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PERCURSOS DE UMA REVISTA BRASILEIRA

MEMÓRIAS
NO MUNDO DOS ESTUDOS NEOLATINOS
TRAJECTORY OF A BRAZILIAN JOURNAL
IN THE WORLD OF NEO-LATIN STUDIES

Elena Palmero González


ORCID 0000-0003-2396-2539
Universidade Federal do Rio de Janeiro
Rio de Janeiro, RJ, Brasil

Rodrigo Labriola
ORCID 0000-0002-8421-5433
Universidade Federal do Rio de Janeiro
Rio de Janeiro, RJ, Brasil

Resumo
Fundada em 1999 pelo Programa de Pós-Graduação em Letras Neolatinas da UFRJ,
Alea funcionou ao longo de mais de vinte anos como uma revista de referência
incontornável da ciência brasileira e latino-americana na área de Letras, estabelecendo
um sólido nexo de pesquisa acadêmica com instituições e pesquisadores do Brasil
e do mundo no âmbito dos estudos neolatinos, assim como de áreas afins como
a literatura comparada, os estudos culturais, os estudos de tradução, a teoria da
literatura e a estética. Assim, o artigo estuda o papel da revista no desenvolvimento
e atualização do conhecimento sobre as literaturas hispânicas e as de língua francesa
e italiana produzido no Brasil, com destaque para as contribuições de artigos,
traduções, documentos de arquivos e resenhas dos últimos cinco anos, através da
sistemática colaboração com universidades e pesquisadores do exterior. Organizado
segundo uma divisão historicizada em três grandes temas (internacionalização da
pesquisa brasileira; ética e qualidade editorial; e perspectiva de inserção no projeto
Ciência Aberta), serão propostos diversos percursos de leitura que, dando conta da
trajetória das publicações de Alea, compõem um panorama atualizado das questões e
objetos de pesquisa e discussão na área dos estudos neolatinos no Brasil e no mundo.
Palavras-chaves: Estudos Neolatinos, internacionalização da pesquisa, Ciência
Aberta, Alea.

Abstract Resumen
Founded in 1999 by the Postgraduate Fundada en 1999 por el Programa de
Program in Neolatin Letters of the Posgraduación en Letras Neolatinas de
Federal University of Rio de Janeiro la UFRJ, Alea ha funcionado durante
(UFRJ), Alea has become a journal más de veinte años como una revista
of obligatory reference in the area of de referencia obligada de la ciencia

ALEA | Rio de Janeiro | vol. 22/3 | p. 309-328 | set-dez. 2020 ELENA P. GONZÁLEZ e RODRIGO LABRIOLA | Percursos...

https://dx.doi.org/10.1590/1517-106X/2020223309328
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Brazilian and Latin American Letters, brasileña y latinoamericana en el área de
establishing a strong academic research Letras, estableciendo un sólido nexo de
link between institutions and researchers investigación académica con instituciones
in Brazil and the world in the field of e investigadores de Brasil y del mundo
Neolatin studies, as well as in related areas en el ámbito de los estudios neolatinos,
such as comparative literature, cultural así como de áreas afines como literatura
studies, translation studies, literary theory comparada, los estudios culturales, los
and aesthetics. This article studies the role estudios de traducción, la teoría de la
Alea has played in the development and literatura y la estética. Así, el artículo
updating of knowledge about Hispanic, estudia el papel de la revista en el desarrollo
French and Italian language literatures y actualización del conocimiento sobre
produced in Brazil, highlighting its las literaturas hispánicas y de lengua
contributions in terms of articles, francesa e italiana producido en Brasil,
translations, archival documents and con énfasis en los aportes de artículos,
reviews over the past five years and its traducciones, documentos de archivos
systematic collaboration with universities y reseñas de los últimos cinco años, a
and researchers abroad. Organised través de la colaboración sistemática
according to a historical division into con universidades e investigadores
three main areas (internationalisation del exterior. Organizados según una
of Brazilian research; ethics and editorial división historizada en tres grandes ejes
quality; and the prospect of insertion in (internacionalización de la investigación
the Open Science project), the article brasileña; ética y calidad editorial; y
proposes several reading paths which, perspectiva de inserción en el proyecto
by giving an account of the trajectory of Ciencia Abierta), se proponen diversos
Alea’s publications, make up an updated caminos de lectura que, dando cuenta de
panorama of the problems and topics of la trayectoria de las publicaciones de Alea,
research and discussion in the area of neo- componen un panorama actualizado de
Latin studies in Brazil and in the world. los problemas y objetos de investigación
y discusión en el área de los estudios
Keywords: Neolatin Studies,
neolatinos en Brasil y en el mundo.
internationalization of research,
Open Science, Alea. Palabras-claves: Estudios Neolatinos,
internacionalización de la investigación,
Ciencia Abierta, Alea.

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Partindo da sintética mas muito pertinente afirmação de Peter
Lyman (1997) quando postula que o sistema de comunicação científica
é a “infraestrutura” de uma comunidade científica, propomos neste artigo
estudar o percurso de uma revista que, no âmbito da comunicação científica
brasileira, tem trilhado um caminho singular , oferecendo por mais de duas
décadas essa “infraestrutura” de que falava Lyman no mundo dos estudos
neolatinos no Brasil. Trata-se da revista Alea, um periódico fundado em 1999
pelo Programa de Pós-Graduação em Letras Neolatinas da Universidade
Federal do Rio de Janeiro (UFRJ)1, em atividade até hoje.
O programa editorial e os objetivos da revista convergiram, desde um
primeiro momento, na missão de ser um instrumento eficaz de divulgação
da pesquisa na área dos Estudos Neolatinos, propiciando o intercâmbio
científico entre o Programa de Pós-Graduação em Letras Neolatinas e os
demais Programas de Pós-Graduação do país, entre pesquisadores – docentes
e discentes – e, ainda, entre a sociedade e a academia. Por outro lado, e ao
longo prazo, almejava-se estabelecer um intercâmbio mais estreito com
universidades estrangeiras que desenvolvessem pesquisa de excelência na área,
na procura de atualização científica, ao tempo em que também se divulgava
internacionalmente a pesquisa brasileira em torno das línguas e literaturas
estrangeiras modernas, sobretudo aquelas ligadas às culturas neolatinas.
Sob a coordenação de seus editores fundadores, os professores titulares
Edson Rosa da Silva e Marcelo Jacques de Moraes, Alea assumiu do início
uma abertura para os estudos comparados vinculados a temas do âmbito das
letras neolatinas, o que permitiu pôr em confronto aquilo que as línguas e
literaturas estudadas no Programa de Pós-graduação em Letras Neolatinas
devem ou emprestam às outras, destacar como estas reescrevem questões
universais e ainda estudar como as questões próprias desse universo são
também recebidas e reescritas por outras culturas. Assim, é possível dizer que
Alea representou uma combinação bem sucedida entre a especificidade do
campo das letras neolatinas e sua abertura para a diversidade constitutiva de
outros campos, mistura que até hoje caracteriza a revista como um veículo
de prestígio para as publicações científicas sobre o mundo neolatino, e que
também a diferencia e a singulariza no universo das línguas hispânica, francesa
e italiana sediado na Europa.
De fato, com o português brasileiro como língua hospitaleira, capaz
de vincular o Brasil com o resto das instituições promotoras dos estudos
neolatinos no âmbito internacional, a revista Alea forjou desde sua fundação

1  Subvencionada desde sua fundação e até 2018 pelos programas de incentivo à edição de revistas científicas do CNPq,
da CAPES e da FAPERJ. Desde 2019 a revista se edita com financiamento do Programa de Apoio à Pós-Graduação
da CAPES.

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um lugar de “unidade na diversidade”2. Como resultado, Alea funcionou ao
longo de mais de vinte anos como uma revista de referência incontornável
da ciência brasileira e latino-americana na área de Letras, estabelecendo um
sólido nexo de pesquisa acadêmica com instituições e pesquisadores do Brasil
e do mundo, ancorada nos estudos neolatinos, mas sempre acolhendo como
própria a alteridade das outras áreas afins, como a literatura comparada, os
estudos culturais, os estudos de tradução, a teoria da literatura e a estética.
A palavra “alea” é um substantivo feminino latino, cujo significado
se encontra no amplo campo semântico da sorte, do azar, do jogo, do risco,
da surpresa. Relatam os fundadores que pensaram em uma voz latina para
dar um nome à revista, considerando que o Latim era o tronco originário,
comum a todas as áreas específicas envolvidas no escopo da publicação. Por
sua vez, era atrativo o sentido da palavra, apelativa ao sortilégio da criação
artística e literária, ao enigma da escrita, ao jogo que é sempre ler e interpretar
textos. O subtítulo fechava o sentido da proposta, que era abrir um espaço
para a divulgação científica no mundo dos estudos neolatinos.
Entre 1999 e 2015, a periodicidade de Alea foi de dois fascículos por
ano, sendo publicada de forma impressa e sem fins lucrativos. A partir de
2003 e sem abandonar a modalidade impressa, a revista ganhou a edição
online, passando a ser indexada em SciELO (Scientific Electronic Library
Online) – a biblioteca eletrônica de periódicos científicos brasileiros, criada
pela FAPESP (Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo) em
parceria com a BIREME (Centro Latino-Americano e do Caribe de Informação
em Ciências da Saúde), e com o apoio do CNPq (Conselho Nacional de
Desenvolvimento Científico e Tecnológico). O impulso à internacionalização,
produto do intercâmbio eletrónico das pesquisas, coincidindo com mudanças
na equipe editorial e na política editorial da revista, propiciou que, a partir
de 2016, Alea passasse a publicar três fascículos por ano, com periodicidade
quadrimestral, nas versões impressa e eletrônica, e que se fomentasse sua
indexação em bases de dados, diretórios e portais de abrangência internacional.
Um periódico científico tem quatro funções fundamentais na construção
do conhecimento científico, conforme aponta Suzana Mueller (1999): certifica
um saber, endossado por uma comunidade científica; funciona como canal de
comunicação entre cientistas e como via de divulgação da pesquisa; permite
o registro de autoria do trabalho científico; e atua como arquivo ou memória
científica de uma determinada comunidade. Particularmente interessados nessa

2 O pressuposto de “unidade na diversidade” é princípio reitor da Declaração Universal da UNESCO sobre a Diversidade
Cultural, assinada em 2 de novembro de 2001, sendo um conceito com um longo desenvolvimento no pensamento
crítico latino-americano, de fato está nos postulados do projeto historiográfico auspiciado pela UNESCO que se
concretou no livro América Latina en su Literatura (1972) e que continuou com outras publicações organizadas por
Ana Pizarro, com a frutífera parceria de pesquisadores regionais e transatlânticos, como La literatura latinoamericana
como proceso (1985), Hacia una historia de la literatura latino-americana (1987) e os três volumes de América Latina:
Palavra, Literatura e Cultura (1994), editados pela Fundação Memorial da América Latina em São Paulo.

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última função apontada por Mueller, a função memorial, a de ser um arquivo
de saberes acumulados em mais duas décadas de existência, nos aproximamos
de uma revista brasileira como Alea, concentrando nossa pesquisa nos últimos
cinco anos da sua existência. Organizados segundo uma divisão historicizada
em três grandes temas (internacionalização da pesquisa brasileira; ética e
qualidade editorial; e perspectiva de inserção no projeto Ciência Aberta),
serão propostos diversos percursos de leitura que, dando conta da trajetória
e dos critérios históricos das publicações de Alea, compõem um panorama
atualizado das questões e objetos de pesquisa e discussão na área dos estudos
neolatinos no Brasil e no mundo.

A internacionalização de Alea
Inserida nos programas de internacionalização do ensino superior e
da pesquisa no Brasil e considerando o panorama cada vez mais globalizado
da divulgação científica no mundo, a revista começou a trabalhar em 2016
com uma política de internacionalização mais sistemática. Assim, foram
ampliados o Conselho Editorial e o corpus de avaliadores com pesquisadores
de relevância internacional na área, atuantes em instituições estrangeiras.
Nesse sentido, o Conselho Editorial de Alea passou a estar integrado por 33
pesquisadores, na proporção de 50% procedentes de instituições nacionais
e 50% procedentes de instituições estrangeiras. Na mesma direção, a revista
foi gradativamente aumentando a participação de pesquisadores estrangeiros
na qualidade de autores ou de editores convidados para a organização de
números temáticos. Tanto na composição do Corpo Editorial como no
perfil dos Editores Convidados foi privilegiada a participação de professores
titulares e/ou bolsistas de produtividade em pesquisa do CNPq, e no caso
dos estrangeiros foram convidados pesquisadores com uma obra de relevância
no âmbito dos estudos neolatinos, com categoria científica análoga à dos
pesquisadores nacionais. De igual maneira, foi incrementada a participação
de pesquisadores do âmbito nacional cujo trabalho tem uma reconhecida
projeção internacional na área.
Trata-se, portanto, de um periódico que evoluiu e obteve um lugar
destacado em nível internacional, estando rigorosamente pautado por uma
política de exogenia, ao ceder sempre a pesquisadores de outras universidades
brasileiras e estrangeiras uma média de 90% de seu espaço. Publicaram em
Alea pesquisadores brasileiros e estrangeiros das mais diversas áreas dos Estudos
Neolatinos, dos Estudos Comparados, dos Estudos da Tradução, da Teoria
da Literatura e dos estudos filosóficos vinculados a problemas da linguagem,
da literatura, da cultura e da sociedade contemporânea. Além disso, pela
óbvia razão de ser o português uma língua neolatina, a revista também foi
capaz de assimilar estudos de literatura brasileira e de outras literaturas de

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língua portuguesa, com ênfase nas relações transatlânticas, ibero-americanas
e interamericanas.
Para manter a posição política de Alea no compromisso assumido para
a difusão internacional da ciência brasileira, a participação de colaboradores
vinculados a instituições estrangeiras (em todos os volumes da revista) foi
proporcionalmente equitativa à participação de pesquisadores de instituições
brasileiras. Este dado quantitativo, cujo detalhe pode ser observado facilmente
no decorrer dos sumários dos últimos cinco anos, resulta especialmente
significativo quando se considera a preparação de volumes temáticos com
a colaboração de editores convidados, pois é através desses compromissos
internacionais de pesquisa que Alea passou a ser considerada uma publicação
de consulta e de leitura frequentes e produtivas fora do Brasil.
Uma enumeração sintética desses números de Alea, a partir de 2016,
mostra a diversidade e qualidade obtidas na convocação de instituições e
pesquisadores estrangeiros, cujas parcerias evidenciam um reconhecimento
equivalente das instituições e pesquisadores brasileiros. Assim, colaboraram os
professores doutores Ottmar Ette (Universidade de Potsdam) em parceria com
Elena Palmero González (UFRJ) no volume 18/2 (Literatura latino-americana
contemporânea)3; Patrick Imbert (Universidade de Ottawa) em parceria com
Zilá Bernd (UFRGS/UNILASALLE) no volume 18/3 (Romance de filiação e
transmissão intergeracional)4; Valentín Diaz (Universidade de Buenos Aires) em
parceria com Elena Palmero González (UFRJ) no volume 19/1 (Severo Sarduy:
um lugar entre nós)5; Emilio Gallardo Saborido (Universidade de Sevilha) e Jesús
Gomez de Tejada (Universidade Autónoma de Chile) no volume 20/1 (Percursos
atuais da literatura neopolicial)6; Mario Cámara (Universidade de Buenos
Aires) em parceria com a Paloma Vidal (UNIFESP) no volume 20/2 (Como
viver junto)7; Andrea Schellino (Universidade de Paris 4) e Aurélia Cervoni
(Universidade de Paris 4), em parceria com Eduardo Veras (Universidade
Federal do Triângulo Mineiro) e Gilles Abes (Universidade Federal de Santa
Catarina) no volume 21/2 (El Spleen de Paris: 150 anos)8; e Vanina Teglia
(Universidade de Buenos Ares) e Alfredo Cordiviola (Universidade de
Pernambuco) no volume 22/1 (Estudos Coloniais)9.

3 <https://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1517-106X2016000200177&lng=pt&nrm=iso&tlng=pt>
4 <https://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1517-106X2016000300401&lng=pt&nrm=iso&tlng=pt>
5 <https://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1517-106X2017000100007&lng=pt&nrm=iso&tlng=pt>
6 <https://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1517-106X2018000100009&lng=pt&nrm=iso&tlng=pt>
7 <https://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1517-106X2018000200009&lng=pt&nrm=iso&tlng=pt>
8 <https://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1517-106X2019000200015&lng=pt&nrm=iso&tlng=pt>
9 <https://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1517-106X2020000100015&lng=pt&nrm=iso&tlng=pt>

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O percurso anterior permite vislumbrar, além da atualização temática,
outro dos traços que singulariza a revista – característica que é, aliás, uma
das mais valoradas pelo público de pesquisadores e leitores internacionais.
Com efeito, Alea é uma revista multilíngue desde sua fundação, tanto pela
natureza múltipla da sua área de pesquisas (os estudos neolatinos) quanto
pela abertura à comunicação em várias línguas dos seus artigos publicados,
cuja abrangência formal não é apenas desejável para a difusão em geral do
conhecimento (como acontece com todo periódico científico), mas, sobretudo,
necessária e coerente com a metodologia e qualidade do seu conteúdo.
No acolhimento dessa diversidade que prestigia a língua portuguesa
do Brasil, a revista publica artigos científicos originais em espanhol, francês
e italiano (pela natureza de seu perfil, voltado para as Letras Neolatinas),
e também em inglês. Os três países com maior número de submissões
são Argentina, Estados Unidos e França, e seguem na ordem quantitativa
Portugal e Espanha. A partir de 2016 Alea incrementou a publicação de
artigos originais em inglês, língua que favorece um melhor intercâmbio
acadêmico mundial. A página em inglês da revista é alimentada com os
títulos, as palavras-chaves e os resumos de todos artigos. Para esses serviços
de tradução e revisão linguística, contamos desde 2016 com a colaboração
do Programa de Tradução, Interpretação e Legendagem da Universidade de
Essex, Reino Unido.
Menção separada merecem três seções da revista, que se fortaleceram
nos últimos cinco anos como derivação da internacionalização procurada. Na
seção de Tradução foram publicados quatro trabalhos, nos números 18/1 (A
escola pagã, de Charles Baudelaire)10; 18/2 (Todo parecia. Poesia cubana de tema
gay e lésbico)11; 22/1 (La carnalidad poética de José Ángel Valente. Tradução
de Mandorla)12; e 22/2 (As formas e os fins de uma homenagem. Tradução de
Memória Fantasma, de Juan Pablo Villalobos)13. O papel da tradução, aqui,
excede aquele de uma simples transferência linguística; na verdade, é possível
afirmar que, na medida em que o vínculo com a “alteridade” é constitutivo
dos estudos neolatinos e em especial da política editorial de Alea, a praxis
traductória implícita nessa e nas demais seções da revista se transforma em
massa crítica e método de pesquisa, e fortalece a conexão entre os estudos
literários e a tradução cultural.
O vínculo entre multiculturalidade, multilinguismo e pesquisa sustenta
a relevância de outra seção da revista: Arquivos. Trata-se de um espaço cuja
contribuição internacional reside não apenas na divulgação de textos inéditos,

10 <https://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1517-106X2016000100155&lng=pt&nrm=iso&tlng=pt>
11 <https://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1517-106X2016000200377&lng=pt&nrm=iso&tlng=pt>
12 <https://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1517-106X2020000100283&lng=pt&nrm=iso&tlng=es>
13 <https://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1517-106X2020000200292&lng=pt&nrm=iso&tlng=pt>

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mas também na sua disponibilização online dos originais na forma facsimilar
em arquivos PDF. Nessa seção foram publicados, no número 19/1, dois
textos de Severo Sarduy (Carta a Jorge Schwartz14 e Uma cronologia15) e, no
número 21/3, o epistolário José Angel Valente/Angel Crespo16.
Complementando essa dedicação ao passado remanescente nos originais,
a seção Entrevistas procura trazer a palavra atualizada e viva dos escritores e
pesquisadores do mundo neolatino: o número 20/1 contou com a presencia
do escritor cubano Rodolfo Pérez Valero17, um clássico da literatura policial
latino-americana, e no número 21/3 foi publicada uma entrevista com o
pesquisador alemão Ottmar Ette18, por ocasião do lançamento no Brasil de
seu livro: Escrever entre mundos: literaturas sem morada fixa (2018).

Da qualidade científica como ética editorial


A experiência de internacionalização da revista Alea tornou mais
evidente a relação entre a qualidade científica (expressada nos percursos
descritos nos parágrafos anteriores) e a necessidade de defender uma ética
editorial acorde com os critérios de avaliação internacional das publicações
científicas. Um primeiro passo foi incrementar sua presença em indexadores
internacionais de qualidade. Além da biblioteca eletrônica brasileira SciELO,
a revista se encontra indexada nas prestigiadas SCOPUS19, Web of Science20,
no Directory Open Access Journals (DOAJ)21, em Redalyc22, em Latindex23,
entre outras.
Destaque-se que Alea é uma das quinze revistas da área de Linguística,
Letras e Artes indexadas em SciELO; uma das nove revistas brasileiras da
área de Literatura e Teoria Literária indexada na SCOPUS, e uma das três
revistas brasileiras da área de Letras indexada na Web of Science. Por ser um
periódico de excelência dentro da área de Letras, a revista está classificada

14 <https://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1517-106X2017000100165&lng=pt&nrm=iso&tlng=fr>
15 <https://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1517-106X2017000100168&lng=pt&nrm=iso&tlng=es>
16 <https://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1517-106X2017000200443&lng=pt&nrm=iso&tlng=es>
17 <https://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1517-106X2018000100163&lng=pt&nrm=iso&tlng=pt>
18 <https://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1517-106X2019000300229&lng=pt&nrm=iso&tlng=pt>
19  SCOPUS é uma base de dados multidisciplinar, propriedade da editora holandesa Elsevier.
20  Web of Science é um serviço de indexação de citações científicas, originalmente produzido pelo Institute for Scientific
Information (ISI), e agora mantido pela Clarivate Analytics (anteriormente área de negócios de Propriedade Intelectual
e Ciência da Thomson Reuters).
21  O DOAJ é um diretório online com curadoria da comunidade que indexa e fornece acesso a revistas de alta qualidade.
É independente, pois todo seu financiamento é através de doações, por isso seus serviços são gratuitos.
22  A Rede de Revistas Científicas da América Latina, Caribe, Espanha e Portugal (Redalyc) é uma base de dados para
a difusão em acesso aberto da atividade de publicação científica de Ibero-América.
23  O Sistema Regional de Informação em linha para Revistas Científicas de América Latina, Caribe, Espanha e Portugal
(Latindex) é uma base de acesso aberto para a divulgação cientifica na área ibero-americana.

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como Qualis A1 na área de Letras pela CAPES desde que foi realizada pela
primeira vez a qualificação das revistas em 2008, e, segundo o último Scimago
Journal & Country Rank, de 2019, Alea ocupa o 20º lugar dentre as revistas
da área de Literatura e Teoria Literária na América Latina, e o 627º lugar
no nível mundial.
Vale destacar que o perfil de citações de Alea não deve ser computado
apenas no âmbito das revistas acadêmicas, mas também no âmbito do livro
(impresso e eletrônico), levando em consideração o perfil letrado da área
que, mesmo em condições de amplo desenvolvimento do universo virtual,
resiste em abandonar a circulação de seus saberes no suporte livro. A tradição
da letra impressa, de extraordinário peso na nossa área, não prescinde,
porém, da citação de artigos publicados na revista, já que o público alvo
são pesquisadores, professores e estudantes de pós-graduação interessados
nessas áreas do conhecimento – tal é o perfil de quem acessa e de quem cita
o periódico.
Para maximizar a eficiência e transparência do processo de avaliação
de originais, minimizar o tempo entre a submissão e o parecer final, permitir
que as partes envolvidas acompanhem o processo de avaliação, além de dispor
de registros e estatísticas de controle do fluxo de gestão dos manuscritos, a
revista vem executando sua gestão de originais através do Open Journal System
(OJS) e o ScholarOne, disponibilizados por SciELO. O sistema duplo-cego de
revisão por pares, o controle estatístico de submissões e o acompanhamento
online de todo o processo garantem a absoluta transparência de todas as
etapas da edição.
Dados como gestão de manuscritos, volume de transações, índice
de rejeição imediato e após avaliação dos manuscritos e tempos médios de
processamento encontram-se disponíveis para consulta na plataforma da
revista na SciELO. Dados estatísticos extraídos dos relatórios gerados por
esses sistemas de processamento da SciELO informam que, nos últimos cinco
anos, Alea recebeu em média 50 artigos por número, para um total anual
de aproximadamente 150 artigos (com uma margem de 10% para mais ou
para menos). O índice de rejeição imediato, na primeira avaliação e triagem
realizada pelos editores da revista, é de aproximadamente 20% dos textos
recebidos. Do total de manuscritos que são submetidos à avaliação pelos pares,
a tendência é que 50% dos textos sejam aprovados para publicação e 50% dos
textos sejam rejeitados (com uma margem de 5% para mais ou para menos).
Assim, o tempo médio de processamento dos manuscritos (contando desde
a data de encerramento da chamada até a aprovação final para publicação
do artigo) é de aproximadamente 120 dias, e o percentual de artigos aceitos
com relação ao total recebido oscila em torno de 30%.

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Outro elemento destacável é a política de proteção dos direitos de autoria
dos colaboradores em todas as seções da revista. A Alea implementou o sistema
de identificação de documentos em redes digitais (DOI) em 2003 e, a partir
de 2018, instituiu a identificação dos autores, informando em cada artigo ou
texto publicado o registo ORCID do autor. Recentemente, em 2020, Alea
aderiu ao sistema de reconhecimento de avaliações (reviews) de Publons, tanto
para as revisões de artigos originais quanto para os textos publicados nas demais
seções da revista, como traduções, resenhas, arquivos, etc. No entanto, também
foram mantidas as práticas tradicionais em ética acadêmica, explicitadas no
documento de Declaração de Ética da revista, como os procedimentos para
detecção e resolução de violações éticas especificadas nas instruções aos autores,
os critérios de autoria e exigência de registro da contribuição de cada autor no
final do artigo (no caso dos artigos coletivos) e a adesão às recomendações do
Comitê de Ética em Publicações (Committee on Publication Ethics – COPE)
e dos Comitês de Ética da UFRJ, sem desconsiderar o uso de ferramentas
avançadas de software para deteção de plágio.
Last but non least, considerar a qualidade científica como ética editorial
envolve o compromisso de difundir criticamente também as pesquisas
relevantes publicadas por outros veículos editoriais, em especial a edição de
livros, além de fomentar o conhecimento dos resultados não só dos papers,
mas de aqueles trabalhos desenvolvidos no que constitui a base formativa dos
pesquisadores da área no Brasil: os programas de pós-graduação das instituições
de ensino superior. Por isso, todos os números de Alea apresentam uma média
de duas resenhas de publicações recentes de interesse da área, dentre as quais
são consideradas as dissertações e as teses de excelência, cuja publicação foi
recomendada pelas bancas. Assim, a utilidade desta seção de Alea se estende
para além da atualização permanente dos temas e dos objetos de discussão nos
estudos neolatinos, permitindo que os trabalhos de conclusão de mestrado e
de doutorado sejam divulgados junto ao público mais rapidamente, e possam
até mesmo ser solicitados pelos pesquisadores interessados.
Embora em todos os casos das resenhas se perceba claramente a vigência
dos livros comentados, como exemplos da recepção na comunidade científica,
tanto dentro como fora do Brasil, para esse tipo de leitura crítica, merecem
ser especialmente mencionadas as resenhas de Planet/Cuba: Art, Culture, and
the Future of the Island (2015) de Rachel Price24; Historia Comparada de las
Literaturas Argentina y Brasileña (2016) de Marcela Croce25; Entre a letra e a
tela. Literatura, imprensa e cinema na América Latina (1896-1932) (2017) de

24 <https://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1517-106X2017000300717&lng=pt&nrm=iso&tlng=pt>
25 <https://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1517-106X2017000100185&lng=pt&nrm=iso&tlng=pt>

318 ELENA P. GONZÁLEZ e RODRIGO LABRIOLA | Percursos... ALEA | Rio de Janeiro | vol. 22/3 | p. 309-328 | set-dez. 2020
Miriam Gárate26; e Indicionário do contemporâneo (2018) de Mário Cámara,
Diana Klinger, Celia Pedrosa e Jorge Wolff27. No entanto, as resenhas cumprem
também outros papéis de mediação, ou até de condensação temática entre as
outras duas seções da revista já mencionadas aqui: seja no caso da referida à
tradução, com a resenha sobre a publicação em italiano de alguns ensaios de
Haroldo de Campos no livro Traduzione, transcreazione, saggi (2016)28, cuja
tradução e organização foi auspiciada pela Fundação Biblioteca Nacional;
seja com a seção de entrevistas, como com as notas de Eduardo Subirats
sobre seu próprio livro El continente vacío: la conquista del Nuevo Mundo y
la conciencia moderna (2019)29.

Alea no horizonte do Acesso Aberto e da Ciência Aberta


Embora seja difícil concordar em um quadro teórico ou em uma
definição formal do projeto Ciência Aberta, nas últimas décadas houve
múltiplas iniciativas em nível mundial tendentes a configurar um movimento
internacional, cujo objetivo, em linhas gerais, é que a pesquisa e o conhecimento
científicos sejam acessíveis em grande escala. Essa breve formulação de
propósitos, porém, não seria inédita, pois estaria já implícita no próprio ethos
da Ciência Moderna (comunalismo, universalismo, desinteresse, originalidade
e ceticismo organizado) desde no mínimo o século XVII, conforme demostra
Paul David (2008). No entanto, há sim um consenso de que, com o advento das
tecnologias digitais da informação (TICs), o horizonte de uma ciência aberta
ganhou um novo enfoque para o trabalho científico, graças ao desenvolvimento
de modos interativos e colaborativos de aquisição, produção e disseminação
de conhecimento. “Ciência Aberta” trata-se, portanto, de um termo “guarda-
chuva” (ALBAGLI, MACIEL; ABDO, 2015) referido a um campo emergente
de pesquisa, que acolhe diversas ações e/ou práticas vinculadas às tecnologias
digitais, às ferramentas colaborativas e às licenças alternativas de propriedade
intelectual, promovendo um ambiente de pesquisa colaborativa, favorável à
construção e organização do conhecimento científico, com transparência na
avaliação e foco na disseminação e no uso dos resultados de forma rápida e
ampla (VICENTE-SAEZ; MARTINEZ-FUENTES, 2018).
No Brasil, registram-se inúmeras iniciativas em Ciência Aberta de
instituições públicas e privadas de ensino e pesquisa, para dar conta das
exigências dos agentes de fomento e das revistas científicas, com destaque
para o recente “4º Plano de Ação Nacional (2018-2019)”, cujo compromisso

26 <https://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1517-106X2018000100185&lng=pt&nrm=iso&tlng=pt>
27 <https://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1517-106X2019000300241&lng=pt&nrm=iso&tlng=pt>
28 <https://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1517-106X2017000200455&lng=pt&nrm=iso&tlng=pt>
29 <https://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1517-106X2020000100317&lng=pt&nrm=iso&tlng=es>

ALEA | Rio de Janeiro | vol. 22/3 | p. 309-328 | set-dez. 2020 ELENA P. GONZÁLEZ e RODRIGO LABRIOLA | Percursos... 319
é “estabelecer mecanismos de governança e dados científicos para o avanço da
Ciência Aberta no Brasil” (<https://www.gov.br/cgu/pt-br/governo-aberto/a-
ogp/planos-de-acao/4o-plano-de-acao-brasileiro>) e que conta com o patrocínio
de instituições como a Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), a Empresa Brasileira
de Pesquisa Agropecuária (Embrapa), o Instituto Brasileiro de Informação
em Ciência e Tecnologia (Ibict), a Coordenação de Aperfeiçoamento de
Pessoal de Nível Superior (Capes), o Conselho Nacional de Desenvolvimento
Científico e Tecnológico (CNPq), a Rede Nacional de Ensino e Pesquisa
(RNP), a Universidade de Brasília (UnB) e a Open Knowledge Brasil.
A revisão bibliográfica sobre o conceito de Ciência Aberta realizada por
Fecher e Friesike (2014) permite identificar cinco “escolas de pensamento”
focadas, alternativamente, nas questões a seguir: a infraestrutura (preocupada
com a arquitetura tecnológica), o público (acessibilidade da criação do
conhecimento), a medição (medidas alternativas de impacto), a democratização
(acesso ao conhecimento) e o pragmatismo (pesquisa colaborativa). Para
enxergar o amplo domínio da Ciência Aberta e seus vínculos com as políticas
de Acesso Aberto dos periódicos científicos, é preciso contar também com uma
taxonomia das principais iniciativas e práticas associadas, como a realizada
por Potinka et al. (2015) para sistematizar os recursos educativos hospedados
no portal de capacitação FOSTER (<https://www.fosteropenscience.eu/>).
A figura 1 ilustra didaticamente que as questões do Aceso Aberto (Open Access),
no universo da Ciência Aberta, encontram-se no topo das iniciativas e práticas.
Portanto, no conjunto da Ciência Aberta, um papel primordial é
desempenhado pelas políticas de Acesso Aberto, que se referem à disponibilidade
e acesso gratuito por qualquer pessoa aos resultados de pesquisas científicas, e
envolvem particularmente a tarefa dos periódicos como Alea. De fato, o Acesso
Aberto tem como premissa que o conhecimento científico é um bem público
e, portanto, procura fornecer alternativas desoneradas ao modelo tradicional
de publicação. Tal abertura, na prática, está inscrita nas iniciativas da Ciência
Aberta a partir dos esforços pela livre circulação do conhecimento produzido
em instituições formais de ensino e pesquisa30, e se conecta, especialmente,
com as questões do público e da democratização já mencionadas (FECHER;

30  Declarações internacionais de apoio ao Acesso Aberto (cf. RIOS et al., 2019):
1999 – Convenção de Santa Fé: Padrões para documentos eletrônicos, softwares e bases dados de acordo com o
Open Archives Initiative (OAI) e e-Prints.
2002 – Declaração de Budapeste: Primeira definição do termo Open Access (Acesso Aberto) e suas estratégias, como
o auto -arquivamento e o Acesso Aberto a periódicos científico.
2003 – Declaração de Bethesda: Orientações e recomendações dirigidas às instituições, organizações, pesquisadores,
bibliotecários e editores para expandir o conceito.
2014 – Declaração de Haia: Sobre temas como Big Data e mineração de dados, uso de licenças livres como Creative
Commons, uso do ORCID e do padrão XML para padronizar documentos que serão lidos por máquinas e pessoas.
2018 – Declaração do México: LATINDEX-REDALYC-CLACSO-IBICT declaram escolha pela licença Creative
Commons – CC BY-NC –SA.

320 ELENA P. GONZÁLEZ e RODRIGO LABRIOLA | Percursos... ALEA | Rio de Janeiro | vol. 22/3 | p. 309-328 | set-dez. 2020
Figura 1. Taxonomia de Open Science (POTINKA et al., 2015)

FRIESIKE, 2014). Nesse sentido, existem quatro caminhos para que os


periódicos científicos alcancem um acesso aberto:

1) Via Verde (Green Road Open Access): o artigo é publicado em qualquer


revista e o autor tem permissão para colocar cópias do artigo – preprint
(versão não revisada por pares ou não-editada do artigo) ou pós-print (versão
revisada por pares do artigo, mas não formatado para publicação) – em um
repositório ou em seu próprio site.
2) Via Dourada (Gold Road Open Access): o artigo é publicado em uma
revista que está disponível gratuitamente na web (não cobram de leitores ou
de bibliotecas), mas o autor paga uma taxa de publicação dos artigos (APC,
Article Processing Charge) para que o artigo seja disponibilizado.
3) Via Diamante (Diamond Road Open Access): o autor publica o
artigo em uma revista de acesso aberto e esse periódico não cobra taxas de
autor, pois são revistas dirigidas por associações ou sociedades profissionais e
organizações sem fins lucrativos, universidades ou agências governamentais.
4) Via Híbrida (Hybrid Road Open Access): revistas parcialmente
financiadas por assinaturas, que fornecem apenas acesso aberto para alguns
artigos individuais, para os quais os autores (ou o patrocinador da pesquisa)
pagaram uma taxa de publicação.

Ora, a revista Alea se insere neste quadro geral com uma tomada de
posição decidida não apenas em favor da democratização do conhecimento
(acesso livre para o público), mas também em prol da igualdade de condições
para que os autores submetam suas pesquisas e, prévia avaliação transparente,
possam ser publicadas e disponibilizadas gratuitamente na revista. Assim, Alea

ALEA | Rio de Janeiro | vol. 22/3 | p. 309-328 | set-dez. 2020 ELENA P. GONZÁLEZ e RODRIGO LABRIOLA | Percursos... 321
assumiu um papel de relevância na Via Diamante, incentivando a cooperação
com as coleções e repositórios da América Latina e Ibero-América, como
SciELO, Redalyc ou Latindex. Tal posicionamento guarda uma coerência
profunda com o conteúdo da revista e com o campo dos estudos neolatinos,
além de considerar a singularidade de Alea na localização geopolítica do
conhecimento.
Com efeito, as áreas de Ciências Humanas em geral, e, no caso de Alea,
o grande campo das letras e das literaturas neolatinas com foco na América,
apresentam modelos de pesquisa e comunicação de resultados bem diferentes
de outros campos científicos. Os artigos originais publicados apresentam as
características mais acabadas dos textos dissertativos ou monográficos, com
um nível alto de reflexão sobre as fontes e os materiais bibliográficos utilizados,
além de se inserir em projetos de pesquisa cujos objetos muitas vezes vão
sendo definidos pela natureza dialógica das próprias comunicações com seu
público de leitores-pesquisadores. Noutras palavras, o modelo de uma Ciência
Aberta pressupõe, para os estudos neolatinos, garantir também um espaço de
discussão aberto capaz de ir formando redes ou constelações de problemas de
pesquisa relevantes a partir do próprio intercâmbio da publicação. Daí que
a escolha pela Via Diamante seja fundamental para possibilitar a publicação
de pesquisas expressivas da diversidade cultural e da heterogeneidade da
produção de conhecimento das letras latino-americanas, cujos meios de
financiamento e/ou patrocínio, na maioria das vezes, são aplicados inteiramente
na pesquisa em si, restando quase nada para o pagamento de APCs. Na mesma
linha, a complementação da Via Diamante com a Via Verde (que permite o
aproveitamento de servidores pré-print) está no horizonte de implementação
da revista Alea para o ano 2021, mediante a utilização do servidor SciELO
Preprint, já que é suplementar com o alargamento desse espaço dialógico que
está no âmago de proposta de conteúdos da revista.
Para entender melhor a posição de Alea, é preciso considerar a elaboração
de Paul David, que não enxerga apenas questões epistemológicas no movimento
geral da abertura científica, mas a necessidade de uma reorganização do que
ele denomina “economia do patrocínio” no capitalismo acadêmico, i.e., que
é “a necessidade dos nobres patronos, os financiadores, de entenderem as
propostas daqueles que recebiam seu financiamento que gera os incentivos
necessários para o estabelecimento de uma nova estrutura organizacional
a qual enfatiza a divulgação pública de conhecimentos” (apud CLINIO,
2019). Por isso, Anne Clinio identifica duas perspectivas em disputa do que
pode vir a ser a Ciência Aberta na América Latina: “por um lado, mobiliza-se
fortemente uma visão utilitarista da ciência, vislumbrando maior eficácia,
produtividade e competitividade. Por outro lado, a noção de abertura se
orienta para temas como garantia de direitos, justiça cognitiva e justiça social”
(CLINIO, 2019). É a partir dessa segunda perspectiva, ancorada no conteúdo

322 ELENA P. GONZÁLEZ e RODRIGO LABRIOLA | Percursos... ALEA | Rio de Janeiro | vol. 22/3 | p. 309-328 | set-dez. 2020
abrangente das ciências humanas em Alea, que um estudo dessa revista ao
longo dos últimos cinco anos permite formular percursos de leitura sobre
questões dos estudos neolatinos que não só refletem a atualidade da área,
mas, sobretudo, instalam e guiam o debate e a pesquisa acadêmica e crítica,
graças às políticas de Acesso Aberto.
Esse gesto marca o ano 2016, cujos três números estão atravessados
pela indagação sobre a literatura contemporânea: seja em um corpus literário
de produção recente (18/1)31, seja na teoria literária latino-americana
(18/2)32, seja no vínculo passado-presente mediante o arquivo, a transmissão
intergeneracional ou a memória (18/3)33. Dois deles (18/2 e 18/3), não por
acaso, são os números que iniciam o processo de internacionalização por meio
da colaboração editorial com professores estrangeiros, como já foi mencionado
na segunda parte deste artigo. Esse olhar a partir do contemporâneo e (o
que é ainda mais importante) em diálogo com o contemporâneo – inclusive
naqueles trabalhos publicados cujos objetos de pesquisa remontam, com
critério transdisciplinar, até outros diversos momentos na história da literatura
e da cultura neolatinas – inaugura várias linhas de leitura que se prolongam
nos volumes seguintes, encontrando a cada ano da revista novos pontos de
condensação temática – seja na totalidade de um número em particular,
seja mediante a organização de dossiês – como acontece com os já referidos
19/1 (Severo Sarduy: um lugar entre nós)34; 20/1 (Percursos atuais da literatura
neopolicial)35; 20/2 (Como viver junto)36; 21/2 (El Spleen de Paris: 150 anos)37;
e 22/1 (Estudos Coloniais)38.
Contudo, eis quiçá na observação detalhada dos sumários e artigos
publicados nos números de tema livre – o resto dos números de Alea que vão
completando, ano após ano, sua coleção –, onde é mais visível e significativo o
vínculo das políticas de Ciência Aberta e Acesso Aberto com a resposta (através
do envio de artigos) da comunidade de pesquisadores em letras neolatinas,
devido ao prosseguimento, nos números de tema livre, daquelas discussões e
propostas de pesquisa lançadas pelos editores nos números temáticos. Noutras
palavras, enquanto que os editores de Alea percebem e organizam nos números
temáticos um conteúdo disciplinar cujos temas provêm da comunidade de
pesquisadores, a revista Alea como um todo – enquanto espaço de difusão

31  <https://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_issuetoc&pid=1517-106X20160001&lng=pt&nrm=iso>
32  <https://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_issuetoc&pid=1517-106X20160002&lng=pt&nrm=iso>
33  <https://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_issuetoc&pid=1517-106X20160003&lng=pt&nrm=iso>
34  <https://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_issuetoc&pid=1517-106X20190001&lng=pt&nrm=iso>
35  <https://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_issuetoc&pid=1517-106X20180001&lng=pt&nrm=iso>
36 <https://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_issuetoc&pid=1517-106X20180002&lng=pt&nrm=iso>
37  <https://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_issuetoc&pid=1517-106X20190002&lng=pt&nrm=iso>
38  <https://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_issuetoc&pid=1517-106X20200001&lng=pt&nrm=iso>

ALEA | Rio de Janeiro | vol. 22/3 | p. 309-328 | set-dez. 2020 ELENA P. GONZÁLEZ e RODRIGO LABRIOLA | Percursos... 323
do conhecimento, produzido conjuntamente com os autores e os leitores e
representativo do estado da questão em cada problema da área – é capaz de
veicular e dar seguimento, nos números de tema livre, também aos interesses,
aos dilemas e às alternativas teóricas, críticas e de leitura derivadas desse diálogo
científico inter pares, funcionando quase como uma bússola das questões que
motivam a pesquisa na atualidade.
Embora esse artigo não possa esgotar o comentário da totalidade do
material de primeira qualidade publicado em Alea nos últimos cinco anos
– e talvez nem sequer de uma mínima porção dele –, seria aqui de utilidade
deixar constância de alguns percursos de leitura acadêmica implícitos em Alea.
Assim, por exemplo, uma linha vinculada à produção ficcional em diversos
gêneros e autores latino-americanos contemporâneos se inicia no número
18/1 com textos como “Poesia Colombiana Contemporânea (2000-2014)”39,
“Control y fugas en la era digital, en El delirio de Turing, de Edmundo
Paz Soldán”40 e “César Aira e o Diario de la hepatitis”41; continua com
“Pensar lo contemporáneo a través de lo lírico: la obra de Nicanor Parra y
Roberto Bolaño”42, “Um mundo de papel – reflexões sobre o realismo de Luiz
Ruffato”43 e “O romance como coletânea de contos: a redução nas literaturas
contemporâneas latino-americanas”44 no 18/2; “Formas de la Memoria
(Narrativa Colombiana Contemporánea)”45 e “El espejo en las ficciones de
autorías brasileñas contemporáneas: Budapeste, de Chico Buarque”46 no 19/2;
“La escritura dramática colombiana del siglo XXI”47 no 19/3; se condensa
conceitualmente em torno da questão da comunidade contemporânea no
número temático Como viver junto (20/2), com artigos como “Da solidão do
deserto ao caos das trevas exteriores: ascese e invenção em Paulo Leminski”48,
“Levrero idiorrítmico”49 e “Una fabril maquinación. Restos y ruinas de una
comunidad en Boca de Lobo, de Sergio Chejfec”50, para citar apenas três
dentre todos os artigos desse número, porque focam mais nos autores e nas
obras; mas depois fica em ressonância nos números seguintes, como com

39  <https://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1517-106X2016000100013&lng=pt&nrm=iso&tlng=es>
40  <https://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1517-106X2016000100054&lng=pt&nrm=iso&tlng=es>
41  <https://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1517-106X2016000100099&lng=pt&nrm=iso&tlng=pt>
42  <https://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1517-106X2016000200313&lng=pt&nrm=iso&tlng=es>
43  <https://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1517-106X2016000200232&lng=pt&nrm=iso&tlng=pt>
44  <https://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1517-106X2016000200329&lng=pt&nrm=iso&tlng=pt>
45  <https://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1517-106X2017000200255&lng=pt&nrm=iso&tlng=es>
46  <https://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1517-106X2017000200323&lng=pt&nrm=iso&tlng=es>
47  <https://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1517-106X2017000300668&lng=pt&nrm=iso&tlng=es>
48  <https://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1517-106X2018000200074&lng=pt&nrm=iso&tlng=pt>
49  <https://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1517-106X2018000200137&lng=pt&nrm=iso&tlng=pt>
50  <https://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1517-106X2018000200147&lng=pt&nrm=iso&tlng=es>

324 ELENA P. GONZÁLEZ e RODRIGO LABRIOLA | Percursos... ALEA | Rio de Janeiro | vol. 22/3 | p. 309-328 | set-dez. 2020
“A realidade obedecia a uma outra escala: realismo afetivo em Azul corvo, de
Adriana Lisboa”51 e “Escritas em movimento: a imaginação translinguística
na obra de Junot Díaz”52 no 21/1; “Intermidialidade e remediação em Onde
andará Dulce Veiga?, de Caio Fernando Abreu, e Short Movies, de Gonçalo
M. Tavares”53 no 22/2; dentre outros.
Conectada com essa trilha do contemporâneo está, certamente, a
aproximação à teoria literária, que se condensa inicialmente no número 18/2
com artigos como “O novo comparatismo e o contexto latino-americano”54,
“Pensar o futuro: a poética do movimento nos Estudos de Transárea”55 e
“Escrituras ilegíveis e comunidade literária”56, além de estabelecer o vínculo
da crítica latino-americana com o universo teórico francófono, com artigos
como “Severo Sarduy y Jacques Lacan: du côté du Baroque”57 e “Leyla Perrone-
Moisés y algunas modulaciones barthesianas en Brasil en torno a la crítica y
la literatura”58. A conexão francesa retorna com força no número temático
dedicado inteiramente a Severo Sarduy (19/1), em artigos como “Sarduy
na geena. As Patatautologías”59, “Sarduy, prisioneiro de Saint-Germain-
des-Prés”60, “Severo Sarduy, el neobarroco y las políticas de la literatura”61 e
“O travestimento do corpo e da escritura em Severo Sarduy”62, dentre outros
textos que evidenciam a surpreendente contemporaneidade da escrita do autor
cubano do século passado. Já no número temático Como viver junto (20/2),
teoria e crítica latino-americanas e francesa voltam a se reunir das mais variadas
formas – e inclusive desde o título, que remete ao curso de Roland Barthes
no Collège de France em 1977 – como, por exemplo, em “Comunidades
posthumanistas: dos ejemplos de vínculos no especistas entre canes y animales
humanos en la literatura y en el cine latinoamericanos”63, “A comunidade dos

51  <https://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1517-106X2019000100111&lng=pt&nrm=iso&tlng=pt>
52  <https://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1517-106X2019000100249&lng=pt&nrm=iso&tlng=pt>
53  <https://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1517-106X2020000200190&lng=pt&nrm=iso&tlng=pt>
54  <https://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1517-106X2016000200181&lng=pt&nrm=iso&tlng=pt>
55  <https://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1517-106X2016000200192&lng=pt&nrm=iso&tlng=pt>
56  <https://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1517-106X2016000200219&lng=pt&nrm=iso&tlng=pt>
57  <https://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1517-106X2016000200243&lng=pt&nrm=iso&tlng=es>
58  <https://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1517-106X2016000200344&lng=pt&nrm=iso&tlng=es>
59  <https://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1517-106X2017000100039&lng=pt&nrm=iso&tlng=pt>
60  <https://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1517-106X2017000100056&lng=pt&nrm=iso&tlng=pt>
61  <https://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1517-106X2017000100091&lng=pt&nrm=iso&tlng=es>
62  <https://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1517-106X2017000100106&lng=pt&nrm=iso&tlng=pt>
63  <https://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1517-106X2018000200036&lng=pt&nrm=iso&tlng=es>

ALEA | Rio de Janeiro | vol. 22/3 | p. 309-328 | set-dez. 2020 ELENA P. GONZÁLEZ e RODRIGO LABRIOLA | Percursos... 325
que escrevem a comunidade”64, “Del biografema a la comunidad: dos casos
recientes en la literatura latinoamericana”65, dentre outros.
A indagação por esse percurso de leitura francófona, porém, se projeta
tanto no viés teórico quanto na retomada de autores já clássicos das letras
francesas, que funcionam como intertextos permanentes nos estudos neolatinos
ancorados na América. Na parte teoria, com artigos como “A concepção de
vazio em Roland Barthes”66, “Para além da morte: L’instant De Ma Mort, de
Maurice Blanchot”67, “Símbolo, complexo e mito: o mistério Bachelard”68,
“Para uma outra modernidade: Francis Ponge e os deslocamentos da tradição”69
no número 20/3; e com “Testimonio, poema, cenizas: Paul Celan y Jacques
Derrida”70 e “Philosophie et autorite logique: la question vitale pour la
philosophie française”71 no número 21/1. Na parte literária, sem dúvida a mais
sólida condensação se dá em torno no dossiê dedicado a Charles Baudelaure,
Le Spleen de Paris: 150 anos, no número 21/2; mas com artigos antecedentes
e descendentes, dentre os quais podemos citar, como exemplos: “Proust no
caminho do mal: o desvio da escrita”72 e “Michelet, teórico do romance”73 no
número 19/3; “Paul Éluard y César Vallejo: de la vanguardia a la fraternidad
universal”74 no 20/3; “La nouvelle Justine de Sade e os discursos de Robespierre”75
e “Enigmas para resolver: los últimos días de François Ducasse”76 no 21/1;
“A poesia da negatividade de Paul Celan”77 no 22/2; dentre vários outros.
Outrossim, percursos semelhantes, que estabelecem verdadeiras
genealogias temáticas ao longo dos últimos cinco anos da revista Alea, poderiam
ser condensados lato sensu, ao longo dos números de tema livre, em torno
de palavras-chaves, como são a literatura brasileira e as literaturas de língua
portuguesa em geral; as literaturas francófonas de Canadá e as literaturas
antilhanas; ou a literatura neopolicial e os estudos coloniais (que, como

64  <https://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1517-106X2018000200105&lng=pt&nrm=iso&tlng=pt>
65  <https://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1517-106X2018000200165&lng=pt&nrm=iso&tlng=pt>
66  <https://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1517-106X2018000300037&lng=pt&nrm=iso&tlng=pt>
67  <https://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1517-106X2018000300055&lng=pt&nrm=iso&tlng=pt>
68  <https://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1517-106X2018000300075&lng=pt&nrm=iso&tlng=pt>
69  <https://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1517-106X2018000300097&lng=pt&nrm=iso&tlng=pt>
70  <https://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1517-106X2019000100037&lng=pt&nrm=iso&tlng=es>
71  <https://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1517-106X2019000100055&lng=pt&nrm=iso&tlng=fr>
72  <https://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1517-106X2017000300604&lng=pt&nrm=iso&tlng=pt>
73  <https://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1517-106X2017000300618&lng=pt&nrm=iso&tlng=pt>
74  <https://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1517-106X2018000300111&lng=pt&nrm=iso&tlng=es>
75  <https://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1517-106X2019000100191&lng=pt&nrm=iso&tlng=pt>
76  <https://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1517-106X2019000100305&lng=pt&nrm=iso&tlng=es>
77  <https://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1517-106X2020000200274&lng=pt&nrm=iso&tlng=pt>

326 ELENA P. GONZÁLEZ e RODRIGO LABRIOLA | Percursos... ALEA | Rio de Janeiro | vol. 22/3 | p. 309-328 | set-dez. 2020
já dito, mereceram as condensações dos números temáticos 20/1 e 22/1,
respectivamente).
Os percursos aqui propostos representam somente alguns dos múltiplos
caminhos de leitura possíveis de fazer através da coleção de Alea, que permitem
vislumbrar uma rede conceitual de publicações científicas que enriquece com
seu conteúdo as políticas administrativas e metodológicas da Ciência Aberta.
Fica aberto o convite aos leitores e aos grupos de pesquisa, para navegar em
Alea e delinear inclusive outros percursos possíveis de reflexão cientifica, mas
sempre experimentar a aventura do conhecimento no mundo dos estudos
neolatinos que propõe uma revista como Alea.

Referências
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IBICT, 2015. 

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review for an integrated definition. Journal of Business Research, v. 88, p. 428-
436, 2018.

Elena Palmero González é Doutora em Ciências Filológicas pela Universidad Central


de Las Villas (Cuba, 1997), instituição onde também cursou seus estudos de Graduação
em Filologia Hispânica (1983). Fez estágios de pós-doutorado na Université Paris
IV-Sorbonne (França, 2005-2007), na Universidade de São Paulo (Brasil, 2016) e um
Estágio Sênior (CAPES) em Yale University (Estados Unidos, 2017). Atualmente,
é Professora Titular de Literaturas Hispano-americanas da Universidade Federal
do Rio de Janeiro (UFRJ) e bolsista de Produtividade em Pesquisa do CNPq. É
Editora chefe da revista Alea: Estudos Neolatinos e líder do grupo de pesquisa Estudos
Literários Interamericanos e Transatlânticos (UFRJ). Atua nas linhas de pesquisa da
Literatura comparada e da História da literatura, com ênfase na literatura cubana,
latino-americana e nas relações literárias interamericanas.
E-mail: elenacpgonzalez@gmail.com

Rodrigo Labriola é Doutor em Literatura Comparada pela Universidade do Estado


do Rio de Janeiro, Mestre em Literaturas Hispânicas pela Universidade Federal
Fluminense e possui Graduação em Letras Modernas Estrangeiras como Bacharel e
Licenciado pela Universidade de Buenos Aires. Atualmente é Professor Adjunto IV
de Literatura Hispano-americana da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ),
é editor da revista Alea: Estudos Neolatinos, atuando nos seguintes temas: hispanismo,
literaturas hispano-americanas, tradução, estudos culturais, teoria literária e cinema.
E-mail: rlabriola@gmail.com
Recebido em: 15/05/2020
Aceito em: 31/07/2020

328 ELENA P. GONZÁLEZ e RODRIGO LABRIOLA | Percursos... ALEA | Rio de Janeiro | vol. 22/3 | p. 309-328 | set-dez. 2020
O EXTREMO CONTEMPORÂNEO NA

RESENHA
LITERATURA BRASILEIRA
THE CONTEMPORARY EXTREME IN BRAZILIAN LITERATURE

Zilá Bernd
ORCID 0000-0002-2546-6099

Universidade LaSalle – Unilasalle


Canoas, RS, Brasil

BATALHA, Martha. A vida invisível de Eurídice Gusmão. São Paulo:


Companhia das Letras, 2016. 188p.

L´extrême contemporain,
c´est mettre tous les siècles ensemble.
(Michel Chaillou apud
Dominique Viart, 2008, p. 20)

Dominique Viart, em livro de 2008, estabelece distinções no âmbito das


literaturas contemporâneas, afirmando que existem três tipos de literatura: as de
consentimento (consentantes), ou seja, aquelas que não contestam a sociedade
e que se constituem como a “arte da aprovação”, em que os escritores escrevem
para o grande público, tornando-se muitas vezes bestsellers; as conciliatórias
(concertantes), que fazem coro aos clichês e que se resumem a reconduzir a
doxa, harmonizando as opiniões gerais; e, por fim, as literaturas desconcertantes
(déconcertantes), que seriam aquelas que deslocam as expectativas da maioria
dos leitores, deixando de reproduzir as velhas receitas literárias e passando a
exercer uma atividade crítica que se desvia de significações pré-concebidas,
levando os leitores a reavaliarem seus conceitos e sua consciência de estar no
mundo. Essas literaturas desconcertantes, que incomodam pela crueza como
desvendam e denunciam preconceitos ou visões estratificadas da sociedade,
é que caracterizam o “extremo contemporâneo”.

ALEA | Rio de Janeiro | vol. 21/3 | p. 253-257 | set-dez. 2019 ZILÁ BERND | O extremo...

https://dx.doi.org/10.1590/1517-106X/2019213253257
Na mesma direção, em livro recente de 2018, o polêmico Johan
Faeber, introduz o conceito de “après-littérature” ou literatura do “depois”
(evitando o já desgastado conceito de pós-literatura ou pós-moderno), que
seria a que se propõe a escrever “a contra-história de nosso tempo”. Afirma
também que é esse tipo de romance que dará uma sobrevida à literatura,
representando a sua revivescência. No momento em que se pensa que tudo
já foi escrito e que, portanto, pode-se antever a morte da literatura, surgem
os escritos do extremo contemporâneo. Para defini-lo o autor vale-se de uma
expressão de Giorgio Agamben que afirma que “ser contemporâneo significa
voltar a um presente onde nunca estivemos”, isto é, a um presente do qual
não participamos e sobre o qual não interferimos. Um presente revisitado.
Torna-se oportuno introduzir a questão de um fenômeno que está
acontecendo na cena literária brasileira dos últimos dez anos, talvez vinte
anos: o surgimento de uma escritura feminina “desconcertante”, manifestando
uma urgência de escrever para denunciar a invisibilidade e a inaudibilidade
de toda uma geração de mulheres que a precedeu e que não teve voz nem
vez na cena pública brasileira.
Trata-se de autoras jovens, quase todas escrevendo entre os 35 e os
50 anos, a maioria detentoras de diplomas universitários e teses de mestrado
e/ou doutorado, e que vêm revolucionando a cena literária em nosso país.
Entre elas, Carola Saavedra, Aline Bei, Eliane Brum, Conceição Evaristo,
Martha Batalha, Tatiana Salem Levy, Adriana Lisboa, Paloma Vidal, Ana
Maria Gonçalves, Leticia Wierzchowski, Cíntia Moscovich, Maria da Graça
Rodrigues, entre tantas outras. É interessante consultar a antologia organizada
por Luiz Ruffato: 25 mulheres que estão fazendo a nova literatura brasileira
(Record, 2004). O organizador da antologia sentiu também a necessidade de
abordar o advento de uma nouvelle vague literária no feminino cujas obras,
escapando ao “prêt-à-penser” cultural, ou seja, recusando-se a repetir velhas
e desgastadas fórmulas romanescas, desconcertam os leitores ao desnudar
histórias de vida que permitem a suas narradoras/protagonistas, através da
recuperação da memória de suas antepassadas (mães e/ou avós) e de sua
ressignificação no presente, entender em que medida sentem-se (ou não)
herdeiras desse passado.
Importa, em especial, falar do livro de Martha Batalha (nascida em
1973), A vida invisível de Eurídice Gusmão (São Paulo: Companhia das Letras,
2016), que desvenda a invisibilidade da protagonista – Eurídice Gusmão –, a
quem nomeia no título, para convocá-la à existência apontando suas tentativas
de se emancipar, todas elas frustradas pelo marido. O livro transforma-se
em um verdadeiro inventário de ausências na vida de Eurídice Gusmão,
típica dona de casa do Rio de Janeiro, dos anos 1940, quando a mulher da

254 ZILÁ BERND | O extremo... ALEA | Rio de Janeiro | vol. 21/3 | p. 253-257 | set-dez. 2019
classe média que trabalhasse fora do lar representava o fracasso do marido
em sustentar a família.
Inventário das coisas ausentes é o título de um livro de Carola Saavedra
(Cia. das Letras, 2014), remetendo igualmente às ausências, às faltas na
vida das mulheres no Brasil e à necessidade de inventariá-las, uma vez que
só após o inventário se reparte a herança, e que só depois de recebido o
legado é possível transmiti-lo. As memórias só se constituem plenamente pela
transmissão. A transmissão, no dizer de Paul Ricoeur, é geradora de sentido.
Por isso nunca se viu tantas mulheres escrevendo romances verdadeiramente
“desconcertantes” no Brasil: eles são necessários para realizar o inventário das
ausências e transmiti-las através da escritura, gerando sentido e restaurando
memórias feridas.
Patrick Chamoiseau escreveu um livro intitulado La matière de l´Absence
(SEUIL, 2016), no qual reconhece que as literaturas das Américas vem
sendo construídas com “a matéria da ausência”, ou seja sobre camadas de
esquecimento e denegação de elementos culturais indígenas e africanos
cuja transmissão não foi efetivada porque houve rejeição dessa herança
pelos herdeiros ou porque tais tradições não foram consideradas quando da
construção das identidades nacionais. Podemos pensar em algo semelhante
diante do silenciamento imposto às mulheres às quais não se concediam o
direito à alfabetização e, posteriormente, à frequentação de universidades.
Pois foi esse silêncio, essa ausência que tornou as mulheres e os papéis
que desempenhavam invisíveis. Martha Batalha aponta em seu livro as
diferentes tentativas de sua heroína de sair da invisibilidade, inicialmente
organizando um livro de receitas, depois das bem-sucedidas experimentações
que realizava em sua cozinha. O que poderia ter sido um bestseller pelo
talento de Eurídice Gusmão foi jogado no lixo pelo marido que não podia
admitir tamanha audácia por parte da esposa, que – segundo ele – deveria
se contentar com a repercussão familiar das receitas. A nova tentativa de
desenvolver seus dotes artísticos através da costura foi igualmente castrada
pelo todo poderoso marido, pois o que haveriam de pensar os vizinhos diante
do fato de a esposa “costurar para fora”. Assim vai se desperdiçando a vida
da personagem até os filhos não precisarem mais de sua dedicação: é quando
percebe que na estante da sala de sua casa havia livros e que livros poderiam
ser lidos, passando a devorar os livros da estante assim como os da biblioteca
pública. O passo seguinte foi a compra da máquina de escrever, a mudança da
casa velha para o novo bairro que estava surgindo à beira-mar: para Ipanema.
“Mudar-se para Ipanema no início dos anos 60 não era apenas transferir a
mobília alguns quilômetros adiante. Era atravessar os portões do tempo, para
viver num lugar que fazia o resto do Rio se parecer com o passado” (2016,
p. 169). Os tec, tec, tec da máquina foram ouvidos com mais insistência do

ALEA | Rio de Janeiro | vol. 21/3 | p. 253-257 | set-dez. 2019 ZILÁ BERND | O extremo... 255
que na antiga casa da Tijuca, embora ninguém se preocupasse com o que
teria para escrever uma dona de casa. Embora os jornais não tenham aceitado
seus textos nem ninguém na casa manifestasse o mínimo interesse por eles,
foi através primeiro da leitura e depois da escritura que Eurídice Gusmão se
viu face a face com a invisibilidade que lhe foi imposta pelo marido.
Embora o livro traga as marcas de um feminismo incipiente em que
o homem (marido) é o inimigo, ele aporta frescor ao feminismo atual pelo
fato da emancipação não passar por grupos, mas pela afirmação de si mesma,
através do florescer de preocupações intelectuais e pelo ato de criação literária.
A personagem se liberta pela escritura, e a autora constrói um romance
com base em uma personagem feminina subjugada que lentamente sai de
sua invisibilidade e sobretudo de sua inaudibilidade, sem cair em narrativas
piegas, ou na criação de uma escritura à l´eau de rose, como dizem os franceses.
Ambas escrevem para se conhecerem através da escritura, compondo obras
que desconcertam pela crueza das descrições e por chegarem, como afirma
Viart: là où on ne les attend pas. Elles échappent aux significations preconçues,
au prêt-à-penser culturel. (2008. p. 13)1
Nessa medida, Martha Batalha desenvolve uma escrita crítica e ao
mesmo tempo cheia de humor e de leveza, rompendo cordões de isolamento,
deslocando ideias e recriando fórmulas narrativas inéditas. De modo
semelhante, autoras de sua mesma geração, como as citadas acima, cada
uma escolhendo um objeto do deslocamento, vêm criando o que Luiz Ruffato
chama de “Nova literatura brasileira”: Aline Bei aborda, em O peso do pássaro
morto (2018), a ainda impronunciável questão do estupro; Eliane Brum,
em Uma duas (2018), traz à baila as relações deterioradas entre mãe e filha e
temas como a automutilação; Conceição Evaristo, em Olhos d´água (2015),
descreve a infância de crianças negras em uma favela e a busca por saber a
cor dos olhos da mãe; e Carola Saavedra, em Com armas sonolentas (2018),
enfrenta o duríssimo tema da maternidade indesejada e dos desencontros de
separações entre mães e filhos, tudo embalado pelo canto “sonolento” de Soror
Juana Inés de la Cruz. Enfim, soberbas lições trazidas por esses romances
desconcertantes, por vezes penosos para o leitor, mas que certamente não sai
o mesmo depois de acabada a leitura. Trata-se de uma literatura que renuncia
a trilhar caminhos conhecidos e a reproduzir o que Dominique Viart chama
de “o depósito cultural dos séculos e das civilizações” (2008, p. 20).
O belíssimo inventário de perdas realizado por Martha Batalha em A
vida invisível de Eurídice Gusmão passou ao cinema tendo sido recentemente
apresentado no Festival de Cannes, onde foi premiado na mostra Un certain
regard. O melodrama de Karim Aïmouz contou, em seu elenco, com Carol

1 Lá onde não as esperamos. Elas escapam às significações pré-concebidas , ao pronto-para-pensar cultural.

256 ZILÁ BERND | O extremo... ALEA | Rio de Janeiro | vol. 21/3 | p. 253-257 | set-dez. 2019
Duarte, Julia Stockler, Gregório Duvivier e com a participação de Fernanda
Montenegro. O filme será lançado em setembro no Brasil.
Até lá, ler o livro é uma prazerosa e “desconcertante” urgência. O
leitor/a estará trilhando os caminhos do extremo contemporâneo ou, no
dizer de Johan Faeber, entrando em contato com uma literatura que surge
quando se pensa que tudo já foi escrito e que nada mais de novo haveria para
ser contado, correspondendo ao que o autor chama de “après littératures”, ou
seja, aquelas que representam uma revivescência do fato literário.

Referências
BATALHA, Martha. A vida invisível de Eurídice Gusmão. São Paulo: Companhia
das Letras, 2016.

FAEBER, Johan. Après la littérature: écrire le contemporain. Paris: PUF, 2018.

RUFFATO, Luiz. 25 mullheres que estão fazendo a nova literatura brasileira. Rio de
Janeiro: Record, 2004.

VIART, Dominique; VERCIER, Bruno. La littérature française au présent. 2a. ed.


Paris: Bordas, 2008.

Zilá Bernd é professora titular aposentada da Universidade Federal do Rio Grande


do Sul e atualmente professora permanente do PPG-Memória Social e Bens Culturais
do UNILASALLE/Brasil. É bolsista de pesquisa 1B CNPq. Foi uma das primeiras
presidentes da ABECAN (Associação Brasileira de Estudos Canadenses) e presidente
do ICCS-CIEC (International Council for Canadian Studies). Foi a fundadora e
primeira editora da Revista Interfaces Brasil-Canadá. É Officier des Palmes Académiques
e Officier de l´Ordre National du Québec. É autora de dezenas de artigos publicados
em revistas do Brasil, do Canadá e da França, e de vários livros – sendo o último
A persistência da memória; romances da anterioridade e seus modos de transmissão
intergeracional. Porto Alegre: Besouro Box, 2018. O mesmo teve versão em língua
francesa: La persistance de la mémoire: romans de l´antériorité et leurs modes de
transmission intergénérationnelle. Paris : Société des écrivains, 2018.
E-mail: zilabster@gmail.com
Recebido em: 15/05/2019
Aceito em: 31/08/2019

ALEA | Rio de Janeiro | vol. 21/3 | p. 253-257 | set-dez. 2019 ZILÁ BERND | O extremo... 257
POESIA, MITO E FILOSOFIA: UMA LEITURA

ARTIGOS
INSISTENTE DE ORIDES FONTELA
POETRY, MYTH AND PHILOSOPHY: CLOSE READING OF
ORIDES FONTELA

Patricia Lavelle
Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro
Rio de Janeiro, RJ, Brasil
ORCID 0000-0002-7466-4999

Resumo
Com o objetivo de pensar as potencialidades da interface poesia/filosofia, examinarei
o modo operatório da intertextualidade na produção poética de Orides Fontela. A
partir da leitura insistente do poema “Kant (Relido)”, em cuja fatura extremamente
sintética identificamos não apenas a referência a uma passagem significativa da Crítica
da razão prática, mas também uma releitura do mito de Gaia e Uranos, relatado na
Teogonia de Hesíodo, procurarei compreender o modo como a poeta dialoga com
suas leituras, operando transformações e deslocamentos consideráveis. Neste poema,
como em outros, Orides Fontela não se contenta em dizer de outro modo as teses que
o texto filosófico enuncia, transpondo-as alegoricamente, numa expressão poética,
mas ela responde poeticamente à interpelação contida na teoria. Assim, sua obra
nos leva a colocar a questão do pensamento poético.
Palavras-chave: Poesia e filosofia, Orides Fontela, mito

Abstract Résumé
This paper shows the inter-textual Ayant l’objectif de penser le potentiel
references in Orides Fontela’s poetic de l’interface poésie/philosophie, cet
production in order to think the article examine le mode opératoire
potential of the interface poetry/ des intertextualités dans la production
philosophy. A close-reading of the poem poétique d’Orides Fontela. A partir de
“Kant (Relido)”, identifies not only an la lecture insistante du poème « Kant
interesting deformation of a citation of (Relido)  » où, malgré sa facture très
the Critique of the practice raison, but also synthétique, nous identifions non
a re-reading of Gaia and Uranus myth seulement la référence à un passage
related in Hesiod’s Theogony. This paper significatif de la Critique de la raison
shows the way the poet dialogue with her pratique, mais aussi une relecture du
references, operating transformations and mythe de Gaia et Uranus présenté
dislocations. The poem “Kant (Relido)” dans la Théogonie d’Hésiode, je cherche
not only transposes allegorically the à comprendre comment la poétesse
philosophical thesis in a poetic expression, dialogue avec ses propres lectures,
but it answers poetically to the theoretical opérant des transformations et des

ALEA | Rio de Janeiro | vol. 21/2 | p. 207-218 | mai-ago. 2019 PATRICIA LAVELLE | Poesia, mito e filosofia...

https://dx.doi.org/10.1590/1517-106X/212207218
provocation of the philosophy. Orides déplacements considérables. Dans ce
Fontela’s poetic work allows us to discuss poème, comme dans d’autres, Orides
the problem of the poetic thinking. Fontela ne se contente pas de dire d’une
autre manière les thèses présentées dans
Keywords: Poetry and philosophy,
le texte philosophique, les transposant
Orides Fontela, myth.
allégoriquement, mais elle répond
poétiquement aux provocations contenues
dans la théorie. Ainsi, son œuvre nous
permet de poser la question de la pensée
poétique.
Mots-clé: Poésie et philosophie, Orides
Fontela, mythe.

Modo de relação com o espaço, o mito se caracteriza, segundo Cassirer1,


por uma expressividade que apaga todo distanciamento entre a imagem e o
que ela representa. Mediatizada pela linguagem, essa experiência radicalmente
expressiva engendra uma infinidade de variações, as vezes até contraditórias,
de um mesmo tema ou personagem. Ora, se a poesia grega surge com o mito,
alimentando-se de seu polimorfismo, ela se afasta de sua expressividade primeira
através do movimento reflexivo inerente à representação artística. Trabalho
no material polimorfo do mito, trabalho do mito no discurso, trabalho não
mais expressivo, mas representativo, da arte poética, as epopeias constituem
mito-logias. Mesmo que a poesia da Grécia arcaica esteja impregnada de valor
cultual, e participe portanto do mundo do mito, ela introduz distanciamentos
reflexivos no interior da imagem mítica.
É o caso, por exemplo, da Teogonia de Hesíodo, que antecipa as
sistematizações cosmológicas dos pré-socráticos e, colocando em cena pela
primeira vez o “eu” do poeta, indica a instância subjetiva da representação. Ao
nomear a voz poética, este longo poema abre um caminho para a poesia lírica,
que viria a se desenvolver um século mais tarde, mas também tem em comum
com o pensamento teórico nascente uma preocupação de sistematização que
implica uma crítica dos materiais míticos tradicionais.
Compreendido como relação expressiva ao espaço, o mito não está
presente apenas nas culturas arcaicas, como a Grécia antiga. Essa forma
simbólica não foi definitivamente ultrapassada no mundo contemporâneo,
mais ainda coexiste com outros modos de relação com o sentido externo e,

1 Sobre a noção de mito em Cassirer, cf. Ernst Cassirer. “Espace mythique, espace esthétique et espace
théorique” (tradução de Christian Berner), in: Ecrits sur l’art, Oeuves XII. Paris: Cerf, 1995 e “Le
problème du symbole et le système de la philosophie” (tradução de Éric Dufour), In: Marc de Launay
(org.) Néo-kantismes et théorie de la connaissance. Paris: Vrin, 2000.

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em particular, com a modalidade estética de representação. Talvez por isso
a poesia mais contemporânea não cesse de trabalhar e retrabalhar materiais
míticos legados pela tradição literária clássica.
Em Orides Fontela (1940-1998), cuja obra completa foi reeditada e
publicada em 20152, o trabalho poético sobre estruturas míticas dialoga de
perto com o conceito. Assim, sua produção leva-nos a perguntar como uma
poeta contemporânea opera deslocamentos nos materiais míticos, incitando-
nos a localizar a questão sobre o pensamento poético entre a forma simbólica
do mito e a da teoria. Parece-me, sobretudo, que tal interrogação não deve ser
colocada abstratamente, de maneira estritamente conceitual, mas que concerne,
a cada vez, a um corpus textual singular. Pois, mesmo que possamos pensar
um modo poético de relação, ou a poesia como forma simbólica, não existe
um único pensamento poético que se materializaria em todos os poemas, mas
uma pluralidade de reflexões que se constituem em obras poéticas individuais.
Assim, para evitar operar abstratamente, seguirei uma sugestão
metodológica de Jean Bollack e proporei uma “leitura insistente”3. Lerei,
portanto, de maneira insistente, um poema de Orides Fontela que se apresenta
igualmente como leitura, isto é, como uma releitura de uma passagem da
Crítica da razão prática. A partir da leitura insistente do poema “Kant
(Relido)”, em cuja fatura extremamente sintética identificamos não apenas
a referência a uma passagem significativa da Crítica da razão prática, mas
também uma releitura do mito de Gaia e Uranos, relatado na Teogonia de
Hesíodo, procurarei compreender o modo como a poeta dialoga com suas
leituras, operando transformações e deslocamentos consideráveis. Assim,
minha leitura insistirá não apenas numa breve análise da materialidade rítmica
do poema, mas sobretudo numa reconstrução das intertextualidades que o
atravessam e nele dialogam.
Neste poema, como em outros, Orides Fontela não se contenta em
dizer de outro modo as teses que o texto filosófico enuncia, transpondo-as
alegoricamente, numa expressão poética, mas ela responde poeticamente
à interpelação contida na teoria, ironizando as estruturas míticas que nela
subsistem. O poema reage poeticamente à argumentação kantiana. Ele tira
consequências, indica aspectos que permanecem escondidos no registro
conceitual do texto kantiano e sublinha ironicamente as estruturas míticas que
nele subsistem, propondo uma verdadeira releitura. A leitura desta releitura
nos permitirá situar a interrogação sobre o pensamento poético entre a forma
teórica do conceito e o trabalho do mito.

2 Orides Fontela. Poesia Completa (org. Luís Dolhnikoff). São Paulo: Hedra, 2015.
3 Cf. exemplos deste método no volume coletivo La lecture insistante. Autour de Jean Bollack. Paris :
Albin Michel, 2012.

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A Materialidade do poema

De origem modesta, nascida em São João da Boa Vista, no interior


do Estado de São Paulo, Orides Fontela obteve desde cedo uma acolhida
favorável pela crítica especializada, que a teria “descoberto” em 19654, antes
mesmo da publicação de seu primeiro livro, Transposição, em 1969. Sua poética
sóbria, de versos curtos e enigmáticos, cortados de modo surpreendente,
causava espanto por sua novidade em relação à herança modernista dos anos
1920-1940, mas aparecia também como uma alternativa às novas vanguardas
concretistas e neoconcretistas do pós-guerra. De fato, é como potência de
inovação que a poesia de Orides Fontela foi recebida por Antonio Candido em
sua apresentação bastante elogiosa do terceiro livro da poeta, Alba, de 1983:

Um poema de Orides Fontela tem o apelo das palavras mágicas que o pós-
simbolismo destacou, tem o rigor construtivo dos poetas engenheiros e tem um
impacto por assim dizer material de vanguarda recente. Mas não é nenhuma
destas coisas, na sua integridade requintada e sobranceira; e sim a solução
pessoal que ela encontrou. Parecendo tão inseridos numa certa evolução da
poesia moderna, e sendo tão originais como invenção, os seus versos possuem
em geral uma carga de significado que não é frequente5.

No final dos anos 1960, Orides cursa Filosofia na Universidade de São


Paulo, o que lhe permite aprofundar e desenvolver uma inclinação especulativa
que aparecia já em seus primeiros poemas. Entretanto, seu interesse pela
filosofia não desemboca numa carreira universitária, mas se reflete efetivamente
na forma de sua obra, fazendo dela uma espécie de poeta-filósofa – outra
singularidade na tradição poética brasileira. Ora, esta relação importante com
a filosofia aparece raramente sob a forma da citação ou da referência explícita,
mas se inscreve mais frequentemente na fatura enigmática e intertextual dos
poemas, que se configuram em torno de certas problemáticas teóricas: a
linguagem e o fazer poético, o mito, o tempo, éros e a questão da liberdade,
entre outros temas também tradicionalmente filosóficos.
“Kant (relido)”, que me proponho a ler, é um dos raros poemas de Orides
que se refere explicitamente à obra de um filósofo. Entretanto, não se trata de
uma citação, mas do deslocamento poético de uma passagem frequentemente
citada da conclusão da Crítica da razão prática. Ele aparece no volume Rosácea,
de 1986, que reúne poemas de juventude então ainda inéditos e textos novos.

4 Segundo conta Luís Dolhnikoff na introdução ao volume de suas obras completas, Davi Arrigucci Jr.
a teria “descoberto” em 1965, através de um poema publicado no jornal de sua cidade, engajando-se
em seguida na edição de seu primeiro livro. Cf. Luís Dolhnikoff, “Introdução”, In: Orides Fontela.
Poesia completa, op. cit., p.7.
5 Candido, Antonio. “Prefácio”. In: Orides Fontela, Alba. São Paulo: Roswitha Kempf Editores, 1983.

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Esse livro, publicado pouco tempo depois do sucesso de Alba, que ganhou o
Prêmio Jabuti de poesia em 1984, está dividido em cinco séries de poemas
intituladas: Novos, Lúdicos, Bucólicos, Mitológicos e Antigos. O poema que
aqui nos interessa faz parte da primeira série. Embora seja seguido por outro
texto que se refere à tradição filosófica, é significativamente precedido por
“Herança”, de coloração sobriamente autobiográfica. Nele, a poeta lista alguns
objetos bastante modestos, em sua maior parte utensílios de trabalho manual:

Herança

Da avó materna:
uma toalha (de batismo)

Do pai:
um martelo
um alicate
uma torquês
duas flautas.

Da mãe:
um pilão
um caldeirão
um lenço.

A proximidade desse poema, cujo teor autobiográfico contrasta com


a sobriedade e a concisão da expressão, que nem sequer deixa lugar para a
emergência da primeira pessoa, quase sempre anti-liricamente evitada por
Orides Fontela, nos incita a problematizar o “eu” que “Kant (relido)” coloca
ostensivamente em cena:

Kant (relido)
Duas coisas admiro: a dura lei
cobrindo-me
e o estrelado céu
dentro de mim

Ao fragmentar o decassílabo tradicional, o poema engendra uma


variação rítmica significativa, produzindo uma espécie de evidência verbal
que se aparenta à dos provérbios e à dos oráculos, embora seja quebrada por
uma certa ironia. De fato, o primeiro verso pode ser lido como um decassílabo
heroico, ritmado pelas tônicas na primeira, na sexta e na oitava sílabas. A
pontuação reforça, entretanto, a cesura que o divide em um trecho de seis
sílabas e outro de quatro, acentuado na segunda (a dura lei). O segundo
verso, composto por uma única palavra (co/brin/do-me), tem apenas duas

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sílabas, repetindo assim a acentuação do segundo segmento do primeiro
verso. O terceiro retoma a extensão da primeira parte do decassílabo inicial
(6 sílabas) retardando a primeira tônica, que aparece apenas na quarta (“e
o/ es/tre/la/do/ céu”); porém, se fizermos a elisão entre o artigo e o adjetivo,
pode também ser lido como uma redondilha menor acentuada na terceira
sílaba. O último verso repete ainda o metro da segunda parte do primeiro (4
sílabas) embora acentue fortemente a primeira sílaba: “den/tro/ de/ mim”.

Du/as/ coi/sas/ ad/mi/ro: a/ du/ra/ lei (1-6-8-10)


co/brin/do/-me (2)
e o/ es/tre/la/do/ céu (4-6)
den/tro/ de/ mim. (1-4)

ou

Du/as/ coi/sas/ ad/mi/ro: (1-3-6)


a/ du/ra/ lei (2-4)
co/brin/do-me (2)
e o es/tre/la/do/ céu (3-5)
den/tro/ de/ mim (1-4)

Decompondo o decassílabo tradicional num movimento rítmico que


permite variações na cadência da leitura, Orides acentua as palavras “dura”,
“cobrindo-me” e “dentro”. O poema parece efetivamente incitar o leitor a relê-
lo de outro modo, mimando assim ritmicamente a sugestão contida no título.
Entretanto, para tirar consequências semânticas desse efeito rítmico numa
interpretação da releitura proposta pela poeta, precisamos voltar ao texto que
ela relê poeticamente para reconstruir o contexto filosófico no qual ele aparece.

O texto relido

A frase que o poema retoma é frequentemente citada justamente porque


constitui uma espécie de exceção na qual, ao final de sua obra, Kant deixa de
lado a argumentação conceitual para se exprimir, excepcionalmente, de um
modo que pode ser qualificado como lírico: “Duas coisas enchem o ânimo
de crescente admiração e respeito, veneração tanto mais renovada quanto
com mais frequência e aplicação delas se ocupa a reflexão: sobre mim o céu
estrelado, em mim a lei moral”6.

6 E. Kant. Crítica da razão prática (tradução e prefácio de Afonso Bertagnole). Ebooks Brasil, 2004, p.
307(A 289).

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A lei moral que, de acordo com Kant, constitui uma exigência interna
não é uma prescrição normativa. Ela corresponde ao postulado segundo o
qual cada conduta ética deve repousar sobre a autonomia da razão humana,
e portanto sobre a autodeterminação de sua vontade tomada como fim
absoluto, o que implica a exigência racional de que todo ser dotado de razão
seja sempre tomado como um fim em si mesmo, e jamais reduzido a um
mero meio. Assim, de acordo com Kant, a condição de possibilidade de
toda responsabilidade moral é a ideia de liberdade, compreendida como a
possibilidade de autodeterminação absoluta da vontade segundo uma exigência
universal da razão em detrimento do interesse ditado por preferências e
inclinações pessoais, assim como por contingências e limitações naturais
e sociais. Neste sentido, a argumentação kantiana é circular: a lei moral,
imperativo categórico da razão prática, repousa sobre a ideia de liberdade; e
a liberdade, que conhecemos a priori apenas como postulado sem que seja
possível fazer dela um objeto de experiência, é a condição da lei moral.
Segundo Kant, embora a ideia de liberdade constitua a pedra angular na
edificação do sistema da razão pura, pois permite a articulação entre o domínio
teórico de conhecimento da natureza e o domínio prático da moralidade,
é impossível dar um exemplo de sua aplicação empírica. Conhecemos sua
possibilidade a priori apenas como um postulado sobre o qual se fundam
todas as ideias da razão, mas nunca como efetivação concreta na experiência.
Na passagem citada, que corresponde à frase “relida” por Orides Fontela,
o paralelo entre o céu estrelado “sobre mim” e a lei moral “em mim” corresponde
a uma dupla consciência: a de “minha” existência física insignificante face
à imensidão irrepresentável do real e a de “minha” responsabilidade moral.
Ora, segundo Kant, esta última “começa em meu invisível eu, na minha
personalidade, expondo-me em um mundo que tem verdadeira infinidade,
porém que só resulta penetrável pelo entendimento e com o qual eu me
reconheço (...) em uma conexão universal e necessária, não apenas contingente
[...]”7. É essa segunda “visão” que me revela a independência de minha própria
vida intelectual em relação ao mundo sensível. Porém, segundo Kant, é ainda
esta que, escapando ao domínio das leis da natureza, permite precisamente
pensar sua própria conexão com a natureza pela pressuposição do acordo
entre as faculdades de conhecer e o real.
Entretanto, na frase citada, a primeira pessoa não remete apenas a uma
consciência lógica, mas acolhe também os sentimentos e a capacidade reflexiva
de um indivíduo dotado igualmente de existência física – capaz, portanto, de
estabelecer uma relação simbólica entre uma representação sensível do espaço
que o cerca e uma ideia racional. Além disso, é significativo que, no parágrafo

7 Ibidem.

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seguinte, Kant faça uma advertência contra a astrologia, que estabelece uma
relação mágica entre a esfera moral e a observação do céu. A representação
que ele procura esboçar aqui a partir do paralelismo retórico entre as duas
visões – a do céu estrelado acima de mim a da lei moral em mim – não quer
ser confundida com o mundo do mito, mesmo que também não pertença
nem ao domínio teórico, nem ao prático. Trata-se simplesmente de uma
imagem para a reflexão, de uma representação estética que abre perspectivas
ao pensamento. Assim, esta passagem conclusiva da Crítica da razão prática
antecipa em mais de um sentido a Crítica da faculdade do juízo, na qual Kant
aborda o campo do sensível e analisa os juízos estéticos puros, confrontando-
se ao problema da reflexão.
Dessa forma, é justamente a Crítica da faculdade do juízo que tematiza
o modo de apresentação da ideias da razão, propondo uma analogia entre
o Belo e a Lei Moral. No contexto dessa argumentação, que se encontra
no §59 da Analítica do sublime, intitulado “A Beleza como símbolo da
moralidade”, Kant distingue as noções de conceito (do entendimento)
e de ideia (da razão) e examina detidamente o modo pelo qual podemos
apresentá-los ou expô-los.
Segundo Kant, os conceitos do entendimento podem ser apresentados
diretamente pelos exemplos ou esquemas através dos quais expomos sua
realidade objetiva. Assim, um conceito puro do entendimento, como o
de triângulo, pode ser apresentado através da fórmula matemática que lhe
serve de esquema e um conceito empírico, com o de gato, pode ser exposto
através de exemplos. Entretanto, as ideias da razão – mesmo que remetam
àquelas questões fundamentais que não podemos deixar de colocar mas que,
ao mesmo tempo, somos incapazes de responder – não constituem objetos
do conhecimento. Tais ideias, como a de liberdade, ou a de verdade, podem
(e devem) apenas ser pensadas, pois fundamentam moral e conhecimento,
mas não é possível conhecê-las objetivamente. No entanto, Kant afirma que
podemos apresentá-las de modo simbólico, isto é, através de construções
poéticas complexas que se articulem com a esfera conceitual.
Ora, em seus Paradigmas para uma metaforologia, publicados pela
primeira vez em 1960, o pensador alemão Hans Blumenberg propõe uma
releitura significativa dessa passagem da Crítica da faculdade do juízo.
Explicitando a dimensão necessariamente metafórica dos textos filosóficos, e
mesmo daqueles que pretendem a sistematicidade e a determinação conceitual
mais estrita, ele empreende pesquisas históricas sobre as metáforas que se
articulam aos grandes questionamentos filosóficos. Mais tarde, já nos anos
1970, ele sugere uma origem comum para filosofia e poesia na esfera das
correlações não determináveis do pensamento especulativo: a esfera da “não
conceitualidade”.

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A releitura

Orides Fontela certamente estudou Kant quando cursou Filosofia, na


virada dos anos sessenta para os setenta, mas não é verossímil que tenha assistido
muitas aulas sobre Cassirer e nem pode ter tido conhecimento da interpretação
da problemática da representação simbólica proposta por Blumenberg, assim
como dos desenvolvimentos sobre a esfera da “não conceitualidade” por ele
propostos, já nos anos 1970. O autor só viria a ser recebido no Brasil bem
recentemente e, no final dos anos 1960, os departamentos de Filosofia se
ocupavam sobretudo da recepção de Heidegger. Entretanto, num depoimento
escrito, Orides se pronuncia sobre a filosofia e sobre sua relação com a poesia em
termos que se distanciam consideravelmente de uma ontologia da linguagem
de inspiração heideggeriana e poderíamos aproximar de algumas considerações
de Cassirer e de Blumenberg, que retomam perspectivas kantianas:

Fruto da maturidade humana, [a filosofia] emerge lentamente da poesia e do


mito, e inda guarda as marcas de co-nascença, as pegadas vitais da intuição
poética. Pois ninguém chegou a ser cem por cento lúcido e objetivo, nunca.
Seria inumano, seria loucura e esterilidade. Bem, aí já temos uma diferença
básica entre poesia e filosofia – a idade, a técnica, não o escopo. Pois a finalidade
de entender o real é sempre a mesma, é “alta agonia” e “difícil prova” que
devemos tentar para realizar nossa humanidade.8

Nesta conversa, Orides aponta uma origem comum à poesia, “arcaica


como o verbo”, e à filosofia, “fruto da maturidade humana”, na interrogação
diante do que ela aqui nomeia “o real”, mas que podemos também aproximar
do que Cassirer chama de espaço, isto é, o que nos cerca, aquilo no qual nos
encontramos e o que também produzimos segundo diferentes modos de
relação: conceitual, estético ou mítico. Ora, a poeta afirma não apenas que
o modo de relação com o real característico da filosofia surge da poesia e do
mito, mas também que esse modo filosófico de visar guarda os “vestígios
vivos da intuição poética”, os quais se encontram em suas origens. Isso nos
permite compreender a orientação geral de sua releitura poética de Kant para
retornar ao poema do qual partimos e insistir em sua leitura – e na releitura
que ele propõe.
Como vimos, o poema destaca ritmicamente algumas palavras e
inverte a estrutura da frase de Kant, sugerindo uma imagem erótica clara,
embora bastante sublimada. Qualificada de “dura”, termo que não aparece
na formulação kantiana, a lei moral que, de acordo com a Crítica da razão

8 Orides Fontela, “Sobre poesia e filosofia – um depoimento”, In: Gustavo de Castro. O Enigma Orides.
São Paulo: Hedra, 2015, p. 219.

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prática, repousa sobre a liberdade, “cobre” um “eu lírico” discretamente
indicado pelo “me” e pelo “mim”. Atípico na poética de Orides Fontela, em
que o sujeito é frequentemente elidido9, o “eu lírico” aparece aqui em voz
ativa (“admiro”) e passiva (“me, mim”), mas se esconde sob a voz do filósofo
numa enunciação que poderia passar por uma citação, não fosse a advertência
contida no título. Relida por Orides, essa primeira pessoa que, no próprio
texto kantiano, já não poderia mais passar por transcendental, aparece em sua
plena corporeidade. E mostra-se feminina, pois não apenas abre-se à “dura
lei” que se coloca sobre ela, cobrindo-lhe no sentido sexual do termo, mas
também engendra “o estrelado céu” dentro de si.
Invertendo a ordem dos termos e insistindo ritmicamente em certas
palavras, Orides Fontela opera uma espécie de subversão na frase de Kant
para esboçar uma imagem erótica, reanimando os “vestígios vivos da intuição
poética” no interior do texto filosófico. A imagem revela, efetivamente, as
ressonâncias míticas da formulação kantiana, remetendo-nos ao mito de Gaia
e Uranos, apresentado por Hesíodo no inicio da Teogonia. Gaia, a terra, gera
sozinha Uranos, o céu estrelado, que em seguida a recobre completamente,
fecundando-a. E assim, Gaia engendra uma série deuses e titãs que permanecem
dentro dela, pois Uranos a cobre incessantemente sem deixar espaço para o
nascimento dos filhos. Para que Gaia possa parir, será preciso que o filho mais
jovem, Cronos, o tempo, castre o próprio pai. E da semente de Uranos, caída
na espuma do mar, nasce também Afrodite, a deusa da beleza.
As conotações eróticas e as ressonâncias míticas do poema ironizam a
afirmação poética de Kant, aprofundando sua plurivocidade. Na formulação
kantiana, a imagem perceptiva do céu estrelado funciona como uma
representação simplesmente estética ou reflexiva do acordo entre nossas
faculdades de conhecimento e o real – acordo que surge da segunda visão,
interna. O respeito da lei moral “em mim” é assim comparado à admiração
diante da imensidão ordenada e harmônica do firmamento “sobre mim”,
isto é, ao respeito diante de uma representação reflexiva de uma finalidade
da natureza.
No poema de Orides, o esquema se inverte: o “estrelado céu” está
“dentro de mim” e, “cobrindo-me” num longo gerúndio, encontramos a “dura
lei”, isto é, a lei moral que funda e se funda sobre a liberdade. A plurivocidade
do poema, bem mais aberta do que a da frase de Kant, nos leva a fazer
conjecturas sobre os deslocamentos metafóricos operados pela poeta em sua
releitura do texto filosófico. Nele, o céu estrelado não está “sobre mim”, mas

9 Para um levantamento da elisão da primeira pessoa no conjunto da obra poética de Orides Fontela, cf. “Um
panorama do sujeito eclipsado”. In: Roberta Andressa Villa Gonçalves. Entre potência e impossibilidade:
um estudo da poética de Orides Fontela, p.43-54. Dissertação de mestrado defendida no Programa de
pós-graduação em Literatura Brasileira da USP.

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se encontra no interior do eu lírico que aparece, portanto, como uma nova
Gaia engendrando Uranos. Mesmo que muito indireta, a alusão ao mito cria
um paralelo entre a imagem fálica da “dura lei” e a representação do “céu
estrelado” que, não mais se referindo à percepção sensível do espaço exterior
ao “eu”, constitui o que identificamos como uma “predicação impertinente”,
para retomar a fórmula usada por Ricoeur ao caracterizar a metáfora. Embora
o trabalho da semelhança aí opere, não se trata de uma analogia que se poderia
resolver numa substituição de termos, mas de um movimento complexo que
nos leva da argumentação conceitual à intriga mítica e do mito novamente
ao conceito. Vejo-me assim incitada a enunciar hipóteses interpretativas,
produzindo ainda releituras da releitura proposta.
Talvez o céu estrelado de Orides seja uma metáfora para a beleza que,
segundo Kant, corresponde ela mesma à metáfora da lei moral em nós. Se
seguimos essa via interpretativa, devemos considerar que a forma bela, o
próprio poema, se encontra em gestação no interior do “eu” – e a questão então
se desloca: estaria no interior de sua criadora ou do processo de sua leitura?
No poema, o “estrelado céu” não pode corresponder literalmente à
realidade do espaço exterior, como em Kant, pois está “dentro de mim”,
apresenta-se assim explicitamente como metáfora. Representação metafórica
da própria beleza que, segundo Kant, é ela mesma metáfora da lei moral em
nós? Se seguimos esta pista interpretativa, devemos considerar que a forma
bela, simbolizada na própria forma do poema, não está fora, mas se encontra
numa espécie de gestação, e a interrogação assim se desloca: em gestação
“dentro” da criação poética ou do processo de leitura do poema?
Ou quem sabe, em sua imensidão infinita que aponta justamente para
os limites de nossa capacidade de pôr em imagem, talvez o estrelado céu
simbolize aqui mais propriamente a desmesura do sublime, que, ao mesmo
tempo, alimenta e coloca em xeque a força e o desejo de dar forma. Em todo
caso, o poema aponta o caráter fecundante da “dura lei”, isto é, da esfera da
liberdade, onde constelações são ideias.
Evocando discretamente o mito de Gaia e Uranos na inversão irônica
da frase de Kant, a poeta inventa uma afinidade entre as figuras da “dura lei”
e do “estrelado céu”, entre a liberdade que fecunda e a gestação que constitui
a fatura e a leitura do poema, ambas releituras.

ALEA | Rio de Janeiro | vol. 21/2 | p. 207-218 | mai-ago. 2019 PATRICIA LAVELLE | Poesia, mito e filosofia... 217
Referências

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Luiz Costa Lima. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2013.

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Kempf Editores, 1983.

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de Christian Berner) In: Ecrits sur l’art, Oeuves XII. Paris: Cerf, 1995.

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Tradução de Éric Dufour. In: Marc de Launay (org.) Néo-kantismes et théorie de
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FONTELA, Orides. Sobre poesia e filosofia – um depoimento. In: Castro, Gustavo


de. O Enigma Orides. São Paulo: Hedra, 2015.

GONÇALVES, Roberta Andressa Villa. Entre potência e impossibilidade: um estudo


da poética de Orides Fontela. Dissertação de mestrado defendida no Programa
de pós-graduação em Literatura Brasileira da USP.

HESÍODO. Théogonie. In: Théogonie, Les travaux et les jours, Le Bouclier. Ttradução
bilíngue de Paul Mazon. Paris: Les Belles Lettres, 2002.

KANT, Emanuel. Crítica da razão prática. Tradução e prefacio de Afonso Bertagnole.


Rio de Janeiro: Ebooks Brasil, 2004

KANT, Emanuel. Crítica da faculdade de julgar (tradução de Fernando Costa Mattos).


Petrópolis: Editora Vozes, 2016.

Patrícia Lavelle. É professora do Departamento de Letras da PUC-Rio, atuando no


Programa de Pós-graduação em Literatura, Cultura e Contemporaneidade. Doutora
em filosofia pela École des Hautes Études en Sciences Sociales de Paris, tem livros
de ensaios publicados na França e no Brasil e suas pesquisas problematizam as
relações entre criação literária e reflexão filosófica. Como poeta, publicou Migalhas
metacríticas (coleção megamíni, 7Letras, 2017), Bye bye Babel (7Letras, 2018) e,
com Paulo Henriques Britto, organizou O Nervo do poema – Antologia para Orides
Fontela (Relicário, 2018).
E-mail: patrícia.g.lavelle@gmail.com

Recebido em: 16/09/2018


Aceito em: 01/04/2019

218 PATRICIA LAVELLE | Poesia, mito e filosofia... ALEA | Rio de Janeiro | vol. 21/2 | p. 207-218 | mai-ago. 2019
COLONIALIDADE E ASSIMETRIA NOS

ARTIGO
CONTEXTOS SUL-AMERICANOS
DA LÍNGUA PORTUGUESA
COLONIALITY AND ASYMMETRY IN THE PORTUGUESE-
SPEAKING SOUTH AMERICAN CONTEXTS

Alexandre Montaury
ORCID 0000-0003-0590-9910

Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro


Rio de Janeiro, RJ, Brasil

Resumo
O presente texto tem como objetivo central desenvolver uma reflexão sobre
condições preliminares de análise do que poderiam algumas especificidades no
desenvolvimento das políticas coloniais portuguesas, presentes na experiência mais
antiga empreendida no Brasil e, mais recentemente, até o último quarto do século
XX, em países africanos. Inúmeras obras de ficção modernas e contemporâneas
focalizaram, direta ou indiretamente, as derivas de uma mentalidade colonial no
interior das ex-colônias portuguesas. A memória desta experiência, que implica regimes
tensos de coabitação epistêmica, têm sido identificada por parte da crítica como
um dos traços estruturantes da contemporaneidade. O artigo pretende identificar
algumas respostas que o campo literário tem procurado oferecer aos legados e às
heranças desta experiência, a partir de premissas teórico-metodológicas disponíveis
nos campos de estudos pós e de-coloniais.
Palavras-chave: Literatura, Colonialidade, Política, ficção moderna e contemporânea.

Résumé Abstract
Ce texte a pour objectif de développer This paper aims to prompt a reflection
une réflexion sur les conditions on preliminary conditions of analysis of
préliminaires d’analyse de ce que some specificities in the development
pourraient être certaines spécificités of Portuguese colonial policies, present
dans le développement des politiques in the oldest experience undertaken in
coloniales portugaises, présentes dans Brazil and, more recently, in the last
la plus ancienne expérience menée au quarter of the twentieth century, in
Brésil et, plus récemment, jusqu’au African countries. Numerous modern
dernier quart du XXe siècle, dans des and contemporary works of fiction have
pays africains De nombreuses œuvres focused, directly or indirectly, on the
de fiction modernes et contemporaines drift of a colonial mentality within the
se sont concentrées, directement ou former Portuguese colonies. The memory
indirectement, sur la dérive d’une of this experience, which implies tense

ALEA | Rio de Janeiro | vol. 22/1 | p. 47-58 | jan-abr. 2020 ALEXANDRE MONTAURY | Colonialidade e assimetria...

https://dx.doi.org/10.1590/1517-106X/20202214758
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mentalité coloniale au sein des anciennes regimes of epistemic cohabitation, has
colonies portugaises. Le souvenir de cette been identified by critics as one of the
expérience, qui implique des régimes structuring traits of contemporary times.
tendus de cohabitation épistémique, This article intends to identify the answers
a été identifié par les critiques comme that the literary field has tried to offer to
l’un des traits structurants de l’époque the legacy and heritage resulting from
contemporaine. L’article vise à identifier this experience, based on theoretical and
certaines des réponses que le domaine methodological premises available in the
littéraire a tenté d’apporter aux héritages post and de-colonial fields of study.
de cette expérience, à partir des prémisses
Keywords: Literature, Coloniality,
théoriques et méthodologiques
Politics, Modern and Contemporary
disponibles dans les domaines d’étude
Fiction
post et décolonial.
Mots-clés : Littérature, colonialité,
politique, fiction moderne et
contemporaine

Estamos todos, hoje, na decorrência de uma colonização que foi dando


sumiço àqueles que da maneira como viviam não tinham maneira de resistir,
servimo-nos da mesma língua oficial, invocamos lusofonias de hoje que já
foram lusotropicalismos antes, somos todos do hemisfério sul, com a cor
geopolítica comum que isso comporta, e temos negócios correntes, estamos
vivendo tempos comuns e tempos diversos do mesmo processo universal,
global (CARVALHO, 2006, p. 251).

A epígrafe que abre este texto foi selecionada por condensar tópicos que,
em linhas gerais, pavimentam o horizonte de interesses em que se insere o plano
de estudos que tenho empreendido. Foi extraída do livro Desmedida – Luanda,
São Paulo, São Francisco e volta: crônicas do Brasil1, do escritor angolano Ruy
Duarte de Carvalho, que operou um singular esforço analítico-narrativo dos
processos históricos, culturais e políticos que marcaram duas sociedades – a
angolana e a brasileira –, formadas no interior da tradição colonial portuguesa
e inscritas, em temporalidades heterogêneas, no contexto mais amplo da
modernidade ocidental. A premissa fundamental do seu texto é a de que esta
condição de fundo, forjada no binômio colonialidade-modernidade, deu forma
a um campo cultural específico, inscrito na evidência de uma experiência
histórica comum – a colonização portuguesa –, que, na contemporaneidade,
revelaria ainda “continuidades e contiguidades” (CARVALHO, 2006, p. 19),
ou seja, derivações simbólicas das visões coloniais de mundo.

1 Carvalho, Ruy Duarte de. Desmedida: Luanda, São Paulo, São Francisco e volta. Lisboa: Cotovia,
2006.

48 ALEXANDRE MONTAURY | Colonialidade e assimetria... ALEA | Rio de Janeiro | vol. 22/1 | p. 47-58 | jan-abr. 2020
Para o arco argumentativo que buscarei descrever, é fundamental
considerar que em todos os espaços da língua portuguesa, o binômio
colonialidade-modernidade produziu linhas divisórias e “abissais”2, baseadas
em clivagens epistemológicas3. Ao hierarquizar sistemas culturais, esse binômio
induziu a sedimentação de paradigmas que inferiorizaram as formas de vida
não integradas aos modelos europeus de civilização. Em outras palavras,
as formas hegemônicas de vida, orientadas por paradigmas eurocentrados
e legitimadas por formas de produção e de conhecimento consideradas
superiores, destacaram-se diante de formas tradicionais de vida, baseadas
em experiências e práticas não-europeias. As racionalidades gestadas em
mundividências do sul, baseadas em cosmovisões e universos simbólicos
próprios, foram sistematicamente identificadas como culturas do atraso a
serem corrigidas nos processos civilizatórios da modernidade colonial.
Em A sociedade contra o Estado (1974), o antropólogo francês Pierre
Clastres identificou algumas das perplexidades que marcaram o encontro
entre o colonizador europeu e as sociedades tradicionais sul-americanas. Entre
elas, chama a atenção que a percepção então vigente acerca das sociedades
primitivas pressupunha a noção de uma temporalidade específica; estariam
essas à margem da história universal, como “sobrevivências anacrônicas de uma
fase distante e, em todos os lugares, há muito ultrapassada?” (CLASTRES,
1974, p. 35)

Reconhece-se aqui a outra face do etnocentrismo, a convicção complementar


de que a história tem um sentido único, de que toda sociedade está condenada
a inscrever-se nessa história e a percorrer as suas etapas que, a partir da
selvageria, conduzem à civilização4. (CLASTRES, 1974, p. 35)

O projeto de pesquisa que tenho desenvolvido desde 2014 é um dos


subsídios relevantes para a elaboração deste ensaio, pois, em suas diferentes
etapas, temos buscado empreender esforços suplementares de depuração
teórico-metodológica da pesquisa, buscando, simultaneamente, um permanente
alargamento do corpus literário de pesquisas anteriores. A premissa central
de que se parte é a de que as visões coloniais de mundo, nas palavras do
sociólogo português Boaventura de Sousa Santos, “permanecem constitutivas
das relações políticas e culturais excludentes mantidas no sistema mundial

2 Expressão empregada por Boaventura de Sousa Santos em seu artigo “Para além do pensamento
abissal: das linhas globais a uma ecologia dos saberes”. Novos estudos, CEBRAP, número 70, São Paulo,
novembro de 2007.
3 Em linhas gerais, neste breve texto os conceitos de episteme e epistemologia compreendem o conjunto
de fundamentos que determinam formas específicas de conhecimento, de produção de saberes e de visões
específicas de mundo.
4 Clastres, Pierre. La societé contre l’État: Recherches d’anthropologie politique Paris: Editions Minuit, 1974.

ALEA | Rio de Janeiro | vol. 22/1 | p. 47-58 | jan-abr. 2020 ALEXANDRE MONTAURY | Colonialidade e assimetria... 49
contemporâneo” (SANTOS, 2007, p. 71). Em outras palavras, pretende-se
considerar o pressuposto de que o fim do colonialismo político não representou
o fim de práticas simbólicas estreitamente identificadas com o colonialismo.
Segundo o pesquisador peruano Aníbal Quijano, “a globalização em curso é,
antes de tudo, a culminação de um processo que começou com a constituição
da América e do capitalismo colonial/moderno e eurocentrado como um
novo padrão de poder mundial” (QUIJANO, 2005, p. 117).
A expansão ocidental e a sua principal condição de possibilidade, o
colonialismo político, foram além de um empreendimento administrativo
criado para assegurar a transferência de renda das colônias para a metrópole
e fomentar, assim, o desenvolvimento industrial europeu. A produção de
uma assimetria de fundo, estruturante das relações entre metrópole e colônia,
justificava a transferência – em sentido inverso, para espaços “incultos”,
aparentemente condenados ao déficit de civilização e ao “estado de natureza” –
de discursos de matriz europeia dotados de uma visão moderna e supostamente
superior de mundo. Baseada numa inculcação epistemológica na qual o campo
literário desempenha um papel determinante, as exigências da modernidade
europeia impuseram o transplante de formas culturais hegemônicas para os
espaços coloniais, moldando, em particular, aquelas que, no escopo deste
texto, se situam nos continentes sul-americano e africano.
As transições políticas pautadas pelo uso público da razão foram
parcialmente assimiladas em Portugal e condicionadas por alguma defasagem
cultural e política em relação ao centro da Europa. Ao mesmo tempo, os corpos
políticos mantidos sob a colonização portuguesa, radicalmente fragmentados,
assimilavam epistemes europeias impostas ao abrigo de eficientes engrenagens
discursivas, na órbita de um sentido metafísico e identitário da comunidade.
No estágio de desenvolvimento da pesquisa atual, é possível afirmar que a
minuciosa análise de dispositivos institucionais5 portugueses permite conhecer
a inoculação compulsória das noções clássicas de estado, de justiça e de
bem comum em contextos comunitários fraturados e desiguais. A partir
do pressuposto de que o campo literário (a produção e a crítica) respondeu
sistematicamente às marcas de uma desigualdade de fundo, tenho buscado
analisar respostas formuladas no interior do corpus literário selecionado para a
pesquisa, ao quadro de desnivelamento nas almas e nos corpos de “além-mar”,
expostos a tradições sociais violentas e forjados em contextos de opressão
colonial. Para oferecer alguns exemplos, citaria o romance A selva, do escritor

5 Para oferecer alguns exemplos, é possível citar a Constituição Portuguesa de 1931, o “Acto Colonial,
de 1930”, o “Estatuto dos Indígenas Portugueses das Províncias da Guiné, Angola e Moçambique”, de
1961, os decretos que estabelecem a Assimilação Cultural, a criação de Prêmios literários coloniais pela
Agência Geral das Colônias, entre muitos outros dispositivos discursivos que trataram de definir um
rigoroso controle que evitasse “a corrupção dos costumes”.

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português Ferreira de Castro, publicado em 1930, e Desmedida: Luanda,
São Paulo, São Francisco e volta, do escritor luso-angolano Ruy Duarte de
Carvalho, publicado em 2006, para apenas afirmar que as respostas literárias
aos diferentes quadros de assimetrias, formados na sequência de uma brutal
experiência colonial, não é de hoje. Esses são apenas alguns exemplos de
narrativas que inscrevem na ordem do visível a singular coabitação de formas
minoritárias de vida com a lógica colonial.
Nos limiares culturais da língua portuguesa, essas interações,
materializadas como sistemas heterogêneos de produção da vida, mobilizaram
conjuntos de imagens e de objetivações que instruíram a formação de literaturas
nacionais. Nelas, o acentuado contraste entre a formação de comunidades
integradas à ordem moderna colonial e a formação de imunidades, fraturadas
pela subalternidade, produziu um quadro visível, marcado por profundas
diferenças, estruturantes de uma parte importante da produção literária como
imaginação “epistêmica”.
Neste sentido, como resultado parcial de um projeto de pesquisa mais
amplo, busca-se uma sistematização teórico-metodológica preliminar das
especificidades coloniais, anticoloniais, pós-coloniais e de-coloniais, tal como se
materializam no universo cultural da língua portuguesa, de modo a contribuir
com os estudos comparativos desenvolvidos neste campo de investigação. A
partir dos sinais6 emitidos a partir de 1930 nos campos literários da língua
portuguesa serão examinadas formas de “continuidade e de contiguidade”
das experiências da comunidade e da imunidade.

Epistemologias de fronteira e o imaginário das ausências


Para uma breve análise, proponho relembrarmos as miríades de textos
produzidos no século XX que buscaram privilegiar ângulos alternativos e
significativos que, uma vez inscritos no campo literário, também permitiram
iluminar a interpretação de fatos históricos relevantes, em diferentes
perspectivas.
Esses prismas alternativos emergem do que consideramos, com
Boaventura de Sousa Santos, o “imaginário das ausências”, radicado no
esquecimento compulsório do lugar do outro, ou, para ainda citar Michel
Foucault, das “heterotopias de desvio”7. Os povos da floresta, presentes nas
obras de Antonio Callado, Milton Hatoum ou Bernardo Carvalho, assim

6 Ginzburg, Carlo. Mitos, emblemas e sinais. Trad.: Federico Carom São Paulo, Cia das Letras, 1990. Neste
livro, Carlo Ginzburg propõe o paradigma indiciário como categoria de análise. Trata-se de um conjunto
de princípios e de procedimentos que contêm a proposta de um método centrado no detalhe, nos dados
marginais, nos resíduos tomados enquanto pistas, indícios, sinais, vestígios ou sintomas.
7 Foucault, Michel. “Outros espaços”. In: Ditos e escritos. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2000.
v. 3, p.115.

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como os pastores nômades do Kuvale, em Angola, decisivos em toda a obra de
Ruy Duarte de Carvalho, ou mesmo os camponeses de Pepetela, mais do que
formas minoritárias de vida, identificadas no interior das culturas de língua
portuguesa, constituem paisagens humanas tradicionais, que foram capazes
de sobreviver aos vetos à diferença e a “direitos epistêmicos”, à margem das
institucionalidades oficiais. Não se trata de uma salvação; trata-se, antes, de
recomeços, de rexistência, no sentido utilizado pelo antropólogo Eduardo
Viveiros de Castro.
Associados aos damnés, na terminologia de Frantz Fanon, esses e
inúmeros grupos sociais – que, em sentido ainda mais abrangente, ainda
poderiam compreender os “capitães de areia”, de Jorge Amado, ou os sertanejos
de Guimarães Rosa, os seringueiros de Ferreira de Castro, os “plantadores de
arroz do Alentejo” do escritor neorrealista português Alves Redol. São miríades
de personagens e narrativas que apresentam uma instrução fundamental
acerca dos contextos da língua portuguesa: eles se formam a partir de uma
coabitação epistêmica estruturante, que mescla paradigmas europeus, visões
ameríndias e africanas de mundo. O argumento central deste texto baseia-se
na premissa de que a dimensão policêntrica de um mundo em que “muitos
mundos podem coexistir” (MIGNOLO, 2008, p. 296) e afirma-se em
inúmeros textos literários produzidos em língua portuguesa a partir dos
anos 1930. Mesmo quando surgem no agenciamento das racionalidades
hegemônicas, isto é, mesmo quando ativadas como objeto exótico, as imagens
e as práticas ficcionais podem desocultar formas de vida e de racionalidade
marcadas, na modernidade ocidental, por uma subalternidade epistêmica
construída lentamente, ao longo dos séculos. Para o pesquisador argentino,
Walter Mignolo, em sua defesa da opção descolonial, esta clivagem produziu
o apagamento das formas afro-escravizadas de vida, o que também toca o
emprego violento da força indígena de trabalho na formação de uma economia
capitalista através da expansão imperial do ocidente. Segundo o paradigma
hegemônico, trata-se de tornar invisível a

perspectiva da maioria das pessoas do planeta cujas vidas foram declaradas


dispensáveis, cuja dignidade foi humilhada, cujos corpos foram usados como
força de trabalho [...]. Essa é a opção descolonial que alimenta o pensamento
descolonial ao imaginar um mundo no qual muitos mundos podem coexistir
(MIGNOLO, 2008, p. 296).

Neste sentido, torna-se fundamental identificar e analisar a formação


de epistemologias de fronteira, a partir da noção de uma consciência mestiça,
vivida e experimentada na consciência de um universo cultural marcado
pela complexidade epistemológica. Para citar o crítico Antonio Cândido, a

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existência de uma “sociedade parcial dotada de cultura parcial” (CÂNDIDO,
1964, p. 8), híbrida, decorrente de pertenças compartilhadas e nascidas da
coabitação entre valores tradicionais e valores urbanos permite considerar
os estudos pós-coloniais, e de-coloniais, para avançar na detecção de uma
zona de mesclagens, onde as práticas simbólicas de grupos minoritários são
parcialmente apropriadas pelas culturas comunitárias. O reconhecimento
efetivo da sobrevivência de grupos culturais, especialmente de matriz africana
ou ameríndia, permitirá avançar na perspectiva das formas de inserção e
de interação entre diferentes sistemas culturais, de maneira a relativizar a
dimensão endógena de suas formações.

Comunidade e colonialidade:
Nos campos culturais da língua portuguesa, a afirmação de uma unidade
linguística e de uma comunhão de experiências históricas, baseadas em regimes
de trocas e apropriações, ajudou a definir paisagens comuns, ao mesmo
tempo em que sedimentou ou distorceu escalas de valores eurocentrados
em contextos não-europeus. A partir dos anos 1940, a produção literária,
nas variantes africanas da língua portuguesa, pôs em cena uma sistemática
interrogação dos processos de assimilação cultural, de punições violentas, de
imposições coloniais, aprofundando uma sensibilidade anticolonial que foi
radicalizada nas décadas posteriores. Neste aspecto, é inevitável referir aos
escritores angolanos que, como intelectuais, operaram no campo ficcional uma
estratégia de barragem às práticas e às linguagens do comum, tal como eram
definidas segundo a agenda do colonialismo português. Duas décadas depois
das independências, foram formalizados os fundamentos que estruturam a
constituição jurídica da CPLP (Comunidade dos Países de Língua Portuguesa),
em 1996; a assinatura do Acordo Ortográfico, vigente desde janeiro de 2012,
com o propósito de reforçar sentidos de comunidade em contextos englobantes
e heterogêneos e, finalmente, as exigências mais recentes, associadas às leis
10.639 (2003) e 11.645 (2008), que passam a exigir a obrigatoriedade da
inclusão do estudo da história e da cultura afro-brasileira e indígena nos
currículos oficiais das redes nacionais de ensino.
Um dos pilares de sustentação das políticas coloniais portuguesas
foi o princípio da unidade comunitária, que corresponde ao projeto de
constituição de um comunitarismo identitário, metafísico e transcendente,
baseado em uma “mútua pertença” que se espalhava “do Minho ao Timor”.
Nos espaços africanos subjugados pela lógica colonial portuguesa, a opressão
dos indivíduos era dissimulada por políticas oficiais que, numa linguagem
jurídica e institucional, e através de campanhas publicitárias, ofereciam a
assimilação cultural como uma via de acesso ao pertencimento comunitário.

ALEA | Rio de Janeiro | vol. 22/1 | p. 47-58 | jan-abr. 2020 ALEXANDRE MONTAURY | Colonialidade e assimetria... 53
Revestido por um discurso de conciliação com as práticas coloniais, nos
termos do lusotropicalismo brasileiro (1940)8, o colonialismo português
ativou, nos espaços africanos, uma retórica eficiente que exaltava os brandos
costumes de uma nação pluricultural, plurirracial e pluricontinental. Uma coesa
engrenagem discursiva tratava de celebrar uma dádiva prévia, um dom que
a democracia racial e a civilização mestiça portuguesa prometiam nos espaços
ultramarinos: a integração harmônica entre as formas minoritárias de vida e as
expectativas de uma modernidade portuguesa. Os administradores dos postos
coloniais em Angola e em Moçambique eram responsáveis por atestar que as
práticas simbólicas e culturais de um indivíduo candidato à assimilação eram
“compatíveis com a moral e com os ditames da humanidade”9; em outras
palavras, um indivíduo até podia se tornar um assimilado se fosse capaz de
renunciar à sua tradição cultural própria. Entretanto, a adoção dos modos
de vida europeus não assegurava direitos iguais a todos. O uso da língua
portuguesa, os modos de viver e de vestir, entre outros, eram determinantes
para a definição dos lugares sociais a serem ocupados pelos “assimilados”10.
Tratava-se de promover, nas sociedades africanas, a inoculação compulsória de
valores forjados no regime colonial europeu e, ao mesmo tempo, de hierarquizar
racionalidades distintas, apagando as práticas tradicionais identificadas com
o atraso.
Neste contexto, a literatura moderna, em todas as suas variantes
linguísticas, atuou ora na fabricação de uma atmosfera propensa à ideia
de comunidade, ora na insurgência contra esta hegemonia comunitária.
Em síntese, na sua tradição mais ou menos canônica, a produção literária
funcionou, de um lado, como usina de senso comum, integrada às racionalidades
hegemônicas, e, de outro, produziu profundas imunidades ao centro irradiador
das visões modernas de mundo. Neste campo de negações e negociações, a
noção teórica de comunidade permitiu a identificação da falência dos projetos
de comunidades identitárias que enformaram grande parte da experiência da
modernidade colonial, norteando, ao mesmo tempo, as derivas simbólicas e
culturais que permanecem presentes no contemporâneo.

8 Em Casa-grande & senzala (1933); O mundo que o português criou (1940) e “Uma cultura moderna:
a luso-tropical”, entre outros textos, o sociólogo brasileiro Gilberto Freyre desenvolveu a teoria luso-
tropicalista, para, de modo geral, tratar da especificidade do colonialismo português, modalizando a
violência das práticas coloniais portuguesas no Brasil.
9 Cf. Artigo 22º. Do Acto Colonial de 1930. Consulta em 22 de junho de 2017. Disponível em: http://
www.parlamento.pt/Parlamento/Documents/acto_colonial.pdf
10 Ver o documentário. “O colonialismo português em África: multiculturalismo”, produzido pela Rede
de Televisão Portuguesa (RTP). Consulta em 18 de junho de 2019. Consulta em 29 de junho de 2019.
Disponível em https://www.youtube.com/watch?v=6pOItIQYBO4.

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Conclusão
Retomo, apenas à guisa de conclusão, duas objetivações literárias
já citadas para lembrar a leitura que os escritores Ferreira de Castro e Ruy
Duarte de Carvalho propõem para a constituição assimétrica do Brasil, em
coerência com o seu passado colonial.
No romance de Ferreira de Castro, a paisagem funciona como elemento
central que desencadeia um conjunto de percepções acerca da memória
colonial. Nos textos que introduzem o romance, o escritor afirma claramente o
seu projeto de reconstituir no terreno da ficção a experiência de sua juventude,
em parte vivida na região amazônica, no coração de uma “selva misteriosa e
implacável” (FERREIRA DE CASTRO, 1982, p. 15). O autor propõe entregar
ao leitor uma espécie de testemunho, em primeira pessoa, “pelo muito que
nela sofri” (FERREIRA DE CASTRO, 1982, p. 15), e, com isto, cerca o
texto de referencialidades que, logo a abrir o texto, conferem tangibilidade e
verossimilhança aos percursos inscritos na estrutura narrativa.
No decorrer do romance, vemos o personagem Alberto percorrer as
estradas líquidas da Amazônia até se fixar no seringal Paraíso, localizado, nas
primeiras décadas do século XX, em uma das margens do rio Madeira. Por
intermédio do tio e de um encarregado do seringal, o personagem, diante
de um quadro de profunda escassez de trabalho na região de Belém do Pará,
vê-se aceito para ingressar no sistema produtivo da borracha sem ter noção
da especificidade de sua inserção. Assim, sem saber bem o que esperar deste
trabalho, aceita embarcar, a bordo do Justo Chermont em direção ao seringal
e, com isto, se desloca para o interior de uma das mais “densas solidões do
mundo” (FERREIRA DE CASTRO, 1982, p. 15).
Na experiência concreta da paisagem, as imagens idílicas, literárias,
associadas ao mito do paraíso terreal, que compreende a grandeza e a riqueza
do novo mundo, adquirem maior densidade e são radicalmente transfiguradas
pelo olhar de Alberto. Em inúmeros momentos na narrativa, a viagem
anterior dos descobrimentos, assentada nas promessas de expansão da fé e
do império, se torna uma “quimera”, assim como o tão celebrado exotismo,
agora transfigurado em “espectro de pesadelo”:

Evocado dali, Portugal era uma quimera, não existia talvez. Pequeno e lá longe,
os que o levavam na memória não estavam certos se viviam em realidade ou
se sonhavam com as narrações dos que tinham voltado das descobertas. [...]
Eles seriam, porventura, uma alucinação sobrevivente de alguém que morrera
pensando em fábulas bíblicas, em mundos pré-históricos, e, quando menos o
esperassem, desvanecer-se-iam totalmente, como espectros de pesadelo. Só o
perigo, mais temido do que em outra parte, por usar máscaras desconhecidas,
os reconduzia à realidade, humanizando-os ante eles próprios (FERREIRA
DE CASTRO, 1982, p. 47).

ALEA | Rio de Janeiro | vol. 22/1 | p. 47-58 | jan-abr. 2020 ALEXANDRE MONTAURY | Colonialidade e assimetria... 55
Ao mesmo tempo em que “o perigo [...] os reconduzia à realidade,
humanizando-os ante eles próprios”, a paisagem passa a remeter para os resíduos
e os rastros deixados na selva amazônica pelos colonizadores portugueses. Sob
os olhos de Alberto, a toponímia aproximava as cidades brasileiras – Santarém,
Alenquer, Óbidos, Borba e Faro – e as cidades portuguesas. Contudo, esta
familiaridade insinuada ao longo do percurso e “a subida, quinze dias bem
puxados de Belém ao Paraíso” (FERREIRA DE CASTRO, 1982, p. 57),
já não causa estranhamento pela desproporção das escalas dimensionais;
mas, antes, converte-se num estranhamento mais profundo, umas vez que
as cidades brasileiras, apesar de guardarem os topônimos europeus, em nada
se pareciam com cidades portuguesas:

Alberto surpreendia-se ante a prodigalidade com que os homens do mando


distribuíam categorias: qualquer daquelas cidades, embora simpáticas na sua
modéstia, não igualava sequer uma vila da Europa. As ruas estavam forradas
de capim e não era difícil contar, por maioria, as casas cobertas de folhas de
palmeira. “Cidade por quê?”. Erro grosseiro dos colonizadores portugueses
[...] (FERREIRA DE CASTRO, 1982, p. 67).

Neste ponto, parece possível perceber que o texto de Ferreira de Castro


não apenas descortina a paisagem amazônica, mas, sobretudo, oferece a visão
de mundo do observador. O assombro que assalta o personagem – e também
o narrador – surge nos pontos centrais da narrativa para revelar os valores e os
pressupostos cognitivos de um jovem monarquista português, ao contato de
uma realidade inteiramente diversa da sua, dotada de racionalidades próprias e
de uma cosmovisão alternativa. A impossibilidade de o personagem Alberto ler
a complexidade daquela paisagem, ao mesmo tempo em que nela é inserido,
parece ser uma das linhas de força que sustentam a narrativa.
É também de uma viagem que trata o livro Desmedida: Luanda, São
Paulo, São Francisco e volta, de Ruy Duarte de Carvalho. Neste texto, chama
a atenção que, logo nas primeiras páginas do livro, a paisagem seja a de uma
fazenda de café localizada no interior paulista, onde o narrador ironicamente
se coloca em diálogo com “duas senhoras paulistanas, sentado à mesa delas
numa soberba fazenda de café do interior paulista...” (CARVALHO, 2006,
p. 18) para associar, de forma sutil, a associação entre a elite cafeeira paulista
e os modernistas dos anos de 1920, através da figura de Blaise Cendrars.
Na narração do livro, o escritor é caracterizado como “poeta amputado pela
Primeira Guerra Mundial e aventureiro, brilhante e de cigarro, sempre, no
canto esquerdo da boca”. Na imaginação do narrador estaria a jantar em uma
sala colonial, “tão extensa e por certo tão antiga como esta, porém numa
fazenda então praticamente abandonada pela proprietária, ausente durante
mais de duas décadas, na França” (CARVALHO, 2006, p. 28).

56 ALEXANDRE MONTAURY | Colonialidade e assimetria... ALEA | Rio de Janeiro | vol. 22/1 | p. 47-58 | jan-abr. 2020
a sala muito extensa e iluminada, de pé-direito altíssimo e de um arranjo que
restaurava uma construção por certo muito antiga até, mas muito ao gosto
da arquitetura e da decoração restauratórias de agora. [...] e à volta havia
mulheres a servi-los, negras e mulatas, algumas nascidas ainda no tempo
da escravatura. Porque tudo isso se passava nos anos 20 do século passado,
depois de uma viagem transatlântica que tinham feito juntos, com início em
Bolonha e apontada ao porto cafeeiro de Santos (CARVALHO, 2006, p. 28).

No século XX, o neorrealismo português e o regionalismo brasileiro


desempenharam um papel decisivo nas demarcações de uma condição comum.
Inúmeros escritores portugueses, brasileiros, angolanos e moçambicanos
operaram, no campo da ficção, um esforço de desocultação das práticas
culturais e simbólicas solapadas pelas forças do poder hegemônico. No
período, o campo literário assumiu grande protagonismo no combate
travado pelas instâncias do imaginário. Neste ponto, é claro que a prática
literária desempenhou um papel relevante e os escritores, poetas e intelectuais
protagonizaram, muitas vezes, o combate, sendo reconhecidos como inimigos
de guerra11, cuja atuação nas disputas pelo imaginário mostrava-se inseparável
de suas atividades eficientes de defesa, de imunização relativa aos discursos
do poder colonial. Em meio a prisões e outras tentativas de silenciamento
de suas narrativas imunitárias, o campo literário desarquivou, iluminou e
revelou a existência de “corpos alternativos”, que não se harmonizavam com
a lógica do desenvolvimento ocidental ditada em Portugal, assimilada no
sudeste brasileiro e imposta às colônias africanas.
As narrativas literárias passam a inscrever, nos regimes de visibilidade,
práticas simbólicas que enformam o cotidiano marcado pela exclusão dos
valores da racionalidade e da modernidade colonial12. Neste sentido, a literatura
atua como um espaço de deslocamento estratégico, que permite a captação
e a apreensão de imaginários que podem operar estruturas não hegemônicas
de conhecimento.

11 Alguns exemplos deste protagonismo são o poeta angolano Agostinho Neto, o cabo-verdiano Amílcar
Cabral, os escritores José Luandino Vieira, Luís Bernardo Howana, Jorge Amado, entre outros.
12 Nesta perspectiva, não é possível negligenciar o fato de que, no Brasil, em 1967, a publicação do
romance Quarup, de Antonio Callado, também revelou, na ficção, os impasses associados à criação do
parque nacional do Xingu, às revoltas camponesas em meio a um contexto de violência e de um poder
autoritário oficial. Poucos anos depois, o antropólogo Darcy Ribeiro publicou o romance Maíra (1976),
fortalecendo uma linhagem narrativa que, de Milton Hatoum a Bernardo Carvalho, deu sequência às
preocupações “imunitárias” em face das racionalidades hegemônicas da modernidade.

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Referências
AMADO, Jorge. Capitães de areia. São Paulo: Martins, 1961.

CARVALHO, Ruy Duarte de. Desmedida: Luanda, São Paulo, São Francisco e volta.
Lisboa: Cotovia, 2006.

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Alexandre Montaury Baptista Coutinho. Doutor em Letras (2004) pela Pontifícia


Universidade Católica do Rio de Janeiro. Atua no Programa de Pós-Graduação em
Literatura, Cultura e Contemporaneidade do Departamento de Letras da mesma
universidade, onde desempenha a função de diretor. Bolsista de produtividade do
CNPq (PQ-2) e Cientista do Nosso Estado (2018-2020) da FAPERJ.
E-mail: alexandre.montaury@gmail.com

Recebido em: 15/09/2019


Aceito em: 30/10/2019

58 ALEXANDRE MONTAURY | Colonialidade e assimetria... ALEA | Rio de Janeiro | vol. 22/1 | p. 47-58 | jan-abr. 2020
DECOLONIALIDADE, LUGAR DE FALA

ARTIGO
E VOZ-PRÁXIS ESTÉTICO-LITERÁRIA:
REFLEXÕES DESDE A LITERATURA
INDÍGENA BRASILEIRA
DECOLONIALITY, STANDPOINT OF SPEAK AND
AESTHETICAL-LITERARY VOICE PRAXIS: REFLECTIONS FROM
THE PERSPECTIVE OF INDIGENOUS BRAZILIAN LITERATURE

Leno Francisco Danner1


ORCID 0000-0002-2332-3182

Julie Dorrico2
ORCID 0000-0002-5428-2432

Fernando Danner1
ORCID 0000-0002-4541-1204

1
Universidade Federal de Rondônia
Porto Velho, RO, Brasil

2
Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul
Porto Alegre, RS, Brasil

Resumo
Argumentaremos, por meio da análise da literatura produzida por intelectuais indígenas
brasileiros/as hodiernos/as, acerca da centralidade do lugar de fala das minorias em
termos de crítica, reconhecimento e resistência. Enfatizaremos a imbricação e o sustento
entre epistemologia e política que convergem e aparecem diretamente no sujeito-
grupo menor. Sua singularidade antropológica e sua condição de marginalização,
exclusão e violência, uma vez publicizadas política e culturalmente, implicam na
desnaturalização e na politização da sociedade, pluralizando histórias, experiências,
sujeitos, práticas e valores. Assim, no sujeito-grupo de minorias, converge o próprio
processo histórico-político de formação da sociedade, em suas potencialidades e
contradições. É aqui que a voz-práxis estético-literária das minorias adquire toda a
sua pungência e, por meio da abertura paradigmática possibilitada pela arte, leva a
uma perspectiva de descolonização da cultura e de descatequização da mente que
gera crítica social acentuada e reflexividade política intensificada.
Palavras-Chave: Decolonialidade, Lugar de Fala, Minorias, Indígenas, Voz-Práxis.

ALEA | Rio de Janeiro | vol. 22/1 | p. 59-74 | jan-abr. 2020 DANNER et al. | Decolonialidade, lugar de fala...

https://dx.doi.org/10.1590/1517-106X/20202215974
59
Resumen Abstract
Discutiremos, a través del análisis Based on an analysis of contemporary
de la literatura producida por los Indigenous Brazilian literature, we will
intelectuales indígenas brasileños de discuss the centrality of the minorities’
hoy, sobre la centralidad del discurso standpoint of speech in terms of
minoritario en términos de crítica, criticism, recognition and resistance. We
reconocimiento y resistencia. Daremos will highlight the interconnection and
énfasis a la imbricación y al suporte interdependence between epistemology
entre epistemología y política que and politics that converge and appear
convergen y aparecen directamente en directly in the minority subject/group.
el sujeto-grupo menor. Su singularidad Its anthropological singularity and
antropológica y su condición de condition of marginalization, exclusion
marginación, exclusión y violencia, una and violence once publicized politically
vez publicadas política y culturalmente, and culturally, imply the denaturalization
llevan a la desnaturalización y politización and politicization of society, pluralizing
de la sociedad, pluralizando historias, histories, experiences, subjects, practices
experiencias, sujetos, prácticas y valores. and values. Therefore, in the minority
Así, en el sujeto-grupo de minorías, subject/group converges the very
converge el proceso histórico-político historical-political process of formation
de formación de la sociedad, en sus of society, with its potentialities and
potencialidades y contradicciones. Es aquí contradictions. It is here that the
donde la praxis estético-literaria de las minorities’ aesthetical-literary voice praxis
minorías adquiere toda su dramaticidad acquires full poignancy and, by means of
y, a través de la apertura paradigmática the paradigmatic openness that art affords,
posible por el arte, conduce a una it leads to a perspective of decolonization
perspectiva de descolonización de la of culture and de-catechization of mind
cultura y descatequización de la mente that generate increasing social criticism
que genera una crítica social acentuada and intensified political reflexivity.
y una reflexividad política intensificada.
Keywords: Decoloniality, Standpoint
Palabras-Clave: Decolonialidad, Lugar of Speech, Minorities, Indigenous,
de Habla, Minorías, Indígenas, Voz- Voice-Praxis.
Práxis.

60 DANNER et al. | Decolonialidade, lugar de fala... ALEA | Rio de Janeiro | vol. 22/1 | p. 59-74 | jan-abr. 2020
O índio que se conhece até hoje, nestes últimos 500 anos, é o índio teatralizado.
Infelizmente, para a maior parte da população brasileira, o índio é um
personagem, não existe de fato (WERÁ, 2017, p. 101).

Pois, se há uma certa unanimidade entre os indígenas, é de que já chega de


tanta gente falando pela gente. O que a gente quer é esse espaço da fala. Já
passou da hora de falar. E existe hoje uma chance real de nos apresentarmos
com dignidade para a sociedade. E o próprio argumento nosso, de que não
somos apresentados devidamente, tem de ser combatido com uma apresentação
própria, devida (ESBELL, 2018, p. 47).

No presente artigo discorremos, a partir do estudo da produção estético-


literária de intelectuais indígenas brasileiros/as, sobre o que consideramos
ser a maior inovação dos estudos coloniais, pós-coloniais ou decoloniais
contemporâneos, a saber, a própria constituição de uma voz-práxis direta,
carnal, política e politizante, assumida por esse mesmo indivíduo-grupo
marginalizado como base da reafirmação de sua identidade antropológico-
cultural e, como condição para isso, de seu ativismo público-político. Nesse
sentido, é o próprio indivíduo-grupo marginalizado, tornado menor em termos
da colonização, produzido por ela, e em geral representado tecnicamente
por um sujeito político-epistêmico extemporâneo, que constrói teoria sobre
si e sobre a sociedade em que está inserido, ligando-a diretamente a uma
práxis altamente política, baseada em sua singularidade antropológica e em
sua condição de marginalização, de exclusão e de violência. É esta situação
como singularidade e essa condição como vítima, suas experiências, histórias
e motivações por reconhecimento, justiça e politização, que o levam a uma
luta identitária que tem na crítica social e na desnaturalização-politização
da sociedade, de suas instituições, de seus sujeitos e de suas histórias, o
núcleo constitutivo, estruturante e dinamizador. Ao fazer isso, o sujeito-
grupo produzido e justificado como menor permite a imbricação e o mútuo
sustento de teoria e prática, a partir uma perspectiva autoral, autobiográfica,
testemunhal e mnemônica, que transita das margens para o centro epistêmico-
político, que confere prioridade às experiências subalternas como fundamento
da crítica, do reconhecimento, da inclusão, do ativismo e da educação, para
além das mediações institucionalistas, cientificistas e tecnicistas em termos
de neutralidade, imparcialidade, impessoalidade e formalismo metodológico-
axiológicos.
Nosso argumento central, de que o lugar de fala das minorias político-
culturais, em termos de crítica, reconhecimento, participação, inclusão e
educação, é insubstituível e irrepresentável, levando à descolonização e à
descatequização da cultura, aponta para dois núcleos centrais, no texto.

ALEA | Rio de Janeiro | vol. 22/1 | p. 59-74 | jan-abr. 2020 DANNER et al. | Decolonialidade, lugar de fala... 61
O primeiro está em que o sujeito de minorias, dada sua singularidade
antropológica e sua condição de colonizado, correlaciona epistemologia e
política sob a forma de ativismo dito e feito em termos de eu-nós ao mesmo
tempo teorizante de si, militante sobre si, estetizante de sua condição. Ele é a
própria teoria e a própria práxis em ação, vivas, pungentes, testemunhas da
marginalização e da violência, porque a viveu na alma e no corpo, na pele
e na mente. Segundo, seu aparecimento na esfera pública e sob a forma de
sujeito político-cultural militante – e as minorias sempre são militantes –
leva à desnaturalização da cultura e à descatequização da mente, politizando
a história nacional por meio da pluralização dos sujeitos, das histórias, das
experiências, das práticas e dos valores deslegitimados e denegridos pela
colonização. Desse modo, no caso dos/as intelectuais indígenas brasileiros,
a promoção do ativismo estético-político traz à tona, à luz do dia, o sujeito
indígena marginalizado que, por meio desse ativismo amplo possibilitado pela
arte de um modo geral e pela literatura em particular, busca o diálogo com
a sociedade envolvente e, aqui, a construção de uma nova história, de uma
nova política, de uma nova cultura que têm nas experiências e na condição
de violência simbólico-material por eles/as vividas, o ponto normativo básico
da crítica, da reflexividade e da projeção de um novo futuro.

O sujeito epistêmico é ao mesmo tempo o sujeito militante! –


sobre lugar de fala, justificação normativa e ativismo político do
sujeito de minorias
O século XX traz à tona e gradativamente consolida, no e pelo âmbito
das ciências humanas e sociais, assim como na esfera da linguística e das artes e
por elas, a categoria da diversidade, da diferença, do pluralismo, da alteridade
como sua base fundante, estruturadora e definidora da constituição e da
relação entre teoria e prática, do sujeito teórico e do/como sujeito político.
Isso implica quatro pontos fundamentais, que definem todo o campo e todo
o tipo de atuação das humanidades e de sua vinculação pública, política e
cultural, a saber: (a) a recusa da biologia e da religião, das fundamentações
essencialistas e naturalizadas, enquanto substrato e núcleo dinamizador da
justificação pública e da constituição dos saberes e das práticas socialmente
vinculantes para uma sociedade em vias de modernização, para uma sociedade
que, passo a passo, com alguns retrocessos, mas em geral de modo imparável, se
coloca e se quer como democrática; (b) a afirmação do caráter eminentemente
político-cultural do que somos como grupos humanos, como sujeitos, como
sociedades localizadas no espaço e no tempo históricos, o que significa, mais
uma vez, a contraposição ao racismo biológico, ao fundamentalismo religioso
e ao colonialismo-eurocentrismo político enquanto atitudes básicas desse
pensamento-práxis contra-hegemônico; (c) a emergência de novos sujeitos

62 DANNER et al. | Decolonialidade, lugar de fala... ALEA | Rio de Janeiro | vol. 22/1 | p. 59-74 | jan-abr. 2020
epistemológico-políticos, as minorias político-culturais, que superam sua
invisibilização, seu silenciamento e seu privatismo e consolidam uma voz-práxis
enraizada na esfera pública e diretamente militante em termos normativos,
em uma postura de crítica radical da cultura nacional normalizada ou do
sistema-mundo produtor e reprodutor de colonialidade, de subalternização
e de desigualdade; e, com isso, (d) a profunda imbricação, por essas mesmas
minorias, entre epistemologia e política, entre juízo cognitivo e juízo político,
entre verdade, arte e política, sob a forma de uma práxis marginal que emerge
e transita na sociedade civil e que se centraliza nela, de modo que a produção
do conhecimento assume, nesses novos sujeitos políticos, uma dinâmica que
vai de sua condição de marginalização para sua voz e seu ativismo diretos,
em muitos casos colocando em segundo termo seja a representação política
parlamentar, seja a mediação técnica e cientificista da academia.
Dito de outro modo, esses grupos produzem suas próprias teorias e
fundam sua própria perspectiva estético-política relativamente à sua condição e
à sua causa, partindo de sua singularidade antropológica e de suas experiências
de marginalização, de violência e de negação como singularidade. Note-se
bem: produzem suas próprias teorias e fundam sua própria perspectiva estético-
política no sentido de que a sua condição – singularidade e menoridade – lhes
serve como arcabouço normativo e motivação política que legitimam tanto a
construção epistemológica do que são e de seu lugar teórico-prático, quanto,
em consequência, esse ativismo direto que coloca a condição das minorias e
o sujeito de minorias como irrepresentáveis e insubstituíveis, expressados na
correlação de primeira pessoa do singular e de primeira pessoa do plural, o
eu-nós epistemológico, estético e político. Não se trata, aqui, evidentemente,
de negar-se todo o arcabouço político, cultural, epistemológico e institucional
legado (contraditoriamente) pela modernização central às sociedades de
modernização periférica, como é o caso do Brasil, mas, ainda segundo o
sujeito de minorias, complementar, a partir do próprio lugar de fala e da
própria condição como minoria (singularidade e menoridade), a formulação
de perspectivas paradigmáticas e de práticas políticas que efetivamente tenham
na pluralidade – e não mais na massificação e na unidimensionalidade – o
núcleo constitutivo e dinamizador do que somos como sociedade brasileira,
do que somos, de modo mais geral, como modernização. Na condição e
no sujeito de minorias, portanto, a voz-práxis direta, de caráter político e
politizante, profundamente carnal e vinculada à condição e à causa como
minoria, determina o tipo de constituição teórica (o/a menor produzindo sua
própria teoria desde sua condição como singularidade e de suas experiências
de marginalização) e de aplicação prática (uma aplicação direta, o/a próprio/a
menor enraizando-se publicamente e reivindicando, por meio de quem ele/a
é e do que fizeram com ele/a, a reconstrução do status quo).

ALEA | Rio de Janeiro | vol. 22/1 | p. 59-74 | jan-abr. 2020 DANNER et al. | Decolonialidade, lugar de fala... 63
Na condição, nas histórias e nas experiências vividas pelas e como
minorias, portanto, a colonização aparece em cheio e encontra efetivamente
o seu verdadeiro ponto de crítica, de enquadramento. A colonização é,
ao mesmo tempo, o choque frontal entre o estrangeiro e o nativo, entre
aquele que vem para tomar posse da terra, da riqueza e dos sujeitos aos
quais esse mesmo estrangeiro está respaldado religiosa, normativa, moral e
culturalmente a dominar, bem como, a partir daqui, um processo permanente
de produção de menoridades, de legitimação da dominação do colono pelo
colonizado como uma tarefa civilizatória, inclusiva e salvífica que justifica ou
esconde a violência simbólico-material que é a única base para a produção
dessas minorias (cf.: FANON, 1968, p. 23-74; MEMMI, 1967, p. 21-76;
DUSSEL, 1993, p. 17-70; MIGNOLO, 2007, p. 15-25; QUIJANO, 1992,
p. 11-20). A colonização precisa, por conseguinte, para justificar-se como
tarefa de humanização, de civilização e de incremento moral, fundamentar a
menoridade do sujeito a ser colonizado, e isso significa: precisa deslegitimá-
lo em sua condição e silenciá-lo e invisibilizá-lo como voz pujante, como
sujeito ativo, como energia vital, diminuindo-o e reduzindo-o à animalidade,
à selvageria ou à anormalidade, no mesmo momento em que o esconde dos
olhos do público, em que se o despersonaliza e o despolitiza como sujeito que
pode ser visto e agir à luz do dia, como um/a igual. O colonialismo, nesse
sentido, é um processo político, cultural e institucional de travamento dos
discursos alienígenas, de construção de menoridades moralmente decaídas,
antinaturais e anormais, de banimento da vida pública, social e política dos/
as menores que ameaçam, com seu aparecimento, com sua voz e com seu
corpo, a normalidade que, como consequência, é o outro lado da moeda da
produção da menoridade, a maioridade (com todos os direitos que ela gera
e promove), ou seja, a construção do/a menor, do/a anormal, é, ao mesmo
tempo e como condição consequente e necessária para isso, a construção do
normal, do natural, do apolítico (cf.: BHABHA, 1998, p. 22-42; SPIVAK,
2010, p. 19-126; DALCASTAGNÈ, 2012, p. 49-74). E isso leva a um
terceiro passo do colonialismo: se ele é marcado pela invasão civilizadora,
respaldada desde fora, pela própria cultura colonizadora como seu primeiro
passo, se, como segundo passo, ele leva à e exige a produção permanente da
menoridade e da normalização, com o silenciamento e o apagamento do/a
menor e a massificação de um sujeito e de uma cultura apolíticos, esse mesmo
colonialismo também consolida a representação do/a menor pelo próprio
colonizador, de modo que o/a menor perde seu discurso e tem negada sua
maioridade política, sendo responsabilidade exclusiva do sujeito maior que,
evoluído frente àquele/a, assume uma função de orientação, de guia e de
formação civilizatórias, dando, como dissemos, um caráter humanizador
e messiânico à colonização, ontem e hoje. O/a menor não pode falar e nem

64 DANNER et al. | Decolonialidade, lugar de fala... ALEA | Rio de Janeiro | vol. 22/1 | p. 59-74 | jan-abr. 2020
tem condições de falar, para o colonizador – por isso, o sujeito maior, como
tutor desse menor, deve falar por ele.
Esse arrazoado que fizemos, de todo modo, quer significar exatamente
o fato de que a representação extemporânea do/a menor e sua substituição
epistêmico-política pelo sujeito colonizador, que leva à invisibilização, ao
silenciamento e à exclusão daquele/a por este, é o grande alvo do Movimento
Indígena brasileiro e da produção estético-literária indígena que se desenvolve
na esteira dele e como sua justificativa normativa, de caráter contra-hegemônico
e desconstrutivo em relação ao (não)lugar, ao (não)protagonismo e à imagem
(decaída, menor) do/a índio/a consolidadas pelo nosso processo de colonização
e de modernização conservadora. Com efeito, tanto no Movimento Indígena
brasileiro, que emerge em fins dos anos 1970, quanto na literatura indígena
que é produzida com ênfase a partir da década de 1990, o falar e o agir
diretamente, sob a forma de uma militância estético-política autoral e
autobiográfica, definem o enfrentamento pungente e radicalizado contra as
ideias de responsabilidade relativa, de paternalismo institucional e de tutela
tecnocrática exercidos pelos governos militares sobre os povos indígenas,
negando-lhes não apenas cidadania política, mas também e como fecho de
abóboda disso a possibilidade de visibilidade pública, a efetividade de uma
voz-práxis reconhecida em termos político-culturais (cf.: KRENAK, 2015, p.
86-96; MUNDURUKU, 2012, p. 17-18, p. 40; TUKANO, 2017, p. 26-
28; WERÁ JECUPÉ, 2002, p. 52). Nessa condição de maioridade relativa,
de paternalismo institucional e de tutela tecnocrática, os indígenas seriam
meros objetos do público ou do Estado, mas não sujeitos. Aqui emerge, nesse
sentido, a dupla intenção seja do Movimento Indígena brasileiro, seja da
literatura indígena, a partir dele dinamizada, a saber: uma voz-práxis direta,
política e politizante, carnal e vinculada, do sujeito indígena por si mesmo
e desde si mesmo, tendo por base sua singularidade e sua condição como
menoridade; e, como consequência, a correlação de epistemologia, política
e/como estética militante. Isso pode ser percebido, para começo de conversa,
em uma afirmação seminal feita em 1984 por Ailton Krenak – liderança
política e escritor indígena – relativamente ao seu ativismo estético-político:

Meu trabalho junto à União das Nações Indígenas é minha vida. Porque minha
vida só terá sentido na medida em que eu puder resgatar uma identidade. O
que é isso? É afirmar a existência e o direito à existência dos índios no Brasil.
É construir um Brasil onde todos possam ter seus direitos garantidos na
prática, e não só no papel. [...] Essa busca de identidade, que não é só minha,
mas de todos os 150 povos indígenas diferentes que vivem no Brasil, passa
obrigatoriamente pela relação entre o Estado e os índios. Em toda a história do
Brasil, nunca houve um tratado entre o governo brasileiro e os povos indígenas.
Efetivamente, o governo brasileiro nunca se dirigiu aos povos indígenas como

ALEA | Rio de Janeiro | vol. 22/1 | p. 59-74 | jan-abr. 2020 DANNER et al. | Decolonialidade, lugar de fala... 65
nações, que eles são. Essa relação sempre se baseou em um ponto de vista
hipócrita. E, por isso, nunca houve o menor esforço para defini-la melhor. Para
o governo, para todos os governos que se sucederam na história desse país, o
problema está resolvido: ignora-se o direito à existência dos índios. A própria
imagem que nos é passada na escola conta-nos a seguinte história: ‘Quando
Cabral chegou, o Brasil era habitado por índios’. Aí fecha rápido a cortina e
pronto: ‘não há mais índios!’. Acontece que há (KRENAK, 2015, p. 22-23.
Cf., ainda: MUNDURUKU, 2016, p. 52; MUNDURUKU, 2018, p. 25-27;
WERÁ, 2017, p. 101-108; POTIGUARA, 2018, p. 115-117; GUAJAJARA,
2017, p. 19-29; TUKANO, 2017, p. 26; KOPENAWA e ALBERT, 2015,
p. 64-65; ESBELL, 2018, p. 33-36; KRENAK, 2017, p. 15-16).

Note-se, na passagem, a dupla perspectiva de crítica à representação


tradicional feita dos povos indígenas em termos de nossas instituições,
como herdeira desse processo primeiramente de colonização e, depois, de
modernização conservadora: sujeitos do passado, e não do presente, não têm
discurso e nem prática próprios, não conseguem assumir uma perspectiva
política, cultural e epistêmica maior – não têm ciência racionalizada, não têm
cultura modernizada, não têm reflexividade política (se é que isso efetivamente
algum dia fez a diferença em nossa modernização conservadora, em e para
nossos liberais na economia e conservadores na cultura); e, por isso, sujeitos
do passado pertencem ao passado, isto é, ao profundo do mato ou do armário,
afastados dos olhos dos sujeitos modernos e tendo calada sua voz frente a
esses mesmos sujeitos modernos. É contra isso que, como também vimos na
passagem acima, Ailton Krenak associa os passos epistêmico-políticos (a)
do destino e do ativismo pessoais em nome do grupo, (b) da recuperação
da própria identidade do que se é e de como se chegou a ser isso que se
é, e, como caminho detonador e garantidor de tudo isso, (c) da crítica
social e da visibilidade política em termos de esfera pública, pelo próprio
indivíduo-grupo marginalizado, agora em uma postura autônoma e autoral
relativamente à sua condição e à sua causa, relativamente ao enfrentamento
das condições de marginalização instauradas e reproduzidas – crítica social e
ativismo epistêmico-político que ocorrem sob a forma de desnaturalização e
de politização da história nacional. Há indígenas, e descobrimos que eles/as
existem porque eles/as apareceram e aparecem na esfera pública, enraizando-
se nela e consolidando-se como sujeitos político-culturais. Nesse sentido,
também podemos perceber, ainda em Ailton Krenak, mas, na verdade, em
todos os intelectuais indígenas brasileiros contemporâneos, essa correlação de
teoria e prática, de sujeito epistêmico e político que, imbricando eu e grupo,
eu-nós, potencializa uma voz-práxis direta em que a condição identitária, sua
singularidade antropológica e sua situação de marginalização, de exclusão e
de violência vividas e sofridas como menoridade unem-se para constituir uma

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perspectiva altamente política, autobiográfica, testemunhal, experiencial e
mnemônica da própria situação que, publicizada, revela o núcleo violento e
contraditório, ainda não purgado ou resolvido, do processo de formação e
de evolução de nossa sociedade. Mais uma vez, Ailton Krenak nos diz:

E o outro desconforto era me identificar como índio, porque índio é um erro


de português, plagiando o Oswald, que disse que, quando o português chegou
ao Brasil, estava uma baita chuva, aí ele vestiu o índio, mas, se estivesse num
dia de sol, o índio teria vestido o português, e estaria todo mundo andando
pelado por aí. Isso continua valendo até hoje, e eu atualizei dizendo que o
índio é um equívoco do português, mas não um erro, porque o português
saiu para ir para a Índia. Mas ele perdeu a pista e veio bater aqui nas terras
tropicais de Pindorama, viu os transeuntes da praia e acabou carimbando
de índios. Aquele carimbo errado, equívoco, ficou valendo para o resto das
nossas relações até hoje, e a resposta para uma pergunta tão direta e simples
(sobre o sentido do ativismo indígena) poderia ser tão direta e simples quanto.
Quando foi que eu atinei que eu tinha que fazer essas coisas que eu ando
fazendo nos últimos 50 anos da minha vida, que é quase que repetir o mesmo
mantra, dizendo para esse outro: ‘Ô, cara, essa figura que você está vendo no
espelho não sou eu não, é você, esse espelhinho que você está me vendendo
não sou eu, isso é um equívoco’? E saí do sentimento para a prática na pista
dos meus parentes mais velhos do que eu, que estavam sendo despachados da
zona rural para as periferias miseráveis do Brasil, o que acontece em qualquer
canto, no Norte, no Sul, em qualquer lugar (KRENAK, 2015, p. 239. Cf.
ainda: MUNDURUKU, 2016, p. 19-21).

A perspectiva anticolonial, decolonial ou pós-colonial por excelência,


como podemos ver nessa passagem, em que Ailton Krenak nos explicita a
sua condição e o sentido de seu ativismo, isto é, a luta em prol do grupo
marginalizado e feito menor pela colonização, consiste exatamente na
imbricação e na mútua dependência de teoria e prática, de epistemologia e
política, que são subsumidas pelo próprio indivíduo-grupo menor. No caso das
minorias político-culturais, essa imbricação e mútua dependência simplesmente
aparece de modo direto por causa da sua condição como menor, pelo fato de
que a minoria está exatamente na confluência de processos de violência
simbólico-materiais em que modelos paradigmáticos e exemplares de sociedade,
de homem, de prática e de valor, ao serem normalizados, naturalizados e
despolitizados, produzem correlatamente, para sua justificação e seu sustento,
a sua antítese, o/a anormal, o indivíduo moralmente decaído, o estigma, o
antinatural. No caso dos povos indígenas, sua condição pré-civilizacional, sua
barbárie e sua animalidade como que inatas, ou mesmo o fato de, como sugeria
Pero Vaz de Caminha, serem como páginas em branco nas quais se poderia,
desde a sábia mão do europeu, escrever a melhor poesia, realizar-se o paraíso

ALEA | Rio de Janeiro | vol. 22/1 | p. 59-74 | jan-abr. 2020 DANNER et al. | Decolonialidade, lugar de fala... 67
na terra, legitimam o trabalho civilizacional da colonização, a aculturação e,
quando necessário, a morte e, com isso, apagam a singularidade, a dignidade
e o protagonismo desses mesmos indígenas. Por isso, seu aparecimento na
esfera pública e como sujeitos político-culturais traz à tona as contradições
do colonialismo, de nossa modernização conservadora, desnaturalizando-
as e politizando-as. No que se refere às minorias político-culturais de um
modo geral e aos povos indígenas em particular, a voz-práxis estético-literária
direta, que promove concomitantemente sua singularidade antropológica e
sua condição como menoridade violentada, produzida enquanto estigma,
contribui diretamente para essa perspectiva politica e politizante, carnal e
vinculada do sujeito epistêmico-político, imbricando, portanto, epistemologia
e política no e como sujeito de minorias.

Da invisibilização e do silenciamento ao protagonismo público,


político e cultural: literatura indígena como descolonização da
cultura e descatequização da mente
Como dissemos acima, a grande novidade e o profundo impacto
epistêmico-político dos estudos coloniais, pós-coloniais ou decoloniais consiste
nesse ponto que lhes é comum, isto é, de se caracterizarem e dinamizarem pelo
aparecimento e enraizamento público-político das minorias político-culturais
e dos sujeitos de minorias que revelam exatamente o caráter contraditório da
colonização, do eurocentrismo e, com isso, desnaturalizam e politizam a cultura
nacional e essa relação entre modernização central e modernização periférica.
As minorias estão na fronteira desse processo, ou seja, elas correlacionam a
cultura e o sujeito colonizadores, os processos simbólico-materiais de produção
das minorias e, como condição de tudo isso, os sujeitos-grupos alienígenas os
quais o colonizador assume como propriedade e como massa a ser moldada e
orientada pela missão civilizadora do encontro, da descoberta. Aparecendo na
esfera pública e nela enraizando-se e consolidando-se como sujeitos político-
culturais, as minorias podem descontruir essa justificação naturalizada e
apolítica da violência colonial, afinal a descoberta e a consequente colonização
da terra e de seus povos não tiveram um aspecto civilizador, mas uma postura
de violência, de negação, de estupro do/a colonizado, sua despersonalização
e seu genocídio institucionalizados, cultural e normativamente respaldados.
Nesse diapasão, o movimento descolonizador por excelência é e se define por
esse caminho e por essa postura das minorias que rompem com o silenciamento,
a invisibilização e o privatismo, aos quais foram empurradas ao longo da
colonização, e assumem uma atitude pública, política e cultural de militância,
de ativismo e de engajamento em torno à sua condição e à sua causa como
minorias.

68 DANNER et al. | Decolonialidade, lugar de fala... ALEA | Rio de Janeiro | vol. 22/1 | p. 59-74 | jan-abr. 2020
Ora, esse aparecimento e esse ativismo públicos, por parte das
minorias, por parte do sujeito de minorias, traz a própria condição como
minoria para o núcleo do processo constitutivo-evolutivo de nossa sociedade,
desnaturalizando-o e politizando-o de modo direto. E por que isso? Porque,
ao aparecer, as minorias e os sujeitos de minorias não podem esconder quem
são, uma vez que seu próprio corpo, suas próprias tradições, suas próprias
práticas visibilizam a condição de chaga, de estigma e de anormalidade que
lhes foram impostas e, por isso mesmo, também publicizam e vociferam acerca
de quem fez isso com eles/as, do que se fez com eles/as e de como se fez isso,
desconstruindo – isto é, desnaturalizando e politizando – a história, os sujeitos,
as práticas e os valores exemplares de nossa sociedade. “De fato”, diz-nos o
intelectual e escritor macuxi Jaider Esbell, “minha face nunca me deixou passar
imperceptível” (ESBELL, 2018, p. 125. Cf., ainda: JECUPÉ WERÁ, 2002,
p. 15-22). A face-corpo-tradição do sujeito de minorias foi uma das bases de
sua construção como menoridade, de sua justificação como estigma; e, hoje, é
o fundamento para sua – das minorias, do sujeito de minorias – reafirmação e
revalorização da própria identidade negada, para o restabelecimento próprio,
político, de sua dignidade. As tradições culturais e as práticas de vida próprias
às minorias, que antes foram a base para sua deslegitimação e para sua negação,
hoje lhes servem como núcleo para a reconstituição do que são efetivamente
como singularidade, mas também como crítica social aguda do que fizeram
com eles/as em termos de colonização. Como dissemos, essa superação da
invisibilização, do silenciamento e do privatismo acontece e é assumida, por
parte das minorias, desde essa perspectiva de publicizar a voz, de politizar, via
ativismo e engajamento, a história nacional e nossos sujeitos político-culturais
exemplares por meio do lugar de fala político, esteticamente mediado, isto é,
por meio da voz pública, das experiências e histórias como minorias contadas
a todos/as, espalhadas aos quatro ventos via voz-práxis estético-literária. Nessa
situação de politização das e pelas minorias, tem-se a transformação da arte
e, em especial no nosso caso, da literatura em perspectiva anticolonial de
resistência, luta e reelaboração do que se é, em crítica e enquadramento da
sociedade envolvente. Vejamos, acerca dessa publicização da voz, das histórias
e das experiências das e pelas minorias, uma passagem do livro Metade cara,
metade máscara, da indígena Eliane Potiguara:

E tu choras
E tu sofres pela incompreensão
E tu morres
Pelo roubo e assassinato.
Por que ficas parada?
No dia em que rastejastes
E no que apanhaste na cara

ALEA | Rio de Janeiro | vol. 22/1 | p. 59-74 | jan-abr. 2020 DANNER et al. | Decolonialidade, lugar de fala... 69
Vi a teu lado a miséria e a morte
Companheiras fiéis.
Tu que te banhaste em teu próprio sangue
Não tem coragem de exclamar
Ou tem medo de ser errante?
Tu que sentiste
O racismo na carne
O desprezo dos olhares
A inveja de serem
Pelo menos um minuto
O que hoje és: HONESTA!
Tu calas, mas vejo teu sorriso
Da compreensão deste mundo
Na ruga do pé do olho
No canto da boca rota.
E penso mesmo, talvez...
Que seja, por enquanto, calar e olhar ao redor.
Porque tua mente viaja
E enxerga...
E és nobre por calar-te nesta hora
És humilde e guerreira.
Mas sei que tens uma cachoeira de lágrimas
Dentro do peito
E uma enorme garra na VOZ
Pra gritar esse massacre SEM PAZ
Mas luta, mesmo que não possas falar
Por ora, minha TERRA
Porque ainda estás presa
Nas garras da tua própria história
(POTIGUARA, 2018, p. 81-82. Cf. ainda: ESBELL, 2013, p. 63, p. 73;
JEKUPÉ, 2002, p. 07 e p. 13)

Note-se, nessa passagem, que a experiência fundamental das minorias


e, nesse caso, dos povos indígenas, quando inserida no contexto maior da
constituição, do desenvolvimento e da evolução de nossa sociedade, consiste
na violência, na exclusão e na marginalização, quando não no assassinato
sistemático puro e simples dos/as seus/suas. Nesse sentido, à experiência da
violência original e por meio das histórias em que essa mesma violência original
foi dinamizada ao longo do tempo, temos a emergência de novas perspectivas
relativamente ao que fomos, ao que somos e ao que precisamos fazer enquanto
sociedade brasileira de um modo mais geral. Esse grito público do indivíduo
feito menor e esse ativismo político das minorias, por conseguinte, expressam,
por um lado, a permanência dessa atitude de violência original aplicada
em termos de colonização como justificação para o embranquecimento e a

70 DANNER et al. | Decolonialidade, lugar de fala... ALEA | Rio de Janeiro | vol. 22/1 | p. 59-74 | jan-abr. 2020
modernização da cultura e de nossos povos fundadores (os/as indígenas e os/
as negros/as, portanto, como medidos, enquadrados e avaliados pela métrica
do embranquecimento como ideal moral, humanizador e civilizacional); e,
segundo, leva ao enraizamento público e ao ativismo político-cultural das e
pelas minorias como a única alternativa possível de resistência, de sobrevivência.
Para sobreviverem, portanto, as minorias tiveram e têm permanentemente
de tornar-se políticas, sujeitos políticos; já não basta o esconder-se dentro
do mato e/ou do armário, o silenciamento, a invisibilização e o privatismo
diante da força bruta, do fundamentalismo religioso e do preconceito racial.
É preciso politizar-se, politizar o corpo, a cultura, a condição, as histórias, as
formas de vida, as práticas e os valores. Ora, essa é uma das funções centrais
e um dos papéis mais básicos – a politização de si e do grupo – assumidos
pelos/as intelectuais e escritores/as de minorias. Como diz o escritor indígena
Daniel Munduruku:

Basicamente, hoje, a minha atuação no movimento indígena se dá por


intermédio da literatura. Com qual objetivo? Eu gosto de pensar que estou
ajudando o Brasil a desentortar seu pensamento. Gosto de pensar que estou
ajudando o Brasil a olhar para os povos indígenas sem o crivo dos estereótipos,
sem a venda da ignorância, porque isso permitiria a todos nós termos uma
ideia mais objetiva de nosso processo histórico, colocando os povos indígenas
nos lugares onde eles escolhem [...]. Tenho dito, em função disso, que o meu
trabalho consiste em arrancar da cabeça das pessoas essa palavra, um tanto
maldita, no sentido do mau-dizer, que é a palavra índio, que carrega consigo
todos os estereótipos e todos os preconceitos possíveis e imagináveis. Tem
sido basicamente minha luta, minha jornada, de fazer com que as pessoas
não nos chamem por esse apelido, mas por nossos nomes, pelo que somos
de fato, e não pelo que elas acham que nós somos (MUNDURUKU, 2018,
p. 109. Cf., ainda: MUNDURUKU, 2016, p. 172-192; WERÁ, 2017, p.
29-30; TUKANO, 2017, p. 27; JEKUPÉ, 2009, p. 11-13).

Por isso, conforme Jaider Esbell, é hora de as minorias falarem, é tempo


de os povos indígenas falarem, publicizarem sua perspectiva étnica, cultural
e antropológica, bem como suas experiências de marginalização, de exclusão
e de violência vividas e sofridas. Por isso, para os povos indígenas, para as
minorias culturais, para os grupos subalternos à modernização ocidental,
profundamente determinada e orientada pelo colonialismo, ontem e hoje,
a experiência fundamental de modernização, que é a violência, a exclusão
e o silenciamento, deve ser enfrentada exatamente pela visibilização, pela
enunciação autoral da própria voz, pela publicização das experiências e das
histórias próprias, pela politização da própria condição, bem como por um
ativismo direto e pungente que, ao superar a representação institucionalista

ALEA | Rio de Janeiro | vol. 22/1 | p. 59-74 | jan-abr. 2020 DANNER et al. | Decolonialidade, lugar de fala... 71
e epistêmica, de caráter lógico-técnico, confere centralidade ao próprio
indivíduo-grupo menor e, com isso, lhe possibilita desconstruir essa ideia de
menoridade que não apenas justifica sua anulação, sua despersonalização e
seu silenciamento, mas também e concomitantemente confere legitimidade à
permanência da colonização. A voz-práxis das minorias, de caráter político e
politizante, carnal e vinculada, portanto, é o fundamento da descolonização da
cultura e da descatequização da mente, isto é, do enquadramento, da crítica e
da correção da modernização ocidental de um modo geral e da modernização
conservadora brasileira em particular.

Como é viver na modernidade? Como manter-se presente se não dissermos


quem somos? Se não o somos como tais, nada seremos e vagaremos indigentes
nas vias das grandes incógnitas. É nesse mostrar-se, nesse dizer coletivo que
reside toda a força da arte entre nós, índios, e não na ideia central de um
ponto fixo para a pura abstração do outro externo (ESBELL, 2018, p. 85.
Cf. ainda: POTIGUARA, 2018, p. 20-30; KOPENAWA e ALBERT, 2015,
p. 511; KRENAK, 2019, p. 09-33).

Considerações finais
Uma democracia não pode sobreviver silenciando, negando ou
deslegitimando suas fraturas, suas contradições, suas irracionalidades, como
se elas não existissem, como se fossem um produto do passado sem qualquer
resquício ou respingo no presente. É preciso reinterpretar criticamente o
passado e pluralizar os sujeitos e as histórias sobre o presente. No mesmo
diapasão, a crítica da modernidade, muito em voga hoje, não pode centrar-se
apenas no discurso teórico-político euronorcêntrico sobre a própria capacidade
de a modernidade corrigir-se internamente por si mesma e desde si mesma. É
preciso que as vítimas da colonização falem. Suas histórias, suas experiências,
suas práticas e seus valores são fundamentais na democracia. Sua voz-práxis é
insubstituível no processo de maturação de nossa história nacional, inclusive
para a correção da modernidade de um modo mais geral. Sem o lugar de
fala das minorias aproximamo-nos perigosamente do fascismo. Como nos
disse Jaider Esbell no texto, é hora de os povos indígenas falarem sobre suas
experiências de modernidade, de brasilidade, ou seja, sobre suas experiências de
colonização, porque a verdadeira crítica do colonialismo, de nossa modernização
conservadora se faz a partir dos, com os e pelos grupos subalternos por ela
produzidos, se realiza com o protagonismo da voz-práxis das minorias.

72 DANNER et al. | Decolonialidade, lugar de fala... ALEA | Rio de Janeiro | vol. 22/1 | p. 59-74 | jan-abr. 2020
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São Paulo: TRIOM, 2002.

Leno Danner. Doutor em Filosofia (PUCRS). Professor de Ética e Filosofia Política


no Departamento de Filosofia e no Programa de Pós-Graduação em Filosofia da
Universidade Federal de Rondônia (UNIR). Suas áreas de especialização são teorias
da modernidade, pensamento social brasileiro, teorias políticas contemporâneas,
pensamento indígena brasileiro, descolonização africana. Interessa-se, ainda, por
filosofia latino-americana, teoria feminista e teoria queer.
E-mail: leno_danner@yahoo.com.br

Julie Dorrico. Doutoranda em Teoria da Literatura pelo Programa de Pós-Graduação


em Letras da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS). Suas
áreas de pesquisa são literatura e autobiografia indígenas.
E-mail: juliedorrico@gmail.com

Fernando Danner. Doutor em Filosofia pela Pontifícia Universidade Católica do


Rio Grande do Sul (PUCRS). Professor de Filosofia Política no Departamento de
Filosofia e no Programa de Pós-Graduação em Filosofia da Universidade Federal de
Rondônia (UNIR). Suas áreas de estudo incluem filosofia política contemporânea,
filosofia francesa contemporânea, filosofia latino-americana, filosofia brasileira e
pensamento indígena brasileiro.
E-mail: fernando.danner@gmail.com

Recebido em: 13/09/2019


Aceito em: 30/10/2019

74 DANNER et al. | Decolonialidade, lugar de fala... ALEA | Rio de Janeiro | vol. 22/1 | p. 59-74 | jan-abr. 2020
PALAVRAS DOS EDITORES CONVIDADOS.

ARTIGO
ACERCA DOS ESTUDOS COLONIAIS
WORDS FROM GUEST EDITORS.
ON COLONIAL STUDIES

Alfredo Cordiviola1
ORCID 0000-0002-3567-5003

Vanina Teglia2
ORCID 0000-0003-0804-9784

Universidade Federal de Pernambuco/CNPq


1

Recife, PE, Brasil

2
Universidad de Buenos Aires/CONICET
Buenos Aires, Argentina

Os Estudos Coloniais conformam um heterogêneo campo de saberes,


atravessado por aproximações teóricas, periodizações, recortes e objetos de
análise diversos que pautam suas áreas de interesse e seus modos de investigação.
Como em outras áreas de conhecimento, das confluências e antagonismos
que emanam dessas configurações surgem as consagrações, omissões e resgates
que vão redefinindo seus cânones e suas formas de ler. Trata-se, como outros,
de um domínio tentativo, feito de interseções e de discursos em escrutínio,
mas que apresenta um grau de especificidade construído, acima de tudo, pelas
interrogações que se costuma postular em cada ensaio, em cada tratado e em
cada discussão, que pautam suas evoluções e sua história.
Poderíamos dizer que, nos chamados Estudos Coloniais, essas
interrogações não são apenas uma deriva metodológica, nem um exercício de
cautela intelectual; são, de fato, a verdadeira condição de possibilidade sobre
o qual se erigem o aparato conceitual e as hermenêuticas que determinam
sua própria existência como campo de intervenção sobre tempos passados
que, no devir americano, vagamente se estendem até as primeiras décadas
do século XIX.
Tais interrogações giram em torno dos sentidos de certos termos que
ocupam, por diversos motivos, um lugar central no léxico disciplinar. Menos
que pretender atingir uma definição única e muitas vezes impossível, as
perguntas acerca dos significados e densidades desses termos de uso comum

ALEA | Rio de Janeiro | vol. 22/1 | p. 15-24 | jan-abr. 2020 ALFREDO CORDIVIOLA e VANINA TEGLIA | Acerca dos...

https://dx.doi.org/10.1590/1517-106X/20202211524
15
procuram instituir vias de acesso e habilitar ferramentas que permitam se
debruçar sobre um corpus heteróclito e potencialmente infinito, sempre
sujeito à revelação de documentos antes ignorados ou considerados perdidos.
Dentre esses termos, alguns dos quais elencaremos aqui, o primeiro deles
está já inscrito no próprio nome que designa, com ou sem aspas, o campo em
questão. Assim, que entendemos, então, por colonial? Uma forma de governo
e de sujeição entre metrópoles e periferias? Um período que coincide com a
fundação, auge e o ocaso da dominação imperial? No primeiro caso, o termo
poderia ser adequado, considerando a conquista como irrupção violenta,
a regência de populações locais mediante instituições civis e religiosas de
origem europeia, a ocidentalização forçada ou as lógicas econômicas do
monopólio, mas não necessariamente exato, tendo em vista que os pactos
de governança outorgavam diversos graus de autonomia às regiões incluídas
na esfera imperial e que os dois vice-reinos estabelecidos no século XVI – a
Nova Espanha e o Peru – eram precisamente isso, reinos atrelados a uma
constelação maior, mas não necessariamente colônias. Já no segundo caso,
entender “colonial” como marco temporal que se estende do final do século XV
às primeiras décadas do XIX parece ignorar que parte do corpus dos estudos
da área, como os códices pré-hispânicos, os poemas de Nezahualcóyotl ou os
relatos tributários das tradições orais, é evidentemente anterior à chegada de
Colombo e ao controle das populações e dos territórios do continente por
parte das potências ultramarinas.
A condição equívoca ou polissêmica de um vocábulo, entretanto, não
impede seu uso. Pelo contrário, esse uso, comum e constante, tem a virtude
imediata de promover indagações que vão muito além da fixação de um
sentido. Se o adjetivo colonial está feito de interrogações, o que dizer então
da “literatura colonial” ou das “letras coloniais”? Falar de “literatura colonial”
obriga a discutir as relações entre ficção e documento, as categorias de autor
e os vínculos entre original e versões e traduções, a partir de perspectivas que
não excluem nem a aporia nem a ambivalência. Obriga também a confrontar,
em cada caso particular, com as delimitações do que possa ser entendido
como “literatura”. Considerando um corpus eminentemente histórico e
político, composto por crônicas, cartas, histórias gerais e naturais, relações,
requerimentos, diários, memórias, relatos de viagem, poemas, sermonários,
apologias, peças de teatro, relatórios oficiais, tratados teológicos, jurídicos
e filosóficos, seria inadequado, e inútil, atribuir um conceito restritivo à
noção de “literatura”. Restringir essa noção a critérios de invenção, projetos
de autor ou valores estéticos levaria a uma encruzilhada que obstruiria as
possibilidades de recepção atual desse corpus. Nesse sentido, aludir à noção
de “letras coloniais” não é apenas uma determinação mais ampla e generosa,
mas também a mais justa e pertinente.

16 ALFREDO CORDIVIOLA e VANINA TEGLIA | Acerca dos... ALEA | Rio de Janeiro | vol. 22/1 | p. 15-24 | jan-abr. 2020
Da mesma forma, essa multiforme composição da produção “colonial”
torna impossível invocar uma vaga fórmula como “literatura de informação”,
ou definir esses textos como meros “antecedentes” ou “precursores” da nação
moderna, critérios que, em outros tempos, as Histórias da Literatura Colonial
utilizavam para designar esse corpus. Tão inoportuno como esses seria esse
outro critério, que situa as cartas e o diário de navegação de Colombo como
marcos fundacionais, como se recorrer aqui a um mito de origem não fosse
uma operação fadada a sucumbir entre irremediáveis contradições. Contudo,
mais inadequado ainda seria adotar um critério linguístico, que pudesse
levar a inferir que as letras coloniais são estrita ou primordialmente aquelas
escritas em língua espanhola. Longe de se ocupar exclusivamente de discursos
compostos na língua de Castela, os Estudos coloniais discutem não somente
textos pertencentes a linhagens americanas, africanas e indo-europeias, mas
também as múltiplas interações entre escritas e oralidades, o modo de circulação
e apropriação dessas línguas e as diversas relações de equivalência, legitimidade
e diglossia que se estabeleceram entre elas no marco da dominação imperial.
Essa intensa confluência de línguas, de tempos, de formas e de suportes
de expressão interpela também os próprios limites do “americano”. Pronunciar
o sintagma “estudos coloniais americanos” (ou “latino-americanos”, ou talvez
“hispano-americanos” ou “ibero-americanos”) implica ter lidado antes, de
maneira tácita ou explicita, com vários interrogantes. Optar por uma ou
outras dessas alternativas marca uma escolha entre determinados rasgos
considerados, ou não, como determinantes e peculiares. Em todo caso, parece
evidente que não se trata de uma simples junção de dois gentílicos, e que,
de fato, aquilo que se evoca é sempre um espaço criado por uma hifenização
múltipla, que não só separa e une dois componentes, mas também alude a
outras disjunções, a outros interstícios e a outras existências fronteiriças, que
habitam e corroem o interior do “americano”.
Essa quarta parte do mundo que emerge no horizonte europeu para
ser denominada como “Las Indias”, “Nuevo Mundo” ou “América” sempre
excedeu os limites impostos por esses nomes atribuídos por navegantes
desorientados, cosmógrafos meticulosos e eruditos exaltados. Consagrados
pela repetição e pelo hábito, tais nomes, engendrados pelo assombro e pela
confirmação de que o orbe era muito maior e muito mais difuso do que se
imaginava, conservariam para sempre uma dimensão equívoca e atribulada,
sujeita a usos divergentes. Se, por um lado, o rótulo “Estudos coloniais
americanos” marca uma diferença e impõe um contorno geográfico em relação
a outras experiências (intra-europeias, africanas, asiáticas) da colonialidade,
por outro remete também a diversas realidades planetárias que estavam
inextricavelmente vinculadas ao devir americano. Seria impossível interpretar os
tempos coloniais americanos sem aludir às complexas redes transoceânicas de

ALEA | Rio de Janeiro | vol. 22/1 | p. 15-24 | jan-abr. 2020 ALFREDO CORDIVIOLA e VANINA TEGLIA | Acerca dos... 17
intercâmbios culturais e comerciais que a mundialização impõe ao continente
e que redefinem por completo o sistema-mundo então vigente. Como operar
na esfera dos estudos coloniais americanos em se referir ao atlântico negro,
aos orientalismos procedentes das Filipinas ou às disputas hegemônicas entre
as potências europeias? Nesse aspecto, Antuérpia, Nápoles, Goa ou Manila
constituem geografias tão relevantes para a área quanto os próprios locais
centrais e periféricos situados nas metrópoles ou nos vice-reinos.
Todo esse vasto conjunto de temas e problemas, de formulações,
interrogantes e réplicas demanda aproximações e análises que são, por definição
e por necessidade, de natureza interdisciplinar. A riqueza dos Estudos Coloniais
Americanos reside, entre outras coisas, em propiciar a convergência dentro
do seu cambiante território de áreas de saberes tão heterogêneas quanto o
próprio campo que as alberga. Poderíamos mencionar algumas dessas áreas
aqui (por precaução, sempre em plural), acompanhadas por alguns dos temas
que compõem suas órbitas: histórias (das civilizações, da evangelização, da
conquista, naturais e morais, da escravidão, da cidade, das ideias), letras
(oralidades, escritas, signos e línguas, modelos narrativos, evoluções da
imprensa), políticas (instituições, biopolíticas, geopolíticas), economias
(suas configurações e fluxos locais e globais), filosofias (da linguagem, da lei),
artes (importação, transformação, invenção de estilos; tradições em conflito),
direitos (sujeição, reparação, guerras justas) etnografias (dos modos de vida
presentes e passados sob os impactos da ocidentalização), cartografias (para
descrever ou imaginar os territórios e seus confins), demografias (migrações,
epidemias), urbanismo (geometrias ideais, pueblos de indios, aldeamentos,
redes urbanas). Esta rápida e algo desordenada enumeração poderia ser
ampliada exponencialmente; não seria necessário esclarecer que não teria
forma nem razão de ser exaustiva, nem pretende sê-lo. Aspira, somente,
ilustrar a inexaurível diversidade de um campo que, com seus interrogantes,
disputas e rememorações, abre e carrega consigo um horizonte quase infinito
de indagações que são tão cruciais para entender o mundo que alguma vez
foi, quanto para se situar no mundo em que hoje vivemos.
Os leitores das páginas que seguem poderão comprovar que os textos
aqui reunidos confirmam essa diversidade que é intrínseca e constitutiva
desta área de saberes. Para este número da Revista Alea, propomos uma
delimitação ampliada e renovadora dos Estudos Coloniais, da qual emerge,
como metodologia geral e específica para o colonial, isso que finalmente
poderíamos denominar um olhar fora de foco ou, também, uma série de visões
de-centradas dos objetos desse campo. Quer dizer, não se trata de negar o
arquivo colonial, mas de desfocar ou torcer esse olhar, para poder discutir as
tendências imperiais, coloniais ou canonizadas dos discursos e dos arquivos.
Desta forma, todos os artigos deste volume – alguns de maneira claramente

18 ALFREDO CORDIVIOLA e VANINA TEGLIA | Acerca dos... ALEA | Rio de Janeiro | vol. 22/1 | p. 15-24 | jan-abr. 2020
acentuada e outros, mais timidamente – redefinem as formas conhecidas em
que foram abordados estes estudos.
Poderíamos começar, exemplificando o dito acima, com uma das
perguntas recorrentes nesse campo, a que se vincula com a localização do
poder colonial. Usualmente, as relações com a hegemonia costumam ser
observadas em termos binários, segundo os quais a figura do subalterno remete
a um poder dominante centrado, de imposição de uma hierarquia evidente
e territorialmente localizada, que, por outra parte, assedia ao subalterno
constantemente. É comum abordar, por exemplo, por um lado as configurações
do sujeito conquistado –e seu ethos construído–, e, por outro, as do sujeito
subalterno e sua produção, como se se tratassem de entidades autónomas.
Contudo, esse binarismo, constante em nossos Estudos, conformou uma
mirada não muito precisa nem exata, inadequada de fato para dar conta das
zonas de conflitos identitários e de permanente instabilidade entre os agentes
envolvidos. Ainda mais, infelizmente, tem se estabelecido uma hierarquia entre
os acadêmicos do nosso campo, regida por critérios de maior ou menor “acesso”
às novas fontes dos subalternos, esses esquecidos do arquivo (hierarquia que,
em muitos casos, depende unicamente da capacidade econômica da instituição
de origem). Uma “carreira”, em definitivo, que acabou por encurralar os
estudiosos do mundo colonial em novas agendas hegemônicas, atreladas aos
privilégios do “arqueólogo” do arquivo no sentido mais literal desse termo.
Embora essa proposta venha permitindo ampliar o campo e aumentar
a quantidade de vozes nele implicada – e, por isso, é preciso que seu impulso
continue vigente –, isso não significa que o tenha redefinido verdadeiramente.
Pelo contrário, para o contexto hispano-americano, seria necessário um
olhar policêntrico e multiterritorial, que desfoque a localização estrita do
hegemônico. Esse olhar, assim, daria a possibilidade de revelar as estelas de
negociações pelo poder, tanto como o teor das suas fugas, que abrangem outros
indivíduos, famílias, grupos e comunidades, e suas respectivas intervenções e
agenciamentos. Nesse sentido, conformamos este volume de artigos seguindo
essa orientação, partindo desta proposta que define objetos adequados para
o campo do colonial e que se interessa pela busca de una metodologia para
a análise de textos e de casos a partir destas definições.
Os contrastes entre os modelos coloniais hispano-americanos e luso-
americanos também impõem a interrogação por limites e contiguidades, que,
por outra parte, acabam remetendo às particularidades e divergências entre
os modos da colonização portuguesa na África, na Índia e na América. Nesse
sentido, é útil a formação de epistemologias de fronteira, cuja complexidade se
aprofunda em sociedades e culturas surgidas no bojo de tensos pertencimentos
e convivências comuns. Desta maneira, as colonizações, todas elas, são ao
mesmo tempo diferentes e semelhantes. Seria então tarefa do pesquisador

ALEA | Rio de Janeiro | vol. 22/1 | p. 15-24 | jan-abr. 2020 ALFREDO CORDIVIOLA e VANINA TEGLIA | Acerca dos... 19
poder ver estes objetos aparentemente iguais a partir de perspectivas
diferentes, e criar espaços de reflexão em que, portanto, emergirão corpos
alternativos em toda sua dimensão: corpos mestiços em toda sua complexidade.
Desses posicionamentos, participam também os entre-lugares e os sujeitos
transculturados, que derivam dos oxímoros dos encontros das culturas e dos
discursos em que se criam fronteiras e antíteses. Essa é, do mesmo modo, uma
tarefa de recuperação de formas e modelos trans-históricos e transnacionais.
Assim, os artigos deste volume propõem que a questão da colonização ibero-
americana deva ser vista em redes de núcleos diferenciados, cujas relações
criam também vínculos diversos. O conceito de semiose colonial –com seus
matizes múltiplos no plano simbólico– também é útil para compreender as
texturas que as viagens ultramarinas, provenientes de variados centros de
poder, subitamente expandem ao longo dessa época.
O indígena, ameríndio ou nativo –mas também o mestiço– são
elementos ineludíveis nos Estudos Coloniais. No entanto, como abordá-los, se
sempre têm sido as figuras mais carregadas de projeções e as mais fugidias de
todas? Vários ensaios deste volume dão conta de óticas possíveis, dispostas em
um jogo de renovadas variações. Por exemplo, propor uma perspectiva capaz de
acentuar, em dimensão interdisciplinar, os aspectos filosófico-políticos inerentes
a esta questão, ajuda a iluminar as formas em que se integram e se tensionam
os horizontes culturais europeus e indígenas no período da colonização. Esta
abordagem está assim ancorada nas subjetividades alternativas, resultantes
de conflituosas negociações, já que repara em elementos condensadores de
significações sociais, culturais e políticas sincréticas que sobrevivem às meras
traduções e às lógicas do arquivo. Além disso, trata-se também de oferecer
uma visão acerca do conjunto do corpus, e de provocar uma leitura acerca das
relações internas a esse corpus e ao arquivo, que foram diluídas na superfície
de textos e materiais. Assim, existem tradições completas que – de um tempo
a outro – foram apagadas pela fundação de outra tradição ou de outro relato.
Este fenômeno, todavia, é uma marca bastante comum nas culturas de toda
a América, onde tanto o território como a geografia e os imaginários foram
pautados por contínuas refundações que tentavam sepultar as tradições
anteriores. Contudo, os textos e materiais perduram no arquivo e, a partir
deles, nossos estudos devem deslocar seus olhares para reivindicar e inventar
leituras que ainda se encontrem em falta.
Isso se torna evidente, desde já, em relação às nações pré-hispânicas,
que foram silenciadas em grande medida, mas também concerne às culturas
indígenas e mestiças da época colonial, mesmo quando algumas operações
bem sucedidas, como as do Inca Garcilaso de la Vega, conseguiram inverter
esse mecanismo, já que acabaram adquirindo uma visibilidade muito maior
que a obtida pelas versões oficiais dos cronistas toledanos. Especificamente

20 ALFREDO CORDIVIOLA e VANINA TEGLIA | Acerca dos... ALEA | Rio de Janeiro | vol. 22/1 | p. 15-24 | jan-abr. 2020
na órbita dos Estudos pós-coloniais ou decoloniais, a maior ambição seria a
constituição de uma voz-praxis indígena direta, carnal, política e politizante,
como base para a reafirmação das suas identidades antropológico-culturais.
Nesse sentido, este tipo de estudos pode ser promotor dessa voz. Ou então,
na lógica que este volume propõe, a escrita acadêmica – com a ajuda desta
metodologia adequada – aportaria a identificação ou busca de vozes e de
gêneros – do passado ou do presente – que apontem para transformar as
minorias afro-indo-americanas em sujeitos e coletividades plenamente políticos.
A mulher – e ainda mais, a mulher colonial –, mesmo sendo um tema
hoje muito abordado, tem sido excluída como objeto e sujeito nos Estudos
Coloniais. Por isso, a pergunta principal deve indagar como, em que espaço e
com que luz observar a mulher colonial a partir do presente, para que emerja
como sujeito e ocupe um sítio próprio, e não alheio ou adjudicado no arquivo
colonial, no qual tem estado geralmente associada com o demoníaco e com
a traição, em perpétua desvalorização. A mulher condenada ou condenável
não teria que ser em si mesma, de acordo com a metodologia que estamos
esboçando e segundo se verá neste volume, o foco de atenção da descrição destes
Estudos. Haveria que apreciar, no entanto, suas estelas, observar, por exemplo,
as condenações que a limitam. Com isso, também, deter-se na função textual,
narrativa, social e cultural que essa mesma condenação cumpria. E, assim,
não abordar seu lugar de forma limitada, mas reconhecer seus limites, alguns
dos quais ela mesma define. Dessa maneira, é nesses deslocamentos, reflexos
ou detalhes “marginais”, que não constituem a totalidade, que emergiriam
as agências e as identidades femininas.
Cabe aqui mencionar, por outro lado, que a figura do criollo tem sido
reunida junto com as das mulheres e dos mestiços. Todavia, aqui, haveria
que ter em conta que os criollos fundaram arquivos que determinaram o
cânone e, a par da consolidação global da burguesia, foram os beneficiários
de todos os privilégios na América. Lembremos, também, a modo de ressalva,
que, ainda na colônia, o criollo era uma entidade lábil e sem limites claros,
e que podia estar presente e ausente ao mesmo tempo no discurso: podia
encontrar-se nos lugares em que não era mencionado e ausente quando o
discurso de fato aludia a ele.
Por outra parte, também é necessário indagar acerca de qual é o lugar que
ocupa o evangelizador cristão no processo da colonização, entre a compaixão
e o exame horrorizado, entre a valorização e o desprezo do Outro, entre o
desejo de transformá-lo e a nostalgia do perdido. Certamente, a figura do
evangelizador e sua escrita assumem posições inapreensíveis que poderiam ser
compreendidas através das suas fugas. Ou seja, trata-se de observar as causas
e, provavelmente, os efeitos dessa translação entre posições assumidas ao
longo da conquista. Desse modo, não se trataria de ir contra o que afirma a

ALEA | Rio de Janeiro | vol. 22/1 | p. 15-24 | jan-abr. 2020 ALFREDO CORDIVIOLA e VANINA TEGLIA | Acerca dos... 21
personagem, mas de relevar o que é que exprimem as aparentes contradições
entre o afirmado e o que se deixa falar nos textos ou na cultura material
abordada.
Essas variáveis personagens, usualmente assumidos pela voz dos
evangelizadores, referem também diferentes projeções sobre os indígenas.
Os artigos incluídos neste número demonstram que, especialmente nos textos
dos missionários e teólogos, as representações dos nativos se contradizem
constantemente. Nestas projeções, é interessante e fecundo observar os espaços
de inconstância, de desfiguração e de “amorfia da alma selvagem” (VIVEIROS
DE CASTRO, 2002). Isto deveria ser assim, apesar, justamente, da também
usual insistência própria dos evangelizadores, presos ao discurso hegemônico
do cristianismo – embora também em parte graças a ele –, que os obrigava a
caracterizar aos nativos como nobres selvagens. Nas formas prévias e nos seus
deslizes – propõem estes artigos – estaria a chave dos efeitos que teve o discurso
evangelizador. Em linhas gerais, o volume propõe que esses deslocamentos dos
religiosos e dos seus propósitos missionais se revelam na própria gramática
das suas expressões discursivas, as que analisam também em suas referências
e descrições da língua indígena. Lembremos que as gramáticas, dicionários e
diversas “obras de tradução” linguística e cultural têm sido gêneros comuns de
que se encarregaram os missionários, e que constituem, dessa forma, objetos
totalmente válidos para a análise destes deslocamentos.
Por último, este volume também se pergunta como abordar a escritura
europeia que procurou assimilar as “línguas inscritas nos corpos” (MIGNOLO,
1994), tais como as danças, os cantos, as imagens, e, decerto, a oralidade.
Por outra parte, também, essa pergunta se desdobra em outra: como fazer
para que a cultura material colonial do passado, sobrevivente e com entidade
simbólica, continue (nos) falando no presente? Nesta lógica, os artigos que
compõem esta coletânea indicam que tanto os cantos como algumas danças
e imagens, a oralidade, os rituais, a arquitetura de uma cidade, as práticas
médicas indígenas, entre outros, sejam arquivos viventes (ou sobreviventes)
que devem ser lidos nas suas margens diluídas ou em suas ruinas fragmentadas,
e sempre como documentos.
Tal como estamos aqui indicando, esse caminho de interpretação pode
interpelar identidades que, mesmo instáveis, ainda ativam o reconhecimento
e o auto-reconhecimento coletivo nas alteradas sociedades dos nossos tempos.
Os rituais de origem colonial, tanto como os pré-hispânicos e os mestiços,
têm sido estetizados popularmente no presente e, assim, mais do que práticas
que reproduzem uma institucionalização cristã-colonial, acabam, em algumas
circunstâncias, operando como modelos de contra-hegemonização. Nesses
deslocamentos, os sentidos pré-hispânicos e mestiços são resguardados como
ruínas vivas. Deste mesmo processo – com suas diferenças particulares –, têm

22 ALFREDO CORDIVIOLA e VANINA TEGLIA | Acerca dos... ALEA | Rio de Janeiro | vol. 22/1 | p. 15-24 | jan-abr. 2020
participado as práticas médicas de tradição indígena. Apesar da sua efetividade
e também da sua semelhança, em muitas ocasiões, com a medicina que se
consolidou na Europa durante os séculos em que América se encontrava
sob dominação colonial, as práticas curativas indígenas pré-colombianas
e contemporâneas da colônia foram quase totalmente relegadas; inclusive,
apesar de alguns esforços do próprio discurso colonial documental, como
os de Gonzalo Fernández de Oviedo, de Bernardino de Sahagún, ou de José
de Acosta, entre outros.
Deste modo, os ensaios reunidos nestas páginas convidam a observar,
no devir colonial, tanto as palavras, como a cultura material, as práticas
culturais e os agenciamentos da oralidade, e suas modalidades diluídas e
desfocadas, porque desta maneira é como se podem dissolver os limites e os
matizes já definidos e aparentemente cristalizados no arquivo. São textos que
exibem e analisam seus objetos, mas também anunciam novas formas de ver
e interpretar um corpus quase infinito, que se renova diariamente e continua
promovendo todo tipo de inquirições neste tempo presente que nos toca viver.

Referências
VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. “O mármore e a murta: sobre a inconstância
da alma selvagem”. In: A inconstância da alma selvagem – e outros ensaios de
antropologia. São Paulo: Cosac & Naify, 2002, p. 181-264.

MIGNOLO, Walter. “Signs and their transmission: The question of the book in
the New World”. In: Boone, Elizabeth Hill; MIGNOLO, Walter (eds.). Writing
Without Words: Alternative Literacies in Mesoamerica and the Andes. Durham, NC:
Duke University Press, 1994.

ALEA | Rio de Janeiro | vol. 22/1 | p. 15-24 | jan-abr. 2020 ALFREDO CORDIVIOLA e VANINA TEGLIA | Acerca dos... 23
Alfredo Cordiviola. Professor Titular de Teoria da Literatura na Universidade Federal
de Pernambuco. Licenciado em Letras pela Universidade de Buenos Aires (1986),
Mestre em Teoria da Literatura pela UFPE (Brasil, 1993) e Doutor em Estudos
Hispânicos e Latino-americanos pela University of Nottingham (Reino Unido, 1998).
Pós-doutor pela Universidade de Buenos Aires (2012) e Visiting Scholar na New York
University (2017). Pesquisador do CNPq, dirige o Grupo de pesquisa “Estudos coloniais
latino-americanos”. Suas mais recentes publicações são O império dos antagonismos.
Escrita e imagem no ocaso da dominação espanhola na América (2010); Espectros
da geografia colonial. Uma topologia da ocidentalização da América (2014) e Os
retornos da utopia. Histórias, imagens, experiências (organizado com Ildney Cavalcanti,
2015) e Objetos de memória. Materialidades do passado na América colonial (2019).
E-mail: alfredo.cordiviola@gmail.com

Vanina M. Teglia. Professora de Literatura Latino-americana na Universidad de


Buenos Aires. Doutora em Letras pela UBA. Autora de múltiplos artigos especializados
em literatura colonial hispano-americana e das edições críticas Naufragios de Álvar
Núñez Cabeza de Vaca (2013), Diario, cartas y relaciones de Cristóbal Colón (2012) e
Brevísima relación de la destrucción de las Indias de Bartolomé de las Casas (2017). Um
livro de sua autoria sobre as utopias enfrentadas nas crônicas das Índias do século XVI
se encontra no prelo. Pesquisadora do CONICET. Foi bolsista Fulbright, da John
Carter Brown Library, do GRISO, da Casa de Velázquez e da Huntington Library.
E-mail: vaninateglia@filo.uba.ar

Recebido em: 31/10/2019


Aceito em: 04/11/2019

24 ALFREDO CORDIVIOLA e VANINA TEGLIA | Acerca dos... ALEA | Rio de Janeiro | vol. 22/1 | p. 15-24 | jan-abr. 2020
CRÍTICA DA RAZÃO NACIONAL-OCIDENTALISTA:

ARTIGO
POR UMA NOVA ABORDAGEM PÓS-COLONIAL
NOS ESTUDOS BRASILEIROS1
CRITIQUE OF THE NATIONAL-OCCIDENTAL REASON: FOR A NEW
POSTCOLONIAL APPROACH INTO BRAZILIAN STUDIES

Alfredo Cesar Melo


ORCID 0000-0002-7038-5749

Universidade Estadual de Campinas


Campinas, SP, Brasil

Resumo
Diante da intensa resistência à crítica pós-colonial dentro dos estudos brasileiros,
este artigo procura organizar a discussão sobre o pensamento pós-colonial no Brasil,
estruturando e situando qual seria o seu principal objeto de estudo. De acordo com
o argumento desenvolvido ao longo do artigo, a experiência pós-colonial no Brasil é
narrada hegemonicamente pelo intelectual nacional-ocidental (o artífice da dialética
entre o local e o universal), que sempre atesta uma filiação à tradição ocidental ao
mesmo tempo que afirma um desejo por demarcação da singularidade nacional,
onde estaria positivada a diferença entre o país e o centro de poder ocidental. Mostro
no artigo que esse modo nacional-ocidental de articular o pós-colonial reproduz
profundas lógicas de colonialidade. A partir da crítica dessa razão nacional-ocidental,
proponho uma outra estruturação do pós-colonial nos estudos brasileiros.
Palavras-chave: Nacional-ocidental, Pós-colonial, Pensamento social brasileiro,
Colonialidade

Abstract Résumé
Given the intense resistance towards Cet article vise à organiser la discussion
postcolonial critique within Brazilian sur la pensée post-coloniale au Brésil,
Studies, this article intends to organize vis-à-vis de l’intense résistance à la
the discussion about the postcolonial critique post-coloniale au sein des études
thought in Brazil, structuring it and brésiliennes, en structurant et en situant
situating what would be its main object ce qui serait son principal objet d’étude.
of study. According to the argument Selon l’argument développé tout au long
developed in this article, the postcolonial de l’article, l’expérience post-coloniale au
experience is narrated hegemonically by Brésil est racontée hégémoniquement

1 Este artigo foi escrito durante um estágio pós-doutoral na Universidade Nova de Lisboa, financiado pela
Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes). O tema da nossa investigação era
a ideologia do progresso no Brasil. Em um momento de crise e ameaça à existência das agências federais
de fomento, reitero meu agradecimento à Capes.

ALEA | Rio de Janeiro | vol. 22/2 | p. 17-40 | mai-ago. 2020 ALFREDO CESAR MELO | Crítica da razão....

https://dx.doi.org/10.1590/1517-106X/20202221740
17
the national-occidental intellectual (the par l’intellectuel national-occidental
craftsman of the dialectics between the (l’artisan de la dialectique entre le local
local and the universal). This intellectual et l’universel), qui rend compte d’une
frequently claims filiation to the Western affiliation avec la tradition occidentale en
tradition whilst also affirming the desire même temps qu’il affirme une volonté de
to demarcate the national singularity, démarcation de l’unicité nationale, dans
turning positive the difference between laquelle la différence entre le pays et le
his marginal country and the center of centre du pouvoir occidental serait perçue
Western power. In this article I intend comme positive. Je montre dans l’article
to show that the national-occidental way que cette façon nationale-occidentale
of articulating the postcolonial replicates de penser le post-colonial reproduit les
the profound logic of coloniality. Based logiques profondes de la colonialité.
on this critique of the national-occidental Sur la base de la critique de cette raison
reason, I offer an alternative structuration nationale-occidentale, je propose une
to the postcolonial question within autre structure du post-coloniale au coeur
Brazilian Studies.  des études brésiliennes.
Keywords: National-occidental, Mots-clés: National-occidental, Post-
Postcolonial, Brazilian social thought, colonial, Pensée sociale brésilienne,
Coloniality Colonialité

Se os estudos pós-coloniais se definem pela reflexão em torno do


legado colonial, seus efeitos e prolongamentos nos campos da economia,
da cultura, da política e das relações sociais, não se pode negar que há, no
âmbito brasileiro, uma longa tradição de pensamento e crítica pós-coloniais.
É óbvio que a maneira como esse campo de estudo se estrutura no Brasil
pouco tem a ver com o que se denomina postcolonial studies nos países de
língua inglesa. A experiência da descolonização após a II Guerra Mundial
deu o lastro a essa teorização pós-colonial nas academias norte-americanas e
inglesas, levada a cabo por intelectuais originários das ex-colônias europeias
(Edward Said, 1978; Homi Bhabha, 2000; Gayatri Spivak, 1999; Dipesh
Chakrabarty, 2000; Hamid Dabashi, 2015; Gyan Prakashi, 1999) e focada
na dualidade instável, ambivalente e porosa entre colonizador e colonizado,
ocidental e oriental, centro e periferia, primeiro e terceiro mundos.
A singularidade de cada experiência colonial, ao longo do tempo e do
espaço, não permite que um caso possa servir de paradigma iluminador para
o outro. É preciso urgentemente provincianizar2 os estudos pós-coloniais,
isto é, compreender as reflexões críticas sobre os efeitos do colonialismo,

2 A referência aqui é ao estudo clássico de Dipesh Chakrabarty, Provincializing Europe. Provincianizar


a Europa seria questionar sua posição de locus enunciador da universalidade, isto é, seria apontar a
particularidade que se quer – e que por meio do poder político, econômico, militar e cultural, se faz –
universal.

18 ALFREDO CESAR MELO | Crítica da razão... ALEA | Rio de Janeiro | vol. 22/2 | p. 17-40 | mai-ago. 2020
em suas diferentes configurações históricas e políticas, como um arquivo
de saberes pós-coloniais (com potencial descolonizante), que deve estar à
disposição de todos, sem modelos normativos centrados em países específicos
a serem seguidos – o que inevitavelmente estabeleceria uma hierarquia entre
experiências coloniais –, nem tampouco devemos estimular a reprodução da
divisão internacional do conhecimento, na qual ao centro compete teorizar
e a periferia cabe o papel de objeto a ser teorizado. É preciso encontrar
uma tensão dialógica entre os diferentes modos de pensar o pós-colonial ao
redor do globo, que são a um só tempo desiguais e combinados, diferentes
e familiares, singulares e conectados.
Parto do princípio, portanto, de que o pós-colonial não é apenas
múltiplo geografica e historicamente (as experiências coloniais – e a consequente
reflexão sobre elas – são variadas ao longo do espaço e do tempo), mas também
sociologicamente. Dentro de um espaço pós-colonial, há visões díspares sobre o
que foi a experiência colonial, e se o seu legado deve ser mantido, parcialmente
apreciado ou totalmente eliminado. Este artigo pressupõe que o pós-colonial
é um campo em permanente disputa3, seja por parte de diferentes correntes
ideológicas e intelectuais, seja por parte das diversas classes sociais e grupos
étnicos, que vivenciam a colonialidade cada um a seu modo, limitados por
seus condicionamentos. Para os efeitos do argumento aqui exposto, examinarei
criticamente como se dá a dinâmica geral dessa disputa no segmento letrado,
que exerce um papel hegemônico na construção de autoimagem do país, por
meio das chamadas interpretações do Brasil.
De acordo com a hipótese que pretendo desenvolver ao longo do
artigo, o pós-colonial se configura entre os letrados brasileiros a partir de um
sistema de possibilidades que denomino como arco nacional-ocidental. Tal
sistema se estrutura a partir de polêmicas, tensionamentos e debates acerca
da herança ocidental no Brasil, e da maneira como o “nacional” performaria
variações, apropriações e modulações em torno dessa herança, gerando um
espaço de negociação identitária em que tanto os legados supostamente
universais (sempre identificados com o Ocidente) como as singularidades
da nação poderiam coexistir de um modo bastante compatível. Empregando
um outro vocabulário teórico, apresento ao leitor a boa e velha dialética entre
o local e o universal, instrumento analítico fundamental para os brasileiros
darem inteligibilidade à experiência colonial e seus legados. O que proponho
é investigar as dimensões ocultas dessa dialética, e mostrar como o pós-

3 Nesse sentido, não há como discordar de Quentin Skinner, que a força estruturante da história das
ideias é a batalha ideológica e intelectual: “[T]he principles governing our moral and political life have
generally been disputed in a manner more reminiscent of the battlefield than the seminar room.[...]
What the historical record strongly suggests is that no one is above the battle, because the battle is all
there is.” (SKINNER, 2002, p. 7).

ALEA | Rio de Janeiro | vol. 22/2 | p. 17-40 | mai-ago. 2020 ALFREDO CESAR MELO | Crítica da razão.... 19
colonial do letrado brasileiro repõe inúmeras lógicas de colonialidade, isto
é, de hierarquização e subalternização de culturas não ocidentais.
Por fim, uma nota metodológica: considero aqui o denominado
“pensamento social brasileiro” de uma maneira descritiva, isto é, como um
conjunto de textos produzido por um campo caracterizado na época pela pouca
especialização intelectual e diferenciação disciplinar, no qual podemos encontrar
obras de literatura, de crítica literária, o ensaio sociológico e antropológico,
as sínteses históricas, as reflexões filosofantes. Esses textos almejavam não
apenas construir representações da sociedade e cultura brasileiras, devendo ser
também compreendidos como atos de fala que performam disputas em torno
do que o Brasil deveria ser, de sua relação com as instituições ocidentais, de
que ideias parecem se adequar ou não ao território nacional, etc. Não pretendo
fazer qualquer avaliação sobre o potencial teórico (LYNCH, 2013) ou sobre
a eficiência explicativa de tais textos (TAVAROLO, 2014), encarando-os
sobretudo como elementos constitutivos de um sistema de significação das
possibilidades da nação.

Enfrentando a doença de Nabuco


No Brasil, a dinâmica da sociedade pós-colonial que se estabeleceu
era muito distinta daquela encontrada em vários países da África e da Ásia
do pós-guerra, e como notava Paulo Emílio de Salles Gomes, as figuras dos
ocupantes e ocupados tornaram-se relativamente indistintas ao longo dos séculos
de colonização, a ponto de, ainda segundo Paulo Emílio, não haver, entre a
nação brasileira e o ocidente, “a barreira natural de uma personalidade hindu ou
árabe”(1980, p. 76), que precisasse “ser conscientemente sufocada, contornada
e violada”(1980, p. 76). Na Argélia, lembra Paulo Emílio, os franceses foram
expulsos do país após a descolonização, o que representaria uma “aberração
sociológica” se a mesma medida fosse aplicada à situação brasileira. Em linha
semelhante de raciocínio, Roberto Schwarz argumenta que os brasileiros “já
não somos mais os índios e africanos da primeira época, de modo que há
também ingenuidade e mitificação em considerar o colonizador como o outro,
com quem nós, povos colonizados, não temos parte” (1999, p. 71, grifos do
autor). Tanto os brasileiros teriam parte com o colonizador que, para retornar
à elaboração de Paulo Emílio, seriam vistos como um “prolongamento do
Ocidente”(1980, p. 76), habitando a América com valores e preceitos europeus,
o que os fazia muitas vezes se sentirem, na definição de Sérgio Buarque de
Holanda, “desterrados na própria terra”(1995, p. 17). A configuração pós-
colonial gerava no letrado brasileiro essa sensação perene de deslocamento,
isto é, de alguém que vive na periferia do ocidente, em comunhão espiritual
com a Europa, mas segregado do seu centro dinâmico de poder e criação
cultural. Não é por acaso que Antonio Candido define a literatura brasileira

20 ALFREDO CESAR MELO | Crítica da razão... ALEA | Rio de Janeiro | vol. 22/2 | p. 17-40 | mai-ago. 2020
como “galho secundário da [literatura] portuguesa, por sua vez, arbusto de
segunda ordem no Jardim das Musas” (1997, p. 9). Retrato eloquente desse
mal-estar pode ser encontrado nas palavras célebres de Joaquim Nabuco, para
quem o espírito humano fazia do continente europeu a sua morada, deixando
os habitantes do Novo Mundo numa “verdadeira solidão, tão longe das suas
reminiscências, das suas associações de ideias, como se o passado todo da raça
humana se lhe tivesse apagado da lembrança” (1998, p. 59).
O historiador Evaldo Cabral de Mello aponta corretamente que o
grande esforço intelectual do século 20 brasileiro esteve concentrado na
tentativa de cicatrizar as feridas da doença de Nabuco (MELLO, 2002, p.
120). Tal esforço pode ser verificado no modo como o nacionalismo cultural
modernista tornou-se um vetor hegemônico na interpretação que os brasileiros
construíram para dar inteligibilidade a esses dilemas. O desafio era equacionar
de modo favorável à autoestima nacional a inelutável dependência cultural
(resultado da posição periférica do Brasil no sistema internacional) com a
capacidade de afirmação e criação artística do país. Em outras palavras, era
imperativo buscar uma síntese entre “prolongamento e novidade; cópia e
invenção; automatismo e espontaneidade” (CANDIDO, 1987, p. 192). Ou
para usar o vocabulário crítico de Silviano Santiago, fazia-se necessário achar
um espaço entre “prisão e transgressão. [...]submissão ao código e agressão;
[...] obediência e rebelião; [...] assimilação e expressão” (SANTIAGO, 2000,
p. 18). Os intelectuais deviam examinar quais seriam os possíveis espaços
de manobra deixados pela moldura civilizatória ocidental para a expressão
criativa e singular dos brasileiros.
Não seria exagero afirmar que boa parte dos anseios pós-coloniais da
inteligência brasileira ao longo do século 20 esteve em teorizar a contribuição
específica do local (Brasil) ao repertório universal (Ocidente), além de conceber
uma modulação localista da cultura ocidental. De acordo com a expressão
de Mário de Andrade, tratava-se de achar um acorde que fosse usado na
harmonia da civilização ocidental (ANDRADE, 1982, p. 15). Na crítica
cultural, esse empenho pode ser encontrado em estudiosos das mais distintas
correntes teóricas, o que mostra que o problema é estruturante e de base. Para
Antonio Candido, “nossas literaturas são essencialmente europeias, na medida
em que continuam a pesquisa da alma e de sociedade definida na tradição
das metrópoles” (1987, p. 195). No entanto, por estarem transplantadas em
ambiente estranho, em contato com outros povos e tradições, essa literatura
“foi obrigada a imprimir na expressão herdada certas inflexões que a tornaram
capaz de exprimir também a nova realidade natural e humana” (1987, p. 195).
De acordo com tal argumento, o Brasil seria capaz de imprimir inflexões
no texto metropolitano e de criar variações inventivas da cultura ocidental.
Algo semelhante pode ser encontrado em Haroldo de Campos, que defendia

ALEA | Rio de Janeiro | vol. 22/2 | p. 17-40 | mai-ago. 2020 ALFREDO CESAR MELO | Crítica da razão.... 21
um nacionalismo modal (em contraposição ao nacionalismo ontológico,
atribuído ao modelo historiográfico de Formação da literatura brasileira), que
é pensado como “movimento dialógico da diferença” (1981, p. 17), capaz
de produzir tal diferença “nos interstícios de um código universal” (1981,
p. 19). Silviano Santiago, por sua vez, teoriza sobre esse estatuto secundário
ou derivativo geralmente associado às culturas periféricas como a brasileira.
Combatendo as noções de fonte e influência – que haviam marcado até então
a disciplina da literatura comparada -, Santiago argumenta que “[a] maior
contribuição da América Latina para a cultura ocidental vem da destruição
sistemática dos conceitos de unidade e pureza” (2000, p. 16). Santiago defende
assim uma ideia de “universalidade diferencial”, que se contrapõe aos valores
estáticos e monológicos da “universalidade dos colonizadores” (1980, p. 42).
A universalidade diferencial seria aquela em que o escritor latino-americano
suplementa, comenta, adiciona, critica, retifica o texto metropolitano, num
diálogo em que destaca a diferença e descarta qualquer tipo de submissão.
Apesar das divergências teóricas que existem entre esses autores; das
inúmeras polêmicas historiográficas travadas entre eles sobre as origens e
formação da literatura brasileira; das discordâncias políticas sobre o sentido
dessa modulação nacional da cultura ocidental; pode-se dizer que, ao longo
do século 20, a crítica brasileira construiu um modelo explicativo sobre a
produção cultural brasileira em que o local é, a um só tempo, parte integrante
do “universal” e elemento capaz de reelaborar e reinventar as feições da tradição
cultural ocidental tais como se manifestam naquele local do planeta – às
vezes de modo rebelde e inconformista, outras tantas de modo harmonioso
e funcional. Para sintetizar recorrendo ao título de famoso artigo de Silviano
Santiago, poderíamos dizer que a crítica cultural esteve empenhada em mostrar
que, ao longo do século 20, o Brasil poderia ser, “apesar de dependente,
universal” (i.e., participar de maneira crítica e criativa na reelaboração da
cultural ocidental, a despeito de sua posição periférica).
Se ao longo do século passado, a reflexão pós-colonial no Brasil se
configurou a partir de um dilema que era essencialmente do letrado brasileiro
(espremido por sua dupla fidelidade, seus ambivalentes sentimentos de
pertença, etc.), o momento histórico atual – travejado por demandas de
grupos historicamente excluídos da cidade letrada, como os movimentos
negros e os povos ameríndios – é propício tanto para o questionamento desse
letrado nacional-ocidental quanto para sugerir a reflexão sobre uma outra
estruturação do pós-colonial no Brasil. A proposta deste artigo é transformar o
sujeito pós-colonial hegemônico do cenário brasileiro – o artífice da dialética
entre o local e o universal, isto é: o intelectual nacional-ocidental – num
objeto a ser examinado criticamente. A questão pós-colonial no Brasil vem
sendo basicamente estruturada a partir da narrativa tecida por esse sujeito,

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que realça o dilema do mazombo, a doença de Nabuco4, ou que imagina a
cultura brasileira metaforicamente como sendo um tupi tangendo o alaúde,
ou um antropófago devorando a Europa, habitando entrelugares variados. O
foco do presente estudo não incidiria sobre aquilo que o letrado pós-colonial
brasileiro afirma e recria dentro do espaço possível das estruturas ocidentais,
mas sobre o que tal sujeito nega e suprime em nome dessas estruturas que o
abrigam e da qual participa, ainda que de uma maneira supostamente crítica
e rebelde. É preciso entender o que viria a ser e como funciona aquilo que
denomino o arco discursivo nacional-ocidental para esmiuçar essas relações
de poder.

O arco nacional-ocidental
Antes de apresentar o conceito de nacional-ocidentalismo, caberia
avaliar a ideia de ocidentalismo, que já há algum tempo circula nos estudos
pós-coloniais hispano-americanos. De acordo com o antropólogo venezuelano
Fernando Coronil (1996), o ocidentalismo não poderia ser interpretado
como o reverso do orientalismo (isto é, uma representação estereotipada
do Ocidente produzida pelos orientais) porque a imagem estigmatizada
ou caricatural do Ocidente eventualmente criada por orientais está longe
de afetar a vida dos ocidentais, enquanto o orientalismo estrutura políticas
públicas e modos de atuação estatal e empresarial que reverberam no cotidiano
daqueles que são “representados” em tal discurso. Isso dito, ainda segundo
Coronil, ocidentalismo poderia ser interpretado como a própria condição
de possibilidade do orientalismo. Afinal, se o orientalismo é uma formação
discursiva ocidental que inventa o Oriente, tal fabricação da alteridade só
faz sentido quando contraposta à autoimagem do seu criador, o intelectual
ocidental. O pressuposto da representação do Outro oriental seria a
elaboração de parâmetros definidores da diferença abissal entre o objeto
oriental representado e o sujeito ocidental, sempre marcado por sua suposta
superioridade racial, excepcionalismo cultural, além dos fardos e missões
civilizatórias autoatribuídas. Esse conjunto de prerrogativas e autopercepções
formaria o núcleo do ocidentalismo.
De acordo com Walter Mignolo, as Américas – diferentemente do
Oriente – não seriam vistas (e autorrepresentadas) como o outro da Europa
(2000, p. 97). O Novo Mundo seria compreendido como uma extensão
do Velho Continente. Isso faz com que o ocidentalismo seja uma questão

4 Mazombo seria o luso-descendente nascido no Brasil, na época da colonização. O dilema do mazombo,


nas palavras de Evaldo Cabral de Mello, seria o dilema do “descendente de europeu ou reputado como
tal, com um pé na América e outro na Europa, e equivocadamente persuadido de que, cedo ou tarde,
terá de fazer uma opção” (MELLO, 2002, p. 130). A doença de Nabuco seria basicamente uma variação
do dilema de mazombo.

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pertinente aos países americanos – já que a América seria desenhada nesse
mapa imperial como o extremo Ocidente. É claro que tal autoimagem se
configura de modo bastante diferente quando comparamos o que acontece
no centro de poder do Ocidente com o que ocorre nas suas margens. O
ocidentalismo de um administrador colonial britânico ou de um diplomata
francês apresenta uma outra dinâmica de poder quando cotejado ao modo
de imaginar-se ocidental encontrado no discurso de um publicista brasileiro
ou de um ensaísta argentino. Enquanto os primeiros são parte de um projeto
imperial, os ocidentais periféricos estão engajados no processo de consolidação
do Estado nacional. Apesar da imensa disparidade na escala geopolítica de
suas atuações, tanto o administrador colonial francês quanto o ensaísta
latino-americano precisam enquadrar um outro para afirmarem a hegemonia
ocidental nos cenários em que trabalham5. No caso brasileiro, os outros seriam:
o negro, o índio, as formas de vida consideradas tradicionais e arcaicas dos
caipiras, dos sertanejos, dos quilombolas, vistas como impróprias para os bons
hábitos de trabalho, para a produtividade da economia, e para o exercício de
uma cidadania plena. Um conjunto de obstáculos gerado pela presença não
ocidental precisaria ser removido, suavizado, diluído ou domesticado para
a nação se modernizar.
Tal como se manifesta nos países latino-americanos, o ocidentalismo
está, portanto, intrinsecamente ligado à questão nacional. Não há a menor
dúvida que essa relação extensiva com a Europa, de prolongamento e pertença,
fartamente encontrada na imaginação letrada brasileira em vários momentos
históricos, vem acompanhada de uma busca pela singularidade nacional. O
que vale também destacar é que, para o letrado brasileiro, nacionalismo e
ocidentalismo nunca foram forças em oposição6, como podemos verificar
no início do artigo e em declarações como a do então presidente Fernando
Henrique Cardoso:

5 Apesar de “imperialismo” ser um conceito muitas vezes tido como sinônimo de “colonialismo”, é
importante destacar que, quando o conceito é criado por John Hobson, o imperialismo é estudado
como produto da competição frenética entre potências europeias por territórios e recursos naturais em
escala planetária. O imperialismo se alimentaria portanto de uma espécie de nacionalismo hipertrofiado
das potências europeias. Também devemos notar que se, ao longo do século 19, o imperialista europeu
tinha que enquadrar o “outro” em territórios muito distantes da Europa, no século 20, o quadro muda
substancialmente a paritr da migração de habitantes das ex-colônias para os espaços metropolitanos. A
reação racista a essa onda migratória foi bem analisada por Etienne Balibar e seu conceito de “neoracismo”
(cf. BALIBAR, 1991).
6 Observando o processo de modernização e padronização geral do mundo, sobretudo após a II Guerra
Mundial, Erich Auerbach observa que tal processo homogeneizador não encontra no nacionalismo uma
força de oposição: “Por mil razões, conhecidas por todos, a vida humana uniformiza-se em todo planeta. O
processo de nivelamento, originário da Europa, estende-se cada vez mais e soterra todas as tradições locais.
É certo que, por toda parte, o sentimento nacional é mais forte e barulhento do que nunca, mas em toda
parte ela toma a mesma direção, isto é, rumo às modernas formas de vida” (AUERBACH, 2007, p. 357).

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Nós aqui somos [...] extremo Ocidente, mas no extremo Ocidente a presença
não ocidental existe. E nós só queremos constatá-la no geral, mas não aspiramos
criar um modelo para o mundo que seja alternativo ao Ocidente. A Índia
talvez aspire. Queremos, sim, ter um espaço nesse modelo do Ocidente para
algumas peculiaridades, e a Índia talvez queira outra coisa que não o Ocidente,
como a China. (2015, p. 417)

Notemos que o desejo por um espaço para afirmar “algumas


peculiaridades” e a constatação da presença “não ocidental” do Brasil em
nada mexem com a disposição brasileira de, nas palavras de Cardoso, não
“criar um modelo para o mundo que seja alternativo ao Ocidente”. Estamos
novamente no terreno discursivo da “modulação”, da “variação”, do “espaço
de manobra” possível, da “inflexão local”, isto é, da gestão nacional de uma
cultura que almeja alguma singularidade, ainda que completamente compatível
com os quadros gerais da civilização ocidental7.
Uma reflexão do historiador Fernando Novais talvez ajude a pensar
nas condições históricas de emergência desse sistema de possibilidades que
denominamos aqui de nacional-ocidental. Segundo Novais:

Para entender a cultura brasileira, nós temos que pensar que a Independência foi
feita pelo senhoriado colonial, que não é nem o colonizado, nem o colonizador,
como já dissemos. Se nós não partirmos disso, não entendemos que a cultura
brasileira é uma cultura que se debate na procura de uma identidade difícil de
se caracterizar. Porque, ao fazer a Independência, você não pode se identificar
com o colonizado, que é o índio e o negro, porque você quer continuar
colonizando, mas também não pode se identificar com o colonizador, que é

7 São inúmeras as formulações sobre essa compatibilidade estrutural entre o ocidente e a nação na cultura
brasileira, isto é, sobre esse jogo dialético que envolve pertencimento ao Ocidente e certa diferenciação
formuladora da singularidade nacional, mas que não rejeitaria o vínculo espiritual com o Ocidente.
Só a título de exemplo, vejamos o editorial da Revista, periódico modernista de Minas Gerais, editado
por Carlos Dummond de Andrade (entre outros): “Será preciso dizer que temos um ideal? Ele se apoia
no mais franco e decidido nacionalismo. A confissão desse nacionalismo constitui o maior orgulho de
nossa geração, que não pratica a xenofobia nem o chauvinismo, e que, longe de repudiar as correntes
civilizadoras da Europa, intenta submeter o Brasil cada vez mais ao seu influxo, sem quebra da nossa
nacionalidade original” (citado em MARQUES, 2013, p. 36). Por outro lado, há os argumentos que
mostram a compatibilidade de um certo Ocidente (o ibérico) com os países latino-americanos. José
Guilherme Merquior na sua reflexão sobre o “outro Ocidente” do qual os países como o Brasil faziam
parte, reconhece que os latino-americanos “somos uma modificação e uma modulação original e vasta da
cultura ocidental. Mas isso a Ibéria sempre foi: um caso peculiar do Ocidente, porém de forma alguma
uma aberração. A Ibéria sempre foi uma faceta especial a Hespéria – e assim somos nós, criaturas da
Ibéria e gênios da mistura étnica e cultural (MERQUIOR, 1990, p. 36). Apesar do reconhecimento
que o Brasil faz parte de um outro Ocidente, Merquior em nenhum momento defende uma “alternativa
latino-americana”. Pelo contrário, o artigo parte de uma crítica ao O espelho de Próspero de Richard Morse
e seu elogio à tradição cultural ibérica. Como liberal, Merquior é um árduo defensor da modernização
social e econômica brasileira, que nos deixaria mais próximos do Ocidente hegemônico.

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o português, porque senão você não faz a Independência. É isso que cria o
drama da cultura brasileira, não só o drama político (2004, p. 139).

Como não é propriamente um colonizador nem um colonizado, esse


senhoriado (pós-) colonial precisa se diferenciar da cultura metropolitana, a
portuguesa, construindo os símbolos próprios da nação, ao mesmo tempo
que quer continuar a colonização de negros, índios e mestiços. Manter a
colonização, nesse caso, deve ser compreendido tanto no sentido de continuar
subjugando e explorando economicamente essas populações para se inserir
de maneira competitiva no mercado internacional de gêneros primários
(dentro da lógica agromercantil), como no sentido de “civilizar” esses povos,
incutindo padrões sócio-culturais ocidentais com o objetivo de modernizar o
povo brasileiro (seguindo a lógica progressista). Os dois modos de “continuar
colonizando” não deixam de ser, cada um à sua maneira, e seguindo um figurino
próprio, formas de integrar os “colonizados” ao Ocidente8. Daí podemos
apreender nessa posição estrutural do senhoriado pós-colonial brasileiro as
condições históricas de possibilidade para o nexo entre nacionalismo (que
pretende se diferenciar da ex-Metrópole) e ocidentalismo (que pretende
integrar o povo brasileiro ao Ocidente, seja dentro da lógica agromercantil,
seja dentro da retórica progressista). A observação de Fernando Novais é
particularmente enriquecedora porque ela dá uma maior precisão sociológica
à questão, destacando um grupo social relativamente homogêneo que domina
a narrativa pós-colonial no Brasil, que como vimos, se concentra nos diversos
modos de se imaginar nacional-ocidental.
A mais conhecida formulação da dinâmica nacional-ocidental se
encontra na dialética entre o local e o universal, eloquentemente elaborada por
Antonio Candido a ponto de virar um lugar-comum acadêmico. Ao enunciar
a tensão entre dado local (substância de expressão) e os moldes herdados da
tradição europeia (forma de expressão) como possível “lei de evolução da nossa
vida espiritual” (2000, p. 117), Antonio Candido também faz uma aposta no
equilíbrio entre o local e o universal como definidor do “que temos realizado
de mais perfeito” no âmbito das obras literárias e das personalidades artísticas
de seus escritores (2000, p. 117). Como a tensão entre a matéria brasileira e a
forma europeia que a amolda está no centro da imaginação nacional, longe,

8 No seu Dialética da Colonização, Alfredo Bosi disserta sobre a tensão existente entre os jesuítas e
bandeirantes no início da colonização portuguesa na América, que nada mais era que uma disputa sobre
os modos de colonizar o índio. Para os jesuítas, o foco era a colonização da alma, isto é, a cristianização
do índio; para os bandeirantes, o principal objetivo era o da colonização do corpo do índio, isto é, a
sua força física para o trabalho escravo nas fazendas dos colonos portugueses. Chegou-se a estabelecer
um acordo no qual os índios passariam 6 meses trabalhando na lavoura, e 6 meses nos aldeamentos dos
jesuítas (BOSI, 1992, p. 138). É interessante notar como essa dinâmica acabou sendo atualizada dentro
do sistema nacional-ocidental de possibilidades.

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portanto, de ficar circunscrita ao campo da literatura, era de se esperar que
a harmonia entre o local e o universal também correspondesse a um esboço
de perfeição em outros setores da sociedade. Escrevendo mais de vinte anos
depois, Roberto Schwarz constata que a leitura em chave harmoniosa da
dialética entre o local e o universal caiu em completo descrédito, o que não
significa, ainda de acordo com o crítico, que os termos propostos tenham
perdido a relevância, devendo ser assim redefinidos (1987, p. 169).
A nosso ver, a ilusão de que uma síntese equilibrada entre as forças
locais e ocidentais conduziria os brasileiros ao concerto das nações civilizadas
é resultado de uma leitura empobrecedora dos termos de tal dialética, incapaz
de perceber suas ambivalências ideológicas e amplitudes semânticas. A maneira
mais realista de compreender como funciona essa dialética é mapeando o
campo discursivo em permanente estado de disputa que ela constrói. Isso quer
dizer que termos como “nacional” e “ocidental” funcionam como significantes
vazios, mobilizando grupos sociais, ideologias e instituições na constituição
das equivalências vistas como adequadas para tais termos, além de articular
demandas centrais da sociedade brasileira (secularismo X tradição religiosa;
vocação rural X industrialismo; democracia x regimes tutelados, etc)9. Para
uns, ocidente quer dizer “civilização cristã”; para outros, “valores seculares do
Iluminismo”. A nação pode ser compreendida por alguns como sendo sinônimo
do negócio que a sustenta (“O Brasil é o café”; “O Brasil é o agronegócio”,
etc); enquanto, para outros, a nação seria (ou deveria ser) um contrato social
baseado em ideais republicanos. Isso sem falar do discurso cultural em torno
da nação: a busca pela nota específica da nossa singularidade – aquilo que
distinguiria o estar no mundo do brasileiro – também geraria vários debates
em torno do jeito brasileiro de ser, que pode ser malandro, macunaímaco,
cordial, antropofágico, luso-tropical, tropicalista, etc. São vários – e por vezes
conflitivos – os modos de imaginar a nação e sua participação no Ocidente,
assim como a inserção dos chamados “valores ocidentais” na nação. O arco
nacional-ocidental está longe de ser um bloco de doutrinas e ideias homogêneas
vindo de um grupo social igualmente homogêneo com finalidade de dominar
povos não ocidentais. As narrativas geradas por esse arco são múltiplas,
conflitantes, por vezes antagônicas, ainda que, como veremos, limitadas.
Por ter essa estrutura lacunar, de vazios que são preenchidos por grupos que
disputam narrativas, o nacional-ocidentalismo não compartilha da mesma
moldura conceitual do Orientalismo, frequentemente atacada por representar
um conjunto de doutrinas sem grande variação diacrônica, que perpassa o
pensamento europeu de Ésquilo a Flaubert, passando por Dante, Goethe,
Disraeli, Ernest Renan e tantos outros (GELLNER, 1994; AHMAD, 1992).

9 O diálogo aqui é evidentemente com o modelo de Laclau to “significante vazio”, cf. Laclau, 1996.

ALEA | Rio de Janeiro | vol. 22/2 | p. 17-40 | mai-ago. 2020 ALFREDO CESAR MELO | Crítica da razão.... 27
Tais disputas podem ser explicadas pela configuração específica do Brasil
após a Independência, conforme já pontuou Fernando Novais. Analisando
pelo ângulo da vida ideológica propriamente dita, Roberto Schwarz identifica
um “desajuste de base” que havia definido a situação do país. Os brasileiros
entraram na modernidade pela porta dos fundos, mantendo uma estrutura
econômica colonial para abastecer o mercado europeu e recorrendo ao
escravismo – já naquela época considerado abjeto pela norma burguesa
– como esteio sócio-econômico do país. Entrar pelas portas dos fundos
da modernidade não representava obstáculo para que as elites brasileiras
mantivessem contato com as ideias mais avançadas da época, que por vezes
eram assimiladas de modo cínico e grotesco, compondo aquilo que Schwarz
chama de “comédia ideológica”. Já em outras ocasiões, tais ideias ganhavam
tração e se firmavam como horizonte inspirador nas lutas por transformações
sociais no Brasil. Em seu Dialética da colonização, Alfredo Bosi assinala esses
momentos em que o Novo Liberalismo de Joaquim Nabuco e o positivismo
social dos políticos gaúchos – primeiro grupo político a defender um Estado
do Bem-Estar no Brasil – se contrapõem aos interesses particularistas das
oligarquias rurais. A disputa pelo termo “Ocidente” está longe de ser uma
querela meramente discursiva e se enraíza no irregular solo da história brasileira.
Para uns, Ocidente significa o circuito de investimentos, produção de gêneros
primários e mercado consumidor europeu, sedimentado no edifício cultural
do patriarcalismo católico, que tornava possível a economia e a sociedade
semicolonial brasileira. Para outros, Ocidente representa ideias de soberania
nacional, industrialização e secularismo, servindo assim como inspiração para
combater a subalternidade da economia brasileira no seu papel de fornecedora
de mercadorias agrícolas e abraçar um projeto empoderado de Estado-Nação,
capaz de alçá-lo ao concerto de nações civilizadas (europeias). Alfredo Bosi
enxerga no conflito entre humanismo “universalista” (de sabor católico, liberal
ou socialista, a depender do momento histórico) e os interesses agromercantis
a grande mola da “dialética da colonização”.
Afasto-me, em minha análise, da moldura valorativa que Bosi emprega
para descrever tais conflitos entre ideais universalistas e compromissos
particularistas, pois nem os compromissos das oligarquias rurais são tão
particularistas – já que fazem parte do circuito internacional do capital e
integram, ainda que de maneira subalterna, a economia brasileira à mundial
-; nem a suposta universalidade dos ideais, como veremos, é tão benévola,
pois muitas vezes pressupõe o achatamento das diferenças culturais. Reitero,
no entanto, que as os conflitos e tensões analisados por Bosi em Dialética da
colonização traduzem bem as disputas em torno da ideia de nação e do modo
de inseri-la no ocidente, e que tais conflitos advém da unidade dialética da
própria colonização (tanto o humanismo cristão de Vieira quanto os interesses

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mercantis dos bandeirantes são peças fundamentais da máquina colonial).
Outros conflitos poderiam ser acrescentados a esse rol de disputas como, por
exemplo, o debate entre o empresário Roberto Simonsen, árduo advogado do
industrialismo, e o economista Eugênio Gudin, defensor da ideia de vocação
agrária do Brasil. No século 19 poderíamos encontrar o caso, sobejamente
comentado pela crítica cultural brasileira, do argumento conservador de que
as ideias ilustradas e liberais seriam alienígenas em solo brasileiro e, portanto,
estariam “fora do lugar” (SCHWARZ, 1977). Tal modo de conceber os locais
apropriados e inapropriados para ideias liberais também faz parte do debate
sobre que tipo de nação deveria ser o Brasil e que tipo de participação teria a
cultura ocidental – de algum ocidente a ser definido, às vezes demonizado,
outras tantas idealizado, mas sempre disputado – nos rumos do país.
Também é necessário esclarecer que apesar de muitas vezes ressaltar, para
fins didáticos, as polaridades mais óbvias nesse conflito entre modernizadores
industriais e oligarcas rurais, progressistas e conservadores, etc., seria um
equívoco reduzir a dinâmica existente a esses dois polos, sendo a vida social
e política brasileira tão pródiga em embaralhar posicionamentos ideológicos.
Daí o cuidado de chamar de arco nacional-ocidental, que pressupõe uma
disposição espacial para gradações e combinações várias entre as múltiplas
equivalências construídas para os termos em disputa.
O arco nacional-ocidental se apresenta então como um sistema
autossuficiente de possibilidades, uma suposta totalidade por onde navega
a imaginação política e cultural brasileira, da direita à esquerda; entre
posições conservadoras e progressistas; religiosas e seculares; ruralistas e
industrialistas; desenvolvimentistas e ecologistas; contendo, claro, todas
as possíveis combinações e rearranjos da vida ideológica brasileira. O arco
nacional-ocidental abrange tanto as propostas nacional-desenvolvimentistas
do campo dito progressista quanto as plataformas da bancada conservadora da
Bala, do Boi e da Bíblia, pois cada uma dessas correntes políticas e ideológicas
confeccionam uma equivalência própria para os significantes “Brasil” e
“Ocidente”. Também abrange todo o debate existente na crítica literária e
cultural brasileiro sobre a modulação nacional da cultura ocidental, que nada
mais é que a racionalização erudita desse sistema de possibilidades, na eterna
investigação sobre como podemos ser nacionais e singulares sem deixarmos
de sermos “universais” e ocidentais.
Voltando à questão de uma nova estruturação para os estudos pós-
coloniais brasileiros, é preciso pontuar que talvez a tarefa máxima desse
campo de estudos seja, com o perdão da redundância, o de mostrar que há
mais mundos possíveis que os espaços possíveis apresentados por esse sistema
nacional-ocidental de possibilidades, cuja dinâmica maior é a de neutralizar
qualquer vislumbre de alternativa que não seja de antemão previsto e regulado

ALEA | Rio de Janeiro | vol. 22/2 | p. 17-40 | mai-ago. 2020 ALFREDO CESAR MELO | Crítica da razão.... 29
pelo próprio sistema. Os estudos pós-coloniais no Brasil deveriam se debruçar
sobre tudo aquilo que é exterioridade à pretensa totalidade nacional-ocidental,
e como o “fora” tem que ser por vezes neutralizado a fim de ser traduzido
para os termos de “dentro”.

A prosa da contra-insurgência preventiva


Vejamos um exemplo: a Rebelião de Canudos. Os conselheiristas
representavam uma ameaça tanto para o esteio oligárquico fincado no
latifúndio e na Igreja, quanto para os modernizadores da República. A ida
de cada vez mais sertanejos à cidade construída pelos seguidores de Antonio
Conselheiro diminuía o número de braços da lavoura para os fazendeiros e
de almas para a Igreja, gerando um descontentamento que acabaria por gerar
os primeiros ataques a Canudos por parte da Força Pública baiana. Já em
relação ao Brasil urbano e ilustrado, Canudos foi primeiramente visto como
um motim monárquico que precisava ser aniquilado por mobilização militar,
e depois, graças à ágil pena de Euclides da Cunha, passou a ser retratado como
um “refluxo da história”, fruto do messianismo atávico dos rudes patrícios,
que mereciam um tratamento diferente daquele que lhes fora dispensado pelo
Exército brasileiro. As razões principais da rebelião – a oposição à República,
à vida secular, e aos impostos cobrados pelo governo – passavam a ocupar
um papel secundário frente à explicação ilustrada para os eventos ocorridos
Canudos, que os via como sintoma de um povo ignorante e abandonado
pelo Estado moderno. A violência hermenêutica merece ser destacada, pois a
Rebelião é decodificada pela visão nacional-ocidental de Euclides da Cunha
exatamente como o contrário daquilo que os seus atores propunham. Da
revolta de um grupo social que queria se desgarrar da nação e suas instituições
modernas, o acontecimento passa a ser interpretado como auge da orfandade de
um povo que foi deixado ao léu pelas estruturas governamentais. A explicação
ilustrada-paternalista de Canudos desfaz e neutraliza a real intenção política
dos conselheiristas, transformando-os em algo que é seu exato contrário, isto
é, em órfãos do Estado brasileiro, deixando-os numa situação que clamava
por acolhimento estatal e integração ao mundo moderno.
Numa tentativa de recuperar a história da Rebelião de Canudos a
partir dos Estudos Subalternos, Adriana Johnson argumenta que a frequente
alusão a um povo abandonado, precisando ser urgentemente resgatado pelo
Estado-Nação, é uma representação tecida pela cidade letrada brasileira.
Segundo Jonhson, longe de estarem reclamando de um abandono do Estado
brasileiro, os rebelados estariam lutando contra uma incorporação forçada
ao Brasil moderno:

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Reading the incidents concerning Canudos (and da Cunha as the medium
of their message) as a protest against abandonment is deeply problematic.
Abandonment by whom? To what? If measures such as increased taxation,
the secularization of daily life, the census, and mapping numbered among the
causes of the conflict, then the Conselheiristas seem to have been protesting
not so much abandonment as the forced incorporation into a modern-state
that they perceived to be an illegitimate power extending and deepening
its structures of domination. To the extent that the Conselheiristas were
combating precisely such an incorporation, da Cunha’s solution would have
sounded like a punishing sentence of condemnation (2010, p. 137).

Ainda de acordo com Johnson, o texto de Euclides teria como objetivo


corrigir – ao invés de impugnar – as ações do Estado brasileiro moderno
(2010, p. 9).
A Rebelião de Canudos mostra como um evento que se desgarra
do arco nacional-ocidental (fragmento que se recusa a pertencer a uma
totalidade), precisa ter sua radicalidade devidamente filtrada e neutralizada,
para só assim ser traduzido como um acontecimento que se enquadre nas
narrativas que buscam integrar o sertanejo ao Estado moderno nacional.
Que a Rebelião de Canudos, tal como narrada por Euclides da Cunha, seja
vista como deflagradora de uma consciência cívica nacional atesta o quanto
a operação discursiva foi muito bem-sucedida.
Esse processo de filtragem e neutralização das demandas de revoltas
subalternas faz parte daquilo que Ranajit Guha chama de “prosa da contra-
insurgência” (GUHA, 1998). Ao narrar a revolta empregando o vocabulário
da imaginação política ocidental, as elites letradas nada conseguem enxergar
na revolta além de comportamento pré-político, irracional e inconsequente,
legitimando assim qualquer ação que retifique o curso da rebelião e controle
seus efeitos inesperados. No Brasil, as populações rebeladas de Canudos
entraram para história nacional e cívica num tom paternalista-ilustrado
que as enxerga como sintoma de uma parte da população que, por estar
aquém da política, precisa ser urgentemente integrada à nação. É possível
constatar a persistência e efetividade desse discurso quando lemos, num ensaio
escrito por ocasião do centenário da publicação de Os sertões, Celso Furtado
replicar, mais uma vez, a interpretação na qual “em nosso país há uma imensa
população amorfa, de raízes culturais múltiplas, sendo caldeada e ascendendo
progressivamente à cidadania. O mitológico sertanejo euclidiano deve ser visto
como a prefiguração do cidadão consciente que hoje se afirma.”(FURTADO,
2002, p. 105). Reitera-se a ideia que o rebelde de Canudos é uma pré-figuração
de cidadão, apesar de toda sua luta ser contra as estruturas do Estado moderno
brasileiro, ou seja, contra o pertencimento a uma suposta cidadania brasileira.

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Essas questões talvez fiquem mais claras quando analisamos, a
contrapêlo, “Literatura de dois gumes” de Antonio Candido, o texto da
teoria literária produzida no Brasil que consegue de maneira mais incisiva
tirar as consequências do fato de que a cultura letrada transplantada no
Brasil não é somente fruto da colonização, mas agente do colonialismo. O
texto “Literatura de dois gumes”, incialmente apresentado como palestra na
Universidade de Cornell, em 1966, permite entrever como se dá o mecanismo
de controle da prosa de contra-insurgência. “Literatura de dois gumes” é um
texto particularmente revelador porque não há nele qualquer tentativa de
naturalizar a relação entre cultura brasileira e Ocidente, como acontece de
maneira bastante ostensiva em “Literatura e subdesenvolvimento”, texto no
qual Candido afirma que o brasileiro deveria encarar “serenamente o vínculo
placentário com as literaturas européias, pois ela não é uma opção, mas um
fato quase natural” (1987, p. 74). Em “Literatura de dois gumes”, constatamos
uma atitude quase oposta, uma vez que a literatura é vista e analisada como
um instrumento de dominação colonial que se impõe às demais populações.
Longe de desempenhar uma função suplementar na colonização, a literatura
estaria no front da conquista colonial, em “competição” com as culturas
dominadas. Candido destaca que letrados da época eram todos sacerdotes,
juristas, funcionários, militares e senhores de terra, “obviamente identificados
aos valores sancionados da civilização metropolitana”, a serviço da imposição da
religião católica e da autoridade real. No entanto, mesmo quando “desprovido
de aspecto ideológico ostensivo”(1987, p. 165), as letras funcionavam como
“forma de disciplina mental da Europa, que deveria ser aplicada ao meio
rústico a modo de instrução e defesa da civilização” (1987, p. 165). E nessa
“competição cultural”, a literatura se contrapunha ao “primitivismo reinante”,
neutralizado “o perigo da absorção pelo universo do folclore”. Não há dúvidas
que no conflito entre a civilização e o primitivismo, a literatura e o folclore,
Antonio Candido escolhe o primeiro polo da disputa, mas isso não o impede
de constatar que havia uma luta aberta e que, em alguns momentos da história,
seus resultados pareciam incertos, pois os letrados se viam acuados pelo perigo
de uma hegemonia cultural não ocidental. Ao destacar um processo acirrado e
competitivo de disputa por hegemonia cultural, Antonio Candido coloca em
xeque qualquer noção de inevitabilidade da cultura ocidental nas Américas.
Como o intuito do texto é o de mostrar os “dois gumes” da literatura,
Antonio Candido ressalta que apesar de ser um instrumento de dominação, a
literatura também se prestou ao papel de dar “sua voz aos que não poderiam
nem saberiam falar em tais níveis de expressão” (1987, p. 177). O circuito da
prosa da contra-insurgência (preventiva) se fecha. A mesma força que ajudou
a desestruturar culturas e modos de vida é aquela que se propõe a vocalizar
as demandas dos oprimidos – muitos deles derrotados e sistematicamente

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explorados pela colonização -, devidamente filtradas e neutralizadas, para
que elas se ajustem às regras do jogo estabelecidas pelo sistema vigente de
possibilidades. Os dois gumes da literatura são, a bem da verdade, duas faces
da “competição cultural”, ora apresentada de modo desabrido e violento,
ora mostrada como mecanismo paternalista que mistura algum tipo de
solidariedade com um efetivo controle social. Destruir culturas para depois
fazer-se porta-voz delas é o gesto por excelência dessa prosa de contra-
insurgência (preventiva) que, por sua vez, é um instrumento fundamental para
administrar as diferenças dentro do arco nacional-ocidental de possibilidades.

Competição cultural e racismo


Na tradição do pensamento social e da literatura do Brasil, não faltam
“procuradores dos pobres”10. Há aqueles que advogam pelos escravos, pelos
sertanejos, pelos caipiras, pela cultura afro-brasileira, etc. Não raro, tais
procuradores defendem algum tipo de modernização cultural e a consequente
incorporação desses povos à nação moderna. O caso de Joaquim Nabuco é
particularmente emblemático, pois o eminente abolicionista brasileiro se vê
como detentor do “mandato da raça negra”, servindo assim como “advogado
gratuito dos escravos e dos ingênuos” (os nascidos “livres” depois da Lei do
Ventre Livre de 1871). Nabuco se coloca nessa posição por considerar que
os escravos não podiam, eles próprios, lutar por seus direitos, já que seriam
severamente punidos se arriscassem uma revolta. Analisando do modo mais
detido, percebe-se que o receio de Nabuco é bem outro: o medo de repetir-
se no Brasil o que aconteceu no Haiti, isto é, uma revolução liderada por
escravos. Nabuco chega a comentar que a abolição só poderia ser resultado
de uma revolução, se tal revolução fosse conflagrada por cidadãos livres,
“como aconteceu na França” (2000, p. 45). Doutro modo, a insurreição,
caso comandada por escravos, poderia se transformar numa “vindita bárbara
e selvagem de uma população mantida até hoje ao nível dos animais, e cujas
paixões, quebrando o freio do medo, não conheceriam limites no modo de
satisfazer-se” (2000, p. 44). Na hipótese de os escravos assumirem o poder,
toda a narrativa nacional-ocidental, em qualquer uma de suas variáveis e
combinações, ruiria. O país seria radicalmente outro. Os prosadores da
contra-insurgência preventiva serviriam como guardiões do arco nacional-
ocidental, eliminando e vetando qualquer vislumbre de alternativa que não
seja previsto ou traduzível pelo sistema de possibilidades vigente.
É necessário destacar o quanto ganhamos analiticamente quando
passamos a compreender todas essas operações de neutralização e filtragem

10 A expressão “procurador dos pobres” foi retirada de um artigo de Ana Paula Pacheco sobre Vidas secas.
Verificar Pacheco, 2015.

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contidos na prosa da contra-insurgência preventiva, pois tal compreensão nos
ajuda, por exemplo, a dar um sentido político mais preciso ao racismo cultural
mobilizado no enquadramento dado pelas elites políticas modernizadoras ao
povo brasileiro.
Vejamos um trecho de Populações meridionais do Brasil de Oliveira
Vianna:

Toda a evolução histórica da nossa mentalidade coletiva outra coisa não


tem sido, com efeito, senão um contínuo afeiçoamento [...] dos elementos
etnicamente bárbaros da massa popular à moral ariana, à mentalidade ariana,
isto é, ao espírito e ao caráter da raça branca. Os mestiços superiores [...] quando
vencem ou ascendem em nosso meio [...], não vencem nem ascendem como
tais, isto é, como mestiços [...]. Ao invés de manterem, quando ascendem,
dentro dos característicos híbridos do seu tipo, ao contrário, só ascendem
quando se transformam e perdem esses característicos, quando deixam de ser
psicologicamente mestiços – porque se arianizam. (p. 179).

Se substituirmos as expressões claramente racistas e as categorias


raciais como “raça branca”, “moral ariana”, “mentalidade ariana” por “cultura
ocidental”, teríamos diante de nós um bom resumo do pensamento progressista
brasileiro11: a ideia de que o povo brasileiro – amplamente formado por
matrizes demográficas e culturais não ocidentais –, quando se modernizar,
será inequivocamente ocidental no pensamento e nos hábitos, ainda que
mestiço, negro, ou índio, no fenótipo. A vitória de um negro (ou de um índio)
no Brasil jamais será a conquista das culturas afro-brasileiras ou ameríndias
no Brasil, mas um sinal de sucesso de negros ou de índios ocidentalizados.
Podemos encontrar um exemplo novamente em Joaquim Nabuco,
grande defensor do abolicionismo, para quem emancipação dos escravos seria
um passo imprescindível na entrada do Brasil ao mundo moderno. A defesa
da abolição não impede Nabuco de demonstrar um imenso desprezo pela
cultura dos escravos. Para Nabuco, a “raça negra” teria “um desenvolvimento
mental atrasado”, e seria detentora de “instintos bárbaros” e “superstições
grosseiras” (NABUCO, 2000, p. 145). Em outras palavras: a integração do
negro à nova ordem social seria necessária e benvinda, desde que isso não
implicasse a valorização e integração da corruptora cultura negro-brasileira na
vida espiritual brasileira. O negro deveria entrar na pólis brasileira como uma
tábula rasa, despojado de seu estoque cultural inicial e disposto a modernizar-
se e embranquecer-se culturalmente.

11 A referência a Oliveira Vianna não é gratuita. Considerado um intérprete maldito do Brasil, a um só


tempo racista e autoritário (BRESCIANI, 2005), a passagem selecionada mostra que, debastado os excessos
retóricos do racismo biológico, o argumento poderia ter saído da pena de um escritor progressista. A
mudança aí seria apenas de racismo: do biológico passaria para um argumento repleto de racismo cultural.

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Já Euclides da Cunha conclama, nOs sertões, os brasileiros do litoral
a resgatarem os “retardatários” sertanejos (que, como já vimos, não queriam
ser resgatados por ninguém). A solidariedade aos “rudes patrícios” vem
sempre acompanhada da constatação da irrelevância e inferioridade de seu
pensamento. Resgatar os sertanejos implica retirá-los da sua cultura bárbara
e inseri-los na civilização.
Caio Prado Jr., fundador do marxismo brasileiro, por sua vez, faz um
contraponto entre a escravidão dos antigos romanos e a dos brasileiros para
notar que, no primeiro caso, os escravos tinham o mesmo nível cultural dos
senhores, sendo capazes de ensinar muito aos romanos. Já os escravos no
Brasil, “povos bárbaros e semibárbaros”, não passavam de “simples máquina
de trabalho bruto e inconsciente” (PRADO JR, 2000, p. 284). O negro aqui
aparece novamente como tabula rasa, a ser preenchido por um conteúdo
político que transforme o seu protagonismo na história brasileira. No final
de Formação do Brasil contemporâneo, Caio Prado afirma que os escravos só
não agiram de modo mais consequente para construir um antagonismo real
contra os senhores proprietários porque “falavam na linguagem mais familiar e
acessível que lhes vinha das florestas, das estepes, das savanas” (2000, p. 386).
Muito diferente seria a atuação dos escravos se pudessem usar a linguagem
política moderna do Iluminismo, isto é, se tivessem sido “preenchidos” por
conteúdo político moderno.
Despojado de sua cultura precária e pobre, também deveria ser Fabiano,
personagem central de Vidas secas de Graciliano Ramos, representado no
romance como alguém incapaz de encontrar uma saída para a situação opressiva
em que se encontra a partir do seu próprio repertório cultural. No romance
tal saída é apontada para as forças emancipatórias da educação moderna, que
teria o potencial de fornecer recursos para Fabiano se defender das opressões
perpetradas por seu patrão e pelo soldado amarelo. Deixados por contra
própria, isto é, guiando-se pela imaginação bronca dos sertanejos, esse povo
poderia encontrar saídas irracionais para os seus problemas, como verificamos
na grosseira avaliação que Graciliano faz dos rebelados de Canudos na sua
“Pequena história da República”, chamando-os de “lunáticos”, “analfabetos”,
e “pior canalha da raça” (RAMOS, 2011, p. 165).
Já Monteiro Lobato, no seu Problema Vital – livro que inaugura
sua segunda interpretação do Jeca Tatu – advoga a tese de que o caipira
não é um doente, mas está doente. E para curar o seu mal, uma série de
modificações no seu ambiente deveriam ser realizadas, nas áreas do saneamento,
educação, nutrição, higiene, etc. Todas mudanças focavam sobretudo numa
reprogramação da cultura caipira, com vistas a torná-la compatível com os
hábitos modernos de trabalho e produção.

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Para o grande economista progressista Celso Furtado, também
despojado de sua irracionalidade econômica deveria ser o negro recém-saído
da escravidão. Analisando a situação do mercado de trabalho nas regiões de
maior dinamismo econômico do país logo após a Abolição, Furtado critica
a falta de racionalidade econômica dos ex-escravos que, em razão do seu
“rudimentar desenvolvimento mental”(FURTADO,1998, p. 144), não
conseguiam aproveitar a oportunidade de receber “salários relativamente
elevados” (1998, p. 144) para se manterem em atividade nas ricas regiões
cafeeiras. Isso se dava porque ao receber o salário, e tendo vivido sob escravidão
por boa parte de suas vidas, os ex-escravos resolviam “comprar o ócio”,
reduzindo assim o “grau de utilização da força de trabalho” (1998, p. 145).
Furtado argumenta que o “reduzido desenvolvimento mental da população
submetida à escravidão” (FURTADO, 1998, p. 145), provocaria “a segregação
parcial desta [população] após a abolição, retardando a sua assimilação e
entorpecendo o desenvolvimento econômico do país” (FURTADO, 1998,
p. 145). Donde se conclui que ao incutir uma racionalidade capitalista nos
ex-escravos e seus descendentes, o país maximizaria um de seus fatores de
produção e isso contribuiria para o desenvolvimento da nação.
Em todos esses casos – e muitos outros exemplos poderiam ser dados –
a cultura do povo a ser “modernizado” precisa ser descartada para algum tipo
de projeto nacional-ocidental se viabilizar. Para a nação formar-se, dentro dos
parâmetros nacionais-ocidentais, ela precisa seguir alguns caminhos, ao mesmo
tempo que necessita rechaçar claramente outros trajetos. È necessário estudar
com um recorte pós-colonial aquilo que na tradição do pensamento brasileiro
chama-se “a ideia da formação”. Em outras palavras, tão importante quanto
apreender qual o país a elite intelectual gostaria de construir, é examinar que
outras possibilidades (outros devires) de Brasil tal elite nega, desqualifica,
despreza, e como o imbricamento entre essas duas virtualidades – o devir
desejado e o devir rejeitado para o país – está ligado a uma visão hierárquica de
culturas, segundo a qual, algumas delas (as europeias) nos ajudarão a adentrar
na modernidade em detrimento de outras, inferiores, menos elaboradas, que
nos impediriam de chegar lá, ou nos manteriam aprisionados num atraso
vergonhoso.

Conclusão
Numa das críticas mais contundentes ao Orientalismo de Edward
Said, o intelectual indiano Aijaz Ahmad identifica no seu argumento central
um suposto ecletismo teórico que limitaria bastante o potencial crítico
do livro. Ahmad enxerga no Orientalismo uma mistura de humanismo de
sabor auerbachiano revelado na perceptível apreciação estética dos grandes
autores com uma abordagem foucaultiana centrada no nexo entre poder

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e conhecimento, de extração notoriamente anti-humanista. Um exemplo
dado por Ahmad é a análise saidiana do escritor Ruyard Kipling. Elogiado
extensivamente por sua habilidade estilística, comparável a dos maiores
nomes da literatura (Proust é citado por Said como ponto de referência nessa
comparação), Kipling é, num segundo momento, extremamente criticado
por sua ideologia imperialista. Ahmad identifica esse morde-assopra de Said
como um problema de construção teórica.
Longe de reproduzir essa perspectiva de Ahmad, intolerante em relação a
qualquer esforço teórico diferente do seu, vejo vantagens no modelo de análise
cultural saidiano. Afinal, tal modelo parte do pressuposto de que o texto é
capaz de criar um mundo robusto, denso e nuançado, digno de apreciação,
ao mesmo tempo que também localiza o texto no mundo, influenciado
pelas diversas forças sociais, além de compor e legitimar estruturas de poder.
A ambiguidade central da obra de Said parece estar na afirmação de que
aqueles mesmos textos que apreciamos por sua complexidade conceitual,
intricado artesanato verbal e sofisticação analítica são também os que azeitam a
tenebrosa máquina de dominação imperialista. A análise saidiana nos permite
entrar num território complexo, onde apreciamos esteticamente um escritor
politicamente odioso.
Talvez essa zona de ambivalência seja um terreno analítico propício
para examinar também os dilemas do nacional-ocidentalismo, sobretudo seu
espectro progressista. Se a minha hipótese de trabalho estiver correta, a de
que, no afã de construir o Brasil moderno, os intelectuais valorizam um certo
devir-ocidental (termo sempre em disputa) em detrimento de outros devires,
uma ambiguidade precisa ser notada: os grandes pensadores progressistas,
lutando contra o atraso e seus correlatos – a escravidão, o coronelismo, o
subdesenvolvimento, a miséria, etc. – para libertar o povo brasileiro de sua
subalternidade, acabaram também por reproduzir lógicas de colonialidade,
já que hierarquizaram culturas, negando a potencialidade transformadora
das não ocidentais e optaram por um roteiro emancipatório que tinha a
modernidade europeia como desejado ponto de chegada.
Tal constatação não deve servir para julgar moralmente esses personagens
históricos, nem tampouco macular a admiração merecida da qual muitos são
objetos por suas atuações políticas em momentos importantes da história
brasileira. A crítica dos pressupostos eurocêntricos contidas no pensamento
progressista brasileiro deve sobretudo desnudar lógicas implícitas nessas práticas
intelectuais. Não podemos exigir outro posicionamento de autores cujo
horizonte intransponível era o nacional-ocidentalismo e suas possibilidades.
Seria de um anacronismo terrível exigir outra sensibilidade em autores como
Jósé Bonifácio, Joaquim Nabuco, Euclides da Cunha, Caio Prado e tantos
outros. No entanto, ninguém pode negar que todo o senso comum do

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nacional-ocidentalismo é sedimentado e adensado por várias gerações de
intelectuais que construíram esse arco de possibilidades a ponto de torná-
lo nossa segunda natureza, o ar ideológico que respiramos. Explicitar os
mecanismos de colonialidade (hierarquização e subalternização de culturas
e modos de vida) nessas grandes obras é fundamental para desnaturalizar os
seus pressupostos, questionar os “vínculos placentários” entre o Brasil e o
Ocidente, e descortinar outros horizontes possíveis – além das possibilidades
apresentadas pelo sistema – para ser, estar no mundo e conceber a vida.

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Alfredo Cesar Melo. Professor Doutor do Departamento de Teoria Literária da


Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP). De 2008 a 2013 foi professor
doutor [Assistant Professor – Tenure Track] do Departamento de Literatura e Línguas
Românicas da Universidade de Chicago (EUA). Formou-se em ciências sociais pela
Universidade Federal de Pernambuco, em 2001, e obteve seu mestrado e doutorado em
literatura hispânica na Universidade da Califórnia, em Berkeley (EUA). Coordena na
UNICAMP o “Kaliban - Centro de Estudos Pós-coloniais e de Literatura Mundial”.
E-mail: alfmelo@unicamp.br

Recebido em: 17/09/2019


Aceito em: 30/04/2020

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