
tidade massiva de modo a modelizar,
antecipar e afetar, por antecipação, os
O diagrama não é mais o ar- comportamentos possíveis” (Rouvroy e
quivo, auditivo ou visual, é Berns, 2015, p. 42).
o mapa, a cartografia, co- Há uma diluição do indivíduo em
extensiva a todo o campo so- meio a uma cosmologia formada por
cial. É uma máquina abstrata. dados, o que diminui em importância
Definindo-se por meio de fun- as formas discursivas de ação política.
ções e matérias informes, ele ig- Através dos Big Data20 cada vez mais
nora toda distinção de forma se desinveste na identificação do indi-
entre um conteúdo e uma ex- víduo. Os indivíduos tornam-se objetos
pressão, entre uma formação da observação e da predição, enquanto
discursiva e uma formação não- as máquinas traduzem costumes, gostos

20 O termo Big Data se refere a um grande armazenamento de dados em velocidade, variedade e volume incalculáveis. Sua potência
está em que, através dos algoritmos, dele se pode extrair informações valiosas e eficientes sobre processos produtivos e, inclusive,
medidas preditivas a partir de detalhadíssimas informações sobre comportamentos, coisas ou seres animados, inclusive humanos.

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e ações, gerando novos regimes de sub- p. 17, tradução nossa).


jetivação, ou inda, a rarefação desses
processos. Como nessa tradução não há
neutralidade, deriva-se a racionalidade Sob a superfície de uma política dis-
governamental com uma ação política cursiva, binária e das subjetividades in-
fabricada para a qual a questão central dividualizadas operam “fluxos descodi-
passa a ser os processos, as tecnologias ficados” cujas funções advém da pró-
de controle e a condução dos corpos. pria operacionalidade produtivista dos
Se a tradição teórica tem pensado a mecanismos e das máquinas políticas.
política como o exercício dos discursos Esses fluxos, diferentemente da visibi-
e gestos, quando ato e palavra singu- lidade das esferas públicas do regime
lares dos indivíduos ou grupos políti- democrático, são eficientes “máquinas
cos buscam persuadir maiorias com o de ver” cuja eficácia se encontra em
fito de transformar o futuro, certa fi- sua capacidade de produzir “modos de
losofia contemporânea tem pensado a ser” (Bruno 2013). São fluxos subter-
ação e as relações de poder via um pro- râneos, invisíveis nas esferas discursi-
cesso híbrido, funcional e discursivo, vas dos corpos do “povo” ou do “cida-
no qual os mecanismos de controle têm dão”, mas que aparecem com evidência
uma amplitude e eficácia de relevância quando movem as placas tectônicas da
fundamental. sociedade de controle21 .
O fato de que em nossa sociedade
se fala, se gesticula e se comunica não
Agora somos atravessados por implica em um logocentrismo. Mas
objetos, trabalhados por eles aponta para um mundo tecnológico e
tanto quanto nós os trabalha- maquínico no qual a fala e o agir se
mos. Há um devir-objeto da tornam engrenagens eficazes dos mo-
humanidade que é a contrapar- dos de governo não pelo conteúdo, mas
tida do devir-humano dos obje- pela técnica de absorver as subjetivida-
tos. Nós somos o minério que des individualizadas em meio aos me-
nossos objetos são responsáveis canismos de poder. Trata-se de uma po-
por extrair. Eles agem conosco, lítica caracterizada “pelo estreito entre-
nos fazem agir e, acima de tudo, laçamento de várias figuras da razão: a
nos inspiram (Mbembe, 2020, razão econômica e instrumental, a ra-

21 Aqui fazemos uma referência à crítica de Félix Guattari aos sujeitos universais e em favor da reflexão sobre os “componentes de
subjetivação” sob a superfície, não evidentes: “O sujeito não é evidente: não basta pensar para ser, como o proclamava Descartes, já
que inúmeras outras maneiras de existir se instauram fora da consciência, ao passo que o sujeito advém no momento em que o pensa-
mento se obstina em apreender a si mesmo e se opõe a girar como um pião enlouquecido, sem enganchar em nada dos territórios reais
da existência, os quais por sua vez derivam uns em relação aos outros, como placas tectônicas sob a superfície dos continentes. Ao
invés de sujeito, talvez fosse melhor falar em componentes de subjetivação trabalhando, cada um, mais ou menos por conta própria”
(1990: 17).

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zão eletrônica e biológica. Baseia-se na que Michel Foucault (2008) tenha apre-
profunda convicção de que não há mais sentado a governamentalidade como a
distinção entre seres vivos e máquinas” “ação de condução da ação do outro”
(Mbembe, 2020, p. 9, tradução nossa). por meio dos procedimentos técnicos
Máquinas, redes, objetos, estruturas, semelhantes aos acima descritos. Se na
diagramas, tecnologias agem não so- política discursiva, o que mais a carac-
mente por meio das objetividades que teriza seja o molde sobre o qual os sujei-
lhes são inerentes, mas possuem um re- tos universais serão representados, na
gime de subjetivação, ou de dessubjeti- política mecânica e tecnológica se des-
vação, pois procedem por sugestão, so- taca a modelagem e a dimensão do pro-
licitação, bloqueio, anulação, incentivo, cesso produtivo de subjetivação empre-
procedimento, cálculo. Digno de nota endido pelas máquinas políticas.

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AÇÃO POLÍTICA HÍBRIDA E A DISSOLUÇÃO DA CIDADANIA

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UNO, Kuniichi. Guattari: confrontações. Conversas com Kuniichi Uno e Laymert Garcia dos Santos. São Paulo: n-1, 2016.

Recebido: 30/09/2020
Aprovado: 18/01/2021
Publicado: 31/01/2021

Revista de Filosofia Moderna e Contemporânea, Brasília, v.8, n.3, dez. 2020, p. 81-103 103
ISSN: 2317-9570
DOI: https://doi.org/10.26512/rfmc.v8i3.34499

Algoritmos de Mal-Estar: Ciberpandemia e Privacidade Hackeada


[Algorithms of Discontent: Cyber Pandemic and Privacy Hacked]

Marcelo Gonçalves Rodrigues*

Resumo: O presente artigo se propõe a uma análise da conjuntura de mal-estar global


resultante do período de pandemia, do COVID-19, no qual houve a intensificação nos
usos das novas tecnologias. O cenário aponta para uma realidade cuja objetividade
material efetiva, cada vez mais, um sistema de tecnocracia, sendo a inteligência artificial
dos algoritmos as balizas para sua implementação definitiva com destaque para moni-
toramentos, vigilâncias, automação, previsão e controle de corpos e mentes. A crise do
coronavírus acelerou com demasiada radicalidade mudanças em inúmeros setores da
sociedade e da subjetividade humana. Portanto, esse período crítico de mal-estar tem
como produto direto a apresentação da Quarta Revolução Industrial ou indústria 4.0
munida de sistemas ubíquos e de computação quântica interconectados para a captura
de dados e direcionamento das ações humanas.
Palavras-chave: Mal-Estar. Inteligência Artificial. Algoritmos. Indústria 4.0.

Abstract: This article proposes an analysis of the global discontent situation resulting
from the pandemic period, of COVID-19, in which there was the intensification in
the uses of new technologies. The scenario points to a reality which effective material
objectivity, increasingly, a technocracy system, being the artificial intelligence of algo-
rithms, the structure for its definitive implementations with emphasis for monitoring,
surveillance, automation, forethrought and control bodies and minds. The coronavirus
crisis accelerated too radically the transformation in countless sectors of society and
human subjectivity. Therefore, this critical period of discontent has as direct product
the introduction of Forth Industrial Revolution or Industry 4.0 armed with ubiquitous
systems and of quantum computing interconnected for capture data and directing
human actions.
Keywords: Discontent. Artificial Intelligence. Algorithms. Industry 4.0.

* Docente e supervisor clínico no curso de Psicologia da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da Fundação Educacional de
Penápolis (SP). Mestre em Educação Escolar pela Universidade Estadual Paulista (UNESP - Araraquara) e psicólogo formado pela
UNESP - Bauru. E-mail: marcelo_gonc@yahoo.com.br. ORCID: https://orcid.org/0000-0001-6110-2594.

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ISSN: 2317-9570
MARCELO GONÇALVES RODRIGUES

Digressões aproximadas dade do avanço móvel e dinâmico das


novas tecnologias digitais e de seus con-
tratempos oriundos.
O desfiladeiro da modernidade tardia Sem condições de materializar solu-
acarretou transformações, descontinui- ções no âmago dessas experiências, os
dades e avanços significativos aos se- indivíduos mapeiam modelos e ritu-
tores complexos como o familiar e re- ais que circulam sem código fixo com
ligioso, político e jurídico, e primor- o propósito de se despojarem dos ma-
dialmente o tecnológico. Tais modifi- tizes consolidados da realidade. Um
cações estruturais à sociedade contri- desses moldes é o negacionismo, esteio
buíram para o rompimento com velhas da burrice neurótica, que estrutura as
normativas e para o surgimento, com narrativas como a-histórica, portadora
certa intensidade, de formações de sin- de um passado livre de problemas éti-
tomas, deliberando a hiperinflação de cos e morais. A interconexão global em
mal-estar. Consequentemente, lançou a tempo real com as programadas fake
possibilidade de se examinar a extensão news, nesse trato, é uma das categorias
dos desafios frente à noção moderna de que deslindou as mostras de negação da
subjetividade no interior dos fenôme- história e da ciência.
nos em curso. Mundialmente, há “delírios” comun-
As constatações freudianas acerca gados e em ascendência como a recusa
dos protocolos de defesa corrobora- da existência de regimes ditatoriais, do
dos pelo estado de mal-estar, oportu- Holocausto, da escravidão, do aqueci-
namente, abrem territórios para se re- mento global, do formato da Terra. En-
posicionar a discussão dessa questão. tretanto, observamos em outra parte,
Isso porque, a função dessas defesas é coletivos afirmados na condição pro-
despender energia para amenizar a am- metéica que se ajoelham em modo de
biguidade dos percalços da vida civili- deificação aos paladinos da ciência, sem
zada. Por essa contraface, reafirmam o discussão e abertura para diálogos, sem
diagnóstico de sofrimento nas formas questionamento, sem escuta. Na maior
da anomia e crise de representatividade parte dos casos, agrupados em com-
nos inúmeros cenários correspondentes partimentos tecnossociais, esses sujei-
da objetividade. Se deslizarmos sobre tos parecem ser regidos pelas timelines
a compreensão de Sigmund Freud no das redes, que na análise da inteligên-
que tange aos três principais aspectos cia artificial (IA), envia lhes as próprias
de angústia – ameaça do e ao corpo e crenças ideológicas e reflexos narcísi-
o conflito inerente às relações pessoais cos. Uma visão unilateral inflexível
– observaremos que, houve reordena- trará a leitura cega dos pressupostos de
ções e mutações desse mecanismo de base do escopo científico. Maneiras de
defesa, especialmente, com a plastici-

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ALGORITMOS DE MAL-ESTAR: CIBERPANDEMIA E PRIVACIDADE HACKEADA

expressão que retratam as adversida- as formações reativas num jogo duplo


des contemporâneas não escutadas, por envolvendo a relação do corpo com a
assim ser, não permitem efetuar uma imagem do corpo, cada vez mais, com-
aproximação dos objetos negados sem preendidos como ativo financeiro. Este
resultar em negação de ambos, sujeito e modo conjunto impulsiona jejuns pro-
fato negado, ou de replicá-los ideologi- longados para desintoxicação orgânica,
camente nessa constituinte. meditação, veganismo e crudivorismo.
Outro fenômeno circulante diz res- De outra parte, exercícios extenuan-
peito às classes inclusas no social, no tes como os fitness high-intensity inter-
mercado de trabalho, nos ritmos de val training, musculação e dietas rigo-
consumo. O sentimento de pertenci- rosas até às famigeradas competições
mento desses grupos opera como esco- de quem come mais. Nesse tocante,
adouro por ideais conservadores: segu- incluem-se os body modification – cons-
rança e ordem, leis e punições. Este trução estética exótica que reúne do
encapsulamento convencional, sempre animal selvagem a bonecas humanas –,
atual, tem como alvo a massa de de- o auto-casamento, os mgtows, os incels,
sempregados, desfavorecidos ou imi- a insatisfação com o gênero. Destaca-
grantes, vistos como ameaças. Fato que ríamos também a religião e a arte como
efetiva um salto para trás – fim do sé- couraças emergentes ante o mal-estar.
culo XIX e início do XX – em direção às Entretanto, esses grupos mereceriam
ideologias higienistas. Capítulos bem capítulos a parte, em especial com rela-
reluzidos no conto literário machadi- ção à criação artística, sublimação que,
ano de O Alienista (1882/1979), e na seria o destino da pulsão por excelência
ficção cinematográfica Elysium (2013), nas denominações de Freud.
que delatam em algum aspecto as smart Sequencialmente às ramificações
city em andamento, a gentrificação e a mencionadas, não poderíamos dei-
segregação social. As raízes comple- xar de destacar a diagnose de Adorno
mentares dessa engenharia geoespacial (1995), sobre a libido regredida no des-
biométrica estão nas zonas de exclusões locamento de afetos para objetos ou-
ou prisões do lado de fora, delimitadas tros, no caso, a rejeição da possibili-
pelos extintos manicômios, presídios, dade de amar. Daí, o destino libidi-
cercamentos elétricos, concertinas la- nal à exaustão por máquinas, devoção
minadas e condomínios, conforme dis- por animais e plantas, abraçar árvores,
cutido por Foucault (1987) e Dunker rumo às cercanias da robofilia. Mo-
(2015). dalidades de sintomas que intentam,
No centramento de se defender ne- muitas vezes, no esquecimento da pos-
gando a realidade e de se enclausurar sibilidade de cultivar relações pesso-
na projeção imputada ao outro, temos ais, ancorando-se no presentismo sem

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precedentes de futuro e de um futuro prio fenômeno, potencializam-se pro-


sem presente, na iminência da morte, blemas de outras ordens que as pon-
num recanto absolutista de que a ve- derações de Drawin (1983), sintetizam
lhice jamais chegará aos contornos de nos eventos de contracultura, individu-
um corpo sem sujeito. alismo e irracionalismo. Desse modo,
Grande quantia desses condicio- por um lado, salientamos a ausência
nantes subjetivos se (re) combinam à de nomes para identificar a sensação
temporalidade fugidia e compactada. de desnorteio que subjaz nos estados
Quanto mais rápido, melhor e reconhe- críticos do social e individual com os
cido. Uma configuração em tela na qual conflitos de ordem política e emocional,
o lerdo perde o objeto, e o rápido, o su- mutuamente. De outro, com o declínio
jeito. O traçado do tempo na evanescên- de autoridade, temos a pluralidade de
cia tecnológica se miniaturiza tal como ofertas de gozo sem limites num desen-
em tumblr tendo as questões do sentido- contro entre sujeito, forma e seus mó-
finalidade da vida entrecruzadas pelos dulos de afeto.
cortes imagéticos dos frames de stories Em junção a isso, os nichos merca-
do instagram. Semelhança àquilo que dológicos e suas engrenagens flexíveis
Türcke (2010) sinaliza como o ritmo elaboraram os embustes das tendên-
acelerado e alienado do ser é ser per- cias alternativas de eliminação da in-
cebido. Esse compasso rompe tal qual felicidade. Sendo da ordem da impos-
Leão de Neméia com a profundidade e sibilidade atentar contra essa condição,
musicalidade hamletiana na inversão dessa feita, destacamos a reverberação
sintética do ser, sem a possibilidade do do mal-estar como processo de esvazia-
tempo de hesitação e dos desdobramen- mento das representações psicossociais
tos éticos valorativos. a partir dos usos das pílulas da felici-
O desenlace dessas problemáticas ex- dade, do princípio do evitar a dor a todo
postas quando simplesmente desculpa custo e de sua ética literal, per se, oposta
a sociedade, institui no reger do mal- ao sofrimento. Há nessa enunciação, do
estar explicações reificantes. Pois fo- lado do indivíduo a precariedade psí-
menta a falsa legalidade universal e ide- quica. Do lado social, a diminuição
ológica ao negar as vertentes do objeto dos espaços para a reflexão sobre a crise
e do conceito e ao considerá-las como a existencial e a dor. No centro dos dois,
morada exclusivamente do particular- a negação da interioridade e do enve-
individual sem indivíduo. À vista disso, lhecimento com a colaboração onerosa
ao desatrelar por completo as determi- da medicina estética e psiquiátrica.
nações materiais e os mecanismos soci- O arranjo desses sintomas contem-
ais das causas do sofrimento, suas me- porâneos assinala o perfil das insufi-
diações e a remissão à história do pró- ciências provocadas nas esferas do in-

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dividual, social e institucional com as ções drásticas de direitos, individuali-


mudanças na economia, trabalho e fa- dades ou liberdade de circulação das
mília, advindas, boa parte delas, das pessoas em nome de saúde e segurança.
fases dos pós-guerras amalgamadas no Afora todos os percalços no âmbito
decorrer do último século com o com- da saúde física, nos estados mentais
plexo avanço tecnológico. Acrescen- surgem demarcadores de pânico e an-
tado a isso, a aceleração tecnoimagética siedade, estressores e histeria coletiva,
do mercado de gozo capitalista trouxe pontencialização de violências e vulne-
novos ritmos, modelos, e padrões, ao rabilidades em múltiplos meios. Esse
passo que, produziu, no transcorrer das estado de coisas alterará ainda mais a
décadas, a espoliação das condições ob- maneira, historicamente crítica e con-
jetivas inerentes ao estado subjetivo de flituosa, de interagir entre as pessoas,
angústia. já que isolamento e solidão anulam as
Tendo em vista a diversidade desses possibilidades de identificação com o
novos modos de subjetivação, adentra- outro. Nas imediações do “The Great
remos em algumas discussões pontuais Reset”, o grande reinício, tema do Fó-
sobre o semblante do contexto hodierno rum Econômico Mundial 2021, sobre
arregimentado pelas novas tecnologias. sustentabilidade, consideramos que os
Um cenário para o qual se encaminha modos de sentido e sobrevivência no
a experiência da não liberdade defini- mundo sofrerão rupturas, trazendo à
tiva, pois esta a humanidade tem tro- baila uma revolução cultural, social,
cado para obter maior controle sobre histórica e uma reprogramação dos pi-
si e sobre a natureza. Nesse sentido, lares éticos reconhecidos pela civiliza-
como pensar a privacidade gradativa- ção. Identidade, privacidade, noções
mente destituída nos agrupamentos in- de posses, tempo livre e do trabalho e
finitos dos big datas, algoritmos e vigi- Estado Democrático de Direito, prova-
lâncias robóticas das inteligências arti- velmente, serão completamente reorde-
ficiais? Por esse viés, a conjuntura de nados via um novo contrato social.
mal-estar global, fruto das consequên- É de conhecimento geral que houve
cias da crise do coronavírus, acelerou um aumento considerável da depen-
mudanças estruturais com certa radi- dência tecnológica em praticamente to-
calidade. Desde danos econômicos sem dos os setores essenciais e não essenci-
precedentes com a possível implosão do ais. Principalmente, por isso, a transfe-
sistema financeiro, fratura nos padrões rência ao virtual nessa conjuntura pode
de consumo e de hábitos até perdas in- significar a mola propulsora à revolu-
comensuráveis com o colapso das bases ção industrial 4.0, estruturada em sis-
antigas dos empregos e dos sujeitos. É tema cibernético, cujo objetivo é a des-
também provável que ocorram altera- centralização via integração completa

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entre os processos digitais, biológicos e dessa dinâmica no artigo. Para isso, per-
físicos1 . Sendo assim, é na propriedade passaremos por uma pontuação sobre o
dessas constelações que postulamos o mapeamento histórico das construções
objetivo deste artigo de discutir uma paradigmáticas de períodos críticos da
das consequências da crise do coronaví- civilização no século XX. Aliado a isto,
rus à vida em sociedade: a aceleração da ainda que breve, traremos uma leitura
revolução 4.0 e suas ingerências tecno- psicanalítica da guinada tecnocientífica
cráticas algorítmicas. É imprescindível e de seu entrelaçamento com o papel
refletir sobre os desafios futuros frente constitutivo da instância do Supereu
aos novos modos de existir e as novas como forma de controle, censura e mo-
regras em civilização com a intensifica- nitoramento da consciência.
ção dessa Quarta Revolução Industrial
e de seus subprodutos agregados. Se há
uma forma que não voltará como an-
tes do período de pandemia, esta é a No alvorecer da peste
própria tecnologia em renovação incan-
Sobreviver em civilização, como elu-
sável de seus sensores e antenas, con-
cida Freud (1930/2010), é reconhecer
sequentemente, de seus usos e das re-
a sensação da condição de mal-estar,
lações por ela mediadas na captura dos
oriunda, espectralmente, da renúncia
dados em tempo real.
às satisfações pulsionais: supressão e
A partir da grande reinicialização di-
repressão dos instintos poderosos. Essa
gital que bate à porta, quais cortes, fu-
esfalfada caracterização, abre o circuito
ros e costuras impactarão nas mutações
para reconsiderações sobre o esclareci-
subjetivas em andamento e nas que ad-
mento de cultura e civilização. Espe-
virão com esta revolução dos softwares
cificamente em referência ao moderno
de vigilância em massa? Certamente
estado das coisas técnicas digitalizando
essa temática possibilita aguçar o de-
a vida política e cultural junto da previ-
bate sobre os limites éticos e morais nos
são e determinação de suas ações, gra-
empregos da tecnologia e a demarca-
dativamente, em cookies, pontos quân-
ção entre o ser humano e a inteligência
ticos, algoritmos e controle.
artificial. Sem grandes pretensões de
O progresso vertiginoso desses ras-
fechar discussões e tampouco de res-
treadores inteligentes favorece ponde-
ponder em suas máximas essas ques-
rar o lugar da ética, das violações de
tões, propomo-nos tratar sucintamente
privacidade e da neutralidade quando

1 É importante lembrar que, conforme consta resumido na Agenda Brasileira para Indústria 4.0, do Governo Federal, a Primeira Re-
volução Industrial, em 1784, foi com a geração de energia que envolveu o tear mecânico e a utilização das forças da água e do vapor.
A Segunda Revolução Industrial, 1870, trouxe a industrialização e eletricidade. A Terceira Revolução Industrial, 1969, inaugurou a
automação eletrônica, programação lógica de sistemas controladores, informatização e digitalização dos dados.

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estes artefatos são projetados para ma- eficiência, o fato é que, ambas as com-
nipulação e persuasão dos usuários. posições não são independentes entre
Isso implica que não podem ficar à si.
revelia os direcionamentos e influên- Pelo contrário, são abastecidas por
cias sobre o comportamento de decisão estruturas de ambivalência, identifi-
político-moral do indivíduo que tran- cação e anomia social, muito embora
sita como eleitor, consumidor e objeto apresentem diferenças e sinalizem com
de avaliação mediante o processamento agudeza as contradições da vida em so-
onipresente. A construção do lugar ciedade, tão fundamentais para apontar
ético político é dicotômica, por conse- as problemáticas no curso temporal de
guinte, envolve a questão do processo suas ocorrências. Revelam, portanto, li-
civilizatório que remete, a um só tempo, mites e caminhos de interpretação para
a duas marcas. De um lado, a pretensão o pensamento de novas situações sem
de ressuscitar a Paideia idealizada, pe- ofuscar as lentes para os velhos pro-
ríodo de apogeu da educação e forma- blemas persistentes. Justamente, nesse
ção principescas vigente na Grécia an- viés, erudição, cultura e produções de
tiga. De outro, ao conjunto de regras de conhecimentos – ciência e tecnologia –
internalização simbólica de leis para se- não parecem ser antídotos à violência
rem aplicadas em modo vigilante, prin- e tampouco logradouros de felicidade,
cipalmente, em domínio público. Ver- não obstante a promessa ser exatamente
samos a este respeito, especialmente, esta. Tanto é verdade que a evolução
no valor dos termos “cultura”, herança tecnológica vem acompanhada de nor-
da sociedade alemã (Kultur), versus “ci- mativas de princípios de moralidade
vilização” como laço social proveniente com argumentos na linha de influen-
da sociedade francesa. ciar os sujeitos a bons comportamentos,
A contento ressaltamos que não como garantias de segurança, de saúde
houve entre tradutores um consenso e de justiça. As máquinas regulariam os
sobre as terminologias Kultur, e, Zivi- nortes dessas combinações de modela-
lization, inclusive Freud (1927/2014), gem. Apesar disso, os riscos de distopia
sublinha a recusa a distinguir entre os não podem ser desconsiderados em ra-
referidos conceitos. Em que pese esta zão da velocidade com que a alta tecno-
consideração do autor, é justo realçar logia tem interferido de modo customi-
que, seja por evolução cultural pos- zado na vida objetiva social.
suindo todas as magnânimas potenci- Por esse ângulo, é importante recu-
alidades plausíveis para dar sentido ao perar que, regimes totalitários, histori-
humano, seja pela demonstração con- camente, documentaram a complexifi-
creta das máximas construções tecno- cada rede de engenharia social, tecnoló-
científicas para lhe dar objetividade e gica e política. Tais governanças, nessa

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finalidade, redimensionaram os pilares terial determinada se endereça aos


normativos das sociedades e dos seus agrupamentos como militarização, con-
sujeitos, independentemente, do nível trole, automação e monitoramento en-
de apropriação cultural e erudição de quanto núcleos objetivos diretos de tec-
determinada nação. As páginas da his- nocracia. Pontualmente, de modo sin-
tória, com ênfase na alemã, denunci- gelo, significa que a realização da ma-
aram a periculosidade de algumas fór- terialidade de vida é possibilitada por
mulas levadas a cabo pela civilização. A engenheiros, programadores e cientis-
Bildung somada à cultura neste propó- tas, com os políticos sendo normatiza-
sito, apesar da ascensão formativa e cul- dores e os militares, os executores da
tural, na observação de Adorno (1995), operação. Além do mais, essa impor-
não evitou o gerenciamento de uma po- tante conjunção de especialistas mira a
lítica de Estado de barbárie que assassi- realidade mais calculada e mensurada
nou milhões de pessoas mediante cálcu- por meio do desenvolvimento constante
los matemáticos. Contradições memo- das cadeias globais de antenas com sua
ráveis que descortinam a transitividade complexa emissão e compilação de da-
entre utopia e barbárie, entre conhe- dos. Para que assim a transmissão, a
cimento e controle: num momento, a descrição e a decodificação do que se
construção de objetos como os vagões faz dentro e fora da internet seja pro-
de Auschwitz; e, noutro, a de foguetes cessado e interpretado na ubiquidade
para a conquista do espaço. da inteligência artificial com a coleta e
Guerras sempre demonstraram a alta geração de informações, previsão e de-
escala de seus traçados quantificáveis liberação de ações.
dispostos na chave empirista junto de Por isso mesmo que, de maneira im-
seus maciços investimentos em siste- placável, os rumos da vida civilizada,
mas aplicados de inteligência. Foi a mapeada nesse instante por buscado-
partir da necessidade de segurança e de res, dirão impreterivelmente das exi-
dissolver crises, de evitar catástrofes e gências, muitas vezes, maiores do que
bombardeios, que a decifração de enig- as possibilidades determinativas dos
mas de guerra trouxe a matemática de indivíduos absorvidos nesse circuito
algoritmos da inteligência artificial, de digital. Mas no foco das pressupo-
Arthur Turing, por exemplo. Os efei- sições conceituais freudianas de mal-
tos desses módulos foram a personifi- estar, como refletirão estas exigências?
cação da racionalidade em apêndice de Na perspectiva de que os encaminha-
maquinários e a mistificação da afeti- mentos das energias libidinais da pul-
vidade em seu contrário, tangíveis so- são à subtração da miséria – notada-
mente a posteriori. mente psicológica – ocorrerão exclu-
Nessa continuidade, a realidade ma- sivamente no engodo de gratificações

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substitutivas. Então que, na moderni- (FREUD, 1930/2010, p.29) desembru-


dade tardia, o deslocamento pulsional lharão toda vigilância e rol de defesas
está hipostasiado nas redes, telas e apli- com o risco de exclusão do sujeito e
cativos que desempenham essa falsa re- de seu lugar de formulação de queixas
presentação do sujeito, cada vez mais, emergentes. Essas capas de proteção
entregue singularmente na esperança anulam, por si só, como mencionado
de reconhecimento via clickbait. Nesse anteriormente, a possibilidade de liber-
ensejo, no confinamento das platafor- dade ao dilatar a distopia da realidade
mas de aplicativos e paulatinamente quando postas em marcha de execução.
ainda mais suprimido socialmente, a Podemos notificar isso, detendo-nos
confiança nesses serviços é mais do que à questão da prepotência da natureza,
obrigatória, é o alento em razão dos a qual refletiu ao primitivo a condição
lockdowns, dos temores sobre o corpo da criança que teme o desconhecido
do outro entendido como patógeno, dos e recorre ao pai simbólico, entidade
perigos externos. mítica do autoritário e cruel personi-
Por esse enredo, as camufla- ficado, então, como ameaçador. Esse
gens simbólicas alertadas por Freud sentimento infantilista de desproteção
(1926/2010), são espelhadas como sa- do mundo externo serviu, todavia, de
tisfações parciais que zombam de toda matéria prima a um maior controle
a defesa proveniente das neuroses. Em da natureza na abstração de suas for-
outras palavras, resultará na impossi- mas, usos, criação, conteúdos, extração
bilidade de dar corpo a essa constitui- de recursos, funcionamento e antevi-
ção subjetiva no interior das contradi- são de seus eventos. Um longo tra-
ções inseparáveis da concretude lógica jeto, esmiuçado na Dialética do Escla-
da materialidade, nesse momento, anti- recimento (ADORNO, HORKHEIMER,
democrática nas fiandeiras de sistemas 1985), numa especular demonstração
tecnotrônicos e tecnocráticos. As ten- que encaminha da mitologia à metafí-
tativas de tamponar as ausências e as sica e ao positivismo do rigor uniforme
causas de mal-estar – distrações multi- da ciência em sua orientação para fins,
formes de autorreferência narcísicas - matematizável em seu espaço de men-
não passarão da afirmação de um prin- suração, cálculo e equivalência até os
cípio de desamparo inarticulado às pos- confins das disruptivas machine lear-
sibilidades de entrar na cena social. As ning analytics do novo mundo.
fontes nítidas de sofrimento como “a Nesse raciocínio, é permitido afirmar
prepotência da natureza, a fragilidade que, possuir a sensação de segurança é
de nosso corpo e a insuficiência das nor- a hipoteca de um maior controle de e
mas que regulam os vínculos humanos sobre nós mesmos enquanto um pacto
na família, no Estado e na sociedade” para a dispersão de sentimentos terro-

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ríficos. Afinal, em contraponto, na mi- sobre o domínio da natureza e a criação


tigação tensional do primitivo, foram dos sistemas computacionais inteligen-
milênios para que o pôr do sol visto tes. O modelo dos algoritmos ratifica
com pavor e como castigo dos deuses, justamente o proponente mecânico ma-
pudesse ser convertido na dimensão temático de obter esclarecimento sobre
pulsional do particular, ou seja, cana- o desconhecido, logo, o domínio sobre
lizado pela pulsão escópica como apre- a natureza. A mímesis seria de acordo
ciação estética, atualmente permutada com Adorno e Horkheimer (1985) o iní-
pelo grito ótico das câmeras dos dispo- cio civilizatório a partir dos usos da
sitivos. racionalidade. A tentativa de amai-
Tal formalização do controle abso- nar a ameaça assustadora da natureza
luto se junta novamente à interpreta- foi concretizada com a estruturação de
ção crítica imanente posta por Adorno instrumental via razão esclarecida. So-
e Horkheimer (1985), na relação diale- mente assim foi possível a realização da
tizada entre, concomitantemente, ser o ação de manipulação da natureza, isto
senhor por controlar a natureza e es- é, imitando-a.
cravo da própria natureza por também Portanto, o mimetismo é o conjunto
sê-la. Nesse liame filosófico, a solidifi- organizado de sobrevivência e resposta
cação para o alvorecer de uma civiliza- sobre o funcionamento do objeto do-
ção não é sem desamparo, desproteção minado. Num outro ponto de conhe-
e perdas. Ponto relevante para destacar cimento para esse diálogo, a definição
o ensaio de uma nova forma de gover- dos sistemas inteligentes dos algorit-
nança já iniciada no modelo de inser- mos enquanto o modelo representativo
ção para uso dos recursos tecnológicos, de cópia do universo biológico signi-
tal qual, fazer parte significa ser catalo- fica a parte da ciência “que busca, atra-
gado dentro dos sistemas velozes de re- vés de técnicas inspiradas na Natureza,
des interligadas, o que não é possível se- o desenvolvimento de sistemas inteli-
não pela concessão dos dados, preferên- gentes que imitam aspectos do compor-
cias, registros e informações pessoais. tamento humano, tais como: aprendi-
Tanto quanto Ulisses encantado preso zado, percepção, raciocínio, evolução e
ao mastro, o lugar do sujeito está imó- adaptação” (PACHECO, 1999, p.1). Se-
vel na captura em redes, proclamando gundo Pacheco (1999), são técnicas ma-
que o progresso tecnocientífico merece temáticas com fonte de inspiração nas
dúvidas quando sinaliza controle e do- estruturas funcionais do organismo, no
mínio absolutos sobre a humanidade e caso, o cérebro humano. Sendo assim,
seus afetos. as redes neurais computacionais tem
Nessa ótica, vale a pena trazer a re- seu modelo de realização a partir dos
lação entre o fundamento das asserções neurônios biológicos assim como os al-

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goritmos genéticos na evolução bioló- ções do mecanismo inconsciente ou das


gica darwiniana. emoções humanas já estão armazena-
A apresentação desses alcances nos das em termos teóricos e explicativos
situa na seleção natural e recombinação nas máquinas inteligentes.
genética do organismo mais apto por Se o sequenciamento finito de flu-
meio de algoritmos, os quais, em outro xogramas irá cartografar e antever as
limiar, de tanto acúmulo de informa- manifestações do inconsciente, não
ções sobre o comportamento humano, podemos ratificar, ao menos por en-
poderão acessar, em breve, os proces- quanto. No entanto, o que é acessível
sos do inconsciente. Nessa pauta, não é ponderar no detalhamento de Freud
demais conjecturar a lógica dominante (1930/2010), é que quanto mais con-
do algoritmo como a programação com- trole e regulação, mais o corpo tende
putacional metafórica substitutiva da a reagir contra a força de repressão às
instância psíquica do Supereu transfe- suas instâncias pulsionais. Pressão in-
rida aos servidores quânticos digitais. tensa da natureza, do social e da tec-
Se os algoritmos por meio de reconhe- nologia encaminha de modo efetivo às
cimento geral dos padrões identificam assimilações de Marcuse (1999) a res-
preferências e a partir disso disparam peito da mais-repressão. Testemunha-
sugestões, seria possível, tão logo, com mos, não à toa, a vingança da natureza
a extração dos dados comportamentais, com vírus, pragas, doenças, intempé-
identificar manifestações inconscientes, ries. A vingança do organismo sobre
vontades e tabus, proibições e desejos, o próprio corpo com pânicos, alergias,
preconceitos e imperativos, e então, in- doenças autoimunes, intolerância ali-
tervir para evitá-los ou transformá-los mentar. Nas redes tecnossociais, a in-
através da modelagem probabilística2 ? tegração ideológica às narrativas pola-
Assim, pensamentos, fantasias e sonhos rizadas por meio da censura de ideias e
poderiam ser criminalizados nesse fu- vigilância de termos, expressões e pala-
turo presente? Aliás, essas manifesta- vras. Dando, acima de tudo, o tom aos

2 No realce das constatações a respeito da automação e inteligência artificial, é importante insistir que profissão/carreira alguma
estará imune de ser substituída pelas máquinas. É a tendência, aliás. A respeito do controle e previsão dos desejos e pensamentos
do ser humano como apontado, podemos evidenciar ensaios de terapias com robôs via aplicativos. Por ora, parece um teste, um
passatempo, porém, uma ferramenta inicial para ensinar o algoritmo a respeito das emoções humanas, assim, generalizar e discrimi-
nar prontamente essas informações perante novas situações. A defesa para utilização desse modelo é extensa e está demarcada para
tão logo: rapidez na análise de micro expressões faciais; capacidade infinita de armazenar palavras do paciente; menor censura do
paciente por estar diante de um robô; maior precisão de diagnóstico e uma melhor promoção da saúde mental, pois um maior con-
tingente se beneficiaria com um fácil e dinâmico acesso sem sair de casa. Fundado por Alison Darcy, ex-psicóloga, agora tecnóloga,
o aplicativo denominado Woebot: Your Self-Care Expert, foi o vencedor do prêmio Google Play, em 2019, como o aplicativo de bem-
estar. Este aplicativo fora abastecido pelos conhecimentos das técnicas da Terapia Cognitivo-Comportamental (TCC). A este respeito
também é preciso enfatizar que as técnicas da Análise do Comportamento, de B.F. Skinner, estão, talvez, desde o seu nascedouro a
serviço de abastecer a inteligência artificial com as famosas máquinas de ensinar e com suas caixas de condicionamento operante.
Não por menos, os teóricos do Behaviorismo têm o imperativo de que psicólogos e professores aprendam programação e linguagem
computacional para maior controle dos experimentos.

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algoritmos de como “castrar”, gerenciar econômico e na abdicação dos desejos.


discussões e debates na internet. Em conformidade às asserções de Freud
Nos oferecimentos administrados (1930/2010), a composição das instân-
pela indústria cultural, observamos a cias do psiquismo – Isso, Eu, Supereu
economia psíquica liberada para distra- – tem sua formalização por intermédio
ções por meio de sensações extremas da ação característica do Supereu sobre
de choque radical. As práticas catár- o Eu. O Supereu ao desdobrar-se do Eu
ticas regressivas levadas ao limite do faz a introjeção das regras sendo o de-
grotesco – diversões sadomasoquistas, positário da consciência moral que an-
escarificações e rituais de suspensão, teriormente era externa. Sua atualiza-
drogadições – funcionam como possi- ção ocorre via internalização da própria
bilidades inerentes de tirar férias de si. renúncia pulsional, genericamente, fa-
Encarnar uma nova roupagem a fim de cultada na obstrução dos processos de
apaziguar os traços de identificação e desejos e na divisão do Eu com o objeto.
agressividade, tensionando-os tal como Sublinhemos, então, que o papel do
numa compulsão à repetição. Supereu é fazer o domínio (controle) da
A demonstração dessa realidade par- exigência pulsional (natureza). Ao en-
tilhada postula os destinos da econo- contro dessa máxima, a designação os-
mia pulsional para compensar e tornar tensiva do dedo em riste é a expressão
possível a ação de racionalidade – no da repressão civilizatória – prepotência
juízo ético e moral – por intermédio da descomunal – da atividade do Supereu
apropriação de leis. Em outro aspecto, em relação ao Eu, metáfora intrínseca
fornece aqui o processo de inferir como da dualidade amor/ódio. Diante da fi-
nossa consciência poderá ser determi- gura de autoridade, a criança dotada de
nada para desejos e metas através de co- seu corpo pequeno, frágil e sem dimen-
mandos de uma inteligência artificial. são das vibrações que saltitam em suas
Para percorrer esse território, é preciso terminações experimenta esse estado de
costurar pontos a respeito da segunda ambivalência. Isto provoca uma dis-
tópica estrutural freudiana sobre o psí- tensão psicológica com efeitos reativos
quico e seu funcionamento nas formas sobre o corpo ainda não compreendido
de controle. em sua totalidade orgânica, mas convo-
Tal complexo de representações pon- cada a dominar seus impulsos primevos
tua que o princípio regulador da injun- de ódio.
ção do controle da natureza convertida Sendo as relações a função constitu-
em autodomínio tem sua aproximação tiva e primeira do ser humano, o Eu
nas bases psicanalíticas. Mostra clara vem à luz enquanto resultante dessa so-
dessa afirmativa está na constituição cialização que somente se concretizará
do aparelho psíquico, no seu caráter nas identificações de traços da indivi-

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dualidade de outros. Portanto, o fazer de satisfazer em outros indiví-


laço é indissociável à construção da pró- duos. À tensão entre o rigoroso
pria individualização: o alvorecer de Super-eu e o Eu a ele subme-
um Eu que ainda não existe, pois está tido chamamos consciência de
espicaçado. Esse mecanismo altamente culpa; ela se manifesta como
complexo e difuso não ocorre senão via necessidade de punição. A ci-
angústia que, para Freud (1930/2010), vilização controla então o pe-
irá produzir a repressão, resultante di- rigoso prazer em agredir que
reto e fundamental do processo de base tem o indivíduo, ao enfraquecê-
civilizatório. lo, desarmá-lo e fazer com que
Acontece que, nesse móbile estrutu- seja vigiado por uma instância
ral do psiquismo, a repressão é a forma no seu interior, como por uma
do desconhecido que atenta na neurose guarnição numa cidade con-
de angústia naquilo que presentifica quistada (FREUD, 2010, p.59).
a vivência de medo interno enquanto
preparativo para enfrentar um perigo
real externo (FREUD, 1930/2010). Isso As providências das instâncias psí-
significa, em alguma medida que, os quicas ao regular e administrar as ten-
fantasmas do desejo não têm acesso li- sões encontradas entre o nascedouro da
vre para circular em período de civili- consciência e, concomitantemente, do
zação. As pulsões devem ser reprimi- processo civilizatório, de acordo com
das, sendo a civilização a encarregada- Lacan (1964/2008), farão as bordas da
mestra em fazer com que parte disso ação desejante subordinada ao proi-
volte ao indivíduo ao interiorizar a pró- bido, ao desejo do Outro, tal como na
pria agressão via interdito, como deta- constituição do bebê cujo desejo inter-
lhado nas palavras do autor: ditado é articulado à figura da mãe.
Ao encontro dessa posição de desejo,
cabe posicionar que a estrutura pulsio-
A agressividade é introjetada, nal não identifica a vida social ao tra-
internalizada, mas é propria- balhar em instinto de destruição contra
mente mandada de volta para ela mesma. Contradições, dualidades e
o lugar de onde veio, ou seja, angústia de castração são circuitos neu-
é dirigida contra o próprio Eu. róticos fantasmáticos enquanto parte
Lá é acolhida por uma parte do do conjunto multifacetado dos laços li-
Eu que se contrapõe ao resto bidinais das relações afetivo-amorosas.
como Super-eu, e que, como No organograma freudiano essa
“consciência”, dispõe-se a exer- constituição respondia, no filtro do seu
cer contra o Eu a mesma severa negativo, à família nuclear burguesa
agressividade que o Eu gostaria nos protótipos da tragédia do mito edi-

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piano, a célula base da civilização. Sem incidências na dimensão do campo pul-


família, logo, sem neurose e dificil- sional. As transformações objetivadas
mente existirá a psicanálise. A culpa no bojo das sociedades desembocavam
pelos desejos proibidos, remorso pelo nas passagens aceleradas da era indus-
assassinato simbólico são aliviados so- trial de elevada produção para a pós-
mente via castigo, em sua forma de re- industrial com agressividade maior na
denção pelas raias de rituais acústicos, regra ao consumo e à acumulação de
de extroversão sacrificial, dos mime- capital. Compondo, dessa maneira, um
tismos das tragédias e das oferendas. dilema entre os juízos éticos da ascese e
Nessa toada, Freud ao esmiuçar o nas- do gozar sem precedentes. Sabe-se que
cimento civilizatório, as teias neuróti- o início da década de 1920 foi reconhe-
cas, os traumas, as proibições e os sa- cidamente revigorante aos EUA com o
crifícios, faz a inversão dos ideais dos boom das bolsas de valores, já que no ex-
cânones platônicos: as coisas sempre tramuro jazia um mundo tentando re-
começam com a experiência da dor, e nascer e se reinventar, particularmente
não do prazer. na Europa, em virtude da devastação da
Primeira Guerra Mundial.
Contudo, a capitalização tresloucada
das ações conjecturadas de mercado ge-
Colapso econômico, tecnociência e rou a expansão da bolha de crédito que,
mal-estar por sua vez, implodiu o sistema finan-
ceiro estadunidense. A superprodução
Pode ser consenso ratificar que os des- em ritmo freneticamente acelerado in-
dobramentos da confecção textual de compatível com as possibilidades obje-
O Mal-Estar na Civilização (FREUD, tivas de absorção da população redun-
1930/2010), efetivou um marco funda- dou em excedentes de produtos sem
mental para a radicalização do pensa- destinatários. O grande colapso econô-
mento. As análises freudianas no fim mico, o crash de 1929, descortinava um
dos anos 20 do século XX, refletiram capital financeiro sem lastro de riqueza,
a representação do interior estrutural especulativo flexível em sua totalidade.
das insuficiências e impossibilidades A recuperação, a posteriori, em 1933,
da vida concreta de existência em con- do cenário americano, via New Deal, fez
fluência com a realidade psíquica. No impulsionar a capacidade infraestrutu-
entanto, o fato é que, os escritos sonori- ral com o intervencionismo e amplitude
zados enquanto pessimismo desembru- do poder estatal sobre o aporte econô-
lhava, como pedra de toque, a plasti- mico.
cidade vertiginosa, instável e asfixiante Mesmo assim, com o caos social e os
das relações concentradas na esfera do conflitos ideológicos partidários inten-
político, econômico e social com fortes

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sificados especialmente em locais afe- ses antes da queda da bolsa de valores


tados pela Primeira Guerra, abriram-se de Nova York. Nessa época abrangida,
flancos oportunos à ascensão de regi- é importante lembrar, Freud ficou por
mes totalitários, particularmente, do dois anos sem conduzir sua pena por
nazifascismo. Em consequência dessa problemas de saúde. Não obstante isso,
política de Estado, somada ao progresso o fluxo de suas produções culminou,
e ao refino da racionalização instru- por assim dizer, em sua força motriz
mental materializada, aos auspícios da advinda justamente de seu estado de-
forte industrialização e a grande per- bilitado. A experiência de finitude foi
centagem persistente de desemprego e em razão do avanço do câncer na man-
fome, inaugurava-se a antessala para a díbula esquerda que o acompanhava
Segunda Guerra Mundial. desde 1923, tendo, em 1927, piorado.
Podemos enfatizar que a sucessão de Revisitar esses acontecimentos con-
tais episódios nesses interlúdios, por tribui para, de fato, afirmar não só a
igualmente serem contemporâneos às apropriação nominal pelas ciências hu-
descobertas psicanalíticas, emoldura- manas das consequências incididas nas
ram para Freud reflexões impactantes subjetividades. Mas, sobretudo a exis-
e reformulações da realização de sua tência do ciclo de idas e vindas, de
prática de trabalho. Em Além do prin- queda e ascensão entre as nações a par-
cípio do prazer (1920/2010), há o deta- tir dos lapsos resultantes dos embota-
lhamento de papéis importantes como mentos das crises vividas, superadas e
a elaboração do sonho e do trauma condicionadas para a portabilidade de
em soldados de guerra, a dinâmica outras ainda maiores. Os marcos ponte-
da compulsão à repetição (Wiederho- cializadores do mal-estar no século XX:
lungszwang), a fratura da narrativa, e as crises gêmeas do mercado financeiro,
a constatação dessas experiências re- de 1929, seguida da crise bancária, em
primidas e revividas no ensejo analí- 1930, inclusive os hiatos e períodos en-
tico, fundamentalmente, caracterizado treguerras, impeliram reações diversas
no escopo do manejo transferencial. na economia psíquica.
Além dessas investigações estrutu- Os legados tecnocráticos e seus efei-
radas, o psicanalista se debruçou so- tos de irracionalidade tecnicista permi-
bre a finalidade das relações humanas tiram descobertas e construções teóri-
como, por exemplo, as questões do de- cas sobre as travessias do processo ci-
samparo e da desilusão. Temas caros vilizatório e psicológico. Se pensarmos
desfiados em O Futuro de uma Ilusão no contexto do caos financeiro do libe-
(1927/2014), e, sobejamente, em O Mal ralismo econômico, de 1929, recordare-
Estar na Civilização, nesse intento, fina- mos que, sobressaltavam reativamente
lizado em julho de 1929, poucos me- o desespero e o pavor dos conglomera-

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dos empresariais, de acionistas e da po- da economia. De fato, foi no sé-


pulação quase em seu total. Os destinos culo XX que esse termo tornou-
dos investimentos pulsionais da libido, se, principalmente, um dos
neste momento histórico, radiaram na significantes- mestres de um
destrutividade da manutenção da vida sistema econômico cuja meta
e de suas relações: esgotamento, falên- é a criação e a manutenção de
cias, sensação eminente do início da uma mais-valia, e cujas vari-
morte e suicídios. Em meio a esse ho- ações se conotam, na Bolsa,
rizonte periclitante ficaram ainda mais numa escala que vai da alta à
explícitas as raízes sacras do mercado baixa. Em suma, desde logo,
econômico de exortações configurado é a própria estrutura do mer-
como um ente metafísico, temperamen- cado capitalista que é ciclotí-
tal, bipolar, abstrato e imprevisível em mica (ANDRE, 1995, p.196).
suas deliberações de negócios, tendên-
cias e estatísticas. Tanto quanto um
agente viral infeccioso com suas osci- Do glossário do economês à radicali-
lações de altas e baixas no número de dade de novos constructos de manuais
vítimas. estatísticos da psiquiatria, depreende-
À vista disso, é possível identificar mos não só o câmbio entre seus códi-
um empréstimo peculiar entre a lin- gos, mas a volatilidade dos estados psí-
guagem da economia e da psiquiatria. quicos abertamente vulneráveis às ar-
Os significantes deslizados a partir do ritmias dos trader de mercado de ações.
encontro entre os fluxos econômicos e Por outro lado, se a condição psicoló-
suas consequências instáveis que se as- gica se apresentava instável, movediça,
sociaram às determinações de angústia sem garantias, era preciso, então, es-
e mal-estar, conforme descreve André tabelecer conexão de sentido entre o
(1995), revelaram uma categoria inte- ato de consumir e o alívio do mal estar.
ressante a respeito da palavra “depres- Logo, a extinção do antigo formato de
são”. O termo somente adentrou no seio produção da coisa pela coisa, ipso facto,
da significação da linguagem psiquiá- durável e estática, estava pavimentada.
trica no século XX como proponente Modelo este mais dinâmico, plástico,
subsumido exatamente das dilacera- surpreendente e imprevisível em suas
ções econômicas, nas palavras do autor: denominações das produções do objeto
enquanto um Ser para um sujeito obje-
tificado.
A "depressão" só entrou na Abria-se espaço assim para o que La-
linguagem da psiquiatria por can (1968-69/2008), denomina de mer-
efeito de um deslizamento que cado de gozo encampado como efeito
se produziu a partir do campo de discurso em renúncia ao gozo, o

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que, topologicamente estabelece a rela- em larga medida decretada a necessi-


ção direta com a função mais-de-gozar, dade de quebrar a produção de utensí-
termo cunhado por Lacan em alusão às lios e desenvolver desejos revestidos em
proposições econômicas de Karl Marx. satisfações parciais alocadas nos pro-
Para Marx, assim, a mais-valia estará dutos, cada vez mais, exóticos estetica-
sempre atrelada ao mercado e nas for- mente. A coisa estaria refinada com a
mas de exploração do trabalho vendido importância do design para promover
pelo trabalhador em troca do salário. pelo olhar - pulsão escópica - a atração
Em Lacan (1968-69/2008), o mais-de- e o convite ao consumo. Sob outra pers-
gozar estará intimamente ligado à lin- pectiva, a evolução dos produtos e do
guagem. Em linhas mais gerais, o su- consumo frenético rubricou preconcei-
jeito se obriga a consumir enquanto um tos, crimes, ódios, adoecimentos e in-
modo de gozo para impedir a percepção versões de valores em diferentes temá-
de suas ausências e lacunas impingidas ticas. Consequências de uma fórmula
pela norma social. basal de embaralhar o que é da ordem
O próprio ato determinado ao con- da necessidade com o sofisma do apete-
sumo se torna uma normativa social cimento ad aeternum. Desse modo, um
enquanto um imperativo categórico novo meio de subsidiar as alianças mer-
imposto pelo Supereu. Na verdade, cadológicas surgia: despertar o desejo
compra-se a falta de gozo, já que é para sustentá-lo por meio do endivida-
impossível saciar a pulsão. O prisma mento no percurso temporal do crédito.
dos pacientes neuróticos é pagar a mais Não por menos, a grande artimanha do
para não ter; comprar para não levar. mercado de gozo – mestre da retórica –
Comumente repetem em ato falho o foi possibilitar além da invenção à ideia
esquecimento das contas para atrasá- de felicidade, a arte de mudar de figura:
las, depois paga-se com juros e cor- é a sua mais valorosa ação de mercado
reção gerando dívidas simbólicas im- e a mais instável, imaterial.
possíveis de serem sanadas. De outro A mercadoria felicidade, sabemos,
modo, procrastina-se em rituais para sofre programação constante, é plás-
fechar faltas e excede-se na velocidade tica, mutativa, torna-se obsoleta e ine-
da pressa gerando “multas”. Este pro- xistente tanto quanto as convicções po-
cesso de endividamento repetitivo é líticas, religiosas e econômicas, sofrem
pertencente à mesma lógica de consu- abalos críticos persistentes. Pode ser
mir em ato contínuo, igualmente, ao transferida a quaisquer apetrechos, es-
movimento sem fim de Sísifo. tilos, moda e temporalidade. Nesta
Enquanto resultante singular dessa passagem para a sociedade do descarte
agremiação entre mercado econômico efetivaram-se novos modos de repre-
do capital e o destino pulsinal, estava sentação que permutaram a sociedade

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da produção à de consumo. A frui- tas científicas e pela autorização à bar-


ção libidinal, nesse momento, é des- bárie. Os artefatos advindos da Pri-
locada aos adereços de fetiche numa meira Guerra e os gatilhos da Segunda
(in)satisfação sem limites chancelada proporcionaram a reprodução de força
na obsolescência programada. A neces- tanto tecnológica quanto supraideoló-
sidade passou a ser do mercado, agora gica nos mecanismos de medo, domi-
mais sofisticado e sedutor, e o desejo, nação da natureza humana e das coi-
itinerante e líquido, do sujeito reifi- sas. Realidade mensurada disso é a
cado. Sobre essa trama complexificada própria internet que inicialmente foi
podemos verificar: um recurso de defesa, proteção, e segu-
rança militar na guerra e sua evolução
Sem dúvida a ciência forneceu está presente na ampliação das redes
aí novos meios que consegui- de servidores quânticos via uma exímia
ram subverter nossa realidade. engrenagem de inteligências de moni-
O destino dos sujeitos e o es- toramento e controle. Particularmente
tado dos laços sociais se encon- essa sistêmica se reforça com a “prisão”
tram mudados: tal como o fogo digital da internet das coisas (IoT) pela
que convoca “a urinação primi- qual os objetos podem executar coman-
tiva” em que se exalta o júbilo dos e gerenciar ações.
fálico, os novos produtos pos- Isso implica ratificar que, as tipifi-
tos no mercado, mais utilitá- cações de desencantamento histórico
rios do que ficções de Bentham, das produções da racionalização tec-
são novas “matérias para fazer nocientífica não são poucas se atenta-
sujeitos”, parceiros prontos - a das sob um ângulo universal de suas
- gozar, válidos para qualquer particularidades e riscos engendrados
um, como se diz, e dos quais se desde o paleolítico à captura do có-
remaneja o conjunto dos laços digo genético. Constatações disso em
sociais (SOLER, 1998, p.260). termos de aprimoramento instrumen-
tal não faltam: sílex, flecha, fuzil de
batalha, bomba atômica, armas autôno-
Nesta esteira, avanços e regressões mas letais, armas biológicas, promoção
são notórios e fazem travessias com seus do binômio sujeito-tecnologia. Temos,
fantasmas de mãos dadas. Antes de nessa decomposição, uma escalada de
tudo, a grosso modo, isso replica con- descobrimento no decurso civilizató-
siderarmos o constante movimento po- rio e de sobrevida enquanto espécie.
tencial e substancial das modificações Ao mesmo tempo, em contrapartida,
implementadas às condições sociais de apresentam-se duas circunstâncias que
vida pela universalização das práticas merecem atenção: a destrutividade do
e costumes dos alcances das ferramen-

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laço social pela via antiética e o hipe- bal com a indústria bélica para investi-
rinvestimento libidinal na pulsão de mento militar, reiteramos, é impressi-
morte. onante. Consoante aos dados do Insti-
Neste propósito, a capacidade deter- tuto de Pesquisa sobre a Paz Internaci-
minativa de organizar e transformar a onal de Estocolmo (SIPRI), em 2018 o
totalidade das relações e da natureza valor destinado às forças armamentista
nos usos da agressão, dominação e vi- foi da ordem de 1,8 trilhões de dóla-
olência internalizada tem suas balizas res. Cifras lideradas por EUA, $ 649
sedimentadas no vir a ser social. Essa bilhões, e China, $ 250 bilhões, os dois
construção, aliás, não é novidade. Es- maiores capitalizadores do setor, res-
tudos antropológicos largamente dão pectivamente.
nota disso; Totem e Tabu (FREUD, 1912- A respeito dessa compreensão, é per-
1914/2012), faz um extenso percurso tinente nos concentrar, brevemente,
sobre a gênese dessa estrutura narra- nas tratativas dialogadas entre Freud
tiva civilizatória tanto quanto as esca- e Albert Einstein do Por que a guerra
vações filosóficas da Dialética do Escla- (1932/2010), quando o psicanalista
recimento (Adorno, Horkheimer, 1985), procura responder as demandas do fí-
e, A ideia de história natural (Adorno, sico apontando as relações de impasse
1932/1991), trabalhos contundentes e na forma de solucionar conflitos de in-
centralizados na reinterpretação dile- teresse via violência imediata. Argu-
tante do ocidente. Ensaios frankfurti- menta Freud que, de início a força bruta
anos que deslindam o telos histórico e era a principal via régia de enfrenta-
social enquanto um continuum de do- mentos. De fato, complementamos por
minação na civilização ao postular que, esse ínterim que, à medida que a capa-
história e natureza não são independen- cidade de integralização da abstração
tes e nem contraditórias entre si, como da subsunção no universal-particular
destacado ao longo dessa discussão. se estruturou – concreto pensado –, en-
Inclusive acerca desse quesito, pode- tão, os modos de objetivar a violência
mos sublinhar a regulação da moção urgiram para outros efeitos. A partir do
pulsional e de seus destinos na coli- desenvolvimento do pensamento lógico
são entre a alienação e a presentifica- em conjunto com habilidades humanas,
ção no aspecto do valor do tempo. Isto a determinação da inteligência, criação
significa evidenciar a utilização de re- e manipulação de leis e decretos, diri-
cursos/riquezas na construção da pro- giu as capacidades subjetivas na apre-
messa de uma morte em vida: passado, sentação do mecanismo técnico instru-
presente, futuro e principalmente a po- mental, para acréscimo, utilizamos as
lítica estão calcados na pulsão de morte. palavras de Freud:
O aumento significativo do ônus glo-

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Logo a força muscular é refor- nidade direcionados demasiadamente


çada ou substituída pelo uso de à eliminação de ideias e de circulação
instrumentos; vence quem pos- de determinadas pessoas. No desejo si-
sui as melhores armas ou as em- nistro de defenestração de grupos mi-
prega mais habilmente. Com a noritários cujas particularidades sejam
introdução de armas, a supe- diferentes. A tônica promovida na es-
rioridade intelectual começa a sência desse modelo de política, vulgo
tomar o lugar da pura força fí- despotismo, traz a ordem cínica chan-
sica; o propósito da luta perma- celada no percurso do avanço tecnocrá-
nece o mesmo: uma das partes, tico.
graças aos danos que sofre ou Nestes termos, constatamos concei-
à paralisação de suas forças, é tualmente as armadilhas desses este-
obrigada a abandonar sua rei- reótipos logrados nas ações de poder.
vindicação ou oposição. Isso é Elementos intrínsecos à constituição de
alcançado de modo mais com- governos autoritários em sua forma de
pleto se a violência elimina du- regular o social e o individual com ig-
radouramente o adversário, ou nominiosas consequências. É relevante
seja, mata-o. Há duas vanta- que elenquemos, nesse cenário, tais re-
gens nisso: o inimigo não pode sultâncias. No tecido do social, a visão
retomar a hostilidade e o des- pseudoconcreta e simpatias por irraci-
tino que sofreu desestimula ou- onalismos. Nos efeitos condicionados
tros de seguirem seu exemplo ao sujeito, temos a transformação do
(p.239). individual como representante do ge-
ral, a substituição de conceitos e for-
mas por clichês prontos e a subtração
No Brasil, um paralelo legítimo de do pensamento dialético. Ademais, for-
produção de violência imediata pode matam essa composição, a concentração
ser verificado na campanha de palan- de manifestações neuróticas, tais como:
que eleiçoeiro em prol de armamentos. receios em assumir erros, medos e frus-
Na qual, houve o mote da promessa em trações, ressentimentos, antiintelectu-
ampliar o porte e posse de armas de alismo e extroversão de ódio ao outro
fogo alterando o estatuto do desarma- semelhante.
mento. Mais do que simplesmente a Nessa proximidade, a teorização de
promessa de entregar um instrumento Lacan em Agressividade em Psicanálise
fálico que venha a substituir uma au- (1948/1998), dirige contribuições a esse
sência do sujeito em sua organização respeito. A agressividade, conforme La-
genital infantil, esse fenômeno indica can (1948/1998) é o estatuto da estag-
outra situação: a canalização de ener- nação formal do Eu que, sedento por
gias em fetiches ou feitiços da moder-

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imunização para se defender demasia- nica junto da eficiência não se pode as-
damente de alteridades, executa o des- sumir as debilidades ou fraquezas. A
conhecimento de si para reconhecer so- ideia de reinvenção ou resiliência dado
mente a si como referência. Um Eu fra- o sistema de conexão atual em relação
gilizado e absolutamente violento cuja à crise sistêmica global da pandemia,
resposta atende a critérios próprios do reforçam o ajuste generalizado forçado.
narcisismo. Tanto maior será a agressi- Não por menos, nossos traços sintomá-
vidade, quanto maior for a semelhança. ticos se intensificam nos usos que faze-
Espetáculos de investimentos narcísi- mos da tecnologia. Quanto maior o pro-
cos tão em voga na cultura do cance- gresso tecnológico e científico, maior a
lamento, no isolamento do outro e nos regressão ética. O fato considerado até
bloqueios virtuais via linguagem icô- aqui, é que parcelas dos grandes alcan-
nica das redes. ces de progresso da civilização foram
Assim, incidimos sobre o paradoxo incrementadas após fatídicos eventos
estrutural da tecnociência que des- críticos, por exemplo, a Terceira Revo-
liza entre controle, exclusão e conheci- lução Industrial ou era da informática
mento. Essa marca constitutiva e para- foi inaugurada após a Segunda Guerra
digmática da tecnologia e ciência forta- Mundial. Desse modo, discutiremos
lece uma violência progressivamente si- adiante a aceleração da Quarta Revo-
lenciada, qual seja, no mesmo momento lução Industrial a partir dos desdobra-
em que se avança para civilizar/habitar mentos da crise do coronavírus.
outros planetas, como Marte, exclui-se
da sensibilidade como que num vér-
tice peremptório de frieza, o continente
africano do nosso planeta. Tudo o que Ciberpandemia, conexões e vírus de
remeta a nossa origem tem que ser eli- mal-estar
minada e dar lugar à condição de seme-
lhança e poder da imago do mito divino A passagem simbólica do século XX
protetor. Vamos criar árvores, faz surgir para o XXI ocorreu de maneira capital
rios, cachoeiras e florestas. Transformar depois de nove meses, em 11/09/2001,
a natureza, controlá-la e eliminá-la de com a queda do maior centro financeiro
tudo o que possa lembrar o seu nasci- do mundo, as torres gêmeas. Marcando,
mento, sua origem e proximidade co- portanto, a morte do século XX e o nas-
nosco. cimento do terceiro milênio. Era como
Nesse sistema de programação téc- se os pilares totêmicos tão sólidos que
sustentavam as bases econômicas e os

3 Schwab (2016), em sua obra A quarta revolução industrial cita o estrategista de mídia Tom Goodwin quando este argumenta a
fluidez e liquidez subjacente dos ativos sem especificamente possuir uma materialidade ou um lastro, evidenciando uma descentra-

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paradigmas dos últimos 50 anos tives- cas das arenas do império romano para
sem colapsado e feito a transferência de decidir quem viveria ou morreria após
seus dados à computação na nuvem3 . o espetáculo de sangue.
Curiosamente, após esse acontecimento Essas recapitulações ficam ainda
trágico, as redes sociais que existiam de mais atualizadas quando as aproxima-
forma tímida em seus ensaios, aumen- mos de contextos críticos, que precipi-
taram significativamente. Começaram taram soluções imediatas, como o pro-
a se solidificar, ao passo que, novas leis vocado pela COVID-19, que gerou im-
antiterrorismo insurgiram sob a égide pactos na constituição dinâmica da es-
de mais segurança, proteção, o que, po- trutura subjetiva e de todo o estado ob-
tencializou as camadas de vigilância, jetivo funcional da sociedade. Funda-
captura de informações de tudo e de mentalmente, disparou uma intensifi-
todos através de servidores quânticos cação ou infestação nos usos da tecno-
digitais. logia. A transformação é radical, célere,
No mesmo ano, popularizaram- contínua e sem volta, pois destacou até
se programas, existentes desde 1999, então a urgência na reestruturação dos
como os reality shows, big brothers do modos de mercados para evitar a fa-
olho espião, em analogia ao grande ir- lência principalmente dos pequenos e
mão totalitário, do romance orwelliano. médios empreendedores e asfixia em
Isolados do mundo real, confinados tal muitos postos de trabalho. Conforme a
como infectados em quarentena, sendo OIT (Organização Internacional do tra-
vigiados e rastreados 24h/7 dias da se- balho), as micros e pequenas empresas
mana. Era necessário atingir um score (MPES) representam 70% do trabalho e
social, aprovação do público consumi- emprego em 99 países analisados. No
dor, para não ser eliminado do mundo Brasil, retratam 54% do emprego for-
virtual. Tão atual, se refletirmos sobre mal.
a série distópica do Black Mirror (2011), Nesse sentido, existe uma urgência
e os créditos ou pontuações sociais em de readequação de boa parcela dos tra-
operação na China determinando con- balhos existentes, sobretudo na repre-
troles, perda de liberdades e direitos, sentação da América Latina, já que a
quase a materialização de zonas de se- tendência está pavimentada para mi-
paração: quando e quem pode comprar, gração ao virtual com a indicação de
vender, trabalhar, ir e vir. Tão remoto exponenciais investimentos em tecno-
se lembrarmos de que like e dislike já logia, genética, automação e inteligên-
eram programações do lazer prototípi- cia artificial. As direções ao amanhã

lização e ruptura dos modelos financeiros. “O Uber, a maior empresa de táxis do mundo, não possui sequer um veiculo. O Facebook,
o proprietário de mídia mais famoso do mundo, não cria nenhum conteúdo. Alibaba, o varejista mais valioso, não possui estoques. E
o Airbnb, o maior provedor de hospedagem do mundo, não possui sequer um imóvel” (p.32).

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apontam para um reset em tudo que co- de trabalho e de relacionamento po-


nhecemos até então: apagão não só fi- deriam funcionar à distância? Clara-
nanceiro, mas dos modos de vida, de re- mente, o que é vivido à distância não
lacionamento e sobrevivência. Do jeito resulta em ação direta, inclusive, es-
como se encadeiam tais ocorrências de trutura implacavelmente a acomodação
crise e programação de solução, parece dos sentidos no que é vivenciado no re-
claro que os endereçamentos conver- ferido estado remoto. No diálogo vir-
gem para uma larga mudança de para- tual das videoconferências, acredita-se
digmas e uma nova direção nas formas estar no contato direto, embora se esteja
de trabalho e alimentação com exclusão falando para uma tela, assim como em
ainda maior dos que não se adaptarem. uma mensagem de texto, acredita-se na
Isto significa que, haverá uma segre- presença do outro. Esse funcionamento
gação ainda maior no mercado de tra- é uma mentira manifesta que revela
balho a partir da implantação definitiva o engano da realidade então transfor-
da Quarta Revolução Industrial. Tudo mada em simulação, uma desconcreção
porque simplesmente não há tempo do real. O funcionamento social, nesse
para todos se reinventarem em meio a sentido, está moldado diariamente pela
um dilúvio de modificações, informa- regulação tecnológica a partir da cópia
ções desencontradas e caos sociopolí- virtual da realidade. Acima de tudo,
tico histórico avivado por uma desace- o fato é que, a maneira como isso ope-
leração econômica crítica mundial di- rou possibilitou substancialmente o ali-
fusa desde 2008. Remodelagem e subs- mento das máquinas para compreender
tituição das “velhas” indústrias, germi- como a sociedade se reorganizou nesse
nando a passagem da energia à com- estado de sítio artificial gerando dados,
bustão para a energia elétrica, a smart estatísticas e informações.
industry, que dirá sobremaneira dos no- No enlace dessa circunstância e di-
vos capítulos da reinicialização e repa- ante do alcance da superinteligência
ginação social, geopolítica e exponen- onipresente dos algoritmos, é bem pos-
cialmente econômico-financeira. Ora, sível a captação da particularidade de
assim como um vírus entra e devasta cada cidade, Estado ou país. Por meio
todo um sistema operacional com con- das técnicas de otimização, da aná-
trole do aparelho, danos, apagamento lise comparativa e gráficos minuciosos
de memória e dados; como solução é das estatísticas sobre o perfil das in-
premente que se instale um novo sis- dústrias, dos trabalhos e do compor-
tema com atualizações constantes para tamento de cada região, de cada cida-
que se recupere o direito de acessar o dão e do seu modo de ação, interação
interior do novo sistema operante. e regularidade. Basicamente a concre-
Como o mercado e inúmeras formas tização desse processo é em virtude da

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conexão tecnologia-cidade, que na ver- alguma representação matemá-


dade se justapõe como o ensaio de uma tica que se pareça com o objeto
smart city. Definitivamente houve uma que ela representa?) (VENTU-
extinção absoluta da fronteira entre o RINI, MUNK, JACOMY, 2018,
público e o privado. Prova disso é o p.18).
próprio computador que de privado e
íntimo, passou obrigatoriamente à es-
fera pública tanto quanto a residência Com ênfase nesta colocação, as re-
de cada um no modelo Home Office. des sociais são esferas públicas virtu-
Essa programação fora sistematica- ais, pois fabricam realidades sem que
mente aplicada por Google e o Facebook se possa ver, tocar ou rastrear, conco-
que, há algum tempo fazem esse serviço mitantemente em que se é vigiado, mo-
de desconectar do modo de vida real. A nitorado e reconhecido com localiza-
partir da simulação espacial de seus ló- ção exata, câmera, microfone e sensores
cus tentam nos convencer de que seus de movimento: para onde olha, quanto
ambientes de trabalho são uma grande tempo olha, o que lê, pelo o que se sente
diversão, cheia de cor, repleta de aven- desejante, tudo com os cálculos de in-
turas e liberdades semelhantes aos pito- tervalo entre um evento e outro. Assim
rescos parques infantis e aos feixes lu- como se pode pensar em dias próximos
minosos radiantes das telas. Ao mesmo em roteadores para evidenciar o mapa
tempo em que, numa gramática regres- de calor do morador, sistema usual no
siva e eufemística, busca como que num esporte, detectando os níveis de tempe-
sofisma, remeter à intimidade, ao rela- ratura corporal por meio da respiração,
xamento e ao aconchego do trabalhador os padrões de sono e se está com infec-
como se ele estivesse na própria casa. ção. Fora isso, poderá identificar por
onde anda, com quem anda, se está em
casa ou não, os níveis de estresse e o
Redes sociais não são feitas de porquê, os níveis de oposição, desafio
linhas na tela; redes digitais e rebeldia contra leis, governos robôs
não são feitas de pixels e ne- e sistemas. Se for detectada irregula-
nhuma das duas é feita de da- ridade, devidamente catalogada dentro
dos. Um coletivo de redes ator- de manuais de transtornos psiquiátri-
rede é feito de palavras e me- cos que serão forjados para isso, uma
mórias, de contratos e leis, de central poderia ser acionada e envia-
dinheiro e transações e, cada ria drones de vigilância para imediata-
vez mais, de cabos e protocolos. mente deter e ou incapacitar o sujeito.
Não é surpresa que os grafos Isso seria plausível num regime tecno-
não se assemelham a eles mes- crático, ao contrário do que se possa
mos (a propósito, você já viu supor, não se está tão longínquo dessa

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representação. nas áreas de saúde e segurança conver-


Na essência dessa possibilidade, gindo com o nascimento de um capi-
existe oficialmente a agenda da indús- talismo ético com responsabilidade so-
tria 4.0, conforme podemos constatar cial que preza pela redução de co2, de
pela Agência Brasileira de Desenvolvi- consumos naturais e de extração de re-
mento Industrial (ABDI), responsável cursos, consequentemente menos gas-
direta pelas ações de inteligência do go- tos com energia e grande sustentabili-
verno. Sendo inclusive a proponente dade. Haverá a aceleração de desen-
pela instauração do primeiro centro à volvimento de resolução de problemas
Quarta Revolução Industrial no Brasil. com alta eficácia sem a necessidade da
De maneira singela, de acordo com a mão humana, por exemplo, precaver
própria (ABDI), a revolução 4.0 tem o ações criminosas e violentas, diagnósti-
propósito de convergir diferentes mun- cos médicos e psicológicos precisos fei-
dos, lugares, conceitos e elementos, ou tos por máquinas cognitivas.
seja, fundir o universo digital, bioló- Evidentemente inferimos algumas
gico e físico. A ambição nesta nova promessas de felicidade da ciência e
ordem cultural global é instaurar ab- da tecnologia: melhorias no corpo hu-
solutamente sistemas integrados diver- mano sendo menos propenso a doen-
sos: internet das coisas, computação ças, mais resistente e duradouro, tendo
na nuvem, sistemas ciberfísicos pode- pernas, olhos e mãos biônicas com a
rosos, 3d manufatura aditiva, synbio, substituição dos órgãos vitais por na-
engenharia genética, biologia molecu- notecnologias. A interatividade a partir
lar com inteligência artificial, neurotec- de sistemas de DNA conectados à inte-
nologias. ligência artificial que ativariam coisas
Trata-se de uma transformação já ini- como conta, a smart home etc. Den-
ciada primeiramente nas grandes in- tro desse propósito, Schwab (2016), diz
dústrias capitais (monopólios e oligo- de um futuro, em nosso entendimento,
pólios), seguida pelos governos que que parece estar absolutamente pronto,
funcionam como plataformas para fa- apenas aguardando quem conseguirá
miliarizar e preparar a sociedade sobre chegar até ele:
essas novas leis, integração, roteiros e
punições em caso de descumprimento4 .
Quais benefícios esperar de tal incre- Os sistemas de computador li-
mento? Segundo Schwab (2016), tere- gados ao tecido cerebral pode-
mos benefícios econômicos e avanços riam permitir que um paciente

4 Conforme o Ministério da Justiça e Segurança pública do Governo Federal, para combater criminalidade, organizações crimino-
sas e corrupção, serão investidos 32 milhões pelos próximos quatro anos no projeto big data e inteligência artificial que integra quatro
ferramentas: Sinesp Big Data, o Sinesp Geo Inteligência, o Sinesp Tempo Real.

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paralisado conseguisse contro- tivo sugere a lógica de aplicar, inocular


lar um braço ou uma perna ro- artifícios tecnológicos futuramente no
bótica. A mesma tecnologia po- corpo, lembrando por esse preparativo
deria ser usada para controlar que hormônios já são tecnologias de
um piloto ou soldado biônico. transmutação. Estaríamos próximos do
Dispositivos neurais para tratar nascimento de ciborgues tal como sin-
a doença de Alzheimer podem tetiza Garis (2005), futurista que alerta
ser implantados para apagar ou sobre um mundo em que será quase in-
criar novas memórias. “Não é discernível um humano de um sistema
uma questão de ‘se’ os agen- computacional inteligente. Estarão fi-
tes não estatais usarão alguma nalmente o sujeito e a tecnologia unidos
forma de técnica ou tecnologia sendo uma superpotência inteligente.
neurocientífica, mas ‘quando’ e Garis (2005) considera provável um
‘qual’ irão utilizar”, diz James cenário de guerra entre os humanos ge-
Giordano, um neuroeticista do nuínos, ou seja, sem qualquer aplicação
Centro Médico da Universidade ou marca tecnológica no corpo e os hu-
de Georgetown, “o cérebro será manos adeptos da interface tecnologia-
o próximo campo de batalha” corpo, portadores de um organismo ci-
(p. 95). bernético. Haveria então uma divisão
entre terráqueos e ciborgues, com o fim
da humanidade, pois os humanos se-
Questionamos quais os riscos desse riam percebidos como vetores de doen-
desenvolvimento? O desemprego es- ças e riscos para o bem-estar ambiental
trutural em massa é ponto pacífico e e coletivo, logo, não teriam condições
inevitável, portanto, produção de mais de enfrentar os ciborgues, os quais se-
miséria, pobreza e dependência de uma riam a evolução do que há de melhor da
renda básica universal muito possivel- inteligência artificial.
mente serão elementos concretos. A Partindo dessas reflexões, a hipótese
quem se destinaria, então, o espetá- que se avizinha é a de que estariam apa-
culo desses sistemas ciberfísicos de alto rentemente todos livres, mas presos ao
investimento? Aos grupos privilegia- sistema sem possibilidades de mobili-
dos, o melhor que essa tecnologia po- zação, manifestação, resistências e de
derá oferecer. À grande população li- organização. Como se defender do co-
nha de base, a opressão e o controle. mando de nanorobôs autônomos com
Acrescido disso, desembrulha-se o que, acesso e poder de controle e de destrui-
por enquanto, pode ser entendido como ção de todo o organismo e de seu sis-
ameaças, isto é, a incisiva aproxima- tema nervoso? Um sistema inteligente
ção dos artefatos técnicos do corpo hu- que determinaria e obrigaria os indi-
mano. Não por acaso, o nome aplica-

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víduos a certas ações e objetivos po- comportamento. Como constatado nas


líticos, por exemplo? No contraponto narrativas orquestradas da história, as
nodal disso, se faz um paraplégico vol- ações políticas, as inovações tecnológi-
tar a andar, seu reverso existe em todas cas e científicas redimensionaram e re-
as suas variações, pode fazer paralisar. modelarão as subjetividades no sentido
A tecnologia no fracasso em resolver de viver e experienciar das sociedades.
os problemas, de maneira programada Visto que, ao que consta nessa forma-
cria automaticamente inúmeros outros. tação considerada, a tecnologia primei-
Quem responde por uma sistêmica de ramente modela para depois restringir
software chefiada por sequências de a criação, e por fim, substituir a ação
operações? A resposta nos determina humana. A sociedade parece estar nos
para a lógica instrumental desses pro- prolegômenos de um verdadeiro reduto
cessadores, sendo estes um giro quase de experimento sociotecnológico a res-
em falso que se fecha em si mesmo e peito da antecipação dos comportamen-
que deixa a civilização descontextuali- tos humanos com significativos efeitos
zada e sem rumo, à mercê de seus con- para uma tão já governança global ro-
dicionantes. Tal qual a metaforização bótica.
de uma entidade mítica que domina a Ademais, a concentração antiutópica
humanidade e seus passos paulatina- desse enredo, aponta diretamente à di-
mente com seu caráter invisível, onisci- nâmica constitutiva de uma nova forma
ente, onipresente e onipotente, quanto de se estabelecer a representação das
mais desenvolvido, mais impessoal e relações: o encontro flutuante e des-
dominador permanece. cartável dos negócios com as relações
Essas possibilidades de futuro e pre- humanas. Cintilados entre a ascensão,
sente recortadas, en passant, embora contração, recessão e depressão cujos
não sejam arquiconhecidas, são rele- efeitos agregados se amalgamaram à
vantes para insistirmos que não sejam instância psíquica no decorrer da pro-
obliteradas as promessas não cumpri- dução das preleções da ciência, da alta
das ao longo da história quando obser- tecnologia e do tempo social. Além do
vamos o avanço tecnocientífico. Haja que, o design psicológico resultante dos
vista, a ubiquidade e semelhança de efeitos de períodos entreguerras e pós-
seus traçados com ressonâncias idios- guerra, não por menos, de pestilências,
sincráticas na perspectiva psicológica. fome e de irrupções tecnológicas, é im-
Essas contradições fazem a justaposi- prescindível na captação das tendências
ção de problemas político-econômicos quando se trata de observar os paradig-
e psicossociais. Tais dilemas propiciam mas das sociedades na presença de cri-
o subsídio à reflexão sobre as descons- ses com largos efeitos colaterais em ní-
truções ou substituição de padrões de vel mundial. Diante de problemas caó-

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ticos quais soluções são apresentadas termédio de um supercálculo em re-


para o “bem coletivo” que não tenham verência ao positivismo, justamente, o
nas entrelinhas do contrato algo como: que até então fornece o maior controle
controle, sacrifícios e perda gradual de sobre a natureza e as espécies nela arti-
direitos? culadas. Para abrir janelas e navegar é
preciso de um pacto: entrega-se os da-
dos e ganha-se o direito de participar
de prêmios, obter informação, pesqui-
Considerações finais sar, ser visto e notado, ser interligado e
memorizado na rede.
No princípio era o “faça o que nós hu- Assim a inteligência artificial
manos determinaremos. Encontre e re- aprende quem são as pessoas, para que,
solva os problemas em tempo recorde, futuras maneiras de governar, instituir
sirva-nos com respostas rápidas. Traba- e capitalizar lucros sejam gerenciadas.
lhe e deixe-nos descansar e usufruir o Digitalmente, alimenta-se a máquina
tempo na contemplação criativa”. Pa- desde os primeiros buscadores, os usuá-
recia a descoberta definitiva da liber- rios/internautas sempre trabalharam
dade em civilização e o fim do medo gratuitamente para o aprendizado da
das forças descomunais da natureza. inteligência artificial. No momento, o
No entanto, esse intento inaugural de processo de refinamento das camadas
a tecnologia receber ensinamentos via de vigilância sobre as pessoas é preciso
comandos do que ela deve e pode fazer, com arsenais de programação e lingua-
parece invertido na relação problemá- gem computacional, como os cookies,
tica de sua utilização, máquinas autô- capazes de monitorá-las, reconhecê-las
nomas podem vir a reproduzir a função melhor para devolvê-las a elas mesmas
cognitiva tão bem que, similarmente, por meio de direcionamento fabricado
já carregam a memória dos temores ar- de notícias e de preferências modula-
caicos. A preocupação com esse desen- res.
volvimento não é ingênua, traz a aporia Mas diríamos que esse abastecimento
sobre seus percursos e fins, tanto que começou antes das próprias máquinas
inabilitou as três leis da robótica, de Asi- com seus buscadores existirem. Pois
mov, embora no imo de uma ficção5 . vejamos, toda a produção máxima de
Nesta assunção, é indiscutível que descobertas e experimentos, inclusive
toda a tecnologia é construída por in-

5 Em sua obra Eu, Robô, Asimov (1969) enumera as três leis da robótica:
1- Um robô não pode ferir um ser humano ou, por omissão, permitir que um ser humano sofra algum mal.
2-Um robô deve obedecer as ordens que lhe sejam dadas por seres humanos, exceto nos casos em que tais ordens contrariem a Pri-
meira Lei.
3-Um robô deve proteger sua própria existência, desde que tal proteção não entre em conflito com a Primeira e a Segunda Leis.

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da própria inteligência artificial, teve porque toda a realização encontra-se


que ser guardada para ser transferida alojada na fiação desses sistemas, por
com segurança e proteção, de modo isso, não se saberá como recomeçar se
gradativo aos servidores, conforme ob- tudo for eliminado num apertar do bo-
tivessem capacidades de aplicabilidade tão de reinicialização.
e armazenamento. Se hoje, as machine Para muitos é o apagamento da histó-
learning, são capazes de reunir muito ria, memória e da vida financeira caso
do que fora produzido nos últimos sé- esteja em poupança digital. O termo
culos e se beneficiar em calcular previ- técnico “armazenamento em nuvem” é
sões das ações humanas, o início desse revelador nesse trato, em uma “tem-
alcance veio em conformidade com a pestade” política ou em um ciberataque
evolução da forma- racionalização e da não se sabe para onde essa nuvem pode
linguagem, quando então, passaram a parar e fazer chover os dados pessoais
existir os códigos linguísticos, a escrita ou as senhas. Em especial, nuvem não
e fonética com seus registros e catálo- tem lugar e formas fixas, transitam, so-
gos mais rudimentares: pictogramas mem rapidamente, se algo está lá sig-
rupestres, hieróglifos, cuneiforme, es- nifica que não tem dono exatamente.
crita com ossos oraculares até os dígitos Uma guerra cibernética ou uma ciber-
de precisão computacionais. pandemia com vírus (malweres) mais
A representação épica da criatura do- rápidos e destruidores do que os vírus
minando o criador da condição faustíca, biológicos pode ser o começo de uma
demonstra-se como a chave perdida finalidade. Espionagem, chantagem
dessa criptografia: criamos a criatura ou extorsão, um ciberataque teria mais
que nos devora. Quanto mais recurso sentido quando o objetivo pode ser sim-
e tecnologia, menos habilidades e com- plesmente inviabilizar os usos da inter-
petências; mais memória no computa- net, inoperando computadores e conta-
dor, mais desmemorizados os humanos minando todo o aldeamento do sistema
ficam, fortificando os sintomas de au- de interconexão global. Interrompe-se
sência de controle do tempo e da cons- qualquer planejamento de as pessoas se
ciência. Com a progressão ininterrupta organizarem contra o sistema, já que as
dos softwares de inteligência e progra- informações e comunicações ficariam
mação, economia e capitais digitaliza- cessadas.
dos, quais diagnóstico esperar das rela- Notadamente é tangível apontar que
ções sociais ensinadas, moldadas e me- o irracionalismo tecnocientífico é um
diadas exclusivamente pelos programas sintoma já posto. Acompanhado dele,
computacionais? Em rigor, trata-se da temos as vésperas da situação de os al-
dependência tecnológica, sinônimo de goritmos funcionarem como seres on-
maior vulnerabilidade, principalmente tológicos determinando a desindividu-

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ação do sujeito não sendo mais possí- cinematográfica, de Stanley Kubrick,


vel entrar em cena como o produtor e quanto o romance, de Arthur Clarcke,
reprodutor das formas de ser e estar desnudam como que numa programa-
no mundo material e subjetivo, agora, ção preditiva, a nova pedra sensível e
sendo substituído por uma realidade enigmática que controlaria todos os pri-
tecnotrônica. Galho, bengala, próte- mitivos a partir dos seus toques desli-
ses, smart card, sensores de movimento, zantes. Ficaremos com esta prévia para
neuralink, transhumanismo, upload da reflexões futuras:
consciência. Não se sabe as extensões e
os limites do ponto final.
Dentro da mesma proximidade ló- As luzes giratórias começaram
gica de romances distópicos como Ad- a mesclar-se e a lançar feixes lu-
mirável Mundo Novo, de Aldous Hux- minosos que rodavam em torno
ley e 1984, de George Orwell, friccio- dos eixos ao atingirem o es-
namos o corpo como ativo econômico paço. Dividindo-se em pares,
de mercado, item de valor e material de os feixes de luz oscilavam ao
laboratório para testes e avanços tecno- se cruzarem, mudando lenta-
lógicos. E em dias mais próximos do mente os ângulos de interseção.
que se imagina, sendo propriedade de Desenhos geométricos fantásti-
companhias que controlarão individua- cos e evanescentes surgiam e
lidades, o direito de se relacionar, de se desapareciam enquanto as ma-
deslocar, de interagir, de comprar filhos lhas luminosas trançavam-se e
gerados em úteros artificiais. Grandes destrançavam-se. Os homens-
conglomerados que transformarão a ob- macaco, prisioneiros hipnotiza-
jetividade real através de ataques às co- dos do brilhante cristal, olha-
nexões sinápticas neuronais. Sendo que vam. Jamais poderiam adivi-
quem salva, aplica, soluciona e possibi- nhar que seus cérebros esta-
lita a existência de seguidores, é o pró- vam sendo estudados, seus cor-
prio sistema inteligente, haveria tempo pos postos à prova, suas re-
para arrependimento? Analogamente ações anotadas, seu potencial
ao pecado, a mordida no fruto proibido avaliado. Inicialmente, a tribo
da árvore do conhecimento do bem e do toda permanecera meio aga-
mal está bem representada em uma das chada, como que petrificada,
logomarcas mais famosas do mundo: a formando um quadro imóvel.
Apple. Dispositivo móvel de adoração Em seguida, o homem-macaco,
e êxtase tanto quanto o monólito to- que se encontrava mais pró-
têmico inscrito no filme “2001: uma ximo à placa, voltou subita-
odisseia no espaço”. Tanto a passagem mente a si. Não mudou de
posição, mas seu corpo per-

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deu aquela rigidez de transe nete controlada por fios invisí-


e moveu-se como uma mario- veis (CLARCKE, 1968, p. 9).

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Recebido: 30/09/2020
Aprovado: 13/01/2021
Publicado: 31/01/2021

136 Revista de Filosofia Moderna e Contemporânea, Brasília, v.8, n.3, dez. 2020, p. 105-136
ISSN: 2317-9570
DOI: https://doi.org/10.26512/rfmc.v8i3.34460

O Governo das Condutas e a Constituição da Subjetividade: Um


Estudo da Sociedade de Controle de Tipo Algorítmica†
[The Government of Conducts and the Constitution of Subjectivity: A Study of the
Society of Control of Algorithmic Type]

Sergio Fernando M. Corrêa* ; Salomón Abasto Macías**

Resumo: O presente artigo parte da transição discreta entre as sociedades disciplinares


para as sociedades de controle que, em tese, se realizada pela utilização das tecnologias
de vigilância e a produção das Big Datas. A partir dessa premissa o artigo busca na
relação de dados e algoritmos as condições de possibilidade de uma governamentalidade
algorítmica que transforma as subjetividades dos indivíduos em perfis gerados pelas
tecnologias, como forma de compreensão da sociedade. Com isso, o estudo tem por
objetivo compreender como a governamentalidade algorítmica influencia na construção
da realidade subjetiva e social através das tecnologias de comunicação e informação que
se alimentam com dados, que logo, através da Data Science, se torna em algo utilizável a
favor do controle das populações. Por fim, conclui-se que o futuro estará cada vez mais
entrosado com a sociedade de controle algorítmica, e que, precisamos ser críticos com os
eventos relacionados à tecnologia, à ciência e a sociedade.
Palavras-chave: Governamentalidade. Algoritmo. Big Data. Data Science. Controle.

Abstract: This article starts from the discreet transition between disciplinary societies
to control societies, what, in hypothesis, is realized out by the use of surveillance
technologies and the production of Big Datas. Based on this premise, the research
seeks in the relationship of data and algorithms the conditions for the possibility of
an algorithmic governmentality that transforms the subjectivities of individuals into
profiles generated by technologies, as a way of understanding society. With this, the
study aims to understand how algorithmic governmentality influences the construction
of subjective and social reality through communication and information technologies
that are fed with data, which soon, through Data Science, becomes something usable in
favor of population control. Finally, it is concluded that the future will be increasingly
intertwined with the algorithmic control society, and that, we need to be critical of events
related to technology, science and society.
Keywords: Governmentality. Algorithm. Big data. Data Science. Control.

† Este artigo é o resultado parcial do projeto de pesquisa O Governo dos Algoritmos: subjetividade, vigilância e tecnologia desenvolvido
com recursos do Edital DG nº 26/2019 do Instituto Federal Catarinense, Campus Videira - SC.
* Professor de Filosofia do Instituto Federal Catarinense (IFC) – Campus Videira. Doutor em Filosofia pela UNISINOS. E-mail:
fer.ser29@gmail.com. ORCID: https://orcid.org/0000-0001-6386-1359.
** Acadêmico da oitava fase do Bacharelado em Ciência da Computação do Instituto Federal Catarinense (IFC) e Bolsista
do projeto O Governo dos Algoritmos: subjetividade, vigilância e tecnologia. E-mail: computacaosalomon@gmail.com. ORCID:
https://orcid.org/0000-0001-8698-1011.

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ISSN: 2317-9570
SERGIO FERNANDO M. CORRÊA; SALOMÓN ABASTO MACÍAS

1. Introdução edade para outro não é um evento me-


cânico como se fôssemos dormir num
ambiente social disciplinar e acordásse-
Duas grandes autoridades da filoso- mos em uma sociedade de controle. Ao
fia do século XX nos deixaram uma contrário, diz Deleuze, há muita gente
herança filosófica fundamental para a empenhada em reformar e manter em
compreensão e análise da sociedade funcionamento pleno o modelo de soci-
disciplinar em crise e da sociedade edade que agoniza e assusta tanto con-
de controle nascente: são eles Michel servadores e defensores da família tra-
Foucault e Gilles Deleuze. Foucault dicional e da escola fordista quanto os
muito bem situou a sociedade discipli- defensores saudosos do capitalismo in-
nar como aquela em que o indivíduo dustrial. Por essa razão Deleuze faz um
se move de um lugar fechado, vigiado alerta aos que veem a história com os
e disciplinado a outro: da família para olhos do progresso, como se a sociedade
a escola e da escola para fábrica. Ób- de controle fosse o progresso da socie-
vio, se o indivíduo ficasse doente iria ao dade disciplinar: “Não se deve pergun-
hospital e se a caso burlasse as regras de tar qual é o regime mais duro, ou o mais
sociabilidade iria para a prisão. O que tolerável, pois é em cada um deles que
estas instituições disciplinares têm em se enfrentam as liberações e as sujei-
comum? O fato de buscarem organizar ções” (DELEUZE, 1992, p. 220).
muito bem o tempo e controlar o es- É nesse campo que situamos um tipo
paço com a finalidade de constituírem de governamentalidade que direciona
uma subjetividade docilizada: aquela a constituição de subjetividades e que
que maximiza a produção e obedece aos une governos e corporações privadas
comandos de um poder governamental, para os quais os algoritmos assumem
como está dito: “A disciplina aumenta um papel preponderante. A justifica-
as forças do corpo (em termos econômi- tiva para a construção desse artigo se
cos de utilidade) e diminui essas mes- dá, portanto, pela busca de indícios
mas forças (em termos políticos de obe- dessa governamentalidade algorítmica
diência)”. (FOUCAULT, 2014, pp. 135- que projeta novas formas de constitui-
136). ção das subjetividades e do governo das
Deleuze, quase como um profeta, condutas mediante as tecnologias digi-
soube ler e escutar o seu amigo Fou- tais e a redefinição de novas narrativas
cault e compreendeu que as sociedades governamentais e mercadológicas. Os
de tipo disciplinar tinham prazo de va- objetivos para o artigo são: a busca pela
lidade e entrariam em crise, oferecendo compreensão de como a governamen-
lugar a outro modelo de sociedade, para talidade algorítmica atua em termos de
ele: a sociedade de controle. Por pres- poder e influencia na construção da rea-
suposto, a passagem de um tipo de soci-

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CONTROLE DE TIPO ALGORÍTMICA

lidade subjetiva e social. Por isso, se faz ao modo como os seres humanos a exe-
necessária a análise dos impactos das cutam não é uma questão nova, e re-
novas Tecnologias de Informação e Co- toma no nosso tempo a Alan Turing,
municação para constituição de valores que em 1936, bastante tempo antes
éticos e escolhas políticas dos sujeitos. de qualquer computador eletrônico ter
sido criado. No seu artigo On Com-
putable Numbers, Turing já defendia a
tese de que as máquinas computacio-
2. Execução da Tarefa Elementar: “A nais poderiam executar tarefas lógicas
Constituição da Subjetividade” do mesmo modo que os seres huma-
nos. Mais tarde, em 1950, aproximando
A produção de um artigo que tem a ver mais ainda a matemática e a ciência
com a tecnologia envolta com a ques- da computação da filosofia, Turing pu-
tão de algoritmos para uma revista de blica outro texto emblemático, Compu-
filosofia, carece responder a uma per- ting Machinery and Intelligence, no qual
gunta que todos aqueles que não são de fato explora o conhecido “Teste de
afeitos com a área da informática fa- Turing” em que comprova que as má-
zem: “o que é um algoritmo?” De forma quinas podem se assemelhar ao pensa-
simples e direta respondemos que um mento humano na execução de tarefa
algoritmo é o conjunto de etapas que e resolução de problemas (Cf.: MAC-
um indivíduo usa para executar uma CORMICK, 2018, pp. 317-329).
tarefa. Somos, portanto, antes de qual- Portanto, Turing sustentou que em se
quer coisa executores de algoritmos na tratando de cálculos lógicos, um com-
nossa vida cotidiana. Por exemplo, um putador poderá fazer qualquer coisa
morador do sul do Brasil que tem o cos- que o ser humano possa fazer e “Em
tume de tomar chimarrão, certamente 1950, estava pronto para expandir radi-
tem um algoritmo para preparar o seu calmente a hipótese Computing Machi-
mate: desde o modelo da cuia (a cabaça nery de maneira convincente, isto é, que
onde o gaúcho toma o chimarrão), pas- os computadores eventualmente imi-
sando pela qualidade da erva-mate, o tarão os seres humanos em conversa-
tipo de bomba usada para sugar o mate ção sobre qualquer tópico” (MACCOR-
e a temperatura ideal da água. Os algo- MICK, 2018, p. 326). E se a tarefa
ritmos executados por ‘computadores’ computacional dos algoritmos for a de
são cumpridores de tarefa assim como constituir e governar a subjetividade
nós e possuem ainda algo mais em co- humana, segundo algum interesse es-
mum: eles afetam também a vida coti- pecífico? Nesse caso, temos uma notícia
diana. bastante perturbadora para dar: “Algo-
A hipótese de que uma máquina ritmos são executados em computado-
pode executar uma tarefa semelhante

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res em todos os lugares — no seu lap- mica trabalha com a ideia de uma nor-
top, em servidores, no seu smartphone, matividade imanente ao próprio des-
em sistemas embutidos (como no seu locamento e circulação dos dados, blo-
carro, no seu forno de micro-ondas ou queando experiências sociais e políticas
em sistemas de ar condicionado) — em com a eliminação das esferas de debates
todos os lugares!” (CORMEN, 2014, p. e criação do comum” (TELES, 2018, p.
02). 429).
A partir do momento em que concei- Nesse processo de controle e consti-
tuamos o que é um algoritmo e o rela- tuição de subjetividades que une gover-
cionamos com a tradição Foucaultiana nos e corporações privadas (o Mercado)
e o conceito de governamentalidade1 , as tecnologias e, em especial os algo-
o qual foi elaborado, definido e ana- ritmos, assumem um papel preponde-
lisado por Michel Foucault e que tem rante. Como fizemos referência acima,
uma implicação direta com as “formas é certo que os algoritmos estão por trás
de controle ao ar livre”, segundo De- de uma “insignificante” pesquisa no
leuze, para as quais uma lógica de cál- portal Google, de anúncios publicitá-
culos e da estatística são utilizados para rios que estão sempre a nos espionar em
controlar e direcionar a ação dos indiví- qualquer página que clicamos e navega-
duos, temos uma ferramenta para ana- mos, da forma como nossa timeline no
lisar o governo dos algoritmos. O su- Facebook, no Twitter, no Instagram etc
jeito humano mesclado às funções das é organizada e apresentada para nós,
máquinas autônomas, está sujeitado a estão por detrás, também, da lista de
um novo regime de produção de subje- filmes que o Netflix nos apresenta assim
tividades, isto é, a biopolítica. que ligamos a smart tv. Essa familiari-
Como já apontara Alan Turing há 70 dade quase invisível com os algoritmos
anos, nessa nova forma de governar as faz com que as pessoas não se espantem
relações entre o humano e a máquina se com o fato de que são constantemente
fundem em velocidade instantânea de vigiadas e nem se perguntem pelas ra-
forma que a entrada de informações (in- zões e causas desse vigilantismo e desse
put) produz o máximo de informações controle quase que total da vida, que
sobre os interesses, desejos e necessida- produz subjetividades dóceis conforme
des dos indivíduos (output). Em razão a descrição foucaultiana.
disso, “a governamentalidade algorít- De um lado, os governos cada vez

1 Não temos espaço para fazer uma genealogia detalhada e uma análise minuciosa do conceito de governamentalidade em Fou-
cault. Para o escopo deste ensaio temos como referência a aula de 01 de fevereiro de 1978 do curso Segurança, Território e População
(FOUCAULT, 2008, pp. 143-144) em que o autor aglutina procedimentos, instituições, estratégias calculadas pela economia política
com a finalidade de conduzir as populações através de inúmeros procedimentos de segurança. Esse fator por si só une governos (po-
deres) e mercado (saberes) na busca da administração plena das populações. A hipótese desse artigo é que os algoritmos cumprem
essa tarefa de governamentalidade trazida por Foucault e que une Estado e Mercado num interesse comum.

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CONTROLE DE TIPO ALGORÍTMICA

mais usam e compartilham nossos da- quantidade significam possibilidade de


dos biográficos e biométricos e não ape- controle e de segurança. As empresas
nas as impressões digitais, mas também com os mesmos dados veem possibili-
outros elementos de reconhecimento dades publicitárias e o disparo de ofer-
e comportamento, como característi- tas personalizadas e individualizadas a
cas faciais, registros de íris e retina, fim de maximizar o lucro. Os cientis-
voz e até mesmo a maneira de andar tas e engenheiros da computação mine-
de cada cidadão (BRASIL, 2019). Por ram os nossos dados para aperfeiçoa-
outro lado, as corporações privadas es- rem seus conhecimentos e constituírem
tão querendo saber mais sobre os nos- o perfil do próximo candidato para o
sos comportamentos, gostos, preferên- qual vão trabalhar.
cias morais, estéticas e políticas e assim E nós, os usuários? Alimentamos esse
criar novas formas para recomendar, colonizador com a linha do tempo das
valorar e estabelecer hierarquias. Es- redes sociais sempre com alguma no-
tas instituições fazem tudo isso a partir vidade, mantendo um blog atualizado,
de dados. Desse modo, as corporações compartilhando uma lista de e-mails,
privadas buscam afirmar o que é o me- ou usando um aplicativo de geoloca-
lhor e o pior para assim definir valores lização e instalando um aplicativo de
e gostos e, claro, apontar caminhos e transporte. Essa Big Data, o armazém
soluções e, por fim, redefinir muitos de virtual, aparentemente sem fim está ali
nossos valores morais e políticos e vín- disponível para ser acessado e mani-
culos sociais. pulado a qualquer momento e ao in-
Nisto se apresenta a primeira face teresse de quem quer que seja e te-
desse governo algorítmico o qual é um nha poder para tal. A subjetividade
tipo de governo alimentado essencial- mesma foi reduzida a dado, transpa-
mente por dados. Do ponto de vista rente e esvaziada de sentido e acessí-
dessa máquina de governamentalidade, vel a massa cada vez maior de dispo-
o dado é apenas mais um símbolo sem sitivos conectados em rede: “Para a ci-
significado, sem a marca da subjetivi- bernética mais avançada, já não há o
dade que o produziu e foi colonizado homem e o seu meio ambiente, mas,
por um algoritmo que torna esse dado antes, um ser-sistema, ele próprio ins-
perfeitamente qualificável. A esta al- crito num conjunto de sistemas com-
tura podemos, então, definir o que é plexos de informação, centros de pro-
um dado: “Um dado não é mais que um cessos de auto-organização” (COMITÊ
sinal expurgado de toda a sua significa- INVISÍVEL, 2016, p. 134).
ção própria” (ROUVROY; BERNS, 2013, Ainda no século XX Deleuze já aler-
p. 170). Para os governos os nossos da- tara que a sociedade de controle vin-
dos, apesar de dispersos e em grande doura não seria caracterizada pelo pa-

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pel normatizado a ser exercido pelo dos expropriados do seu contexto de


indivíduo conforme um molde pré- signos e significados e produzir um sa-
estabelecido dentro de cada cultura ins- ber, a Data Science.
titucional da sociedade disciplinar. O A elaboração de um perfil não consi-
molde disciplinar tem como meta a dera uma intencionalidade precedente
unificação dos indivíduos em um só e uma hipótese previamente elaborada,
corpo de tal maneira que a subjetivi- mas essa Machine Learning cria suas hi-
dade é sempre posta em confronto com póteses a partir dos dados que tem à
a norma e precisa recomeçar o trabalho disposição. Esse saber automatizado,
de se moldar conforme a regra e, dessa numérico e estatístico dispensa quase
maneira, agir conforme o esperado pelo que totalmente o elemento humano e
poder central disciplinador. Por outro coloca em desuso a própria estatística
lado, a sociedade de controle apresen- tradicional: “A produção de saber está
tada por Deleuze tem como caracterís- automatizada, isto é, solicita apenas um
tica não o molde, mas a modelagem ma- mínimo de intervenção humana e so-
temática: “Ao passo que os diferentes bretudo, dispensa toda forma de hipó-
modos de controle, os controlatos, são tese prévia (como era o caso com uma
variações inseparáveis, formando um estatística tradicional, que verificava
sistema de geometria variável cuja lin- uma hipótese), isto é, evita novamente
guagem é numérica” (DELEUZE, 1992, toda forma de subjetividade” (ROU-
p. 221). VROY; BERNS, 2013, p. 171). Essa
Quase trinta anos depois das refle- “produção autônoma de saber numé-
xões de Deleuze diríamos que não te- rico” carrega em si um problema de or-
mos uma subjetividade controlada de dem epistemológica que precisa tam-
maneira que ela livremente pudesse bém ser considerado apesar de não ter-
constituir para si modos de vida dentro mos espaço aqui, mas que deixamos em
de um sistema de desvio padrão baixo forma de questão: qual o espaço para a
e, portanto, dentro da média aceitável. refutação, para o exercício genuíno da
Ainda assim trataríamos de um modo dúvida e para a conjectura de outras hi-
de vida e de uma subjetividade consti- póteses nessa nova forma de produção
tuída dentro de um sistema simbólico do conhecimento, tão relevantes ao pro-
que fariam parte do mundo da vida do gresso da ciência?
indivíduo. Hoje, podemos afirmar que Essa Data Science como uma ci-
não temos processos de subjetivação na ência definitiva do comportamento
sociedade de controle, mas a produ- estrutura-se, portanto, na mineração,
ção algorítmica de perfis. Para levar a junção e análise numérica e massiva de
cabo essa produção de perfis basta ter o (para usar a expressão de Deleuze) da-
acesso àquela massa disformes de da- dos. As ‘subjetividades estatísticas’ as-

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CONTROLE DE TIPO ALGORÍTMICA

sim massivamente produzidas e trans- essa produção autônoma de perfis que


formadas em perfis têm a sua normali- cria modelos de comportamento fu-
dade e a sua consequente anormalidade gindo do processo de subjetivação que
implicada em procedimentos específi- sempre está envolto em reflexão, crí-
cos de personalização e de categoriza- tica, resistência e a agonística da re-
ção algorítmicos. A partir dessa pro- lação com a alteridade. Não interessa
jeção e dessa modulação de condutas mais o corpo físico moldado e a consci-
concordamos então com a seguinte des- ência moral obediente, mas o exercício
crição sobre o futuro da subjetividade de “um poder totalmente em contração,
em tempos de governamentalidade al- que prefere ordenar o espaço e reinar
gorítmica, sobre os interesses mais que sobre cor-
pos [...] Apenas sujeitos livres, tomados
o perfil é um conjunto de tra- em massa, são governados de tal forma
ços que não concerne a um que para o indivíduo, só há liberdade se
indivíduo específico, mas sim ela for vigiada” (COMITÊ INVISÍVEL,
expressa relações entre indi- 2016, pp. 152-153).
víduos, sendo mais interpes- Quando Foucault tratou das carac-
soal do que intrapessoal. O seu terísticas gerais dos dispositivos de se-
principal objetivo não é produ- gurança no curso de 1977 Sécurité, Ter-
zir um saber sobre um indiví- ritoire et Population fez uma descrição
duo identificável, mas usar um que em muito corresponde com a go-
conjunto de informações pesso- vernamentalidade de tipo algorítmica.
ais para agir sobre similares. O Em comum o fato de não haver a ne-
perfil atua, ainda, como catego- cessidade do corpo a ser domesticado e
rização da conduta, visando à nem da ideia a ser tomada por uma ide-
simulação de comportamentos ologia, mas o dispositivo de segurança
futuros. Neste sentido, um per- que é: “Um meio no qual não se trata
fil é uma categoria que corres- tanto de estabelecer os limites, as fron-
ponde à probabilidade de ma- teiras, no qual não se trata tanto de de-
nifestação de um fator (compor- terminar localizações, mas, sobretudo,
tamento, interesse, traço psico- essencialmente de possibilitar, garan-
lógico) num quadro de variá- tir, assegurar circulações: circulação de
veis (BRUNO, 2013, p. 161). pessoas, circulação de mercadorias, cir-
culação do ar, etc" (FOUCAULT, 2008,
p. 39). Neste sentido, só há liberdade
Portanto, essa sociedade de controle se ela for vigiada por perfis que estabe-
de tipo algorítmica não produz subje- lecem o desvio padrão de tal forma que
tivação. O sujeito humano reflexivo é ser livre é criar laços com uma realidade
desviado e de certa forma evitado por

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muito ampla que escapa as capacidades sociais podem ser deduzidos e expli-
cognitivas de qualquer sujeito humano. cados por leis físicas e matemáticas: a
chamada física social. Com isso, temos
uma conclusão um pouco assustadora
para cientistas políticos tradicionais e,
3. A Execução da Tarefa Política: Dog em certa medida para os grandes co-
Whistle Politics municadores que eram capazes de mo-
bilizar as massas por meio de recursos
Literalmente a tarefa política dos algo- retóricos. O investimento numa car-
ritmos se assemelha a apitos para ca- reira política passa, por consequência,
chorros, pois individualizam os sujei- em pessoas com capacidade de dominar
tos a partir dos dados que eles mes- tecnologias e manipular grandes quan-
mos produzem. Daí a produção de con- tidades de dados.
teúdo visando o convencimento não de Essa hipótese de certa forma é sus-
uma massa de pessoas, mas de indiví- tentada na obra Armas de Destrucción
duos a partir do seu comportamento Matemática em que a autora analisa a
compartilhado em redes sociais e que forma algorítmica de agir de empre-
são reduzidos a dados disponíveis na sas de tecnologia famosas como a Go-
rede mundial. Hábitos da vida coti- ogle, Facebook, Amazon etc. Em relação
diana, preferências estéticas, opiniões a eleição americana de 2012, segundo
políticas e mesmo as emoções mais ín- a autora, o Facebook que à época con-
timas podem ser reduzidas a dado ma- tava com 1/3 de cidadãos americanos
temático. E ainda mais, com o advento com perfil ativo na plataforma de ma-
dos smartphones a possibilidade de ras- neira que a partir das publicações na
treamento e mobilização do indivíduo linha do tempo dos usuários foi pos-
está voluntariamente posta no bolso, de sível mensurar quais tipos de publica-
forma que “Essa profusão inédita de da- ções influenciavam o comportamento
dos – e os poderosos interesses econô- eleitoral das pessoas. Com a captura de
micos e políticos que ela representa – uma massa gigantesca de dados e com
está na raiz do novo papel dos físicos a utilização de algoritmos era possível
na política” (EMPOLI, 2020, p. 145). produzir um conhecimento muito rá-
Tal constatação nos leva ao tipo novo pido sobre as tendências do eleitorado
de cientista social, que trabalha com no- e, claro, influenciar na decisão desses
vas ferramentas e métodos novos, os fí- mesmos eleitores. “Em questão de ho-
sicos da política. Essa é a hipótese prin- ras, o Facebook poderia reunir informa-
cipal da obra Les Ingénieurs du Chaos ções sobre dezenas de milhões de pes-
que em sua argumentação retoma a ve- soas e calcular o impacto que suas pala-
lha premissa do Positivismo de Auguste vras e os links que compartilharam uns
Comte, qual seja, de que os fenômenos

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O GOVERNO DAS CONDUTAS E A CONSTITUIÇÃO DA SUBJETIVIDADE: UM ESTUDO DA SOCIEDADE DE
CONTROLE DE TIPO ALGORÍTMICA

com os outros” (O’NEIL, 2017, p. 145). ção dos dados. E é aí que pesa
Disso decorre a importância dos pro- a vantagem competitiva do fí-
fissionais treinados para trabalhar com sico, que, ao contrário do po-
uma grande quantidade de dados que lítico, está habituado a traba-
estão aglomerados e a partir dos quais é lhar com uma quantidade infi-
preciso inferir um comportamento mé- nita de dados (EMPOLI, 2020,
dio. O fato é que o físico está acostu- p. 147).
mado a trabalhar com grandes quanti-
dades de dados disformes que formam Uma empresa que capta uma grande
‘sistemas caóticos’ a partir dos quais in- quantidade de dados pode negociar es-
ferem uma ordem e um comportamento ses mesmos dados para aquele interes-
mediano através de ferramentas mate- sado que esteja disposto a pagar o preço
máticas e estatísticas. Quando o físico, mais alto num leilão em que o produto
com o auxílio de todas essas ferramen- é o material que acumulamos na Big
tas aplicadas aos algoritmos, entra para Data sobre nós mesmos e que pode ser
o campo da política temos a consuma- usado inclusive para manipular nossas
ção da utopia do positivismo de Comte: opiniões e decisões políticas no mundo.
a dedução e a modulação do compor- E ainda mais, as empresas que traba-
tamento humano interpretado e regido lham com grandes quantidades de da-
por leis físicas e matemáticas. De ma- dos como Google, Facebook, YouTube,
neira que Empoli pode escrever com ra- Amazon etc. não estão limitadas por
zão, que é preferível ter um físico traba- leis locais onde atuam, sua ação é glo-
lhando em política do que um cientista bal de forma que podem minerar dados
político: onde o cidadão tem seus dados prote-
gidos por leis do seu país e manipu-
lar esses mesmos dados a partir de um
Até cerca de dez anos atrás, os local onde essas leis são inexistentes,
dados para aplicar as leis físicas isto é, conhecem e sabem usar os siste-
aos aglomerados humanos não mas políticos: “As plataformas digitais
existiam. Hoje sim. Nós dispo- são infraestruturas globais com autono-
mos, até, de mais dados sobre os mia política suficiente para desafiar a
aglomerados humanos do que soberania dos Estados-nação de forma
sobre a maioria dos fenômenos muito interessantes, mas também são
físicos que temos o hábito de es- extremamente úteis para projetar essa
tudar [...]. Se você analisa o Fa- soberania e estendê-la para além das
cebook hoje, você tem quase tan- fronteiras do Estado que a exerce” (PEI-
tos captadores quanto molécu- RANO, 2019, p. 190).
las, ou seja, usuários. O pro- Entre os muitos dispositivos de segu-
blema passa a ser a interpreta- rança e controle que operam com tec-

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nologia, Bruno (2013) descreve alguns para o escopo desta pesquisa: o profi-
como as câmeras de vigilância em luga- ling. Trata-se de um conceito trazido da
res públicos, semipúblicos e privados. engenharia do software que remete para
Em continuidade a essas tecnologias de a constituição do perfil do programa a
imagem a autora destaca as webcams ser desenvolvido. No caso, dos aparatos
pessoais ou institucionais, os sistemas de vigilância e captura da vida privada
de vídeo vigilância “inteligentes” e pro- se trata da criação de perfis computaci-
gramados para o monitoramento da ati- onais que, a partir de bancos de dados
vidade humana, usualmente voltados alimentados pelos próprios usuários e
para a detecção de condutas e situações de seus rastros deixados na internet,
suspeitas ou de risco; os sistemas de projetam padrões estatísticos de cate-
controle de trânsito (câmeras, pardais, gorias diversas, como a potencialidade
radares); sistemas de geolocalização; de cometimento de um crime, a ten-
fronteiras e portões eletrônicos (senhas dência para consumir certo produto e
e cartões de acesso, scanners para pes- formas comportamentais e de sociabili-
soas e objetos, sensores de detecção de dade etc.:
presença e movimento); mecanismos de
autenticação e controle de identidade Agregados em bancos de da-
(cartões de identidade; dispositivos de dos e submetidos a técnicas de
identificação biométrica como impres- mineração e profiling, tais da-
são digital, scanner de iris, topografia dos geram mapas e perfis de
facial, software de reconhecimento fa- consumo, interesse, comporta-
cial, scanner de mão; mecanismos de mento, sociabilidade, preferên-
autenticação da identidade no ciberes- cias políticas que podem ser
paço); redes de monitoramento e cruza- usados para os mais diversos
mento de dados informacionais (com- fins, do marketing à adminis-
pras, comunicações, trajetos, serviços); tração pública ou privada, da
sistemas digitais de monitoramento, co- indústria do entretenimento à
leta, arquivo, análise e mineração de indústria da segurança, entre
dados pessoais no ciberespaço (rastre- outros (BRUNO, 2013, p. 129).
adores de dados pessoais na Internet,
interceptadores de dados de comunica-
ção e navegação, softwares de captura e O fato é que os algoritmos são res-
mineração de dados; bancos de dados ponsáveis por essa hierarquização e se-
eletrônicos. leção de dados nas redes, realizados
Dentre esses mecanismos de vigi- através de cálculos que o próprio usuá-
lância, já tradicionais, citados pela au- rio alimenta sem que perceba, através
tora destaca-se um bastante importante das diferentes plataformas – dos mo-
tores de busca aos botões dos sites de

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CONTROLE DE TIPO ALGORÍTMICA

rede social. Os cálculos realizados pe- fenômeno que agrega e congrega tec-
los algoritmos de cada plataforma aca- nologia digital, instâncias econômicas,
bam por modelar as formas de visibili- esferas políticas, culturas específicas,
dade das informações. Cardón (2015) formas de organização social de acelera-
na busca por compreender os seus efei- ção distributiva dos processos. Tal fenô-
tos na sociedade, propõe uma “radio- meno se caracteriza pela “Singular rela-
grafia crítica” dos algoritmos. A hipó- ção intensificadora das nanotecnologias
tese do autor é a de que o processo de com o fluxo temporal” (SODRÉ, 2013,
personalização gerado por esse modo p. 14), que no seu modus operandi traz
de seleção de conteúdos cria bolhas de a ideologia do individualismo econô-
predileção, modelando a maneira como mico, da supremacia mercadológica e
as pessoas se relacionam, no contexto do moralismo autoritário.
de uma “sociedade dos comportamen- Essa nova governamentalidade das
tos”. condutas e que determina modos de
O pesquisador destaca quatro fun- ser e de se constituir do sujeito pode
ções desempenhadas pelos cálculos au- ser caracterizada como uma era da go-
tomatizados, que podem ser entendidos vernamentalidade do ‘infocontrole’ e
como formas de regulação da circula- da ‘datavigilância’ em que o processo
ção dos conteúdos na web: populari- de patrulhamento contínuo não é mais
dade, autoridade, reputação e predile- uma prerrogativa centralizada no Es-
ção: “e parcours que nous allons entre- tado, mas também das organizações po-
prendre à travers ces quatre manières de líticas autônomas e das cooperações ca-
classer l’information numérique permet- pitalistas que podem ter interesses de
tra de dégager les différentes valeurs qui qualquer ordem, alheios ao interesse
nourrissent les choix que font les algorith- do indivíduo. Ora, isso nos coloca em
mes : la popularité, l’autorité, la réputa- frente à política algorítmica do con-
tion et la prédiction” (CARDÓN, 2015, sumo em que há uma fusão entre po-
p. 67). lítica, mercado de tipo neoliberal e tec-
A estocagem de grandes quantidades nologia digital. A política passa a ser
de dados, a sua rápida manipulação e um segmento empresarial, os partidos
circulação virtualiza o espaço e o tempo políticos – e as suas ideologias – assu-
da política de tal maneira que inclusive mem o papel de empresas que visam
valores éticos-políticos podem ser dis- atender as demandas dos ‘consumido-
tribuídos e consumidos numa ubiqui- res políticos’ que paradoxalmente são
dade cada vez mais intensa. Em ter- controlados algoritmicamente nos seus
mos políticos temos um fenômeno que desejos e valores políticos que
é a supressão da noção conceitual de
Estado-Nação. Há quem chame esse
No plano geopolítico já se mo-

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dificou os contornos do cibe- nicação, e partem para estratégias de


respaço pelo desenvolvimento comunicação cada vez mais aperfeiçoa-
de uma cadeia global de pes- das” (MIÈGE, 2004, p. 06).
soas capazes de conduzir ope- A comunicação generalizada levada
rações de desinformação de um a cabo nos últimos anos fundiu num
canto a outro do planeta. Além mesmo processo a comunicação e a tec-
do mais, gera relações e trocas nologia e o resultado disso é o que co-
de experiências que permitem mumente se chama de realidade virtual,
aos nacional-populistas repli- um produto da chamada sociedade da
car, por diversos países, os mo- informação – bordão que faz parte da
delos de campanha mais efica- política e do mundo empresarial. O fato
zes (EMPOLI, 2020, p. 39). é que essa fusão entre tecnologia, comu-
nicação e imagem é um poderoso dispo-
sitivo de transformação social e cultural
A constatação das consequências, por
que, para Sodré, não é sinônimo de um
Empoli, para os processos políticos nos
novo processo civilizatório: “Nada há
conduz a uma reflexão sobre as for-
aqui do que antes se chamaria de “re-
mas de comunicação de tal maneira que
volucionário”. Há tão só hibridização
temos uma comunicação generalizada
dos meios, acompanhada da reciclagem
em que o indivíduo-usuário produz de-
acelerada dos conteúdos (sampling, no
mandas, consome e cria conteúdos co-
jargão da tecnocultura) com novos efei-
municacionais. Em qualquer caso, é
tos sociais” (SODRÉ, 2013, p. 20).
uma invasão da privacidade, de manu-
A atuação dos algoritmos nesse pro-
seio de dados em que há uma apropri-
cesso de transformação da sociedade
ação dos domínios da vida social, polí-
não se limita a oferecer um conjunto de
tica, privada em que a meta é conseguir
regras e padrões a partir do Big Data,
adesão, e de se dirigir sobretudo aos in-
mas gerar produtos comerciais, polí-
divíduos/consumidores/cidadãos. Em
ticos, culturais oferecendo sugestões,
19912 , Bernard Miège em tom quase
respostas e indicações. E ainda mais,
que profético tratava da noção concei-
há um processo dinâmico em que o
tual de Comunicação Generalizada que
indivíduo-usuário vai deixando uma li-
era definida por ele assim: “No fu-
nha do tempo que mescla busca, con-
turo, os Estados, as grandes e peque-
sumo e que a aprendizagem da má-
nas empresas, e aos poucos, todas as
quina algorítmica processa em ato fa-
instituições sociais deverão apoderar-se
zendo sugestões, condicionando a li-
das técnicas de gestão do social e das
berdade do usuário como bem explica
tecnologias da informação e da comu-

2 O texto foi traduzido e publicado no Brasil somente em 2004 pela revista Novos Olhares.

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CONTROLE DE TIPO ALGORÍTMICA

O’Neil: zação do cotidiano dos usuários acom-


panhada de vigilância e controle” (FI-
E, cada vez mais, as máquinas GUEREDO, 2019, p. 164). Ampliando
de processamento de dados fil- o mesmo debate o fundador da Wikile-
tram nossos dados por conta aks, Julian Assange, trabalha com uma
própria, procurando nossos há- noção de vigilância global que por sua
bitos, esperanças, medos e de- perspectiva funciona assim,
sejos. Com o aprendizado de
máquina, um campo de rápido Toda página lida na internet,
crescimento da inteligência ar- todo e-mail enviado e todo pen-
tificial, o computador mergu- samento buscado no Google, ar-
lha em dados e segue algumas mazenando esse conhecimento,
instruções básicas simples. O bilhões de interceptações por
algoritmo encontra padrões por dia, um poder inimaginável,
conta própria e, com o tempo, para sempre, em enormes depó-
os conecta aos resultados. Em sitos ultrassecretos. E passaria a
certo sentido, pode-se dizer que minerar incontáveis vezes esse
ele aprende (O’NEIL, 2016, p. tesouro, o produto intelectual
63). privado coletivo da humani-
dade, com algoritmos de busca
Outro aspecto que está em jogo são de padrões cada vez mais sofis-
as estratégias cada vez mais sofisticadas ticados, enriquecendo o tesouro
de vigilância e controle realizadas atra- e maximizando o desequilíbrio
vés captura de dados e manipulação por de poder entre os interceptores
algoritmos cada vez mais sofisticados. e um mundo inteiro de inter-
O modelo lógico-matemático dos algo- ceptados (ASSANGE, 2013, p.
ritmos, aparentemente neutros e obje- 30).
tivos, mas que são eivados da ideologia
do seu proprietário e, portanto, são con- Nessa temática da vigilância global é
figurados segundo os valores políticos e preciso uma reflexão sobre os smartpho-
econômicos dos que os projetaram. As- nes que a maioria das pessoas leva con-
sim há uma captura total da vida co- sigo e são capazes de ouvir, ver e loca-
tidiana em que o Mercado, o Estado e lizar o usuário no espaço e no tempo.
outras corporações com interesses di- Ainda mais, através dos aplicativos ins-
versos colonizam a privacidade das pes- talados é possível traçar rapidamente
soas ao seu interesse, como é o caso das desde as preferências alimentares e mu-
mídias sociais: “O que acontece nos si- sicais às preferências estéticas, morais
tes de redes sociais é uma brutal coloni- e políticas do usuário. Peirano (2019)

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sustenta que o dado mais valioso dos tação rápida chegando às redes sociais
smartphones nem são os elementos con- e os aplicativos de serviços de trans-
tidos em seus aplicativos ou a linha porte como o Uber podem ser enqua-
do tempo das redes socias e as men- drados na categoria de killer apps (tipos
sagens trocadas pelos usuários através de apps que se tornam necessários fí-
de aplicativos. Segundo a autora o dado sica e psicologicamente) dada a sua ca-
mais valioso de um smartphone é a sua pacidade de se inserir no cotidiano e na
capacidade de localizar o usuário geo- vida privada das pessoas e alterar pro-
graficamente no espaço e usar todas as fundamente as relações de trabalho e
informações produzidas pelo próprio os modos como as pessoas consomem
usuário para transformar em sugestões produtos e têm acesso às informações e
e criação de necessidades: “Os dados aos modos de socialização e organiza-
disponíveis para as informações mais ção política: “killer apps, que em uma
valiosas sobre uma pessoa não são seus tradução livre para o português signi-
e-mails pessoais, mas sua posição geo- fica “aplicações assassinas”. Killer apps
gráfica. Um smartphone relata todas as seriam bens ou serviços capazes de de-
preferências do usuário para os aplica- sarranjar, a partir da destruição criativa
tivos que carrega, uma mina de ouro que impõem, relações entre produtores,
sem fundo para a indústria de atenção” fornecedores e consumidores, oferta de
(PEIRANO, 2019, pp. 85-86). produtos e regulações governamentais”
Com isso, se apresenta outro aspecto (FIGUEIREDO, 2019, p. 161). O fato
importante para quem se debruça sobre é que esse tipo de aplicação adentra e
o estudo do governo dos algoritmos e a coloniza a vida cotidiana e transforma
sua capacidade de vigiar a constituição desde os afetos dos usuários, as relações
das subjetividades e que pode gerar um de consumo e as próprias legislações
promissor projeto de pesquisa. O prota- trabalhistas e de propriedade.
gonismo dos smartphones na sociedade
contemporânea e o seu potencial de in-
vasão do mundo da vida privada e co-
tidiana pelo Mercado, pelo Estado, por 4. Considerações Finais
Organizações políticas tem outra con-
sequência: a precarização do mundo do Gostaríamos de ser mais otimistas ao
trabalho e do emprego a partir de plata- fazer as considerações finais deste en-
formas digitais da chamada “economia saio. Como Pierre Levy, em Cybercul-
do compartilhamento”. ture (1997), queríamos indicar que a go-
Muitos dos aplicativos usados em vernamentalidade de tipo algorítmica
smartphones desde os de geolocalização, fosse a expressão de novas formas de
passando pelos de busca por alimen- sociabilidade e de comunicação que re-
sultasse em uma ampliação das demo-

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O GOVERNO DAS CONDUTAS E A CONSTITUIÇÃO DA SUBJETIVIDADE: UM ESTUDO DA SOCIEDADE DE
CONTROLE DE TIPO ALGORÍTMICA

cracias e do igual acesso à tecnologia e formam em dados na Big Data que a


ao conhecimento. Historicamente o ci- qualquer instante podem ser manipu-
nema e a música (rock and roll) promo- lados e ressignificados de acordo com a
veram uma ampliação de acesso à cul- demanda do próprio indivíduo que os
tura e uma crítica contumaz às formas criou e em correspondência com a ló-
de organização da sociedade e igual- gica do proprietário que criou o algo-
mente sofreram críticas dos conserva- ritmo.
dores no seu nascimento e não deixa- Uma questão ainda precisa ser res-
ram de ser cooptados pela indústria pondida com rigor metodológico e pes-
cultural. Esse fato sugere que não po- quisa de campo: como os indivíduos
demos ser contra as tecnologias digi- aceitam de forma tão docilizada esse
tais, mas nos colocarmos em uma posi- controle e essa vigilância completa da
ção de compreensão crítica dos eventos vida? A hipótese da circularidade gera-
que envolvem a tecnologia, a ciência e dora da bolha é uma categoria promis-
a sociedade. A construção desse artigo sora para se ir a campo e minerar da-
teve sempre essa premissa como hori- dos dessa nova forma de governamen-
zonte a ser buscado. talidade. Até mesmo as noções de es-
Os algoritmos e a sua funcionalidade paço e tempo, tão importantes para or-
inauguram, paradoxalmente, um tipo ganização da vida prática e da consti-
novo de “universal individualizado”? tuição da subjetividade ficam relativi-
Essa questão precisa ser colocada, pela zadas com essa governamentalidade al-
razão de que o indivíduo-usuário é con- gorítmica. Sem espaços fechados e tem-
dicionado, numa circularidade, a sem- pos disciplinados ao estilo de Foucault,
pre ‘consumir’ em termos morais, esté- mas com controle quase que total do es-
ticos e políticos aquilo que de antemão paço e do tempo, o consenso é formado
já é a sua vontade sem ser confrontado e a aceitação da governamentalidade de
com a diferença e o antagonismo da- tipo algorítmica se forma quase que ao
quilo que diverge do seu modo de ser. natural. É preciso resistir!
A hipótese da bolha (o novo universal O tipo de resistência a essa gover-
individualizante) desloca a mensagem namentalidade passa por uma compre-
do emissor, demove o texto do seu au- ensão de como as noções de espaço e
tor, desvia a ideologia do seu ideólogo, de tempo estão sendo ressignificadas e
retira o valor moral da comunidade cri- conduzidas para a formação de sujeitos
adora específica e transforma tudo em dóceis. Por isso, Harvey (2008) pode es-
uso potencial para fins políticos, comer- crever e nos apontar um caminho: “A
ciais, estéticos e afetivos. Os afetos, os história da mudança social é em parte
projetos em geral, as intenções morais apreendida pela história das concep-
e políticas do sujeito-usuário se trans- ções de espaço e de tempo, bem como

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dos usos ideológicos que podem ser da- retomada do controle sobre o próprio
dos a essas concepções”. Há de se per- destino e compreender os mecanismos
guntar se o espaço e o tempo são cate- e eventos imperceptíveis de poder que
gorias relevantes para resistir a essa go- submetem a subjetividade.
vernamentalidade. Contra essa governamentalidade to-
Três verbos se tornam essenciais para tal, a Criptografia seria uma saída como
o êxito dessa governamentalidade dos sugeriu Assange (2013)? Quase que
algoritmos: conhecer, controlar e modi- num ato de fé ele escreveu: “Uma crip-
ficar. A ação desses verbos é executada tografia robusta é capaz de resistir a
por algoritmos sobre comportamentos uma aplicação ilimitada de violência.
humanos em vista do controle, da cap- Nenhuma força repressora poderá re-
tura mercadológica da vida e da mone- solver uma equação matemática” (AS-
tização do comportamento em que o su- SANGE, 2013, p. 33). Enfim, respos-
jeito é proscrito do seu próprio compor- tas a esse tipo de questão e a análise das
tamento. O comportamento, reduzido respostas e as narrativas já fornecidas
a dado, é transformado em mercado- nos levarão a construir outras perspec-
ria que pode ser negociada por aqueles tivas cuja trajetória depende e muito de
que tem a possibilidade técnica para in- estudiosos e técnicos que compreende-
fluenciar comportamentos e por aque- ram que a ignorância sobre os processos
les cujo interesse é comprar tal possi- não produz um novo processo civiliza-
bilidade. Por essa perspectiva, o de- tório automatizado.
safio ético-político por excelência é a

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Recebido: 30/09/2020
Aprovado: 13/01/2021
Publicado: 31/01/2021

Revista de Filosofia Moderna e Contemporânea, Brasília, v.8, n.3, dez. 2020, p. 137-153 153
ISSN: 2317-9570
DOI: https://doi.org/10.26512/rfmc.v8i3.34300

Governo Algorítmico e Conexões: Novos Aspectos da


Subjetividade a partir de Michel Foucault
[Algorithmic Government and Connections: New Aspects of Subjectivity from Michel
Foucault]

Jefferson da Silva* ; Marcius Tadeu Maciel Nahur**

Resumo: Este artigo tem como objetivo discutir a governança gerenciada pela lógica dos
algoritmos. Trata-se de uma lógica de cálculos e estatísticas utilizada para conduzir as
ações individuais, mesclada às funções das máquinas, caracterizando um novo regime
de produção de subjetividades. Estruturando as relações entre o humano e a máquina e
recolhendo o máximo de informações sobre os desejos e necessidades dos indivíduos, a
governança algorítmica opera com a ideia de uma regulação inerente à própria circulação
intermitente de dados, afetando experiências pessoais e sociais, através da vigilância
sistêmica e do controle gradativo dos processos das manifestações subjetivas. Por fim,
contudo, serão trazidas reflexões, a partir de Michel Foucault, sobre o cuidado de si e o
conhecimento de si, enquanto possibilidades de transformações da subjetividade e até
mesmo de resistência às eventuais manipulações por esses sistemas.
Palavras-chave: Tecnologias. Algoritmos. Indivíduos. Subjetividade.

Abstract: This article aims to discuss the governance managed by the logic of algorithms.
It is a logic of calculations and statistics used to conduct individual actions, mixed with
the functions of machines, characterizing a new regime of production of subjectivities.
Structuring the relationship between the human and the machine and gathering the
maximum of information about the desires and needs of individuals, the algorithmic
governance operates with the idea of a regulation inherent in the intermittent circulation
of data itself, affecting personal and social experiences, through the systemic surveil-
lance and the gradual control of the processes of the subjective manifestations. Finally,
however, reflections will be brought, from Michel Foucault, on the care of oneself and
the knowledge of oneself, as possibilities for transformations of subjectivity and even
resistance to eventual manipulations by these systems.
Keywords: Technologies. Algorithms. Individuals. Subjectivity.

* Doutor em Filosofia pela Pontifícia Universidade Católica da São Paulo (PUC-SP). Professor do Centro Universitário Salesi-
ano de São Paulo (Unidade Lorena) e da Faculdade Canção Nova (Cachoeira Paulista). E-mail: je.filos@hotmail.com. ORCID:
https://orcid.org/0000-0002-2671-4621.
** Mestre em Direito pelo Centro Universitário Salesiano de São Paulo (Unisal). Professor do Unisal (Unidade Lorena) e da Facul-
dade Canção Nova (Cachoeira Paulista). E-mail: macielnahur@gmail.com. ORCID: https://orcid.org/0000-0001-8729-9719.

Revista de Filosofia Moderna e Contemporânea, Brasília, v.8, n.3, dez. 2020, p. 155-180 155
ISSN: 2317-9570
JEFFERSON DA SILVA; MARCIUS TADEU MACIEL NAHUR

Introdução ferentes artefatos, porém, assemelha-se


mais a um regime da visibilidade e da
inteligibilidade dos corpos e suas ex-
Qualquer iniciativa que leve ao encon- periências. Por meio das mais diver-
tro de indivíduos, como por exemplo, a sas tecnologias, é possível se acessar,
solicitação de um determinado serviço, traduzir e classificar gostos, tendências
após a pesquisa no buscador preferido apresentadas pelas pessoas, enfim, toda
e realizada a escolha entre as opções sorte de manifestações de suas subje-
oferecidas, com a inserção do nome do tividades, em tempo imediato, captu-
estabelecimento no aplicativo de loca- rando as suas múltiplas variações.
lização, atualmente, se apresenta como A automatização de funções e os am-
uma inquietante questão para o uni- bientes interativos e inteligentes das
verso da chamada subjetividade. Os novas tecnologias tende a proporcio-
minutos de utilização de algum apli- nar formas de vida mais fáceis, con-
cativo de serviços ou mesmo intera- fortáveis, prazerosas e eficientes. Fala-
ções nas redes sociais, na era tecnoló- se muito dos ganhos nessa convivência
gica, constituem enormes bases de da- interativa com as máquinas, especial-
dos, recebendo e transmitindo informa- mente, na medida em que elas detec-
ções em torno essas operações. Com tam, avaliam e, sobretudo, antecipam
o frenético ritmo de entradas e saídas desejos e interesses, conhecendo as pre-
no espaço virtual, dados e desejos das ferências e as redes de relações.
pessoas vão se acumulando como fon- A customização de necessidades, ba-
tes privilegiadas de informação, sem- seada em dados sobre ofertas e buscas,
pre prontas para serem acessadas, se- bem como a construção de perfis indi-
lecionadas e controladas pelos sistemas vidualizados, dão a impressão de que
tecnológicos de informação e comuni- as máquinas conhecem bem melhor as
cação. Máquinas e memórias artificiais, pessoas do que elas mesmas possam se
cujas nuvens de informações pairam so- conhecer. Além disso, possibilitam a
bre as vidas humanas, mitigam as dis- identificação daquilo que não se quer,
tâncias entre os mundos real e virtual, evitando não só a perda de tempo, mas
acionando e satisfazendo necessidades também os riscos de contatos sociais
coletivas e singulares. tormentosos. Ser observado, dentro de
É um fato a presença das tecnologias, uma ideologia da objetividade dos pro-
indo de um usual computador até os cedimentos autômatos, tem a caracte-
mais sofisticados sistemas de segurança rística de uma aparente tecnologia sele-
por sensores e câmeras. A decodificação tiva de segurança para relações, bens e
total de seu funcionamento é de difícil serviços.
diagnóstico objetivo. No entanto, sua A presente investigação, lastreada
presença é notável. Encontra-se em di-

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em pesquisa bibliográfica, não pretende com seus intrincados procedimentos


elencar os vários sistemas e suas má- calculistas, e seus reflexos na condução
quinas, nem apontar as mais recentes da vida e dos corpos no sentido de con-
tecnologias da informação e da comu- trole da circulação e das relações por
nicação. O seu propósito é introduzir eles operadas.
a discussão filosófica, a partir de Mi- Na sequência, coloca-se em pauta a
chel Foucault, a respeito de sistema de questão da relação contemporânea en-
controle que podem afetar a questão da tre os chamados processos políticos dis-
subjetividade. cursivos e as transformações engendra-
O tema-problema da discussão está, das pela produção afetiva e existencial
especificamente, na interação entre as de subjetividades.
subjetividades e as tantas tecnologias No próximo passo, faz-se uma in-
autônomas disseminadas pelo mundo. cursão pelo que se chamaria de espé-
O foco da discussão é como os indiví- cie de “memória do futuro”, aumentada
duos passam a ser objetos da observa- pela percepção do presente, construída
ção, classificação e predição de suas in- a partir de perfis de usuários, mas sem
terações sociais virtuais. Em outras pa- interferências subjetivas.
lavras, trata-se de discutir como as tec- Por último, a partir de Michel Fou-
nologias, ao traduzirem e predizerem o cault, será resgatada a visão do cuidado
espectro subjetivo dos indivíduos, com de si e do conhecimento de si, entendi-
seus respectivos modos de pensar, agir dos como afirmação da individualidade
e sentir as coisas, podem gerar novas e da capacidade de ação livre, enquanto
configurações das subjetividades, tanto possibilidades de resistência a mecanis-
diluindo umas quanto produzindo ou- mos de vigilância e controle que podem
tras, de modo que o cuidado de si e o afetar a subjetividade.
conhecimento de si ainda possam ser
alternativas de resistência a eventuais
manipulações de sistemas tecnológicos.
Para tanto, de início, aborda-se o pro- 1. A vida panóptica digital
blema de um novo tipo de configuração
da subjetividade em que os indivíduos Foi com Jeremy Bentham, ainda no sé-
acabam sendo mais do que meros obje- culo XVIII, que se conheceu a ideia pa-
tos de controle para efeitos políticos ou nóptica, aquela que propõe um tipo
econômicos, mas verdadeiras partes in- de estabelecimento, com disposições
tegrantes de um sistema de informação preparadas para vigilância abrangente,
e comunicação. capaz de controlar ou dirigir pessoas
Na etapa seguinte, busca-se retomar agrupadas (BENTHAM, 2008, p. 19).
o conceito de governança estratégica, Em linhas gerais, trata-se de um com-
plexo arquitetônico em que uma torre

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de vigilância, no centro, é cercada por víduos, agindo na padronização cole-


um anel periférico. Este último é di- tiva, acabam sendo os alimentadores do
vidido em celas com uma janela para poder disciplinar que incide sobre to-
a torre e outra para o exterior. Isso dos eles, ainda que não percebam tal
permite que a claridade atravesse cada condição. Quanto mais o poder vigi-
compartimento celular e, assim, quem lante e disciplinador se aproxima do in-
estiver na torre consegue visualizar as corpóreo coletivo, mais demonstra sua
silhuetas pelo efeito de contraluz. Em eficiência sobre os corpos dóceis (FOU-
contrapartida, os que se encontram nas CAULT, 1996, p. 145-147). É nessa ló-
celas estão impossibilitados de ver o gica disciplinar que o poder funciona
vigia (FOUCAULT, 1996, p.141-143). como uma máquina, pois "[...] é o apa-
Pensando em uma casa de inspeção relho inteiro que produz ’poder’ [...],
ideal, em que todos os confinados pos- o que permite ao poder disciplinar ser
sam ser vigiados simultaneamente, ele absolutamente indiscreto, pois está em
fala de um estabelecimento panóptico. toda parte [...] e absolutamente ’dis-
Mas, o maior segredo dessa ambiente é creto’” (FOUCAULT, 1996, p. 148).
que os confinados não conseguem sa- A ideia de panóptico encontrou am-
ber se estão sendo vigiados ou não. A pla repercussão devido a Michel Fou-
impossibilidade de se saber se o ins- cault, para quem a sociedade se organi-
petor está vigilante ou não, por conse- zaria, de certo modo, em conformidade
guinte, traz o resultado esperado, qual com as demandas que se encontram por
seja, um determinado comportamento trás da ideia do panoptismo, uma espé-
dos confinados desejado pelo vigilante. cie de vigilância abrangente que teria
O efeito mais importante do modelo como objetivo fazer com que os sujeitos
do panóptico é a indução, no indiví- se comportassem de maneira desejada
duo, da certeza de que ele está sendo pelo poder disciplinador.
vigiado, por mais que, efetivamente, De acordo com a análise apresentada
nem sempre aconteça. Nesse sentido, em Vigiar e Punir, a sociedade discipli-
tem-se a promoção de um estado per- nar começa a se estruturar no século
manente de vigilância, o que garante XVIII, a partir de uma reforma paula-
a eficiência do poder disciplinar. Esse tina nas políticas punitivas. Entretanto,
poder se configura como automático e o que ocorre de novo, a partir do século
anônimo, proporcionando o advento de XVIII, é o fato de a busca por disciplina
certa sujeição voluntária, por parte dos deixar de existir em estado isolado e se
indivíduos, sem a necessidade de se re- configurar como técnica privilegiada de
correr à força para obrigá-los a segui- gestão de indivíduos. Para tanto, é pre-
rem determinados padrões de compor- ciso adestrar os desviantes em potencial
tamento. No fundo, os próprios indi- mediante a introdução de mecanismos

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capazes de modelagem de indivíduos em caso a ser analisado, descrito, men-


disciplinados e, até certo ponto, bas- surado, comparado e, por fim, discipli-
tante previsíveis (FOUCAULT, 1987, p. nado. Através de sucessivas práticas de
221). Visando à sua eficiência, o poder exames, reconhece-se que o poder disci-
disciplinar opera, inicialmente, na dis- plinar favorece a constituição de modos
tribuição dos indivíduos no espaço, vale de subjetivação caracterizados, a prin-
dizer, ele trabalha com base no prin- cípio, por uma individualidade. Essa
cípio da clausura do sujeito. Assim, individualidade se refere à história de
dentro dos limites demarcados, o poder vida singular de cada sujeito, bem como
disciplinar encontra-se apto para fun- de suas características particulares e ca-
cionar da melhor forma possível, man- pacidades próprias a serem descritas e
tendo a vigilância em estado de cons- analisadas. Ao mesmo tempo em que
tância. Dentro desses limites, são or- o poder disciplinar conduz a uma ten-
ganizadas e dispostas algumas conveni- dência para semelhança, ele também
ências para que se retire delas o maior individualiza os sujeitos, possibilitando
número de vantagens. a delimitação de suas particularidades.
Com efeito, a concepção foucaulti- Desse modo, toda a escala de diferenças
ana de poder não remete à dominação individuais e singulares está no foco da
de um indivíduo ou de um grupo sobre disciplina, porém, dentro de um espec-
outros. Não há aqueles que detêm o po- tro mais amplo de homogeneidade que
der e aqueles que, por não o possuírem, ela aponta como sendo a regra (FOU-
a ele são submetidos; ao contrário, o CAULT, 1987, p. 225). A sociedade
poder circula em rede e cada indivíduo disciplinar é, pois, aquela que assiste
pode exercê-lo e, no mesmo instante, a ao alastramento do modelo do panop-
ele se render. Assim, no modelo do pa- tismo por todas as vias que atravessam
noptismo, na realidade, não há a neces- a vida subjetiva. Com ela, não apenas se
sidade de um vigilante concreto, posi- dissemina a questão da vigilância con-
cionado na torre central. Todos os com- tínua, mas também toda a política de
ponentes presentes na cena, ao mesmo estabelecimento de sanções normaliza-
tempo, se tornam agentes e alvos do doras, das práticas de exame e, prin-
poder disciplinar (FOUCAULT, 1987, p. cipalmente, da produção de modos de
223). Neste contexto, é importante per- subjetivação individualizados.
ceber que haverá a entrada dos sujeitos Entretanto, a concepção disciplinar
em um universo documentário. Em ou- não seria o limite último. O próprio Mi-
tras palavras, o resultado dessas práti- chel Foucault lançava também semen-
cas é, pois, a montagem de um arquivo tes para se pensar que, um pouco mais
com registros e documentos sobre a his- adiante da disciplina, já se germinava
tória de cada sujeito, transformando-o a ambição pelo controle mesmo dos su-

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jeitos. Nesse sentido, seus dizeres apon- dos àqueles desenvolvidos na sociedade
tam para a evolução da disciplina, até se disciplinar.
tornar uma técnica de exercício do po- A diferença a ser enfatizada entre a
der: “Os mecanismos disciplinares são, sociedade disciplinar e a do controle
portanto, antigos, mas existem em es- aponta para o relativo silenciamento
tado isolado, fragmentado, até os sécu- do potencial de resistência dos sujei-
los XVII e XVIII, quando o poder disci- tos. Na sociedade disciplinar, o efeito
plinar foi aperfeiçoado como uma nova do poder normalizador, por ser parcial,
técnica de gestão de homens.” (FOU- não obtinha êxito nas tentativas globa-
CAULT, 1984, p. 105). De fato, para lizantes de disciplinamento dos com-
além da sociedade disciplinar, a socie- portamentos subjetivos. Significa dizer
dade de controle não se baseia na divi- que, apesar de objetivar a transmissão
são do espaço, em localizações distintas de determinados valores, a submissão
e em demarcações por balizas. Na soci- aos imperativos não chegavam a ocor-
edade de controle, o poder se dispersa, rer de forma plena, porquanto o espaço
torna-se desterritorializado e dissemi- localizado fora de seus domínios ficava,
nado por entre os limites agora abertos permanentemente, reservado ao desvio,
pela queda dos muros de confinamento. à resistência e, até mesmo, à transgres-
Contudo, na sociedade disciplinar, a são. Em outras palavras, no tocante ao
eficiência do poder seja sempre parcial, sujeito disciplinado, ainda se reconhece
na medida em que é exercido dentro certa margem de liberdade para se ne-
de espaços fechados, na sociedade de gociar com as normalizações estabele-
controle, por sua vez, o poder se espa- cidas. Entre a subjetividade discipli-
lha, não mais se limitando a quaisquer nada e a subjetividade controlada há,
lugares específicos. Assim, na transi- pois, uma distinção em nível de singu-
ção de um modelo para outro tem-se a larização. A questão envolve processos
extensão generalizada do exercício do de moldagem e modulação. O processo
poder: o espaço estriado da sociedade de moldagem diz respeito à subjetivi-
disciplinar é, progressivamente, trans- dade disciplinada, porque submetida
formado no espaço liso característico a esquemas mais ou menos estáveis de
da sociedade de controle. Nesse sen- conformação das singularidades indivi-
tido, a sociedade de controle é definida duais. Já o processo de modulação está
como aquela que assiste à intensifica- relacionado subjetividade controlada,
ção e à extensão dos dispositivos de po- enquanto submetido a constantes iden-
der da sociedade disciplinar. Por sua tificações de perfis, padronizados por
vez, tal organização vai desembocar em análises selecionadoras de suas princi-
algumas mudanças nos modos de sub- pais características. A construção de
jetivação contemporâneos, se compara- uma subjetividade controlada passa a

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ser feita por intermédio da combina- realidade. No panóptico digital, a con-


ção e dosagem de modelos identifica- fiança não é possível e nem necessá-
dores dessas singularidades modula- ria. As informações críveis estão to-
das. São essas subjetividades contro- das dispostas ao alcance de um toque
ladas que abrem o caminho para que se digital. A conexão digital viabiliza a
avance na maquinaria do sistema Pa- aquisição de informação de tal maneira
nóptico, que se configura como uma que a confiança, como práxis social da
“[...] máquina de dissociar o par ver-ser subjetividade, perde cada vez mais seu
visto: no anel periférico, se é totalmente significado. Ela cede lugar para o con-
visto, sem nunca ver; na torre central, trole. Nesse sentido, “[...] a sociedade
vê-se tudo, sem nunca ser visto.” (FOU- da transparência tem uma proximidade
CAULT, 1987, p. 225). O Panóptico é estrutural à sociedade da vigilância.”
um local privilegiado para tornar pos- (HAN, 2018, p. 122). Onde é possível
sível a experiência com sujeitos com conseguir informações, com muita rapi-
suas singularidades e analisar as trans- dez e facilidade, há uma mudança sig-
formações que pode obter neles. Nesse nificativa: muda-se da confiança para
sentido, assim é dito: o controle, sob o discurso da ampla
transparência. No fundo, é uma soci-
O Panóptico funciona como edade da eficiência. Todo clique feito
uma espécie de laboratório do é salvo. Todo passo dado é passível de
poder. Graças a seus meca- rastreamento. Rastros digitais, como
nismos de observação, ganha pegadas no chão, ficam em todo lugar.
em eficácia e em capacidade de Nesse sentido, a possibilidade de “[...]
penetração no comportamento um protocolamento total da vida subs-
dos homens; um aumento de titui a confiança inteiramente pelo con-
saber vem se implantar em to- trole. No lugar do Big Brother entre o
das as frentes do poder, desco- Big Data” (HAN, 2018, p. 122).
brindo objetos que devem ser A sociedade da vigilância digital
conhecidos em todas as superfí- apresenta uma estrutura especial da-
cies onde este se exerça. (FOU- quela concepção panóptica. O Panóp-
CAULT, 1987, p. 228). tico benthaniano consiste em células
isoladas umas das outras. Os vigiados
não têm possibilidade de comunicação
Agora, o passo adiante estava dado. uns com os outros. As divisórias exis-
Do Panóptico “prisional” seguiu-se tentes não permitem que eles possam
para o Panóptico “digital”. Essa pas- ver uns aos outros, pois, ficam isolados
sagem foi só uma questão de tempo. em suas celas. Já os “habitantes livres”
E esse tempo não tardou para chegar. do Panóptico digital, em contrapartida,
O poder dos algoritmos tornou-se uma

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podem se manter conectados uns com tendem você de fato, mas existe
os outros em contínuos fluxos interati- poder nos números, sobretudo
vos. Não há isolamento espacial e co- nos grandes. (LANIER, 2018, p.
municativo, mas sim conectividade e 13).
hipercomunicação em ritmo frenético.
É essa interatividade intermitente que
Diferente do Panóptico “prisional”,
torna o controle total possível. Ela abas-
no panóptico digital dos algoritmos a
tece o Panóptico digital com todo tipo
observação e a vigilância ganham au-
de dados, ali lançados na intensidade
mento exponencial.
interativa. Não se quer dizer que a era
Todo esse universo digital é uma pro-
digital foi a exclusiva responsável por
messa de liberdade sem limites, con-
essa transição, mas, de certa maneira,
tudo não se podendo desconsiderar a
ela pode ser considerada um dos fato-
possibilidade de certo controle da vida
res bastante significativos para tal pas-
das pessoas. O fato é que esse universo
sagem, assim como se pode notar nos
digital, tal como a inteligência algorít-
dizeres de Jaron Lanier:
mica, abre um horizonte de novas con-
figurações da subjetividade, como se
Algo totalmente novo está abordará em seguida.
acontecendo. Nos últimos cinco
ou dez anos, quase todo mundo
começou a carregar consigo, 2. Inteligência algorítmica e subjeti-
o tempo todo, um aparelhi- vidades reconfiguradas
nho chamado smartphone, feito
sob medida para modificações Para Hannah Arendt, o mundo con-
de comportamento pelos algo- temporâneo caracteriza-se pela perda
ritmos. Muitos de nós tam- das experiências, afetivas e existenciais,
bém usam aparelhos chamados embora ela não chegasse a imaginar um
smart speakers (alto-falantes modo tecnológico de anulação do indi-
inteligentes) na bancada da co- víduo e de suas subjetividades. Em sua
zinha de casa ou no painel visão, na medida em que atos e pensa-
do carro. Estamos sendo ras- mentos se configuravam como um cál-
treados e avaliados constante- culo de consequências, uma espécie de
mente, e recebendo o tempo função cerebral, nos limites entre o pro-
todo um feedback artificial. [...] duzir e o fabricar, o humano foi lançado
Os algoritmos correlacionam o em “[...] um funcionamento puramente
que você faz com o que quase automático, [...] entorpecido e ‘tranqui-
todas as outras pessoas têm lizado’ de comportamento” (ARENDT,
feito. Os algoritmos não en- 2007, p. 402-403). Embora ela não te-

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nha vivenciado o mundo governado por e governados pelas tecnologias. Não se-
algoritmos, é possível extrair do seu ria o fim do indivíduo, nem mesmo sua
pensamento uma antecipação de um dessubjetivação, mas sim o nascimento
modo de vida automatizada em que os de outras subjetivações.
indivíduos podem estar imersos, sem É possível recordar aqui o Big Data
mesmo terem tal percepção. (“Grandes Dados”) e o Data Mining
A sociedade contemporânea, ainda (“Mineração de Dados”), comparando-
que se esforce para manter elementos os com o conceito de dispositivo de Mi-
estruturantes da vida como legitimi- chel Foucault. O Big Data é um sis-
dade, justiça, verdade e demais valores tema de coleta de dados em larga es-
dessa ordem, depara-se também com cala, com múltiplos conteúdos e sendo
um sistema organizador com outras ca- gerados em ritmo intenso estão a rei-
racterísticas e estratégias. Além de uma nar no universo sistêmico. O Data Mi-
ação política que transita pelas ideias ning constitui o processo de explorar
de Estado, representação dos interesses, grandes quantidades de dados à pro-
direitos e deveres, há uma expansiva cura de padrões consistentes. Como re-
governança da vida cotidiana, exercida gras de associação ou sequências tem-
por meio de máquinas e dispositivos de porais, para detectar relacionamentos
controle de subjetivações, que se vale sistemáticos entre variáveis, o “minera-
da combinação sistêmica de dados e de- dor” segue identificando novos subcon-
sejos dos indivíduos. juntos de dados. Ele é formado por um
A ação governante, agora, se desloca conjunto de ferramentas e técnicas que,
para o universo das tecnologias da in- através do uso de algoritmos de apren-
formação e da comunicação, estabele- dizagem ou classificação, baseados em
cendo mecanismos de poder e configu- redes de vasta capilaridade, são capazes
rando as relações interativas entre os de explorar um conjunto de dados, ex-
conectados. É a própria ideia de gover- traindo e evidenciando padrões nesses
nar que está em revisão. Assim, ela é dados coletados, para efeitos estatísti-
tida como a ação de condução das ações cos e cognitivos. Dentro da lógica de
dos outros e das coisas, fixando uma um processo eletivo, busca-se peneirar
dinâmica de cálculos baseados na ob- dados que interessam a determinada
servação dos fenômenos populacionais modelagem de comportamentos. Das
e dos fatos relacionados a tais eventos. massivas acumulações de dados, por-
Com o acesso a uma série de dados e tanto, começam a surgir informações
probabilidades regulares, são potencia- estatísticas oriundas das correlações de
lizadas políticas de otimização da capa- informações não selecionadas, não clas-
cidade de controle da vida, através de sificadas e não hierarquizadas, bastante
saídas e entradas nos processos geridos heterogêneas.

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Tais sistemas de dados são passíveis (FOUCAULT, 2008a, p. 23).


de utilização tanto para o desenvolvi-
mento de uma coletividade, quanto po- Percebe-se que os dispositivos utili-
dem ser instrumentos de manipulação. zados como estratégia podem servir aos
Isso permite recordar a noção de dispo- interesses dos governantes para a ma-
sitivo assinalada por Michel Foucault. nipulação de forças fazendo com que a
Para ele, o dispositivo tem o caráter es- subjetividade vá ganhando novos con-
tratégico e funcional, de modo que pro- tornos. Aparentemente sem qualquer
cura lidar com a tensão, tendo em vista intervenção, a objetividade e a veraci-
a condução de as relações de forças, seja dade dos resultados obtidos por meio
para bloqueá-las ou delas fazer uso. Em dos tais dispositivos comparando-os
entrevista de 1977, o filósofo fez o se- aos sistemas de coleta e seleção de da-
guinte comentário sobre o termo: dos parecem chegar ao seu grau má-
ximo, pois suas hipóteses são os pró-
Aquilo que procuro destacar prios dados em circulação. Trata-se de
com este nome é, primeira- algo semelhante ao diagrama foucaulti-
mente, um conjunto absoluta- ano, uma espécie de mapa das relações
mente heterogêneo que implica de forças, que procede por ligações pri-
discursos, instituições, estru- márias não localizáveis e passa a cada
turas arquitetônicas, decisões instante por todos os pontos. Nesse sen-
regulamentares, leis, medidas tido, a noção de diagrama começou a ter
administrativas, enunciados ci- grande relevância como um dispositivo
entíficos, proposições filosófi- gerador de novas ideias e, em sua in-
cas, morais e filantrópicas, em cursão pelo pensamento foucaultiano,
resumo: tanto o dito como o Gilles Deleuze assim passou a entendê-
não dito, eis os elementos do lo:
dispositivo. O dispositivo é a
rede que se estabelece entre es- O diagrama não é mais o ar-
tes elementos. [...] O disposi- quivo, auditivo ou visual, é
tivo tem uma função eminen- o mapa, a cartografia, coex-
temente estratégica. [...] Trata tensiva a todo o campo so-
de uma certa manipulação de cial. É uma máquina abstrata.
relações de força, de uma in- Definindo-se por meio de fun-
tervenção racional e combinada ções e matérias informes, ele ig-
das relações de força, seja para nora toda distinção de forma
desenvolvê-las em certa dire- entre um conteúdo e uma ex-
ção, seja para bloqueá-las, ou pressão, entre uma formação
para estabilizá-las, utilizá-las. discursiva e uma formação não

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discursiva. É uma máquina geral da razão, uma certa estru-


quase muda e cega, embora seja tura de pensamento a que não
ela que faça ver e falar. (DE- saberiam escapar os homens de
LEUZE, 2006, p. 44). uma época - grande legislação
escrita, definitivamente, por
mão anônima. (FOUCAULT,
O importante é pensar as relações
2008b, p. 214).
dessa “máquina abstrata” com o saber e
o poder. Michel Foucault desenvolveu,
por exemplo, a formação de regimes de Aqui é necessário um paralelo do
verdades e tecnologias de governo como controle da episteme e o controle dos
estratégias, a partir das quais se ins- dados estatísticos. Na sociedade da cul-
tituem relações saber-poder, para de- tura estatística, as informações obtidas
monstrar que o poder é uma rede que são o resultado de filtros e convenções
inclui a todos. Desse modo, ocorre uma advindas de debates e conflitos, po-
sujeição do indivíduo a uma imagem dendo todas elas serem questionadas
que não fora inteiramente concebida e pelas subjetividades envolvidas, especi-
construída por si, de modo que o su- almente, por todos aqueles que operam
jeito não é fruto de um processo de au- cálculos de governança. Essa estatís-
toconstituição, mas impelido a se tor- tica, porém, tem características diferen-
nar sujeito pela norma, estabelecida a tes das probabilidades algorítmicas sus-
partir de regimes de verdade definidos tentadas pelas grandes bases de dados.
por esquemas que encontra e que lhe A estatística tem por escopo a confir-
são propostos, sugeridos e, enfim, im- mação ou não de hipótese previamente
postos pela sociedade e pela cultura. suscitada. Já o algoritmo coletará e se-
Nesse sentido, aqui se afasta do eixo lecionará os dados sobre os quais pode
consciência-conhecimento-ciência da operar uma quantificação dos números
subjetividade para se ingressar no eixo em cifras de comparação, a partir de
prática discursiva-saber-ciência. (FOU- uma temática. Será realizada uma ava-
CAULT, 2008b, p. 205). Trata-se de uma liação positiva ou negativa da hipótese
nova episteme, assim delineada: proposta, a partir de convenções, por
vezes, controversas e com significações
Suspeitaremos, talvez, que a diferentes, segundo o ponto de vista de
episteme seja algo como uma quem as opera.
visão do mundo, uma fatia de A realidade adquire uma aparên-
história comum a todos os co- cia de esfera pública, embora podendo
nhecimentos e que imporia a ser controlada por interesses de ou-
cada um as mesmas normas e os tros, como governos e empresas cole-
mesmos postulados, um estágio tando quantidades massivas de dados

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não classificados. Esses dados podem menos são reais, ainda que es-
ser oriundos de redes sociais, de vei- tatísticos e indistintos. Mesmo
culadores de notícias, de sensores de em sua melhor forma, os al-
faces, sons e imagens, de endereços ele- goritmos da Bummer só con-
trônicos, geolocalizadores e autoriza- seguem calcular as chances de
ções de celulares, sistemas de cartões, uma pessoa agir de determi-
operações comerciais, pesquisas cien- nada maneira. Mas, em con-
tíficas, sistemas de segurança, entre junto, probabilidades individu-
outros. Esse volume astronômico de ais acabam se aproximando de
dados, todos armazenados eletronica- uma média de certeza quando
mente, podem ser inseridos por indi- falamos de um grande número
víduos, voluntariamente, em resposta de pessoas. (LANIER, 2018, p.
a alguma demanda, cedidos diante de 34).
determinada solicitação, ou, simples-
mente, mantidos em algum ambiente.
Nesse processo de agigantamento da
Ainda assim, não aparecem como sub-
inteligência algorítmica, pode se ope-
traídos sem autorização, pois aparen-
rar uma mudança no conceito de sub-
tam estarem dispersos e disponíveis em
jetividade. Tal subjetividade encon-
quaisquer lugares. As funções algorít-
tra, nessa nova forma de conhecimento,
micas têm a característica de produzi-
uma advertência inquietante, que pode
rem mecanismos de controle sem a ne-
ser aproximada das palavras de Michel
cessidade de acionar discursos e ideo-
Foucault:
logias como estratégias centrais de go-
verno.
Um acrônimo empregado por Jaron [...] sabemos que, no campo teó-
Lanier pode ser utilizado para ilustrar: rico moderno, o que se gosta
Bummer - Behaviors of User Modified, de inventar não são sistemas
and Made into an Empire for Rent, que demonstráveis, mas disciplinas
em português significa “Comportamen- cuja possibilidade se abre, cujo
tos de Usuários Modificados e Transfor- programa se delineia e cujo fu-
mados em um Império para Alugar”, turo e destino se confiam aos
tal como traduziu o referido autor (LA- outros. Ora, apenas acabado o
NIER, 2018, p.34). Explica ele o que é esboço de seu desenho, eis que
essa tal Bummer: elas desaparecem com seus au-
tores. (FOUCAULT, 2008b, p.
231).
[...] é uma máquina estatística
que vive nas nuvens da compu-
tação. Vale repetir: esses fenô- Embora o filósofo não esteja se refe-

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rindo diretamente ao algoritmo é pos- Foi em uma conferência realizada em


sível perceber nas suas palavras uma 2013, intitulada Algorithmic Govern-
transformação da subjetividade e um mentality and the End(s) of Critique, en-
embasamento de seus controladores tão, que apareceu a expressão “gover-
como pode ser aproximado do sistema namentabilidade algorítimica”.
algorítmico. A condução da ação dos indivíduos
De forma gradativa, a subjetividade por meio de funções, em torno dos Big
vai sofrendo significativas transforma- Data e Data Mining, pode ser deno-
ções, na medida em vai deixando de ser minada de “governamentalidade algo-
ativa e protagonista de suas vontades, rítmica”. Mas, ela se fundamenta no
de suas escolhas e de seus anseios, po- conceito de governamentalidade de Mi-
dendo se configurar em fornecedor de chel Foucault, notadamente no semi-
dados, que seguem armazenados e clas- nário “Segurança, Território, Popula-
sificados por centros artificiais de trata- ção” (1977-1978), acrescido e transfor-
mento estratégico e cálculos estatísticos mado pelas funções algorítmicas (FOU-
a serviço do poder e do mercado. A CAULT, 2008a.). Para Michel Foucault,
subjetividade vai experimentando no- ao escrever sobre O Sujeito e o Poder,
vas configurações, emergindo uma go- texto este compilado em apêndice pelos
vernança sobre os indivíduos, como se autores Hubert L. Dreyfus e Paul Rabi-
verá a seguir. now, o exercício do poder é

[...] um modo de ação sobre


3. Governança estratégica e controle as ações dos outros, quando as
da vida caracterizamos pelo "governo"
dos homens, uns pelos outros -
A expressão governança estratégica está no sentido mais extenso da pa-
ligada à ideia de “governamentabili- lavra, incluímos um elemento
dade algorítmica”. O termo “governa- importante: a liberdade. O po-
mentalidade algorítmica” foi cunhado, der só se exerce sobre "sujei-
entre os anos de 2011 e 2013, pela fi- tos livres", enquanto "livres"
lósofa do direito Antoinette Rouvroy. - entendendo-se por isso su-
No seu texto Technology, virtuality and jeitos individuais ou coleti-
utopia, ela anuncia uma “racionalidade vos que têm diante de si um
governamental” animada pela “compu- campo de possibilidade onde
tação autônoma” (ROUVROY, 2011, p. diversas condutas, diversas re-
121-123). Nesse texto, a autora ainda ações e diversos modos de com-
não utilizou o termo “algoritmo” atre- portamento podem acontecer.
lado à palavra “governamentalidade”. (DREYFUS; RABINOW, 1995,

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p. 244) A condução da vida e dos corpos


opera sobre uma determinada quanti-
Para ele, a adoção desse tipo de go- dade e qualidade de meios em que se
verno foi o modo astuto com que o identifica um acontecimento do qual
Estado moderno marcou sua presença possam ser extraídos dados regulares
por meio “[...] de um poder que se e suscetíveis de entrarem em jogos de
exerce mais sobre uma multiplicidade probabilidade.
do que sobre um território.” (FOU- Os dispositivos atuariam para deixar
CAULT, 2008a, p. 173). Aqui se coloca acontecer, não interferindo até certo ní-
uma indagação: qual lógica poderia es- vel e aproveitando-se da força dos acon-
tar por trás dessa estratégia? Uma al- tecimentos como forma de controlá-los
ternativa de resposta seria pensar que a e conduzi-los. Michel Foucault enten-
lógica dessa estratégia consiste em ope- dia o acontecimento como uma física
rar na realidade, fazendo os elementos imaterial, caracterizada pela própria
da realidade atuarem uns em relação relação, tal como se pode perceber em
aos outros por intermédio de uma série seus dizeres:
de análises, combinações e disposições
específicas. Trata-se mesmo de uma “fí- Certamente o acontecimento
sica do poder”, vale dizer: não e nem substância nem aci-
dente, nem qualidade nem pro-
[...] um poder que se pensa cesso; o acontecimento nao e
como ação física no elemento da ordem dos corpos. Entre-
da natureza e um poder que tanto, ele não e imaterial; e
se pensa como regulação que sempre no ambito da materia-
só pode se efetuar através de lidade que ele se efetiva, que
e apoiando-se na liberdade de e efeito; ele possui seu lugar e
cada um, creio que isso aí é consiste na relacao, coexisten-
uma coisa absolutamente fun- cia, dispersao, recorte, acumu-
damental. Não é uma ideolo- lacao, selecao de elementos ma-
gia, não é propriamente, não é teriais; nao e o ato nem a pro-
fundamentalmente, não é an- priedade de um corpo; produz-
tes de mais nada uma ideolo- se como efeito de e em uma dis-
gia. É primeiramente e antes persao material. Digamos que
de tudo uma tecnologia de po- a filosofia do acontecimento de-
der, é em todo caso nesse sen- veria avancar na direcao pa-
tido que podemos lê-lo. (FOU- radoxal, a primeira vista, de
CAULT, 2008a, p. 64). um materialismo do incorporal.
(FOUCAULT, 1996, p. 57-58).

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Esse modo de governar efetivado mica: quanto mais estradas forem aber-
por meio de algoritmos designa global- tas, maior será a livre circulação e, para-
mente certo tipo de racionalidade con- doxalmente, mais mecanismos regula-
troladora que repousa sobre “[...] a co- dores serão ativados. Certa normativi-
leta, agregação e análise automatizada dade surgirá a partir de operações cujas
de dados em quantidade massiva de funções são atualizadas pelos algorit-
modo a modelizar, antecipar e afetar, mos. O desvio ou a não operação nos
por antecipação, os comportamentos valores determinados, enquanto ano-
possíveis.” (ROUVROY; BERNS, 2015, malia, é configurada como “falha” ou
p. 42). Há uma descentralização do “erro”, alimentando as informações do
indivíduo, transformando o papel das algoritmo e redefinindo os fluxos tão
subjetivações comuns às formas dis- imediatamente quanto a “realidade” é
cursivas de ação política. Os sistemas lida pelas máquinas. Nesse sistema de
tecnológicos dispensam a tradicional controle e condução, as falhas ou erros
identificação dos indivíduos, com seus desaparecem no processo de reorgani-
nomes reais, cadastros de pessoas físi- zação dos dados que redefinem perfis e
cas, entre outras, para viabilizar circu- dirigem comportamentos.
lações e relações, embora isso não sig- Essa governança mantém a aparência
nifique que não sejam capazes de re- de estar sob a “liberdade” da plurali-
conhecerem os mais diversos desejos dade. O espaço público estaria garan-
de consumo. Desse modo, eles funci- tido pelo amplo acesso ao meio virtual
onam em um fluxo frenético, no qual e à conectividade, sem a necessidade
não se enclausuram indivíduos. No en- de debater sob quais interesses se en-
tanto, ao serem abertas as tantas ja- contra sua gestão. É um sistema que
nelas, verdadeiras vitrines de bens e busca evitar o imprevisível, sob a ga-
serviços, multiplicam-se os meios de rantia dessa “liberdade”, para cada um
consumo, sendo possível se chegar até ser plenamente quem de fato é. No en-
mesmo a uma certa manipulação de tanto, a sua maquinaria é engendrada
interesses e intenções dos indivíduos, para que o sujeito ceda espaço aos perfis
ainda que não se trate de um total con- que lhe são atribuídos de modo progra-
trole de consciências. Uma metáfora mado e alimentados por seus “traços”
do tráfego pelas estradas pode ser aqui depositados em suas entradas e saídas
suscitada. As estradas abertas permi- cotidianas nos sistemas tecnológicos de
tem que os indivíduos trafeguem livre- informação e comunicação. Ilustra bem
mente, mas isso não significa não pos- aqui a autora Shoshana Zuboff, no seu
sam estar sob alguma forma de mani- livro The age of surveillace capitalism -
pulação (DELEUZE, 1999, p. 5). Aqui the fight for a human future at the new
está o segredo da governança algorít- frontier of power, em que coloca o ques-

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tionamento se haverá indivíduos tra- 4. A ressignificação dos processos de


balhando por uma máquina inteligente subjetivação
ou indivíduos inteligentes ao redor de
uma máquina? (ZUBOFF, 2019, p. 10).
Ainda introdução diz a autora: “O reino A racionalidade governamental se nu-
digital está ultrapassando e redefinindo tre de dados objetivos, aparentemente
tudo o que é familiar, mesmo antes de insignificantes e sem a marca do su-
termos a chance de ponderar e deci- jeito. Criam-se modelos de comporta-
dir.” (ZUBOFF, 2019, p. 11). Tal ideia mento sem que o indivíduo perceba a
ainda segue salientada pela mesma au- condução de suas ações pelas funções
tora, quando ela assim diz: acionadas por meio dos algoritmos. E
quanto mais são utilizados dispositi-
vos tecnológicos, mais se potencializa
o controle das ações e ela produz efei-
tos sobre uma mais ampla gama de in-
Houve um tempo em que você divíduos e grupos. Aqui se entra no
pesquisava no Google, mas reino das chamadas máquinas assignifi-
agora o Google pesquisa você. cantes, ou seja, aquelas que são “[...]ca-
Anúncios do Google Home pazes de ‘ver’ esses estratos, ‘ouvi-los’,
mostram famílias amorosas que ‘cheirá-los’, registrá-los, ordená-los e
levam vidas ocupadas e compli- transcrevê-los, o que é impossível para
cadas, mas visivelmente alivia- os sentidos e a linguagem humana.”
das por voltar para casa e cair (LAZZARATO, 2014, p. 78). No fundo,
nos braços deste zelador onis- as semióticas assignificantes e essas má-
ciente e eficiente. (ZUBOFF, quinas operam da mesma maneira com
2019, p. 248) o mundo pré-verbal da subjetividade
humana, habitado por semióticas não
verbais, afetos, temporalidades, inten-
sidades, movimentos, velocidades, não
atribuíveis a um eu identitário, a um su-
Nesse ciberespaço coletor e selecio- jeito individuado, e, dessa maneira, di-
nar de dados, o sujeito está desafiado ficilmente, se tornam apreensíveis pela
a exercitar sua autonomia, diante do linguagem.
automatismo engendrado pelos novos Busca-se fazer com que os elemen-
sistemas tecnológicos. É aqui que o su- tos da realidade se relacionem uns com
jeito pode ir caindo em novas configu- os outros, não a partir da intervenção
rações como será apresentado na pró- sobre eles, mas pela condução de pro-
xima etapa. cessos de controle do ambiente. Os in-
divíduos passam a ser toda uma série

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de contingências e de dados de realida- de pouca intencionalidade no armaze-


des distintas e específicas. A multipli- namento, garantindo a objetividade de
cidade de dados possibilita uma maior suas informações. Permanecer no ano-
incidência da ação de gestão da vida so- nimato, aparentemente, leva os indiví-
bre os mínimos detalhes, sempre com duos a deixarem seus “traços” à dispo-
maior eficiência. Muito da eficiência sição da maquinaria algorítmica. Os in-
dos dispositivos está em operar com o divíduos têm seus desejos realizados e
desejo dos indivíduos, que aparentam passam a se identificar, com certa regu-
estarem realizando seus interesses. A laridade, aos fenômenos com os quais se
lógica maquinaria é a seguinte: como envolvem. Tem-se um conjunto de in-
os algoritmos facilitam e tornam os des- divíduos não mais marcados por um lu-
locamentos em direção a determinados gar, uma norma, uma identidade, mas
desejos viáveis, e até mesmo inevitáveis, caracterizados, cada um, como uma
a adesão “livre” dos indivíduos será a espécie de bioaplicativos, dispositivos
fonte principal da própria atualização prontos para a produção e receptação
da potência crescente dos dispositivos daqueles “traços” na rede global.
controladores da vida. A estratégia da Busca-se produzir uma política pre-
correlação de dados busca adaptar os ditiva, determinando decisões com base
desejos dos indivíduos às ofertas e às nos processos autômatos, eliminando
possibilidades inerentes à velocidade quase por completo uma característica
de circulação. Vai-se ao ato sem pas- fundamental da ação política, o risco
sar pela elaboração do desejo. Assim, de sua imprevisibilidade. E aqui se en-
ficam anuladas as etapas da troca de contra o componente bastante sedutor
opiniões e gostos motivadores da es- dos algoritmos, o de que está se cons-
colha. Os dados parecem produzir o truindo uma vida mais segura, estável e
benefício objetivo, dentro de condutas produtiva. O humano, na dimensão de
possíveis e efetivas, sem acionar as con- sua subjetividade, se tornaria parte do
dições espaciais, temporais, subjetivas mecanismo das máquinas e tecnologias
e significantes. Evitam-se as formas de de dados.
desvios subjetivos, encurtando a dis- A governança algorítmica opera
tância espaço-temporal entre estímulo como uma memória do futuro, por meio
e resposta-reflexo. de uma realidade aumentada pela per-
O caráter geral, massificado, sem sig- cepção do presente, através do uso de
nificação, faz com que os indivíduos dados sem qualquer relação e sem sig-
deixem os dados por aí, sem se importa- nificantes de pertencimento. No go-
rem com suas destinações. Será a hete- verno por algoritmos, o real e o possível
rogeneidade, a estrutura fragmentária e apresentam-se aos sujeitos de modo que
assignificante, que formará a aparência a eles cabe apenas se deixarem conduzir

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para os caminhos “naturais e corretos”, cação. Esse é um dilema que se apre-


aparentemente individualizados, por- senta, pois, na governança algorítmica,
que provêm do perfil do usuário, haja “[...] não se age, não se cria, modela-se.”
vista que é a própria leitura da reali- (PARRA, 2016). Ocorre um definha-
dade, objetivada e sem interferências mento, quando não a anulação mesmo,
subjetivas. Sua potência de criar uma das deliberações públicas e das refle-
realidade é tão grande quanto sua ca- xões plurais e diversificadas. O saber
pacidade de registrar os dados e formar que surge aparece como verdade real,
os perfis. Seus mecanismos suscitam imparcial e indubitável dos traços dei-
desejos e necessidades de consumo e de xados pelos indivíduos. As divergên-
posições políticas e ideológicas, despo- cias políticas, os dissensos coletivos, as
litizam mediante a anulação das subje- resistências e as contestações ficam siti-
tividades políticas, diminuindo as esfe- adas na invisibilidade e na operosidade
ras do debate, da diversidade e da esco- precária.
lha. Nas ressignificações das subjetivida-
O sujeito confessional, para quem des, de algum modo, há sempre pre-
“tudo deve ser dito”, é aquele que ativa sente riscos de controle e manipulação,
“[...] mecanismos de poder para cujo aos quais o cuidado de si e o conheci-
funcionamento o discurso [...] passou mento de si ainda podem ser suscita-
a ser essencial.” (FOUCAULT, 2011, p. dos como alternativas de resistência, tal
29). Nenhuma das formas de lidar com como se discutirá em seguida.
as relações de poder, em funcionamento
e com percursos próprios, deixa de se
encontrar nas estratégias de controle e
dominação. A governança algorítmica 5. O cuidado de si e o conhecimento de
acrescenta-se a esses processos já exis- si mesmo: resistência perante o con-
tentes e configura-se como um governo trole
de controle e dominação, sem deixar
que isso transpareça aos sujeitos que o Mas, Michel Foucault não se esquece de
alimentam com seus dados e desejos. propor alternativas para os processos
As aberturas propiciadas pela tecno- de rarefação da subjetividade pela dis-
logia massiva de dados possibilitam o ciplina e pelo controle. Para tanto, ele
acesso a informações e redes colabo- vai desbravar o que se poderia chamar
rativas, mas elas vêm acompanhadas de problemáticas caras à educação do
de fechamentos e controles, especial- sujeito, aquela que ultrapassam a disci-
mente na medida em que os algoritmos plina e a analítica do poder, os modos
são fabricados por grandes empresas e de subjetivação constrangedoras e as
monopólios dos sistemas de comuni- práticas de vigilância e punição. Nesse
sentido, consoante duas ideias centrais

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FOUCAULT

de Michel Foucault, é preciso pensar Mesmo estando presente em toda fi-


as relações entre sujeito e verdade, me- losofia clássica greco-romana, Michel
diadas pelas práticas de si. A primeira Foucault reconhece que a noção de cui-
delas diz respeito à relação entre sujeito dado de si (epiméleia heautoû) ficou rele-
e verdade, tomada a partir do conceito gada a uma noção marginal, pouco ex-
de cuidado de si em sua dimensão exis- plorada, “[...] para a qual a historiogra-
tencial. Essa dimensão coloca em cena fia da filosofia [...] não concedeu maior
verdade e conhecimento, sujeito e sa- importância.” (FOUCAULT, 2004b, p.
ber. A segunda se refere à relação entre 5). No entanto, a importância do con-
sujeito e verdade, a partir do conceito ceito é fundamental, acima de tudo no
de parresía. Essa dimensão leva a pro- tocante ao cerne daquilo que consti-
blematizar à questão da indissociabili- tui os modos de subjetivação na quali-
dade entre teoria e prática. dade mesma de atitude filosófica. Além
Quanto à primeira ideia central, Mi- disso, Michel Foucault indica que “[...]
chel Foucault se ocupou, pelo menos, a incitação a ocupar-se consigo mesmo
de duas grandes chaves de leitura para alcançou, durante o longo brilho do
chegar às discussões sobre as tais prá- pensamento helenístico e romano, uma
ticas de si: a modernidade no Ocidente extensão tão grande que se tornou [...]
(do século XVI ao XIX, com atenção es- um verdadeiro fenômeno cultural de
pecial às práticas cristãs) e a Antigui- conjunto.” (FOUCAULT, 2004b, p. 13).
dade greco-romana. Ao “complicar” Tal preceito ganha ainda importância,
o estudo das governamentalidades, ele na medida em que ele se constitui em
persegue o domínio das práticas de si, um momento histórico específico, no
mas, agora, sobre os textos clássicos, qual aflora o que se entende como “cul-
desde os últimos tempos antes era cristã tura de si”: uma cultura em que tanto se
até os primeiros séculos seguintes. Mais desenvolve e se opera o preceito do cui-
do que as “tecnologias do eu”, ganha dado consigo, quanto é também consti-
relevo a noção de “cuidado de si” e “co- tuída por ele. Michel Foucault é muito
nhecimento de si”, como possibilidades preciso na definição de cultura de si, e,
de manifestação do preceito ético da de um lado, no contexto greco-romano
constituição da existência. Aqui o su- clássico, também do quanto ela con-
jeito se autoconstitui, buscando ajudar- centra um conjunto de valores, regras,
se com essas práticas de si. No fundo, “campos de saber”, e, de outro, traz in-
ele pretende investigar os dois modos tricadas relações de força que tais ele-
de o sujeito voltar-se para si mesmo. mentos estabelecem entre si, ou seja, re-
Trata-se das noções de cuidado de si lações de hierarquia, coordenação, ex-
(epiméleia heautoû) e de conhecimento clusão, validação (FOUCAULT, 2004b,
de si (gnôthi seautón). p.220-222). Como “fenômeno cultu-

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ral”, o cuidado de si é uma espécie de de estar atento àquilo que se pensa se-
aguilhão a ser implantando “[...] na ria indissociável daquilo que se pratica
carne dos homens, cravado na sua exis- e que se exerce diante dos outros e di-
tência, e constitui um princípio de agi- ante do mundo. Por fim, o cuidado de
tação, um princípio de movimento, um si é marcado por um princípio de mo-
princípio de permanente inquietude vimento, que envolve deslocamento e
no curso da existência.” (FOUCAULT, ação. Ele designa um conjunto pre-
2004a, p. 11). ciso e austero de práticas, vale dizer,
Entretanto, para além de mero fenô- um conjunto de técnicas (tecnologias
meno, o cuidado de si expressa, sobre- do eu) que se exerce sobre si mesmo
maneira, um evento no pensamento. com o propósito de transformação, da
Como preceito básico de vida, o cui- modificação, da transfiguração de si.
dado de si refere-se, assim, a uma no- São práticas que sugerem um labor, ár-
ção bastante complexa, que diz respeito duo e contínuo, persistente e intermi-
a uma atitude, a uma forma de aten- nável, a partir dos quais o indivíduo se
ção e a um princípio de movimento em constrói, gradativamente, como sujeito.
termos de qualidade de transformação. Desse modo, tem-se todo um corpus de-
Por atitude, entende-se uma escolha da finindo formas de reflexão e maneiras
existência, que implica um modo espe- de ser que constituem uma espécie de
cífico de estar no mundo, de encará-lo fenômeno não somente na história das
e, igualmente, de enfrentá-lo. Ainda representações, nem somente na his-
que esteja falando do “si”, tal cuidado tória das noções teóricas, mas na pró-
é inseparável de uma atitude também pria história da subjetividade ou, até
diante do outro. Não há cuidado de si mesmo, na história das práticas da sub-
que não implique um outro. Aí se en- jetividade (FOUCAULT, 2004b, p. 15).
contra um dos pontos mais importantes A ênfase do cuidado de si (epimé-
dessa atividade consagrada a si mesmo: leia heautoû) está situada na exata me-
“[...] ela não constitui um exercício da dida de sua relação com o conheci-
solidão, mas sim uma verdadeira prá- mento de si (gnôthi seautón). Mais do
tica social.” (FOUCAULT, 1985, p. 57). que estar anelado ao cuidado de si, o
O cuidado de si pressupõe, ainda, conhecimento de si está a ele “subor-
como dito, uma forma de atenção e, dinado” (FOUCAULT, 2004b, p. 7).
como tal, uma forma particular de olhar É por meio do cuidado que o indiví-
para si mesmo. Trata-se de uma espécie duo mantém consigo mesmo que ele
de “conversão do olhar” (FOUCAULT, acede ao conhecimento sobre si e, por
2004b, p. 14). É ela que permite uma conseguinte, à própria transformação.
volta do exterior para o si e, com efeito, Não há, portanto, cuidado sem conhe-
para o próprio pensamento. A atitude cimento, como também não há conhe-

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cimento sem modificação do ser mesmo do conceito e ao que remete, quando


do sujeito. Importa destacar a relação se trata da relação entre sujeito e ver-
que se estabelece entre cuidado de si dade e, mais ainda, da problemática
(epiméleia heautoû) e conhecimento de do cuidado de si: “Um dos significa-
si (gnôthi seautón), porque ela põe em dos originais da palavra grega parresía
debate a problemática do sujeito (do é o ‘dizer tudo’, mas na verdade ela é
sujeito do conhecimento e do conheci- traduzida [...] por fala franca, liber-
mento do sujeito). dade da palavra.” (FOUCAULT, 2010,
Michel Foucault coloca a seguinte in- p. 42). A parresía refere-se a uma “qua-
dagação: “[...] por que, a despeito de lidade moral”, a uma “atitude moral”,
tudo, a noção de epiméleia heautoû (cui- vale dizer, em uma palavra: a um ethos
dado de si) foi desconsiderada no modo (FOUCAULT, 2004b, p. 450). Refere-
como o pensamento, a filosofia ociden- se também a um procedimento técnico,
tal, refez sua própria história?” (FOU- ou seja, a uma tékne. Dizer isso pres-
CAULT, 2004b, p. 15). supõe definir as bases sobre as quais
Agora, passa-se à segunda ideia cen- a parresía se sustentava, isto é, como
tral. É preciso aqui sublinhar o quanto uma pragmática do discurso que se co-
a discussão entre teoria e prática ga- locava, simultaneamente, como uma
nha, nos últimos textos de Michel Fou- virtude, um dever e uma técnica. A
cault, uma ênfase diferenciada, sobre- virtude e o dever estavam atrelados à
tudo a partir da noção de parresía. Mais posição daquele que exerce a parresía,
uma vez, defronta-se com as relações a saber, o parresiasta. Essa figura não
entre sujeito e verdade; neste caso, pos- se trata de um mero princípio de auto-
sível apenas porque, no jogo da auto- ridade, mas sim de uma posição parti-
constituição ética do sujeito, a parresía cular a ser ocupada por um diretor da
é marcada por uma palavra que se fa- existência: o mestre, o conselheiro ou o
zia viva, posto que o sujeito se produzia amigo: “[...] para que o discípulo possa
na precisa medida de sua enunciação. efetivamente receber o discurso verda-
A construção ética de si mesmo é in- deiro como convém, quando convém,
separável, pois, de uma pragmática do nas condições em que convém, é pre-
discurso, em estado constante de afir- ciso que este discurso seja pronunciado
mação, e inseparável de uma atitude de pelo mestre na forma geral da parresía.”
coragem: a parresía pressupõe, pois, a (FOUCAULT, 2004b, p. 450). Do discí-
coragem da verdade. O tema da par- pulo também se requer um ethos, a par-
resía assume considerável importância tir dos discursos verdadeiros: aquele do
nos estudos que Michel Foucault realiza silêncio, da escuta – entendido também
sobre os textos clássicos. Em todos, ele como “[...] exercícios de subjetivação.”
é bastante claro quanto à demarcação (FOUCAULT, 2004b, p. 450).

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Michel Foucault pergunta se a parre- dos os seus riscos e suas consequên-


sía seria, pois, uma “estratégia de per- cias. E a parresía diferencia-se, ainda,
suasão”, um discurso retórico, perfor- do ensinar, e, mais, do “ato pedagó-
mático ou, quem sabe, uma “maneira gico”, tal como é entendido nos tem-
de ensinar” (FOUCAULT, 2010, p. 52). pos modernos (FOUCAULT, 2004b, p.
Afinal, o que caracteriza o discurso ver- 69). Não se trata de uma prática de en-
dadeiro, nessa condição? Como tékne, sino ou da transmissão de saberes ou
de início, refere-se ao vínculo inarredá- aptidões. A verdade do parresiasta não
vel entre “[...] a verdade dita e o pen- se assenta sobre a ordem da instrução,
samento de quem a disse” (FOUCAULT, mas sim no propósito de modificar o
2011, p. 12). Contudo, ele vai mais ser mesmo do sujeito. Ela tem como ob-
além, para alcançar a isonomia entre jetivo, por meio da fala do verdadeiro
sujeito da enunciação e sujeito do enun- e do franco falar, a verdade mesma do
ciado (FOUCAULT, 2010, p. 62): “E o sujeito-discípulo: “[...] não posso ser
que autentica o fato de dizer-te a ver- chamado a alcançar uma certa verdade
dade é que, como sujeito de minha con- de mim mesmo a não ser por um ou-
duta, efetivamente sou, absoluta, inte- tro que me exorta e me arranca de uma
gral e totalmente idêntico ao sujeito de alienação primeira.” (GROS, 2004, p.
enunciação que eu sou ao dizer-te o que 156). A parresía distancia-se do ato pe-
te digo.” (FOUCAULT, 2004b, p. 492). dagógico também porquanto envolve
Desse modo, há um diferenciação ime- não a comodidade do saber, mas, antes,
diata da parresía em relação à retórica e o vigor da verdade com todas suas con-
aos discursos performáticos, nos quais sequências, ou seja, implica não a pre-
a verdade se concentra na maneira de visibilidade de enunciar aquilo a que
dizer, com vistas ao convencimento, à se sabe pelas vias de um conhecimento
persuasão e, ainda, na pressuposição exterior a si, mas o risco e o perigo em
de um embate hierárquico entre verda- seu extremo: “[...] os parresiastas são os
des em jogo. Para aquele que exerce que empreendem dizer a verdade a um
a retórica, a performance ou a persua- preço não determinado, que pode ir até
são, o que importa é fazer acreditar, e sua própria morte.” (FOUCAULT, 2010,
não apresentar a verdade em si mesma p. 56).
(FOUCAULT, 2010, p. 66-67). Por sua Cuidar de si e dizer a verdade cons-
vez, a parresía, porém, pertence a ou- tituem, enfim, artes do pensamento e
tra dimensão: ela se refere ao pacto, da experiência de alteridade. Todo o
ao contrato estabelecido do sujeito con- conjunto de noções e conceitos articu-
sigo mesmo, à forma pela qual o sujeito lados a esses dois grandes gestos de
se liga àquilo que enuncia, fazendo daí vida e pensamento - como os de tec-
valer sua prática de liberdade, em to- nologias do eu, práticas de si, escrita

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GOVERNO ALGORÍTMICO E CONEXÕES: NOVOS ASPECTOS DA SUBJETIVIDADE A PARTIR DE MICHEL
FOUCAULT

de si, entre tantos outros, podem suge- perante possíveis manipulações. O su-
rir outras formas de fazer educação, de jeito deixa de ser passivo perante as ma-
investigar e, sobretudo, de produzir a nipulações e se torna um agitador para
nós mesmos, acolhendo o fato de que recuperar sua individualidade. Como
há escolhas ético-políticas que podem se tem dito, “Sócrates é sempre, essen-
ser feitas todos os dias. Ao serem fei- cial e fundamentalmente, aquele que
tas essas escolhas, não se teme a emer- interpelava os jovens na rua e lhes di-
gência da verdade e a aderência a ela, zia: “É preciso que cuideis de vós mes-
enquanto algo que ocorre no espaço vi- mos.” (FOUCAULT, 2006, p. 11). É com
goroso criado entre o gesto assumido essa prática que ainda se pode manter
e a autotransformação em nós operada viva a esperança de uma sociedade li-
por meio de um poder de se afetar a si vre, justa e fraterna, afastando todas as
e por si mesmo. Há aí outro modo de formas de manipulação das massas ou
falar e viver o que se entende por subje- manobra dos seus indivíduos.
tividade: ambos guardam relação com Nesse sentido, são imprescindíveis
poder e saber, por certo, mas não se li- aliados do avanço tecnológico o cui-
mitam a essa subordinação, indo além dado de si e o conhecimento de si, haja
dela, justamente, porque se está além vista que a reflexão sobre essa maes-
de jogos de poder e saber. tria de si socrática é realizada, na ótica
Vale ressaltar que o “[...] cuidado de foucaultiana, na perspectiva da filosofia
si é uma espécie de aguilhão que deve helenística estóica e epicurista (DREY-
ser implantado na carne dos homens, FUS; RABINOW, 1995, p. 259-260),
cravado na sua existência[...]” (FOU- além de não desconsiderar a autonomia
CAULT, 2006, p. 11). É no cuidado do sujeito moderno cartesiano e kan-
de si mesmo, na valorização da pró- tiano, tal como se encontra na entre-
pria subjetividade, que a tentativa de vista compilada como apêndice da obra
dominação, disciplinar ou tecnológica, Michel Foucault, uma trajetória filosófica:
perde sua força, porquanto o conheci- para além do estruturalismo e da herme-
mento de si mesmo traz a possibilidade nêutica. (DREYFUS; RABINOW, 1995,
não só de se perceber perante o sistema, p. 276-278). O cuidado de si e o co-
mas também de identificar as diversas nhecimento de si configuram formas de
tentativas de manipulação das massas. manter viva a subjetividade e suas pos-
Por isso, afirma Michel Foucault, o cui- sibilidades de ações livres, ainda que
dado de si é “[...] um princípio de agi- o panóptico do governo dos algoritmos
tação, de um movimento, um princípio esteja rodeando-a por todos os lados. O
permanente de inquietude no curso da sujeito deixa de ser número, estatística,
existência.” (FOUCAULT, 2006, p. 11). probabilidade e se torna senhor de sua
Tal é uma possibilidade de resistência própria história. Por isso, mesmo pe-

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rante o governo de algoritmos, a polí- bilidade, agora, são aquelas que estão
tica não precisa morrer, pois é possível dispostas ao alcance de um toque digi-
agir, movimentar pela valorização da tal. São perceptíveis as aberturas pro-
individualidade através do cuidado de piciadas pela tecnologia massiva de da-
si. Assim, mais do que uma estratégia dos, viabilizando o acesso a informa-
de poder e saber, sobretudo, trata-se de ções e redes, mas, por trás dessa dis-
uma relação consigo e, nesse sentido, de ponibilidade, há uma lógica de filtros
maneira genuína, se pode falar de arte e controles, especialmente na medida
de si e de células de resistência subjeti- em que os algoritmos são fabricados por
vas a múltiplas formas disciplinadoras, grandes empresas e monopólios dos sis-
controladoras, as quais vão ganhando, temas de comunicação. Este é o dilema
nos tempos hodiernos, inclusive, con- crucial que se encontra na governança
figurações e reconfigurações manipula- algorítmica e seus impactos na subjeti-
doras ou alienantes, sejam elas reais ou vidade.
virtuais. Na governança algorítmica, quanto
mais estradas forem abertas, maior será
a livre circulação e, paradoxalmente,
mais mecanismos reguladores serão ati-
Conclusão vados. A regulação segue a partir de
operações cujas funções são atualiza-
A instalação de uma vida panóptica não das pelos algoritmos. O desvio ou a
é nova. A partir da concepção de Je- não operação nos padrões determina-
remy Bentham sobre um panóptico pri- dos, enquanto anomalia, é lida como er-
sional, essa ideia de vigilância total dos ros, alimentando as informações do al-
corpos individuais teve bastante reper- goritmo, que se encarrega da redefini-
cussão devido a Michel Foucault, para ção dos fluxos tão rapidamente quanto
quem a sociedade seria organizada em a própria “realidade” é capturada pelas
conformidade com os desejos manifes- máquinas. Nesse sistema de controle e
tados em um sistema de controle e re- condução, as falhas detectadas devem
gulação da vida individual, de modo desaparecer no processo de reorganiza-
que os sujeitos se comportassem da ma- ção dos dados que irão redefinir perfis e
neira desejada pelo poder controlador. comportamentos. Essa governança con-
O poder dos algoritmos, encontrados serva a aparência de estar sob a “de-
em sistemas de coleta e seleção de da- mocracia” da pluralidade. Assegura-se
dos, tornou-se uma realidade. No pa- pleno acesso ao meio virtual e à conecti-
nóptico digital, a confiança entre sujei- vidade, sem a necessidade de se debater
tos não perde apenas seu espaço, mas sob quais interesses se encontra sua ges-
também seu significado e seu sentido. tão. Trata-se de um sistema que busca
As informações merecedoras de credi-

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GOVERNO ALGORÍTMICO E CONEXÕES: NOVOS ASPECTOS DA SUBJETIVIDADE A PARTIR DE MICHEL
FOUCAULT

fazer crer que há contenção do imprevi- e no conhecimento de si como prática


sível, sob a garantia de “liberdade” para de uma maestria do eu, o sujeito deixa
cada um ser plenamente quem de fato de ser massa e se torna indivíduo no
é. grupo. Além disso, ele deixa o agru-
Nesse sentido, o sujeito pode seguir pamento e se converte em sujeito de
com uma participação ativa, conforme ação livre, direcionada até mesmo para
seus próprios dados vão sendo depo- o bem não só individual, como também
sitados em entradas e saídas cotidia- coletivo. Assumindo essas práticas de
nas nos sistemas tecnológicos de infor- si, mesmo com as transformações ope-
mação e comunicação. No curso da radas, esse sujeito ainda pode preser-
expansão dessa sistemática algorítmica, var sua subjetividade em face de siste-
de maneira gradativa, vão se operando mas tecnológicos, quando eles engen-
novas formas de subjetividade. Ela co- dram manipulações de sua própria in-
meça a passar por outras configurações dividualidade ou a sujeição dos seus di-
através de dados armazenados e clas- reitos. Mesmo experimentando trans-
sificados por centros artificiais de tra- formações nas interações com os siste-
tamento estratégico e cálculos estatísti- mas, esse sujeito, porque conserva as
cos, dos quais podem se valer o poder e práticas de si, será capaz de resistir, agi-
o mercado. tar e movimentar a vida com indepen-
No entanto, isso não significa neces- dência, não obstante os eventuais ma-
sariamente uma anulação dos sujeitos. quinismos circulantes nos sistemas tec-
Ao propor o cuidado de si e conheci- nológicos. Afinal, a subjetividade livre
mento de si como possibilidades de re- ainda pode ser preservada de possíveis
cuperação da própria subjetividade, a manipulações, tendo como alternativas
partir de Michel Foucault, fica ainda as práticas efetivas do cuidado de si e do
aberto um horizonte de esperança de conhecimento de si a serem exercitadas
resistências de indivíduos que não se por cada indivíduo no curso de sua pró-
deixam manobrar perante manipula- pria existência.
ções tecnológicas. No cuidado de si

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Recebido: 24/09/2020
Aprovado: 19/01/2021
Publicado: 31/01/2021

180 Revista de Filosofia Moderna e Contemporânea, Brasília, v.8, n.3, dez. 2020, p. 155-180
ISSN: 2317-9570
DOI: https://doi.org/10.26512/rfmc.v8i3.34292

As Redes Sociais e a Psicologia das Massas: A Internet como


Terreno e Veículo do Ódio e do Medo
[Social Networks and Mass Psychology: The Internet as a Terrain and Vehicle for Hatred
and Fear]

Cristian Arão*

Resumo: O mundo político foi tomado de sobressalto em meados da década passada


pela descoberta da influência de empresas de propaganda que teriam utilizado rastros
digitais dos eleitores para manipulá-los. Com o auxílio do Big Data e dos algoritmos,
grupos teriam conseguido hackear eleições ao redor do mundo, criando uma nova arma
de manipulação psicológica que constituiria uma ameaça à democracia. Este artigo,
entretanto, pretende lançar luz sobre outra perspectiva: muito embora os avanços
tecnológicos demandem análises específicas, mecanismos de controle social subjetivo
não são uma novidade. Dessa forma, as táticas usadas contemporaneamente não são
invenção de um modo novo de fazer política, são versões atualizadas de um sistema de
manipulação antigo. Se a democracia corre risco porque as pessoas estão sob a mira de
grupos que tentam influenciá-las sem que elas saibam, ela sempre esteve, pois sempre
que a opinião pública foi importante, houve sistemas articulados para manipulá-la.
Palavras-chave: Psicologia das Massas. Redes Sociais. Manipulação Social.

Abstract: The political world was taken aback in the middle of the past decade by the
discovery of the influence of advertising companies that would have used voters’ digital
tracks to manipulate them. With the help of Big Data and the algorithms, groups would
have been able to hack elections around the world, creating a new weapon of psycholo-
gical manipulation that would pose a threat to democracy. This article, however, intends
to shed light on another perspective: although technological advances require specific
analyzes, mechanisms of subjective social control are not new. Thus, the tactics used
today are not the invention of a new way of doing politics, they are updated versions of
an old manipulation system. If democracy is at risk because people are being targeted by
groups that try to influence them without their knowing it, it has always been, because
whenever public opinion was important, there were articulated systems to manipulate
it.
Keywords: Mass Psychology. Social Networks. Social Manipulation.

* Mestre em filosofia pela Universidade Federal da Bahia (UFBA). Atualmente realiza seu doutorado na mesma instituição, com
bolsa da CAPES. E-mail: cristian_arao@hotmail.com. ORCID: https://orcid.org/0000-0003-0042-4957.

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CRISTIAN ARÃO

Em meados da segunda década do sé- investigando o alcance, as limitações e


culo XXI uma nova preocupação surgiu a natureza da publicidade política au-
no mundo político: escândalos envol- xiliada pelo Big Data e pelos algoritmos.
vendo redes sociais e agências de publi-
cidade revelaram que diversas eleições
ao redor do mundo teriam sido influ-
enciadas por grupos que, com o auxílio Microtargeting e Cambridge Analytica
de empresas como Facebook, teriam ma-
nipulado os eleitores. Para muitos, a Alexander Nix, CEO da Cambridge
propaganda política foi longe demais Analytica, surge nesse cenário como um
ao se valer de uma ausência de regu- dos protagonistas responsáveis pela cri-
lamentação clara, para aproveitar-se de ação desse novo mundo. De acordo com
rastros digitais de internautas e criar ele, a sua empresa estaria na vanguarda
propagandas personalizadas para cada de uma revolução na propaganda que
pessoa com o intuito de influenciá-las tornaria a “publicidade tradicional” ob-
a nutrir simpatia ou antipatia por de- soleta. Isso porque, para ele, o seu
terminado candidato. Empresas como trabalho consiste em mudar comporta-
a Cambridge Analytica e pessoas como mentos e não simplesmente em criar
Steve Bannon e Alexander Nix seriam marcas e fornecer validação social. É
responsáveis pela criação de sistemas Brittany Kaiser, ex-funcionária da CA,
complexos que, envolvendo psicologia quem revela de forma pormenorizada
comportamental e uso desmesurado de a visão de mundo, o modus operandi e
dados organizados por físicos e progra- as ambições de Nix no livro Manipula-
madores, teriam alterado o rumo das dos (2020). Segundo ela, Nix gabava-se
eleições estadunidenses, o plebiscito do de ter atingido o estado da arte da pro-
Brexit e até mesmo ajudado a levar Bol- paganda política, que seria a invenção
sonaro ao poder no Brasil. de uma estrutura que tornaria possível
Em comum, esses três acontecimen- converter pessoas. Para isso, orientava-
tos possuem o fato de que os vencedo- se num método psicográfico desenvol-
res eram candidatos com pouca proba- vido no Behavioural Dynamics Insti-
bilidade de vitória, mas com o auxílio tute para captar e catalogar as nuances
dos feiticeiros da tecnologia, venceram das personalidades dos indivíduos e a
seus escrutínios. Dada a surpresa dos partir daí, com a modelagem de dados,
eventos, grande parte dos analistas e da criar modelos para prever e influenciar
imprensa mundial julgou tratar-se de o comportamento. Dessa forma, eles
uma nova era, na qual a política seria não seriam apenas uma agência de pu-
subalterna à tecnologia. No entanto, a blicidade, mas uma “empresa de comu-
situação exige uma análise mais detida, nicação psicologicamente astuta e com
precisão científica” (KAISER, 2020, p.

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AS REDES SOCIAIS E A PSICOLOGIA DAS MASSAS: A INTERNET COMO TERRENO E VEÍCULO DO ÓDIO E DO
MEDO

53). fazer o “microtargeting comportamen-


O acrônimo OCEAN é a base da psi- tal”, que é a propaganda direcionada
cologia empregada pela CA para a clas- ao tipo específico de personalidade. Na
sificação das pessoas. A partir de dados narrativa da própria Cambridge Analy-
coletados em lugares como históricos tica, após a captação e o refino dos da-
de compra, registro eleitoral, curtidas dos, é possível prever com a precisão
e testes de personalidade feitos no Fa- de 95% as escolhas de cada indivíduo
cebook, milhares de pontos de informa- (KAISER, 2020, p. 89).
ção são analisados e classificados no sis- Em sua autopropaganda a CA ven-
tema de pontuações Big Five. dia para seus clientes a capacidade de
manipular a população analisando os
A pontuação OCEAN surgiu a dados e traçando estratégias a partir de
partir da psicologia comporta- sua modelagem. Nesse cenário, o pa-
mental e social no âmbito aca- pel dos matemáticos e dos físicos é cru-
dêmico. A Cambridge usou esse cial. A necessidade de profissionais que
tipo de pontuação para definir soubessem criar modelos a partir de ex-
de que maneira a personalidade tensa quantidade de dados foi tamanha
das pessoas se constrói. Ao re- que Dominic Cummings (estrategista
alizar testes de personalidade da campanha “Vote leave” do Brexit)
e combinar pontos de dados, a chegou a afirmar que para alcançar su-
CA descobriu que era possível cesso na política era preciso “contratar
determinar em que grau um in- físicos e não experts ou comunicadores”
divíduo era "aberto a novas ex- (CUMMINGS Apud EMPOLI, 2020, p.
periências” (O, de "openness"), 142). O método amparado no Big Data
“metódico" (C, de "conscienti- consiste na análise de grande volume
ousness"), "extrovertido" (E, de de dados de diversas qualidades. Nesse
“extraversion”), “empático” (A, contexto, físicos, profissionais com ex-
de “agreeableness”) ou neurótico periências em lidar com uma enorme
(N, de “neuroticism") (KAISER, quantidade de dados e com sistemas
2020, p. 87-88). de múltiplas variáveis são peças chave
para esse tipo de trabalho.
Desse modo, os algoritmos e os mo-
De acordo com Kaiser, essa pontua- delos matemáticos feitos a partir da co-
ção serve como base para a segmenta- leta de dados permitiram que a propa-
ção das pessoas em grupos (32 os prin- ganda política pudesse ser personali-
cipais) que entrelaçam essas caracterís- zada. Aliando as características da per-
ticas. A pessoa, então, pode ser aberta e sonalidade da pessoa às informações so-
metódica, ou empática e neurótica e as- bre seus gostos e preferências políticas,
sim por diante. A partir daí é possível

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CRISTIAN ARÃO

cria-se uma peça publicitária específica. mos e o quanto eles podem, realmente,
Se uma pessoa é sensível às questões da nos controlar.
ecologia, por exemplo, ela passa a re-
ceber propagandas em que o candidato
em questão defende a agenda ecológica,
da mesma forma que recebe também O mito dos algoritmos
materiais em que o político rival soa
como alguém que não se importa com o Devido à ausência de transparência no
meio ambiente. funcionamento dos algoritmos que re-
A análise de grandes dados, portanto, gem os dados nas diversas localidades
surge como uma arma revolucionária da internet, existe uma preocupação
para a política contemporânea. De muito válida com a privacidade e tam-
acordo com Giuliano Da Empoli, em Os bém sobre como nossos dados pode-
engenheiros do caos (2020), o surgimento riam ser aplicados a uma perversa má-
do Big Data na política é comparável ao quina de manipulação social. Contudo,
advento do microscópio para as ciên- algumas pessoas não se convenceram
cias naturais (EMPOLI, 2020, p. 152). com a narrativa que atribuiu ares de
Com o uso correto, é possível, inclu- ficção científica a alguma coisa, onde
sive, silenciar facetas problemáticas de as pessoas são controladas pelas má-
um candidato e lançar luz sobre outras quinas. O matemático David Sumpter,
que o identifiquem com o eleitor alvo desconfiado das afirmações que mitolo-
da campanha publicitária. Com isso, o gizavam os números, resolveu investi-
político surge como algo mais que uma gar a história por trás de grupos como a
pessoa com uma proposta política; ele CA.
passa a ter um número enorme de fa- Utilizando um tutorial disponibili-
ces e a cada possível eleitor é oferecido zado pelo próprio Michal Kosinski (um
acesso somente às fisionomias que lhe dos responsáveis pelo método utilizado
agradam. pela Cambridge Analytica), criou um
São esses mesmos mecanismos que sistema para reproduzir a experiência
permitem também que recebamos pro- de classificação de personalidades. Du-
paganda personalizada de diversos ser- rante sua pesquisa, Sumpter percebeu
viços e produtos enquanto olhamos que o método funciona muito bem para
para páginas e aplicativos nas telas que descobrir a preferência política das pes-
usamos, e nos espantamos, muitas ve- soas sem a necessidade de informações
zes, com a capacidade dos anúncios de de “curtidas” sobre política. De acordo
saberem do que precisamos. Entre- com o modelo da CA é possível saber
tanto, é lícito questionar o quanto, de se alguém é republicano ou democrata
fato, somos apreendidos pelos algorit- mesmo se a pessoa não “curtiu” as pá-
ginas dos partidos ou de políticos como

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AS REDES SOCIAIS E A PSICOLOGIA DAS MASSAS: A INTERNET COMO TERRENO E VEÍCULO DO ÓDIO E DO
MEDO

Obama ou Bush. “Por exemplo, alguém cessário um grande número de “curti-


que curta Lady Gaga, Starbucks e mú- das”. Para que a predição funcione é
sica country se encaixa mais provavel- preciso um mínimo de cinquenta e para
mente como republicano, mas um fã de que seja acurado são necessárias cen-
Lady Gaga que também gosta de Ali- tenas. Ou seja, o modelo necessita de
cia Keys e Harry Potter se encaixa mais uma grande quantidade de dados para
provavelmente como um democrata” serem analisados, no entanto, existem
(SUMPTER, 2019, p. 54-55). diversas pessoas que não possuem o há-
No experimento de Sumpter essas bito de “curtir” páginas. Aliado a isso,
articulações de dados possibilitaram a podemos negritar também o fato de que
criação de um sistema que precisou em muitas pessoas “curtem” páginas que
85% a acurácia na classificação das pes- são contrárias às suas preferências para
soas. Tudo indica, então, que esse mé- se manterem atualizadas ou para pole-
todo é altamente eficiente na função de mizar.
desvelar preferências políticas a partir A terceira limitação encontrada diz
de “curtidas” em páginas que a priori respeito à classificação das personali-
não teriam relação com o mundo po- dades para além da básica preferência
lítico. Contudo, analisando mais de política. No seu experimento, Sump-
perto a questão, o matemático desco- ter testou o sistema OCEAN e concluiu
briu três limitações no sistema de pre- que o modelo não é tão preciso quanto
dição da Cambridge Analytica. foi vendido. Ainda que a tentativa de
Primeiramente, embora a capacidade classificação na categoria O (abertura
de prever a orientação política através à experiência) tenha se mostrado ra-
de “curtidas” em ícones da cultura pop zoavelmente eficiente (acertando dois
possa parecer muito interessante, des- terços das vezes) as demais categorias
cobrir a preferência partidária das pes- mostraram uma taxa de eficiência leve-
soas não é muito útil, visto que são pes- mente maior do que a aleatoriedade.
soas que já votariam no partido. Ade- Tal conclusão alcançada por Sumpter
mais, creio não ser necessário um com- foi endossada, inclusive, por Aleksandr
plexo algoritmo para descobrir a fili- Kogan. Kogan é o pesquisador de Cam-
ação ideológica de alguém, sobretudo bridge e criador do sistema aplicado
hoje, quando as pessoas fazem ques- pela Cambridge Analytica. Segundo
tão de demonstrar quais são seus va- ele, “Nix [CEO da CA] está tentando
lores políticos, compartilhando, inclu- promover o algoritmo de personalidade
sive, como legenda em seus avatares nas porque ele tem um grande incentivo fi-
redes sociais. nanceiro para contar uma história sobre
Em segundo lugar, para o funciona- como a Cambridge Analytica tem uma
mento eficiente do sistema faz-se ne- arma secreta” (KOGAN apud SUMP-

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TER, 2019, p. 57). CA, embora haja muita controvérsia em


No entanto, essa perspectiva aqui torno da questão. O mito dos algorit-
apresentada, desenvolvida por Sumpter mos é ainda endossado pelo fato de não
e corroborada por Kogan, constitui-se conhecermos o funcionamento do sis-
como uma espécie de contranarrativa, tema usado por vários grupos que se
visto que em muitas mídias afirmou- apropriam dos nossos rastros para nos
se a existência de um poder descomu- oferecer conexões com pessoas, servi-
nal de influência da CA. De acordo com ços, produtos, etc. Contudo, nem todos
Sumpter e Kogan, essa narrativa é antes os responsáveis pela formulação dos al-
de mais nada uma autopropaganda da goritmos que nos guiam na internet de-
própria Cambridge Analytica e de pes- fendem que eles são tão eficientes.
soas que se julgam mais importantes do
que realmente são.
Um dos personagens responsáveis
pela construção da hipérbole é Chris- Hipostasiação da inteligência
topher Wylie, um jovem programador
que alegou (em tom de mea culpa) ter Glenn McDonald, do Spotify, é um dos
criado a arma da guerra psicológica de poucos que admitem que os sistemas
Steve Bannon. Em diversas oportuni- de compreensão das pessoas não são
dades, Wylie discorreu sobre como ele tão acurados quanto aparentam. Se-
foi uma das principais mentes por trás gundo ele, o trabalho está longe de ser
dos algoritmos que teriam dado a vitó- somente “ciência pura” ou realmente
ria a Donald Trump. Essas histórias, no automatizado; o papel do humano aí é
entanto, surpreenderam pessoas como extremamente importante nas diversas
Britanny Kaiser (braço direito de Ale- diretivas do processo. Glenn admite in-
xander Nix durante muito tempo). De clusive que é muito difícil captar como
acordo com ela, ele nunca teve a im- a pessoa se conecta à música e, por isso,
portância que propagandeou; seria na muitas vezes as sugestões de playlists
verdade um funcionário comum e não não são satisfatórias. É muito comum
um dos fundadores e personagens cen- ficarmos espantados com os anúncios
trais da Cambridge Analytica e, inclu- de produtos, ou vídeos que eram jus-
sive, não trabalhava mais na empresa tamente o que queríamos ou precisáva-
durante as campanhas de Trump e do mos, entretanto, não damos muita aten-
Brexit. ção à enorme quantidade de propagan-
Portanto, percebe-se que a narrativa das e sugestões que são completamente
de Alexander Nix, bem como a de Ch- avessas ao que gostaríamos.
ristopher Wylie, atribui uma enorme Isso demonstra que os modelos mate-
inteligência aos algoritmos usados pela máticos estão longe de fazer todo o tra-
balho sozinhos, ou de constituir um sis-

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tema complexo o suficiente para captar putador Deep Blue da IBM vencer uma
todas as nossas particularidades. Não partida de xadrez contra o campeão
há nem no horizonte ainda a possibili- mundial Garry Kasparov. Contudo,
dade de que as máquinas possam captar esse não foi um marco significativo para
nossa personalidade sem os constantes o desenvolvimento da tecnologia de IA.
ajustes de trabalhadores, que além de O tipo de programação utilizado no
programadores (que executam a parte Deep Blue era uma técnica que funcio-
“braçal” do serviço) são também ex- nava “de cima para baixo”; isso quer di-
perts em comportamento. Esses especi- zer que os programadores alimentavam
alistas são a mente por trás dos algorit- a máquina com as informações sobre os
mos, eles que realizam a interpretação movimentos, as jogadas, etc. Nesse caso
e as combinações dos dados, são, con- específico o algoritmo foi munido com
forme o epíteto requisitado por Glenn 700.000 partidas dos melhores jogado-
McDonald, os “alquimistas dos dados”. res de xadrez. A partir daí, a máquina
Portanto, a máquina de influência con- faz cada jogada considerando todos os
temporânea não é regida por sistemas possíveis movimentos do seu adversá-
completamente automáticos, ao invés rio. Não é de espantar que nesse con-
disso, funciona através de trabalho hu- texto uma máquina dificilmente será
mano razoavelmente automatizado. surpreendida por um humano. Na ver-
A ideia de uma inteligência artificial dade, é possível, inclusive, que a má-
autônoma que consiga se equiparar à quina calcule todas as probabilidades
humana espanta e encanta a humani- tornando-se uma jogadora invencível.
dade há muito tempo, ao passo que Uma máquina suficientemente pode-
serve de inspiração para escritores de rosa pode computar todas as possibi-
ficção científica e fonte de renda e ob- lidades e tornar impossível sua supera-
jeto de trabalho de muitos cientistas. ção.
Entretanto, tudo indica que os softwa- Porém, o problema desse modo de
res utilizados pelas empresas com o in- programação é que ele só funciona
tuito de classificação da personalidade de maneira eficiente num universo
não funcionam sem constante interação onde todas as variáveis são conhecidas.
humana. Cabe então analisar em que Qualquer condição desconhecida pode
patamar está a atual tecnologia de inte- fazer com que o software não saiba o
ligência artificial para explicar por que que fazer. Por esse motivo, ainda que
os algoritmos de controle social não po- a máquina tenha vencido o homem, os
dem funcionar por conta própria. estudos acerca da inteligência artificial
Ao final do século passado, em 1997, não eram promissores entre o final do
os estudos sobre inteligência artificial século passado e o começo deste. Foi
ganharam grande projeção após o com- preciso, portanto, reformular a concep-

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ção da IA e para isso a estatística serviu guem planejar o futuro, mesmo que em
como base para os algoritmos contem- curto prazo” (SUMPTER, 2019, p. 240).
porâneos que executam programação Ou seja, por mais que os softwares sejam
“de baixo para cima”. No lugar de ensi- capazes de, de certa forma, se autopro-
nar a máquina a jogar, as novas tecno- gramar, ainda não conseguem ir muito
logias permitem criar mecanismos para além do que é imediato na reação às no-
a máquina aprender a jogar sozinha. vas variáveis.
Com essas novas técnicas, o software, Portanto, ainda que os donos das
através do método tentativa e erro, grandes empresas de tecnologia defen-
aprende e aprimora suas formas de su- dam que as IAs e os algoritmos nos
perar os desafios. Desse modo é possí- aproximam de uma realidade seme-
vel que a IA opere de forma satisfató- lhante a uma narrativa de ficção cien-
ria num ambiente novo, desconhecido. tífica, parece que ainda estamos muito
Essa nova configuração tornou possível, distantes de algo próximo a uma ver-
por exemplo, que as máquinas come- dadeira inteligência artificial. David
çassem a jogar videogames. Por irônico Sumpter, após concluir suas pesqui-
que pareça, é muito mais complicado sas acerca do controle social feito pe-
para um computador operar um jogo los algoritmos e pela inteligência arti-
eletrônico do que um de tabuleiro. Isso ficial, defende que o poder de influên-
acontece porque nos jogos de tabuleiro cia da tecnologia é muito menor do que
como xadrez, as variáveis, quantas se- normalmente se imagina. Em Domina-
jam, são conhecidas de antemão, o que dos pelos números, argumenta que so-
permite computar todas as probabili- mos dominados não pelos algoritmos,
dades daquele universo fechado. Entre- mas por uma espécie de fetichismo dos
tanto, nos jogos de computador, a má- números. Justamente por não conhe-
quina precisa aprender os padrões que cermos a fundo o sistema de funcio-
os jogos possuem e depois de muitas namento das tecnologias contemporâ-
horas de jogo, executar os movimentos neas, somos tentados a enxergar po-
que a permitam vencer. Em jogos com deres quase sobrenaturais em algo que
padrões mais previsíveis, o desempe- não é nada mais do que produto do tra-
nho das IAs é melhor, mas quando são balho humano.
confrontadas com uma maior variação Da hipérbole autopropagandística da
nos padrões, podem não conseguir al- Cambridge Analytica às palestras sen-
cançar o mesmo nível de um humano. sacionalistas acerca da inteligência arti-
A dificuldade das máquinas reside ficial de Elon Musk, todos possuem em
no fato de que elas não conseguem tra- comum o fato de que afirmar que os al-
çar estratégias que demandem paciên- goritmos são extremamente poderosos
cia e planejamento. “Elas não conse- é ver a si mesmo como alguém extre-

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mamente poderoso, e essa publicidade nal do que o termo "inteligência


ajuda a desenvolver essa forma mística artificial" pode dar a entender.
de encarar a tecnologia. Quando analisei os algoritmos
Em seu livro, Sumpter apresenta di- que tentam nos classificar, des-
versos exemplos de como a capacidade cobri que eram representações
de muitas técnicas foi superdimensio- estatísticas de mais ou menos as
nada; no primeiro capítulo ele relata mesmas coisas que já sabemos
uma investigação que foi feita para des- sobre nós mesmos. Quando
cobrir a identidade do artista Banksy. analisei os algoritmos que ten-
Utilizando mapas de calor e comple- taram nos influenciar, descobri
xos sistemas que computaram enormes que eles estavam explorando
quantidades de dados, os pesquisado- alguns aspectos muito simples
res alegaram ter descoberto quem se- de nosso comportamento para
ria Banksy. Contudo, a conclusão que decidir quais informações de
eles chegaram foi a mesma que o jornal busca nos mostrar e o que ten-
Daily Mail havia chegado oito anos an- tar nos vender. Redes neu-
tes sem todos os artefatos tecnológicos. rais decifraram alguns jogos,
A novidade na narrativa é que a infor- mas não conseguimos enxergar
mação dali em diante adquirira o status ainda um caminho até o topo
de verdade por ter sido “provada”. da próxima montanha (SUMP-
Essa forma de perceber a tecnologia TER, 2019, p. 260).
e seus frutos diz muito a respeito da
nossa condição na era tecnológica. A
tecnologia funciona como uma espécie Isto posto, visto que a tecnologia pa-
de lugar epistemologicamente privile- rece não estar tão evoluída ao ponto de
giado onde reina a certeza e a precisão. constituir um maquinário de lavagem
O mundo humano, por outro lado, per- cerebral, parece que os grupos como a
mitiria interferência de diversas ques- CA podem não ter interferido no pro-
tões que debilitariam o conhecimento. cesso democrático. Sumpter defende
No entanto, Sumpter argumenta que que ainda não existem técnicas efici-
não há esse universo virtual imune às entes de manipulação social alicerçada
influências humanas e que as ferramen- na internet porque os algoritmos não
tas tecnológicas contemporâneas não conseguiriam mapear e influenciar os
são tão autônomas e precisas. indivíduos de maneira eficaz. Porém,
seu argumento só é válido para uma
perspectiva onde o humano é entendido
A verdade por trás dos algo- como um sujeito plenamente racional
ritmos atuais é frequentemente e com pensamentos genuínos e origi-
muito mais simples e mais ba- nais. De acordo com ele, as fake news,

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o ódio expresso em redes como o Twit- parcela mental não consciente, foi o pri-
ter são um problema, mas não são nada meiro a sistematizar o problema com o
mais do que um reflexo de como as pes- devido rigor. É com base nesse conceito
soas “se sentem genuinamente” (SUMP- que a psicanálise funciona como uma
TER, 2020, p. 190). Contudo, partindo psicologia profunda comprometida em
da ideia de que os seres humanos res- investigar e interpretar os fenômenos
pondem à influência da sociedade e são que ocorrem além do que é conhecido
constituídos por outras dimensões que imediatamente pelo indivíduo. Trata-
não a racionalidade, percebe-se que há se, portanto, de compreender o que re-
muito pouco de genuíno nas preferên- almente move o ser humano, o que está
cias do indivíduo. por trás de cada ação e pensamento.
A teoria psicanalítica questiona coi-
sas que podem ser tomadas como ób-
vias, mas que se revelam muito pro-
O inconsciente e o sujeito contempo- fundas. Parece não ser possível, por
râneo exemplo, questionar afirmações como
“eu penso,” “eu quero” ou “eu sinto”.
O nascimento da filosofia moderna é, Entretanto, experiências com hipnose
em larga medida, marcado pela noção mostram que ideias e sentimentos to-
de sujeito plenamente autônomo e ra- mados como originais podem ter sido
cional; tal ideia trabalhada por Des- introduzidos por outra pessoa. Erich
cartes adquire importância de pilar de Fromm, em Medo à liberdade (1981), re-
todo pensamento moderno ocidental. lata um caso desse tipo e conclui afir-
Muito embora houvesse oposição por mando que:
parte de diversos filósofos modernos a
essa tese, é somente no século XIX que
o movimento epistemológico de crí- Podemos ter pensamentos, sen-
tica a essa noção de sujeito é feito de timentos, desejos e até im-
forma mais contundente, constituindo- pressões sensoriais, que sen-
se como uma das bases da filosofia con- timos subjetivamente como
temporânea. sendo nossos, e que no en-
Freud é um desses autores que refor- tanto, embora os experimen-
mulam o conceito de sujeito. Com a in- temos, foram-nos inculcados
trodução do problema do inconsciente, por alguém de fora, são basi-
defende que a maioria dos fenômenos camente estranhos a nós, e não
que ocorrem em nossa mente não é co- são o que pensamos, sentimos
nhecida. Ainda que não tenha sido etc (FROMM, 1981, p. 153).
o primeiro na história do pensamento
ocidental a postular a existência de uma Ainda sobre isso, Fromm afirma tam-

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bém que esses pensamentos não origi- censura não se mantém simplesmente
nais não são exclusivos do estado hip- escondido, mas reprimido.
nótico. Na verdade, os “atos mentais Nas Cinco lições de psicanálise (2006),
genuínos ou autóctones são exceções” para ilustrar o processo de censura que
(FROMM, 1981, p. 154). Desde Plo- cria o inconsciente, Freud narra uma
tino (e possivelmente desde antes dele) alegoria onde uma pessoa é expulsa e
há especulações sobre a existência de trancada do lado de fora de um audi-
algo inconsciente, todavia a história do tório. Nessa narrativa, o sujeito banido
pensamento ocidental foi marcada pelo termina por se esforçar em retornar à
paradigma do sujeito consciente. Não sala apesar da expulsão. O significado
por acaso, houve (e há) muita resis- da metáfora é a ideia de que o repri-
tência à ideia de que exista uma par- mido tende a querer retornar à cons-
cela da mente que, embora desconhe- ciência. Portanto, tudo o que foi guar-
cida, seja responsável por muitos de dado não permanece imóvel e mantém-
nossos pensamentos, desejos e ações. se à espreita, esperando oportunidade
De acordo com Freud, a parte consci- para emergir.
ente e racional (Eu) é tão pequena que
“não é nem mesmo senhor da sua pró-
pria casa” (FREUD, 2014, p. 52). Utili-
zando a imagem do iceberg como alego-
ria, explica que a consciência humana Psicologia das massas
é como a ponta da montanha de gelo
que tem quase sua totalidade imersa.
Ou seja, somos constituídos muito mais Muito embora existam críticas que acu-
pelo inconsciente do que pelo sistema sem a psicanálise de ser uma teoria que
consciente. se ocupa com o indivíduo isolado, a te-
Existe, entretanto, uma barreira que oria freudiana nunca tratou do homem
separa o sistema inconsciente do cons- como apartado do seu meio social. O
ciente e esse obstáculo é a censura. sujeito para Freud é, em larga medida,
Tudo aquilo que não foi aprovado no um resultado das influências que lhe
teste da censura acumula-se no incons- são inconscientes. Partindo de uma pre-
ciente; todos os traumas, desejos julga- missa diferente da narrativa que afirma
dos como impróprios e tudo mais que que o ser humano surge solitário e de-
seja contrário ao projeto racional fica pois constitui sociedade, defende que
reprimido. A descoberta do sistema originalmente o homem é um animal
inconsciente permitiu não só entender de bando. Isso quer dizer que ele não
que existem conteúdos escondidos, mas nasceu isolado e se associou a outros,
compreender que o que foi contido pela mas ele sempre esteve num contexto
social e mais especificamente agrupado

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em uma horda primordial.1 horda, o indivíduo deixa de ser ele


Em 1921 com A psicologia das massas mesmo e torna-se algo maior. Ele se
e análise do Eu (2011), Freud defende sente forte e poderoso, porém esse sen-
que as massas são, de certa forma, uma timento de poder o faz sentir que di-
reencarnação dessa horda primeva. Di- versas barreiras de censura que cerca-
alogando com os psicólogos sociais do vam o inconsciente e que outrora exis-
seu tempo como Le Bon, MacDougall e tiam já não são mais necessárias. Dessa
Trotter, oferece uma interpretação so- forma, fazer parte da massa é tornar-se
bre a origem e o funcionamento das a massa, de modo que o sentimento de
massas psicológicas. Algumas décadas responsabilidade submerge.
depois, em 1954, Adorno publica Teoria
freudiana e o padrão da propaganda fas-
Basta-nos dizer que na massa o
cista2 , onde disseca esse texto de Freud
indivíduo está sujeito a condi-
e confirma sua relevância, afirmando
ções que lhe permitem se livrar
que a análise freudiana da psicologia
das repressões dos seus impul-
das massas apresentaria ferramentas
sos inconscientes. As caracte-
para compreender o fenômeno do fas-
rísticas aparentemente novas,
cismo.
que ele então apresenta, são jus-
De acordo com Freud, os participan-
tamente as manifestações desse
tes da massa psicológica partilham uma
inconsciente, no qual se acha
alma coletiva, uma espécie de mente
contido em predisposição, tudo
grupal que homogeneíza os indivíduos
de mal da alma humana. Não
e tem o poder de transformá-los em
é difícil compreender o esvae-
uma coisa diferente do que eles pare-
cer da consciência ou do senti-
ciam ser quando em outro contexto.
mento de responsabilidade nes-
Na perspectiva freudiana a massa tem
tas circunstâncias. Há muito
a capacidade de retirar a individuali-
afirmamos que o cerne da cha-
dade das pessoas, embora o indivíduo
mada consciência moral con-
se julgue completamente independente
siste no “medo social” (FREUD,
e autônomo. Na massa, as pessoas ten-
2011, p. 21).
dem a agir e pensar de forma seme-
lhante, deixando de lado suas idiossin-
crasias que constituem sua personali- Dentro da massa a pessoa sente-se
dade. segura para deixar emergir seus demô-
De acordo com ele, ao se perder na nios que em outra situação permane-

1 Freud, inspirado por Darwin, afirma que a forma original da organização social da humanidade é, assim como no caso de muitos
mamíferos, uma horda comandada por um macho forte que subordinava as fêmeas e os outros machos.
2 No Brasil esse texto integra a obra Ensaios sobre psicologia social e psicanálise (2015).

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ciam escondidos pela censura. Nesse seios do inconsciente serve de referên-


contexto não há vergonha em admitir cia.
o gozo com a violência, por exemplo.
Agora, isso que Freud chamou de mal
da alma humana é louvado e motivo de Quem quiser influir sobre ela [a
orgulho. Portanto, percebe-se que nessa massa], não necessita medir lo-
conjuntura existe uma espécie de elogio gicamente os argumentos; deve
inconsciente à barbárie, visto que tudo pintar com as imagens mais for-
aquilo que foi reprimido ao longo do tes, exagerar e sempre repetir
processo civilizatório surge como pa- a mesma coisa. Como a massa
drão de ação e pensamento. não tem dúvida quanto ao que é
Junto com o muro do recalque, tam- verdadeiro ou falso, e tem cons-
bém desaba o senso crítico que permite ciência da sua enorme força, ela
analisar e ponderar as ideias. O indi- é, ao mesmo tempo, intolerante
víduo torna-se, assim, mais facilmente e crente na autoridade. Ela res-
condutível. Através da sugestão e do peita a força, e deixa-se influ-
contágio, a pessoa torna-se uma espé- enciar apenas moderadamente
cie de autômato, programável como pela bondade, que para ela é
alguém em estado hipnótico. Dessa uma espécie de fraqueza. O
forma, segundo Freud, o ato de per- que ela exige de seus heróis é
tencer a uma massa ocasiona um efeito fortaleza, até mesmo violência.
tão potente na psique que se assemelha Quer ser dominada e oprimida,
ao estado de completa disponibilidade quer temer seus senhores. No
à sugestão experienciado pelas pessoas fundo inteiramente conserva-
em transe hipnótico. dora, tem profunda aversão a
Com o déficit na capacidade de auto- todos os progressos e inovações,
determinação, surge também a necessi- e ilimitada reverência pela tra-
dade da busca de uma autoridade que dição (FREUD, 2011, p. 27).
seja responsável pela condução. Dessa
autoridade externa, entretanto, não é
esperado nenhum tipo de convenci-
mento racional, baseado em argumen- Percebe-se, portanto, que a massa
tos e fundamentado na realidade. Não é tem o poder de aflorar toda a crueldade
necessário que nada seja provado, basta contida, transformando as pessoas em
haver convicção. Como a massa repre- suas piores versões. Tem a capacidade
senta o avesso (isto é, o que estava por também de cultivar o medo à liberdade
dentro), o inconsciente assume a super- que leva as pessoas a procurarem líde-
fície e quem representar melhor os an- res que as dominem.

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CRISTIAN ARÃO

Liderança e o ideal da massa


No princípio da história hu-
mana ele [o líder] era o super-
De acordo com Freud, o líder ocupa
homem, que Nietzsche3 aguar-
um papel fundamental para a criação
dava apenas para o futuro.
e manutenção das massas, pois é nele
Ainda hoje os indivíduos da
que estão os referenciais do grupo. En-
massa carecem da ilusão de se-
tretanto, ele não é o responsável pela
rem amados igualmente e justa-
criação das massas, ao invés disso, ele
mente pelo líder, mas este não
responde aos anseios inconscientes das
precisa amar ninguém mais, é-
pessoas. Deve, portanto, moldar-se de
lhe facultada ser de natureza
acordo com as circunstâncias para que
senhorial, absolutamente nar-
possa servir de ideal para a massa que
cisista, mas seguro de si e in-
pretende influenciar. Para tal, deve
dependente (FREUD, 2011, p.
buscar os sentimentos censurados e
86).
colocá-los para fora com o intuito de
fazer com que as pessoas o reconhe-
çam como representante daquilo que Sendo assim, o líder tem de pare-
está guardado nelas mesmas. cer poderoso e dominador, como um
A importância do líder para a forma- super-humano. Entretanto, não basta
ção da massa é tão antiga, para Freud, transparecer força e altivez; ele deve
quanto a própria humanidade. O psi- parecer como o resto das pessoas, como
canalista rechaça a ideia de o homem uma pessoa comum, na média, “Tal
como ser isolado e independente, não como Hitler posava como uma união
só na alvorada da história, mas ao longo de King Kong e barbeiro suburbano”
dela. “Ele [o homem] é antes um ani- (ADORNO, 2015, p. 171). O soberano
mal de horda, membro individual de deve ser alguém mundano que, embora
uma horda conduzida por um chefe” tenha uma aura divina, possua carac-
(FREUD, 2011, p. 83). Nota-se, dessa terísticas humanas que o aproximem
forma, que a disposição de criar massas do ser humano comum. Desse modo,
presente na humanidade deve-se a sua quando o indivíduo fita o seu líder, ele
origem como mamíferos que circundam está admirando, de alguma maneira, ele
o macho alfa. Essa herança, de acordo próprio, porque está admirando o ideal
com Freud, manteve-se na história da que criou de si próprio e isso “satisfaz
civilização e no fundamento das mas- o duplo desejo do seguidor em se sub-
sas psicológicas. meter à autoridade e ser ele mesmo a

3 De acordo com Adorno “A alusão de Freud é obviamente válida somente para o ‘super-homem ‘ tal como se tornou popularizado
em slogans baratos” (ADORNO, 2015, p. 170)

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autoridade” (ADORNO, 2015, p. 172). rior. Surge daí a sede de obediência que
À vista disso, podemos compreen- constitui o poder de comando dos líde-
der o desejo de submeter-se que existe res. Eles respondem à necessidade de
na massa; tudo indica que a compul- direcionamento que o indivíduo julga
são à obediência deriva do sentimento ser incapaz de oferecer a si próprio.
de impotência. De acordo com Erich Dessa forma, o súdito sente-se forte e
Fromm, isso constitui um pensamento poderoso porque é a massa, e por isso,
masoquista. é também, de certo modo, o seu senhor.
A força e as conquistas do soberano são,
de alguma maneira, suas também.
O denominador comum a todo O processo de idealização do eu e os
pensamento autoritário é a con- demais atributos que constituem a psi-
vicção de que a vida é determi- cologia das massas são, portanto, carac-
nada por forças extrínsecas ao terísticas que propiciam a manipula-
ego do homem, e seus interes- ção. Na massa podemos ser conduzidos
ses e desejos. A única felici- inconscientemente através da explora-
dade possível está na submissão ção de sentimentos que ficaram repri-
a tais forças. A impotência do midos. O papel da liderança aí é sentir
homem é o estribilho da filoso- quais as frustrações, medos e raivas es-
fia masoquista [...] tão presentes no inconsciente e repre-
O caráter autoritário não tem sentar o papel de alguém que expõe
falta de coragem, atividade ou tudo isso que se manteve submerso.
crença. Essas qualidades, po- Foi explorando esses e outros atri-
rém, para ele significam algo butos que diversas organizações, em-
completamente diferente do presas e governos exerceram influência
que para uma pessoa que não sobre a psique da população muito an-
sonhe com a submissão. Para tes do invento da internet. Contudo,
ele a atividade está enraizada a perspectiva mais deflacionada acerca
em um sentimento básico de do poder de controle das redes sociais
impotência que ela tende a su- não diminui a responsabilidade das em-
perar; nesse sentido, a ativi- presas como a CA, o Facebook e o What-
dade quer dizer agir em nome sApp, mas pretende revelar que elas são
de algo superior ao eu da pes- somente o meio usado por técnicas de
soa (FROMM, 1982, p. 140). manipulação muito anteriores e consti-
tuem um sistema muito mais humano
do que maquinal.
Quanto mais o homem se sente im-
potente e despreparado, mais busca a
saída através de uma autoridade exte-

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Para além da tecnologia ses das práticas contemporâneas de in-


fluência de comportamento.
Antes do trabalho nas eleições esta-
O escândalo do datagate (vazamento de dunidenses e no Brexit, a CA ganhou
dados de usuários do Facebook para experiência lidando com a política em
uso da Cambridge Analytica) revelou países da África, América e Ásia. Os
uma existência de uma rede complexa relatos sobre essas ações constituíam o
de manipulação social que teria interfe- cartão de visita que era utilizado nos
rido na eleição estadunidense e no Bre- pitches narrados por Brittany Kaiser em
xit. Articulando psicologia comporta- Manipulados. De acordo com ela, Ale-
mental e informática, a CA teria criado xander Nix gabava-se de ter transfor-
uma arma de guerra psicológica iné- mado a vida política de países como
dita na história da humanidade. Isso Nigéria, Colômbia e Trindade e Tobago.
seria devido à tecnologia contemporâ- Na Nigéria, teria auxiliado a apazi-
nea que permite um alcance maior do guar os ânimos durante uma fraude
poder de intervenção na formação de eleitoral em 2007. Segundo narra Kai-
opiniões. Já não é mais necessário que a ser, o candidato da situação Umaru
pessoa esteja numa praça pública para Musa Yar’Adua não acreditava que po-
presenciar um discurso e nem estar sin- deria ser eleito e planejava fraudar a
tonizado em certo canal de televisão; eleição. Entretanto, se descoberto per-
hoje, a propaganda vai até o público deria muita popularidade e por con-
e de forma muito ostensiva o aborda sequência, força política. Dado esse
constantemente. Há, portanto, um au- cenário, Nix propôs uma manobra
mento na quantidade de vezes onde a para “vacinar” a população para que
pessoa é assediada por publicidade po- a fraude não parecesse algo tão escan-
lítica, sem saber muitas vezes que se daloso para a opinião pública. Para tal,
trata disso. encarregou-se de espalhar boatos e ru-
Entretanto, ao analisarmos mais de mores com antecedência contando que
perto os casos de sucesso de empresas as eleições seriam fraudadas. A lógica
como a Cambridge Analytica, percebe- desse plano consiste em fazer as pes-
se que a ferramenta tecnológica é so- soas se habituarem aos poucos ao acon-
mente a ponta do iceberg de um sis- tecimento futuro, de modo que quando
tema que é fruto de séculos de estudos a eleição estivesse sob real suspeita de
e práticas de controle social. A men- fraude, aquilo já não mais causasse so-
tira (agora numa nova roupagem de- bressaltos. De acordo com a narra-
nominada fake news), a manipulação de tiva, o plano teria funcionado, ocasio-
sentimentos como o ódio e o medo e ou- nando somente “pouquíssima violên-
tros diversos atributos que constituem cia” (KAISER, 2020, p. 262). Ainda
a psicologia das massas ainda são as ba-

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MEDO

que a imprensa mundial tenha repercu- mente em negros e indianos. Após pes-
tido de forma diferente o mesmo acon- quisas sobre a sociodinâmica, a demo-
tecimento4 , o fato é que Yar’Adua foi grafia e os costumes do povo, concluiu
devidamente empossado, apesar de ob- que a etnia dos seus clientes, o partido
servadores eleitorais da União Europeia indiano, possuía uma ligação hierár-
terem concluído a existência de fraude, quica familiar muito mais presente do
e somente em 2018 (após o datagate) que nos negros. Com isso em mente, ar-
a Nigéria abriu uma investigação para ticulou e criou um movimento político
apurar a interferência da CA na política que incitava os jovens a não votarem.
do país. A ideia principal era “‘Não vote’, por-
Na Colômbia, a intervenção de Nix e que não era maneiro” (KAISER, 2020,
seu grupo se deu na eleição para a pre- p. 265). A intenção era captar o sen-
feitura de Bogotá. Segundo Kaiser, a timento de revolta dos jovens que, por
empresa tinha concluído que a opinião se sentirem desprovidos de oportuni-
pública via todos os candidatos como dades, criaram uma forte reação ao go-
“um bando de trapaceiros, ladrões e verno e à política. Como resultado, a
mentirosos” (KAISER, 2020, p. 262). juventude abraçou a causa da absten-
Alexander propôs, então, uma campa- ção como um ato de protesto, e pas-
nha onde o candidato não aparecesse. sou a endossar a campanha de forma
Em vez de outdoors com fotos do polí- orgânica criando vídeos no YouTube e
tico, espalhou posters diferentes de pes- grafitando paredes. Em resumo, traba-
soas diferentes (médicos, professores, lhando para Alexander Nix de graça e
lojistas, etc.) com a frase “pessoas mu- o mais importante: de forma natural e
dam pessoas”. Dessa forma, era como sem que ninguém soubesse que aque-
se o candidato submergisse no mar de las ações espontâneas eram na verdade
homens e mulheres comuns. A partir fruto de uma estratégia política.
daquele momento os eleitores não vo- Explorando a sensação de pertenci-
tariam mais em um político corrupto, mento, o grupo conseguiu que houvesse
mas em alguém do povo, alguém como uma abstenção muito grande entre os
eles; quando o eleitor via possivelmente jovens. Contudo, Nix sabia que mui-
alguém com a sua profissão, gênero, tos jovens indianos não deixariam de
idade ou etnia, via, de alguma forma, votar devido à hierarquia familiar mais
ele mesmo. presente. Por mais que tivessem sido
Em Trindade e Tobago o desafio era tocados pela campanha, isso não seria
lidar com um país dividido politica- suficiente para que desobedecessem aos

4 De acordo com a BBC, “Violência e atrasos marcam início de eleição na Nigéria. Atrasos marcaram o início das eleições presiden-
ciais e legislativas na Nigéria, que vai neste sábado às urnas em uma votação histórica” (VIOLÊNCIA, 2007).

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pais e deixassem de votar. Dessa forma, bam? De acordo com Edward Bernays,
a tática consistiu em fazer com que o a resposta é sim. Bernays é um sobri-
maior número de abstenção fosse entre nho de Freud, considerado pai da pro-
os negros, o que garantiu que o partido paganda moderna e criador do termo
indiano fosse o vencedor da eleição. “relações públicas”. Durante a pri-
A partir desses relatos, é possível meira guerra mundial trabalhou para
concluir que a engenhosidade e a as- o governo dos EUA na Comissão Creel,
túcia de Alexander Nix não estão dire- que possuía o objetivo de influenciar
tamente ligadas ao conhecimento e ma- a opinião pública, para apoiar a parti-
nipulação de algoritmos. Ainda que a cipação dos Estados Unidos na guerra.
tecnologia facilite o trabalho de alcan- De acordo com Chomsky, a população
çar as pessoas, é indispensável o conhe- norte-americana não concordava com
cimento da sociedade e do ser humano. a entrada do país no conflito até a in-
De campanhas dentro dos padrões da tervenção do comitê que, após seis me-
legalidade como a de Bogotá, até liga- ses, conseguiu transformar o povo es-
ção com fraude eleitoral como na Nigé- tadunidense numa “população histé-
ria, passando por diversas zonas media- rica e belicosa que queria destruir tudo
nas eticamente duvidosas, a Cambridge que fosse alemão” (CHOMSKY, 2013, p.
Analytica deu continuidade e atualizou 11).
as práticas de manipulação social. Após a experiência com a comissão,
Não deveria ser espantoso para nin- Bernays deu continuidade ao seu tra-
guém, entretanto, que as empresas de balho com propaganda desenvolvendo
propaganda política contemporâneas o que ele chamou de “engenharia do
considerem que as campanhas apelam consentimento”. Ele conclui que os
ao sentimento e não ao fato e criam nar- mecanismos de controle usados du-
rativas diversas para o controle social. rante a guerra poderiam ser usados
Desde os anos vinte, pelo menos, sabe- também em tempos de paz. Para tal,
se que a psicologia invadiu a propa- aprofundou-se no estudo da psicaná-
ganda política para ajudar a manipular lise, valendo-se, sobretudo, do texto A
as emoções dos cidadãos. psicologia das massas e a análise do eu de
Freud. É a partir daí que cria o termo
“relações públicas”. Para ele, o termo
“propaganda” estaria demasiadamente
Edward Bernays e a propaganda polí- ligado às práticas alemãs, por isso foi
tica no século XX necessário criar uma nova nomencla-
tura. Ademais, segundo ele, a nova téc-
É possível controlar as pessoas, influ- nica que estava propondo seria muito
enciando seus gostos, suas ações, seus diferente do modo de fazer propaganda
medos e seus desejos sem que elas sai-

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MEDO

anterior. tes são moldadas, nossos gostos


Os novos profissionais da publici- formados, nossas ideias sugeri-
dade deveriam ser iniciados na psico- das, em grande parte por ho-
logia das massas para que pudessem mens dos quais nunca ouvimos
manipular o inconsciente das pessoas falar (BERNAYS, 1928, p. 9, tra-
criando uma conexão emocional com dução minha).
um produto ou serviço. Assim como
Alexander Nix, Bernays também via a
si mesmo como um revolucionário da Dessa forma, percebe-se que os ins-
propaganda que teria criado uma nova trumentos para manipular a popula-
técnica de manipulação que teria o po- ção e guiar a opinião pública não são
der de transformar as pessoas. nenhuma novidade na história do oci-
Nos anos vinte, a relação entre a pro- dente. A prática de controle social sub-
paganda e a política torna-se mais pró- jetivo foi exercida sempre que a opinião
xima. Bernays é convidado, em 1924, pública foi relevante. É possível encon-
pelo presidente Coolidge para traba- trar também na obra de diversos auto-
lhar como seu relações-públicas, cons- res muito mais antigos o esforço para
tituindo, assim, a primeira experiência criar ou decifrar os mecanismos de ma-
que colocou a nova propaganda a ser- nipulação social. Pensadores como Ma-
viço da política diretamente. A partir quiavel, Hobbes e Etienne De La Boetie,
daí, ele irá começar a pensar como a por exemplo, são alguns dos pensado-
sua técnica pode servir diretamente ao res que se ocuparam de investigar (com
poder político. Em 1928 publica Pro- diferentes propósitos) as diferentes for-
paganda, um livro que apresenta o que mas de controle social subjetivo.
é como funciona e para que serve a dis- Nas sociedades democráticas, entre-
ciplina relações públicas. Logo nas pri- tanto, a necessidade de aprimoramento
meiras frases do texto afirma que: desses mecanismos de controle subjeti-
vos foi intensificada. A partir do mo-
mento que o povo ganha o poder que
A manipulação consciente dos o rei perdeu (BERNAYS, 1928, p. 19), a
hábitos e opiniões das massas necessidade da manipulação da opinião
é um elemento importante na pública torna-se mais proeminente.
sociedade democrática. Aque- Para Bernays, as pessoas devem ser
les que manipulam esse me- controladas, porque do contrário reina-
canismo invisível da sociedade ria o caos. A democracia, nesse con-
constituem um governo invisí- texto, é encarada como um problema;
vel, que é o verdadeiro poder as pessoas não podem ser livres e as
dominante de nosso país. So- formas de controle subjetivo seriam, na
mos governados, nossas men- verdade, algo para ajudá-las.

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criando um conjunto de narrativas que


constitui uma visão de mundo própria
Alguns dos fenômenos desse e ao mesmo tempo fora da realidade.
processo são criticados - a ma- Com isso, a fonte de verdade passa a
nipulação de notícias, a inflação ser as lideranças do grupo de onde as
da personalidade e o discurso verdades provêm. Nesse cenário, todas
pelo qual políticos, produtos e as notícias que, de alguma maneira, são
ideias são levados à consciência inconvenientes aos valores e às políticas
das massas. Os instrumentos de determinado segmento são rechaça-
pelos quais a opinião pública é das, taxadas, inclusive de fake news.
organizada e focada podem ser Para o funcionamento efetivo da dis-
mal utilizados, mas essa orga- seminação de notícias falsas com esse
nização e foco são necessários intuito de criação de “verdades alterna-
para uma vida ordenada (BER- tivas”, as bolhas das redes sociais e os
NAYS, 1928, p. 12, tradução grupos de WhatsApp cumprem um pa-
minha). pel fundamental. A partir do momento
em que as pessoas passaram a se in-
Percebe-se, portanto, que as práticas formar mais pelas redes sociais e a dar
de distorcer narrativas são um impor- mais credibilidade às informações que
tante instrumento para influenciar a recebem em seus grupos do que à “mí-
opinião pública. De acordo com Ber- dia tradicional”, ficou mais fácil disse-
nays, falsear a verdade, criar heróis e minar mentiras.
vilões, e introjetá-los nas mentes das De acordo com Giuliano Da Empoli
pessoas é essencial para quem quiser em Engenheiros do caos, essa nova orga-
influir sobre as massas. Dessa forma, as nização fez com que as pessoas se agru-
notícias falsas surgem como uma exce- passem para expressar sua raiva contra
lente maneira de espalhar essas narra- o sistema corrupto, as pessoas más e
tivas. tudo que está aí. Esse sentimento, en-
tão, é canalizado para a criação de gru-
pos que mantêm em comum o ódio a
um inimigo que está em todo lugar que
Fake news não seja o grupo daquelas pessoas.

Contemporaneamente as fake news


cumprem também a função de criar A raiva, dizem os psicólogos, é
um universo paralelo onde reside a ver- um afeto narcisista por excelên-
dade para determinado grupo. O uso cia, que nasce de uma sensa-
da mentira torna-se mais sofisticado ção de solidão e de impotência e
porque elas podem se inter-relacionar que caracteriza a figura do ado-

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lescente – um indivíduo ansi- casa com o que se espera que seja o


oso, sempre em busca da apro- mundo, ela é automaticamente assu-
vação dos seus pares e perma- mida como verdadeira, por mais fan-
nentemente apavorado com a tástica que possa parecer. O caráter de
ideia de estar inadequado. excentricidade, inclusive, é um dos fa-
O problema hoje é que nas re- tores que fazem com que as fake news
des sociais, somos todos adoles- possuam maior alcance. “Um recente
centes fechados em nossos pe- estudo do MIT demonstrou que uma
quenos quartos, onde aumenta falsa informação tem, em média, 70%
a frustração por causa do cres- a mais de probabilidade de ser com-
cente abismo entre a mediocri- partilhada na internet, pois ela é, ge-
dade de nossa vida e todas as ralmente, mais original que uma notí-
vidas possíveis que se oferecem cia verdadeira” (EMPOLI, 2020, p. 78).
virtualmente em nossos moni- Isso acontece justamente porque as no-
tores e telas de celular (EM- tícias falsas tendem a apresentar teorias
POLI, 2020, p. 76-77). surpreendentes sobre a realidade, o que
cria diversas sensações. Fatos são cria-
dos, distorcidos ou exagerados para pa-
A internet, portanto, uniu pessoas recer sempre algo muito grandioso, que
que possuíam sentimentos difusos e es- o mundo desconhece.
condidos, agrupando-as e dando-lhes
identidade. Agora essas pessoas não se-
riam mais enganadas e nem admoesta-
das pela “grande mídia”, os políticos, a Medo e ódio
OMS, etc. As redes sociais permitiram,
então, que não fossem mais sujeitos iso- É o espanto, portanto, um dos motivos
lados, mas sim membros de um time de que fazem com que as pessoas acredi-
pessoas que não querem mais estar su- tem e compartilhem as notícias falsas.
bordinadas à “verdade oficial”. Nota-se Aliado a ele, o medo é outro afeto im-
aí que a internet funciona como um ex- portante para o impulsionamento de
celente espaço para a formação de mas- fake news. Isso ocorre porque em si-
sas psicológicas. tuações onde as pessoas percebem al-
Nesse cenário, a relação do indivíduo gum tipo de risco, é comum que a razão
com as informações é menos racional e entre em suspensão e as pessoas sejam
mais emocional. Há muito pouca pre- mais facilmente levadas pela mentali-
ocupação com a coerência ou a crive- dade de manada. Quando em perigo,
lidade das notícias; o que interessa é tendemos a agir sem pensar; se estiver-
quais sentimentos são convocados pe- mos num prédio e presenciarmos uma
las narrativas. Se a história noticiada horda que corre e grita fogo, é natural

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que a sigamos sem averiguar a existên- estranhas espirais de um con-


cia de fumaça ou coisa que a valha. Ori- senso muito poderoso ou, ao
ginalmente um mecanismo de defesa contrário, de sério conflito com
importante para o desenvolvimento da outros usuários. Isso não acaba
raça humana que faz com que reaja- jamais, e é esse, exatamente, o
mos da maneira mais rápida a possíveis alvo. As empresas não planifi-
ameaças, o medo hoje é incitado para cam nem organizam nenhum
que as pessoas se sintam em perigo e desses modelos de utilização.
sigam as ordens de forma irrefletida. São os outros que são incitados
Notícias que possuem o intuito de aflo- a fazer o trabalho sujo. Como os
rar esse afeto normalmente partem de jovens macedônios que comple-
casos reais, porém distorcendo-os, cri- tam seu orçamento mensal pos-
ando monstros para oferecer um bote tando fake news envenenadas.
de salvação ou um herói que possa com- Ou mesmo os americanos an-
bater o mal. siosos por faturar um dinheiro
De acordo com Empoli as redes soci- extra” (EMPOLI, 2020, p. 79).
ais fazem parte ativamente desse pro-
cesso, pois conhecem o poder do medo
para fazer com que as pessoas se man- Dessa forma, as redes sociais
tenham conectadas. apresentam-se como um ótimo veículo
para aqueles que desejam manipular
as pessoas através do medo. As notí-
Para aumentar esse número [de cias que supostamente revelam tramas
tempo que o usuário passa na de planos malignos rodam muito facil-
rede social], as verdadeiras in- mente em toda internet graças a essa
formações e as rodas de bote- característica que o medo propicia de
quim virtuais entre velhos ami- fazer com que as pessoas reflitam me-
gos de classe não bastam. "A nos e sigam mais.
simples contemplação da re- No entanto para manter um controle
alidade não ocupa tempo su- social mais efetivo, o medo não pode
ficiente", escreve Jaron Lanier. ser do tipo que paralisa nem que do que
"Para manter seus usuários co- faça as pessoas moverem-se a esmo. É
nectados, uma empresa de re- necessário que o inimigo criado para
des sociais deve, sobretudo, fa- ser a fonte do pânico torne-se também
zer as coisas de maneira que um alvo para a raiva e o ódio. Num
eles se enervem, sintam-se em estado colérico, assim como numa si-
perigo ou tenham medo. A tuação de perigo, a racionalidade tam-
situação mais eficaz é aquela bém é afetada. “Cego de raiva” o in-
em que os usuários entram em divíduo torna-se incapaz de sobrepesar

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MEDO

as condições e consequências dos seus Para Bannon, esse fiasco total é


atos, o que o leva a atitudes passionais a chance de descobrir uma re-
e irrefletidas. Nesse cenário, o ódio e alidade cuja existência ele se-
o medo surgem como afetos comple- quer imaginava. Encontra-se,
mentares que servem para criar poten- on-line, milhões de jovens mer-
tes massas psicológicas que encontram gulhados numa realidade pa-
na internet terreno fértil para seu de- ralela à quais são ferozmente
senvolvimento. afeiçoados. Em nome da de-
Cônscios da importância da cólera fesa dessa esfera, estão pron-
para a manipulação social, os líderes da tos para mobilizar um poder
extrema direita contemporânea passa- de fogo enorme, capaz de der-
ram a minerar a raiva em lugares onde rubar empresas e fazer gran-
ela existiria em mais abundância. Pro- des colossos mundiais se cur-
curando a mina do ódio, Steve Bannon, varem. Claro, um mundo anár-
a partir de 2005, direciona sua atenção quico, composto de comunida-
para a comunidade gamer, sobretudo des difíceis de controlar e im-
aos jogadores de World of Warcraft5 . Iro- pregnado de uma cultura fre-
nicamente, os protestos coléricos que quentemente misógina e hiper-
chamaram a atenção de Bannon eram violenta ao menos na dimensão
justamente contra a mercantilização do cibernética. No entanto, é para
jogo. Alguns jogadores que levavam lá que se transferiu uma parte
mais a sério a vida virtual sentiram- significativa da energia que faz
se traídos porque pessoas passaram a com que os jovens sejam, histo-
comercializar itens do jogo, de modo ricamente, a plataforma dos tu-
que se tornou possível ter um desempe- multos e das revoluções. Mui-
nho melhor ao comprar mercadorias do tos pensam que essa energia
mundo do game com dinheiro real. se dissipou e desapareceu. Na
Os protestos, entretanto, não entre- verdade, ela ainda está por aí.
garam o resultado esperado e os re- Basta saber interceptá-la para,
beldes tiveram suas contas suspensas. depois, canalizá-la na direção
Contudo, espantado com o nível de en- da política (EMPOLI, 2020, p.
gajamento e organização para a defesa 96).
do mundo virtual, Bannon começa a
acompanhar de perto as comunidades
digitais. A partir daí a extrema direita passa a

5 World Of Warcraft é um jogo para computadores no estilo “mmo” (massive muliplayer on-line), onde os jogadores partilham um
mundo virtual com milhares de outros jogadores de todo globo. Funcionando muitas vezes como uma espécie de vida paralela,
muitos jogadores dedicam ao jogo quase toda parcela ativa do seu dia.

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usar o submundo dos fóruns de internet como a raiva e ódio se mantiveram nas
como terreno e força política. Esse lu- camadas profundas do inconsciente,
gar virtual que permite que as pessoas mantiveram-se também abaixo da su-
possam se esconder atrás de avatares e perfície da internet. Represados, mas
destilarem sua raiva reprimida contra não apagados, os preconceitos perma-
tudo e contra todos é onde parte con- neceram latentes à espera de uma opor-
siderável da militância é forjada.6 A tunidade para emergir. Os movimentos
sensação de não pertencimento, ocasio- da extrema direita surgem aí como um
nada em larga medida por um mundo canalizador que agrega as frustrações
em constante transformação e que dis- agrupando-as numa identidade conser-
tancia cada vez mais as pessoas através vadora.
do cultivo do individualismo, aliada à Utilizando esse ressentimento, a ex-
frustração de certos grupos por ter de trema direita moldou seus candidatos
disputar espaços com mulheres e pes- para responder a esses anseios. O po-
soas não brancas, fez com que das pro- lítico ideal nesse cenário não é o que
fundezas da web, surgissem as semen- usa palavras difíceis e expõe a real di-
tes da nova direita. ficuldade de resolução dos problemas
sociais; tudo isso passa a soar como en-
godo. No modo de vida no qual cada
Bannon utilizava nos EUA as li-
vez menos somos convidados a refletir
ções de sua breve incursão no
ou entender questões complexas, aque-
mundo dos videogames. Ele
les que prometem soluções simples fa-
sabe que, sob a superfície da
zem coincidir suas práticas e propostas
web, agitam-se correntes invi-
com o que ficou guardado no inconsci-
síveis, mas muito poderosas,
ente, possuem vantagem.
alimentadas pela frustração de
milhões de indivíduos que se
sentem à margem da sociedade
e pela “cólera inata e surda" da
Conclusão
América, da qual já falava Phi-
lip Roth em Pastoral americana.
Dessa forma, ainda que os novos líde-
Ele crê ter encontrado, enfim, a
res da extrema direita e as redes sociais
isca ideal para pescar esse senti-
apresentem especificidades, o que ve-
mento (EMPOLI, 2020, p. 104).
mos não é um ponto fora da curva e
nem uma coisa inédita. Se somos mais
Da mesma maneira que os afetos influenciáveis hoje não é porque a tec-

6 De acordo com Isabela Kalil, a base de apoio de Bolsonaro também é formada por “nerds”, “gamers”, “hackers” e “haters” (KALIL,
2020).

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MEDO

nologia alcançou um nível que permitiu vez mais dissolvidas, nos encontramos
que as máquinas fizessem uma espécie cada dia mais isolados e por isso, ansi-
de lavagem cerebral. As redes sociais, osos por nos religarmos, e esse anseio
os algoritmos e as fake news apresentam por uma reconexão nos deixa vulnerá-
características específicas que deman- veis aos convites das massas psicológi-
dam atenção, mas a propaganda polí- cas.
tica atual não é nada mais do que fruto Portanto, analisar os mecanismos de
do desenvolvimento de técnicas que já controle contemporâneos partindo da
são utilizadas há muitas décadas. perspectiva de que são inéditos e uma
A nova extrema direita não inven- ameaça à democracia é um engano
tou uma forma de manipulação social, que embota nossa compreensão do pro-
ela somente deu continuidade a práti- blema. Se o sistema democrático repre-
cas que já foram testadas e aprovadas. sentativo foi hackeado, isso não começou
É incontestável que a abordagem indi- em 2016; sempre que a opinião pública
vidualizada e uma maior atenção por foi relevante, foi alvo de manipulação.
parte das pessoas nas redes sociais in- Para controlar as transformações so-
tensificaram o poder de controle social, ciais e manter o status quo é necessá-
mas isso porque o WhatsApp, os grupos rio não somente o uso do poder coerci-
e páginas de Facebook e demais espaços tivo, mas é preciso que as pessoas se-
virtuais são fortes aliados para a cria- jam manipuladas e a propaganda serve
ção de massas psicológicas. As bolhas como um poderoso instrumento de con-
digitais permitem que a narrativa ofi- trole subjetivo. Atuando, sobretudo, no
cial dos grupos fique devidamente as- inconsciente, ela consegue criar veícu-
segurada e imune a críticas. Da mesma los para incutir ideias, desejos, crenças
forma, protege também as pessoas do e medos que podem transformar a opi-
contágio de perspectivas que não per- nião pública.
tençam ao conjunto de verdades aceitas Contudo, sabe-se que essa manipula-
pelo grupo. ção não é completa, não é possível pa-
Ademais, as massas psicológicas são dronizar completamente o ser humano
mais facilmente construídas e mantidas transformando-o num ser que responde
porque o nosso modo de vida nos inibe efetivamente a todos os comandos. A
a capacidade reflexiva, porque estamos propaganda reconhece seu limite e sabe
sempre ocupados trabalhando e com- que seu funcionamento deve respeitá-
prando e a reflexão e a ponderação são lo. A manipulação social funciona, de
vistas como perda de tempo porque não alguma maneira, como uma negocia-
dão lucro. Aliado a isso, presenciamos ção, porque não possui o poder de al-
também o aumento do distanciamento terar completamente uma população.
social, e com as relações sociais cada “Você não pode persuadir toda uma ge-

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CRISTIAN ARÃO

ração de mulheres a usar saias longas, temática do poder de manipulação, por-


mas talvez você possa, trabalhando com que não é possível captar todas as nu-
ídolos do mundo da moda, persuadi- ances do ser humano. É justamente
las a usar vestidos longos à noite” (BER- por reconhecer seus limites que, aque-
NAYS, 1928, p. 66). Entretanto, é claro les que pretendem exercer influência
que esse acordo é muito desigual, visto sobre a população, sabem que precisam
que o poder da propaganda reside jus- constantemente aprimorar seus meca-
tamente no fato de que o sujeito não nismos, de modo a estar sempre atuali-
sabe que está negociando. zados com as tecnologias do seu tempo.
Edward Bernays sabia também que Todavia, tudo indica que a tecnologia
não era possível esperar uma acurácia ainda não é capaz de programar com-
científica e, portanto, uma certeza ma- pletamente o ser humano.

Referências
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_____. Conferências introdutórias à psicanálise [1916-1917]. Tradução de Sérgio Tellaroli. São Paulo: Companhia das
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_____. Psicologia das massas e análise do Eu e outros textos. Tradução de Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das
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FROMM, E. O medo à liberdade. Tradução de Octávio Alvez Velho. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1981.
HOBBES, T. Leviatã ou, Matéria, forma e poder de um estado eclesiástico e civil. Tradução de João Paulo Monteiro e Maria
Beatriz Nizza da Silva. São Paulo: Nova Cultural, 1988.
KAISER, B. Manipulados: como a Cambridge Analytica e o Facebook invadiram a privacidade de milhões e botaram a demo-
cracia em xeque. Tradução de Roberta Clapp e Bruno Fiuza. Rio de Janeiro: Harper Collins, 2020.
KALIL, I. Jovens ‘nerds’, ‘gamers’, hackers e ‘haters’ formam maior base de apoio a Bolsonaro. São Paulo, Valor Econô-
mico, 2020. Disponível em https://valor.globo.com/eu-e/noticia/2020/09/11/jovens-nerds-gamers-hackers-e-ha-
ters-formam-maior-base-de-apoio-a-bolsonaro.ghtml. Acesso em: 20 set. 2020.
MAQUIAVEL, N. O príncipe. Tradução de Lívio Xavier. São Paulo: Nova Cultural, 1987.
SUMPTER, D. Dominados pelos números. Tradução de Anna Maria Sotero e Marcello Neto. Rio de Janeiro: Bertrand
Brasil, 2019.
VIOLÊNCIA e atrasos marcam início de eleição na Nigéria. BBC Brasil, 21 abr. 2007.
Disponível em: https://www.bbc.com/portuguese/reporterbbc/story/2007/04/070421n igeriaeleicoesp u. Acesso
em: 20 set. 2020.

Recebido: 23/09/2020
Aprovado: 13/01/2021
Publicado: 31/01/2021

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ISSN: 2317-9570
DOI: https://doi.org/10.26512/rfmc.v8i3.34772

O Ato Docente na Era da sua Reprodutibilidade Técnica: Aula,


Educação e Ensino Remoto
[The Teaching Act in the Age of Mechanical Reproduction: Classroom, Education and
E-Learning]

Denilson Soares Cordeiro*

Resumo: O ensaio aborda o chamado ensino remoto como a versão atualizada e político-
tecnológica do agravamento das decisões oficiais contra a educação pública e o direito à
educação de qualidade. Nesse sentido, procuro apresentar uma discussão tomando como
base relatos da minha própria experiência na docência universitária e na pesquisa que
tem como campo a escola pública, para, em seguida, discutir os termos contextuais do
problema no âmbito do “extrativismo de dados” das grandes empresas norte-americanas
de tecnologia, que gerem exclusivamente toda produção, transmissão e armazenamento
de dados no ensino remoto público, com base naquilo que Evgeny Morozov chama de
“solucionismo tecnológico”.
Palavras-chave: Educação, Ensino remoto. Solucionismo tecnológico.

Abstract: The essay addresses E-learning as the updated and political-technological


version of the worsening of official decisions against public education and the right to
quality education. Presents a discussion based on reports from my experience both as a
professor at the university and researcher in the public school as a field of investigation.
The terms of the problem are discussed in the context of “data mining” from the biggest
North American technology companies which manage all production, transmission and
storage of data of the remote education from the Brazilian public federal education,
based on Evgeny Morozov’s concept of “technological Solutionism”.
Keywords: Education. E-learning. “Technological solutionism”.

* Professor da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), Campus Diadema. Doutor em filosofia pela Universidade de São Paulo
(USP). E-mail: denilson.cordeiro@unifesp.br. ORCID: https://orcid.org/0000-0002-0023-1605.

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DENILSON SOARES CORDEIRO

“Um novo jeito de ensinar


[O novo tablete] permite ensinar de qualquer lugar.
Você pode sincronizar as telas da sala de aula, usar a S Pen para acompanhar as ideias
e se organizar com o Notes para avaliar o progresso individual do aluno em tempo real
e personalizar as atividades de acordo com o sucesso de cada um.
Deixe o [novo tablete] trabalhar e ensine os alunos a pensar fora dos livros.”
[Anúncio publicitário]

“A significação histórica atual dos estudantes e da universidade, a forma de sua existência


no presente merece, portanto, ser descrita como imagem de um momento mais elevado e
metafísico da história. [...] Enquanto para isso faltam ainda várias condições, resta apenas
libertar o futuro de sua forma presente desfigurada, através de um ato de conhecimento.”
[Walter Benjamin, “Vida de estudante”]

Lugar de escuta dêmico. Isso, porque, como explicou


Paulo Arantes, no presente as energias
Como professor universitário já há utópicas estão praticamente esgotadas.
quase duas décadas, percebo que as O cuidado decisivo tem de considerar
perspectivas e as expectativas dos estu- ao mesmo tempo o conteúdo daquilo
dantes mudaram muito. E, atualmente, que se fala, para quem e como se fala.
já faz um bom tempo, querem, em ge- Feita essa consideração sobre o lugar de
ral e prioritariamente, fazer parte da escuta, tão importante quanto o lugar
sociedade, do mercado, ter emprego, de fala, gostaria de passar ao desenvol-
carteira registrada, poder de compra, vimento do texto.
carro próprio, constituir família, es-
cola privada para os filhos, plano pri-
vado de saúde e pagar os boletos. Temo
que, por isso mesmo, quando ouvem Razões da recusa
como a sociedade tem sido, compre-
endem que é uma recomendação de Desde 2011, sou professor de Filoso-
adaptação, muito mais do que de crí- fia em um curso de formação de pro-
tica. Quando leem um texto ou ouvem fessores de ciências em uma universi-
uma exposição na qual o autor escreve dade pública. Participo também de um
ou diz que a atual universidade atri- grupo de pesquisa escolar desde 2018 e
bui mais importância para a pesquisa gostaria de analisar um pouco das mi-
do que para o ensino, ele pode enten- nhas experiências nessas duas frentes
der que se trata, portanto, de assimilar de atividades como modo de oferecer
a orientação como fator de êxito aca- um lastro menos abstrato como contri-

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O ATO DOCENTE NA ERA DA SUA REPRODUTIBILIDADE TÉCNICA: AULA, EDUCAÇÃO E ENSINO REMOTO

buição à discussão que o tema do “en- primeiro momento, procederem como


sino remoto” exige. No sentido do que achassem ser mais conveniente. No en-
Alcir Pécora (2015) refere como reco- tanto, e para surpresa da ala da univer-
mendação de Aristóteles de que, “para sidade mais preocupada com questões
maior efeito junto ao público, convém pedagógicas e sociais, as interpretações
sempre que a desgraça seja presentifi- do documento oficial foram, gradativa-
cada com vestígios do corpo atingido mente, cada vez mais rígidas conforme
por ela”. as deliberações passavam às instâncias
Neste semestre [1/2020], são ofereci- locais da universidade.
das 7 disciplinas a alunos e alunas in- Por exemplo, a possibilidade de
gressantes subdivididas entre docentes exame e decisão de cada professor so-
de ciências e matemática, por um lado, bre oferecer ou não a disciplina que co-
e docentes de humanidades, por outro. ordena foi anulada; por determinação
A carga horária semanal de um estu- interna, os conteúdos das disciplinas
dante do primeiro semestre é de, mais presenciais tiveram de ser mantidos,
ou menos, 30h, ou seja, 6h/dia entre mesmo com todas as restrições nas con-
aulas e estudos. O curso tem 200 va- dições de trabalho; os planos de ensino
gas por entrada, em média, com quatro alterados para atender à modalidade
chamadas. Ou seja, temos estudantes remota foram preenchidos de modo a
chegando no curso até abril, sendo que apenas “copiar e colar” os planos de
as aulas começam em fevereiro. Nas ensino originalmente propostos para as
disciplinas de humanidades, tínhamos aulas. Tratou-se de medida meramente
aulas de 1h30, para cada uma das qua- protocolar, uma vez que nas discussões
tro turmas, de 50 alunos cada, o que entre professores já se sabia que seria
representava 6h de aula, em geral, ofe- impossível oferecer as disciplinas como
recidas no mesmo dia, tarde e noite. se nada estivesse acontecendo.
Eram 18 encontros (18 semanas) du- A universidade em questão, assim
rante o semestre letivo. Isso nas antigas como outras país afora, já havia contra-
condições ditas normais. tado o Google para serviços de comu-
No dia 16 de março, todas as ativi- nicação, de armazenamento de dados e
dades presenciais universitárias foram de planejamento de trabalho. O e-mail
suspensas por determinações oficiais. institucional, por exemplo, é oferecido
Em maio, o parecer n. 5 do Conse- e gerido completamente pelo Google.
lho Nacional de Educação (CNE), de Com o isolamento, descobri que o ser-
1º. de junho, fez recomendações va- viço permite ainda o uso de salas vir-
gas a respeito de substituir as ativida- tuais, com a possibilidade de gravar os
des presenciais pelas não presenciais, o encontros e armazenar no Google drive,
que permitiu às universidades, em um outras dessas chamadas “ferramentas”.

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DENILSON SOARES CORDEIRO

A cada estudante é oferecido o e-mail siastas e ufanistas das “tecnologias edu-


institucional e, com isso, passa a ter cacionais” e que já faziam toda sorte de
acesso às atividades vinculadas a essas experimentalismos com os conteúdos
plataformas virtuais de trabalho. Há das disciplinas que coordenam.
ainda, como apoio, o Google Classroom Acresce que também não temos
e o Moodle, como complementos de acesso a bibliotecas, e ainda que haja
controle de entrega de atividades, co- um crescente mercado de e-books, a
municação com os estudantes, arquivo abrangência é ainda muito restrita. Pas-
de documentos e circulação de informa- samos a improvisar em todas as frentes,
ções. Utilizamos também as chamadas como modo de compatibilizar as deter-
redes sociais (Whatsapp, Facebook, Ins- minações oficiais, as necessidades edu-
tagram e YouTube). cacionais e as expectativas sociais.
Tudo isso exige bons aparelhos (com- Tive três encontros por meio de vide-
putadores, celulares e tablets), cone- oconferência com meus alunos e alunas.
xões estáveis de internet, espaços físi- Dos 200, apareceram quase 150 no pri-
cos particulares convenientes (sem tu- meiro dia, 80 na segunda semana e 50
multo, ruídos ou interrupções), bom na terceira. Portanto, de saída, muitos
senso de organização de informações e foram sendo gradativamente excluídos,
de estudos, preparação para os encon- por questões variadas, para os quais
tros e realização das tarefas. Ou seja, ainda não há planos de busca ativa. Se-
quase tudo o que estudantes de uma rão onze semanas de encontros no total,
universidade popular instalada na peri- uma delas para fechamento dos con-
feria de uma grande metrópole não dis- ceitos de cumprido ou não-cumprido
põem, seja pelas dramáticas condições e, pelo andamento, o prognóstico é de
sociais em que vivem, seja porque boa que cada vez menos estudantes compa-
parte dos hábitos e costumes de estudos reçam. Os encontros pelo Google Meet
são desenvolvidos justamente com ori- não são obrigatórios e devem ser gra-
entação, acompanhamento e exercícios vados e disponibilizados aos estudan-
durante a vida acadêmica. tes. Mesmo que, eventualmente, não
Isso exige ainda docentes com des- apareçam estudantes para o encontro, o
treza no manejo dessas “ferramentas” professor deverá gravar o conteúdo da
e com condições materiais de trans- atividade e deixar à disposição de to-
formarem o que faziam nas aulas, nas dos.
orientações e nas diversas atividades Há um campo de pesquisa estranho
presenciais em conteúdos transmitidos para mim que preconiza a “gamefica-
pela internet. O que tampouco acon- ção” da educação, nos vários níveis.
tece com a rapidez e a facilidade imagi- E, em cada área do conhecimento aca-
nadas. Evidentemente, desconto entu- dêmico, há especialistas e entusiastas

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dessa modalidade. Propalam a falsa Proponho aqui a rememoração – por-


imagem de que o recurso representa que todos nós passamos de um modo
algo de avançado em termos de educa- ou de outro por semelhantes situações
ção. Mas, pergunto, o que querem dizer escolares – do que talvez seja, em geral,
com isso? Suponho, como o nome diz, parte das experiências de uma criança
transformar o ensino em gestão de vide- ou de um jovem do momento que sai de
ogames, supostamente com conteúdos casa para ir à escola e durante o tempo
educacionais. Isso combina bem com o que passa lá.
que se tem chamado de uberização do Lembremos que o impacto da ida à
trabalho docente, adaptando de todo escola como rotina dos estudantes vai
modo as condições pessoais docentes muito além da questão da transmissão
para produzir e vender conteúdos aos de conhecimentos formais. Ao sair do
gestores de plataformas a consumido- âmbito familiar para experimentar ou-
res ávidos por produtos educacionais. tros lugares e papéis sociais na escola
O movimento estudantil pratica- ou mesmo no trajeto, oportunidades de
mente acabou, subsiste apenas parte do estímulo à aprendizagem se oferecem
verniz democrático-institucional. Parte de modo variado. A locomoção até a
significativa da juventude assiste fasci- escola, sobretudo quando a pé ou pelo
nada à proposta de “gameficação”; os transporte público, possibilita o exer-
sindicatos estão cambaleantes e perdi- cício da orientação, oferecendo ao es-
dos entre uma função protocolar, a falta tudante uma noção ampliada do bairro
de recursos e persistentes campanhas ou da cidade, além de demandar uma
de filiação; os docentes quase exclusiva- atenção e um especial cuidado de si.
mente preocupados com os seus Lattes A experiência geográfica envolve as
e a produtividade que permite progres- experiências física, psíquica, toponí-
sões e promoções na carreira. A despo- mica e, com o tempo, também a his-
litização é ampla, geral e irrestrita. tórica, porque saber onde estamos,
Em um esforço de reconstituir al- onde habitamos, e para onde é pre-
gumas das principais experiências ciso ir comporta uma gama de distin-
do complexo sistema de ensino- ções, de conhecimentos, de informa-
aprendizagem do qual participam cri- ções e de preparos que fazem parte
anças e jovens em idade escolar e tanto das necessidades que o cotidiano
universitária, quando regular e ofi- cobra, quanto do próprio desenvolvi-
cialmente matriculados nas escolas mento psicomotor da criança e do jo-
e universidades públicas, e podendo vem. Quando a escola desencadeia es-
frequentá-las presencialmente, listo as sas demandas, a travessia passa a estar
seguintes possibilidades que se ofere- incluída no processo educativo.
cem. A chegada à escola exige que crianças

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DENILSON SOARES CORDEIRO

e jovens se enquadrem em uma série de desenvolvimento. É também na experi-


condições tanto materiais, quanto com- ência escolar que sedimentam melhor a
portamentais, como estarem atentos ao consciência da própria individualidade
uso e preservação dos materiais escola- justamente por terem na variedade que
res, roupas, calçados, asseio, mas igual a convivência escolar propicia impor-
e concomitantemente aos horários, pro- tantes termos de comparação, onde en-
tocolos escolares e relações intersubje- contram afinidades, simpatias, afeições,
tivas que permitem desenvolver, para mas também provam estranhamento,
além dos motivos e exigências famili- conflito e surpresa. A presença na co-
ares, atenção, zelo, memória e concen- munidade escolar permite uma experi-
tração nos acontecimentos da vida es- ência integral, na qual corpo e espírito
colar. Como medida suplementar de- estão engajados dinamicamente na res-
cisiva, importa serem poupados, pelo posta e participação ativas às situações
tempo na escola, das necessidades pes- vividas.
soais e sociais imediatas. É fator sabi- Por outra via, a modulação discursiva
damente crucial que a criança e o jovem e comportamental que o professor e a
se habituem à suspensão das preocu- professora adotam a partir das reações,
pações domésticas e sociais durante o da recepção e das disposições corporais
tempo de estudos na escola. dos estudantes é fundamental para ga-
O fato de poderem provar, em vários rantir melhores resultados na proposta
níveis, os efeitos da diversidade de rela- de atividades, ou seja, garantir atenção,
ções, de amizades, de formações fami- interesse e envolvimento.
liares, de posturas na convivência, de Em contraposição, o que chamam
habilidades, de talentos, de costumes contraditoriamente de “ensino remoto”
religiosos, de preferências alimentares, (porque não há, de fato, ensino sem pre-
de gostos oferece oportunidades fecun- sença), os seguintes fatores impedem de
das para a consciência da importância considerar essas propostas como “solu-
do respeito mútuo às liberdades de es- ções” aos desafios que o isolamento so-
colha, variedade de opções, observância cial nos tem trazido.
dos limites, do cultivo da sensibilidade A casa e a escola não podem se
social e da solidariedade imprescindí- confundir para benefício do processo
veis para a vida comunitária civilizada ensino-aprendizagem, porque o pro-
e harmônica. cesso educativo demanda um tipo espe-
Dessa coabitação regrada na escola, a cial de concentração para o qual a cri-
criança e o jovem iniciam-se no domí- ança e o jovem precisam, inicialmente,
nio e elaboração em progresso dos pró- exercício e condicionamentos constan-
prios sentimentos, das sensações e emo- tes, tempo, paciência e supressão das
ções como requisito indispensável do solicitações e motivos de distração. E

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O ATO DOCENTE NA ERA DA SUA REPRODUTIBILIDADE TÉCNICA: AULA, EDUCAÇÃO E ENSINO REMOTO

o ambiente familiar é dispersivo pela casos, expectativas e envolvimentos di-


própria dinâmica e natureza. O pro- ferentes do que quando não há opera-
cesso de que a escola participa cobra ção de aparelhos, câmeras, filmagens e
uma dimensão especial, como planta de transmissões.
estufa, reservada à descoberta e ao pos- Com isso, a educação e o exercício de
sível despertar do interesse. Portanto, civilidade são rebaixados, quando não
apesar de seguros, a criança e o jovem anulados, na transmissão a distância,
não devem estar na escola como esta- e reduzem-se ao mínimo as possibili-
riam acostumados aos ambientes do- dades e mesmo necessidades de, por
mésticos. exemplo, aprender a lidar com o des-
No aspecto do funcionamento dos conhecido em meio à coletividade, com
aparelhos tecnológicos para o “ensino os próprios sentimentos, dúvidas, he-
remoto”, sabemos que dependem de sitações e sensações pessoais. Por ou-
uma multiplicidade de fatores cuja ope- tro lado, o sedentarismo não oferece
ração complexa acaba se transformando ao corpo as chances de participação no
no principal foco da atenção do jovem aprendizado que se combinam com a
e da criança. Ou seja, instaura-se uma sensibilidade, a imaginação e a inteli-
instância que disputa e vence as pro- gência. Ocorre uma inflação dos apelos
postas educativas no requisito do en- de ordem visual, particular e passivo,
volvimento, da disposição e mesmo do as regras de conduta são colonizadas
interesse dos estudantes. A temporali- pelas regras de funcionamento dos apa-
dade de atividades virtuais obedece a relhos, dos acessos e das redes, o tipo
um ritmo diferente daquele necessário de concentração passa a ser preponde-
às experiências presenciais educativas. rantemente flutuante e de curta dura-
Vide, por exemplo, o incômodo ampli- ção forjado pelo costume da televisão e
ado em relação aos momentos de silên- todas as materialidades que não forem
cio, às esperas, à duração dos encon- imediatamente tecnológicas tendem a
tros virtuais e ao tempo de exposição e perder em legitimidade porque exigem
de compreensão acelerados. A relação outro tipo de disponibilidade, de tem-
não se estabelece primeiramente entre poralidade, de envolvimento e de do-
pessoas, mas sobressai inicialmente a mínio. Em síntese, a experiência tec-
de usuário e aparelho, para em seguida nológica tende a ser solitária, privada,
vir a do espectador com a imagem te- solipsista e exclusivista.
levisiva nas telas1 . Instaura-se, nesses Com esse tipo de reviravolta nas con-

1 A respeito disso, sugiro o excelente artigo de Ismail Xavier, “Melodrama, ou a sedução da moral negociada”. Revista Novos Es-
tudos Cebrap, n. 57, julho de 2000. Pelo melodrama tratado como conceito, o autor discute o efeito de “simplificações de quem não
suporta ambiguidades nem a carga de ironia contida na experiência social, alguém que demanda proteção ou precisa de uma fantasia
de inocência diante de qualquer mau resultado.” (pp. 81-2).

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DENILSON SOARES CORDEIRO

dições educacionais, o que professores Explico-me. Subtração do aleatório


e professoras podemos diante de uma e da dispersão cotidianos, da participa-
tela, com acessos e participações inter- ção no jogo de automatismos conven-
mitentes, às vezes, ocultas e através de cionados; subtração ainda da desarti-
uma transmissão de tipo televisivo, sem culação expressiva, reflexiva e da ade-
alcance e menos ainda abrangência? são impulsiva às exigências imediatas,
Quase nada, talvez troca de informa- dos desejos colonizados pelos apelos do
ções, propostas de atividades como pas- mercado. O tempo e o espaço da aula
satempo, terapia ocupacional como dis- são de natureza distinta de todos os ou-
tração das preocupações sociais e dos tros. O tempo da aula, quando ocorre,
afazeres domésticos e de trabalhos ime- é o tempo do convite à ponderação, ao
diatos. exame lento e à gradual descoberta. O
Essas formulações em estado sinté- espaço da aula é o condicionante que
tico ocultam sutilezas e aprofundamen- modula as expectativas, apazigua as
tos necessários de cada dimensão da exasperações, concentra a atenção e es-
experiência envolvida no processo edu- timula a inteligência.
cacional, mas podem permitir, penso, O tipo de encontro que a aula pro-
vislumbrar um campo de desenvolvi- picia, quando se realiza bem, é de uma
mento de reflexões que possam explici- ordem antiga, aparentada da conversa
tar mais e melhor os graves problemas amena, do encontro polido e regrado,
escamoteados pelas determinações ofi- algumas vezes, até do sermão. Não é
ciais e práticas institucionais do “ensino raro que precisemos ser afastados do
remoto”. presente para compreender determi-
nados traços do próprio presente pela
perspectiva histórica da tradição. Como
um presente em atividade no âmago do
O valor da educação presencial passado, a aula oferece no momento da
sua realização uma passagem para o en-
Os professores e as professoras não “da- contro mais importante que uma inteli-
mos” aulas. Não como quem dá um gência em formação poderia pretender:
objeto ou dá adeus a alguém. Para aquele com a experiência da tradição.
além de elaborarmos um discurso, com O ensino e a aprendizagem depen-
conhecimento de causa, em torno de dem essencialmente do encontro que
um assunto estudado e organizado para a escola ou a universidade viabilizam,
enunciar diante de um público especí- porque, para muito além dos conteú-
fico e interessado, nós, na melhor parte dos, ensinar e aprender só são possíveis
em que a aula se realiza, promovemos graças à experiência da sociabilidade,
mais subtrações do que oferecimentos, posturas, afetos e gestos das pessoas en-
mais tiramos do que damos.

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O ATO DOCENTE NA ERA DA SUA REPRODUTIBILIDADE TÉCNICA: AULA, EDUCAÇÃO E ENSINO REMOTO

volvidas, regras de civilidade, teatrali- ências em sentido amplo que se intera-


dade própria e resultante do convívio gem e que só a presença física de cada
e da proximidade, do acolhimento, da um permite instaurar.
institucionalidade e da solidariedade, Se, por um lado, as medidas emer-
dos percursos e das travessias, dos es- genciais na tentativa de abrandamento
paços de permanência e de confraterni- dos danos que o isolamento social acar-
zação, pela vivência da alteridade com- reta alimentam a fúria “solucionista”
partilhada, pelo decoro que a vida so- (Morozov, 2020) do mercado tecnoló-
cial, escolar e universitária faz decan- gico e voraz no “extrativismo de dados”
tar no espírito em formação, nas habili- e dos voluntarismos histéricos de plan-
dades em desenvolvimento, na partici- tão (sempre ansiosos pelos comandos
pação nos processos do conhecimento, oficiais, pelas ordens dos superiores),
na conscientização da responsabilidade por outro lado, contrariamente às justi-
social do futuro profissional, na luta ficativas alardeadas, acabam por apro-
pelo respeito e pelas garantias que os fundar a exclusão, a discriminação e as
direitos humanos defendem. injustiças sociais, aniquilar oportunida-
Como percebemos, comparativa- des de reflexão e de definições democra-
mente, o chamado “ensino remoto” é ticamente ponderadas sobre o que seria
uma contradição em termos, fórmula de fato prioritário, solidário e educaci-
que revela contrariedades fundamen- onal fazer diante dos desafios.
tais, porque não há nem ensino e muito Sabemos, os estudantes fazem um
menos aprendizagem “a distância”, em- grande investimento afetivo, social e
bora possa haver, quando muito, troca intelectual quando vão à escola ou à
de informações. Essa é a falsificação universidade. O espaço público atra-
que as fórmulas tecnocráticas preten- vessa os estudantes e é atravessado pe-
dem fazer passar por “avanço” ou “pro- los desejos, interesses e disposições de-
gresso” ou “solução”. Poderíamos com- les. Quando o estudante entra na sala
parar o equívoco envolvido, por exem- de aula, vê que pode ocupar legitima-
plo, com a hipotética tentativa interes- mente um lugar, participar do sistema
sada de convencer as pessoas de que universitário do conhecimento, ser in-
conhecer um país poderia ser reduzido dividualizado pela atenção do professor
a ver uma série de imagens ou vídeos e ser nomeado oficialmente pelos do-
de lugares típicos desse país ou ouvir cumentos acadêmicos, sente-se inves-
algumas histórias de quem diz ter via- tido de direitos, de responsabilidades,
jado para lá. Ora, nada mais falso. Não de sentimentos, de sensações e de pen-
aprendemos apenas com os olhos, mas samentos que fazem toda a diferença
muito mais pela participação ativa na como entusiasmo e participação no pro-
complexidade de uma rede de experi- cesso da formação.

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DENILSON SOARES CORDEIRO

Os estudantes são a mais importante lacionamentos entre pessoas passariam


representação do futuro que a universi- a ser questão de software.
dade ou a escola podem ter. Isso quer Uma aula sempre acontece sobre um
dizer, que na constituição da dinâmica território concreta e geograficamente
do espaço público o trabalho educa- estabelecido, um tipo de setting, como
cional se organiza em torno do zelo e se diz no teatro, no cinema e na psica-
da preparação necessários à juventude nálise, ocupado pela presença de pro-
para o futuro da sociedade. Profes- fessores e estudantes, conhecimentos
sores, estudamos e planejamos nossos e interesses, domínios e afetos, enre-
assuntos e mesmo nossos corpos para dos e regras. Formação significa, por
esse encontro fundante de um delicado, isso, uma experiência fundamental-
complexo e, às vezes, frágil trabalho mente entre pessoas, seja na forma ins-
de apresentação da tradição aos jovens titucional que escolas e universidades
e, concomitantemente, de apresentação propiciam, seja na forma social de rela-
dos estudantes à tradição. As tempora- ções pessoais, profissionais, sentimen-
lidades, as materialidades e os espaços tais, culturais etc. Mas não virtuais,
próprios e institucionais são catalisa- porque mesmo que as imagens pare-
dores da consolidação desse trabalho. çam mostrar o contrário, a relação se
Daí que as acelerações automatizantes estabelece com um aparelho, portanto,
dos gadgets eletrônicos sejam pernici- um objeto, e, no fim das contas, com
osos à diversidade, ritmo, assimilação, uma mercadoria.
silêncios, olhares, concentração impres- A aula é a unidade básica do ato do-
cindíveis ao ensino e à aprendizagem. cente, e a sala de aula é o solo, entre o
Se a formação pudesse ser substi- público e o privado, sobre o qual tran-
tuída pela informação, os telejornais sitam o entendimento, o pensamento
poderiam substituir os estudos, os tex- e a expressão das múltiplas ideias. A
tos jornalísticos poderiam substituir os aula é feita, sobretudo, pela fala e pela
livros, os inúmeros vídeos disponíveis escuta, mas devidamente emoldurada
na internet poderiam substituir aulas, pela materialidade institucional, tem-
as filmagens de laboratórios poderiam perada com entusiasmo e alegria pelo
substituir os próprios laboratórios, os estudo, pelo conhecimento, pelo ensino
tutoriais poderiam substituir as orien- e pelo aprendizado.
tações de professores e de técnicos, o O âmbito no qual as aulas se tornam
buscador do Google poderia substituir uma fecunda oportunidade exige dos
o trabalho de pesquisa, os tradutores envolvidos a observância de um código
automáticos substituir o estudo de idio- de conduta, sem o qual os caminhos não
mas, enfim, as imagens poderiam subs- se oferecem, porque sequer parecem
tituir as viagens e, quem sabe, até os re- existir. Cada professor, no momento

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O ATO DOCENTE NA ERA DA SUA REPRODUTIBILIDADE TÉCNICA: AULA, EDUCAÇÃO E ENSINO REMOTO

em que prepara e apresenta suas au- cargos, funções e salários obrigam, ou-
las, o faz de um modo singular, porque tros simplesmente farão o que a maioria
tributário das condições do aqui e agora faz e, cientes e tranquilos com o fato de
de cada encontro, e, quando colhe êxito, que sempre houve excluídos, dormirão
também de uma maneira autêntica, cri- o sono dos justos.
ativa e fecunda. A desvinculação progressiva entre as
As denominadas Atividades Domi- promessas burocráticas fixadas nos pla-
ciliares Especiais (ADEs) não são au- nos de ensino e as práticas de realização
las, como o próprio nome, natureza será o primeiro choque de constatação
e regulação confirmam. São próteses das dificuldades no desenvolvimento
onde deveriam haver encontros presen- das ADEs. Patentes como percepção
ciais. Por isso, não podemos esperar nas eventuais avaliações, mas devida-
que cumpram o que somente a presença mente engavetadas na “transparência”
e a materialidade poderiam constituir. institucional. A organização dos estu-
Não “voltaremos às aulas”, como alguns dos estará mais do que nunca a cargo
alardeiam, não vamos “retomar os cur- exclusivo dos estudantes. Vídeos são
sos”, como outros pensam e dizem, va- formas que modificam a apreensão dos
mos, quando muito, fazer algo inédito, conteúdos, porque o meio é antes de
para o qual não estamos nem prepara- tudo a mensagem, quem estará à al-
dos, nem equipados, nem prevenidos, tura de abordá-los com o domínio crí-
sob a tutela de grandes empresas de tec- tico e técnico necessários para distin-
nologia cujo escopo é exclusivamente guir as peculiaridades? A multiplica-
vender dados. ção de preocupações de ordem técnica
E qual é a razão? Para cumprir ex- reduzirá a disponibilidade de profes-
clusivamente com as determinações bu- sores e estudantes na atenção necessá-
rocráticas oficiais dos calendários e as ria com as variadas frentes informativas
pressões do mercado. Nada mais. Não que as ADEs trazem e demandam. Mas
há argumentos pedagógicos que susten- desde que presentes virtualmente (!) e o
tem a decisão, estamos reféns de co- novo sistema das ADEs esteja rodando
mandos exclusivamente tecnocráticos. a todo vapor, tudo estará bem e avan-
Para os poderes instituídos, não con- çando no cumprimento das responsabi-
vém desfazer a ilusão de que “voltare- lidades públicas e políticas que a atual
mos às aulas”, menos ainda de que a universidade redefiniu para todos.
esperada “normalidade” esteja se resta- Isso não significa que não havia pro-
belecendo. Alguns encontrarão a jus- blemas nas aulas presenciais. E o ritmo
tificativa que procuram ansiosamente sempre frenético que a pandemia agora
para sentirem que trabalham, que cum- suspendeu poderia ser a oportunidade
prem com as responsabilidades a que de reavaliarmos e reestruturarmos pro-

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DENILSON SOARES CORDEIRO

cedimentos, necessidades e possibili- e de atendimento social, aumento da


dades. Contudo, os conselhos centrais violência no varejo, extermínio e encar-
abriram mão disso, em função dos com- ceramento em massa, degradação do es-
promissos da gestão. Por exemplo, a paço público, a dimensão pública passa
garantia das condições materiais e pe- a ser vista como lugar de risco, enfim,
dagógicas para todos estudantes pros- um efeito destrutivo em cascata. O que
seguirem adequadamente os estudos deixa aberta a oportunidade para a apa-
nunca acompanhou a bem-vinda ex- rição parasitária do chamado “solucio-
pansão das universidades federais e a nismo tecnológico” privatista.
ampliação do acesso à educação que o Grande parte do sistema de informa-
Reuni produziu. Sem poder se alimen- ções das universidades públicas passa
tar convenientemente, deslocar-se até pelo Google, o e-mail institucional, dri-
a universidade, encontrar instalações e ves de armazenamento, softwares de
espaços de acolhimento e de convivên- transmissão, de gravação e de adminis-
cia, de estudos e de pesquisa, não se tração de atividades, arquivos dos cur-
cumpre o direito à educação. E, quanto sos etc., além de relatórios de estatísti-
se trata a questão de modo meramente cas e dados das realizações por meios
técnico, a responsabilidade é transfe- tecnológicos que a instituição pratica.
rida para os estudantes e para as famí- Desde o princípio dessa aproximação,
lias. todas as mensagens e manifestações da
A necessidade do isolamento social gestão da universidade foram de cele-
agravou antigos problemas gestados na bração e de entusiasmo, como se final-
própria dinâmica social, escolar e uni- mente a universidade estivesse chegado
versitária. A suspensão das atividades ao ápice tecnológico do presente.
e do ritmo emergencial acadêmico po- Como escreve Evgeny Morozov
deria ser oportunidade rara para repen- (2020), sobre a “gratuidade” dos ser-
sarmos os desafios que a universidade viços do Google:
contemporânea enfrenta e quais hori-
zontes institucionais poderiam ser pri-
orizados na responsabilidade social que Não seria ótimo que um dia, di-
tem. Mas, o histórico de negligências ante da afirmativa de que a mis-
não deixa ilusões e esse processo de im- são do Google é ‘organizar as
plantação das ADEs a qualquer preço informações do mundo e torná-
reforça o descompasso profundo entre las acessíveis e úteis para to-
gestão universitária e demandas sociais. dos’ [como dizem ser a mis-
Tudo isso deságua catastroficamente são da empresa], pudéssemos
na sociedade. Falência projetada e es- ler nas entrelinhas e compre-
perada dos órgãos públicos de atenção ender o seu verdadeiro signifi-
cado, ou seja, ‘monetizar toda a

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O ATO DOCENTE NA ERA DA SUA REPRODUTIBILIDADE TÉCNICA: AULA, EDUCAÇÃO E ENSINO REMOTO

informação do mundo e torná- bem como de formação docente, já esta-


la universalmente inacessível e riam resolvidas. Uma vez que, na visão
lucrativa? (MOROZOV, 2020) da gestão a solução do problema apa-
rece como meramente informacional,
técnica, bastariam apenas 15 dias para
Dados sobre alguns dos impactos da
“resolver” (sic) questões como a perma-
adoção do ensino remoto na universi-
nência estudantil, a inclusão digital e a
dade:
capacitação docente.
Segundo Morozov,
“O departamento de tecnologia
cita as mais de 77 mil horas que
“[...] acontece uma neutrali-
os cerca de 1.700 usuários dedi-
zação do vocabulário crítico e
caram às 2.379 reuniões com-
o debate não chega a se insta-
putadas até o momento, em
lar porque é considerado “va-
240 salas virtuais, revelando
zio e inócuo”, uma vez que de-
aumento de 110% dessa de-
finem os problemas em termos
manda. Dentre os serviços mais
de questões, de saída, ‘digitais’
utilizados, estão as colações de
em vez de ‘políticas’ e ‘econô-
grau e defesas de teses e dis-
micas’, desde o princípio o de-
sertações virtuais; bem como
bate é conduzido em termos fa-
a emissão de certificados digi-
voráveis às empresas de tecno-
tais para graduação e extensão.”
logia. [...] Espera-se que aceite-
(Ata do Conselho Universitário,
mos que o Google seja a melhor
10/06/20)
e única forma possível de usar o
correio eletrônico [e ferramen-
São números expressivos e que não tas de ensino remoto], e que o
poderiam escapar à atenção e ao inte- Facebook seja a melhor e única
resse das empresas tecnológicas de ex- maneira possível de nos conec-
trativismo de dados. tarmos uns com os outros, pelas
A pró-reitoria de graduação propôs redes sociais. [...] o que mais
em 4 de junho de 2020 que a retomada poderia explicar os problemas
do primeiro semestre de 2020 ocor- de saúde senão suas deficiên-
resse de forma remota, com a revisão cias pessoais? Certamente não
das grades curriculares dos cursos para o poder das empresas alimen-
reinício em 22 de junho. A expecta- tícias ou as distinções de classe
tiva e o discurso institucional foram no ou, ainda, as inúmeras injus-
sentido de que as questões de perma- tiças políticas e econômicas.”
nência estudantil e de inclusão digital, (MOROZOV, 2020)

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queda nas matrículas e de ofe-


A dimensão política é, portanto, re- recer condições para quem não
baixada à utilização individual de apli- pode ou não tem meios para o
cativos em aparelhos sofisticados que ensino presencial.
encarnam o ideal de eficiência, status Fase 3: O business: o sistema,
e inovação. O estatuto de consumidor beneficiado pela flexibilidade
privilegiado dos usuários sobrepuja o do mercado e implementado
do cidadão com direitos, e os aplica- pela experiência forçada des-
tivos oferecem soluções antes que seja ses meses de isolamento, en-
possível, por exemplo, o valor das ma- contra condições propícias para
nifestações em áreas e praças públicas. transformar-se no “negócio per-
O resultado é a aniquilação progressiva feito”: infraestrutura, com-
da imaginação política, substituída pela petência técnica, mentalidade
hipnose ideológica das telas e pelo bem- preparada pelo uso, docentes
estar (falso) das ofertas e atualizações “reprodutíveis” à vontade; in-
do momento. Nenhum software, no en- vestidores interessados e forne-
tanto, por mais Inteligência Artificial cedores de serviços de informá-
(IA) que comporte, é capaz de conside- tica; estudantes que pagam a
rar a pobreza, o racismo, a violência e taxa, mas não demandam sa-
as demais injustiças sociais como pro- las de aulas, estruturas e nem
blemas originados pelo mesmo sistema acarretam custos adicionais de
que tornam esses mesmos ‘avanços’ tec- gestão.
nológicos possíveis.
Segundo Frederico Bertoni (2020),
Em essência, o ato docente, podemos
as etapas desse processo de aprofun-
dizer inspirados em Benjamin (1993),
damento do desmonte e da acelerada
sempre foi reprodutível, mas no sen-
privatização na educação pública são:
tido de ser emulado, e o projeto de
reproduzi-lo faz parte das conquistas
Fase 1: A emergência: a univer- da educação. O que docentes fazem,
sidade ativa em tempo recorde no exercício do ofício, sempre pode ser
o ensino remoto como única al- imitado pelos estudantes e pelos discí-
ternativa para todos os casos; pulos, nos estudos, pesquisas e, depois,
Fase 2: A crise: No próximo na prática intelectual e profissional.
ano letivo, se o vírus permitir, Em contraste, a atual reprodutibilidade
muitas escolas e universidades técnica representa um processo novo.
adotarão uma modalidade hí- Agora, pela primeira vez, o chamado
brida [blended] com a justifica- corpo físico de docentes, estudantes e
tiva de compensar a inevitável discípulos, e concreto das instituições,

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O ATO DOCENTE NA ERA DA SUA REPRODUTIBILIDADE TÉCNICA: AULA, EDUCAÇÃO E ENSINO REMOTO

são liberados das experiências e respon- e os resultados éticos a que podem levar
sabilidades propedêuticas formativas, nossas propostas de crítica ou de mera
que, como no cinema, passaram a estar obediência às regras do jogo. Para essas
restritas exclusivamente ao olho. Com elaborações e respostas devemos, ne-
a internet, os inúmeros aplicativos e a cessariamente, recusar a ansiedade do
transformação dos celulares em compu- tempo emergencial em voga.
tadores de bolso (máquina de escrever,
fotográfica, câmera de filmagem, apare-
lho de reprodução de filmes, gravador
de voz, televisão, rádio e telefone), a re- Esperança residual
produção técnica alcançou um patamar
de disseminação que pode transformar A contraposição necessária, no entanto,
tudo em suas imagens, submetendo a não passa pelo esforço, ademais inútil,
modificações profundas, como conquis- de fazer apenas a crítica da ideologia e
tar e colonizar procedimentos e práticas dos interesses em voga, tentando apon-
antes exclusivamente educacionais para tar incoerências e contradições em seus
fins comerciais. próprios termos. Com as energias utó-
As perspectivas da educação em geral picas leigas tão em baixa, a esperança
e da aula em particular, seja na escola, residual sobrevive, se for possível di-
seja na universidade, durante a pande- zer tanto, somente pela determinação
mia e no cenário pós-pandêmico depen- intelectual de manter-se na resistência,
dem diretamente das nossas possibili- um pouco por princípio, por respon-
dades de aprofundar o diagnóstico do sabilidade, um tanto por orgulho, por
presente, praticar urgentemente aquilo costume, estudando, debatendo, inter-
que Gramsci chamou de “responsabili- vindo, ainda que a derrota seja diari-
dade histórica” e revalorizar o lugar da amente reeditada. Um trabalho de Sí-
humanidade diante da tecnologia. Se o sifo. Crer no processo que a resistência
que digo aqui faz algum sentido, é for- instaura, manter-se engajado no que de-
çoso reconhecer que “temos um grande sencadeia, orientar-se pelos êxitos pon-
passado pela frente”, como escreveu tuais e eventuais, precaver-se contra as
Millôr Fernandes. Não vejo nenhuma armadilhas dos esquematismos, exami-
chance de modificação dessa nefasta nar criticamente as conformações que
dinâmica sem começar por repolitizar chamam presente, pensar muitas ve-
as discussões, indagando, por exemplo, zes antes de ceder aos voluntarismos,
em benefício de quem são tomadas as manter-se fiel aos princípios nos quais
decisões oficiais, sobre os limites entre as pessoas são sempre mais importantes
aderir e recusar as determinações que do que as coisas e os procedimentos.
aprofundam essa lamentável realidade Como toda crise, esta de agora pro-
duz, dentre inúmeros agravamentos e

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DENILSON SOARES CORDEIRO

desorientações e, por isso mesmo, pede países, e mesmo em outras circunstân-


firmeza acerca de princípios, para nós, cias políticas e históricas. E socializar e
inegociáveis, balizas a partir das quais debater sem trégua.
considerar a proporção dos desafios e a Distinguir as tarefas e responsabili-
força necessária para enfrentamentos e dades da vida pública e da vida pessoal
propostas. Destaco o que me parece um (reformulação baseada na famosa dis-
dos alicerces desses princípios: Uma tinção kantiana entre uso público e uso
concepção de universidade que seja pú- privado da razão) é crucial. Como a es-
blica, gratuita, de qualidade, para todos cola e a universidade invadem a casa, é
e socialmente responsável. preciso, mais do que nunca, uma con-
Para nos precavermos contra o volun- traofensiva de estabelecer limites, que
tarismo adesionista e solucionista que valem, inclusive e talvez mais fecunda-
se transformou na segunda natureza do mente, para as elaborações do pensa-
funcionalismo público na universidade, mento.
o alarmismo de apocalípticos pode ofe- Como decorrência, convém, no exer-
recer alternativas fecundas para dimen- cício da função pública do pensamento,
sionar melhor os problemas. Qualquer examinar que tipo de sociedade está
crítica do presente tem de ser ao mesmo pressuposta e é preconizada na formu-
tempo um diagnóstico desapaixonado, lação de propostas. No sentido de anu-
tanto quanto possível. lar o que Bertoni (2020) chama de “mo-
Por isso, importa ponderar muitas bilização total”, imposta pelas atuais
vezes antes de ajuizar e, mais ainda, circunstâncias. O efeito sobre a fun-
antes de decidir o que propor e fazer, ção privada tende a ser liberador.
sobretudo em relação a dados e cons- Sobre a responsabilidade histórica,
trangimentos oficiais e a informações importa intervir tanto nos colegiados
e emergências midiáticas. Pois, sabe- universitários, quanto nos fóruns mais
mos, importa muito mais, nas humani- amplos de discussão sobre problemas
dades, como disse e escreveu Alcir Pé- educacionais comuns entre os chama-
cora (2015), “não resolver nada e, antes, dos pares, e jamais negligenciar as po-
criar novos problemas e, de preferência, sições políticas dos ímpares.
que importunem para sempre”. Importa lembrar que, como professo-
Manter-se bem informado é daquelas res e professoras, trabalhamos visando,
responsabilidades e necessidades que fundamentalmente, os estudantes. Por-
a crise aprofunda, o que quer dizer, tanto, acolher, orientar e acompanhar
conferir a legitimidade das fontes, des- estão dentre as atribuições que dão sen-
confiar dos vocabulários, confrontar e tido e norte às nossas outras funções
examinar perspectivas, considerar com- profissionais. Por isso, importa deci-
parativamente experiências em outros sivamente nosso esforço no sentido de

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O ATO DOCENTE NA ERA DA SUA REPRODUTIBILIDADE TÉCNICA: AULA, EDUCAÇÃO E ENSINO REMOTO

garantir a vigência de práticas propri-


amente intelectuais e universitárias, de
reunião, ainda que virtual, com os estu- Aqui estamos em plena uto-
dantes para restabelecer vínculos ins- pia: resistir com absoluta in-
titucionais e solidários, para reavivar transigência a cada constrangi-
o sentimento de participação na vida mento ou especulação na defesa
acadêmica e, quem sabe, com isso ate- de uma ideia de universidade
nuar prejuízos e combater sofrimentos (e de escola) pública, aberta,
pessoais e sociais. Mais do que a ideia generalista, bem comum e es-
moderna de autonomia, importam con- sencial, não só lugar de trans-
temporaneamente a solidariedade e a missão de conhecimento, mas
sensibilidade social. instrumento imprescindível de
Se não formos nós, haverá sempre igualdade [e justiça] social, na
alternativas comerciais, oportunistas e letra e no espírito. E se não ti-
privatistas de plantão, pelas quais os es- vermos êxito em enfrentar cole-
tudantes (mas não só) são rapidamente tivamente, porque os interesses
convertidos em consumidores de pro- em campo são fortes demais e
dutos e serviços no mercado global de as posições muito heterogêneas,
educação. Por isso, convém, se for pos- que cada um possa, ao menos,
sível, estar na linha de frente do acolhi- resistir por si, recusar-se a fazer
mento aos estudantes. ensino remoto [teledidattica] e
Precaver-se permanentemente contra possa dizer em voz alta: não em
a assimilação fisiológica (sempre tam- meu nome.
bém patológica) dos processos e das di-
nâmicas institucionais, e, simultanea-
mente, pela neutralização do canto de De algum modo, penso, as semen-
sereia dos projetos de disputa de poder tes de novas utopias poderiam encon-
oficial. Historicamente, a vitalidade e trar algum solo fértil em nós e, confesso
força dos movimentos político-sociais meio encabulado um otimismo bei-
de protesto, contestação e recusa de- rando o delírio, brotar, ainda que dis-
pendeu diretamente desse zelo essen- cretamente, dessas providências, pre-
cial. cauções e propostas, e, para mim, é o
Para concluir, traduzo o trecho final que parece nos restar como residual es-
do texto de Bertoni (2020): perança no momento.

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DENILSON SOARES CORDEIRO

Referências
BENJAMIN, W. “A obra de arte na era da sua reprodutibilidade técnica”. In: Magia e técnica, arte e
política. Obras escolhidas 1. Trad. Sergio Paulo Rouanet. São Paulo: Ed. Brasiliense, 1993.
BERTONI, F. Insegnare (et vivere) ai tempi del vírus. Bolonha: Ed. Semi/Nottetempo, 2020.
MOROZOV, E. Big Tech: a ascensão dos dados e a morte da política. Trad. Claudio Marcondes, São
Paulo: Ed. Ubu, 2018
PÉCORA, A. “Letras e humanidades depois da crise”. Revista da Anpoll, n. 38, pp. 41-54, Florianó-
polis, jan./jun./2015.
XAVIER, I. “Melodrama, ou a sedução da moral negociada”. Revista Novos Estudos Cebrap, n. 57,
julho de 2000.

Recebido: 18/10/2020
Aprovado: 13/01/2021
Publicado: 31/01/2021

224 Revista de Filosofia Moderna e Contemporânea, Brasília, v.8, n.3, dez. 2020, p. 207-224
ISSN: 2317-9570
DOI: https://doi.org/10.26512/rfmc.v8i3.31941

Rousseau e as Artes: Uma Leitura do Pigmaleão


[Rousseau and the Arts: A Reading from the Pygmalion]

Wilson Alves de Paiva*

Resumo: O presente texto apresenta uma tradução da peça Pygmalion, escrita pelo
filósofo genebrino Jean-Jacques Rousseau (1712-1778). A tradução foi feita direta do
original em francês, o qual está contido nos “Contes et Apologues” (Contos e Apólogos)
das Œuvres Complètes (Obras Completas), publicada em cinco volumes, na França, pelas
Edições Gallimard, da coleção Bibliothèque de la Pléiade, sob a direção de Bernard
Gagnebin e Marcel Raymond. Após a tradução, o artigo procura discutir que enquanto
Rousseau condenava as artes, dentre elas o teatro, como um dos elementos causadores
da corrupção humana, escreveu diversas obras artísticas, entre elas poesias, romances,
óperas e peças de teatro. Aliás, o autor pode ser considerado como um dos precursores
do romantismo, tendo influenciado nomes como o do grande escritor alemão Goethe.
Entretanto, a estética rousseauniana tem a perspectiva de se encontrar o remédio no
próprio veneno, isto é, a utilização das artes como remédio para os males que elas
causaram no coração humano.
Palavras-chave: Rousseau. Romantismo. Pigmaleão. Artes. Teatro.

Abstract: This text presents a translation of the theatre play Pygmalion, written by the
Swiss philosopher Jean-Jacques Rousseau (1712-1778). The translation has been made
directly from the original in French, which is part of the “Contes et Apologues” (Tales
and Apologists) of the Œuvres Complètes (Complete Works), published in five volumes,
in France, by the Gallimard Editions, of the Bibliothèque de la collection Pléiade, under
the direction of Bernard Gagnebin and Marcel Raymond. Following the translation, a
discussion is provided on the problem: while Rousseau condemned the arts, including
theater, as one of the elements that have caused human corruption, he wrote several
artistic works, including poetry, novels, operas and plays. In fact, the author can be
considered as one of the precursors of romanticism, having influenced names like
that of the great German writer Goethe. However, the Rousseaunian aesthetic has the
perspective of finding the remedy in the poison itself, that is, the use of the arts as a
remedy for the ills they have caused in the human heart.
Keywords: Rousseau. Romanticism. Pygmalion. Arts. Theatre.

* Professor da Universidade Federal de Goiás (UFG). Doutor em filosofia da educação pela Universidade de São Paulo (USP). E-
mail: scriswap@ufg.br. ORCID: https://orcid.org/0000-0001-5654-7193.

Revista de Filosofia Moderna e Contemporânea, Brasília, v.8, n.3, dez. 2020, p. 225-245 225
ISSN: 2317-9570
WILSON ALVES DE PAIVA

Introdução aparece em diversas obras da produção


literária europeia, com forte recorrên-
cia sobretudo a partir do século XVII,
A produção acadêmica tem consa-
destacando-se a peça do dramaturgo ir-
grado o nome de Jean-Jacques Rousseau
landês John Bernard Shaw, Pygamlion,
(1712-1778) como um dos mais impor-
mas que não segue os critérios estéti-
tantes precursores do romantismo. En-
cos da obra rousseauniana. Original-
tre sua produção encontram-se obras
mente aparecem dois personagens com
que ajudaram a configurar esse estilo li-
esse nome,1 ambos de origem orien-
terário, como o romance epistolar Júlia
tal, na mitologia grega, mas o mais co-
ou a Nova Heloísa, além de obras que
nhecido é encontrado nos versos de al-
não deixam de ter um sentido lírico,
guns poetas, como Virgílio, que rela-
intimista e sentimental, como os Deva-
tam a história de um escultor, rei celi-
neios do Caminhante Solitário, as Confis-
batário da ilha de Chipre, que acabou
sões e inúmeras pequenas peças de po-
apaixonando-se pela estátua feminina
esia, música e teatro. Dentre esta úl-
que criara, a Galateia. Deu-lhe esse
tima categoria se encontra a peça Pyg-
nome em homenagem à nereida Gala-
malion (Pigmaleão), a qual, embora pe-
teia, filha de Nereu e Dóris, cuja beleza
quena, possui uma riqueza estética que
encantara o ciclope Polifemo (LICHT,
nos ajuda a entender o pensamento de
2018), e serviu de referência estética ao
Rousseau quanto à produção das ar-
celibatário Pigmaleão. Seu celibato era
tes e a compreendê-lo em seus posici-
motivado pela recusa de esposar as mu-
onamentos filosóficos. Tendo em vista
lheres libertinas e sem virtudes de sua
que não há nenhuma versão em por-
ilha. Em resposta às suas súplicas, a
tuguês, pelo menos editada no Brasil,
deusa Afrodite deu vida à estátua com a
a tradução que se segue neste ensaio
qual Pigmaleão contraiu núpcias e teve
foi feita a partir do original francês,
uma filha, a quem deu o nome de Pa-
cujo texto original utilizado faz parte
fos. Segundo Kerényi (2015), essa histó-
da sessão “Contes et Apologues” (Con-
ria ajudou a difundir o culto à Afrodite,
tos e Apólogos) das Œuvres Complètes
como a deusa do amor.
(Obras Completas), publicada em cinco
A peça de Rousseau foi colocada na
volumes, na França, pelas Edições Gal-
seção “Contos e apólogos”. Ora, um
limard, da coleção Bibliothèque de la
“apólogo” é uma narrativa em prosa ou
Pléiade, sob a direção de Bernard Gag-
verso, com o objetivo argumentativo e
nebin e Marcel Raymond (O.C., T. II,
produzida geralmente de forma dialo-
1964, pp. 1224-1231).
gada para expressar uma reflexão mo-
Pigmaleão é uma figura literária que

1 Sg. Brandão (2014), em seu Dicionário mítico-etimológico da mitologia grega.

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ROUSSEAU E AS ARTES: UMA LEITURA DO PIGMALEÃO

ral. A pequena obra rousseauniana que pessoa já tinham se intensificado depois


leva esse nome é, como o leitor pode das leituras públicas e da publicação
verificar nesta tradução, um monólogo do romance A Nova Heloísa, bem como
de um escultor chamado Pigmaleão. O com a produção do Emílio e do Con-
texto é intercalado por pantomimas e trato Social. Mesmo assim, após uma
interrompido apenas no final, quando longa viagem de fuga, Rousseau chega
sua escultura ganha vida e emite algu- a Lyon, em 1770, e sua peça é apre-
mas palavras de auto reconhecimento. sentada no pequeno teatro da prefei-
O subtítulo “Cena lírica”, colocado pelo tura, com grande sucesso. Em janeiro
autor, também pode ser traduzido por de 1771 foi publicada no jornal Mercure
“Melodrama”, um estilo novo para o de France e se difundiu por toda Europa,
qual a peça contribuiu significativa- ganhando versões em outros idiomas.
mente, apresentando de forma suces- Diante da “guerra” travada contra ele,
siva o monólogo declamado e a música podemos questionar, por que dar aos
instrumental. Embora Rousseau tenha inimigos mais munição? E só o espírito
feito somente a letra e deixada a música inquieto de Rousseau e sua incansável
para outro músico amador, chamado genialidade podem servir de resposta.
Horace Coignet (1735-1821), a obra foi Mas ainda há de se questionar que, re-
composta provavelmente em seu exí- sultando desse contexto, o Pigmaleão
lio em Neuchâtel, em 1762, quando fa- seria uma arma nas mãos de seu criador
ziam quase dez anos que sua Carta so- ou de seus inimigos? É um dos pontos
bre a música francesa havia sido publi- que este pequeno artigo pretende dis-
cada, pela qual recebera inúmeras crí- cutir. Primeiro, vamos à tradução.
ticas. Os ataques contra sua obra e sua

Tradução

PIGMALEÃO,
Cena lírica.

No palco, o ateliê de um escultor. Dos lados, blocos de mármore e grupos


de estátuas inacabadas. Ao fundo, outra estátua, escondida sob um manto
de tecido leve e brilhante, decorado com franjas e guirlandas.
Pigmaleão, sentado e inclinado, devaneia com o ar de um homem preocu-
pado e triste; Eis que, de repente, levanta-se, pega de uma mesa as ferra-
mentas de sua arte e começa a dar golpes intervalados de formão em algu-
mas de suas peças; depois, recua e as observa insatisfeito e desanimado.

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WILSON ALVES DE PAIVA

PIGMALEÃO.

Não há nelas nada de alma ou de vida; não passam de pedra. Jamais farei
alguma coisa de tudo isso.

Oh! Meu gênio, onde tu estás? Meu talento, para onde foste? Todo meu
fervor se apagou, minha imaginação ficou congelada, o mármore sai frio de
minhas mãos.

Pigmaleão, não intentes fazer mais deuses: tu não passas de um artista


vulgar... Vis instrumentos que não sois mais os da minha glória, vamos,
não desonre minhas mãos.

Ele lança fora suas ferramentas com desdém, em seguida caminha pensativo por um
pouco de tempo, com os braços cruzados.

O que eu me tornei? que revolução estranha ocorreu em mim?...

Tiro, cidade opulenta e soberba, os monumentos de arte que te fazem bri-


lhar não me encantam mais, perdi o gosto que eu tinha em admirá-los: o
comércio de artistas e filósofos se tornou insípido para mim; a conversa de
pintores e de poetas não me é atrativa; o louvor e a glória não elevam mais
minha alma; os elogios daqueles que serão aclamados não me tocam mais;
até mesmo a amizade perdeu para mim seu charme.

E vós, jovens objetos, obras-primas da natureza que minha arte ousou imi-
tar, e em cujos passos os prazeres me atraíam sem cessar, vós, meus modelos
encantadores, que me incendiastes ao mesmo tempo com o fogo do amor e
do gênio, desde que vos superei, sois todos para mim indiferentes.

Ele se senta e contempla tudo ao seu redor.

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ROUSSEAU E AS ARTES: UMA LEITURA DO PIGMALEÃO

Preso nesse ateliê por um encanto inconcebível, não consigo fazer nada e
não posso me afastar. Vagueio de grupo em grupo, de figura em figura.
Meu formão debilitado, errático, não reconhece mais seu guia: essas obras
grosseiras, deixadas em seu tímido esboço, não sentem mais a mão que an-
tes as animava...

Ele se levanta impetuosamente.

Não adianta mais! Não adianta mais! Perdi meu gênio... Tão jovem ainda,
eu perdi meu talento.

Mas o que é então esse ardor interno que me devora? O que tenho em
mim que parece me incendiar? O quê! Na languidez de um gênio apagado,
sentem-se essas emoções, sentem-se esses impulsos de paixões impetuosas,
essa ansiedade instransponível, essa agitação secreta que me atormenta cuja
causa não consigo desvendar?

Receio que a admiração da minha própria obra não tenha causado a distra-
ção que acabei trazendo ao meu trabalho. Eu o escondi sob esse véu... mi-
nhas profanas mãos ousaram cobrir esse monumento de sua glória. Desde
que não posso mais vê-lo, estou mais triste e menos atento do que antes.

Como me será cara, como me será preciosa essa obra imortal! Quando mi-
nha mente apagada não produzir mais nada de grandioso, belo e digno de
mim, mostrarei minha Galateia e direi: eis minha criação! Ó minha Gala-
teia! Quando eu tiver perdido tudo, tu me restarás e então serei consolado.

Ele se aproxima da tenda e depois recua, vai e vem e às vezes para suspirando para
contemplá-la.

Mas por que escondê-la? O que ganho com isso? Reduzido à ociosidade, por
que me privar do prazer de contemplar a mais bela das minhas obras?... Tal-
vez ainda resta nela algum defeito que eu não tenha notado. Talvez pudesse
ainda acrescentar algum ornamento ao seu esplendor; pois nenhuma graça
que se imagine deve faltar em um objeto tão encantador... Talvez esse objeto

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reanimará minha imaginação enfraquecida. É preciso revê-la, examiná-la


novamente. Ei! O que estou dizendo? Ainda não a examinei: até agora o
que fiz foi admirá-la.

Ele vai levantar o véu e o deixa cair como assustado.

Não sei que emoção eu sinto ao tocar esse véu; um pavor me toma; acho
que toco o santuário de alguma divindade... Pigmaleão! Mas é uma pedra,
criação tua. E o que importa?

Em nossos templos, servimos aos deuses que não são diferentes: feitos do
mesmo material e pela mesma mão humana.

Tremendo, ele tira o véu e se inclina. Vê-se a estátua de Galateia posta sobre
um pedestal muito pequeno, mas elevada por uma plataforma de mármore,
formada por alguns degraus semicirculares.

Ó, Galateia! Recebei minha reverência. Sim, eu estava enganado: queria


fazer de vós uma ninfa, mas vos fiz uma Deusa: A própria Vênus é menos
bela que vós.

Vaidade, fraqueza humana! Não posso deixar de admirar meu trabalho! Eu


me embebedo de amor-próprio; adoro a mim mesmo naquilo que fiz... Não,
nada assim tão belo apareceu na natureza; superei a criação dos deuses...

Quê! tantas belezas saem de minhas mãos? Minhas mãos logo as tocaram?
Minha boca então poderia... Pigmaleão! Vejo um defeito. Esse vestuário
cobre demasiado o nu; é preciso talhá-lo mais; os encantos que ele esconde
devem ser melhor revelados.

Ele pega o martelo e o formão, depois avançando devagar, hesitante, sobe os


degraus da estátua que parece não ousar tocar. Finalmente, com o formão já
levantado, ele se detém.

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Que tremor! Que perturbação! Seguro o formão com uma mão insegura...
não posso... não ouso... estragarei tudo.

Ele se encoraja e, finalmente, apresentando seu formão, dá um único golpe


e, tomado de pavor, deixa-o cair, emitindo um alto grito.

Deuses! sinto a carne palpitante empurrando o formão!...

Ele desce de volta, tremendo e confuso.

Terror vão, cegueira tola!... Não, não tocarei em nada; os deuses me apavo-
ram. Sem dúvida já está a eles consagrada.

Ele a analisa de novo.

O que queres mudar? olha; que novos encantos queres lhe dar?... Ah! É
a perfeição que é o seu defeito... Divina Galateia! fosseis menos perfeita,
nada vos faltaria.

Ternamente.

Mas vos falta uma alma: vossa figura não pode ficar sem.

Com ainda mais ternura.

Quão bela deve ser a alma feita para dar vida a um corpo assim!

Ele se detém por um longo tempo, depois voltando a sentar-se, diz com
uma voz lenta e alterada.

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Que desejos ouso formar? Que anseios insensatos! O que é isso que eu
sinto? Oh, céu! O véu da ilusão tomba e eu não ouso ver o que está no meu
coração: teria muito a me indignar.

Longa pausa num estado de profunda consternação.

... Eis então a nobre paixão que me ilude! E é por causa desse objeto ina-
nimado que não ouso sair daqui!... Um mármore! Uma pedra! Uma massa
disforme e dura, talhada por este ferro!... Insensato, retorna a ti mesmo;
pranteia, encara teu erro... contemple tua loucura... Mas não...

Impetuosamente.

Não, não fiquei louco; não estou delirando; não posso me culpar de nada.
Não é por esse mármore sem vida que estou enamorado, mas de um ser
vivente que a ele se assemelha; da imagem que ele projeta em meus olhos.
Em qualquer lugar que esteja essa imagem adorável, qualquer corpo que a
porte, e qualquer mão que a faça, ela terá todos os votos do meu coração.
Sim, minha única loucura é a de discernir a beleza e meu único crime é de
poder senti-la. Não há nada nisso que me possa envergonhar.

Menos vivaz, mas ainda com paixão.

Quantas labaredas parecem sair desse objeto para inflamar meus sentidos e
retornar com minha alma à sua fonte! Infelizmente ele permanece imóvel e
frio, enquanto meu coração arde por seus encantos. Quisera eu sair de meu
corpo para ir aquecer o seu. Eu creio, nesse meu delírio, poder lançar-me
fora de mim; creio poder lhe dar minha vida e animá-la com a minha alma.
Ah! Que Pigmaleão morra para viver em Galateia!... Oh, céus! O que estou
dizendo? Se eu fosse ela, não mais a veria, não seria mais aquele que a ama!
Não, que minha Galateia viva e eu não seja ela. Ah! Que eu seja sempre um
outro, para desejar sempre ser ela, para vê-la, para amá-la, para ser amado
por ela...

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Com entusiasmo.

Tormentos, vontades, desejos, raiva, impotência, amor terrível, amor fu-


nesto... oh! O inferno inteiro está no meu coração agitado... Deuses po-
derosos! Deuses benevolentes! Deuses do povo, que conheceis as paixões
dos homens! Ah! Vós haveis operado tantos prodígios por causas menores!
Vejais esse objeto, vejais meu coração; sejais justos e mereceis nossos altares!

Com entusiasmo mais trágico.

E tu, essência sublime, que te escondes dos sentidos e te projetas nos co-
rações! alma do universo, princípio de toda a existência; tu que pelo amor
concedes harmonia aos elementos, vida à matéria, sentimento aos corpos e
a forma a todos os seres; fogo sagrado! Vênus celeste, por quem tudo se con-
serva e se reproduz sem cessar! Ah! Onde está teu equilíbrio? Onde está tua
força expansiva? Onde está a lei da natureza neste sentimento que sinto?
Onde está tua flama vivificante na inutilidade de meus vãos desejos? Todo
teu calor está concentrado no meu coração e o frio da morte permanece
nesse mármore; pereço pelo excesso de vida que lhe falta. Ai! Não espero
nenhum prodígio; existe, mas deve cessar; pois a ordem está perturbada, a
natureza está ultrajada; restaures o domínio deles à suas leis, restabeleças
seu curso benfazejo e despejes igualmente tua divina influência. Sim, fal-
tam dois seres à plenitude das coisas. Compartilhes entre eles esse ardor
devorador que consome um sem aquecer o outro. Es tu que formaste, por
minha mão, esses encantos e traços que aguardam tão só o sentimento e a
vida... Dá-lhe a metade da minha, dá-lhe toda, se for necessário, pois me
bastará viver nela. Oh, tu que te satisfazes das homenagens dos mortais!
Aquele que não sente nada não te adora. Amplia tua glória com tuas obras.
Deusa da beleza, poupes a natureza dessa afronta, a de que um modelo tão
perfeito seja a imagem do que não é.

Ele volta a si gradualmente com um movimento de segurança e alegria.

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Recupero meus sentidos. Que calma súbita! Que coragem inesperada me


reanima! Uma febre mortal abrasava meu sangue; mas um bálsamo de con-
fiança e esperança agora flui em minhas veias; Acho que me sinto renascido.

É assim que o sentimento de nossa dependência serve às vezes para nosso


consolo. Por mais infelizes que sejam os mortais, quando invocam os deu-
ses, ficam mais tranquilos...

Mas essa confiança injusta engana aqueles que fazem desejos tolos... Infe-
lizmente! No estado em que me encontro invocamos de tudo e ninguém nos
escuta. A esperança que nos abusa é mais insensata que o desejo.

Envergonhado com tantos erros, não ouso mais contemplar a causa. Quando
quero elevar meus olhos para esse objeto fatal, sinto uma nova perturbação,
uma palpitação me sufoca, um medo secreto me impede...

Com amarga ironia.

... Ei! Olha, miserável! Sê corajoso, ousa mirar uma estátua.

Ele a vê ganhar vida e se afasta, tomado de medo


com o coração apertado de dor.

O que foi que vi? Pelos deuses! O que acho que eu vi? A cor da carne...
um fogo nos olhos... ou mesmo um movimento... Não bastava esperar pelo
milagre; para piorar o estado de miséria, ao final, eu a vi...

Em extrema prostração.

Infeliz! Então é isso... teu delírio atingiu seu clímax; tua razão te aban-
dona assim como teu gênio!... Não te lamentes, ó Pigmaleão! Tua desrazão
cobrirá teu opróbrio...

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Com viva indignação.

É muita felicidade para um apaixonado por uma pedra em se tornar um


homem de visões.

Ele se vira e vê a estátua se mover e descer por força própria os degraus


sobres os quais ele subiu para colocá-la sobre o pedestal. Ele cai de joelhos
e levanta as mãos e os olhos ao céu.

Deuses imortais! Vênus! Galateia! Oh, é a vantagem de um amor frenético!

Galateia se toca e diz.

Eu.

Pigmaleão, emocionado.

Eu!

Galateia se toca novamente.

Isto sou eu!

Pigmaleão.

Adorável ilusão que passa pelos meus ouvidos, ah! nunca abandones meus
sentidos.

Galateia dá alguns passos e toca um mármore.

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Isso não é mais eu.

Pigmaleão, numa agitação e numa emoção que quase não consegue controlar,
segue todos os movimentos da estátua, ouvindo-a, observando-a
com uma atenção tão ávida que quase não consegue respirar.

Gatateia se avança até ele e o observa.

Ele se levanta apressadamente, estende seus braços a ela,


observando-a extasiado. Ela coloca uma mão sobre ele;
ele estremece, pega essa mão, coloca-a sobre seu coração
e depois a cobre com beijos ardentes.

Gatateia com um suspiro.

Ah! ainda sou eu.

Pigmaleão.

Sim, caro e encantado objeto: sim, a mais digna obra-prima de minhas


mãos, do meu coração e dos deuses... Es tu, es tu só: Eu te dei todo o meu
ser; não viverei mais a não ser por ti.

Discussão a deusa Afrodite não veio atender ao


seu pedido e, assim, dar vida à estátua.
Tanto a peça de Rousseau quanto o mito Entre os gregos antigos o valor estético
grego apresentam um artista que se gozava de um estatuto próprio e funda-
apaixona por sua obra, dada sua per- mentava a vida social em toda sua ma-
feição e sua beleza. No caso do mítico neira de viver. O amor dedicado a uma
rei de Chipre, sua súplica foi tão in- obra de arte teve até correspondentes
tensa que não pôde descansar enquanto na vida concreta de tal modo que Licht

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(2018) chega a relatar alguns casos de mano à psiqué, a entrega final que o
“pigmaleonismo” reais que ocorreram Pigmaleão de Rousseau dedica à sua
no mundo helênico, devidamente docu- obra, mesmo que animada pela força
mentados por alguns escritores, como dos deuses, tem a ver mais com a fusão
um jovem de uma família abastada de do humano ao eros.
Cnido, no golfo de Cós, o qual se apai- Diferente da clara intervenção divina
xonou pela estátua de Afrodite feita por que acontece nos mitos gregos, na peça
Praxiteles (395-330 a.C.), um dos mai- de Rousseau a animação da pedra mais
ores escultores da Grécia Antiga, que parece um delírio do escultor, sua ima-
ficava no templo daquela cidade. Diz ginação que responde ao estado de de-
Licht (2108, p. 502) que o jovem “pas- sespero no qual se encontrava por ter
sava dias no templo e nunca se cansava perdido a inspiração. Assim, diante
de contemplar sem cessar a imagem di- da impaciência, da angústia, da tris-
vina”. teza, da irritação e do medo, seu per-
Ao chamar a experiência desse jovem sonagem pode ter apenas imaginado a
grego de “estética”, estamos longe do reação de sua obra. Um estado psico-
sentido epistemológico dado por Baum- lógico que vai da mais profunda tris-
garten (1936) de reflexão sobre o belo. teza à euforia de poder contemplar seu
Tal perspectiva só ganha estatuto no esforço sendo recompensado pelo fato
século XVIII, embora Aristóteles já ti- de que sua obra criou vida. Ademais,
vesse introduzido ambas as perspecti- como cristão, Rousseau não lança mão
vas, isto é, tanto a da reflexão sobre o dos mitos gregos a não ser como metá-
belo quanto à da experiência sensitiva. fora e recurso retórico. Portanto, longe
Porém, desde o mundo antigo ao início de ser um deus, eros é, para Rousseau
do moderno é a perspectiva das sen- uma força que canaliza um retorno à
sações e da contemplação que sempre unidade. É nesse sentido que o perso-
esteve em destaque. Tanto no jovem de nagem escultor emprega suas palavras
Cnido, quanto no Pigmaleão dos mi- finais de seu monólogo: “Sim, caro e en-
tos helênicos ou mesmo no Pigmaleão cantado objeto: sim, a mais digna obra-
da obra de Rousseau o que há é uma prima de minhas mãos, do meu coração
demonstração de uma experiência sen- e dos deuses... Es tu, es tu só: Eu te dei
sitiva que resulta da contemplação do todo o meu ser; não viverei mais a não
belo. Porém, uma sutil diferença entre ser por ti”.
os antigos e Rousseau deve ser desta- Entretanto, admitindo que, no final
cada: Se o fanatismo órfico do jovem da peça, os deuses realmente tenham
grego se fia, como nos demais mitos, na atendido o clamor de Pigmaleão, o ar-
metempsicose sobre o mármore para, a tista não assume a estátua animada
partir dela, operar uma fusão do hu- como resultado de uma metempsicose,

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mas como uma obra-prima que, dada na substituição de um objeto por uma
sua beleza, bem como a evocação do consciência”.
próprio escultor, recebeu uma interven- A relação de Rousseau com as artes
ção divina, ganhando anima com uma é emblemática e se desenvolve na con-
parte de sua própria alma para se mo- tramão do pensamento iluminista. Já é
ver e se sentir viva. Junção da Psiqué, bastante conhecido seu posicionamento
representada pela ação divina, com o a esse respeito e a obra que talvez te-
eros, representado pela ação humana nha chamado mais atenção tenha sido
do escultor, num ato conjunto de amor: o Primeiro Discurso, isto é, o Discurso
“do meu coração e dos deuses”. E, em sobre as ciências e as artes. Nela, Rous-
vez e exaltar alguma divindade, Pig- seau responde negativamente à questão
maleão afirma, dirigindo-se à própria proposta pela Academia de Dijon, se
estátua: “Es tu” e “Eu te dei todo meu o restabelecimento das ciências e das
ser”. Portanto, se no encerramento da artes teriam contribuído para melho-
peça o artista se entrega, dizendo: “não rar os costumes. Seu discurso, premi-
viverei mais a não ser por ti”, é porque ado em 1750 e publicado no Mercure
a obra é, primeiramente, manifestação de France no ano seguinte, contrariava
do trabalho humano sobre a natureza, o ideário iluminista com sua superva-
isto é, o mármore, e pela qual o humano lorização do conhecimento racional e
viverá. Não é, portanto, o triunfo do hu- seu papel no desenvolvimento moral.
mano sobre a natureza, nem o contrá- Então o que as artes proporcionam aos
rio, mas o triunfo de ambos, fundidos homens? Para que servem? A resposta
numa unidade estética. Como diz Sta- de Rousseau é incisiva: Tão somente
robinski (1991, p. 81), “Galatéia viva para criar “guirlandas de flores sobre as
não será mais uma obra, mas uma cons- cadeias de ferro de que estão eles carre-
ciência. Pigmalião, feliz, abandona seus gados, afogam-lhes o sentimento dessa
instrumentos; o amor de Galatéia lhe liberdade original, para a qual pare-
bastará; não esculpirá mais estátuas...”. ciam ter nascido, fazem com que amem
E o interessante é que o primeiro ato sua escravidão e formam assim o que se
de Galateia, depois que ganha vida, é chama povos policiados” (ROUSSEAU,
reconhecer-se, tomar consciência de si 1999b, p. 190).
mesma, mas também tendo consciência Para ele, então, o refinamento da cul-
que é fruto do trabalho humano. Ao tura se desenvolveu a partir do luxo,
tocar-se, ela diz: “eu”, mas ao tocar Pig- dos vícios e da ociosidade. Consequen-
malião, diz “ainda sou eu”: a suprema temente, provocou o afastamento da
fusão do amor. A grande jogada aqui, simplicidade e das disposições natu-
como bem a capta Starobinski (1991, rais, nada acrescentando à verdadeira
p. 82), é a seguinte: “O milagre está felicidade, acabou criando situações nas

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quais o parecer sobrepôs-se ao ser, num está na reprodução da própria natureza,


conjunto de relações artificiais e en- mesmo que em um espaço delimitado,
ganosas que, como um “véu, espesso” de modo a não negar as disposições na-
(ROUSSEAU, 1999b, p. 198), cobrindo turais e proporcionar um ambiente no
a verdadeira natureza humana. Uti- qual o visitante sinta como parte dessa
lizando ainda a mesma metáfora dos natureza em toda sua originalidade. Pa-
deuses, foi o que aconteceu à Galateia radoxalmente, a virtude do jardineiro
e, igualmente, a Glauco. Por sua vez, está na arte de apagar os traços de seu
o deus marinho, como Rousseau relata trabalho (PAIVA, 2009),2 de modo que a
no prefácio do Segundo Discurso, sofreu exuberância de seu trabalho possa pro-
o efeito do tempo, das águas do mar vocar um arrebatamento, uma sensa-
e das intempéries, desfigurando-se de ção mágica e sobrenatural semelhante
tal modo que ficou parecendo mais a à que Pigmaleão teve com a pedra ani-
um animal feroz do que a um deus. Do mada. Saint-Preux, na Nova Heloísa, ao
mesmo modo, a alma humana foi al- visitar o jardim Eliseu, confessa sentir-
terada no seio da sociedade pela ação se surpreso, impressionado, extasiado
corrosiva das paixões, mudando de apa- e, enfim, arrebatado por aquele lugar
rência a ponto de tornar-se quase irre- encantador (ROUSSEAU, 2006).
conhecível. Do mesmo modo era a está- Em sua hipótese antropológica, tal
tua de Galateia, coberta com o véu. como Rousseau a descreve no Segundo
A presença de um “quase” devolve Discurso, o homem saiu do estado de
a esperança. Isto é, se não ficou total- natureza para nunca mais voltar e o
mente irreconhecível, bastou retirar-lhe processo foi acelerado pela capacidade
o “véu” das algas e da crosta criada pe- inata de aperfeiçoamento que, lamen-
los sais e efeitos marinhos para que sua tavelmente, foi alimentada pelos vícios
originalidade se revelasse. Retirado o e pelas paixões, encaminhando a hu-
véu de Galateia, revelada sua essência manidade a um estado geral de corrup-
animada, dotada de consciência, o ar- ção social. Portanto, à parte do pro-
tista quer participar dessa consciência blema ético sobre a forma como a pro-
e, certamente não quer voltar às está- priedade privada foi estabelecida a dis-
tuas frias inanimadas que não recebe- junção se deu por um problema esté-
ram vida, não quer voltar às imagens tico: “Aquele que cantava ou dançava
simples e à pura representação. Trata- melhor, o mais belo, o mais forte, o
se agora de reprodução, tal como ocorre mais astuto ou o mais eloquente, pas-
em sua teoria do jardim cuja virtude sou a ser o mais considerado, e foi esse

2 “Tudo é verdejante, fresco, vigoroso e a mão do jardineiro não aparece: nada desmente a ideia de uma Ilha deserta que me veio à
mente ao entrar e não percebo nenhum passo humano” (ROUSSEAU, 2006, p. 416).

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o primeiro passo tanto para a desigual- trar em Veneza, foi anterior à sua “con-
dade quanto para o vício” (ROUSSEAU, versão” no caminho de Vincennes, em
1999b, p. 92). E foi nesse sentido que 1749, quando foi visitar o amigo Di-
as ciências e as artes aprofundaram o derot, encarcerado, e teve sua epifania.
fosso moral e contribuíram para a de- Ao escrever seu Primeiro Discurso, já era
crepitude da espécie. Se a arte teve esse um homem novo, alguém que, pela ilu-
poder avassalador e Rousseau era cons- minação que tivera, passou a defender
ciente disso, por que, então, dedicou-se outro ponto de vista, aquele pelo qual
tanto à arte? Afinal, desde a sua ju- ficou conhecido, ou seja, o do crítico das
ventude era um amante da literatura, artes e denunciador de seus males.
da música e do teatro. Quando resi- Diante da questão, se o restabeleci-
diu na Itália, como secretário da Em- mento das ciências e das artes teria con-
baixada Francesa junto à República de tribuído para aprimorar os costumes,
Veneza, entre 1743 a 1744, apreendeu, proposta pela Academia de Dijon para
assim que lá chegou, a joie de vivre da seu concurso, a opção de Rousseau pela
cidade e soube aproveitar como nin- resposta negativa é, na escrita do Dis-
guém o refinamento cultural desse lu- curso sobre as ciências e as artes, o ponto
gar. Depois, de volta à França, escreveu de partida de uma relação complexa en-
diversas composições teatrais e musi- tre natureza e cultura que o autor vai
cais, além de um romance que o colocou desenvolver em outros escritos. De um
como um dos pais do romantismo lite- lado, a proposição interpretativa de que
rário, vindo a influenciar inclusive Go- tudo é certo ao sair das mãos da natu-
ethe e os demais representantes do mo- reza, por outro a de que o homem tudo
vimento proto-romântico alemão Sturm degenera e corrompe. De modo que as
und Drang (Tempestade e ímpeto). artes são impuras em suas origens, pois
Quanto a isso há várias considera- são geradas pelos vícios e paixões.3 São
ções. A primeira, é que, como diz como elementos substantivos, como o luxo, a
diz Cranston (1982), o Rousseau solitá- ociosidade, a vaidade e o desejo de re-
rio, devaneador e amante da natureza, conhecimento e exaltação sobre os de-
qualificativos pelos quais ficou tão co- mais, que dão sustentação às artes e até
nhecido, não é o mesmo Rousseau que à ciência.
desembarcou em Veneza, no Palácio da O problema da degenerescência não
Embaixada. Afinal, esse período de êx- está na arte em si, mas na forma como
tase pela arquitetura, pela ópera, pe- historicamente ela se desenvolveu. No
las danças, pela pintura e por todo esse início, nos primórdios da humanidade,
modo de vida refinado que foi encon- os povos simples souberam utilizar da

3 “As ciências e as artes devem, portanto, seu nascimento a nossos vícios” (ROUSSEAU, 1999b, p. 203).

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ROUSSEAU E AS ARTES: UMA LEITURA DO PIGMALEÃO

arte, como a dança, para o fortaleci- malefício ou a cura dos males. Tal pers-
mento dos laços humanitários e soci- pectiva reafirma o princípio do veneno
ais. Como ele diz, no Ensaio sobre a ori- como remédio e deixa claro que o pro-
gem das línguas: “Reúnem-se em torno blema não está na substância, mas na
de uma fogueira comum, aí se fazem prescrição. Nesse aspecto, o mal con-
festins, aí se dança. Os agradáveis la- tém seu remédio na medida em que for
ços do hábito aí aproximam, insensivel- utilizado para evitar um mal pior, como
mente o homem de seus semelhantes e, um antídoto, em benefício público. Se
nessa fogueira rústica, queima o fogo o veneno contém o seu antídoto, evi-
sagrado que leva ao fundo dos corações dentemente que ele não pode ser con-
o primeiro sentimento de humanidade” denado ou banido, mas bem utilizado
(ROUSSEAU, 1999a, p. 295). O que não para os fins de cura. Ou seja, as artes,
durou muito, pois logo desenvolveu-se a ciência e a própria razão na verdade
o amor-próprio. Naquele que queria se desfiguram o homem, pois o distanciam
destacar, ser superior, ter privilégio e da natureza e de suas disposições ori-
ter o domínio sobre os demais. Desse ginais. mas, também pode redefinir o
ponto em diante, o processo foi, lamen- destino da humanidade e propiciar o
tavelmente, para a decrepitude da es- reencontro do homem com seu valor
pécie. absoluto ou, melhor dizendo, com sua
Assim, tendo a humanidade aden- autenticidade e consigo mesmo, desde
trado um processo social de corrupção, que emulada por nobres propósitos.
a arte deixou de representar os estados Como diz ele, “as mesmas causas que
do coração e os sentimentos advindos corromperam os povos servem algu-
da alma. Mas passou a mascarar a in- mas vezes para prevenir uma corrupção
felicidade e disfarçar as injustiças e a maior” (ROUSSEAU, 1999a, p. 300).
escravidão. Isto é, passou a estender Rousseau reconhece a utilidade que
“guirlandas de flores sobre as cadeias as artes têm na implementação da vida
de ferro de que estão eles carregados” cotidiana. Na Última resposta ao Sr. Bor-
(ROUSSEAU, 1999b, p. 190). des, uma das diversas refutações aos
Entretanto, seu posicionamento con- ataques recebidos pelo Discursos sobre
trário não fez dele um inimigo das artes, as ciências e as artes, publicada no Mer-
mas alguém que soube utilizar-se delas cure de France, diz que:
para atacar seu efeito devastador. Como
ele diz no Emílio (p. 134), “a desco-
berta da causa do mal indica o remédio” As ciências são a obra-prima do
(ROUSSEAU, 1973, p. 134). Ou seja, gênio e da razão. O espírito
como um princípio ativo de um remé- de imitação produziu as belas-
dio, as artes podem ser utilizadas para o artes, e a experiência as aperfei-
çoou. Devemos às artes mecâ-

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WILSON ALVES DE PAIVA

nicas um grande número de in- lhor ou impedi-lo de tornar-se


venções úteis que aumentaram ainda pior? Esta é outra ques-
os encantos e as comodidades tão, em relação à qual me de-
da vida. Eis verdades com as clarei positivamente pela nega-
quais de bom grado concordo. tiva. Pois, em primeiro lugar,
(Idem, p. 262) uma vez que um povo corrupto
nunca mais volta à virtude, não
Além de ter escrito algumas óperas, se trata de tornar bons aqueles
Rousseau foi autor da peça Narciso, ou que não o são, mas de conservar
o amante de si mesmo, na qual procura assim aqueles que têm a felici-
demonstrar que o efeito catártico é ilu- dade de sê-lo. Em segundo lu-
sório. Para ele, a capacidade de se pôr gar, as mesmas causas que cor-
no lugar do outro deve ser real e não romperam os povos servem al-
apenas imitativa. Se essa transposição é gumas vezes para prevenir uma
feita de forma apenas imaginária, no corrupção maior. (ROUSSEAU,
âmbito do teatro, acaba-se por fazer 1999a, p. 300).
como Narciso, o qual usurpou o lugar
do outro somente pelo prazer de viver
a personagem. Mas no Prefácio da obra
Rousseau coloca uma nota contra a de- Emílio é um belo exemplo da arte li-
sesperança que tais afirmações possam terária do século XVIII como um remé-
gerar, fazendo-nos lembrar que a apa- dio contra os males da civilização, prin-
rência bem intencionada pode conter cipalmente o afastamento do homem
virtude. Principalmente a afirmação para com a natureza. Em que sentido
de que um povo uma vez corrompido a obra é um remédio? Basicamente no
nunca mais volta à virtude. Quanto a sentido da aquisição cultural e na am-
isso Rousseau faz um comentário que pliação das possibilidades humanas de
deixa clara a importância pedagógica uma forma nova, distinta da realidade
das ciências e das artes e o papel que a dada, que possibilite a plena realização
educação tem na preparação das gera- do homem em sua verdadeira natureza.
ções futuras: Vemos que do início ao fim do Emílio,
a criança é preparada para desenvol-
Mas, quando um povo já se cor- ver sua sensibilidade, suas disposições
rompeu até um certo ponto, naturais e suas possibilidades criativas
quer as ciências tenham, quer (para si e para os outros) para, ao fim,
não, contribuído para tanto, tornar-se o homem pleno, preparado
será preciso bani-las ou se pre- para viver em qualquer sociedade sem
servas delas para torná-lo me- se corromper.

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ROUSSEAU E AS ARTES: UMA LEITURA DO PIGMALEÃO

Porém, o “bárbaro”4 não se fez ini- caminhar as emoções.


migo das artes e do conhecimento em Tendo em vista o homem civil na
geral, como podemos verificar mais à perspectiva rousseauniana dos Discur-
frente quando comenta que: “as ciên- sos, isto é, corrompido pelas ciências,
cias são a obra-prima do gênio e da pelas artes e pelo progresso das pai-
razão. O espírito de imitação produ- xões, a ação reparadora deve ser tão ra-
ziu as belas-artes, e a experiência as dical que possa ser chamada de um “se-
aperfeiçoou. (...) Eis as verdades com gundo nascimento” no qual o homem
as quais de bom grado concordo”. E, não renasce apenas para si, mas para os
por fim, completa: “Já afirmei, em ou- outros. Como diz no final do Primeiro
tro lugar, que não me propunha a aba- discurso (p. 259 – grifo meu):
lar a sociedade atual, a queimar as bi-
bliotecas e todos os livros, a destruir
Deixemos, pois, as ciências e
os colégios e as academias” (Idem, p.
as artes adoçarem, de qualquer
281). Ainda que as ciências e as artes
modo, a ferocidade dos ho-
tenham causado mais mal do que bem,
mens que corromperam; procu-
mesmo assim é um contrassenso pensar
remos disfarçar prudentemente e
em eliminá-las. É preciso considerar
esforcemo-nos por mudar suas
todos os conhecimentos, habilidades e
paixões. Oferecemos algum ali-
progresso do ponto de vista moral.
mento a esses tigres, para que
De onde podemos inferir que essas
não devorem nossos filhos.
manifestações artísticas bem encami-
nhadas podem evitar a ociosidade e se-
rem bem utilizadas com o propósito de Rousseau encarna essa ideia com
infundir nas mentalidades a virtude ne- muita paixão e, ciente da utilidade das
cessária ao pleno desenvolvimento do artes, encerra suas refutações dizendo:
homem em suas disposições civis, bem
como em suas necessidades pessoais.
Esperando, escreverei livros,
Provavelmente influenciada por Platão,
comporei versos e música, caso
essa perspectiva se reveste de uma fi-
tenha para isso talento, tempo,
nalidade pedagógica com vistas a evitar
força e vontade, e continuarei
a corrupção e a redirecionar o labor ar-
a dizer, com toda a franqueza,
tístico no sentido de melhor conduzir o
todo o mal que penso das le-
desenvolvimento das paixões e bem en-
tras e daqueles que as cultivam,

4 Rousseau usa a palavra “barbárie” para diversos sentidos. No Primeiro discurso o termo se refere ao período da Idade Média: “A
Europa tinha tornado a cair na barbárie dos primeiros tempos”. Mas, ao colocar como epigrafe do mesmo discurso a frase de Ovídio:
Barbarus hic ego sum quia non intelligor illis que significa: “Aqui estou, o bárbaro, porque ninguém me entende” (Ovídio, Tristes, v.
Elegia 10, vl. 57, 1987), está sendo irônico e fazendo referência às críticas que recebeu de muitos de seus contemporâneos.

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WILSON ALVES DE PAIVA

tendo certeza de não valer me- gógico, por que o preceptor de Emílio
nos por isso. É verdade que o levou a um local desses? Ora, o po-
um dia poderão dizer: ‘Esse der pedagógico do teatro foi o “nervo
inimigo tão declarado das ci- do debate” (MATTOS, 2009, p. 8) en-
ências e das artes, todavia, fez tre Voltaire, Diderot e Rousseau. E, en-
e publicou peças de teatro’, e quanto os dois primeiros valorizaram a
tal discurso constituirá, con- pedagogia catártica dos palcos, Rous-
fesso, uma sátira muito amarga, seau só o via como vacina. Desde cedo
não a mim, mas a meu século” ele pôde perceber os efeitos maléficos
(ROUSSEAU 1999b, p. 302). do teatro. Isso é claro quando ele ad-
verte D’Alembert (O.C., T. V, p. 24), di-
zendo: “Quanto mais reflito sobre isso,
mais descubro que tudo que se coloca
Considerações finais em representação no teatro não se apro-
xima de nós, mas se distancia”.
Portanto, como Rousseau diz nas Con- No entanto, a representação teatral
fissões, que os passeios de gôndola pelo pode ser válida somente, segundo Naito
rio, que ele realizava quando era jo- (2014, p. 170) “se o que é represen-
vem e secretário da Embaixada, em Ve- tado no palco corresponde a uma reali-
neza, bem como as caminhadas que re- dade”. Desse modo, qual realidade po-
alizava pelas ruas da cidade lhe davam demos visualizar na cena lírica cuja tra-
muito prazer, mas bem mais atrativas dução aqui apresento? Na peça Pigma-
e apaixonantes eram, segundo ele, as leão, Rousseau retira a dimensão eró-
canções melodiosas que se ouviam por tica, a interferência de Vênus e a histó-
toda parte, na boca de todos. Então, ria da mulher depravada, do mito origi-
embora essas cenas se reportam à época nal, para ressaltar o poder criativo do
vivenciada antes de sua “conversão”, artista, sua imaginação e sua paixão.
no caminho de Vincennes, já havia em Vedrini (1989, p. 113) nos diz que “se
sua alma, no âmago de seu pensamento a Nova Heloísa foi um dos maiores su-
uma estética do comum, do cotidiano, cessos de livraria do século, talvez seja
do simples, do corriqueiro, do popular. porque Rousseau havia escrito o que vi-
Nesse sentido, as festas camponesas são venciou, ou melhor, viveu o que havia
mais autênticas que as festas luxuosas escrito ". Rousseau escreveu Pigmaleão
ou o teatro citadino. Mas, se a cura de durante um período de exaustiva de-
um mal pode ser encontrada no próprio pressão. Portanto, escreveu o que es-
veneno, isso nos leva compreender que tava vivenciando e vivenciava o que es-
todas as artes, inclusive o teatro, podem crevia. Nesse sentido, as palavras que
ser usadas de forma pedagógica. encerram a peça: “Es tu, es tu só: Eu te
Se o teatro não tem um efeito peda-

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ROUSSEAU E AS ARTES: UMA LEITURA DO PIGMALEÃO

dei todo o meu ser; não viverei mais a própria obra, pois é por ela que ele vive
não ser por ti”, pode nos remeter a um até hoje entre nós.
diálogo profundo entre Rousseau e sua

Referências
BRANDÃO, Junito de Souza. Dicionário mítico-etimológico da mitologia grega. Petrópolis-RJ: Vozes, 2014.
KERÉNYI, Karl. A mitologia dos gregos (3 volumes). Trad. Octavio Mendes Cajado. Petrópolis-RJ: Vozes, 2015.
LICHT, Hans. Sexual life in ancient Greece. USA: Read Books, 2018.
MATTOS, Franklin. A querela do teatro no seculo XVIII: Voltaire, Diderot, Rousseau. São Paulo: Rev. O que nos faz
pensar, no 25, agosto de 2009.
NAITO, Yoshihiro. Le Pygmalion de Rousseau et son esthétique de l’opéra. Ritsumeikan Studies in Langage and Culture,
25-2, 2014, p. 167-180. Disponível em: https://www.academia.edu/6300615/Le_Pygmalion_de_Rousseau_et_son
_esthétique_de_lopéra. Acessado em 15/02/2020.
OVIDE. Tristes. Texte etabli et traduit par Jacques Andre. Paris: Belles Lettres, 1987.
PAIVA, Wilson Alves de. O jardim de Rousseau e a virtude do jardineiro. Cadernos De Ética e Filosofia Política, 1(14),
147-178. Recuperado de http://www.revistas.usp.br/cefp/article/view/83324.
ROUSSEAU, Jean-Jacques. Œuvres Complètes, 5v. Paris: Pleiade, 1959-1960.
______. Do contrato social e Ensaio sobre a origem das línguas. Tradução de Lourdes Santos Machado. Introduções e notas
de Paul Arbousse-Bastide e Lourival Gomes Machado. S. Paulo: Nova Cultural, 1999a. (Coleção Os Pensadores;
volume I)
______. Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre os homens / Discurso sobre as ciências e as artes.
Tradução de Lourdes Santos Machado. Introduções e notas de Paul Arbousse-Bastide e Lourival Gomes Machado.
S. Paulo: Nova Cultural, 1999b. (Coleção Os Pensadores; volume II)
STAROBINSKI, Jean. A transparência e o obstáculo: seguido de sete ensaios sobre Rousseau. Trad. Lúcia Maria Machado.
São Paulo: Companhia das Letras, 1991.
VEDRINI, Mireille. Les jardins secrets de Jean-Jacques Rousseau, préface de Bernard Gagnebin Chambery: Agraf, 1989.

Recebido: 04/06/2020
Aprovado: 01/01/2021
Publicado: 31/01/2021

Revista de Filosofia Moderna e Contemporânea, Brasília, v.8, n.3, dez. 2020, p. 225-245 245
ISSN: 2317-9570
DOI: https://doi.org/10.26512/rfmc.v8i3.31233

Nietzsche: Da Técnica da Memória à Técnica do Esquecimento?


[Nietzsche: From the Technique of Memory to the Technique of Forgetting?]

Adilson Feiler*

Resumo: As diversas técnicas de memória têm privilegiado a constituição de um aparato


institucional. O projeto nietzschiano de transvaloração dos valores se impôs contra estas
disposições da memória, para tanto, opera num movimento inverso, pela promoção de
técnicas que privilegiem a dissolução da memória em esquecimento. De modo a enfra-
quecer o aparato moral institucional e fortalecer o projeto de valores que privilegiem a
vida e suas disposições anímicas. Contudo, vigora neste projeto nietzschiano uma aporia:
a de permanecer na esfera da afirmação da técnica. Se, por um lado, Nietzsche questiona
todos os mecanismos técnicos, a saber àqueles relativos aos estabelecimentos de ensino
por outro, ele não ultrapassa esta esfera, afirma a técnica através dos mecanismos do
esquecimento, ao questionar as técnicas de memória. Em que medida os escritos de Ni-
etzsche inspiram uma reflexão profícua para pensar a técnica e sua aplicação à memória?
Palavras-chave: Nietzsche. Técnica. Memória. Esquecimento. Cultura.

Abstract: The various memory techniques have privileged the constitution of an ins-
titutional apparatus. The Nietzschean project of overvaluing values imposed itself
against these dispositions of memory, therefore, it operates in an inverse movement,
by promoting techniques that privilege the dissolution of memory in forgetfullness. In
order to weaken the institutional moral apparatus and strengthen the project of values
that privilege life and its soul dispositions. However, in this Nietzschean project there
is an aporia: that of remaining in the sphere of the affirmation of the technique. If, on
the one hand, Nietzsche questions all technical mechanisms, namely those related to
educational establishments on the other, he does not go beyond this sphere, says the
technique through the mechanisms of forgetfulness, when questioning the techniques of
memory. To what extent do Nietzsche’s writings inspire fruitful reflection to think about
technique and its application to memory?
Keywords: Nietzsche. Technique. Memory. Forgetfulness. Culture

* Professor do Programa Pós-graduação em Filosofia da Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos). Doutor em Filosofia
pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS). E-mail: afeiler@unisinos.br. ORCID: https://orcid.org/0000-
0001-7352-927X

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ISSN: 2317-9570
ADILSON FEILER

Considerações iniciais forma de expressão da técnica e a es-


crita, a sua invenção tem sido um dos
fatores que conduzem ao esquecimento,
– “(...) a escola técnica e o ginásio, nos atuando como ameaça às técnicas de
seus fins atuais, são em tudo tão seme- memória. Com a escrita não se exer-
lhantes (...) nos falta completamente cita mais a memória, depositando-se
um certo tipo de estabelecimento de assim toda a credibilidade em signos
ensino: o estabelecimento da cultura”, externos. A invenção da escrita, pelo
(NIETZSCHE, KSA, Sobre o futuro de deus Tot, faz com que nossa memória
nossos estabelecimentos de ensino, I, jamais seja a mesma. Além da escrita,
Quarta Conferência, p. 717), “(...) tal- também a grande quantidade de infor-
vez nada existe de mais terrível e in- mações fragmentárias, têm contribuído
quietante na pré-história do homem do para enfraquecer a memória. Pois já
que a sua mnemotécnica. Grava-se algo não se consegue mais atingir aquela li-
a fogo, para que fique na memória: ape- nearidade de raciocínio em relações que
nas o que não cessa de causar dor, fica venham a constituir um sistema. As in-
na memória.” (NIETZSCHE, KSA, Ge- formações, com isso, já não são mais as-
nealogia da Moral, V, II Dissertação, similadas, pois ao não comporem mais
§ 03, 1999, p. 295). Mesmo que me- uma cadeia de raciocínio se resumem a
todologicamente, a técnica e afirmada, uma cadeia de informações dispersas,
o que põe em aparente contradição o sem sentido. Ora, se a escrita tem atu-
projeto nietzschiano de superação da ado em fazer esquecer, então ela tem
técnica, que permeia as diversas ins- pactuado com o projeto nietzschiano de
tâncias da cultura. No entanto, esta- combate às técnicas de memória, res-
mos considerando escritos de Nietzs- ponsáveis, em grande parte, pelo cul-
che como uma relativa distância, aque- tivo da má consciência, que se expressa
les primeiros são escritos póstumos de em forma de ressentimento. Tais sin-
1870-1873 e o segundo de 1887-8. A tomas repercutem em fraqueza e impo-
questão está em saber em que medida tência, os principais responsáveis pela
Nietzsche se opõe, mais precisamente, decadência da cultura. No início do ca-
a técnica em detrimento aos mecanis- pítulo Por que escrevo tão bons livros de
mos anímicos e instintivos. Para tanto, Ecce Homo, Nietzsche evoca a sua es-
nossa investigação reside nos interstí- crita como uma realidade que se encon-
cios em que a técnica, de acordo com tra para além dele mesmo. A sua com-
a compreensão nietzschiana, se estriba, preensão esta, inclusive, situada para
de modo a esclarecer seus atributos e além das técnicas que até então se en-
determinações, e, assim, avaliar em que contram para se compreender alguma
medida esta se coaduna ou não ao pro- forma de escrita.
jeto transvalorador de Nietzsche. Uma

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ISSN: 2317-9570
NIETZSCHE: DA TÉCNICA DA MEMÓRIA À TÉCNICA DO ESQUECIMENTO?

Por mais que Nietzsche se oponha às futuro que demanda tempo para a sua
técnicas de memória, e possível tam- maturação, somos levados, além disso,
bém considera-lo como propulsor das a concepção de que a cultura não pode
mesmas. Esta ênfase na importância da se ater a produção de artefatos especí-
existência da memória Nietzsche apre- ficos que atendam às demandas desen-
senta em um dos aspectos que mais ele freadas da economia política. Outros-
e lembrado, a sua estilística. O estilo sim, a cultura não pode pactuar da ten-
de escrita de Nietzsche faz dele defen- dência massificadora que leva a ampliar
sor da importância de se reter na me- ao máximo os seus círculos. Diante dos
mória informações, fatos, ensinamen- desafios que nos colocamos para pensar
tos. Paradoxalmente o filósofo alemão a relação entre técnica e cultura em seus
atua numa via de mão dupla no tocante diversos mecanismos, como são aqueles
às técnicas de memória: por um lado, da memória e do esquecimento, fare-
ataca-as como técnicas que impossibi- mos um percurso em três momentos.
litam a descarga daquelas forças que No primeiro momento aprofundamos
necessitam ser extravasadas; por outro, as implicações da cultura, pelo cultivo
as defende como subsídios importantes demorado de si mesmo, frente às de-
para que a memória retenha todo esse mandas apressadas de uma tendência
lastro de experiências que marcam as movida pela técnica, ao qual intitula-
diferentes nuances do viver. A técnica mos “Da pressa da técnica ao demo-
poderia ser considerada como uma fer- rado cultivo da cultura em instantes de
ramenta para o desenvolvimento do gê- plenitude.” No passo seguinte, consi-
nio, daqueles espécimes seletos da cul- deramos as possíveis relações entre as
tura, aberta a totalidade para um apro- especialidades promovidas pela tecno-
fundamento maduro de si, em detri- logia e seu afã de atender às demandas
mento de uma técnica que promove o utilitaristas de um mercado competi-
desenvolvimento da massa, devotada a tivo e a capacidade de amplitude que
especialidade superficial e apressada? exige o estabelecimento da cultura; a
Em que medida a filosofia de Nietzsche este intitulamos “Os desafios de se pen-
pode ser considerada um aporte ao de- sar uma técnica que ultrapasse os li-
senvolvimento da técnica que perpassa mites de sua especificidade para a am-
diversas instâncias da cultura, como e plidão que demanda a cultura.” Final-
o caso da memória, mesmo que na con- mente, adentramos no maior de todos
tramão da técnica que se depreende dos os desafios a que nos propomos neste
estabelecimentos de ensino? trabalho: o de manter o compromisso
Ao pensarmos, a partir das reflexões com a técnica, como um dos meios de
nietzschianas, uma técnica que favo- favorecimento da cultura, para além da
reça a cultura, concebida enquanto um tendência massificadora, ao qual intitu-

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ADILSON FEILER

lamos “A técnica como ferramenta para o futuro dos estabelecimentos de en-


o cultivo de si pela desconstrução das sino” bastava a questão dos desafios da
técnicas de memória massificadoras. técnica aplicados ao cultivo de si, ou
seja, como a rapidez da técnica pode ser
aplicada ao demorado processo de auto
cultivo, que se expressa, basicamente,
1. Da pressa da técnica ao demorado pelo ócio filosófico. A reflexão filosó-
cultivo da cultura: a memória que se fica, atenta e acurada, demanda tempo
plenifica em instantes de plenitude para o seu cultivo até o seu amadureci-
mento. Com isso, somos levados a refle-
O caminho que a técnica vem percor- tir sobre a nossa própria produtividade
rendo, desde as grandes revoluções hu- científica. Em que medida os mecanis-
mano tecno científicas, aos dias atuais mos técnicos que rendam os diversos ar-
constituem um caminho sem volta. Ou tefatos de medição de produção alcan-
seja, não se é mais possível pensar num çam aquele objetivo que aponta para a
retorno aos tempos que se vivia anteri- excelência?
ores ao domínio da técnica moderna. E A cultura que se promove pelos me-
um dos atributos da técnica é a rapidez canismos da técnica é “(...) uma cul-
vertiginosa com que esta se apresenta tura rápida” (NIETZSCHE, KSA, I, So-
no cenário atual. Um dos valores que bre o futuro de nossos estabelecimen-
se atribui à técnica, e seus diferentes tos de ensino, Primeira Conferência, p.
artefatos, diz respeito à rapidez com 668), preocupada em fazer render di-
que estes podem cumprir a sua fun- nheiro, e dinheiro rápido. Myriam Xa-
ção. Diante disso, torna-se impossível a vier Fragoso a esse respeito traz a se-
existência de artefatos que demandem guinte reflexão: “A cultura atual reu-
tempo demasiado para a realização de nira a inteligência e a propriedade. O
suas funções. Contudo, a questão que lucro assumira a categoria de valor mo-
se coloca diante desta situação é a qua- ral. A cultura rápida antecipa o lu-
lidade com que estes artefatos técnicos cro” (FRAGOSO, 1974, p. 285). Ora,
cumprem a sua função. Será que a qua- sabe-se que tudo aquilo que é nobre,
lidade destes é a mesma daqueles que genial, excelente, demanda tempo para
levavam mais tempo para cumpri-los? ser gestado, é um tempo relativamente
E quanto se fala em qualidade entra em longo, o tempo necessário para madu-
questão o fator tempo, como realizar as rar aqueles mais preciosos frutos que
tarefas com qualidade demandando um despertem os desejos de nosso paladar.
mínimo de tempo possível? Esta é uma Um ditado popular que é corrente en-
das questões que Nietzsche se coloca tre nós é o de que “a pressa é inimiga
em seu caderno de anotações de 1870- da perfeição”, pois quando realizamos
3, quando em suas conferências “Sobre

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ISSN: 2317-9570
NIETZSCHE: DA TÉCNICA DA MEMÓRIA À TÉCNICA DO ESQUECIMENTO?

nossas atividades na pressa a tendên- mas e palavras, e que por mais belas e
cia é a de que os produtos resultantes esplêndidas que sejam, se não forem re-
sejam marcados por imperfeições e li- pensadas e ruminadas, acabam-se per-
mites. A tendência automatizadora que didas. Ou seja, retomar esta memó-
se depreende dos mecanismos da téc- ria criticamente, de modo que se possa
nica ao reduzir o tempo na realização ponderar o que dela é possível retomar
dos seus vários produtos leva a que es- a fim de que seja benéfica para a vida.
tes sejam marcados pelo vazio forma- Petar Ramanadovic possui uma reflexão
lista. Como podemos pensar em vazio bastante elucidativa a respeito de como
formalista aplicado a reflexão humana? se pode aproveitar, de acordo com Ni-
O hermetismo que se depreende deste etzsche, a memória passada para a vida
formalismo não dá conta das diferentes presente.
nuances que são próprias da humani-
dade. Portanto, consiste numa tarefa
que só o cultivo demorado e atento se- Como um antídoto para este
ria capaz de adentrar os seus interstí- predicamento ele sugere um
cios. O imediatismo se apoia numa téc- discurso crítico sobre o passado
nica de memória1 que torna a realidade que seria atento para as neces-
como imagem fotográfica, de modo a sidades do presente e apto para
em qualquer momento reconhecê-la e distinguir entre o que no pas-
reproduzi-la em sua integridade mne- sado é vantajoso e o que é des-
mónica, sem, contudo, repensar esta re- vantajoso para a vida. Assim
alidade, compreendendo-a como reali- esquecimento ‘ativo’ é um re-
dade viva, dinâmica e orgânica. Pelo lembrar seletivo, o reconheci-
contrário, quando demandamos tempo mento de que nem todo o pas-
para pensarmos uma realidade mnemó- sado é forma de conhecimento,
nica, há o cuidado de reproduzi-la com e nem toda a experiência é be-
discernimento, o que leva a não tomá- néfica para o vida presente e fu-
la em uma petricidade imutável, mas tura. Esquecimento ativo é en-
compreendendo-a como realidade or- tão parte de uma tentativa mais
gânica, em movimento. No dizer de Cí- geral para racionalizar a relação
cero, a memória é o repositório de todas para o passado e render cons-
as coisas2 , num orador é a guardiã de te- ciência – de modo a superar –
todos os eventos assombrosos

1 A “técnica de memória” ou “arte de memória” foi criada pelo poeta grego Simônides, baseada na técnica de apontar determina-
dos lugares e constituir pinturas mentais de objetos pertencentes a estes lugares, associando assim os lugares aos objetos por estes
ocupados. Esta técnica, se desenvolveu na Idade Média e na Renascença, com seus expoentes principais Tomás de Aquino e Giordano
Bruno. Cf. YATES, 2013, p. 17-18.
2 Cf. CÍCERO, Livro I, n. 18.

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que retornam para perturbar a produz, eleva, sublima e regenera, mais


calma de um último momento precisamente, “(...) que pelo ‘esqueci-
(RAMADANOVIC, 2001, n. 01, mento ativo’ algo é aceito e afirmado,
p. 01). mais que omitido, apagado ou negado”
(RAMADANOVIC, 2001, n. 31, p. 10).
Na concepção de esquecimento ativo se
Esta calma do último momento diz depreende um misto de memória e es-
respeito àquela dimensão nietzschiana quecimento, já que a memória é uma
da plenitude vivida no instante pre- necessidade da qual ninguém pode ab-
sente na vida, é este o esquecimento dicar, a questão está sobre o que se me-
ativo, aquele esquecimento que longe moriza e em que intensidade, de modo
de inerte ou acéfalo, é um esquecimento que se realize uma dosagem equilibrada
que aponta para novas perspectivas. E com o esquecimento, se perguntando
Ramadovic segue dizendo que “(...) es- sobre o que esquecer e qual a medida
quecer submete este discurso para o do mesmo. Desta dosagem equilibrada
momento vivente, para a sua anima- entre memória e esquecimento deriva a
lidade e atualidade. Além disso, com saúde do indivíduo, tal como acompa-
esquecimento ativo, Nietzsche está ten- nhamos nas palavras de Zeynep Talay
tando não evitar o passado, mas abrir Turner, em sua pesquisa sobre esqueci-
uma possibilidade para o futuro” (RA- mento ativo: “(...) a saúde do indivíduo
MADANOVIC, 2001, n, 07, p. 03). E depende de um balanço adequado entre
futuro não se confunde com progresso, memória e esquecimento” (TURNER,
e sim com diferentes compreensões e 2018, p. 49). Deste balaço entre me-
perspectivas do que compreende a his- mória e esquecimento demandam téc-
tória – como abertura ao instante pre- nicas referentes aos dois lados da ques-
sente pleno, aquele instante concebido tão, que devidamente serão capazes de
como eternamente novo. Portanto, a proporcionar efeitos no indivíduo pela
emergência deste novo, deste esqueci- afirmação de si através da ação – “(...)
mento ativo é possível “(...) quando nos você não pode ser alguém mais, você é
tornamos capazes de rearticular e re- o que faz: suas ações são expressões de
experimentar o momento originário de quem você é” (TURNER, 2018, p. 55).
identidade de que pode haver um in- Além disso, estes efeitos da equaliza-
divíduo saudável” (RAMADANOVIC, ção entre memória e esquecimento, ul-
2001, n. 10, p. 04). Um indivíduo trapassando recônditos especializados,
não contaminado pelas tendências vi- têm incidência sobre dimensões mais
ciosas daqueles que fazem da técnica totalizantes – “Nietzsche não detalha
entretenimentos passageiros movidos como os modos de consciência histórica
pela moda, mas que utilizam da técnica se desenrolam no nível do indivíduo,
para promover um esquecimento que

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NIETZSCHE: DA TÉCNICA DA MEMÓRIA À TÉCNICA DO ESQUECIMENTO?

embora ele às vezes se refira aos proble- pria da diversidade. Já que a não es-
mas enfrentados pelos indivíduos para pecialidade é uma das características
ilustrar os problemas enfrentados pelas próprias do humano, neste sentido, a
nações” (TURNER, 2018, p. 49). própria compreensão daquilo que o ser
Destas breves considerações, pude- humano é, bem como daquilo que ele se
mos avaliar as inúmeras vantagens que torna envolve uma diversidade de pers-
temos em termos de humanidade ao pectivas técnicas. Richard Schacht, a
aplicarmos o devido tempo aos meca- este respeito, sublinha o fato de que a
nismos da técnica, de modo que esta reinterpretação de tudo aquilo que diz
possa estar afinada à humanidade em respeito a vida humana envolve uma
sua realidade orgânica. Contudo, além gama diversa de materiais técnicos que
do tempo, um outro aliado forte da téc- Nietzsche entende como incremento da
nica em seu aporte humanista é a sua vida humana. “Ele está, ao mesmo
dimensão de totalidade, para tanto, é tempo, desenvolvendo e empregando
preciso vencer um novo obstáculo: o da as várias perspectivas e técnicas que lhe
tendência especializante dos mecanis- parecem relevantes para a compreensão
mos da técnica. do que passamos a ser e do que temos
em nós para nos tornarmos” (SCHA-
CHT, 2012, p. 102). Para uma compre-
ensão do que corresponde ao humano,
2. Os desafios de se pensar uma téc- faz-se necessário, pelos diversos meca-
nica que ultrapasse os limites de sua nismos e perspectivas técnicas, dar-se
especialidade para a amplidão que de- conta de tudo o que se impõe como obs-
manda a cultura táculo, como é o caso da moral, para
assim caminhar em direção a sua supe-
A especialidade é uma das marcas pró- ração.
prias de uma cultura dominada pela Preocupado com as dimensões que os
técnica. Longe de se atribuir um juízo efeitos da moral se fazem sentir sobre
moral à especialidade em si, o que se a cultura, Nietzsche percebe a necessi-
pretende é mostrar os limites de uma dade do emprego de um método que dê
cultura dominada unicamente pelo es- conta das diferentes formas que a mo-
pecialista. É próprio do humano a ral vai assumindo. Para tanto, a eficácia
marca da diversidade, que se expressa deste método deve residir em sua capa-
em seus vários domínios; neste sentido, cidade de profundida psicológica; é no
pensar em apenas um aspecto desta que, inclusive, Nietzsche se distingue,
imensa plêiade de caracteres e tendên- no dizer de um dos maiores pesquisa-
cias seria empobrecer a própria reali- dores de Nietzsche como Eugen Fink.
dade do humano, impedindo assim que Para este último, “(...) as realizações
esta se expresse em uma riqueza pró-

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psicológicas de Nietzsche são extraor- tos morais, para tanto, se faz necessário
dinárias: ele abriu nossos olhos para as traçar um caminho que abarque hori-
ambiguidades, os significados escondi- zontes mais amplos, de onde se possa
dos de alguma expressão espiritual e enxergar mais profundamente.
para outras ambiguidades incontáveis. Nietzsche vê na especialização um
Sua técnica e análise psicológica é alta- caminho que distancia da verdadeira
mente sofisticada” (FINK, 2003, p. 03). cultura, como acompanhamos a partir
A sofisticação desta técnica psicológica de suas próprias reflexões: “(...) um
de Nietzsche está em enxergar além dos erudito, exclusivamente especializado
pressupostos estabelecidos pela moral se parece com um operário de fábrica
que os mantém escondidos em espaços que durante toda sua vida , não faz
altamente reservados, e, por isso, ina- senão fabricar certo parafuso ou certo
cessíveis. Por essa razão, sua genealogia cabo para uma ferramenta ou máquinas
não pode consistir num procedimento determinadas (...) esta acanhada espe-
que se estabeleça num recôndido es- cialização de nossos eruditos e seu dis-
pecífico da cultura, mas que tenha o tanciamento cada vez maior da verda-
alcançe necessário para atingir os seus deira cultura” (NIETZSCHE, KSA, So-
diferentes espaços e formas – “(...) ne- bre o futuro de nossos estabelecimen-
cessitamos de uma crítica dos valores tos de ensino, Primeira Conferência,
morais, o próprio valor desses valores p. 670). Tal como numa fábrica em
deverá ser colocado em questão – para que cada funcionário deve dominar um
isto é necessário um conhecimento das âmbito específico no trabalho, também
condições e circunstâncias nas quais no âmbito acadêmico acaba se reprodu-
nasceram, sob as quais se desenvolve- zindo a mesma realidade através de um
ram e se modificaram.” (NIETZSCHE, erudito especializado. Sua erudição se
KSA, Para a genealogia da moral, Pró- torna comprometida, já que o erudito é
logo, 6, p.?). O método de investigação aquele que, por excelência, é capaz de
moral utilizado por Nietzsche, possui ter o devido distanciamento crítico da
um alcance muito maior do que aque- realidade, para sobre esta, poder tecer
les de seus predecessores, como recorda uma reflexão. “O sábio especializado
Matthew Kelley: “Nietzsche afirma que da universidade passara a uma condi-
os métodos tradicionais de investigar a ção análoga à do operário de fábrica. A
história dos conceitos morais são equi- imposição da cultura de Estado o con-
vocados e, na genealogia, ele argumenta finara numa única disciplina. A repeti-
que seu método genealógico aprimora o ção das mesmas tarefas o mantém afas-
método de seus antecessores” (KELLEY, tado dos problemas gerais da cultura”
2019, p. 08). O filósofo alemão busca (FRAGOSO, 1974, p. 286). Com este
atingir a raiz de onde brotam os concei- devido distanciamento, o erudito não

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NIETZSCHE: DA TÉCNICA DA MEMÓRIA À TÉCNICA DO ESQUECIMENTO?

terá como foco nenhum ponto especí- dor impossibilita desviar o olhar sobre
fico desta realidade, mas a realidade aquela particularidade lesada, atuando
mesma compreendida em seu todo, e assim como uma espécie de narcótico
na sua natureza de totalidade será ca- que se alheia a respeito da realidade
paz de perceber as relações que perfaz mais ampla. Essa técnica mnemônica
o conjunto múltiplo de partes em sua do emprego da dor é, inclusive, um ex-
disposição orgânica. pediente já bastante antigo, existente
Na medida em que se foca a reali- mesmo antes mesmo de que fossem uti-
dade em seu todo, tanto mais se terá lizadas para fins de punição. Maude-
condições de compreendê-la em maior marie Clark, por essa razão, recorda
profundidade. Assim, também, na me- que: “Nietzsche discute tais procedi-
dida em que as técnicas de memória mentos anteriormente no mesmo ensaio
deixam de se prenderem em seus as- (GM II: 3), e então estaria fazendo a ale-
pectos específicos da realidade para gação obviamente verdadeira de que as
fazer destes objetos mnemônicos uma técnicas para infligir sofrimento exis-
forma de compreensão da realidade to- tiam antes de seu emprego em puni-
tal, tanto mais a memória irá reter o ção” (CLARK, 1994, nota 14). Mais do
que há de mais essencial e universal, que punir, tais técnicas existiam sim-
não se perdendo em aspectos que fa- plesmente para fazer com que se so-
vorecem mais a uma disposição moral fresse, e desse sofrimento se extraísse
que a uma dimensão que açambarque uma memória. Desse modo, como ana-
um largo lastro histórico. Constitui lisa Michael Cowan, Nietzsche con-
este último, portanto, um contra mo- cebe o conjunto de práticas ascéticas
vimento àquele que tende a fixar-se em “(...) como técnicas de disciplina cor-
aspectos específicos, a fim de provocar poral suplementares designadas para
medo e impacto àqueles que os expe- compensar as incapacidades inerentes
rimentem, e assim, impedindo-os de do sujeito para inibir os impulsos do
abrir-se a dimensão de plenitude. Ni- corpo” (COWAN, 2005, p. 59). A disci-
etzsche constata em práticas medievais plina corporal atua como narcótico ini-
o quanto a dor exerce influência no sen- bitório, como técnica de memória inibi-
tido de desvirtuar a atenção de questões tória dos impulsos. “No entanto, é difí-
mais universais, para prender-se a par- cil perceber por que Nietzsche equipa-
ticularidades, como Stephen Mulhall se raria essas técnicas de violência a ‘uma
posiciona a esse respeito. Para ele “(...) sequência estrita de procedimentos’ ou
a contra-conquista da memória é esta- por que consideraria o procedimento
belecida e mantida pela imposição da o ‘elemento estável’ e o objetivo o as-
dor empregada como técnica mnemô- pecto ‘fluido’ da punição quando hou-
nica” (MULHALL, 2011, p. 257). A ver menos tantos procedimentos dife-

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rentes para infligir sofrimento quanto atingir estágios de plenitude ultrapas-


propósitos de punição” (CLARK, 1994, sando eventos isolados.
nota 14). Dá a impressão que Nietzs- A febre e o sensacionalismo causa-
che pretende fazer uma equiparação da dos pelos acontecimentos momentâ-
técnica, como esse elemento estável, ao neos, tendem a permanecer momen-
motivo de emprego da mesma a fim de tâneos. Esta momentaneidade se re-
propor a sua ampliação para atingir um produz, de acordo com a leitura que
horizonte mais amplo, para além da es- Nietzsche faz, na “(...) escola secun-
pecificidade que não proporciona em- dária: basicamente técnica: a serviço
bate e não promove vida. de uma profissão” (NIETZSCHE, KSA,
O específico não permite o confronto Fragmentos Póstumos, VII, 1871, 9[63],
necessário para que a reflexão possa ser p. 298). A escola secundária, que deve-
levada adiante. E, com isso, todo o es- ria ser aquela que instruísse nas huma-
forço de cunho intelectual é comprome- nidades passa a preparar para o mer-
tido, pois não tem como produzir con- cado de trabalho, para a confecção de
flitos e embates para que a própria re- produtos técnicos, de modo que “Não
flexão ganhe vida. Assim, quanto maio- é o ensino secundário, mas uma infini-
res forem os fatores de embate ao inte- dade de escolas técnicas” (NIETZSCHE,
rior da própria reflexão, tanto mais ri- KSA, Fragmentos Póstumos, VII, 1871,
cos serão os produtos desta reflexão. A 14[20], p. 382), e assim como a téc-
técnica, que conduz à especialização e, nica obedece a lei do descartável, tudo
consequentemente, afasta a realidade, o que hoje existe, amanhã já se tornou
perde o lastro vital e se engessa nas de- obsoleto, reduzindo-se a sua inexistên-
terminações de uma particularidade so- cia. Da mesma forma, os produtos es-
lipsista. O específico tende a se imiscuir pecíficos da técnica, enquanto perma-
da responsabilidade pelo universal, do necerem específicos, tendem a deixar
qual o humano é fundamentalmente de existir; ou seja, reduzem-se a nada.
partícipe. Por essa razão, quando Ni- Quanto mais universal forem as impli-
etzsche se refere a questão de técnicas cações da técnica, tanto mais chances
de memória coletiva, não a associa a di- terão para servirem de base para um
mensão social, e sim à vida, ao tempo fomento da cultura em todas as suas
da vida, temps vécu, como acentua Jan dimensões, principalmente humanas.
Assmann (ASSMANN, 2003, p. 172), Contudo, é preciso conservar o foco, ou
para além de um tempo projetado ou seja, que os mecanismos da técnica não
conhecido artificialmente, que excede sejam produtos da moda, mas produ-
ao formato próprio da vida orgânica. É tos que tenham um claro discernimento
nesta vida, organicamente compreen- para qual direção se quer caminhar,
dida, que os acontecimentos tendem a caso contrário se desperdiçará energia

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NIETZSCHE: DA TÉCNICA DA MEMÓRIA À TÉCNICA DO ESQUECIMENTO?

em instâncias que não rendem frutos, de acordo com Nietzsche, seria o cami-
com uma consequente decadência da nho em direção aos mais altos cumes
cultura. Desse modo, a técnica pode da cultura: o do cultivo de si mesmo.
ser uma ferramenta importante na me- Ora, o que comumente se assiste é uma
dida em que, para além de constituir abdicação de si mesmo para cultuar os
um movimento massificador, esteja a astros da moda massificamente fetichi-
serviço do cultivo de si. zados. Ora, uma “(...) cultura não será
universalmente distribuída. Na hipó-
tese contrária - a da cultura de massa -
a barbárie seria completa” (FRAGOSO,
3. A técnica como ferramenta para o 1974, p. 286). O esquecimento do indi-
cultivo de si pela desconstrução das víduo em prol da massa impede o nas-
técnicas de memória massificantes cimento do gênio, daquele que é capaz
de reivindicar a cultura, de apostar no
O desenvolvimento da técnica para a novo, de romper estruturas fossiliza-
promoção de uma cultura de massa é das que se pretendem eternizar e assim
um outro desafio que se impõe. Como impedir o florescimento da vida, que a
fazer com que a técnica não se renda à todo o instante quer se renovar. Não é
cultura de massificação, típica de um um instante que muda conforme o de-
contexto marcado pela falta de discer- sejo da massa, mas um instante que se
nimento, indispensável para a promo- plenifica pelos mais altos pontos culmi-
ção da cultura. Os artefatos promovi- nantes de potência que o gênio é capaz
dos pela técnica, além de seguirem a ló- de atingir. Em que medida a tecnologia
gica de uma cultura da pressa e do ime- pode contribuir para o melhoramento
diatismo, da especialidade em detri- do humano, como é o caso da biotec-
mento da totalidade, se rende ao culto nologia, e, com isso, da cultura? Jelson
de um modismo massificante: como é, Roberto de Oliveira, a este respeito re-
por exemplo, o consumo de modernos corda que
aparelhos androides. Mais do que ver
nestes artefatos um meio de satisfação
de necessidades utilitárias, o que den- Todos os processos de melhora-
tro da concepção nietzschiana já cons- mento projetados pela via bio-
titui uma perda de rumo em direção à tecnológica, além disso, evocam
elevação da cultura, é ainda pior, uma o grave risco da padronização,
busca de reprodução de modelos repe- fazendo com que a guerra con-
tidos pela massa, por considerar isto tra a animalidade seja, por isso,
como ingresso nos mais altos escalões uma guerra contra o “pathos de
da sociedade. Quanto mais assim se distância” (GM I, 2), contra as
exercita, mais se distancia daquele que, forças que tornavam o homem

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capaz de viver em solidão, ou antevê um grande perigo, o de associar


seja, de distanciar-se dos valo- felicidade à grande massa e a questão
res vigentes. Tais valores, as- social. Oswaldo Giacóia Junior, sobre
sim, não são outros senão aque- esta associação entre felicidade e massa,
les derivados da ascenãao do recorda:
ideal da vida gregária nas suas
mais variadas formas – como O resultado mais visível e pre-
moral da “conformidade”, da ocupante desse processo de
“conciliação”, da “harmonia”, entronização das "idéias mo-
da “baixeza” e da “igualdade” dernas", Nietzsche o apreende
(OLIVEIRA, 2016, p. 730). como o inquietante movimento
de consolidação de uma socie-
Os artefatos tecnológicos podem ser- dade mercantil, de massas, cujo
vir de aporte para a promoção da cul- ideário ético-político se gene-
tura do gênio, e, consequentemente, da ralizaria na Europa a partir de
renovação cultural na medida e que su- uma identificação entre felici-
perarem a febre da massa, o grande dade, segurança e bem-estar,
perigo que Nietzsche identifica na cul- assim como a partir da univer-
tura de sua época e que se reproduz salização de um certo tipo de
da mesma forma na cultura hodierna - experiência democrática, fun-
“(...) Nietzsche parte de uma afirmação dada na idéia de identidade en-
o da natureza própria do homem e, só a tendida como igualdade uni-
partir daí, como um gesto de fidelidade forme e ausência de hierarquias
à terra, pode pensar a desejada supera- legitimáveis. Essa identifica-
ção que é, no limite, sempre uma au- ção implicaria, propriamente,
tossuperação, na medida em que parte a consagração da doutrina do
das forças próprias do indivíduo cria- bem- estar social e do utilita-
dor e não de um esforço da civilização, rismo moderno como meta he-
por exemplo, como é o caso da biotec- gemônica de toda ética e polí-
nologia.” (OLIVEIRA, 2016, p. 730). tica. (GIACÓIA, 1999).
Como superar esta grande ameaça de
que “(...) a grande massa irá um dia Ora, fazer da massa, da questão so-
pular o grau intermediário e se lançar cial o caminho rumo a felicidade é esta-
sem rodeios à felicidade terrena. É isto belecer um obstáculo que cega a cultura
o que se chama agora de questão so- para a sua superação. O que em grande
cial” (NIETZSCHE, I, Sobre o futuro de medida foi realizado pelas diversas ins-
nossos estabelecimentos de ensino, Pri- tituições, sejam estas civis ou religio-
meira Conferência, p. 668). Nietzsche sas, em nome da felicidade do povo, da

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NIETZSCHE: DA TÉCNICA DA MEMÓRIA À TÉCNICA DO ESQUECIMENTO?

massa, mas em contrapartida espezi- compulsão, como impulso coer-


nhando o indivíduo e o impedindo de citivo, não é mais, enquanto tal,
que este um dia nasça da terra como nem controlável, nem disponí-
gênio, como além-do-homem. Ao in- vel. Por conseguinte, a com-
vés de além-do-homem a massa torna-o pulsão ao consumo e ao des-
último homem, aquele que se rendeu gaste de todo ente é uma po-
ao cansaço e a fraqueza, a uma von- tência que se furta ao controle
tade coletiva de vontade de impotência. do último homem e, no limite,
Trata-se de uma vontade que reproduz o subjuga e domina. Pior do
a objetivação tecnológica como vontade que a cegueira é o ofuscamento.
impotente. Este julga e crê poder ver, e
ver da única maneira possível
(nesse caso, ver a modo do delí-
É sobre essa base metafísica rio de onipotência tecnológica);
desse representar persecutório mas é justamente esse delírio
que se funda a compulsão à de onipotência que constitui a
disponibilização tecnológica de prisão e a condenação às facha-
todo ente. Esta, por sua vez, das e superfícies que, por fim,
é a forma da vontade coletiva obliteram toda possibilidade de
de poder que se torna figura ver clara e sobriamente. (GIA-
do mundo com o último ho- CÓIA, 1999).
mem. Trata-se de uma compul-
são que leva ao desgaste (Ver-
nutzung) de todo ente e à infi- Nesta linha de interpretação do de-
nita reposição desse consumo, senvolvimento da vontade em vontade
tornado possível pela inesgo- de potência como tecnologia, pela ex-
tabilidade da técnica moderna. periência que cada um é levado a fazer
Esta é, pois, a figuração meta- de si mesmo, Ullrich Michael Haase de-
física da vontade de poder no fende “(...) que as palavras de Nietzsche
mundo moderno. E, contudo, de experimentação e função podem ser
do ápice de seu poder de ob- compreendidas como um prologomena
jetivação e reprodução tecnoló- para o conceito de tecnologia (...) as-
gica, o último homem se revela sociando a dissolução do ser humano
como vontade de poder impo- em uma realidade compreendida tec-
tente. Impotente porque, com- nologicamente” (HAASE, 1999, p. 337).
pletamente ofuscado pela cin- Portanto, a tecnologia não perfaz o ca-
tilação das fachadas e superfí- minho de promoção de diferenças, no-
cies de seu próprio poderio, ele vidades, renovação que são próprias da
não se compenetra de que toda compreensão do humano, mas de per-

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petuar os desejos das massas sob o slo- nalmente identificará coisas diferentes,
gan da garantia da felicidade. A unifi- eternamente ela reduzirá a diversidade
cação da compreensão do humano, em dos motivos e das circunstâncias para
torno aos mecanismos promovidos pela apresentar uma imagem monumental”
tecnologia, se defronta com a defesa de (NIETZSCHE, I, Sobre a utilidade da
Nietzsche de que a verdade é múltipla, história para a vida, 2, p. ?). Esta ima-
uma multiplicidade que se expressa, gem monumental da memória solapa
não na unificação da vontade, mas na todas as diferenças para reduzir tudo a
vontade que se coloca contra a vontade. uma realidade única, monolítica, por-
Desse modo, no dizer de Frederick Co- tanto, são técnicas de memória miméti-
pleston, em sua interpretação de Ni- cas, “(...) com isso: segmentos inteiros
etzsche, o que nós necessitamos unifi- desta passado são esquecidos, despre-
car são as relações entre uma ou mais zados e escoam num fluxo cinzento e
forças – “A pluralidade de forças, unida uniforme, de onde somente alguns fa-
por um processo nutritivo comum, nós tos isolados mascarados emergem como
chamamos vida” (COPLSTON, 1963, p. ilhas isoladas” (NIETZSCHE, I, Sobre a
411). Em uma carta a Malvida von Mey- utilidade da história para a vida, 2, p.
senbug de 02 de janeiro de 1875, Ni- ?). Diante de técnicas de memória sola-
etzsche afirma “(...) que mesmo o ho- padoras das diferenças que, esquecidas
mem não quer mudar nada – é claro no passado, fazem com que este res-
a imperfeição da tecnologia” (NIETZS- sinta e consista numa força com dire-
CHE, KGB, 1875, V, 414, p. 07). A tec- ção invertida, ao invés de crescimento,
nologia, paradoxalmente, acaba sendo degenerescência. Sobre esta última, Ni-
mais um fator de comodismo, de modo etzsche se insurge contra, porque “(...)
a não se ousar coisas novas. Neste sen- ela sempre subestima o que está em ges-
tido, as técnicas de memória visam per- tação (...) ela impede o indivíduo de op-
petuar a memória da massa, aquela me- tar resolutamente pelo novo, assim ela
mória consignada em imagens na qual paralisa o homem de ação” (NIETZS-
todos estão obrigados a não esquecer, e CHE, I, Sobre a utilidade da história
a não esquecer em rebanho, de modo a para a vida, 3, p. ?). Pela direção da
estabelecer um controle para jamais ou- força que cria, pelo contrário, são ativa-
sar pensar distintamente. Em que todos das técnicas de memória que colhem no
passam a reproduzir fidedignamente os terreno do passado toda sorte de primí-
diversos eventos históricos no sentido cias, sempre novas e diversas.
daquilo que Nietzsche recorda em sua Contudo, as técnicas de memória não
descrição sobre a história monumen- promovem aquela memória genuína do
tal, “(...) fidelidade absoluta: eterna- indivíduo, aquela memória capaz de
mente ela aproximará, generalizará e fi- reinventar, como seria, por exemplo,

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NIETZSCHE: DA TÉCNICA DA MEMÓRIA À TÉCNICA DO ESQUECIMENTO?

a arte, a escrita, a música. Pelo con- têm veiculado os seus mais variados ar-
trário, se memorizam artefatos da téc- tefatos. Com isso, Nietzsche percebe as
nica, tudo aquilo que pode promover consequências que se fazem sentir so-
massificação, de onde emergem formas bre a reflexão filosófica, já que toda a
de controle institucional, como é o caso boa e madura reflexão demanda tempo
do Estado na instituição civil e a Igreja para a sua frutificação. Assim, além da
na instituição religiosa. Para escapar pressa, veiculada à técnica, também a
destes mecanismos só fazendo com que especialidade consiste num dos grandes
os artefatos tecnológicos estejam à ser- desafios a serem superados, o que re-
viço da emancipação do indivíduo, de fletimos na sequência de nosso traba-
modo que estes promovam, pelo al- lho. A especialidade, que acompanha
cance dos mais altos cumes de potência, a técnica, consiste em obstáculo para
uma cultura que se renova a cada ins- uma visão mais universal, da qual de-
tante e neste se plenifique pelos frutos manda a reflexão humana. A pressa e a
que marcam o paladar e a memória dos especialização trazem igualmente uma
que dele usufruem. terceira característica, própria da téc-
nica, a massificação, o que refletimos
na terceira e última parte de nossa pes-
quisa. A massificação é uma tendência
Considerações finais levada pelo gosto da moda, própria da-
queles que se aventuram a ser consumi-
Nosso percurso, pelas considerações ni- dores da técnica. Contudo, a sua super-
etzschianas em torno à técnica e sua ficialidade não permite uma continui-
aplicação à consciência, nos permitiu dade e aprofundamento quanto a refle-
avaliar e atestar a extemporaneidade do xão humana filosófica. Tanto a pressa
filósofo. Como podemos perceber pela como a especialidade e a massificação,
grande influencia da técnica no con- trazem influências para as técnicas da
texto hodierno, uma influência que se memória, tornando-a obstáculo para a
apresenta mesclada pela sua aberta re- superação da moral, veiculada àquelas
cepção e resistência. No decorrer dos imagens que engessam em forma de má
capítulos recolhemos da própria letra consciência. A pressa é uma técnica li-
de Nietzsche três aspectos que põem em gada à memória que se prende a dimen-
evidência a medida em que o filósofo são hermética da imagem e não a apro-
alemão concebe como conveniente o pa- funda, de modo a compreendê-la como
pel da técnica nos diferentes âmbitos da realidade viva. A especialidade faz com
vida humana. que a memória se prenda a detalhes e
Em primeiro lugar, é uma técnica que assim perca de vista a dimensão mais
não se rende aos mecanismos imediatis- universal, própria da reflexão filosófica.
tas, responsáveis pela pressa com que

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ADILSON FEILER

A massificação faz da técnica de me- influência na cultura atual, constata-


mória um modismo superficial e irre- mos que ela constitui um caminho sem
fletido, com perda do cultivo de si, em volta, ou seja, não se pode voltar atrás
detrimento de uma submissão à insti- frente aos avanços da técnica. No en-
tuição seja ela civil ou religiosa. tanto, a questão está em como veicula-
Logo, a técnica em si não é vista como mos a técnica à promoção da cultura,
um obstáculo ao desenvolvimento cul- que passa pelo cultivo de si em detri-
tural, mas a forma pela qual esta é vei- mento da superação da pressa, da espe-
culada. Assim, como atestamos a sua cialização e da massificação.

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Recebido: 29/04/2020
Aprovado: 08/10/2020
Publicado: 31/01/2021

Revista de Filosofia Moderna e Contemporânea, Brasília, v.8, n.3, dez. 2020, p. 247-263 263
ISSN: 2317-9570
DOI: https://doi.org/10.26512/rfmc.v8i3.31766

Cristianismo e a Renúncia de si no Último Foucault


[Christianity and the Self-Renunciation in the Late Foucault]

Rafael Siqueira Monteiro*

Resumo: O presente artigo analisou como o cristianismo produziu uma subjetividade


por meio da qual o sujeito renunciou a si mesmo. Defendemos a hipótese de que esse
modo de subjetivação cristã somente foi possível graças a duas características presentes
na relação sujeito e verdade no cristianismo primitivo: a obrigatoriedade de confessar
uma verdade de si e a imperfeição que caracteriza a natureza humana na antropologia
cristã. Em outras palavras, a confissão da verdade de si tornou-se uma espécie de cura
para os pecados oriundos da natureza imperfeita dos homens. Nesse duplo movimento
que se iniciava por uma hermenêutica de si e findava na verbalização da verdade encon-
trada em seu próprio interior, o sujeito se enredou em uma malha de poder constituída
por verdades confessadas que o levaram a renunciar a si mesmo.
Palavras-chave: Cristianismo. Renúncia de si. Verdade. Sujeito. Confissão.

Abstract: This article analyzed how Christianity produced a subjectivity through which
the subject renounced himself. We defend the hypothesis that this mode of Christian
subjectivation was only made possible due to two characteristics present in the relati-
onship between subject and truth in early Christianity: the obligatoriness to confess a
truth about oneself and the imperfection that characterizes human nature in Christian
anthropology. In other words, the self-truth confession has become a kind of cure for
sins arising from the imperfect nature of men. In this double movement which began
with a hermeneutics of the self and ended with the verbalization of the truth found
within one’s own self, the subject became entangled in a mesh of power constituted by
confessed truths that led him to renounce himself.
Keywords: Christianity. Self-renunciation. Truth. Subject. Confession.

* Professor da Secretaria de Educação do Estado do Pará (SEDUC/PA). Mestre em filosofia pela Universidade Federal do Pará
(UFPA). E-mail: epistemephilo@gmail.com. ORCID:

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RAFAEL SIQUEIRA MONTEIRO

Introdução sujeito renunciou a si mesmo. Defen-


demos a hipótese de que esse modo de
subjetivação cristã somente foi possível
O interesse de Michel Foucault pelo graças a duas características presentes
cristianismo se tornou mais evidente no na relação sujeito e verdade no cristia-
período que nos habituamos chamar de nismo primitivo: a obrigatoriedade de
último Foucault, no qual ele se voltou confessar uma verdade de si e a imper-
especificamente para a obrigatoriedade feição que caracteriza a natureza hu-
da verdade de si imposta pelo cristia- mana na antropologia cristã.
nismo. Segundo o filósofo francês, essa Nessa perspectiva, esse artigo terá
obrigatoriedade da verdade de si foi de- quatro tópicos: o primeiro diz respeito
senvolvida pelo cristianismo em dois à obrigação da verdade de si no cris-
eixos principais: práticas penitenciais, tianismo primitivo, o segundo e o ter-
nos três primeiros séculos, e instituição ceiro, respectivamente, irão se debru-
monástica, nos séculos IV e V. Respecti- çar sobre as duas principais formas de
vamente, a verdade confessada através confessar a verdade de si nesse recorte
da dramaticidade do corpo e a verdade histórico: exomologèse e exagóreusis; e
verbalizada em um formato de confis- no quarto tópico, voltaremo-nos para
são a um diretor espiritual ou confessor. as consequências dessa maneira singu-
Essa novidade que o cristianismo pri- lar do sujeito se relacionar com a ver-
mitivo aportou para o ocidente culmi- dade no cristianismo.
nou, segundo Foucault, na formação de
uma subjetividade cristã para o mundo
ocidental. Subjetividade que constituiu
um sujeito obediente e capaz de renun- A obrigação da verdade de si no cristi-
ciar a si mesmo em nome de uma ver- anismo primitivo
dade que ele crê ter encontrado, mas
que exigiu quer o reconhecimento de O interesse de Michel Foucault pela re-
sua natureza pecaminosa, quer a con- ligião cristã foi crescendo ao longo de
fissão de seus pecados. sua trajetória intelectual. Foucault a
Nessa perspectiva, o presente artigo abordou por diferentes ângulos1 , desde
analisou como o cristianismo produziu as práticas de tratamento para doen-
uma subjetividade por meio da qual o ças venéreas que incluíam a confissão

1 Referências sugestivas ao ocidente oposto a um Oriente nietzschiano desde o prefácio à Folie et déraison (Loucura e desrazão) em
1961, diálogo com Georges Bataille, Maurice Blanchot ou Pierre Klossowski ao longo dos anos 1960, dossiês históricos da confissão
(1975) e da pastoral cristã (1978) abertos pelos cursos no Collège de France e, sobretudo, o esboço várias vezes retomado do empre-
endimento, entre 1978 e 1984, de um grande livro sobre Confissões da carne: Foucault não cessou de se interessar pelo cristianismo
(CHEVALIER, 2012, p. 45 ).
2 Começa-se, naturalmente, com uma sangria, logo seguida por uma purgação; destina-se uma semana aos banhos, à razão de duas
horas por dia, aproximadamente; purga-se outra vez e para encerrar esta primeira fase do tratamento impõe-se uma boa e completa

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CRISTIANISMO E A RENÚNCIA DE SI NO ÚLTIMO FOUCAULT

como parte do tratamento, tratadas em pelo pecado, mas que deseja ardente-
sua História da Loucura2 , até a obrigato- mente a salvação.
riedade da verdade de si, presente em Isso nos faz pensar que a abordagem
seus escritos da década de 1980. É jus- do cristianismo realizada por Foucault
tamente nessas abordagens realizadas esteja no interior de um projeto maior
em múltiplas perspectivas que a confis- da história do sujeito ocidental3 empre-
são aparece como central em suas pes- endida por ele, sobretudo na década de
quisas sobre o cristianismo, incidindo 1980. Pois, como o próprio Foucault
profundamente sobre a relação sujeito afirmou, algumas vezes, “busquei an-
e verdade no ocidente. Nesse sentido, tes produzir uma história dos diferen-
Senellart (2012, p. 73) afirma que: tes modos de subjetivação do ser hu-
mano em nossa cultura [...]. Assim, não
é o poder, mas o sujeito, que constitui o
Se os ângulos de abordagem va- tema geral de minha pesquisa ” (FOU-
riam, a análise foucaultiana, ao CAULT, 1994, p. 223, tradução nossa).
contrário, segue um fio condu- Assim, o cristianismo foi abordado
tor muito constante, através da por Foucault no intuito de descobrir o
problemática geral da confis- porquê do homem ocidental ser aquilo
são, ou seja, da relação especí- que ele é. Nesse processo histórico da
fica, na cultura cristã, que liga construção do sujeito ocidental, o cris-
o sujeito a sua própria verdade, tianismo foi um elemento fundamental
em vista de assegurar sua salva- no sentido de que, por meio de técnicas
ção. de si, ele infligiu a seus adeptos a obri-
gatoriedade da verdade de si, isto é, a
obrigação de confessar quer através do
O excerto acima nos mostra que
corpo, quer através da voz. Tal obriga-
quando tratamos do conceito “con-
toriedade culminou na constituição de
fissão” no cristianismo, a partir da
um sujeito que renunciou a si mesmo,
ótica do último Foucault, concomitan-
projetando-se, consequentemente, no
temente tratamos da questão da ver-
interior de uma malha de poder cujos
dade e da questão do sujeito. Porque
fios são constituídos de verdades con-
o que se confessa na confissão cristã é
fessadas.
uma verdade de si e quem confessa é
Logo, o interesse de Foucault pelo
um sujeito marcado ontologicamente

confissão. Podem começar então as fricções com mercúrio, toda a eficácia de que dispõem; prolongam-se por um mês, em cujo tér-
mino duas purgações e uma sangria devem expulsar os últimos humores morbíficos. Concedem-se quinze dias de convalescença.
Depois, após ter acertado as contas definitivamente com Deus, o paciente é declarado curado e mandado embora (FOUCAULT, 2019,
p.86).
3 Sobre a tese de que o interesse de Foucault pelo cristianismo esteja inserido na genealogia do sujeito ocidental, ver ALVES (2016),
MANICKI (2012), SENELLAR (2012).

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cristianismo deve-se, possivelmente, (1979-1980) – mais do que se tu


à intuição do filósofo de que muitas manifestares a verdade do que
respostas acerca do que nós somos és (SAUQUILLO, 2017, p. 386,
encontravam-se no cristianismo primi- tradução nossa)4 .
tivo. Pois foi nos primeiros séculos do
cristianismo que a subjetividade do ho- Conforme Sauquillo, na citação
mem ocidental começou a ser delineada acima, o cristianismo na história da
e, para Foucault, a subjetividade do ho- subjetividade ocidental, além de ser
mem ocidental é cristã. um tema imprescindível para Foucault,
também é um tema de extrema origina-
Para a história da subjetividade lidade. A subjetividade cristã aparece
no ocidente, a história do cris- como uma forma visceral do sujeito se
tianismo é fundamental. No relacionar com a verdade, se entender-
cristianismo, há um registro da mos que a verdade que emana desse
verdade em que dois proces- sujeito em forma de confissão é oriunda
sos estão envolvidos: a inici- do que há de mais profundo em seu
ação na verdade e o exercício ser cristão, seu vínculo com Deus. Um
probatório da verdade. Fou- Deus que só se manifestará em sua ver-
cault está ciente da natureza dade se, por sua vez, o cristão manifes-
sem precedentes de seu traba- tar a verdade do que ele mesmo é.
lho quando embarca na histó- Foucault parece ter pesquisado pro-
ria de “me diz quem tu és”. fundamente o universo cultural cris-
Não se trata de apenas percor- tão e provavelmente o conhecia muito
rer o caminho do sujeito para a bem, pois em seus escritos percebemos
verdade, mas como ele é obri- o mundo moral e teológico da religião
gado a dizer quem ele é, den- cristã com seus ritos penitenciais e tam-
tro de uma trama de poderes, bém as práticas monásticas. No curso
porque, se não, ele nunca per- de 1981, intitulado Malfazer, dizer ver-
correrá esse caminho: “o ser dadeiro, essa familiaridade com o cris-
que é verdadeiro não se mani- tianismo é bastante evidente. Ele abor-
festará em ti” – sintetiza assim, dou o cristianismo nesse curso como
Foucault, a vontade de verdade um modo de veridicção, isto é, um
cristã em Do governo dos vivos modo de dizer verdadeiro que atraves-

4 Para la historia de la subjetividad en Occidente, es fundamental la historia del cristianismo. En el cristianismo se da un registro
de la verdad donde se enganchan dos procesos: la iniciación en la verdad y el ejercicio probatorio de la verdad. Foucault es consciente
del carácter inédito de su trabajo cuando emprende la historia del “dime quién eres”. No se trata sólo de recorrer el camino del sujeto
hacia la verdad, sino de cómo éste queda obligado a decir quién es, dentro de una trama de poderes, pues, si no, nunca recorrerá este
camino: “el ser que es verdadero no se manifestará en ti – sintetiza así, Foucault, la voluntad de verdad cristiana en Du gouvernement
des vivants (1979-1980) – más que si tú manifiestas la verdad que eres” (SAUQUILLO, 2017, p. 386).

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CRISTIANISMO E A RENÚNCIA DE SI NO ÚLTIMO FOUCAULT

sou a história e marcou profundamente si. Isto é, o cristão é obrigado a realizar


a cultura ocidental. por toda sua existência uma hermenêu-
O aspecto teológico da antropolo- tica de si a fim de buscar no próprio
gia cristã nos parece importante para interior sua verdade mais profunda.
a compreensão da leitura que Fou- Nesse sentido, Foucault compreendeu
cault faz do cristianismo primitivo no essa obrigatoriedade da verdade de si
curso Malfazer, dizer verdadeiro. Pois, como a característica mais fundamental
nesse curso, ele procurou compreender do cristianismo, como podemos verifi-
o modo de veridicção cristão a partir da car a seguir:
prática da penitência nos três primei-
ros séculos e do exame de consciência Uma das características mais
e da direção espiritual nos IV e V sé- fundamentais do cristianismo
culos. Todas essas práticas são, para o é ter vinculado o indivíduo
cristianismo, instrumentos de salvação à obrigação de buscar em si
da alma e meios para que a natureza mesmo a verdade do que ele é.
decaída do homem se erga diante de O cristianismo vinculou o in-
Deus. divíduo à obrigação de busca,
Essas práticas cristãs foram estuda- no fundo de si mesmo e a des-
das por Foucault em seus escritos da peito de tudo o que poderia
década de 1980, sobretudo em Malfa- ocultar essa verdade, certo se-
zer, dizer verdadeiro, mas também em gredo, certo segredo cujo es-
Do governo dos vivos, em Subjetividade e clarecimento, cuja manifesta-
verdade e no seu livro recém-publicado ção deve ter importância deci-
As confissões da carne. Nesse período, siva em sua caminhada para a
ele se debruçou em leituras variadas do salvação da alma (FOUCAULT,
cristianismo, como: escritos dos padres 2018b, p. 80).
da Igreja, textos de cunho catequético,
a história do monaquismo cristão, suas
À obrigação do dizer verdadeiro so-
regras, suas práticas e seus modos de
bre si mesmo, Foucault chamou de ve-
vida5 .
ridicção. Esse conceito seria o resultado
No curso Malfazer, dizer verdadeiro,
de um conjunto de técnicas que o cristi-
na aula de 29 de abril de 1981, Foucault
anismo, se não descobriu, ao menos de-
analisou uma especificidade própria do
senvolveu, como o exame de consciên-
cristianismo: a obrigação da verdade de
cia, a direção espiritual e a penitência.

5 A vida dos primeiros mosteiros era orientada por uma regra de vida. Um conjunto de normas que orientava as ações dos monges
em diferentes situações do cotidiano: o trabalho, a oração, a alimentação, a caridade, a convivência entre os monges. Como exemplo
concreto podemos citar no século V a regra de Santo Agostinho e no século VI a famosa regra de São Bento que guia até os dias atuais
a vida dos monges beneditinos.

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RAFAEL SIQUEIRA MONTEIRO

A primeira técnica - exame de consciên- técnicas de si ou procedimentos cris-


cia - passava-se geralmente pouco antes tãos, Foucault destacou que o cristia-
do monge dormir. Tratava-se de uma nismo primitivo desenvolveu duas for-
retrospecção do dia, dos seus atos e de mas diferentes de produzir uma ver-
seus pensamentos. Essa técnica tam- dade de si mesmo nos cinco primeiros
bém era utilizada antes das direções es- séculos: exomologèse e exagóreusis. A
pirituais e da confissão. exomologèse pode ser definida como o
A segunda - direção espiritual - era conjunto de práticas e exercícios obri-
a marca indelével da vitalícia condi- gatórios a todo e qualquer penitente
ção de imperfeição e fraqueza diante que deseja se redimir de algum pecado
do mal, que caracterizava os homens através de uma confissão dramática do
em geral e o monge em particular. Eles corpo. E a exagóreusis, por sua vez, é
nunca poderiam estar prontos para ca- a confissão verbal da verdade de si no
minharem sozinhos como sujeitos livres intuito de remissão de uma falta, mas,
e soberanos. Por isso, submetiam-se sobretudo, meio para uma vida de san-
às orientações de um diretor espiritual, tidade desenvolvida no interior da vida
ao qual confessavam seus desejos, suas monástica.
más ações e os pensamentos que iam de
encontro à vida cristã.
E a terceira técnica - penitência - A confissão como exomologèse no cris-
também caracterizada pela eterna con- tianismo primitivo dos séculos I a III
dição de pecador, exigia do monge uma
obediência incondicional cuja confissão Na aula do dia 29 de abril do ano de
era um importante meio para não se 1981 do curso Malfazer, dizer verda-
deixar enganar pelas inclinações do mal deiro, Foucault abordou a questão da
que lhe circundavam e estavam ontolo- veridicção cristã. Para tal, ele se lan-
gicamente presentes em sua natureza çou em uma análise da penitência cristã
humana. O olhar do diretor espiritual dos primeiros séculos e que, portanto,
ou do confessor era a certeza de que o pouco se assemelhava com a penitência
monge não se distanciaria do reto ca- que conhecemos hoje, a qual se deli-
minho. Pois todo comportamento não neou no século XII. Tratava-se de uma
condizente com a vida de monge seria série de ritos e práticas cristãs que vi-
observado com mais nitidez por esse savam oferecer uma segunda possibili-
olhar externo. dade de salvação da alma para aqueles
Ao se interessar pelo cristianismo que caíram em pecado após o batismo.
primitivo, ou mais precisamente pela
obrigatoriedade da verdade de si, de-
senvolvida por meio de uma série de O problema da penitência
no cristianismo primitivo era:

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CRISTIANISMO E A RENÚNCIA DE SI NO ÚLTIMO FOUCAULT

quem é batizado não deve pe- Entre os vários sentidos do conceito


car mais; quem pecar deverá ser exomológesis atribuídos por Foucault
excluído da comunidade ecle- nessa aula, sublinhamos a confissão e
siástica; apesar disso, haverá al- o reconhecimento, pois a nosso ver, eles
gum recurso para que o indiví- descrevem com mais precisão o papel
duo seja reintegrado, já que seu da prática penitencial nos três primei-
pecado deveria tê-lo excluído, ros séculos do cristianismo. A exomo-
já que ele mesmo se excluiu da lógesis era uma forma de dizer a ver-
comunidade pela existência do dade sobre si mesmo, uma espécie de
pecado? Em outras palavras, a confissão dramática, mas não centrada
penitência é o problema do se- na palavra, na confissão verbal, mas no
gundo batismo. Será possível corpo. No corpo que suplica, que chora,
ser batizado pela segunda vez? que sofre, que deseja veementemente o
Ou existe a possibilidade de ser perdão.
reintegrado por alguma coisa Nessa perspectiva, Foucault, em uma
que não seja um segundo ba- conferência proferida na universidade
tismo? Esse é, digamos, o qua- de Grenoble, em maio de 1982, afirma
dro geral no qual o problema que:
se apresenta no segundo século
(FOUCAULT, 2018b, p. 90).
Obrigação de manifestar a ver-
dade sobre si, é isso que faz
Foi nesse contexto que Foucault tra- parte do ritual da penitência:
tou da exomológesis, porém ele não se é a exomológesis, uma espécie
deteve apenas a uma única definição de dramatização de si mesmo
desse conceito. Entre as várias de- como pecador que se faz através
finições ofertadas por ele escolhemos de vestimentas, jejuns, prova-
aquela que designaria a exomológesis ções, exclusão da comunidade,
como o conjunto dos passos que compu- atitude suplicante na porta da
nham as práticas penitenciais ou como igreja, etc.; dramatização de si,
o próprio Foucault descreveu em seu expressão dramática de si como
curso Malfazer, dizer verdadeiro, “a pa- pecador, pelo qual alguém se
lavra exomológesis quer dizer ser pe- reconhece como pecador, mas
nitente e levar vida de penitente, de sem passar – sem passar neces-
que a vida de penitente é chamada de sariamente, em todo caso, sem
reconhecimento, confiteor, confissão” passar primeiramente e funda-
(FOUCAULT, 2018b p.95). mentalmente – pela linguagem.

6 Obligación de manifestar la verdad sobre sí, eso es lo que forma parte del ritual de la penitencia: es la exomológesis, una especie

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RAFAEL SIQUEIRA MONTEIRO

É a exomológesis6 (FOUCAULT, dimensão do autosacrifício contido no


2017, p. 121, tradução nossa). martírio devia estar presente nas prá-
ticas penitenciais. Nesse sentido, para
conseguir o perdão, o cristão se subme-
Em uma outra perspectiva, associ-
tia às práticas públicas de reconheci-
ando a exomologèse ao martírio em As
mento de sua condição de pecador, tal
confissões da carne, Foucault afirmou
como ficar na frente da Igreja sem po-
que por meio da exomologèse o peni-
der entrar, esperando o tão sonhado dia
tente deveria testemunhar tal qual o
da reconciliação.
mártir. Pois esse soube testemunhar
Percebe-se através dessa imagem dra-
sua fé e mostrar a verdade de si atra-
mática do homem pecador, que busca o
vés de um corpo humilhado, torturado,
perdão de Deus e da comunidade dos
morto. Não haveria confissão pública
fiéis, o caráter de mortificação das prá-
através do corpo mais eloquente do que
ticas penitenciais. Isto é, trata-se de
o martírio.
um autosacrifício, uma sorte de mar-
tírio cotidiano que tem como objetivo
Se a exomologèse é tão impor- tornar público sua condição de peca-
tante para a penitência, se ela dor. “O penitente tem menos a “dizer
faz parte da penitência nos ri- verdadeiro” sobre o que ele fez do que
tos públicos e aparatosos, é “fazer verdadeiro”, manifestando o que
que o penitente deve testemu- ele é”8 (FOUCAULT, 2018a, p. 98).
nhar como o mártir: Expressar Nesse sentido, na aula de 29 de abril
seu arrependimento, mostrar a de 1981 do curso Malfazer, dizer verda-
força que sua fé lhe dá e tornar deiro, Foucault expressa que:
manifesto que esse corpo que
ele humilha não passa de poeira
e morte, e que a verdadeira vida Veridicção e mortificação estão
é em outro lugar7 (FOUCAULT, intimamente ligadas nessa prá-
2018a, p. 104, tradução nossa). tica da penitência. Se a prática
da penitência implica essa exo-
Evidentemente, nem todos precisa- mológesis, é porque, por meio
vam passar pelo martírio de fato, mas a dessa penitência, é preciso pri-

de dramatización de sí mismo como pecador que se hace a través de la vestimenta, los ayunos, las pruebas, la exclusión de la co-
munidad, la actitud de suplicante a la puerta de la iglesia, etc.; dramatización de sí, expresión dramática de sí como pecador, por la
cual uno se reconoce a sí mismo como pecador, pero sin pasar – sin pasar necesariamente, en todo caso, sin pasar primeramente y
fundamentalmente – por el lenguaje. Es la exomológesis (FOUCAULT, 2017, p. 121).
7 Si l’exomologèse est si importante dans la pénitence, si elle fait corps avec celle-ci dans des rites publics et ostentatoires, c’est que
le penitent doit témoigner comme le martyre: exprimer son repentir, montrer la force que lui donne sa foi et rendre manifeste que ce
corps qu’il humilie n’est que poussière et mort, et que la vraie vie est ailleur (FOUCAULT, 2018a, p. 104).
8 “(...) le penitente a moins à “dire vrai” sur ce qu’il a fait qu’à “faire vrai” en manifestant ce qu’il est” (FOUCAULT, 2018a, p. 98).

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CRISTIANISMO E A RENÚNCIA DE SI NO ÚLTIMO FOUCAULT

meiro morrer para este mundo tãos eram perseguidos e muitas vezes,
e depois provar, provar publi- para se salvar, mentiam dizendo que
camente perante esse mesmo não eram cristãos ou simplesmente a
mundo, que se está pronto condição para não morrerem era negar
para sacrificá-lo, que se está seu mestre Jesus.
pronto para sacrificar-se neste Essas dificuldades enfrentadas pelos
mundo, a fim de chegar àquele cristãos geraram um grave problema
outro mundo. Ou seja, tem- nas primeiras comunidades. O que fa-
se aí uma veridicção sobre si zer com esses que negaram o nome de
mesmo, um ato ritual por meio Jesus? As práticas penitenciais respon-
do qual se mostra a verdade de diam a esse problema. A solução en-
si mesmo, mas em relação com contrada foi a penitência enquanto exi-
quê, em função de quê, em li- gência de uma verdade de si e como
gação com quê? Com a mortifi- punição para o crime cometido. A ver-
cação, ou seja, com o autosacri- dade exigida do penitente e a punição
fício. Só produz a verdade so- a ele imposta eram a exigência mínima
bre si mesmo quem é capaz de para ele voltar à Igreja dos mártires, da-
sacrificar-se. O sacrifício pela queles que não titubearam diante da
verdade sobre si mesmo, ou a fé, pois “a obrigação do penitente de se
verdade sobre si mesmo para manifestar, na verdade de sua condi-
o autosacrifício é o que está ção de pecador e na autenticidade de
no cerne do rito da exomoló- sua penitência, baseia-se muito mais
gesis penitencial (FOUCAULT, profundamente em sua relação com o
2018b, p.97). martírio”9 (FOUCAULT, 2018a, p.103,
tradução nossa).
Como se vê, nesses três primeiros
O excerto acima revela o martírio séculos a confissão como verbalização
como o modelo que inspira as práti- não aparece de forma significativa, em-
cas penitenciais cristãs. O martírio en- bora Foucault a mencione em alguns
quanto autosacrifício, renúncia de si e momentos dos ritos batismais e peni-
confissão eloquente do corpo. Para se tenciais da Igreja primitiva no decor-
entender o porquê desse vínculo tão rer de seus cursos de 1980. Todavia,
estreito entre martírio e veridicção é o corpo do pecador confessa a verdade
necessário levar em conta o contexto de si através de uma liturgia do sofri-
histórico dessas práticas penitenciais mento e da dramaticidade do corpo hu-
do século I ao III. Os primeiros cris-

9 l’obligation pour le penitent de se manifester, dans la vérité de son état de pécheur et dans l’authenticité de sa pénitence, se fonde
beaucoup plus profondément sur leur apport au martyre (FOUCAULT, 2018a, p.103).

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milhado, eis a grande marca desses três de uma relação consigo mesmo
primeiros séculos. –, mas também uma relação
com o outro, uma relação com o
mestre (FOUCAULT, 2018b, p.
A confissão como exagóreusis no cris- 109).
tianismo primitivo do IV ao V século
Essa necessidade do outro que es-
Na aula de 6 de maio de 1981 do curso cuta e orienta e a exigência da verba-
Malfazer, dizer verdadeiro, sobretudo lização da verdade de si foram as duas
a partir dos textos de Cassiano e do principais características da exagóreu-
Apophtegmata Patrum, Foucault ana- sis. Nesse sentido, Foucault, na aula
lisou como a obrigatoriedade da ver- de 13 de maio de 1981, definiu o con-
dade de si se desenvolveu nas insti- ceito exagóreusis como a “confissão per-
tuições monásticas nos séculos IV e V manente sobre si mesmo” (FOUCAULT,
em continuidade com as práticas peni- 2018b, p. 141). A vida do monge se
tenciais, mas trazendo uma novidade tornou a confissão permanente de seus
fundamental na relação que o sujeito pensamentos e desejos a um outro indi-
mantém com a verdade no cristianismo víduo que, revestido de autoridade, re-
primitivo. Não bastava somente produ- cebeu o poder de governá-lo, não tanto
zir uma verdade de si e confessá-la em pelo conteúdo dessa verdade, mas pelo
gestos corporais dramáticos, como ocor- ato em si de confessar.
ria nos três primeiros séculos, mas, sim, Não era o conteúdo da verdade
verbalizá-la a um outro encarregado de que interessava, mas o ato em si de
ouvir e orientar. confessar-se que trazia consigo um
modo existência, que reconhecia a pre-
O monasticismo – justamente sença de uma autoridade a quem se
por causa da situação na qual devia, obrigatoriamente, produzir uma
estava e da institucionalização verdade de si mesmo como gesto de ex-
do ascetismo individual – con- trema obediência e submissão. Nesse
siderará que essa purificação sentido, Chevallier (2011, p. 135) dirá
por mortificação e autoconhe- que:
cimento só poderá ser realizada
por meio de certa relação. Não O que une, na confissão religi-
simplesmente relação de si con- osa, não é, portanto, o enunci-
sigo – não simplesmente uma ado, mas unicamente a enun-
relação de conhecimento con- ciação, não é a verdade dentro
sigo ou uma relação de asce- do seu conteúdo, mas unica-
tismo e mortificação por meio mente o ato de produzir a ver-

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CRISTIANISMO E A RENÚNCIA DE SI NO ÚLTIMO FOUCAULT

dade diante do outro. Alguém principal instrumento é a prá-


pode mesmo se perguntar si o tica permanente de “exame-
ato de verdade finalmente não confissão”, que no cristianismo
desaparece em benefício de um oriental se chama exagóreusis:
simples ato enunciativo que é “cada um dos subordinados
antes de tudo reconhecimento deve, por um lado, evitar escon-
de uma autoridade, obediente e der em seu coração qualquer
submissa10 . movimento de sua alma; além
disso, cuidado com o abandono
de qualquer palavra sem con-
Nasce um tipo de poder próprio ao
trole e com a descoberta dos
cristianismo nesse momento, um po-
segredos do coração para os ir-
der pela verdade. O fundamento desse
mãos que receberam a missão
poder se encontrava na obediência to-
de tratar os doentes com sim-
tal do indivíduo que confessava. Para
patia e compreensão11 ” (FOU-
Foucault, o modo de veridicção cristã
CAULT, 2018a, p. 133).
visava fundamentalmente uma existên-
cia capaz de renunciar a si mesmo, o
que gerava uma obediência absoluta a
Como podemos observar, a constru-
um outro. Como o cristianismo conse-
ção da subjetividade cristã, fundamen-
guiu tal feito? Na aula de 6 de maio
tada na obediência e na renúncia de
de 1981, Foucault afirma que “esse es-
si, desenvolveu-se a partir de duas téc-
tado de obediência [...] implica, eviden-
nicas de si – exame e confissão – em
temente, duas coisas: primeiro, auto-
vista de um objetivo comum, qual seja
exame; segundo, o ato de dizer efeti-
a constituição de um sujeito obediente
vamente, um ato verbal” (FOUCAULT,
e capaz de renunciar a si mesmo. Em
2018b, p. 122).
outras palavras, a vida monástica exi-
Nessa mesma perspectiva, em As con-
giu do monge o exame completo de sua
fissões da carne ele afirmou que:
vida e a confissão a um outro como um
gesto de obediência e de renúncia de
Na forma geral de obediência e suas próprias vontades.
renúncia à vontade própria, o Podemos observar esse processo de

10 Ce qui lie, dans l’aveux religieux, n’est donc pas l’énoncé mais la seule énonciation ; non pas la vérité dans son contenu, mais le
seul acte de produire la vérité devant autrui. On peut même se demander si l’acte de verité ne s’efface pas finalement au profit d’un
simples acte énonciatif qui est d’abord reconnaissance d’une autorité, obéissance et soumission (CHEVALLIER, 2011, p. 135).
11 Dans la forme générale de l’obéissance et de la renonciation à la volonté propre, la direction a pour instrument majeur la prati-
que permanente de “l’examen-aveux”, ce que, dans le christianisme oriental, on appelle l’exagoreusis: “Chacun des subordonnés doit
d’une part éviter de tenir caché dans son for intérieur aucun mouvement de son âme; d’outre part se garder de lâcher une parole
quelconque sans controle et découvrir les secrets du coeur à ceux des frères qui ont reçu la mission de soigner les malades avec
sympathie et compréhension” (FOUCAULT, 2018a, p. 133).

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formação da subjetividade cristã no oci- contínua e permanente de ori-


dente nas análises de Foucault sobre a entação para toda alma (FOU-
relação mestre e discípulo na antigui- CAULT, 2018b, p. 116).
dade e que o cristianismo, de alguma
forma, integrou em seu universo religi-
É justamente nessa perspectiva de
oso12 . Essa relação mestre e discípulo
dependência perpétua que se encontra
foi assumida pelo cristianismo na con-
uma grande diferença entre as práticas
fissão, na direção espiritual, na relação
de orientação da filosofia antiga e prá-
superior e subordinado, assim como no
ticas de orientação cristã. Pois, para os
contexto da vida monástica do monge
antigos, “tratava-se de ser guiado até
mais experiente em relação ao noviço.
tornar-se sóphos, até torna-se sábio. Por-
Porém, Foucault deixa claro que dife-
tanto, esta é a primeira característica:
rentemente do que acontecia na filoso-
havia um objetivo, um objetivo pre-
fia antiga, na medida em que o indiví-
ciso; por conseguinte, era uma orien-
duo se aprofundava nesse caminho reli-
tação temporária” (FOUCAULT, 2018b,
gioso, ele era enredado por uma depen-
p. 113).
dência vitalícia em relação a outrem.
Nessa mesma perspectiva de ruptura
na relação entre mestre e discípulo na
filosofia antiga e na instituição monás-
A queda de quem está bem
tica, podemos mencionar o papel do
avançado no caminho da santi-
mestre em ambos os casos. Do lado da
dade, essa queda é sempre pos-
filosofia, a fama de inteligência e sabe-
sível desde que ele não admita,
doria que os mestres da filosofia deve-
que deixe de admitir a possi-
riam gozar eram critérios imprescindí-
bilidade ou a obrigação de ser
veis. Esses mestres só poderiam guiar
orientado, a partir do momento
alguém se fossem capazes de fazê-lo,
em que passa a ser ou quer ser
capazes de transmitir valores, ensina-
mestre de si mesmo. Portanto,
mentos que guiassem suas condutas na
não há testemunho de orienta-
vida social e privada, fazendo-os mes-
ção instituída para todos até o
tres de si mesmos e, portanto, capazes
fim da vida, mas encontramos
de conduzir livremente suas vidas.
claramente o princípio de que a
orientação não pode ser provi-
sória, de que há, em todo caso, Por fim, o último ponto, que re-
uma necessidade fundamental, sume todos os outros: é que,

12 Na aula de 6 de maio de 1981, Foucault deixa claro que a relação cristianismo e filosofia se dá na superfície, mas que difere em
sua essência. Isto é, embora o cristianismo herde algumas práticas da filosofia antiga e as integre em seu universo religioso, ele as
modifica inteiramente em seu significado originário.

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finalmente – aprendido esse có- resistir a uma ordem dada; submissão,


digo, interiorizada essa regra de porque tudo o que fazemos deve ter
comportamento graças à com- a permissão de um superior. Todavia,
petência daquele que guiava, para se chegar ao ápice da humildade,
porque ele sabia –, o indiví- da obediência e da submissão é preciso
duo que não sabia, o indivíduo falar, verbalizar, confessar os mais ínti-
que era guiado, tornava-se fi- mos segredos.
nalmente capaz de prescindir O que está por detrás dessa perpé-
de mestre; e podia prescindir de tua relação de obediência desenvolvida
mestre porque se tornava mes- pelo cristianismo? Por que a exigência
tre. A operação de guiar consis- de verbalizar a verdade de si mesmo?
tia essencialmente numa espé- Mais uma vez a teologia e a antropo-
cie de substituição de mestria: logia cristã têm um papel importante
aceitava-se a mestria do outro nessa prática de veridicção específica
para poder garantir a própria ao cristianismo. Diz respeito ao fato de
mestria sobre si mesmo e por si que o monge, o homem, está sempre em
mesmo (FOUCAULT, 2018b, p. perigo de cair em tentação e a qualquer
113). momento se perder em seu caminho de
santidade. Logo, essa dependência da
confissão a outrem, da verbalização dos
Do lado das práticas monásticas, es- desejos mais secretos do pensamento a
tas se encontravam no outro extremo, um superior, explica-se pela natureza
o monge não precisava ser dotado de humana ontologicamente marcada pelo
grandes virtudes, inteligência ou sabe- mal e sempre sujeita à queda.
doria, mas somente revestido de uma Nesse sentido, Foucault (2018b,
autoridade para guiar bem ou mal o p.116) afirma que:
seu orientando. Pois, “o que faz pro-
gredir na vida, na vida da santidade,
o que, por conseguinte, possibilita per- O que está em jogo em tudo isso
correr o caminho que deve levar à vida é a ideia de um estado de perfei-
e à verdade é o fato puro de obedecer, ção. Não há estado de perfeição
seja qual for a ordem e seja qual for o para o monge cristão, a despeito
mestre” (FOUCAULT, 2018b, p. 117). do que possam ter tido certos
Para Foucault, essa relação perpétua filósofos ou certas escolas de fi-
de escuta e obediência se dá através do losofia antiga. Não há estado
cultivo de três virtudes cristãs: humil- de perfeição, digam o que dis-
dade, obediência e submissão. Humil- serem certos gnósticos ou dua-
dade, porque devemos obedecer a to- listas. É isso o que se afirma e
dos; obediência, porque nunca devemos exemplifica no princípio da ori-

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entabilidade, digamos, ou no de sujeito submisso, confessante, en-


princípio de que deve sempre volvido por uma teia de poder, cujos
haver uma relação possível de fios que o compõe são verdades cons-
orientação ao longo de toda a truídas e encarnadas em sua existência.
existência de um indivíduo. Desse modo, a confissão cristã se in-
tegrou ao Estado e em suas instituições
médicas e jurídicas. Obrigou-nos a con-
Podemos perceber, então, que para fessar nossos hábitos alimentares, nos-
Foucault não há perfeição humana na sos costumes cotidianos, nossa vida se-
antropologia cristã, o homem é sempre xual, nossos medos e desejos, nossas do-
frágil diante de si mesmo e do mal. Sua enças, nossos crimes. O diretor de cons-
inclinação ao mal pode se manifestar ciência ou o confessor deu espaço para
mesmo onde ele pensa que sua ação o o psiquiatra, o psicanalista, o psicólogo,
eleva a Deus. Por isso, havia necessi- o juiz e o delegado. Somos, portanto,
dade de alguém para guiá-lo por toda herdeiros dos mosteiros do cristianismo
sua existência, pois, sozinho, ele facil- primitivo no que concerne à exigência
mente seria enganado por seu orgulho de confessarmos uma verdade de nós
ou vaidade, e até mesmo pelo próprio mesmos.
demônio que quer sempre vê-lo sucum-
bir em sua estrutura interna de desejo.
Essa orientação permanente do As práticas de veridicção sobre
monge se efetuava na prática monás- si mesmo, ou como, no monas-
tica através da confissão dos pecados, ticismo, o dizer verdadeiro so-
dos pensamentos e dos desejos mais bre si mesmo se tornou um ele-
íntimos. Nada poderia ser escondido, mento absolutamente funda-
a vida do monge deveria ser transpa- mental, essencial dessa vida e
rente como um vidro que deixa o sol da acabou sendo, com uma forma
verdade traspassá-lo, purificando-o de absolutamente nova, injetado,
dentro para fora e dando-lhe força para enxertado, implantado na cul-
prosseguir em seu caminho de santi- tura ocidental. A partir daí,
dade. essa prática da confissão, essa
Essa relação entre mestre e discípulo tecnologia complexa de veri-
por meio da confissão, da exposição da dicção sobre si mesmo, terá
verdade de si, entre monge e diretor de um sucesso considerável (FOU-
consciência, foi fundamental na vida CAULT, 2018b, p. 110).
monástica. Todavia, essa relação não
ficou enclausurada nos mosteiros dos Portanto, quer na penitência do sé-
séculos IV e V, ao contrário, ganhou o culo I ao III, quer na verbalização de de-
mundo ocidental, constituiu um tipo sejos, pensamentos e pecados na insti-

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tuição monástica nos séculos IV e V, há


uma exigência da verdade de si. Uma
O cristianismo para Foucault,
verdade que nasce do processo de cul-
compreende as formas arcaicas
pabilização por uma infração cometida
do poder moderno. Ao envol-
e que constitui esse homem pecador em
ver o corpo na alma ou na per-
um sujeito confessante e dependente.
sonalidade, o cristianismo ga-
Consequentemente, o sujeito que se
rante que sua identidade seja
constitui nesse processo de subjetiva-
estabelecida e corrigida conti-
ção cristã é empurrado cada vez mais
nuamente. O poder disciplinar
para uma relação de poder.
no século XIX é uma seculari-
zação do triângulo cristão com-
posta da obediência absoluta,
exame permanente e confissão
A subjetividade cristã do homem oci-
exaustiva dos desejos14 (SAU-
dental
QUILLO, 2017, p. 359, tradu-
ção nossa).
As técnicas de si ou os procedimen-
tos cristãos desenvolvidos ao longo dos
cinco primeiros séculos da era cristã Esse triângulo mencionado por Sau-
permitiram ao cristianismo governar quillo possivelmente não é equilátero,
seu rebanho. Por meio da exomologèse e pois a confissão ganha um maior desta-
da exagóreusis, o cristianismo desenvol- que no sentido de que ela se apresenta
veu uma espécie de método de governo como meio e fim das outras duas técni-
que, como mater et magistra13 ensinou cas de si. A confissão seria o resultado
ao ocidente a como governar os homens natural do exame permanente da cons-
por meio da verdade. Temos a impres- ciência na vida monástica e o meio ne-
são de que, em Foucault, a obrigação de cessário para se chegar à obediência ab-
dizer a verdade de si mesmo, desenvol- soluta, uma vez que a rememoração dos
vida pelo cristianismo, produziu uma erros cometidos durante a jornada pre-
relação de poder. cisavam ser verbalizados em um diá-
Nesse sentido, Sauquillo afirma que logo com o superior; e todo esse pro-
o cristianismo primitivo ofereceu as ba- cesso da verbalização da verdade de si
ses do poder moderno para o mundo objetivava em última instância a consti-
ocidental: tuição de um monge obediente e capaz

13 Latim: “mãe e mestra”.


14 El cristianismo para Foucault, comprende las formas arcaicas del poder moderno. Al encerrar el cuerpo en alma o en la perso-
nalidad, el cristianismo se asegura establecer su identidad y corregirlo continuamente. El poder disciplinario del siglo XIX es una
secularización del triángulo cristiano compuesto de obediencia absoluta, examen permanente de uno mismo y confesión exhaustiva
de los deseos (SAUQUILLO, 2017, p. 359).

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de renunciar toda e qualquer autono- na animalidade dos instintos. Somente


mia. assim o cristianismo conseguiu que o
O conjunto dessas técnicas de si, so- sujeito livremente produzisse uma ver-
bretudo, a confissão, tornaram possí- dade de si, fosse governado por essa
vel a aparição de uma subjetividade verdade e, mais do que tudo, disposto a
cristã para o homem ocidental. Sub- renunciar a si mesmo17 .
jetividade que possibilitou a constitui- A construção da subjetividade cristã
ção de um sujeito, cuja identidade foi foi evidentemente um processo que co-
marcada pela sujeira do pecado e pela meçou no século I, mas é na institui-
obediência absoluta. Alguém que deve- ção monástica que encontramos um ca-
ria ser sempre orientado, haja vista que pítulo fundamental da genealogia do
estava inclinado à queda e ontologica- sujeito ocidental. A história da cons-
mente marcado pela imperfeição. tituição do sujeito que renunciou a si
Ao produzir uma identidade de um mesmo começou nos primeiros passos
sujeito imperfeito e sempre suscetível da vida de monge. A estrutura hierár-
às forças do mal graças a sua condição quica da Igreja e sua forma de regime
ontológica de ser pecador, criou-se con- monárquico contribuiu para imprimir
comitantemente a necessidade de sal- nos candidatos à vida monástica a obe-
vação15 . Isto é, Deus está sempre dis- diência completa e a exclusão de toda e
posto a estender a mão àqueles que caí- qualquer vontade própria. O superior
ram no pecado. É justamente nessa ten- ou o abade ditavam as regras a serem
são entre imperfeição e necessidade de seguidas, buscando incutir nos noviços
salvação no seio do cristianismo16 que a ideia de que é renunciando a si mesmo
possivelmente o poder pela verdade se que eles encontrariam a vida plena em
produziu. Deus.
A penitência cristã, a direção de Nesse sentido, na aula de 13 de maio
consciência perpétua, a confissão dos de 1981 do curso Malfazer, dizer verda-
desejos, enfim, todas as técnicas de deiro, Foucault afirma que:
si que colocaram em cena uma rela-
ção de poder vertical, só foi possível, Trata-se de fato, nessa exagó-
a nosso ver, quando o indivíduo se acei- reusis, de autodestruir-se, de
tou como um ser imperfeito, suscetível renunciar a si mesmo, renún-
às investidas do mal e exposto a cair cia que de algum modo acaba

15 Nesse viés, Foucault, na aula de 26 de março de 1980 do curso Do governo dos vivos, afirma: Como vocês estão vendo, é sempre
esse problema da perfeição e da necessidade ou, em todo caso, do objetivo que a Igreja cristã se deu contra um certo número de suas
tendências internas ou contra um certo número de suas proximidades, esse esforço que ela fez para distinguir a economia da salvação
da exigência de perfeição (FOUCAULT, 2018c, 265).
16 Para um maior esclarecimento da relação imperfeição e salvação no cristianismo, ver Chevallier (2012).
17 “Aquele que acha a sua vida, a perderá, mas quem perde sua vida por causa de mim, a achará” (Mt, 10, 39).

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tendo dois papéis ou estando cer sua vontade impondo-lhe


em duas posições simultâneas um regime de obediência com-
[...]. Por um lado, se quero pleto, exaustivo e permanente.
mesmo me conhecer, se quero Tratava-se, para eles, de obe-
exercer esse controle tão neces- decer sem cessar as ordens que
sário sobre mim, preciso renun- podiam lhes dar, e aconselhava-
ciar a qualquer vontade autô- se aos que lhes davam ordens
noma, qualquer vontade que para fazer de sorte que estas
seja minha; preciso submeter- fossem o mais possível contrá-
me ao outro e dar como penhor rias às suas inclinações. Graças
de minha submissão ao outro a isso, os noviços deviam chegar
o fato de que lhe digo tudo o àquela renúncia de si que tem
que penso. E, graças a isso, o nome de humildade (FOU-
ao cabo desse trabalho perma- CAULT, 2018c, 261).
nente e como efeito dele, intei-
ramente submisso à vontade do
outro, tendo purificado meu co- Para chegar a esse estado de humil-
ração de todos esses pensamen- dade ou renúncia de si mesmo o monge
tos móveis que o perturbam, precisava de um olhar externo que en-
vou poder abrir-me para Deus xergasse com mais clareza sua vida e
e não ter outra vontade que não seu comportamento. Um diretor de
seja a vontade de Deus (FOU- consciência, um confessor, um superior
CAULT, 2018b, p. 143). que lhe guiasse e alertasse acerca de
suas vaidades e orgulhos. E, como foi
mencionado anteriormente, essa mis-
Nessa mesma perspectiva, Foucault
são de escutar e conduzir tinha como
afirmou no curso Do governo dos vivos,
principal instrumento duas técnicas de
na aula de 26 de março de 1980, que:
si: o exame de consciência e a confissão.
Foucault observou que a matéria
O primeiro imperativo era en- prima do dueto exame-confissão é o
sinar os noviços a vencer sua pensamento. Pensamentos eróticos, de
vontade, e os ensinavam a ven- glória e poder deveriam ser presos pelo

18 Na aula de 26 de março de 1980, Foucault explicou o porquê do cuidado em examinar o pensamento em sua atualidade con-
forme podemos observar a seguir: O exame deve centrar-se na atualidade do pensamento e não, retrospectivamente, no que foi feito.
Trata-se de aprender o pensamento no momento em que começa a pensar, de apreender na raiz, quando estamos pensando no que
pensamos. No sentido estrito, o exame é um exame de passagem, um exame de passagem na atualidade e que tem por função o quê?
Exercer uma triagem, exercer [o que, precisamente, era chamado de] discriminatio. Não se trata portanto de medir a posteriori os atos
para saber se são bons ou ruins, mas de aprender os pensamentos no exato momento em que se apresentaram, depois procurar o
mais depressa possível, imediatamente, separar os que podemos acolher em nossa consciência e os que teremos de repelir, expulsar
da nossa consciência (FOUCAULT, 2018c, p. 272).

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ISSN: 2317-9570
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exame de consciência no ato mesmo do ção de um modo de subjetivação, que


pensamento18 . Deixá-los crescer em seu constituiu um sujeito que renunciou a
interior poderia se tornar um ato de- si mesmo. Um sujeito cuja obediência
masiado perigoso, pois aquele que me- eliminou qualquer satisfação pessoal;
nospreza as pequenas coisas, pouco a a vontade própria não mais existe e o
pouco, fomentaria sua própria destrui- único horizonte é a vontade de Deus na
ção19 . Para evitar esse processo paula- vontade do superior.
tino de decadência provocado pela ne- Renunciar a si mesmo é abrir mão
gligência das pequenas coisas, o mos- de sua liberdade, gerando, assim, uma
teiro passou a exigir do monge não so- relação de dominação, pois o “sujeito
mente o exame de seus pensamentos renuncia a si mesmo e obedece indefini-
e posteriormente sua confissão, mas damente ao outro” (GROS, 2004, p.17,
exigiu também a apreensão do pen- tradução nossa)20 . Uma relação de po-
samento no ato mesmo de seu surgi- der na qual quem confessa a verdade
mento. de si deve obedecer sem limites. Esse
Após essas reflexões, constatamos gesto de extrema radicalidade de obe-
que é através de um exame constante diência só encontrou sentido quando o
de si mesmo, na atualidade de seu pen- cristão encontrou a verdade por exce-
samento, que o monge descobriria suas lência, Deus. Essa verdade só poderia
fragilidades. E, uma vez identificadas ser alcançada através de um longo pro-
suas fraquezas, era necessário parti- cesso no qual a verdade de si mesmo,
lhar sua descoberta a um diretor de em forma de confissão, tornou-se uma
consciência, confessor ou superior, ou exigência fundamental e incontornável.
seja, a alguém incumbido de lhe ori-
entar. Todo esse processo de exame
da sua própria vida e da obrigação de
verbalizá-lo em forma de confissão a Conclusão
um outro, culminaria em uma obediên-
cia total do monge e em um estado de Foucault não procurava compreender o
humildade que não seria outra coisa se- cristianismo na perspectiva da fé, seu
não a renúncia de si mesmo. olhar era de um ateu, um hermeneuta
Nessa perspectiva, podemos consta- ateu do cristianismo. Mas há algo de
tar que Foucault, ao analisar a obriga- comum entre Foucault e os teólogos,
toriedade da verdade de si no cristia- ambos querem pensar o tempo pre-
nismo primitivo, identificou a forma- sente servindo-se do passado. Foucault
se voltou para os primeiros séculos do

19 O que menospreza o pouco aos poucos cairá na miséria (Eclo, 19,1).


20 Sujet donc de la mort à soi-même et de l’obéissance indéfinie à l’Autre (GROS, 2004, p.7).

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ISSN: 2317-9570
CRISTIANISMO E A RENÚNCIA DE SI NO ÚLTIMO FOUCAULT

cristianismo para procurar a genealo- zer sucumbir em meio aos seus infinitos
gia do sujeito ocidental. Pois, para ele desejos.
a subjetividade do homem ocidental é Teríamos, portanto, diante de nós,
cristã. uma crítica ao cristianismo que talvez
Nessa busca, Foucault constatou a esteja na esteira dos grandes críticos
importância da confissão na subjetiva- da religião em geral e do cristianismo
ção cristã. O ato de confessar-se, mais em particular? Possivelmente não, em-
do que a confissão em si, engendrou um bora concordamos que seja possível re-
poder próprio ao cristianismo, um con- tirar do pensamento de Foucault uma
trole dos indivíduos por meio da ver- crítica ao cristianismo, no sentido de
dade que esses produziam de si mes- que o cristianismo criou um modo de
mos. Um poder que impeliu o sujeito governar pela verdade. Todavia, esta-
cristão a renunciar a si mesmo. Através mos bem distantes de pensadores como
da confissão do corpo que se arrepende Marx, Nietsche e Freud para os quais
e da voz que admite os seus pecados o a religião foi respectivamente ópio, res-
cristianismo governou por meio da ver- sentimento e doença.
dade. Portanto, ao se debruçar sobre o cris-
O cristianismo, então, aparece como tianismo primitivo, Foucault buscou
a tábua de salvação para esse sujeito in- compreender a subjetividade do ho-
clinado ao mal. Deixa-se governar pela mem ocidental. Essa subjetivação cristã
verdade de si; verdade que o identifica que marcou profundamente o homem
essencialmente como pecador e incapaz ocidental possuía dois pilares: a exo-
de ser mestre de si. Por isso, deixa-se mologèse e a exagóreusis. Foi sobre
conduzir por outrem durante toda sua esses dois fundamentos que o cristia-
existência, nunca está pronto para to- nismo interpelou o sujeito a renunciar
mar suas próprias decisões, o mal está a si mesmo.
sempre lhe rodeando e pronto a lhe fa-

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Filosofias e Métodos Universidade Federal de São João del Rei, São João del Rei, 2016/2, n.17, pp. 76-88. Disponível
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Recebido: 25/05/2020
Aprovado: 14/12/2020
Publicado: 31/01/2021

284 Revista de Filosofia Moderna e Contemporânea, Brasília, v.8, n.3, dez. 2020, p. 265-284
ISSN: 2317-9570
DOI: https://doi.org/10.26512/rfmc.v8i3.34488

RESENHA
KOOPMAN, Colin. How We Became Our Data: A Genealogy of the
Informational Person. Chicago: University of Chicago Press, 2019.

Graziano Mazzocchini* ; Rodolpho Venturini**

Sobre o Nascimento da Infopolítica

Em How We Became Our Data: a gene- dutíveis àquelas produzidas pelo con-
alogy of the informational person (2019), trole dos corpos e das populações.
Colin Koopman, professor de filosofia Koopman realiza, em seu livro, dois
da Universidade do Oregon, EUA, apre- grandes movimentos. Em primeiro lu-
senta uma tese ousada acerca do modo gar, dedica-se a definir e demonstrar
como a informação e a política se entre- empiricamente a especificidade do “in-
laçaram ao longo do século XX e seus fopoder”, do seu modo de operação e
impactos nas formas contemporâneas de suas técnicas, e diferenciá-lo do po-
de subjetividade. O século XX teria der disciplinar e do biopoder, formas
conhecido a emergência de um “info- clássicas que influenciam boa parte das
poder”, um poder da informação, dos investigações sobre a relação entre polí-
data, que não pode ser reduzido a ou- tica e informação na atualidade. Em se-
tras formas específicas de poder tais gundo lugar, fornece uma releitura da
como o poder disciplinar e o biopo- história tradicional da ciência e tecno-
der, analisados por Michel Foucault ao logia da informação, sustentando a ne-
longo da década de 1970. A forma de cessidade de recuar a investigação para
poder que corre no interior das tecnolo- o início do século XX, privilegiando o
gias da informação possui mecanismos momento de formulação dessas tecno-
próprios e consequências políticas irre- logias, e não o de sua disseminação, que

* Mestre em filosofia pela Università di Bologna. Atualmente realiza doutorado em filosofia na Universidade Federal de Minas
Gerais (UFMG). E-mail: grazianomazzocchini@gmail.com. ORCID: https://orcid.org/0000-0002-3484-3669.
** Mestre em filosofia pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Atualmente realiza doutorado em filosofia na mesma
instituição. E-mail: rventuriniap@gmail.com. ORCID: https://orcid.org/0000-0001-7364-2483.

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GRAZIANO MAZZOCCHINI; RODOLPHO VENTURINI

teria ocorrido só na década de 1970. do poder, cuja finalidade é exatamente


Até a publicação de How We Became a de ser colocada em prática em pes-
Our Data, as pesquisas de Koopman quisas específicas. O resultado é uma
partiam de um cruzamento entre fi- abordagem que o autor classifica como
losofia política e história da filosofia, um “pragmatismo genealógico” (KO-
abordando sobretudo a tradição prag- OPMAN, 2011), posto em prática jus-
matista norte-amarica e o pensamento tamente em How We Became Our Data.
de Michel Foucault. Tais pesquisas de- How We Became Our Data se orga-
ram origem a dois livros: Pragmatism niza em duas partes, cada uma delas
as Transition (2009), uma interpreta- seguindo os movimentos anteriormente
ção original da tradição pragmatista, mencionados. Na primeira delas, numa
de Peirce a Brandom, a partir do con- linha mais propriamente histórica, Ko-
ceito de “transição”, entendido como o opman aborda o desenvolvimento das
“conjunto de estruturas e formas histó- tecnologias “infopolíticas” em um mo-
ricas” que permitem uma transforma- mento que vai do início da Primeira
ção temporal (FREGA, 2009), e Gene- Guerra Mundial até o limiar da Se-
alogy as Critique (2013), que, por sua gunda Guerra, entre 1913 e 1937. O
vez, pode ser compreendido como um entrecruzamento entre essas tecnolo-
esforço de “reconstruir” o pensamento gias foi fundamental para o posterior
político e histórico de Foucault, por um desenvolvimento da teoria da informa-
lado, aproximando-o da tradição prag- ção e da prática da informatização da
matista e, por outro, em contraste com vida humana que viria a se intensifi-
o pensamento de Jürgen Habermas. A car e ganhar contornos mais definidos,
retomada dessas publicações anterio- e mais evidentemente perigosos, no fi-
res é interessante pois permite expli- nal dos anos 1960. A primeira dessas
citar os compromissos teóricos que vi- tecnologias aparece em 1913, com o
riam a ser desenvolvidos como método desenvolvimento de mecanismo e téc-
aplicado em How We Became Our Data. nicas que permitiram o surgimento de
Trata-se nos livros anteriores, e o autor uma “informática da identidade docu-
é mais ou menos explícito quanto a isso, mentária”. A segunda dessas tecnolo-
de desenvolver uma metodologia inspi- gias infopolíticas emerge em 1923 com
rada pelos trabalhos de Foucault, mas o desenvolvimento de uma “informá-
temperada pela abordagem pragma- tica dos traços psicológicos”. A terceira
tista. Genealogy as Critique pode, então, e última tecnologia investigada por essa
ser lido como um grande discurso de genealogia pragmática da subjetividade
método elaborado através da “recons- informatizada surge no ano de 1923
trução racional” dos pressupostos fun- com o desenvolvimento de uma “infor-
damentais da abordagem foucaultiana mática do crédito racializado” (KOOP-

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KOOPMAN, COLIN. HOW WE BECAME OUR DATA: A GENEALOGY OF THE INFORMATIONAL PERSON.
CHICAGO: UNIVERSITY OF CHICAGO PRESS, 2019.

MAN, 2019). p.160)1 . A técnica seria o modo como o


Na segunda parte do livro, Koopman poder opera. A operação, aquilo que
se dedica à tarefa conceitual de definir ele faz, aquilo que ele produz (KOOP-
em termos mais gerais a mecânica de MAN, 2019, p.160). “Toda técnica de
operação do “infopoder”. Boa parte do poder exerce operações específicas de
esforço teórico e conceitual de Koop- poder (...), e toda operação de poder é
man é dirigido para a tentativa de espe- exercida por técnicas de poder” (KO-
cificar e diferenciar o que ele chama de OPMAN, 2019, p.161). Os sujeitos são
“infopoder” daquelas formas de poder o “material” das operações, sendo que
anteriormente analisadas por Foucault: “o papel dessas operações na formação
o poder disciplinar e o biopoder. Se- de quem nós somos e o que devemos
gundo Koopman, os autores que busca- fazer não pode ser subestimado” (KO-
ram se inspirar no pensamento de Fou- OPMAN, 2019, p.161). Além disso, é
cault para pensar a relação entre polí- preciso ter em mente, segundo ele, que
tica e informação na sociedade contem- as “operações técnicas e os sujeitos que
porânea acabaram por ler as técnicas de elas visam são coproduzidas e frequen-
informatização a partir da lógica disci- temente entram em uma relação recí-
plinar ou biopolítica, como meros ins- proca amplificativa de feedback” (KO-
trumentos para a perpetuação das for- OPMAN, 2019, p.161), levando a um
mas disciplinares e biopolíticas de sub- ajuste que, por sua vez, é mediado por
jetividade e, com isso, deixaram escapar um “modo de racionalidade” que coor-
aquilo que a informação ou a informati- dena esses ajustes (KOOPMAN, 2019,
zação possui de politicamente singular. p.161)2 .
Ou seja, ao se preocupar com a biopolí- A partir dessa concepção geral de
tica e com a disciplina, deixam de lado poder, Koopman irá reivindicar a es-
a infopolítica. pecificidade do infopoder em relação
A fim de levar a cabo seu esforço de às outras formas de poder analisadas
contraste, Koopman chega a apresen- por Michel Foucault. Com isso, ele não
tar uma teoria geral do poder. O po- pretende demonstrar a necessidade de
der, segundo ele, “pode ser analisado abandonar a análise de formas de poder
(ao menos) a partir de quatro catego- como a soberania, o poder disciplinar e
rias constituintes: técnica, operação, su- o biopoder, mas, nas suas palavras “en-
jeito e racionalidade” (KOOPMAN, 2019, riquecer o repertório conceitual da teo-

1 Todas as traduções são de responsabilidade dos autores desta resenha.


2 O infopoder também está conectado a um “modo de racionalidade” chamado por ele de “data episteme”, segundo o qual o im-
perativo de acumulação de cada vez mais informação é um fim em si mesmo. “Precisamos de mais informação porque estamos
inundados por informação” e mesmo que a conhecimento e informação não sejam a mesma coisa, os “dados são aquilo que melhor
produzem conhecimento” (KOOPMAN, 2019, p.160).

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GRAZIANO MAZZOCCHINI; RODOLPHO VENTURINI

ria política crítica” (KOOPMAN, 2019, lítica por si próprias. Aquilo que viria
p.161). Assim, segundo ele: a se tornar o infopoder já estava ins-
crito e estratificado nas camadas das
outras modalidades de poder (KOOP-
meu argumento é o de que com- MAN, 2019, p.163). Uma vez que elas
preender a política que opera se tornaram independentes, sua “teori-
em cada caso específico requer zação se torna uma tarefa urgente para
que a nossa atenção analítica a teoria crítica contemporânea” (KOOP-
seja estendida para além dos MAN, 2019, p.163).
limites do poder soberano, do Para Koopman, na contemporanei-
poder disciplina e do biopoder. dade, o infopoder é aquilo que produz
Minha reivindicação não é a de a informação, e não contrário. A infor-
que o infopoder toma o lugar ou mação, nesse contexto, nunca é neutra
nega esses outros modos de po- na medida em que é sempre já consti-
der – apenas de que ele opera tuída segundo os parâmetros do info-
além dos seus limites (KOOP- poder. De acordo com o esquema de
MAN, 2019, p.163). Koopman, o infopoder está baseado em
técnicas de Formatação (formatting) e
Trata-se, para Koopman, de sustentar operações de Fastening4 . Formatação e
a irredutibilidade do infopoder, mesmo Fastening se referem às técnicas espe-
aceitando que “táticas de informação cíficas do infopoder e ao “modo como
podem ser localizadas no interior das o poder opera por meio dessas técni-
formas anteriores de exercício do po- cas com operações de encapsulamento
der” (KOOPMAN, 2019, p.163)3 . Em e aceleração” das quais as “pessoas in-
um certo momento, essas táticas já ins- formacionais” são os sujeitos e os alvos
critas no interior das outras formas de (KOOPMAN, 2019, p.159). A Forma-
poder podem adquirir importância po- tação é o processo pelo qual a subjeti-

3 Cabe chamar atenção para o fato de que já em Vigiar e Punir, um aspecto absolutamente relevante da normalização e poder disci-
plinar é o de fazer a “individualidade entrar num campo documentário” (FOUCAULT, 1987, p.157). Segundo Foucault, o “exame que
coloca os indivíduos num campo de vigilância situa-os igualmente numa rede de anotações escritas; compromete-os em toda uma
quantidade de documentos que os captam e os fixam. Os procedimentos de exame são acompanhados imediatamente de um sistema
de registro intenso e de acumulação documentária. Um ‘poder de escrita’ é constituído como uma peça essencial nas engrenagens da
disciplina. Em muitos pontos, modela-se pelos métodos tradicionais da documentação administrativa. Mas com técnicas particulares
e inovações importantes” (FOUCAULT, 1987, p.157). Constituem-se, então, o que Foucault chama de “códigos de individualidade
disciplinar que permitem transcrever, homogeneizando-os, os traços individuais estabelecidos pelo exame: código físico de qualifi-
cação, código médico dos sintomas, código escolar ou militar dos comportamentos e dos desempenhos. Esses códigos eram ainda
muito rudimentares, em sua forma qualitativa e quantitativa, mas marcam o momento de uma primeira ‘formalização’ do individual
dentro de relações de poder” (FOUCAULT, 1987, p.158). Ainda, “entre as condições fundamentais de uma boa ‘disciplina’ (...) é
preciso incluir os processos de escrita que permitem integrar, mas sem que se percam, os dados individuais em sistemas cumulativos;
fazer de maneira que a partir de qualquer registro geral se possa encontrar um indivíduo e que inversamente cada dado do exame
individual possa repercutir nos cálculos de conjunto” (FOUCAULT, 1987, p.158)
4 O termo em inglês “fastening” é de difícil tradução, sobretudo em razão do duplo sentido explorado pelo autor, evocando ao
mesmo tempo as ideias de “captura” e “aceleração”. Por essa razão, optou-se por manter o termo em inglês.

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CHICAGO: UNIVERSITY OF CHICAGO PRESS, 2019.

vidade informacional é moldada con- dos. Dado o funcionamento do infopo-


forme categorias pré-estabelecidas. O der, longe de se justaporem extrinseca-
Fastening é entendido por Koopman mente às nossas “incorporações” (embo-
em um sentido duplo: por um lado, é diments) e “mentalizações” (mindednes-
aquilo que encapsula, enquadra e cana- ses), os nossos dados nos constituiriam
liza; por outro, induz uma aceleração. naquilo que somos e podemos ser, e nós
Trata-se de um processo de fixação da nos revelaríamos enquanto cyborgs cuja
subjetividade em uma forma dada pre- existência se prolongaria nestes mes-
viamente e que permite que essa subje- mos dados (KOOPMAN, 2019, p.8).
tividade seja rapidamente mobilizada. A argumentação de Koopman
Segundo o esquema de Koopman, “o apresenta-se desde o início acompa-
infopoder, enquanto modalidade dis- nhada por uma recusa metodológica
tinta de poder, lança mão de técnicas preliminar de pôr-se em um nível on-
de formatação para realizar a sua obra tológico fundamental. Trata-se, mais
de produção e refinamento de pessoas modestamente, de um esboço de uma
informacionais, as quais estão sujeitas genealogia de um tipo específico de su-
às operações de fastening” (KOOPMAN, jeito histórico, aquém do qual não há
2019, p.12). – ou ao menos não deveríamos supor
Koopman associa o funcionamento que haja – nenhuma substancia antro-
do infopoder ao esquema canônico pológica (metafísica) que lhe subjaz.
da teoria dos sistemas de informação: Em outros termos, para Koopman, não
input-processamento-output (IPO). O há nenhum si autêntico para além da
exemplo fornecido por Koopman para nossa constituição pelos dados – pela
ilustrar tal exercício é o das redes so- nossa “dadificação”, pois este mesmo si
ciais: no momento em que interagi- constitui-se a partir de uma pragmá-
mos com uma das plataformas, infor- tica. Nós, hoje, somos “pessoas infor-
mando nossos dados (e.g. Facebook ou macionais”.
Academia.edu), estas nos fixam (“pin A possibilidade de decomposição das
us down”) a um conjunto de forma- técnicas de formatação, de sua recom-
tos, categorias e módulos preestabele- posição, ou mesmo de uma verdadeira
cidos que, na mesma medida em que resistência a elas, apenas poderia ocor-
nos encapsulam e aceleram, nos pro- rer caso haja uma compreensão histó-
duzem enquanto perfis de mídia so- rica da maneira pela qual somos produ-
cial (KOOPMAN, 2019, p.12-13). O zidos e nos produzimos enquanto “pes-
resultado é que passamos a nos con- soas informacionais” – ou seja: gene-
ceber a partir desses perfis que, por sua alogicamente. Isso significa, para Ko-
vez, são previamente definidos segundo opman, não simplesmente seguir a es-
esquemas fixos previamente formula- teira das categorias analíticas formu-

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GRAZIANO MAZZOCCHINI; RODOLPHO VENTURINI

ladas previamente por Foucault, como imediato pós-guerra (1948), com o sur-
fazem outros autores, mas a necessi- gimento da então chamada “teoria da
dade de pensar a originalidade dessa informação” (KOOPMAN, 2019, p.16-
forma de poder que residiria no inte- 19). Diante desse consenso, a pergunta
rior da própria informação e não pode que Koopman se coloca é a seguinte:
ser subsumida pelas técnicas discipli- por que justamente em 1948 autores de
nares, cujo foco reside no controle do campos diversos tornaram-se tão preo-
corpo, ou pelas técnicas biopolíticas, cupados com os problemas de uma te-
cujo foco reside no controle da popu- oria da informação? A genealogia – e
lação. Koopman frisa que não fomos em certa medida a arqueologia, embora
sempre constituídos pelas nossas infor- o autor não use o termo – da teoria da
mações. As nossas informações passa- informação precisaria retroceder ainda
riam a ter primazia na constituição da mais historicamente para dar conta do
personalidade num momento bem defi- modo com a informação veio a se tor-
nido: os primeiros vinte anos do século nar uma preocupação urgente a ponto
XX, isto é, em um momento em que a de ser o objeto de uma multiplicidade
população já havia sido produzida en- de teorias.
quanto objeto de um saber estatístico e Ainda que Koopman reivindique a
as individualidades já formadas pelas historicidade desse poder da informa-
técnicas disciplinares e de confissão do ção, parece ser pertinente, no entanto,
fim do século XIX (KOOPMAN, 2019, colocar a questão sobre quão bem-
p.6). sucedido ele é ao estabelecer essa tese.
Ao situar o nascimento da infopolí- Essa dúvida surge sobretudo do fato de
tica no início do século XX, Koopman não ser fornecido um conceito claro de
visa atacar um consenso relativamente informação ao longo do texto. Koop-
bem estabelecido num espectro bas- man nunca chega a tratar do estatuto
tante amplo que vai da teoria dos novos da informação enquanto tal ou distin-
meios de comunicação à história da co- guir o conceito de informação de outros
municação, da ciência e da tecnologia. como, por exemplo, o de “saber” ou de
Segundo esse consenso, o traço infor- “linguagem”. Essa ausência parece fa-
macional da nossa subjetividade seria zer com que seu conceito de infopoder
produto de um acontecimento tecnoló- seja definido a partir de um esquema
gico muito recente, fruto dos últimos excessivamente genérico.
vinte ou trinta anos – isto é, remon- Segundo nossa hipótese interpreta-
taria, no máximo, à década de 1970. tiva, a pretensão de especificidade do
Além disso, as origens daquilo que para infopoder não se sustentaria uma vez
Donna Haraway é a “informática da do- que a definição fornecida por Koopman
minação” remontariam no máximo ao não proporciona elementos suficientes

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ISSN: 2317-9570
KOOPMAN, COLIN. HOW WE BECAME OUR DATA: A GENEALOGY OF THE INFORMATIONAL PERSON.
CHICAGO: UNIVERSITY OF CHICAGO PRESS, 2019.

para distinguir, a rigor, aquilo que ele própria noção de informação, tal como
entende por informação. Em especial ela é concebida enquanto interna ao
parece difícil distinguir a informação infopoder, no limite, não se distingui-
tal como pressuposta pelo infopoder, ria do próprio conceito de linguagem,
daquela caracterização mais geral do exatamente na medida em que esta úl-
entrelaçamento entre saber e poder que tima constitui um dispositivo segundo
Foucault chama de dispositivo . Em ou- a sugestão de Giorgio Agambem. Ou
tras palavras, em seu esforço de espe- seja, a informação, assim como a lin-
cificar o infopoder e fornecer uma ca- guagem, seria um dispositivo. Ao defi-
racterização concreta, Koopman acaba nir o dispositivo, Agambem, pensa essa
recorrendo a um esquema genérico que noção com Foucault, mas, ao mesmo
faz com que sua definição seja dema- tempo, força explicitamente os seus li-
siadamente abstrata. O esquema de mites, transpondo-o para o seu “avesso
captura e mobilização da subjetividade ontológico” (AGAMBEM, 2006, p.20-
aparece como um esquema muito geral 21)6 . Para o filósofo italiano, é pos-
preenchível a princípio por qualquer sível chamar de dispositivo “literal-
tecnologia de poder. Se isso for ver- mente qualquer coisa tenha de alguma
dade, a pretensão de levar a cabo a des- forma a capacidade de capturar, ori-
crição genealógica de uma verdadeira entar, determinar, interceptar, moldar,
“personalidade informacional” (KOOP- controlar e assegurar os gestos, as con-
MAN, 2019, p.36) não conseguiria, no dutas, as opiniões e os discursos dos
fim das contas, extrapolar a tautologia seres vivos” (AGAMBEM, 2006, p.21-
segundo a qual toda personalidade ou 22). O dispositivo, segundo a defini-
subjetividade é pré-formada ou, melhor ção de Agambem, é basicamente uma
dizendo, (in)formada, conforme deter- máquina de produção de subjetivações
minados modos de saber, ou ainda, de (AGAMBEM, 2006, p.29) e, nesse sen-
que a subjetividade é mediada pelo uni- tido, a linguagem poderia ser conside-
verso simbólico e linguístico no interior rada como “talvez o mais antigo entre
do qual se produz5 . os dispositivos, no qual milhares e mi-
Nessa linha, seria possível dizer que a lhares de anos atrás um primata (...)

5 Uma vez que o dispositivo é justamente aquilo torna visível organiza papeis e hierarquias de pessoas e funções (Bazzicalupo
2010, p.34-35).
6 Cf. o seguinte trecho retirado do capítulo 4 do livro de Koopman, no qual a própria técnica de formatação vem explicitamente
assimilada à estrutura do dispositivo foucaultiano, porém em termos tão gerais que podem lembrar também a definição agambeni-
ana da mesma noção: “A formatação em cada um de seus estágios de inputting, processamento e outputting exemplifica um poder
que conduz a nossa conduta. Ele prepara as pessoas para usos incontáveis, e também inesperadamente para muitos abusos. Este
trabalho de formatação não é em si necessariamente opressivo, dominador ou de outra forma violento. Os formatos, antes de coagir,
dispõem, se quisermos adoptar uma formulação cogente retirada da discussão de Davide Panagia em torno das aplicações midiáticas
do conceito foucaultiano de dispositif (um conceito, este, que resiste à tradução, mas que ressoa no meu uso de assembly). Funcio-
nando enquanto um dispositivo, a formatação pode tanto limitar a nossa liberdade (freedom) quanto dar abertura às nossas liberdades
(liberties)” (KOOPMAN, 2019, p.159).

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ISSN: 2317-9570
GRAZIANO MAZZOCCHINI; RODOLPHO VENTURINI

teve a inconsciência de se deixar cap- inquéritos histórico-filosóficos de Fou-


turar” (AGAMBEM, 2006, p.22). cault, fazer emergir uma configuração
A princípio, Koopman poderia singular de técnicas de poder periga
contra-argumentar dizendo simples- deslizar rumo a uma ontologia funda-
mente que de fato sua concepção do mental que a princípio ele pretende dis-
infopoder possui uma inspiração expli- pensar (KOOPMAN, 2019, p.8) e, de
citamente foucaultiana e, desse modo, forma correlata, a histórica, pois a cro-
tratar a informação como um disposi- nologia definida para dar conta do nas-
tivo não seria um problema. No en- cimento da infopolítica poderia resul-
tanto, admitir essa identidade entre tar até mesmo arbitrária à luz desse dé-
“informação” e o conceito mais geral ficit de fundamentação da conceitual.
de linguagem enquanto dispositivo pa- Quando a “informação” não constituiu
rece pôr em xeque a própria tese his- subjetividades e em que momento nós
tórica de Koopman segundo a qual a começamos a nos conceber de fato como
informação só teria passado a dirigir os sujeitos informacionais? Caso o próprio
processos de subjetivação no início do conceito de informação não seja histo-
século XX. Uma vez que Koopman não ricizado, a resposta parece ser apenas
fornece os meios para, a rigor, discer- uma: sempre. A proposta de Koopman,
nir informação e linguagem, resultam assim, não seria mais satisfatória do que
abaladas, ou até minadas, as duas teses aquela fornecida pelo consenso que ele
“fortes” de sua investigação: a concei- pretendeu atacar. Ao contrário, seria
tual, pois o intuito de, na esteira dos tão arbitrária quanto ela.

Referências
AGAMBEN, Giorgio. Che cos’è un dispositivo? Roma: Nottetempo, 2006.
BAZZICALUPO, Laura. Biopolitica. Una mappa concettuale, Roma: Carocci, 2010.
______. Dispositivi e soggettivazioni, Milano: Mimesis, 2013.
FREGA, Roberto. “Colin KOOPMAN, Pragmatism as transition. Historicity and Hope in James, Dewey, and Rorty”,
European Journal of Pragmatism and American Philosophy [Online], I-1/2 | 2009.
FOUCAULT, Michel. Dits et Écrits II 1976-1988, Paris: Gallimard, 2001.
______. Vigiar e Punir: o nascimento da prisão. Tradução de Raquel Ramalhete. Petrópolis, Vozes, 1987.
KOOPMAN, Colin. Pragmatism as transition. Historicity and Hope in James, Dewey, and Rorty, Columbia University Press,
New York, 2009.
______. “Genealogical pragmatism: how history matters for Foucault and Dewey”. Journal of the Philosophy of the
History, 5 (2011), pp.533-561, Leiden - Brill NV, 2011.
______. Genealogy as Critique: Foucault and the Problems of Modernity, Indiana University Press, 2013.
______. How We Became Our Data: A Genealogy of the Informational Person. Chicago: University of Chicago Press, 2019.

Recebido: 30/09/2020
Aprovado: 23/01/2021
Publicado: 31/01/2021

292 Revista de Filosofia Moderna e Contemporânea, Brasília, v.8, n.3, dez. 2020, p. 285-292
ISSN: 2317-9570
DOI: https://doi.org/10.26512/rfmc.v8i3.35091

O Sangue Corre na Tunísiai

Simone Weil

Tradução
Philippe Claude Thierry Lacourii ; Jade Oliveira Chaiaiii ; Michelly Alves Teixeiraiv

“Sangue nas manchetes” dos jornais dos os milhões de proletários das colô-
operários. O sangue corre na Tuní- nias.
sia. Quem sabe? Talvez tenhamos que Primeiro, eles estão longe. Todos sa-
nos lembrar que a França é um pe- bem que o sofrimento diminui devido à
queno canto de um grande império e distância. Um homem que sofre com as
que, nesse império, milhões e milhões pancadas, exausto pela fome, trêmulo
de trabalhadores sofrem. perante seus chefes, na Indochina, isso
Há oito meses que a Frente Popular representa um sofrimento e uma injus-
está no poder, mas ainda não tivemos tiça muito menores que um metalúr-
tempo de pensar nela. Quando os me- gico da região parisiense que não obtém
talúrgicos de Billancourt estão com di- seus 15% de aumento, ou um funcioná-
ficuldades, Léon Blum recebe uma de- rio público vítima de decretos-lei. Deve
legação; ele se preocupa em ir à Expo- haver uma lei da física que se relaciona
sição Mundial falar com os construto- com o inverso do quadrado da distân-
res civis; quando lhe parece que os fun- cia. A distância tem o mesmo efeito so-
cionários resmungam, ele faz um belo bre a indignação e a simpatia que sobre
discurso por rádio especialmente para a gravidade.
eles. Mas, todos nós, tínhamos esqueci-

i Texto originalmente publicado Vigilance, nº 48-49, 10 de fevereiro de 1937.


ii Professor do Departamento de Filosofia da Universidade de Brasília (UnB). Doutor em Filosofia pela Universidade de Provence
Aix Marseille I. E-mail: unb@philippelacour.net. ORCID: https://orcid.org/0000-0003-3226-584X.
iii Mestranda pela Universidade Católica Dom Bosco (UCDB) e graduanda em Filosofia pela UnB. E-mail: jade.joc@gmail.com.
ORCID: https://orcid.org/0000-0002-7615-5610.
iv Mestranda no Programa de Pós-Graduação em Filosofia da UnB. Graduada (Bacharelado e Licenciatura) em Filosofia pela UnB.
E-mail: michellyteixeira@hotmail.com. ORCID: https://orcid.org/0000-0002-0842-8824.

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ISSN: 2317-9570
SIMONE WEIL

Ademais, essas pessoas – amarelos, No fundo, nós – e, quando digo


negros, bicots1 – estão acostumadas a “nós”, refiro-me a todos que aderiram
sofrer. É um fato conhecido. Desde o a uma organização da Frente Popular –
período em que passaram fome e foram nós somos exatamente iguais aos bur-
submetidos à arbitrariedade total, isso gueses. Um patrão é capaz de conde-
já não lhes afeta mais. A maior prova nar seus operários a mais atroz misé-
disso é que não se queixam. Não dizem ria e se sensibilizar com um mendigo
nada. Calam-se. No fundo, eles têm que encontra no caminho; e nós, que
uma natureza servil. São feitos para a nos unimos em nome de uma luta con-
servidão. Caso contrário, resistiriam. tra a miséria e a opressão, somos indi-
Há alguns que resistem, mas estes ferentes ao destino inumano a que são
são “arruaceiros”, “agitadores”, prova- submetidos, longe daqui, os milhões de
velmente pagos por Franco e Hitler. homens que dependem do governo do
As únicas medidas que podem ser usa- nosso país. Aos olhos dos burgueses, o
das contra eles são medidas repressi- sofrimento físico e moral dos operários
vas, como a dissolução da Étoile Nord- não existe enquanto eles se calam, e os
Africaine. patrões os forçam a se calar. Nós tam-
Além disso, não há nada de espetacu- bém, franceses “de esquerda”, continu-
lar no drama dessas pessoas. Pelo me- amos a fazer pesar sobre os nativos da
nos até o último incidente. Fuzilamen- colônia a mesma coerção impiedosa e,
tos, massacres, eis que fala à imagina- como o medo os deixa mudos, temos a
ção; isso impressiona, faz barulho. Mas vaga impressão de que as coisas não vão
as lágrimas derramadas em silêncio, o tão mal por lá, que não estão sofrendo
desespero mudo, as revoltas reprimi- tanto, que estão acostumados às priva-
das, a resignação, a exaustão, a morte ções e à servidão.
lenta – quem pensaria em se preocu- A burguesia se interessa por um
par com coisas desse tipo? Os peque- crime, um suicídio, um acidente em
nos, mortos por bombas áreas em Ma- uma ferrovia, mas nunca pensa naque-
drid, provocam uma onda de indigna- les cuja vida é lentamente esmagada,
ção e pena. Mas, em todos os meninos triturada pelo jogo quotidiano da má-
de dez ou doze anos, famintos e esgota- quina social. E nós também, ávidos por
dos, que morreram de exaustão nas mi- notícias sensacionalistas, não paramos
nas indochinesas, nós nunca pensamos. para pensar nos milhões de seres hu-
Eles morreram sem que seu sangue cor- manos que esperavam de nós, que, do
resse. Mortes assim não contam. Não fundo de um abismo de escravidão e de
são mortes reais. infelicidade, voltavam seus olhos para

1 [N.T.] Gíria francesa utilizada para referir-se aos nativos da África do norte.

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ISSN: 2317-9570
O SANGUE CORRE NA TUNÍSIA

nós e que, há oito meses, sem escândalo, são de que estamos mais preocupados
em silêncio, passam progressivamente com a escravatura colonial do que com
da esperança ao desespero. o tratamento dos funcionários, ele te-
Neste momento, há sangue derra- ria certamente dedicado às colônias o
mado. A tragédia colonial acabou por tempo que passou preparando um belo
tomar a forma de fait divers, acessível discurso aos funcionários públicos.
apenas à nossa sensibilidade e à nossa Seja como for, temos de confessar
inteligência rudimentar. A partir de que, até aqui, a obra colonial do go-
agora, já não podemos mais nos vanglo- verno se resume quase que à dissolução
riar de que a famosa “experiência” se da Étoile Nord-Africaine. Diremos que
realiza sem derramamento de sangue. as reformas coloniais não estavam pre-
De sangue se manchou. vistas no programa da Frente Popular.
É fácil falar de responsabilidades, de A dissolução sem fundamento da Étoile
sabotagem. Sem investigação, sabemos Nord-Africaine não estava prevista. Os
quem são e onde estão os responsáveis. mortos da Tunísia muito menos, aliás.
Se cada um de nós se olhar no espe- São mortes fora da programação.
lho, veremos um dos responsáveis. O Quando penso em uma possível
governo atual não governa em nome da guerra, uma ideia um pouco reconfor-
Frente Popular? Seus membros são di- tante se mistura, confesso, com o pavor
ficilmente questionados; sobrecarrega- e o horror que tal perspectiva me causa.
dos de trabalho, atormentados como es- É que uma guerra europeia poderia ser-
tão, é forçado que as suas atividades de- vir de sinal para uma grande revanche
pendam, em grande parte, das preocu- dos povos coloniais para punir nossa
pações que impusermos a eles. Se, por imprudência, nossa indiferença e nossa
exemplo, Léon Blum tivesse a impres- crueldade.

Recebido: 10/11/2020
Aprovado: 14/12/2020
Publicado: 31/01/2021

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