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HYPNOS

HUMANO E DIVINO
HUMAN AND DIVINE

A revista “Hypnos“ é uma publicação semestral do


Departamento e Programa de Estudos Pós-Graduados em Filosofia da
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo
e do Instituto Hypnos – o prazer de saber

Hypnos is a journal of the Department and Program of Post-Graduation in Philosophy


of the Pontificia Universidade Católica de São Paulo and the Hypnos Institute

Nº 16
Ano 11 – 1º sem. 2006

Editora TRIOM
Editor Responsável:
Editor:
Rachel Gazolla (rachelgazolla@ajato.com.br)
Conselho Deliberativo:
Deliberative Council:
Marcelo Perine (m.perine@superig.com.br)
Rachel Gazolla (rachelgazolla@ajato.com.br)
Conselho Editorial:
Editorial Council:
Nacional: CARLOS ROBERTO CIRNE-LIMA (Unisinos, Porto Alegre, RS, Brasil)
FRANCISCO BENJAMIM DE SOUZA NETO (Unicamp, Campinas, Brasil)
HENRIQUE GRACIANO MURACHCO (Univ. Fed. Campina Grande, PB, Brasil)
JAYME PAVIANI (Pont. Univ. Católica de Porto Alegre, RS, Brasil)
MARCELO PERINE (Pont. Univ. Católica de São Paulo, Brasil)
OLGÁRIA MATOS (Univ. de São Paulo, Brasil)
RACHEL GAZOLLA (Pont. Univ. Católica de São Paulo e Faculdade Filosofia S. Bento, SP, Brasil)
SCARLETT MARTON (Univ. de São Paulo, Brasil)
Internacional: ELISABETTA CATTANEI (Univ. Studi di Cagliari, Itália)
FRANCISCO BRAVO (Universidad Central de Venezuela, Caracas, VE)
FRANCISCO LISI (Univ. Carlos III, Madrid, Espanha)
HUGO RENATO OCHOA DISSELKOEN (Univ. Católica de Valparaíso, Chile)
JORGE MARTINEZ BARRERA (Pont. Universidad Católica de Chile, Santiago, Chile)
JOSÉ GABRIEL TRINDADE (Universidade de Lisboa, Portugal)
MARCELO BOERI (Universidad de los Andes, Santiago, Chile)
PETER P. SIMPSON (City Univ. of New York, EUA)
THOMAS M. ROBINSON (Univ. de Toronto, Canadá)
Comitê Executivo:
Executive Committee:
Bruno Conte
Claudiano dos Santos
Ivanete Pereira
José Fernandes
Luizir de Oliveira
Maria Paula Curto
Sonia Rangel
Secretária:
Secretary:
Joice Tremonti (Programa de Estudos Pós-graduados em Filosofia – PUC-SP)
(posfil@pucsp.br – www.pucsp.br/~posfil)
(www.institutohypnos.org.br)
Diagramação:
Desktop Publishing:
Waldir Antonio Alves (waldir@artsoft.info)

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)


Hypnos : revista do Centro de Estudos da Antiguidade
Greco-Romana (CEAG) . Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Ano I, n. 1 (1996) . –
São Paulo : EDUC ; PAULUS ; TRIOM, 1996 – Periodicidade Semestral.
A partir de 2002 Semestral – revista do Instituto Hypnos e da Pontifícia Universidade
Católica de SP, Programa de Estudos Pós-Graduados em Filosofia.
ISSN 1413-9138
1. Estudos gregos — Periódicos. 2. Grécia — Antiguidades – Periódicos. I. Pontifícia Universidade
Católica de São Paulo. Centro de Estudos da Antiguidade Greco-Romana (CEAC).
CDD 938.005

THE PHILOSOPHER’S INDEX


Bovling Green, Ohio, EUA
INDEXAÇÃO – CLASE
Comité de Evaluación y Selección de Publicaciones (Univ. Autónoma de México)
INDEXAÇÃO – QUALIS
Capes, Brasil
CATALOGAÇÃO – ULRICH'S
International Periodicals Directory (NY – USA)
Cabeça de Hypnos: “Hypnos, segundo a Teogonia
de Hesíodo, é filho de Nyx, irmão de Thánatos e
Oneíron. Da primeira geração dos deuses, é o sono
e a inspiração, por isso sua cabeça esculpida tem,
do lado direito, asa em vez de orelha.”

(Cópia romana de original grego, século IV. d.C.


Museu do Prado, Madri)

Head of Hypnos: “Hypnos, in Hesiode’s Theogony, is


Nyx’s son, Thánatos and Oneíron’s brother. From the first
generation of gods, Hypnos is sleep and inspiration, there-
fore his sculptured head has a wing on the right side,
instead of an ear”.
(Roman copy from a Greek original, 4th century AD.
Museum of Prado, Madrid)
IV

LINHA EDITORIAL / EDITORIAL FOCUS

1. A Hypnos é, qualitativa e quantitativamente, uma 1. Hypnos is a journal for Greco-Roman Philoso-


revista de Filosofia Greco-romana. Busca ampliar, phy. We also seek to increase the dialogue between
também, o diálogo com outros saberes da Antigüi- Philosophy and other subject areas in Classical An-
dade Clássica, hoje bem delineados em nossas Uni- tiquity that are nowadays well established in univer-
versidades: Literatura Clássica, História Greco-roma-
sities: Literature, History, Philology etc. It is the
na, História das Religiões, Línguas Clássicas etc.
conviction of Hypnos that researchers in Philosophy
Acreditamos que a cultura Greco-romana deve ser
assumida pelos estudiosos em Filosofia com o má- should approach the culture of Antiquity in a com-
ximo de abrangência. A Editoria persegue esse ob- prehensive way. The Editors pursue this aim by
jetivo e procurará publicar, sempre que possível, não publishing not only texts that are specific to Philoso-
só os textos sobre Filosofia Greco-romana mas as phy, but also those that concern the areas of Litera-
pesquisas literárias, lingüísticas, históricas, psicológi- ture, Linguistics, History, Psychology, Anthropol-
cas, antropológicas e outras condizentes com esse pe- ogy, and so forth. Hypnos has a generous policy as
ríodo histórico. A extensão da cultura grega e roma- regards acceptance of works that extend beyond the
na antigas faz com que as atuais divisões acadêmi- academic boundaries. Basically the journal is a ve-
cas sejam uma necessidade, mas não uma regra que
hicle to enhance the study of Greco-Roman studies
venha a limitar o investigador, filósofo ou não. Por
and to further interactions between students in the
isso, a Hypnos apresenta largos limites para a recep-
ção desses estudos. Basicamente, esta revista é um area, whether they are Brazilian or not, and whether
veículo de auxílio para a interação dos estudos they are academic scholars or not.
Greco-romanos brasileiros e não brasileiros. 2. The Editors of Hypnos have adopted the policy
2. A Editoria da Hypnos compreende que os estu- that, despite the preference of the journal for studies
dos filosóficos posteriores à Grécia e Roma, até os in the Philosophy of Classical Antiquity, studies in
nossos dias, também devem ser publicados, porém periods of philosophy other than that, up to and in-
em menor número que as investigações sobre o cluding the present day, can also be published pro-
período clássico, desde que obedeçam à temática vided that they are in agreement with the main
principal de cada número. Assim, é rico e vigoroso
theme for each issue. So if a particular issue’s central
que pesquisas de outros momentos da História da
theme is, say, “Ethics”, then texts from periods of the
Filosofia sejam aceitas se concernentes ao tema cen-
tral, por exemplo, se um número tiver como temá- History of Philosophy other than Antiquity and
tica central a “Ética” e os textos em questão versa- which deal with Ethics will be welcome.
rem sobre “Ética”. 3. Papers not pertaining to the main theme for a par-
3. Havendo um Conselho Consultivo e um Conse- ticular issue of the journal, but presenting a relation-
lho Editorial para decisões, artigos apresentados fora ship between a Greek or Roman thinker and an-
da temática de um número, porém expondo uma other from a historical period other than that of
relação entre um texto de autor grego ou romano Classical Antiquity, may be accepted for evaluation
com outro de qualquer outro período histórico, po- by the Consultative Council and the Editorial
dem ser aceitos. Outras áreas de investigação que
Council. Texts from other areas of investigation be-
não se refiram à Filosofia e aos Estudos Clássicos
sides those of Philosophy or Classical Studies might
poderão dar eventual contribuição, ficando a cargo
da Editoria deliberar sobre a aceitação desses traba- be featured occasionally, depending on the editors’
lhos, levando-se em conta sua pertinência e o peso acceptance and on the pertinence and importance of
que venham a ter para as pesquisas filosóficas. the given text for philosophical studies in Brazil.

Os textos publicados são de responsabilidade exclu- Published material is the sole responsibility of their
siva dos autores. authours.

HYPNOS
ano 11 / nº 16 – 1º sem. 2006 – São Paulo
V
EDITORIAL

Hypnos 16, Humano e Divino... um título difícil, complexo, um pri-


meiro ensaio para, mais tarde, novas investigações serem apresentadas em
algum outro número. Humano e Divino é tema infindável. A presença do
sagrado – e vamos entender assim o divino – continua pertinente ao cam-
po do mistério, do inefável, mesmo numa sociedade de forte pendor laico.
O homem, que além de ser animal lógico/político/que ri/que transfor-
ma a natureza, é também curioso, não se acostuma ao fato de desconhecer
e limitar sua fala. Quer conhecer e falar de e sobre tudo. Então, quer pro-
vas, quer discurso claro, quer conhecimento a qualquer preço. A Filosofia
quer discorrer sobre o divino, sobre o homem, sobre essa relação tão
próxima e tão longínqua ao mesmo tempo. Que seja assim.
A Hypnos vai atrás dos pensadores que tocaram nessa relação e, por
meio de seus articulistas, este número demonstra parte do problema:
Sócrates tinha um daímon, Schelling vivia em intimidade com sua sagrada
natureza, Platão, o divino Platão... que dispensa maiores comentários, é
contemplado com dois artigos, um sobre o mal e a alma e outro sobre esse
sempre insistente tema platônico, a Mímesis. Assim vai sendo tecido este
número, que abarca também um cuidadoso trabalho de Livio Rossetti so-
bre o socratismo, uma resenha crítica de Stavru sobre Sócrates (obra que
está para ser lançada na Europa e se compõe de vários artigos) e uma rese-
nha do instigante livro sobre entes matemáticos e metafísica em Platão e
Aristóteles. Ainda a retórica do Górgias, de Platão, é estudada, e, dando
passagem às reflexões medievais árabes, um trabalho sobre Avicena.

Esperamos que nossos leitores aproveitem a boa companhia. Afinal,


“...Est profecto deus qui quae nos gerimus auditque et videt.” 1
(Plauto)

R.Gazolla
Editora responsável

1
“...Com certeza é um deus aquele que ouve e vê o que fazemos.”

HYPNOS
ano 11 / nº 16 – 1º sem. 2006 – São Paulo
VII
SUMÁRIO

ARTIGOS (ARTICLES)

O diálogo socrático “aberto” e sua temporada mágica


The “Open” Socratic Dialogue and the Magic of its Heyday
Livio Rossetti ........................................................................................................... 1
El alma del mundo en Schelling
The World-Soul in Schelling
Hugo Renato Ochoa ............................................................................................... 17
O Daimónion de Sócrates
The daímon of Socrates
Miguel Spinelli ........................................................................................................ 32
Platão: o Mundo, o Corpo e o Mal
Plato: The World, The Body, and Evil
Fernando Muniz ..................................................................................................... 62
Algunos aspectos de la crítica platónica al arte imitativo –
La analogía entre el sofista y el pintor
Some aspects of Plato’s criticism of imitative art –
The analogy between the sophist and the painter
Graciela E. Marcos de Pinotti ................................................................................ 77

COMUNICAÇÕES (COMMUNICATIONS)

Profecia em Avicena: quando o humano se une ao divino


Prophecy in Avicenna: the union of human and divine
Rosalie Helena de Souza Pereira ........................................................................... 89
A tribuna de Górgias: linguagem, retórica e oportunidade
Gorgias the Public Speaker: language, rhetoric, and timing
Fernando Czekalski .............................................................................................. 101

HYPNOS
ano 11 / nº 16 – 1º sem. 2006 – São Paulo
VIII RESENHA CRÍTICA (CRITICAL REVIEW)
Alessandro Stavru ................................................................................................. 118

RESENHA (REVIEW)
Rachel Gazolla ...................................................................................................... 125
Normas e informações / Rules and Information
Normas da ABNT ................................................................................................ 128
Critérios para transliteração do grego ............................................................. 128
Criteria for Transliteration from Greek
Endereços para entrega de artigos .................................................................... 129
Addresses for sending articles
Permutas e doações ............................................................................................. 129
Exchanges and donations
Endereços para compra da revista .................................................................... 131

Assinaturas .......................................................................................................... 135


Subscription

HYPNOS
ano 11 / nº 16 – 1º sem. 2006 – São Paulo
Artigos

O DIÁLOGO SOCRÁTICO “ABERTO”


E SUA TEMPORADA MÁGICA
THE “OPEN” SOCRATIC DIALOGUE AND THE MAGIC OF ITS HEYDAY
LIVIO ROSSETTI*

Resumo: Este artigo oferecerá um panorama, e algumas conjecturas, quanto


à provável força coletiva das transformações da cena filosófica que tiveram
lugar em Atenas logo em seguida ao julgamento e morte de Sócrates. Argu-
mentar-se-á que a nova maneira de fazer filosofia, inventada pelos Socráticos,
era de fato antípoda da oferta tradicional de doutrinas e teorias abertamente
endossadas pelos autores, e que deve portanto ser cuidadosamente distinguida
pelos diálogos onde os corpos doutrinários são abertamente professados. Por
causa da invenção do diálogo socrático “aberto”, a comunidade filosófica de
Atenas muito plausivelmente experimentou uma “revolução de veludo”, es-
pecialmente durante os anos cruciais em que se formava a identidade de Platão
como escritor e pensador.
Palavras-chave: Sócrates; Atenas; Platão; diálogo.

Abstract: This paper will offer an overview of, and some conjectures upon,
the probable collective force of the transformations of the philosophical scene
that took place in Athens soon after Socrates' trial and death. It will be argued
that the new way of doing philosophy, devised by the Socratics, was in fact
antipodal to the traditional offerings of doctrines and theories openly endorsed
by existing authors, and is therefore to be carefully distinguished from the
dialogues where new bodies of doctrine happen to be openly professed.
Because of the invention of the "open" Socratic dialogue, the philosophical
community of Athens very likely underwent a first-order "velvet revolution",
especially during the crucial years when Plato's identity as a writer and thinker
was being set in place.
Key-words: Socrates; Athenas; Plato; Dialogue.

Os leitores podem ter alguma dificuldade inicial em identificar uma tal


(suposta) “revolução de veludo” (como está indicado no resumo acima), já
que isto não faz parte do relato tradicional do que aconteceu logo após a
morte de Sócrates, ou dos efeitos que a rapidamente crescente literatura
socrática de então pôde ter tido sobre a comunidade filosófica contempo-

*
Livio Rossetti é professor da Universidade de Perugia, Itália. E-mail: Rossetti@unipg.it

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2 rânea. Assim, tentemos formar uma idéia do contexto em que o nome de
Platão se elevou a tal eminência. Não fazer é certamente arriscado, já que
O diálogo socrático “aberto” e sua temporada mágica

bem poderia abrir caminho para uma idéia tendenciosa – talvez seriamen-
te tendenciosa – do impacto que os “herdeiros” de Sócrates podem ter tido
sobre a comunidade filosófica (e, de modo mais geral, sobre a comunidade
letrada) de Atenas quando começaram a inundá-la com seus diálogos.
Assim, meu primeiro ponto será que temos acesso a evidência que nos
ajudará a montar um quadro realista do impacto que tiveram os socráticos
sobre Atenas no começo de sua atividade literária e filosófica. E meu segun-
do ponto será que levar em conta o todo, de que Platão era tão eminente-
mente uma parte, pode afetar de modo significativo o quadro do que pode
ter acontecido quando os socráticos começaram a dedicar suas melhores
energias como autores de grupos inteiros de Sokratikoi lógoi.

UMA HISTÓRIA DE SUCESSO. ALGUNS DADOS BÁSICOS


SOBRE A LITERATURA SOCRÁTICA NOS DIAS DE PLATÃO

Permitam-me começar oferecendo algumas informações básicas sobre


evidências frequentemente esquecidas sobre o assunto, e alguns dados rela-
tivamente incontroversos sobre o quão impressionante a irrupção dos
socráticos na cena filosófica grega pode ter sido, após o que proferirei al-
guns argumentos em suporte às minhas afirmações.1
I. Durante a primeira metade do século quarto, o grupo de socráticos
que esteve envolvido na invenção e utilização do assim chamado diálogo
socrático, composto por algo como de doze a quinze pessoas,2 foi autor de
mais de “duzentos” trabalhos, divididos em um número ainda maior de li-
vros. Seus escritos têm a probabilidade de ter incluído não menos (ou mais)
do que “trezentos” diálogos socráticos (incluindo um número de unidades
dialógicas curtas ou muito curtas).
II. Enquanto que a maior parte dos filósofos pré-socráticos compôs
apenas tratados (de tamanho padrão), tratados mais curtos (panfletos), ou
poemas-tratados, a maioria dos socráticos abandonou a forma de tratado em
favor do diálogo, ao menos durante o primeiro período de sua atividade
literária, apesar de alguns poucos terem, posteriormente, retornado à escrita

1
As páginas 23-27 de ROSSETTI, 2004, serviram de esboço para as páginas de abertura
do presente artigo.
2
Para um catalogue raisonné, ver ROSSETTI, 2005, 53-56.

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de tratados. Assim, uma brusca descontinuidade no fluxo de tratados filo- 3
sóficos é possível de ter ocorrido devido ao sucesso da forma de diálogo.

Livio Rossetti
III. Considerando que para a maior parte dos filósofos pré-socráticos era
uma prática comum fazer reinvidicações explícitas em seus livros, e argu-
mentar pela plausibilidade dessas reinvindicações, em muitos diálogos
socráticos – não somente nos diálogos aporéticos de Platão, mas também,
por exemplo, em seu Parmênides – não havia um demonstrandum bem es-
tabelecido pelo qual o autor estivesse ansioso por argumentar da maneira
mais convincente possível. Em clara descontinuidade com os padrões de
erudição comumente aceitos durante o século quinto, esses autores geral-
mente ficavam contentes em deixar abertas as questões que os seus livros
tratavam, e frequentemente falhavam em chegar, ou, ainda, ativamente
evitavam chegar a conclusões firmes, explícitas, com argumentos ampara-
dos por evidência confiável.
IV. No mesmo período, enquanto os socráticos inundavam Atenas
(e, portanto, a Grécia) com seus escritos, e especialmente com seus diálo-
gos socráticos, quase nenhum outro livro – de fato, talvez nenhum outro
livro – que se pudesse considerar de caráter filosófico e que se mantivesse
não afetado pelo socratismo – foi publicado em Atenas ou em qualquer outra
parte. Em outras palavras, durante o primeiro quartel do novo século, tor-
nou-se mais e mais inusual (para não dizer mais e mais difícil) ser um filó-
sofo mantendo-se não afetado pelo socratismo. Por conseguinte, a filoso-
fia grega nesse período parece ter sido marcada por uma forma singular de
descontinuidade com um recente (e glorioso) passado.
V. Segue-se que o aparecimento de uma rica literatura socrática prova-
velmente teve um efeito profundo sobre a própria noção de filosofia que
herdamos desse período.
VI. Se leitores contemporâneos de livros filosóficos chegaram a uma
percepção em larga escala de como precisamente era novo esse tipo de es-
tratégia (algo que me parece ter razoável probabilidade), então a “nova era”
da filosofia grega (aquela “revolução de veludo” que mencionei acima) foi
provavelmente uma característica proeminente das primeiras décadas do
século quarto.
Agora, alguns comentários.3 As indicações acima bem podem produzir
incredulidade em alguma medida, já que não estamos acostumados a dar

3
Já deve ter se tornado aparente que, neste artigo, tentarei considerar todo um grupo de
tópicos inter-relacionados. Dizer algo sobre cada lado do complexo poliedro exige demais
para que não se entre numa discussão incompleta da literatura relevante nestas poucas

HYPNOS
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4 muita atenção à literatura socrática de autoria dos pupilos diretos de
Sócrates como um todo. A suposta desproporção entre Platão e todos os
O diálogo socrático “aberto” e sua temporada mágica

outros escritores de diálogos socráticos estritamente contemporâneos,4 re-


forçada como é por uma desproporção intransponível entre o volume de
conhecimento que nos é disponível sobre o primeiro (juntamente com todo
trabalho de erudição a ele dedicado) e o que sabemos sobre estes, preveniu
fortemente a comunidade de estudiosos de prestar a devida atenção seja ao
que Platão pode ter tido em comum com seus colegas, seja a como a dispo-
nibilidade de outros diálogos socráticos e o sucesso desse novo gênero lite-
rário pode provavelmente ter afetado a constituição de “qualquer” novo
diálogo socrático, incluindo sua própria.
O que é frequentemente ignorado sem investigação é o aspecto quanti-
tativo da história, i. é, o número hipotético de títulos, diálogos socráticos
e livros que foram compostos pela coletividade que abrange os pupilos
diretos de Sócrates. Mas sabemos (a) que Platão e Antístenes escreveram
no total cerca de uma centena de obras (consistindo no total em um nú-
mero muito maior de livros); (b) que a Memorabilia de Xenofonte engloba
mais de uma dúzia5 de diálogos socráticos curtos. Uma vez que nos lem-
bremos disso, não é difícil concluir que os números inferidos acima ao
menos não são implausíveis.6 E, para os fins da presente investigação, isso
será suficiente.
No que concerne a meu segundo ponto, é bem sabido que a maioria dos
pré-socráticos e os sofistas em geral escreveram tratados, poemas didáticos
e panfletos, e praticamente7 nenhuma outra espécie de livro. Ainda mais,
que até o fim do século quinto fora prática normal entre filósofos e cientistas

páginas. Além disso, os leitores não ignoram como seria grande o volume de trabalho de
erudição a ser levado em consideração de modo a argumentar com mais detalhe sobre cada
um desses pontos.
4
Se Xenofonte se torna escritor somente após seu retiro em Squílus cerca de três décadas
após a morte de Sócrates, ele não pode estar envolvido na criação do gênero literário lado
a lado com a maioria dos demais autores.
5
Entre nove e vinte e três, nos é indiscutivelmente afirmado em DIÓGENES LAÉRCIO,
II, 84 e 121-124.
6
Para um levantamento mais detalhado das evidências, ver ROSSETTI, 2005, pp. 56-58.
7
Digo praticamente, já que ao menos as Antilogias poderiam valer como uma exceção à
regra. Como é amplamente conhecido, as Antilogias foram compostas por ao menos
Protágoras e Antifon, junto com o autor dos Dissoi lógoi. Entretanto, as Tetralogias de
Antifon, apesar de também serem de algum interesse para os filósofos, não concernem à
filosofia mas sim à literatura legal da época. No entanto, se essa obra é a única exceção à
regra, é seguro assumir que durante o século quinto a adoção da forma de tratado para li-
vros de ciência era praticamente universal.

HYPNOS
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escrever textos em que enunciavam um ou mais demonstranda e expunham 5
algumas teorias, e então sustentá-las com o melhor de suas habilidades, e

Livio Rossetti
finalmente alegar ter obtido sucesso em seus esforços. Até mesmo Górgias,
nos seus escritos remanescentes, e Antifon, nas suas famosas Tetralogias,
proclamam sua glória pelas habilidades de oferecer provas aparentemente
irresistíveis em prol de seus demonstranda. Considerando tudo, é difícil achar
exceções a esta regra entre homens de ciência do século quinto.
Comparativamente, os esforços da maior parte dos escritores socráticos
eram impressionantemente diferentes. Antístenes, Xenofonte e, talvez,
Aristipo compuseram tanto diálogos socráticos quanto outros escritos em
prosa sem influência da adoção da forma de diálogo. Em contraste, Ésquines
de Sfeto, Fédon, Símon, Críton, Símias, Cebes, Glauco e Platão,8 junto
(hipoteticamente) com Euclides de Mégara e Alexamenos de Téos, aban-
donaram de uma vez por todas a forma de tratado e compuseram apenas
diálogos socráticos. Esta última foi uma ocorrência maior e repentina: por
um período de tempo – talvez um par de décadas próximo ao início do sé-
culo quarto – novas idéias em filosofia foram lançadas não por meio de
tratados, mas quase inteiramente por meio de diálogos.
Os diálogos aporéticos de Platão, em particular, empenham-se em re-
presentar pessoas no ato de ficarem perplexas quando em face de observa-
ções inesperadas, acham necessário buscar uma resposta mais apropriada,
ou em representar Sócrates no ato de preparar uma nova cilada para seus
interlocutores de acordo com o modo como reagiram a um contra-exem-
plo prévio. Isso equivale a dizer que, por um tempo, Platão e alguns outros
escritores socráticos (ou em sua maioria) tentaram retratar pessoas no ato
de pensar e, portanto, no ato de adotar ou modificar impromptu uma pos-
tura teórica.9
Além disso, nos diálogos aporéticos de Platão (e alhures!), nenhuma
conclusão positiva provém do intercâmbio, e é longe de ser fácil destacar
uma lição “definitiva” do diálogo. Nos diálogos aporéticos, ele foi especial-
mente cuidadoso – e com notável sucesso – em evitar proferir noções e
argumentos que pudessem ser basicamente inalteráveis e assim apropria-
dos para que fossem aprendidos. E, algumas vezes, – pensa-se, por exem-

8
Temos, é claro, de fazer uma pequena exceção à regra no caso da Apologia, das Cartas e
dos Epigramas.
9
Sabemos que em Xenofonte e também em Ésquino, Sócrates é muito freqüentemente
retratado trazendo analogias, comentários e idéias inesperadas, de tal modo que seus
interlocutores (i. a. Aristipo de Xenofonte, Eutidemo de Xenofonte, Alcibíades de Ésquino)
têm que reconsiderar suas certezas prévias.

HYPNOS
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6 plo, na discussão de pontos exegéticos no Protágoras, ou no Eutifron, ou
no Laches – Platão ativamente previne seus leitores de formar uma idéia
O diálogo socrático “aberto” e sua temporada mágica

clara do(s) objetivo(s) em direção aos quais ele imperceptivelmente os


conduziu.10 Quando algo desta espécie acontece, o conteúdo afirmativo do
diálogo (algo que é ensinado, uma teoria, um demonstrandum com argu-
mentos que o sustentam) desaparecem de vista.
Uma vez estabelecido esse novo padrão, um ou mais autores socráticos
autorizaram-se a se pretenderem filósofos optimo jure, mesmo se seus livros
fracassavam em proferir ensinamentos definitivos ou em alegar saber que
certos estados de coisas fossem tais e tais. Com efeito, eles bem podem ter
alegado ser melhores filósofos do que aqueles comprometidos com o esta-
belecimento de declarações, crenças e verdades positivas, numa direção
totalmente contrária ao que havia sido a regra para toda uma tradição, de
Tales aos sofistas.11
Meu quarto ponto, que também pode ser visto com incredulidade, é o
seguinte: ao passo que durante as primeiras décadas do novo século os
socráticos eram extremamente prolíficos como escritores, é bastante difí-
cil, se não impossível, encontrar obras compostas no mesmo período por
outros filósofos gregos. Que informação temos, se houver, de livros escri-
tos nas primeiras décadas do século quarto que preenchem os dois seguin-
tes requerimentos básicos: (a) que sejam (reconhecidos como) obras cujo
principal interesse seja filosofia; e (b) que ignorem (ou, no máximo, mos-
trem apenas interesse marginal em) Sócrates, seu ensinamento e seus segui-
dores?
Para outros períodos, incluindo o século quinto, é fácil enxergar que os
filósofos (physiológoi e sofistas) formavam uma comunidade amplamente
diversificada. Além do mais, a sociedade ateniense daqueles dias incluía
muitos tipos de intelectuais, sem nenhuma hierarquia especial entre eles.
Mas para o período marcado pela atividade mais intensa dos socráticos como

10
Se a correta definição de piedade é determinável ou não no Eutifro é um ponto ampla-
mente discutido na literatura. Em meu comentário (ROSSETTI 1995, pp. 170-186), argu-
mentei em detalhe que, próximo ao fim do diálogo, o Sócrates de Platão indiscutivelmen-
te obstrui a busca por uma definição razoável, e esta característica sem dúvida se observa
também em outros diálogos aporéticos.
11
Isso sem desconsiderar a lacuna entre a atitude pravalescente na maioria dos Peri physeos
do século quinto e o alto grau de sofisticação alcançado por Górgias. No entanto, a alega-
ção de oferecer muito boas razões para sustentar a tese de que nada existe, ou de que Hele-
na não foi responsável pela guerra de Tróia, é um traço característico da maior parte das
obras gorgianas (e de alguns outros escritos do mesmo período) que conhecemos.

HYPNOS
ano 11 / nº 16 – 1º sem. 2006 – São Paulo / p. 1-16
escritores e filósofos, não sabemos de praticamente nenhum filósofo (ou, 7
em todo caso, de nenhum escrito filosófico) genuinamente independente

Livio Rossetti
e não afetado pelo Socratismo. Se procuramos filósofos contemporâneos que
permaneceram surdos à nova Sereia do Socratismo, podemos talvez men-
cionar o último Górgias ou o último Demócrito, se bem que eles podem
perfeitamente ter composto muitas de suas obras antes do começo do sé-
culo quarto. Ou então poderíamos mencionar Isócrates, um logógrafo e
depois professor de retórica, que certamente tinha algum interesse em fi-
losofia. Mas não dedicou nenhuma obra completa à matéria da filosofia,
nunca pretendeu seriamente ser um filósofo e não educou uma nova gera-
ção de filósofos. Ou ainda poderíamos nos referir ao autor do Papiro de
Derveni, que sem dúvida escreve algo do interesse dos filósofos, mas sem
merecer (e nem pretender) ser um filósofo. Havia algum filósofo grego ati-
vo, próximo ao começo do século quarto, que não fosse socrático?
A única possibilidade é Arquitas de Tarento, que foi sem dúvida um
grande matemático, um músico dotado, um escritor de sensibilidade e um
político instruído. No entanto, sua contribuição para a filosofia permane-
ce matéria de inferência, baseada em suas relações amistosas com Platão e
na notícia de que Aristóteles teria composto “três livros sobre a filosofia de
Arquitas” (Dig. Laércio, V, 25 e outras fontes). Assim, sua suposta filoso-
fia deve ser considerada, se tanto, a única exceção à regra: ele eventualmente
poderia figurar como o “menos representativo” de tradições que estavam
em todo caso desempenhando um papel de evidente decadência na comu-
nidade filosófica da Grécia do século quarto.
A concomitância desses dois eventos – a aparente dissolução de uma nem
por isso menos gloriosa tradição, no momento em que um brilhante gru-
po de nouveaux philosophes vem a se afirmar e ocupar o palco – claramen-
te sugere que eles não tiveram lugar independentemente um do outro. E,
se considerarmos como Platão era cool comparado a seus predecessores,12
torna-se fácil suspeitar que, face ao novo estilo de filosofar introduzido pelos
socráticos, as antigas tradições filosóficas perderam muito de seu apelo.
Meu quinto ponto enfatiza como, se uma maneira bastante nova de fazer
filosofia, bem como de ser um filósofo, havia sido um traço da literatura
socrática inicial, e se àquele tempo não existia oponente válido a ele (como
é bem conhecido, os filósofos ativos na Grécia durante o século quarto eram
ex-pupilos de Sócrates, ex-pupilos de Platão ou de algum outro escritor

12
Esse é um ponto razoavelmente controverso, relativo ao qual veja-se ROSSETTI 2004a.
Para uma abordagem diferente, veja-se por exemplo DIXSAUT-BRANCACI, 2002.

HYPNOS
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8 socrático, ou ex-pupilos de Aristóteles), isto significa que um espantoso
processo de “socratização” da própria noção de filosofia deve ter tido lugar
O diálogo socrático “aberto” e sua temporada mágica

nesse tempo. E exatamente como isso se deu certamente vale investigar.


Finalmente, se os socráticos de fato vieram a ocupar o palco (e suas
obras freqüentemente usavam uma forma coloquial de discurso bastante
apropriada para a expansão do círculo de leitores potenciais), então leito-
res contemporâneos de livros filosóficos bem podiam ter consciência de
como era nova esta espécie de estratégia de comunicação.
Poderia se objetar que a vida do novo sistema foi muito curta, já que
Antístenes logo começou a escrever tratados, e que o próprio Platão pa-
rece ao menos em parte ter abandonado esse modo de comunicação em
favor de diálogos (não somente no Timeu e nas Leis, mas também no Fédon)
em que um locutor principal tem a expor uma doutrina própria. Mas esta
é uma questão muito complicada, que não pode ser tratada aqui em ape-
nas algumas linhas. Seja apenas enfatizado que, não importa se olhamos
sejam os diálogos aporéticos de Platão, sejam os diálogos maduros poste-
riores, seria impossível não notar sua descontinuidade com outros tratados
eruditos do século quinto e, mais amplamente, com as maneiras então
conhecidas de filosofar e de ser um filósofo.
Nestas bases, não deveríamos falar em uma nova e singular época lite-
rária e filosófica, e em um singular período de suprema criatividade? A nova
maneira de fazer filosofia bem pode ter atingido, nesse tempo, tanto um alto
grau de sofisticação por parte de seus protagonistas, os socráticos, quanto
um alto grau de visibilidade aos olhos dos leitores contemporâneos. Suas
inovações podem muito bem ter dado a impressão da chegada de uma “nova
era” para uma já gloriosa tradição filosófica grega.
O momento mágico pode ter sido em torno dos anos 395-385 a. C.,
quando os socráticos rapidamente se tornaram os nouveaux philosophes de
seu tempo e a criatividade intelectual de alguns deles alcançou um maravi-
lhoso clímax. Muito possivelmente foi criada uma lacuna espetacular en-
tre a maneira nova e a antiga de fazer filosofia, de ser um filósofo, e espe-
cialmente de compor textos filosóficos, uma lacuna grande o suficiente para
deixar a impressão de uma descontinuidade intransponível com relação ao
passado. Com efeito, em poucos outros períodos da filosofia ocidental uma
determinação de diluir, senão de totalmente dissolver a diferença entre fi-
losofia e literatura, atingiu um nível comparável (uma determinação, deve
se acrescentar, que foi reforçada por certa medida de anti-academicismo, um
desejo de alcançar uma comunidade de leitores maior e menos especializa-
da e uma preferência pelo desafio intelectual). Em poucas outras épocas a

HYPNOS
ano 11 / nº 16 – 1º sem. 2006 – São Paulo / p. 1-16
impressão de viver em meio a uma evolução irreversível nos modos de fa- 9
zer filosofia (mesmo que não, talvez, de fazer ciência) foi tão amplamente

Livio Rossetti
partilhada, ainda que somente por curtos períodos de tempo. Com efeito,
parece razoável assumir que a novidade do diálogo socrático foi largamen-
te percebida, tanto por autores quanto por leitores, como algo bruscamen-
te descontínuo com modos já conhecidos de fazer filosofia.

COMO O CONTEXTO NOS AJUDA A FORMAR


UMA IMAGEM DIFERENTE

Muito mais poderia (e deveria) ser dito sobre cada um dos pontos ora
discutidos, é claro, mas o esboço prévio mostra acima de dúvidas como os
socráticos foram bem sucedidos (com alguma sorte) em provocar e levar
adiante uma poderosíssima “revolução de veludo”. E esses socráticos foram
um grupo bem identificado de intelectuais e escritores (nem todos pode-
riam ser chamados de “filósofos”), além simplesmente de Platão. Esse é o
ponto principal que eu quero defender. Sob muitas facetas dessa história so-
fremos de uma dramática falta de informação, e muitas áreas permanecem
obscuras ou controversas, mas parece haver pouco espaço para dúvida quan-
to ao impacto do novo gênero literário, do lógos sokrátikos, sobre a comu-
nidade letrada de Atenas e, provavelmente, da Grécia como um todo.
Com efeito, enxergar simplesmente essa literatura peculiar pelo ângu-
lo de observação das pessoas pensantes (ou dos pretendentes a filósofos do
período) que tinham acesso a uma generosa amostra dos novos textos pu-
blicados por filósofos contemporâneos, é perceber imediatamente a
descontinuidade espetacular que eles devem ter visto entre os novos escri-
tos filosóficos dos socráticos e a literatura filosófica composta durante o
século quinto, especialmente no que diz respeito à quantidade de produção
escrita.
De modo inverso, se nos concentramos exclusivamente em Platão,
como é de costume, a imagem que esboçamos simplesmente desaparece.
Esquecendo que Platão, mesmo que de longe o maior entre os socráticos,
não estava sozinho, perdemos nosso tempo especulando – freqüentemente
em vão – sobre a continuidade/descontinuidade de seu pensamento, ou
sobre a fidelidade/infidelidade do pupilo com relação ao mestre, ou se cer-
to diálogo é “anterior” ou “posterior”, ou sobre a suposta “unidade” sub-
terrânea dos diálogos a despeito de uma quantidade de óbvias diferenças
entre eles, e assim por diante. Mas, dessa forma, o movimento literário e

HYPNOS
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10 filosófico como um todo escapa imperceptivelmente do campo de visão,
como sendo algo sem relevância. Além disso, é demasiado fácil persuadirmo-
O diálogo socrático “aberto” e sua temporada mágica

nos de que é tão difícil, enquanto estudiosos de Platão, encontrar uma tri-
lha no tremendo emaranhado de suas obras e idéias, que é quase impossí-
vel considerar quaisquer outros socráticos, ainda que estejamos predispos-
tos a reconhecer que assim deveríamos fazer. Há argumento mais eficaz do
que este para dissuadir os estudiosos de se lembrarem da importância do
contexto?
Graças a essa reação automática, nasceu uma infeliz subclasse que con-
siste nos “outros” socráticos (isto é “menores”), e nos tornamos em conse-
qüência dramaticamente inaptos a prestar a devida atenção a eles e a seus
escritos, como muitos estudiosos contemporâneos13 têm mostrado de modo
mais e mais convincente. Não é surpresa que a visão de uma única enorme
baleia (ou, se preferirem, de um único enorme tubarão) nos faça perder de
vista outros peixes do mar, a ponto de deixá-los praticamente sem identifi-
cação.
Outra falha, que ocorre sempre que perdemos de vista o grupo em sua
totalidade, vincula-se à possibilidade de analisar o problema da fidelidade/
infidelidade desses escritores ao Sócrates real, o qual tiveram o privilégio
de conhecer e de a ele se associarem. Pois, se consideramos o número notá-
vel de novos diálogos compostos pelos diversos socráticos ano após ano, e
isso em um período de no mínimo um par de décadas, torna-se fácil adivi-
nhar como deve ter sido importante, por um período razoavelmente lon-
go e para “todo” autor desse grupo, dar forma a novas e novas histórias, em
inéditas ambientações e com diferentes interlocutores, mas com o próprio
Sócrates claramente reconhecível como basicamente o “mesmo” Sócrates
que o Sócrates de outros diálogos, isto é, como um personagem que se com-
porta aproximadamente da mesma maneira aqui como ali. Com efeito,
oferecer um retrato do “mesmo” Sócrates bem podia valer como um traço
da autenticidade de uma obra, e portanto de seu valor, e assim garantia uma
resposta favorável por parte do público. De outro lado, se o sucesso sob esse
aspecto estimulou os socráticos a compor tantos diálogos socráticos, é ra-
zoável esperar que a maioria desses diálogos tivesse por objetivo ser reco-
nhecidamente do mesmo tipo que aqueles que já haviam alcançado notó-

13
Pode ser suficiente mencionar os trabalhos de estudiosos como NARCY, Michel,
MORRISON, Donald e DORION, Louis-André, e ainda a conferência Xénophon et
Socrate. Aix-en-Provence, 11/2003 (no prelo), e a conferência Letteratura Socratica Antica.
Senigallia, 2/2005 (no prelo).

HYPNOS
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rio sucesso; daí sua tendência a retratar Sócrates de maneira substancialmente 11
reconhecível. Além disso, quando os socráticos começaram a escrever es-

Livio Rossetti
ses lógoi, eles estavam, sem dúvida, engajados numa tentativa bastante sé-
ria de reabilitar a reputação de um homem amado e de defender a reputa-
ção (e o futuro) da maneira socrática de filosofar e, por meio disso, ofere-
cer um futuro (e assim um certo prestígio e um papel na sociedade) a si
mesmos como os “novos filósofos”.
Portanto, em alguma medida, próximo ao começo de sua aventura como
escritores, os socráticos podem bem ter se esforçado em oferecer um retra-
to de Sócrates-como-pessoa-viva-agindo-como-costumava-agir, e tal retrato
bem poderia nos ser de valor informativo. Devo também lembrá-los de que
os diálogos socráticos costumavam levar leitores do século quarto a interagir
com a escrita de maneiras bastante inusuais: leitores dos diálogos aporéticos
de Platão – e de muitos outros sokratikoi lógoi – deveriam, entre outras
coisas, decidir, passo a passo, quem está certo e se Sócrates é justo com seu
interlocutor; tentar imaginar como a interação de alguém com Sócrates vai
se desenvolver; experimentar (ao invés de observar) mudanças na identifi-
cação emocional;14 e imaginar qual deve ser a lição do diálogo... Tudo isso
bem pode ter sido suficiente para fazer a leitura de diálogos socráticos bas-
tante contagiante!
Tal dinâmica claramente pravaleceu durante algum tempo (por um par
de décadas?), quando então um sentimento de saturação com relação ao
Sócrates “ortodoxo” bem pode ter começado a se manifestar. Certamente
Platão, mas provavelmente também outros socráticos (e, definitivamente,
Antístenes), depois de terem composto muitos diálogos socráticos “típicos”,
sentiram-se muito mais livres para desviarem-se do Sócrates “padrão” do
primeiro período, e essa dinâmica explica por que, em vários dos diálogos
de Platão, Sócrates passa a não ser mais reconhecível. Assim, tentativas de
distinguir entre diálogos anteriores e posteriores não devem ser tomadas
como uma tarefa de Sísifo, já que é bastante razoável reconhecer, primei-
ro, que há diálogos em que Sócrates “comporta-se como Sócrates” (e este
Sócrates é reconhecível como basicamente a mesma pessoa que ainda ve-
mos em ação em muitos outros diálogos, longos, curtos e em anedotas) e,
em segundo lugar, que em diálogos onde Sócrates é ostensivamente o pro-

14
Especialmente no caso de diálogos aporéticos, os leitores freqüentemente tendem a se
sentirem simpáticos ao interlocutor no início, mas então inevitavelmente passam a se sen-
tir mais e mais na mesma freqüência de Sócrates.

HYPNOS
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12 ponente de doutrinas específicas, que quase certamente refletem as idéias
do autor do diálogo, ele então não mais está “se comportando como
O diálogo socrático “aberto” e sua temporada mágica

Sócrates”.
De fato, é constante encontramos um personagem chamado “Sócrates”
que, ao invés de se comportar, falando amplamente, como um questionador,
comporta-se, ao invés disso, como um professor que já tem a expor muitas
teorias próprias bem-estruturadas (como, por exemplo, em porções subs-
tanciais do Fédon de Platão); ou como um professor que quer ser seguido
por um interlocutor bastante disciplinado que não ousa ter idéias próprias,
mas que simplesmente tenta entendê-lo passo por passo (como, por exem-
plo, na República de Platão, com exceção do Livro I); ou como alguém que
está silenciosamente contente 15 em aprender um bom tanto de seu
interlocutor (como no Oeconomicus de Xenofonte); ou como alguém bas-
tante consciente das habilidades necessárias para ser um hipparchos profici-
ente (como em Mem. III 3); ou como alguém que sabe como os pintores
revelam emoções e éthos através de figurações, e como os escultores retra-
tam o corpo humano como se estivesse vivo (como em Mem. III 10.1-8).
“Este” Sócrates, certamente, tem muito pouco em comum com o Sócrates
de recognição comum e, o que é mais importante, não deveria ser confun-
dido com aquele filósofo.16
É fácil demais presumir que diálogos do segundo tipo foram escritos
quando não era mais uma prioridade oferecer o retrato mais fiel de Sócrates
tal qual realmente existira. E já que é bastante fácil ver onde, quando (e até
que ponto) Sócrates se torna o proponente de doutrinas específicas, que ele
não está mais “se comportando como Sócrates”, podemos assumir com se-
gurança que os socráticos estavam de acordo em que o Sócrates que se com-
portava de uma certa maneira reconhecível era um Sócrates próximo ou
bastante próximo do original e, reciprocamente, que não faziam uma ale-
gação séria de aderir ao original quando ousavam transformá-lo no simples
proponente de doutrinas específicas.17

15
Quero dizer: longe de meramente parecer apreciar o que o interlocutor tem a dizer (como,
digamos, no Eutífron de Platão: cf. 6c8-9), Sócrates aqui sinceramente aceita aprender, i. é,
participar da transferência de peças prontas de conhecimento de seu interlocutor para si
mesmo.
16
Mais sobre esse ponto em ROSSETTI, 2004 b.
17
É pena não poder discutir este – e outros – tópicos com mais vagar. Este artigo tinha a
intenção, na verdade, de explorar um grupo razoavelmente complexo de temas estritamen-
te inter-relacionados, ao mesmo tempo adiando o levantamento erudito de cada um deles
para uma ocasião posterior.

HYPNOS
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Estas conjecturas nos ajudam a identificar outra mudança importante 13
que ocorreu algum tempo (algumas décadas, de fato) após o nascimento do

Livio Rossetti
fenômeno literário e filosófico chamado sokratikoi lógoi. Em um tempo em
que a nova fórmula havia deixado de ser novidade, Platão e outros autores
podem ter sentido uma inclinação a introduzir mais doutrinas, teorias, doxai
e ensinamentos explícitos em seus diálogos socráticos. É claro que não sa-
bemos exatamente como e quando as coisas mudaram, mas é ao menos plau-
sível que Platão tenha abandonado o molde aporético de seus diálogos em
favor de uma nova fórmula em que, falando amplamente, há um mestre e
há algo sendo ensinado. Assim fazendo, ele inventou um novo tipo de diá-
logo, que teve por objetivo garantir espaço amplo para ensinamentos posi-
tivos por parte do locutor principal, e estava provavelmente contente em
aceitar a entrada de toda uma nova série de filosofemas em seus diálogos.
Mesmo nesses diálogos “doutrinários”, Platão freqüentemente mostra in-
teresse em apontar como certas questões cruciais não devem ser tomadas
como tendo sido definitivamente fixadas.
Observe-se, por exemplo, como freqüentemente há uma desproporção
entre o corpo doutrinário principal de um dado diálogo e sua conclusão
explícita, tal que deixa ainda aberta a questão com relação a importantes
pontos de vista (veja-se o Fédon, o Eutidemo, o Crátilo, a República, o Teeteto,
o Parmênides e outros diálogos).18 No entanto, estes permanecem diálogos
doutrinários já que seu locutor central normalmente professa “já ter” de-
senvolvido algumas idéias, alcançado algum conhecimento, estar conven-
cido de algo quando chega para partilhá-las com seus interlocutores e, de
outro lado, quase todos nesses diálogos evitam fazer declarações, definições
ou objeções impromptu.
Assim, seja quais forem os detalhes da história, podemos concluir que
houve “primeiro” um período de entusiasmo pela forma do diálogo e uma
nova maneira de filosofar, e “então” um novo período marcado pela prefe-
rência por diálogos que incorporam um corpo todo de doutrinas, teorias e
doxai como uma parte importante deles. Desse modo, as doutrinas mais uma
vez começaram a formar o “conteúdo” de diálogos bem como de tratados

18
Essas declarações certamente deveriam ser qualificadas, e isto não pode ser feito aqui. É
suficiente notar que, quanto à República, a desproporção entre o mito final e os principais
demonstranda do diálogo têm sido tratada convincentemente (ainda que de modo incom-
pleto) no paródico Livro XI da República recentemente composto por Mario Vegetti
(VEGETTI 2004).

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14 filosóficos enquanto tais (isto é, ocupando, por assim dizer, o campo semân-
tico de “filosofia”).19 Nenhuma das inovações provou-se absorvível pela
O diálogo socrático “aberto” e sua temporada mágica

outra. Que poderosa oscilação entre extremos!

PENSAMENTOS ADICIONAIS SOBRE O DIÁLOGO SOCRÁTICO


COMO EXPERIMENTO EM FILOSOFIA

Em todo caso, no começo dessa história, a produção de diálogos filosó-


ficos em que acontece de Sócrates ser retratado com bastante cuidado
“como” Sócrates, com sua particular tendência a controlar a conversa, efe-
tivamente substituiu a produção de tratados tradicionais por algo em que
freqüentemente falta uma característica determinante de tratados – isto é,
um corpo de doutrinas, abertamente mantidas pelo autor – e longe de ser
explícito em suas alegações. De fato, em muitos de seus diálogos (especial-
mente, mas não somente, nos aporéticos), Platão não mostra vergonha nem
hesitação em estabelecer trocas abertas, onde as conclusões a que chegam
os interlocutores têm claramente a intenção de serem apenas provisórias,
e adequadas para elaboração e desenvolvimento através de investigação ul-
terior; elas são, falando estritamente, incapazes de levar os leitores a uma
conclusão firme sobre o(s) ponto(s) tratado(s) no curso do diálogo em ques-
tão. Também Xenofonte apresenta pequenas porções de diálogo em que o
tema da conversa permanece “inexpresso” ou difícil de se detectar, como
em Mem. IV 2 e alhures. Quanto ao que temos de outros autores e em
muitos diálogos socráticos anônimos, estes, em contraste, pouco fazem para
ajudar-nos a decidir quão difundida foi de fato a adoção do diálogo “aberto”.
Como sugerimos acima, o diálogo “aberto” bem poderia ter apresenta-
do um grande desafio aos leitores, já que sua maioria estava acostumada a
ler (ou a participar de declamações públicas de) tratados e, portanto, quan-
do diante de um diálogo de caráter ostensivamente filosófico, poderiam
razoavelmente ter esperado encontrar uma doutrina nele incorporada e
claramente visada a dele emergir. Assim, uma vez que nenhum corpo
explícito de doutrina emergisse de um dado diálogo, os leitores bem pode-
riam se sentir embaraçados e convocados, talvez, a tratá-los não como
científicos ou filosóficos, mas, ao invés disso, como leituras ou notícias “a
respeito” de Sócrates, e simples formas de entretenimento intelectual. Pior

19
Este é mesmo o caso, se Platão é freqüentemente cuidadoso em evitar preservar distân-
cia das teorias sustentadas por seus principais personagens.

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ainda, ao encontrarem, não alguma doutrina precisa que pudesse ser toma- 15
da como confiável, e possivelmente como um avanço sobre outras teorias,

Livio Rossetti
mas simplesmente uma série de ruminações, cada uma servindo como mero
degrau em direção a um melhor levantamento do assunto em questão, bem
poderiam ter começado a pensar que estavam examinando algo possivelmen-
te inacabado.
Um problema adicional emerge quando se considera que a forma do
diálogo aberto deixa aos autores apenas escassas oportunidades de explicar
seu tipo especial de anomalia. Assim, precisamos levantar a questão: quais
técnicas poderia ter inventado Platão (e possivelmente outros socráticos) de
modo a garantir um entendimento e uma avaliação mais apurados desses
diálogos? Eles poderiam, para começar, ter tomado como axiomático que,
se Sócrates realmente fez filosofia dessa maneira, então eles estavam total-
mente autorizados a apresentar tal discussão “aberta” como um modo per-
tinente de fazer filosofia. Ou, que nesse tipo de diálogo o leitor com bom
discernimento deveria ir bem além do dado, e buscar conclusões que esta-
vam longe de terem sido completamente explicitadas.
Outra alternativa é que eles tenham propositalmente deixado os leito-
res a si mesmos, na esperança de que eles viessem a perceber por si próprios
que um diálogo aberto tem “valor agregado”, no que ele é rico, estimulan-
te, provocativo e instrutivo precisamente “por causa” da falta de uma con-
clusão ou lição definitiva. Ou seu objetivo teria sido o de mostrar que a fi-
losofia é mais uma atividade intelectual do que um ato de aprendizado, e
que o diálogo escrito pode apenas sugerir os primeiros passos de uma in-
vestigação que será levada adiante em um contexto outro que o da mera
leitura. Seja lá o que tenham feito para prevenir o mal entendimento de suas
intenções, os socráticos de alguma forma foram bem-sucedidos, ainda que
apenas por um período, em persuadir um bom número de leitores de que a
maneira deles de filosofar era, não apenas uma maneira legítima, mas
mesmo uma maneira melhor do que as passadas.
Como resultado, emergiu como possibilidade uma concepção de filo-
sofia completamente nova (isto é, de filosofia como um processo de
questionamento, ao invés do oferecimento de respostas tranqüilizadoras a
questões), ainda que não se tenha desenvolvido numa postura filosófica
consciente. Do modo como as coisas se passaram, acabou voltando a “anti-
ga” fórmula (a dos tratados, ou em todo caso a de uma forma de comuni-
cação menos filtrada), e em um espaço de umas poucas décadas mais uma
vez tornou-se o padrão. A temporada do diálogo socrático “totalmente
aberto” foi bastante curta.

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16 Nesta visão dos eventos, no entanto, algumas bruscas descontinuidades
vieram à luz, especialmente dentro do conjunto de diálogos genuinamente
O diálogo socrático “aberto” e sua temporada mágica

platônicos; a imagem do período como um todo tornou-se um pouco mais


radicalizada; Sócrates recupera uma identidade básica muitas vezes tida como
definitivamente perdida; e uma abordagem holística da literatura socrática
primigênia prova-se instrutiva e merecedora de investigações adicionais.

[recebido em julho de 2005]


Tradução de Bruno Conte
E-mail: bruno@brunoc.com.br

REFERÊNCIAS20
PLATONE. Eutifrone, a cura di L. R. Roma: Armando, 1995.
ROSSETTI, L. Le dialogue socratique in statu nascendi. Philosophie Antique, I, 2001.
pp. 11-35.
_____. Plato on the Pre-Socratics. In: GRACIA, J. & YU, J. (eds.). Uses and abuses of
the classics. Aldershot & Burlington VT: Ashgate, 2004a. pp. 11-35.
_____. The Sokratikoi Logoi as a Litterary Barrier. Toward the Identification of a
Standard Socrates Throught Them. In: KARASMANIS, V. (ed.). Socrates 2004
years Since His Death. Athens: ECCD, 2004b. pp. 81-94.
_____. Le contexte littéraire dans le quel Platon a écrit. In: FATTAL, M. (ed.) La
philosophie de Platon 2. Paris: L’Harmattan, 2005. pp. 51-80.

20
Como foi explicado na nota 3, nenhuma referência sistemática à literatura erudita foi
introduzida neste artigo, com única exceção de DIXSAUT, M. & BRANCACCI, A. (eds.).
Platon, source des Présocratiques. Paris: Vrin, 2002. VEGETTI 2004, i. é PLATONE.
Repubblica Livro XI, Lettera XIV. Socrate incontra Marx, lo Straniero di Treviri. Autentico
falso di Mario Vegetti. Napoli: Guida, 2004, é fruto da imaginação, mas de uma imagina-
ção dirigida por vasta competência como estudioso. Um livro e alguns artigos meus foram
citados para sustentar certos pontos que foram tratados aqui apenas de modo sumário.

HYPNOS
ano 11 / nº 16 – 1º sem. 2006 – São Paulo / p. 1-16
EL ALMA DEL MUNDO EN SCHELLING
THE WORLD-SOUL IN SCHELLING
HUGO RENATO OCHOA*

Resumen: Este artículo consta de dos partes, en la primera se proponen cuatro


principios, entre sí concetenados, que estarían a la base de toda la filosofía de
Schelling, más allá de las transformaciones o evoluciones que ésta pudo tener.
A continuación, a partir de los principios antes expuestos, se explica el senti-
do y el lugar que ocupa el “alma del mundo” en el sistema de Schelling, en
espacial referencia a la “filosofía de la naturaleza”.
Palabras clave: alma; mundo; naturaleza; Diós.

Abstract: In the first part of this paper, four interrelated principles are
proposed as being at the foundation of Schelling's philosophy but as being,
nevertheless, beyond its eventual transformations or evolutions. In the second
part, these four principles are used to explain the meaning and place of the
"world-soul" in Schelling's system, especially in its relation to his Philosophy
of Nature.
Key-words: Soul; World; Nature; God.

Schelling siempre se precipitó en dar a conocer su pensamiento antes


que esté fuera acabado, esto significa que, por una parte, un gran número
de sus obras son introducciones inacabadas, en las que expone lo que son
sólo proyectos y, por otra parte, a medida que va madurando su propio
pensamiento, éste evoluciona y se ve obligado a rectificar lo que eran sólo
aproximaciones. Eso es lo que, por ejemplo, intenta exponer Tilliette con
el título de su obra principal sobre este autor “Schelling, une philosophie en
devenir”.1
Esta búsqueda, estos giros y rectificaciones de Schelling a veces impi-
den ver lo que constituye el núcleo central y permanente de “sus filosofías”,
ya que a lo largo de su extensa producción filosófica existen ciertos princi-
pios que son constantes y a los que vuelve una y otra vez.

*
Hugo Renato Ochoa é professor na Universidad Católica de Valparaiso, Chile.
E-mail: rochoa@ucv8.ucv.cl
1
TILLIETTE, X., Schelling, une philosophie en devenir, Paris: Vrin, 1970.

HYPNOS
ano 11 / nº 16 – 1º sem. 2006 – São Paulo / p. 17-31
18 PRINCIPIOS GENERALES
El alma del mundo en Schelling

Primer principio
El principio fundamental se encuentra ya en una de sus primeras obras,
Acerca del yo como principio de la filosofía o sobre lo incondicionado en el sa-
ber humano: “el comienzo y el fin de toda filosofía es ¡libertad!”,2 y en Ideas
para una filosofía de la naturaleza como introducción al estudio de esta cien-
cia: “la filosofía [...] es completamente obra de la libertad”.3 Así, pues, para
Schelling el primer principio originario, “lo que antiguamente y ahora y
siempre buscado”,4 es la libertad. Esto significa la afirmación de un primer
principio no sustancial cuya identidad radica en la absoluta espontaneidad,
incondicionada por su misma naturaleza, de un acto que se funda radical-
mente a sí mismo. La búsqueda del primer principio, cuyo carácter funda-
mental es el de ser incondicionado y, por lo tanto, absoluto, sólo puede
conducir a aquello que se pone a sí mismo como radical principio de la
acción, y tal puede ser sólo la libertad.
El carácter no sustancial de este principio significa que no puede ser
objeto y nunca puede ser objetualizado, en tanto incondicionado (unbeding),
no puede ser cosa (Ding), es, pues necesariamente sujeto.5 Sin embargo, este
sujeto no debe ser entendido al modo cartesiano, como cogito, sino como
acción de sí mismo; “en el principio era la acción”;6 es sujeto, pero debe ser
entendido como el enclave del acto que se realiza por su mismo acto y es,
por lo tanto, sujeto-objeto. No puede haber nada anterior a él y, como es
principio actuante, todo lo posterior tiene en él su origen. Ser es acción, y
su identidad no puede consistir en una esfera clausurada sobre sí misma o
en algo que meramente se contemple a sí mismo.
La libertad entraña, a la vez, autoposición y autoposesión de sí, nunca
puede dejar de autoafirmarse y, por lo tanto, es imposible que deje de ser o

2
SCHELLING, F.W.J., Vom Ich als Princip der Philosophie oder über des Unbedingte im
menschlichen Wissen, Historisch-Kritische Ausgabe, I, 2, E., Stuttgart: Frommann-Holzboog,
1980, p. 101.
3
SCHELLING, F.W.J., Ideen su einer Philosophie der Natur als Einleitung in das Studium
dieser Wissenschaft, (1ª edición 1797, 2ª 1803), en Schelling Ausgewählte Werke, Darmstadt:
Wissenschaftliche Buchgesellschaft, 1967, p. 335.
4
ARISTÓTELES, Metafísica, 1028 b 2.
5
Cf. SCHELLING, F.W.J., Vom Ich..., op. cit., pp. 87 ss.
6
GOETHE, Fausto, “Das Wessen des Menschen ist handeln.” Cf. SCHELLING, Ideen zu
einer Philosophie der Natur..., en Schelling Ausgewählte Werke, Schriften von 1794-1798,
Darmstadt: Wissenschaftliche Buchgesellschaft, 1967, p. 337.

HYPNOS
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se pierda de sí misma, es, pues, lo absolutamente necesario. Además, care- 19
ce de suyo de todo límite, es un punto absoluto que juega desde sí un juego

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que ella misma crea cada vez, porque la libertad es esencialmente creadora,
es una fuerza, una potencia de todo, y por ello está en el origen de todo.
Este principio puede ser llamado Yo y, si es sujeto-objeto, es ya de antema-
no es Yo en sí; es Yo antes de todo contenido y configuración, antes que
principio estructurador, al modo del sujeto trascendental kantiano, es una
simple realidad que se realiza a sí misma.
“El último punto, del que todo nuestro saber, y toda la serie de lo con-
dicionado, no debe ser condicionado absolutamente por medio de nada más.
La totalidad de nuestro saber no tiene ninguna detención, si no es conteni-
do por algo que se soporte por fuerza propia, y esto no es sino lo determi-
nado mediante libertad”.7

Segundo principio
El segundo elemento central para comprender la filosofía de Schelling
se sigue necesariamente del primero. Para Schelling, dado que el primer
principio es libertad, una filosofía que cabalmente se asiente sobre ese prin-
cipio no puede consistir sino en el mismo devenir de éste, lo cual significa
que tal filosofía es genética. Habitualmente la filosofía había sido entendi-
da como un discurso racional especulativo, pero un tal discurso queda siem-
pre en la frontera de este ser absoluto que es libertad, intenta apresarlo en
la necesidad lógica de un sistema y, con ello, oculta su identidad más pro-
funda. El carácter genético de la filosofía significa que ésta entraña un de-
venir por el que la libertad se vuelve sobre sus propias obras para, al asu-
mirlas como propias, dar lugar a una forma de saber reconstructivo.
Así, pues, el que la filosofía sea genética responde al mismo carácter
genético de lo real, en la medida que éste tiene su principio en la libertad;
la necesidad, entendida como “condición” necesaria, por el contrario, como
señala Kant, es puesta por el sujeto al conocer lo real transformándolo en
fenómeno y, por lo tanto, no puede ser jamás originaria. De modo que si
“quien quiere saber algo, quiere a la vez que su saber tenga realidad”,8 para
alcanzar tal saber se debe seguir el mismo itinerario de lo real. Para Schelling,
la filosofía debe dar cuenta de la génesis de lo real, por ello el sistema que
lo comprenda debe ser dinámico y no estático. “Una vez despertado el es-
píritu dinámico, todo filosofar que no tome su fuerza de él, sólo debe ser
7
SCHELLING, F.W.J., Vom Ich..., op. cit., p. 101.
8
Ibid, p. 85.

HYPNOS
ano 11 / nº 16 – 1º sem. 2006 – São Paulo / p. 17-31
20 considerado como un mero abuso del don generoso de hablar y pensar”.9
Pero este carácter dinámico implica que ha de haber una evolución interna
El alma del mundo en Schelling

al principio mismo, un desarrollo progresivo que debe necesariamente orien-


tarse a un fin que no puede trascender el principio, en la medida que éste
no pierde nunca la libertad que lo constituye. Toda comprensión lógica, en
la medida que es puramente discursiva, es un mal remedo del mismo deve-
nir del principio hacia sí mismo; se trata de la historia del ser, y sólo en su
curso genético el ser puede ser cabalmente entendido, pero esta intelección
consiste en rehacer el recorrido desde el fin hacia el principio, para luego
rehacer el camino.
Génesis significa desarrollo, evolución, en el que la totalidad de lo real-
fáctico, lo condicionado, debe ser comprendido como momento del desplie-
gue de la libertad, lo condicionado reclama, precisamente, un fundamento
incondicionado. La evolución y desarrollo del principio se realiza en tanto
éste, por decirlo así, se llena de contenido, producto éste del mismo desplie-
gue de la libertad. Sin embargo, ningún contenido lo agota, porque nada
puede limitar absolutamente un principio que consiste en libertad pura, por
ello fracasa irremediablemente todo intento de comprensión de lo real en
un sistema puramente lógico-discursivo.
El punto de término de esta evolución es el momento en el que el prin-
cipio se vuelve radicalmente sobre sí mismo en la autoconciencia. Por cuan-
to, “al preguntar ¿cómo es que represento?, me elevo a mí mismo por so-
bre las representaciones y me convierto por esta pregunta en un ser que se
siente originariamente libre respecto de todo representar [...]. Mediante esta
pregunta misma me convierto en un ser que posee un ser en sí mismo inde-
pendiente de todas las cosas externas”.10 De modo que en virtud del térmi-
no evolutivo que consiste en la autoconciencia aparecen “las cosas externas”.
Por ello, esta misma libertad permite recuperar lo real, sólo que ahora te-
máticamente como objeto de un saber que sabe de sí mismo. Así, pues, la
reconstrucción de lo real, en la que consiste la filosofía, se realiza desde la
autoconciencia y, en este sentido, la autoconciencia es efectivamente pri-
mer principio del filosofar, pero éste debe ser entendido como una recons-
trucción temática de algo dinámico, es decir, implica un retorno.
Se trata de “anodos” y “cátodos”, camino de ascenso y camino de des-
censo, que se confunden, no obstante que tienen direcciones diversas. La

9
SCHELLING, F.W.J., Las edades del mundo, Santiago: Editorial Cerro Alegre, 1993, p. 33.
10
SCHELLING, Ideen zu einer Philosophie der Natur..., en Schelling Ausgewählte Werke,
Darmstadt: Wissenschaftliche Buchgesellschaft, 1967, p. 340.

HYPNOS
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filosofía, pues, rehace el camino que previamente ha transitado el princi- 21
pio a partir del encuentro del principio consigo mismo, que es lo que ocu-

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rre en la autoconciencia, que no es sino una suerte de “involución” del prin-
cipio. En virtud de la autoconciencia se constituye el sujeto como tal, es
decir, en respectividad con un objeto, de modo que el Yo es el momento
en el que el principio originariamente ciego, libertad pura que, como tal,
ni se reconoce ni conoce, sino que sólo actúa y obra en un juego creador,
alcanza una nueva plenitud, la de decir de sí mismo: “soy”.

Tercer principio
El tercer elemento que está presente a lo largo de toda la filosofía de
Schelling se deriva, también, del anterior. Dado el carácter dinámico real
del principio, la filosofía es contemplación, pero contemplación de la his-
toria del principio, de su desarrollo, y consiste en rehacer el camino desde
la autoconciencia. Pero este camino no puede ser dialéctico hasta el final.
“Toda ciencia debe, pues, estar transida de dialéctica. Pero otra cuestión es,
si caso nunca llega al punto donde se vuelve libre y viviente, como en el
historiador, quien, para representar el cuadro de las épocas, ya no piensa
en sus investigaciones. Acaso nunca pueda el recuerdo del comienzo origi-
nario de las cosas volverse tan viviente que la ciencia, que en razón del objeto
y del significado mismo de la palabra es historia, pudiera también serlo se-
gún su forma exterior, y el filósofo sea capaz de volver a la sencillez de la
historia a la manera como el divino Platón, cuya obra está transida de dia-
léctica, pero que en la cumbre y último punto de su transfiguración, toda
su obra se vuelve historia”,11 y, como toda historia, se trata de la recons-
trucción de una vida bajo la forma de un recuerdo; saber es, pues, anámnesis.
Ahora bien, si se entiende el espíritu como el acto de autoposición de
la libertad, la contemplación contempla la historia trascendental del abso-
luto. Esta contemplación es una visión de lo reconstruido por el pensar y,
por ser una reconstrucción del pensar, es auténtico y legítimo saber racio-
nal. Este punto es capital: se trata de un saber que, no obstante su facticidad,
en la medida que lo que allí se contempla es la misma reconstrucción de lo
absoluto, el acto de asentimiento alcanza a lo absoluto no objetivamente,
sino como sujeto-objeto porque contempla y, por lo tanto, objetivamente
algo que se revela en un acto de manifestación de sí mismo, es decir, como
sujeto. Pero el que sea sujeto-objeto no significa que supere absolutamente

11
SCHELLING, F.W.J., Las edades del mundo, op. cit., p. 42.

HYPNOS
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22 estas determinaciones, y esto porque se trata inevitablemente de un saber
propiamente humano. Se trata de retornar a una metafísica del ser y no del
El alma del mundo en Schelling

nous. Schelling intenta, pues, alcanzar el ser como existencia, porque la li-
bertad no es sino existencia pura.
Ahora bien, la existencia como libertad es precisamente lo que nunca
puede ser pensado porque trasciende absolutamente el ámbito de la concien-
cia que sólo puede aprehender algo bajo la forma de concepto. Pero tam-
poco puede ser llamado No-Yo; la existencia es, de hecho, realmente, ante-
rior al Yo y al No-Yo, es, como afirmaba Schelling en Acerca del Yo,12 lo
que nunca puede ser objeto, pero, paradójicamente, tampoco puede ser
sujeto en respectividad.13 Ahora bien, la existencia es, precisamente, lo es-
condido, lo oculto, lo reprimido; la libertad es constreñida en el acto de dar
lugar a algo, lo que aparece son, pues, las formas de su represión. Es esa re-
presión la que engendra la multiplicidad. En este sentido, la conciencia de
sí, en definitiva, el cogito, termina por ser la forma más peculiar de repre-
sión, (se trata de un “encadenamiento”), porque intenta alcanzar la liber-
tad sometiéndola. Por ello es necesario abandonar la dialéctica para dar lugar
a un saber que asume la historia desde su forma propia, pero una historia
que es paulatino y sistemático revelación del absoluto.

Cuarto principio
Finalmente, el cuarto elemento recurrente en toda la filosofía de
Schelling es el carácter peculiar del saber propio de la autoconciencia. Como
hemos visto, la filosofía, si ha de dar cuenta de lo real existente, debe con-
sistir en un saber histórico. Pues bien, se trata de una reconstrucción desde
la autoconciencia, pero en este devenir el absoluto sale y retorna a sí mis-
mo, en un círculo. La naturaleza es entendida como la prehistoria de la
conciencia, como un despliegue en el que, en su cúspide, la naturaleza al-
canza, por medio de una evolución y un desarrollo, la subjetividad propia
del Yo y la plena autoconciencia. Ciertamente, como ya había sido plan-
teado en el mundo clásico, el ordo cognoscendi es inverso al ordo essendi, sin
embargo, ahora la conciencia vuelta sobre sí misma constituye una suerte
de recuperación del principio para sí mismo, en la medida que, en virtud

12
SCHELLING, F.W.J., Vom Ich..., op. cit., p. 89.
13
Cf. LOER, B., Das Absolute und die Wirklichkeit in Schellings Philosophie. Mit der
Erstedition einer Handschrift aus dem Berliner Schelling-Nachlaß, Berlin-New York: Ed. Walter
de Gruyter, 1974, p. 31: “Diese Überschwendlichkeit, diese daß weder Subjekt noch Objekt Ist,
ist also die Voraussetzung aller Philosophie (...)”. El texto es de Schelling.

HYPNOS
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de la autoconciencia, la libertad se constituye en Yo,14 pero un Yo que con- 23
tiene en sí la totalidad de la naturaleza porque es el punto de término del

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desarrollo de ésta; el punto en el cual, por decirlo así, involuciona.
La autoconciencia no es, pues, mero cogito que se aprehende en una
suerte de radical clausura sobre sí mismo, por el contrario, es abertura to-
tal hacia lo real, en la medida que en el instante puntual de la autoconciencia
comparece la historia del devenir de lo real, de modo que la historia, el tiem-
po, queda contenida entera en un punto. Así se cierra el círculo, en la con-
ciencia de sí comparece todo el mundo, y la filosofía consiste, entonces, en
la contemplación reconstructiva de una historia por la que el Yo se apre-
hende a sí mismo en el acto de reconocerse como originariamente libre. El
círculo, pues, se cierra en la medida que el Yo se identifica con el princi-
pio, pero esta identificación no es plena y absoluta, sino que se realiza bajo
la forma de un retorno que no consiste sino en la explicitación de lo implí-
cito. “No hay devenir consciente sin que sea puesto un pasado”15 porque
la conciencia, si bien es un acto que se alcanza en una plenitud instantánea,
no obstante, recoge todo el itinerario por el que se llega a ser consciente,
“el ser consciente consiste sólo en el acto de devenir consciente
(Bewußtwerden)”,16 se trata de un eterno venir-hacia-sí-mismo.
El pasado está absolutamente contenido en la conciencia, en la medida
que ésta es un devenir-consciente; por ello la primera frase de Las edades del
mundo es “lo pasado es sabido”17 y no lo pasado es recordado. Si el saber
propiamente tal consiste en aprehender la historia de un devenir desde prin-
cipios, ese saber sólo puede versar sobre el pasado, porque éste consiste en
una reconstrucción desde el término del devenir a sí de lo absoluto, en el
cual se aprehende en la auto-conciencia como libertad. No es casual, pues,
que pese al proyecto original de Schelling, éste haya podido escribir sólo la
primera parte de Las edades del mundo: el pasado. La conciencia es necesa-
riamente conciencia de lo que ella ha sido antes de ser conciencia, por ello
la conciencia misma es devenir-conciencia, porque su devenir no sólo es el
que ha permitido que surja la conciencia y, por lo tanto, la explique, sino
que es conciencia de su devenir mismo, es decir, la conciencia es concien-
cia de algo que ella es, en la medida que ya lo ha sido y queda, entonces,
como su contenido; una conciencia de algo que ella no fuera en absoluto es

14
Cf. SCHELLING, F.W.J., Ideen zu einer Philosophie der Natur..., op. cit., pp. 338 ss.
15
SCHELLING, F.W.J., Las edades del mundo, op. cit., p. 125.
16
Ibid., p. 126.
17
Ibid., p. 33.

HYPNOS
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24 imposible por contradictorio, pues significaría para la conciencia un salir
de sí sin sí misma y, por lo tanto, no podría ser consciente. Si el objeto no
El alma del mundo en Schelling

estuviera de ningún modo ya en la conciencia, “¿cómo podría remontarse


hasta el comienzo de los tiempos, si no tuviera en sí mismo un principio
del comienzo de los tiempos? Creado a partir de la fuente de las cosas y
semejante a ésta, el alma humana es co-ciencia (Mitwissenschaft) de la crea-
ción. En el alma humana reside la más alta claridad de todas las cosas, y no
es tanto sapiente como ella la ciencia misma”.18 Para que la conciencia sea
conciencia de algo que ella no es en absoluto, o bien lo real no debería ser
para ella sino concepto, o bien la conciencia tendría que ser intermediada
por un cierto espíritu absoluto en el cual lo real, también, sería mero con-
cepto. En cambio, lo que encuentra la conciencia en sí misma es su propio
devenir histórico y, por lo tanto, lo propiamente real. La conciencia se
contiene, pues, absolutamente a sí misma y por ello es, siempre,
autoconciencia.
Estos cuatro principios o elementos pueden ser encontrados a lo largo
de toda la producción de Schelling. Así, la libertad es de suyo potencia de
contrarios, lo cual permite comprender la dialéctica schellingiana; la vin-
culación entre estos contrarios sólo puede ser genética y la filosofía consis-
te en una suerte de reconstrucción de ese conflicto a partir del punto en que
ese conflicto se vuelve sobre sí mismo: la autoconciencia. Asimismo, estos
principios son también fundamentales para comprender los otros dos de-
rroteros del pensamiento de Schelling: el arte y la mitología. En el presen-
te trabajo no se tratará de éstos, no obstante las claves para su comprensión
se pueden encontrar en Die älteste Systemprogram des deutsches Idealismus
que, si bien se conserva el escrito de la mano de Hegel, sin duda a Schelling
le cupo una participación importante.

ALMA DEL MUNDO


Pues bien, en el marco de estos supuestos a continuación intentaremos
explicar el sentido que en Schelling tiene la expresión “alma del mundo”.
Kant atribuye la inteligibilidad de la naturaleza a la capacidad del en-
tendimiento; éste es de suyo “inteligente” pero, como tal, sólo está abierto
a los datos de los sentidos previamente configurados por el espacio y el tiem-
po; se trata de una espontaneidad que configura, ordena y organiza, en vir-

18
SCHELLING, F.W.J., Las edades del mundo, op. cit., p. 35.

HYPNOS
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tud de estructuras a priori, el originario caos de sensaciones. Desde esta 25
perspectiva, por decirlo así, el mérito es del entendimiento, éste es el que

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comunica inteligibilidad a lo que, en principio, de suyo no la tiene. Por el
contrario desde la perspectiva de Schelling, la naturaleza es un devenir que
culmina en la conciencia, de modo que, por decirlo así, la naturaleza mis-
ma es inteligente, en la medida que, vuelta sobre sí misma como
autoconciencia, es capaz de inteligir su propia historia, es decir, su génesis,
desde los niveles inferiores, a partir de ciertos “monumentos”19 o vestigios
que la conciencia humana encuentra en sí misma. Toda la filosofía es “pro-
piamente, historia progresiva de la autoconciencia”,20 pero lo fundamen-
tal aquí no es la autoconciencia, sino la historia, por cuanto no se trata
de un cogito que se autopone a sí mismo, sino del punto culminante de un
devenir.
No tiene sentido sostener que lo conocido es puesto por el sujeto
cognoscente, si acaso eso puesto carece de toda realidad o bien tiene su fun-
damento en el entendimiento, porque entonces formalmente ya no se pue-
de hablar de conocimiento. Como ya veíamos, Schelling sostiene que “quien
quiere saber algo, quiere a la vez que su saber tenga realidad”,21 y un saber
que versa sólo y meramente sobre la estructura trascendental del sujeto,
carece propiamente de realidad. Ciertamente, el espíritu sólo puede cono-
cer en sí mismo, sin embargo eso no significa que lo que conoce en sí mis-
mo carezca de realidad, por cuanto la conciencia es ella misma una construc-
ción de la naturaleza. Es necesario tener presente, a este respecto, que el
desarrollo o evolución de la naturaleza tiene como meta originaria la
autoconciencia, de modo que tiene una teleología interna y constitutiva.
“Desde el liquen, donde el trazo de la organización es apenas visible, hasta
la figura ennoblecida que parece haber roto las cadenas de la materia, reina
una única y misma tendencia que se esfuerza en trabajar según un único
modelo, la forma de nuestro espíritu”,22 en tanto éste constituye el punto
en el que la naturaleza se recupera radicalmente para sí. Eso sólo puede sig-
nificar que un espíritu oscuro la conduce: “este arquetipo de todas las cosas
duerme en el alma como algo oscurecido y olvidado”,23 de modo que la

19
Denkmal, Cf. Ibid., p. 38.
20
SCHELLING, F.W.J., Erster Entwurf eines Systems der Naturphilosophie, Schellings Werke
(En adelante SW) III, M. Schröter, München: Ed. Beck, 1958, p. 331.
21
Ibid, p. 85.
22
SCHELLING, F.W.J., Abhandlungen zur Erläuchterung des Idealismus der
Wissenschaftslehre, SW, I, p. 311.
23
SCHELLING, F.W.J., Ueber Mythen, historische Sagen und Philosopheme, SW, I, p. 36

HYPNOS
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26 naturaleza sólo se conoce en la medida que su mismo espíritu se despierta a
la autoconciencia.
El alma del mundo en Schelling

Así, el espíritu humano es inteligente sólo en la medida en que partici-


pa del alma del mundo, que es este principio interno a la naturaleza, que
está dormido hasta que despierta a la autoconciencia. Tal principio es, a la
vez, principio ontológico y epistemológico. En este sentido, no es de ex-
trañar que a “la filosofía de la naturaleza le corresponda derivar un sistema
concreto de nuestro saber (esto es, el sistema de la experiencia total) a par-
tir de principios”,24 por cuanto en ella está contenida no sólo la posibilidad
del conocimiento de lo real, sino también su propia posibilidad misma. Pero,
para ello, se debe superar la dualidad real-ideal.
Esta dualidad, si es establecida de modo absoluto, no tiene solución, es
decir, cada uno de los términos en oposición permanece absolutamente
clausurado sobre sí; el conocimiento, entonces, no podría alcanzar lo real,
y lo real no podría ser inteligible. La única solución es que ambos sean polos
dialécticos de un tránsito por el que lo real se idealiza y lo ideal se realiza,
pero para que esto sea posible, es necesario que en lo real mismo, al modo
de semilla que se despliega, esté contenido por completo su cabal desarro-
llo, y esto sólo puede significar que el núcleo de identidad de lo real es espí-
ritu. “Es sólo porque el espíritu en lo real se siente prisionero que él recla-
ma lo ideal. Lo real es tan necesario y eterno como lo ideal; el espíritu está
por su propia voluntad encadenado a los objetos”.25 Que esté encadenado
a los objetos significa también que los encadena a todos entre sí mediante
lazos de interdependencia y organización, pero no se reduce a una mera
estructura de orden, no hay que olvidar que es genética, reclama una for-
ma de autopresencia por el que el orden se hace transparente a sí mismo.
Lo ideal es, entonces, no sólo el orden que trasciende a los objetos, sino
también el orden en los objetos; y lo real es constitutivamente, como vi-
mos, vocación de ideal, de conciencia. Lo ideal es voluntad de ser real y de
trascender lo real, de modo que la voluntad misma es real-ideal, es espíritu
que realiza lo real y, por lo mismo, también idealiza lo real.
En Schelling hay, pues, una identificación entre “realidad” y “naturale-
za”; la realidad, en el sentido de Wirklichkeit, significa una existencia origi-
naria y, como tal, incondicionada, de modo que en su posición abarca la
totalidad como totalidad. Lo real y lo ideal se articulan entre sí en el espíri-

24
SCHELLING, F.W.J., Ideas para una filosofía de la naturaleza como introducción al
estudio de esta ciencia, en Experiencia e historia, Madrid: Ed. Tecnos, 1990, p. 163.
25
SCHELLING, F.W.J., Abhandlungen... SW, I, p. 320.

HYPNOS
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tu que reclama desde sí mismo un ámbito de libertad que sólo lo puede 27
encontrar al final, pero que desde un principio lo contiene como aspiración,

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como añoranza (Sehnsucht). El orden necesario de los objetos naturales sólo
puede ser comprendido por una conciencia que, en la medida que pregun-
ta por ese orden y esa necesidad, se hace libre respecto de toda condición,26
de modo que, paradójicamente, la necesidad encuentra su plenificación en
la libertad; necesidad y libertad, como polos dialécticos originarios, se con-
cilian en un tránsito circular que va desde la necesidad hacia la libertad,
autoconciencia, y luego retorna a la necesidad, naturaleza, pero desde una
nueva posición. “Todo filosofar consiste en un recuerdo del estado en el que
éramos una misma cosa con la naturaleza”.27 Sólo a partir de esta identidad
originaria es posible tener un conocimiento de la naturaleza que sea verda-
dero conocimiento, por ello la filosofía debe dar cuenta de la génesis del
espíritu, y su esfuerzo constante es llegar a constituir un sistema dinámico
y no estático.
El devenir del espíritu hacia sí mismo no es sino la historia del ser, todo
lo que es encuentra su más radical explicación en el curso genético del ser,
cuya realización es la naturaleza. Pero esta comprensión consiste en reha-
cer desde el final el recorrido hacia el principio; “la naturaleza debe ser el
espíritu visible, el espíritu, la naturaleza invisible”.28 En la naturaleza, por
decirlo así, el espíritu se vuelve hacia afuera, en el espíritu, la naturaleza se
vuelve hacia adentro, en esta involución-evolución del espíritu está conte-
nida la totalidad de lo que es, como momentos de encuentro y abandono,
de sístole y diástole,29 por los que el espíritu o alma del mundo revela su
carácter viviente.
El alma del mundo es a la vez “primera fuerza de la naturaleza” y “cau-
sa positiva de la vida”.30 Es, en primer lugar, una fuerza, una potencia ori-
ginaria de ser y de realidad, es, propiamente un supra-ser, hyperon.31 Y es,
también, causa positiva de la vida, no sólo porque anima, sino sobre todo
porque entraba todo lo real entre sí, plantas, animales, lluvia, sol, etc., de

26
Cf. SCHELLING, Ideas para una filosofía de la naturaleza como introducción al estudio
de esta ciencia, op. cit., pp. 169 ss.
27
SCHELLING, F.W.J., Erste Entwurf…, SW III, p. 245.
28
SCHELLING, F.W.J., Ideas para una filosofía de la naturaleza como introducción al
estudio de esta ciencia, op. cit., p. 198. SW, I, p. 706.
29
Cf. SCHELLING, F.W.J., Las edades del mundo, op. cit., p. 75.
30
SCHELLING, F.W.J., Die Weltseele, en Schelling Ausgewählte Werke, Darmstadt:
Wissenschaftliche Buchgesellschaft, 1967, p. 435.
31
Cf. SCHELLING, F.W.J., Las edades del mundo, op. cit., p. 85.

HYPNOS
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28 modo que la vida no constituye una suerte de azar fortuito que meramente
sobreviene a un ser, sino que la totalidad acoge al ser viviente como algo
El alma del mundo en Schelling

necesario y esperado. Así como a partir de un resto animal puede ser re-
construido el animal completo, asimismo, a partir de un solo ser viviente,
más aún, de un ser cualquiera, puede ser reconstruida la totalidad de la na-
turaleza, un ser reclama a otro y a otro y así la naturaleza es un todo orgá-
nico.
Pero no se trata sólo de un orden de hecho, por decirlo así, en el que
las partes están integradas orgánicamente entre sí constituyendo un todo;
el carácter “animado” de este todo significa algo más, significa, por una parte,
como hemos visto, que tiene historia, es decir, su identidad se gesta en un
curso temporal, pero que a lo largo de todo él conserva un núcleo origina-
rio que trasciende toda modificación, y, por otra parte, se autorregula a sí
mismo, de modo que toda génesis, todo cambio, toda transformación, res-
ponde a un sentido. Pues bien, este doble carácter no sólo revela la condi-
ción de “animada” de la naturaleza, sino que también supone un punto en
el cual se vuelve sobre sí reflexivamente y se aprehende como un todo, se
clausura, se refleja a sí misma en el espejo de la autoconciencia. Lo anterior
significa que el alma del mundo, a lo largo de toda la historia natural, no va
sino al encuentro de sí misma, sin embargo, ese encuentro que alcanza en
la autoconciencia no es pleno, porque se realiza en un ser que, si bien se tiene
a sí mismo y es, por lo tanto, libre, esa misma libertad supone un abando-
no de las posiciones originarias y, de este modo, si bien no pierde el carác-
ter orgánico, que no lo puede perder porque constituye su identidad, se
oscurece la relación con lo anterior en la misma medida que se libera.
Sin embargo, naturaleza y espíritu no son dos “sustancias” enfrentadas,
sino que una no es sino el devenir la otra, y el principio que impera este
devenir, como es necesariamente acción pura, no puede ser sustancia nin-
guna, sino que es, precisamente, principio de acción total, es decir, un prin-
cipio radical cuya realidad consiste en ser el principio animador de la reali-
dad, pero, en cuanto animador, es también el principio realizador de la rea-
lidad; no algo que se sobreañada a algo ya constituido, dos realidades no
pueden jamás constituir una sola. De modo que no se debe entender que el
principio es algo que está meramente al comienzo, el principio impera todo
el desarrollo, y no lo hace “desde fuera”, sino que constituye en cada mo-
mento del despliegue la identidad que configura cada cosa y le da sentido,
por ello, pese a su trascendencia, puede ser descubierto o, más bien, “indu-
cido” desde cada dimensión de lo natural, no obstante, sólo en la
autoconciencia se refleja como lo que es absolutamente: acto incondicio-

HYPNOS
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nado; lo que se hace presente en la autoconciencia, por lo tanto, no es un 29
objeto, –un saber objetivo supone necesariamente una distinción–, lo

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intuido es, pues, el acto mismo, y el espíritu es acto. El devenir del espíritu
no es sino el devenir de la naturaleza.32
Ahora bien, el espíritu de la naturaleza, que no es sino el principio ac-
tivo y actuante en ese devenir, natura naturata y, a la vez, natura naturans,33
no es una suerte de “razón absoluta” que conduce la historia, es la misma
naturaleza que se despliega desde sí misma, en tanto está animada por un
principio interno que recorre de punta a cabo la totalidad del devenir. Por-
que se trata de un principio que está presente en todo, no está en ningún
lugar específico, el todo, no puede ser algo determinado y singular;34 si lo
fuera, sería o bien sujeto, o bien objeto, mas es tal que en él se confunden
acto y producto, porque es acción en devenir. Sin embargo, la filosofía es
incapaz de presentar la totalidad del sistema de la naturaleza en su devenir
mismo e, inevitablemente, debe recurrir a una exposición que sigue un hilo
reconstructivo temporal en el que sólo pueden traslucirse los productos y
su relación. No obstante, esta perspectiva cambia completamente cuando
se considera a estos productos y a sus relaciones, no como imperados por
fuerzas mecánicas muertas, sino por un espíritu vivificante, sólo entonces
se comprende la verdadera índole de la naturaleza, porque lo orgánico no
puede depender de una causa exterior, “todo producto orgánico existe por
sí mismo, su existencia no depende de ninguna otra existencia”.35
Esta autonomía radical, no obstante, sólo la puede alcanzar en su ple-
nitud el todo mismo, que contiene tanto el principio de su desarrollo como
los productos de éste. “Hablamos de un ser que une en sí mismo concepto
y objeto, forma y materia, que no se encuentran reunidos meramente en
nuestra representación, sino en la realidad misma. La finalidad misma in-
herente al organismo no está proyectada desde una conciencia, ni supuesta
como forma de entender su comportamiento, sino que responde a la mis-
ma existencia interna. Su finalidad no es regulativa, sino constitutiva: una
organización no puede organizarse sino está ya organizada”.36

32
Cf. SCHELLING, F.W.J., Escritos sobre filosofía de la naturaleza, Madrid: Ed. Alianza,
1996; Introducción de Leyte, Arturo, p. 33.
33
Cf. SCHELLING, F.W.J., Erste Entwurf..., SW III, p. 284.
34
SCHELLING, F.W.J., Weltseele, op. cit., p. 401.
35
SCHELLING, F.W.J., Akademische Ausgabe, I, 5, p. 93 (SW II, p. 40)
36
Cf. SCHELLING, Escritos sobre filosofía de la naturaleza, Madrid: Ed. Alianza, 1996;
Introducción de Leyte, Arturo, pp. 38-39.

HYPNOS
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30 Tal organización no puede proceder de un principio material, porque
sólo daría origen a una secuencia mecánica de causas y efectos, lo cual no
El alma del mundo en Schelling

logra explicar jamás una estructura que se regula a sí misma, que se ordena,
por decirlo así, desde dentro, que reclama cada parte para configurar un todo
de elementos que, puestos uno al lado del otro, constituirían un mera suma
de partes que podrían interactuar entre sí, pero que jamás podrían dar lu-
gar a la conciencia. Por otra parte, “la vida se deja representar tan poco fuera
de la vida como la conciencia fuera de la conciencia’,37 lo cual significa que
sólo es posible conocer el carácter viviente y animado de la naturaleza des-
de el interior mismo, en la medida que la conciencia es un momento pro-
pio del mismo principio que anima la totalidad. No puede haber concien-
cia de sí, por lo tanto, sin que ésta se revele como un momento de tránsito
hacia una conciencia superior: la conciencia del uno-todo; en la conciencia
de sí se transparenta una radical pertenencia,38 al punto que la existencia
queda definida como un modo de pertenencia al todo.
Esta pertenencia, por una parte, se reconoce en el imperativo práctico,
por cuanto“mi existencia moral sólo adquiere un propósito y una determi-
nación gracias a la existencia de otros seres morales externos a mí”.39 Pero,
por otra parte, “sólo creemos en una naturaleza externa a nosotros cuando
percibimos infinitud del efecto y finitud del medio”.40 Sin embargo, no se
trata de preguntar cómo ha surgido una naturaleza fuera de nosotros, sino
cómo ha podido llegar hasta nosotros la idea de semejante naturaleza. Por
lo tanto sólo en la absoluta identidad del espíritu en nosotros con la natu-
raleza fuera de nosotros, se puede comprender el perfecto ajuste entre lo
ideal y lo real. La apelación a una armonía preestablecida o una divinidad
providente sólo traslada el problema. Ahora bien, una identidad sólo pue-
de tener lugar entre lo que es absolutamente semejante.
“Lo infinito no puede llegar a lo finito, pues entonces tendría que diri-
girse por sí mismo a lo finito, es decir, tendría que no ser infinito. Pero, del
mismo modo, es imposible que lo finito llegue hasta lo infinito (...). Am-
bos tienen que ser reunidos en virtud de una determinada y absoluta nece-

37
SCHELLING, F.W.J., Introducción a Ideas para uma filosofia de la naturaleza, en Es-
critos sobre filosofía de la naturaleza, Madrid: Ed. Alianza, 1996, p. 107
38
Schelling intenta afirmar uma filosofia que no quede clausurada em una conciencia pu-
ramente reflexiva.
39
SCHELLING, F.W.J., Introducción a Ideas para uma filosofia de la naturaleza, op. cit.,
p. 108
40
Ibid. p. 110

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sidad, si en general parecen estar unidos. A ésta la llamamos “necesidad”, 31
mientras no encontremos otra expresión, “vínculo” (Bund) absoluto o có-

Hugo Renato Ochoa


pula”.41
La muerte consiste, precisamente, en la disolución de las partes, la pér-
dida del vínculo originario, el alma es, pues, este vínculo que organiza, no
mecánica sino teleologicamente las partes entre sí, y por ello cada ser parti-
cipa de la vida única del todo. Análogamente, todos los seres, orgánicos e
inorgánicos, están organizados por un vínculo que no deja nada fuera. Sin
embargo, este vínculo que realiza la naturaleza y que así queda encadena-
da, busca un vértice en el que realidad e idealidad converjan, tal es la liber-
tad, tal es la conciencia como el fundamento de ésta. Pero la conciencia en
razón de su misma libertad se vuelve sobre la naturaleza porque es concien-
cia de inteligibilidad, no es conciencia, ni puede serlo, de caos o anarquía.
De este modo, la misma conciencia reclama desde sí un principio superior
que la explique, un espíritu que permita un encuentro radical entre concien-
cia y naturaleza, un alma del mundo.

[recebido em junho de 2005]

41
SCHELLING, F.W.J., Weltseele, op. cit., p. 414.

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O DAIMÓNION DE SÓCRATES
THE DAÍMON OF SOCRATES
MIGUEL SPINELLI*

Resumo: Este artigo analisa a sobreposição filosófica que o termo daímon


(originário do mito e denso em significações impostas pelo imaginário popu-
lar) recebeu no desenvolvimento histórico da Filosofia Grega. O termo e suas
significações são analisadas em três tópicos: 1) O uso que dele fez Hesíodo e
Heráclito; 2) Sua referência à physis e ao éthos humano (em que também se
destaca o ponto de vista de Parmênides e de Demócrito); 3) O significado que
lhe atribuiu Sócrates.
Palavras-chave: daímon; natureza; éthos; Sócrates

Abstract: This article analyzes the layer of philosophical meanings that


were superimposed on the term daímon (mythological in origin and rich
in popular imagery) in the course of Greek Philosophy's development. The
term and its significations are analyzed under three headings: 1) its usage
in Hesiod and Heraclitus; 2) its relation to human physis and éthos (where
Parmenides' and Democritus' views particularly stand out); 3) the meaning
Socrates gave to it.
Key-words: Daímon; Myth; Nature; Ethos.

O daimónion de Sócrates, no dizer de Antonio Freire, e nisto ele tem


razão, “tem sido um enigma, verdadeira crux philosophorum”.1 Porém,
existem alguns indícios através dos quais é possível identificar uns quantos
significados que esse complexo conceito veicula. Antes de tudo é preciso
levar em conta que o contexto da cultura filosófica grega não comportava
a bipolarização entre o sobrenatural (a infinitude, o Céu, a existência
superior, o imutável, imperecível ou permanente) e o natural (a finitude, a
Terra, a existência inferior, o mutável, perecível ou contingente) nos
mesmos termos que nos legou a mentalidade judaico-cristã. Tais conceitos
estão inseridos em outro contexto e submetidos a outro referencial,
concordante com a idéia da Filosofia grega de que tudo é um ou que “tudo

*
Miguel Spinelli é professor da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM-RS).
E-mail: migspinelli@yahoo.com.br
1
FREIRE, Antonio. “Sócrates no pensamento grego”. In: Revista Portuguesa de Filosofia.
Braga, t.37, 1981, p.168.

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é natureza” (a ponto de, por exemplo, Hesíodo ter dito que “da mesma 33
origem nasceram deuses e homens”)2 . Admite-se na Filosofia grega que o

Miguel Spinelli
ser <tò ón> ou que as coisas <tà ónta> detêm dimensões diferentes, mas
não deslocadas do ser ou das coisas mesmas, como se fossem
compartimentos estanques de uma mesma realidade. O que se distingue são
modos de ser dessa realidade ou das coisas, das quais se concebe
(intelectivamente) o fora e o dentro, melhor ainda, o “que é” oculto (o em
si, a essência ou a qüididade das coisas) e o “que é” empiricamente manifesto
(o aparente ou o que se vê).
Outra questão a ser considerada diz respeito ao universo das máxi-
mas sobre as quais se assentou o exercício do pensar filosófico grego, e pelo
qual esse mesmo pensar foi levado a distinguir campos diferenciados de
investigação. Dentre todas as máximas, eis a fundamental: “Tenha coragem
de ser homem, não queira ser um deus”. Dela dependeu todas as demais,
em primeiro, a do “Conhece-te a ti mesmo”, adotada como modo peculiar
de filosofar – o da interiorização do homem sobre si mesmo – como via de
conhecimento do humano e das relações humanas, quer dos homens entre
si, quer em relação com as coisas do alto e com as divinas.
O estudo das “coisas divinas” e das “coisas do alto” refere-se a dois
campos distintos, mas não entre si desassociados. O estudo das coisas do alto
corresponde à ciência que os filósofos gregos denominavam (em sentido
amplo) de “meteorologia” (que englobava a Geometria, a Aritmética e a
Astrologia). O estudo das coisas divinas abrangia um sentido mais extenso,
pois dizia respeito não propriamente a uma ciência (a uma suposta
“daímonologia”), e sim ao modo peculiar de filosofar ou de fazer ciência,
em que o conhecimento (racional humano) tende finalmente a se subtrair
da empiria para se deter no território dos símbolos, das idéias ou dos con-
ceitos, numa palavra: do “divino”. Daí que a “Daímonologia” foi uma ex-
pressão arcaica da Teologia. Daímon se impôs como um correlato de théos,
de modo que ambos (na linguagem corriqueira da Filosofia clássica) deti-
nham a mesma função comunicativa.
No caso específico da investigação das coisas do alto, a Filosofia ti-
nha como função observar (além do comportamento dos astros ou de seus
movimentos) os fenômenos celestes, a fim de por eles, em última instân-

2
HESÍODO. Os trabalhos e os dias, v. 105 – Fontes: Théogonie. Les travaux et les jours. Le
bouclier. Text établi et traduit par Paul Mazon. Paris: Les Belles Lettres, 1972; bem como:
Os Trabalhos e os Dias. Tradução, introdução e comentários de Mary de Camargo Neves
Lafer. São Paulo: Iluminuras, 1996.

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34 cia, decifrar os segredos do Cosmos. Não, porém, no sentido de decifrar
qualquer suposto segredo de um Deus, mas sim, os segredos do Homem.
O Daimónion de Sócrates

O que estava sobretudo em questão era o conhecimento humano de si


mesmo e o seu lugar existencial. Por isso o estudo das coisas do alto
(a “Meteorologia”) e o das coisas divinas (a “Daímonologia”) se desdobra-
vam em dois campos extensos: o da Filosofia da phýsis e o da Filosofia do
éthos humano.
Sócrates não se ocupou com o primeiro campo de investigação, e sim
com o segundo. Mas, quer no campo da Filosofia da phýsis quer no da Filo-
sofia do éthos humano, a questão daimonológica se põe. Sob esse termo de-
vemos entender, em primeiro lugar, não uma referência a um ente concre-
to, a uma divindade existente de fato, e sim a uma dimensão (ou região) não-
empírica (referida aos seres ou às coisas), que só se deixa acessar pela via da
conjetura racional e dos conceitos. Por se tratar de uma região não-empírica,
a sua intelecção resulta em conceitos fortes, a ponto de serem tomados como
sendo a realidade mesma, e não como meras intelecções. É nesse sentido que
muitos termos, detentores de uma função racional-explicativa (por exem-
plo, théos <deus>, theîon <divino>, psyché <alma>, díke <justiça>,
moira <destino>, anánke <necessidade>, etc.), ao mesmo tempo em que
foram concebidos como meros conceitos, acabaram também reverenciados
ou como “entes” inteligíveis ou até mesmo (sobretudo pelo vulgo) como
seres ou deuses existentes de fato. É o caso em que a explicação racional do
mito se converte ela mesma em mito, de modo que a suposta dimensão
representada em conceito ganha forma e conteúdo para além da represen-
tação. Em outras palavras: “àquilo” ao qual o conceito se referiu como sen-
do uma “coisa”, ou um “algo”, ou um “aquilo” (concretamente) indefini-
do, a mente humana se encarrega de dar-lhe uma realidade própria, na de-
pendência da definição conjeturada pelo próprio conceito. Exemplos desse
tipo, os mais notáveis, foram sem dúvida, a par de théos (de deus), o de psyché
(de alma) e o de daímon – cujo termo inicialmente foi concebido como sendo
o deus, e, depois, como o diabo!

O USO DO TERMO EM HESÍODO E HERÁCLITO


O termo daímon não se restringe evidentemente a Sócrates.3 No con-
texto da literatura filosófica, ele comparece em vários autores, desde Tales,
3
GASPAROTTI, Romano. Sócrates y Platón: la identidad en si misma diferente y la cuestión
de lo divino al comienzo de la filosofía griega. Trad. de Mar García Lozano. Madrid: Akal,

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Heráclito, Parmênides, Empédocles, Demócrito. Praticamente em todos 35
eles há uma estreita correlação entre théos (theîon) e daímon. Porém, antes

Miguel Spinelli
deles, o próprio Hesíodo fez uso do termo, ao qual dotou de uma significa-
ção que orientou a reflexão filosófica posterior.
Na Teogonia (dedicada ao nascimento dos deuses), Hesíodo se serve por
duas vezes do termo: uma, a fim de exaltar qualidades de Zeus, a sua inteli-
gência e o seu saber incomum;4 outra, para indicar uma função ou ativida-
de exercida, no interior do Templo, pelo filho de Aurora e de Céfalo (mais
exatamente filho do alvorecer da mente humana), ao qual Hesíodo dá o
nome de Phaéthon, sem, porém, concebê-lo como um deus e sim como um
daímona ilustre. Não sendo propriamente um deus, ele é, na verdade, “um
homem muito semelhante aos deuses <theoîs epieíkelon ándra>”, um ser
extraordinário e brilhante (epíteto do brilho e da luz do Sol). Quando ele
era ainda criança, “uma inteligência infanto-juvenil <paîd’ atalà
phronéonta>”, Afrodite, a deusa da beleza e do amor, dele se apoderou e o
fez ministro do sagrado Templo.5 Ora, supondo-se que o interior do Tem-
plo era o lugar para onde convergiam as máximas (as primícias da sabedo-
ria grega, ou) da inteligência humana, então o filho de Aurora e Kéfalos
foram levados ao lugar certo; e, logo por Afrodite, pela deusa que restaura
as forças geradoras e que ativa os desejos (a promotora do páthos)!
Em Os Trabalhos e os Dias, Hesíodo dá ao termo daímones um signifi-
cado aparentado com o da Teogonia. Os daímones não são criações de Zeus,
mas dos homens, dos quais herdaram todos os atributos humanos, com o
acréscimo da imortalidade. Foi uma descendência nobre de homens (uma

D.L, 1996; CAMARERO, Antonio. Sócrates y las creencias demónicas griegas. Bahia Blanca:
Instituto de Humanidades, Universidade Nacional del Sur, 1968; SAUVAGE, Micheline.
Sócrates y la consciência del hombre. Con la colaboración de Marie Sauvage. Trad. de Isabel
Gil de Ramales. Madrid: Aguilar, 1963. A recepção do daimónion de Sócrates pode ser ana-
lisada sobretudo em três autores do II século d. C (Plutarco, Apuleo e Máximo de Tiro) e
também em Proclo, representante do Neoplatonismo do VI século d.C. Para essa análise
podem ser consultadas as seguintes obras: APULÉE. Opuscules philosophiques et fragments.
Introduction, texte, traduction et notes par J. Beaujeu. Paris: Les Belles Lettres, 1973;
MAXIME OF TYRE. The philosophical orations. Edited by M. B. Trapp. Oxford: Clarendon
Press, 1996; PLUTARQUE. Le démon de Socrate. Intruduction, texte, traduction et notes
par André Corlu. Paris: Klincksieck, 1970; PROCLUS. Sur le ‘Premier Alcibiades’ de Platon.
Intruduction, texte, traduction et notes par A. Seconds. Paris: Les Belles Lettres, 1985.
4
HESÍODO. Teogonia. vv. 655-660 – Fontes: Théogonie. Les travaux et les jours. Le bouclier.
Text établi et traduit par Paul Mazon. Paris: Les Belles Lettres, 1972; Teogonia. A origem
dos deuses. Estudo e tradução de Jaa Torrano. São Paulo: Iluminuras, 1995.
5
HESÍODO. Teogonia. vv. 985-990

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36 “geração de ouro”* ) que “criou esses imortais”. Vivendo no Olimpo, eles
vieram a ser, “por determinação do grande Zeus, daímones prudentes,
O Daimónion de Sócrates

guardiões terrestres dos homens mortais”. Zeus lhes atribuiu, por decreto,
uma função nobre: “vigiar as decisões e as ações (dos homens, particular-
mente aquelas que viessem a ser) prejudiciais [...]”.6 Visto que habitavam o
Olimpo, de cuja morada Zeus era o soberano absoluto, conseqüentemente,
estavam sujeitos à sua deliberação, por isso lhes atribuiu a função de
guardiões, não, porém, à revelia dos homens. Ocorre que, mesmo não sen-
do diretamente o soberano dos homens, Zeus era, no entanto, o bom
tribuno: aquele ao qual competia administrar a justiça entre deuses e ho-
mens, melhor ainda, aquele que, em atenção aos homens, dava aos deuses
(caso falhassem ou fossem indolentes frente aos homens) a justiça merecida.
No que diz respeito aos daímones, enquanto criações dos homens, tal-
vez Xenófanes nos ajude a entender Hesíodo. Ao procurar convencer seus
contemporâneos de que os deuses eram meras criações humanas, Xenófanes
lançou mão da seguinte ilustração:
Se os bois, os cavalos e os leões tivessem mãos, e com elas pudessem pintar e
produzir obras como os homens, os cavalos pintariam figuras de deuses seme-
lhantes a cavalos, os bois semelhantes a bois; cada um reproduziria o seu deus
atribuindo-lhe a sua aparência e a sua forma.
“Os etíopes (acrescenta no frag. 16) representam os seus deuses de cor
negra e de nariz chato, enquanto que os trácios os pintam de olhos azuis e
de cabelos cor de fogo”.7 Tanto na Teogonia como em Os Trabalhos e os Dias,
Hesíodo não identifica os daímones com os deuses, e sim com qualidades
superiores da alma humana. Hesíodo os concebe em íntima dependência
ou conexão com a intelecção de valores ou com a orientação da vida hu-
mana. Dotados da mesma índole, eles eram, digamos, a representação
(conceitual) do “alter ego” do modo humano de ser, mais exatamente da
phrónesis humana. Afinal, o Phaétonta, o filho de Aurora e de Kéfalos, era
um phronéonta. Ora, phrónesis era um termo com o qual se concebia uma
qualidade da alma: a prudência, a sagacidade, o juízo sábio. Tal termo dizia
respeito a um saber aplicado à ação, nos termos assim como indicava o ver-

*
Geração traduz-se de génos, quase sempre traduzido por raça ou estirpe. Ocorre que génos,
aqui, tem um sentido ativo, e não passivo. Ele evoca um íntimo parentesco com a natureza
dos genitores ancestrais. Portanto, ele é um correlativo da phýsis.
6
HESÍODO. Os Trabalhos e os dias. vv. 109-124. Os parênteses foram acrescentados.
7
Clemente de Alexandria. Miscelâneas <Strômateis>, V, 110 e VII, 22; DK 21 B 15 e 16.
Fonte DK: DIELS, Herman & KRANZ, Walther. Die Fragmente der Vorsokratiker. l8ª ed.,
<Unveränderter Nachdruck der 6. Auflage l95l>, Zürich-Hildesheim, Weidmann, l989).

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bo phronéo, ou seja, a atividade do pensar. O pensamento, ao se exercitar, 37
promove um juízo, dá um parecer, e assim dispõe o interior humano para

Miguel Spinelli
a ação. Era essa disposição interior que especificava a phrónesis: uma dispo-
sição pela qual o sujeito promovia uma avaliação (exercitava um juízo), e,
por ela, formulava uma decisão, que resultava em um bem ou num mal. Era,
enfim, a phrónesis que especificava os daímones, ou vice-versa. Melhor ain-
da, dado que o território das decisões é sempre conflituoso e problemático
(pleno de dúvidas e de incertezas), os daímones faziam às vezes de um re-
curso (conceitual) extra. Por um lado, com esse conceito se introduzia uma
idéia de inabordável no interior das decisões; por outro, com ele se inseria
no território conflituoso das decisões um elemento pacificador. Em nome
dos daímones o agente da ação (que carrega consigo a intenção de acertar
sempre) poderia promover um descarrego de culpa, ou seja, errando, ele
poderia tranqüilizar a si mesmo com uma justificativa bem plausível: foi
culpa dos guardiões! E se foi culpa deles, não poderia prontamente ser res-
ponsabilizado pelos seus atos.
Heráclito, a partir de Hesíodo, foi quem melhor nos deu a compreen-
der o que o termo daímon, na sua relação com a phrónesis, significava. O
termo daímôn comparece em três de seus fragmentos: no 79, no 119 e no
128. No 79, vem expresso no seguinte contexto:
“O homem é tido como uma criança perante o daímôn <pròs daímonos>, tal
como uma criança perante o adulto <pròs ándrós>”;8 (no 119): “o éthos do
homem é o seu daímon”;9 (e no 128): “Eles (as pessoas comuns) dirigem preces a
estátuas de daímones como se elas ouvissem alguma coisa, mas na verdade elas
não intercedem em nada, assim como nada pedem em troca”.10
Os fragmentos de Heráclito dão conta de várias coisas. Em primeiro
lugar, nos fazem ver como os daímones ultrapassaram as fronteiras do con-
ceito transformando-se em entidades religiosas do culto popular. Eles sal-
taram da esfera (culta) da explicação racional para a do imaginário (popu-
lar), migraram da razão para o mito. Em segundo lugar, Heráclito desmen-
te Hesíodo, na medida em que desloca os daímones para uma dimensão
totalmente outra da esfera humana. Eles são alheios ao universo da delibe-
ração humana (se cultuados, não ouvem, não intercedem, e nada barga-
nham). Dá-se que, se os homens são responsáveis pelas próprias decisões (no

8
Orígenes, Contra Celso, VI, 12; DK 22 B 79
9
êthos anthrópôi daímôn (Estobeu, Florilégio. IV, XI, 23; DK 22 B 119).
10
Aristócrites, Teosofia. 74; DK 22 B 128

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38 que Heráclito contesta, além de Hesíodo, Homero), então, forçosamente,
devem ser imputados em razão de seus próprios atos.
O Daimónion de Sócrates

O fragmento 79 (aquele que diz que “o homem é feito uma criança


perante o daímon”) não expressa de modo algum uma relação depreciativa
ou de inferioridade; o mesmo pode ser dito em relação ao 83: “O mais sá-
bio dos homens, perante a divindade <pròs theón>, é semelhante a um
macaco, em sabedoria, beleza e tudo o resto”.11 “Divino” <theîon>, vol-
tamos a insistir, não diz respeito a um deus, e sim, a uma dimensão etérea
do Todo que só se deixa acessar racionalmente pela via do conceito. Por-
tanto, a questão heraclitiana é essencialmente conceitual. Ao estilo dos
pitagóricos, que buscavam explicar o bem contrapondo-o ao mal, o justo
ao injusto, o belo ao feio, e assim por diante, ele se serviu de metáforas, mas
sobretudo de contraposições conceituais.
“O oposto é conveniente (dizia), pois é das diferenças que nasce a mais bela
harmonia [...]”12 ; (ou ainda): “Correlações: todo e não-todo, convergente e di-
vergente, acordo e desacordo, e de todas as coisas um, e de um, todas as coisas”.13
“Todas as coisas nascem por oposição”,14 “nascem e morrem segundo discórdia e
necessidade”.15 Todas elas são “mutuamente contrárias”, mas “o contrário con-
grega”, pois dele “nasce a mais bela harmonia”.16
O que para Heráclito estava em questão era a compreensão do “Todo”
<tó pân>, não tanto por aquilo que nele se mostra (as aparências), mas
principalmente por aquilo que a razão (consorciada ao universo dos sím-
bolos) é capaz de explicar. Herdeiro da mentalidade pitagórica, ele buscava
compreender o Todo (concebido como uma ordem <um kósmos>, e,
como tal, expressão de um governo ou de um vigor normativo), valendo-
se da idéia do conflito, mais precisamente contrapondo o que é ser ao que
é não-ser, o que é um ao que é múltiplo, o que é imutável (imóvel, impere-
cível, permanente ou imortal) ao que é mutável (móvel, perecível, contin-
gente ou mortal). Valendo-se dessas antinomias, ele buscava, em última
instância, compreender o mundo humano: as possibilidades e os limites do
seu logos, e a condição do modo humano de ser – o seu êthos –, mais exata-
mente o modo como o homem, por seu próprio empenho, é capaz de or-
denar e de governar a sua própria vida.

11
PLATÃO, Hípias maior, 289b; DK 22 B 83
12
ARISTÓTELES, Ética a Nicômacos, VIII, 2, 1155b 4; DK 22 B 8
13
PSEUDO-ARISTÓTELES, Sobre o Mundo, V, 396 b 7; DK 22 B 10,10-12
14
DIÓGENES LAÉRCIO, Vidas e Doutrinas dos Filósofos Ilustres, IX, 8; DK 22 A 1
15
ORÍGENES, Contra Celso, VI, 42; DK 22 B 80
16
ARISTÓTELES, Ética a Nicômacos, VIII, 2, 1155b 4; DK 22 B 8

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É nesse contexto que se insere o fragmento 119: “o éthos do homem é o 39
seu daímôn”. A fim de melhor compreendê-lo, convém relacioná-lo ao 78:

Miguel Spinelli
“O êthos humano não tem conhecimentos, mas o divino <tó theîon> tem”.17
Convém, além disso, recorrer ao que disse Apolônio de Tiana (um pitagórico
que viveu no I século d. C.): “[...] o homem, para Heráclito, é por natureza
desprovido de logos <álogon>”;18 ou ainda, ao que disse Sexto Empírico:*
“Heráclito afirmava que o homem (por natureza) é irracional <tò me einai
logikòn>, e que só o orbe celeste é dotado da providência <phrenéres>”.19
Levando-se em conta o que disseram tanto Apolônio como Sexto
Empírico, a contraposição de Heráclito entre “divino” e “humano” não tem
por finalidade distinguir uma suposta natureza de um Deus da natureza
humana, como se fossem “duas naturezas espirituais opostas”.20 Sexto
Empírico, em particular, identifica o divino <tó theion> com o orbe ce-
leste <tò periéchon>. Não sendo a designação de entes concretos, os adje-
tivos “divino” e “humano” são dimensões conceituais que designam (nos ter-
mos da arché e da phýsis) uma mesma e única natureza. Enquanto tal, refe-
rem-se a uma disposição interior permanente (a um governo ou soberania,
mas jamais a um soberano externo), sob dois aspectos: uma referida ao
Cosmos (à Natureza ou ao Todo) que, em si mesmo, é dotado da suprema
sabedoria (da necessária “sensatez” <phrenéres> regulativa) mediante a
qual, espontaneamente, tudo o que existe (menos o homem, a não ser físi-

17
ORÍGENES, Contra Celso, 18; DK 22 A 16, 35
18
APOLÔNIO DE TIANA, Cartas, VI, 12; DK 22 A 16
*
Sexto Empírico é o principal representante do tardio ceticismo clássico fundado por
Pirron(*). Sexto Empírico viveu entre o II e III séculos depois de Cristo (em Alexandria,
Atenas e Roma). É denominado Empírico, porque, como médico, preferia as experiências
realizadas pelos médicos célebres às suas construções teóricas. Dele ainda se conservam duas
obras: Hipotiposes Pirronianas (que é uma exposição e defesa do ceticismo) e Contra os Ma-
temáticos e Contra os Dogmáticos (que é uma crítica a todos aqueles que ensinam as ciências
ou que professam o saber e a certeza).
(*) Consta na tradição que ele nasceu em Élide (no Peloponeso) por volta de 360/365 a.C.
e morreu em 270/275 a.C. A data de seu nascimento foi estabelecida a partir do ano de 334,
período em que participou de uma expedição promovida por Alexandre da Macedônia contra
os Persas até se concluir na Índia.
19
SEXTO EMPÍRICO, Contra os matemáticos, VIII, 286; DK 22 A 16. O entre parênteses
foi acrescentado.
20
O que propõe Zeller/Moldolfo a partir de Ramnoux, verdadeiramente não faz sentido:
“... l’opposizione fra l’êthos umano, al quale sono negati i pensieri saggi (gnômas), e l’êthos
divino cui invece essi sono reconosciuti, è certamente (secondo propone CL. RAMNOUX,
Héraclite, pp. 319 e 418) opposizione di “maniere d’essere” o “disposizioni” delle due nature
spirituali contraposte” (ZELLER , E., & MONDOLFO, R., La Filosofia dei Greci nel suo
Sviluppo Storico. trad. de Rodolfo Mondolfo. Firenze: La Nuova Italia, l967, p. 358, n. 67).

HYPNOS
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40 ca ou biologicamente) alcança a realização plena de seu próprio fim; a ou-
tra, é referida especificamente ao humano, que, por natureza, destoa dos
O Daimónion de Sócrates

demais, por ser dotado de razão, ou melhor, da potência racional, mas não
da razão cultivada. É por causa dessa carência que os homens não dispõem,
por natureza, da providência ou sensatez que os conduz, espontaneamen-
te, ou sem esforço, à edificação da própria humanidade. Porém, mesmo não
tendo, por natureza, conhecimentos, ou seja, não sendo dotados da supre-
ma sabedoria orientadora do querer e do agir, somos, todavia, capazes de
adquiri-la. Afinal, “a todos os homens é facultado o conhecer a si mesmos
e o pensar sensato <sôphroneîn>”.21 E se essa é a nossa condição humana
(distinta, por exemplo, da do cavalo, cuja “cavalidade” se realiza esponta-
neamente por natureza, e assim com os outros animais) então carecemos
de nos exercitar, tanto mais que é no “exercício do pensar” (na posse da
phrónesis) que está “a mais alta virtude”.22 Visto também que não sabemos
exatamente o “que é ser” humano (ou seja, qual é a verdade bem redonda a
respeito de nós mesmos), então, é evidente que, a qualquer custo (errando
e acertando), devemos forçosamente procurá-la!
Heráclito, ao dizer que “o éthos do homem é o seu daímon”, por certo
intencionava comunicar um entendimento preciso. No termo daímon, ele
agregava algum conceito que forçosamente se adaptava à exposição e expli-
cação de seu lógos. Pelo que ficou visto a partir do fragmento 78 (“O éthos
humano não tem conhecimentos, mas o divino tem”), daímon, referido ao
éthos humano, expressava, digamos, um conceito de “potência intermédia”
(em proporção à dýnamis inerente ao Todo). Por ser expressão de certas
qualidades específicas (do vigor, habilidade e excelência próprias do
Phaétonta e Phronéonta descritos por Hesíodo), ser daímon, para o éthos
humano, significava ser dotado de todas essas qualidades.
Por ser um predicado do éthos humano, daímon, enfim, deve ser visto
como um atributo da potência (intelectiva) pela qual a todo homem é fa-
cultado edificar soberanamente o dever ser de sua humanidade. Não, po-
rém, como uma potência meramente subjetiva, mas, sobretudo, universal,
comum a todos; dito de outro modo: a edificação da humanidade não é uma
mera abstração universal, mas depende concretamente da destinação sub-
jetiva.23 Enquanto termo ou conceito, daímon designa, em última instân-
21
ESTOBEU, Florilégio, III, v. 6; DK 22 B 116
22
sôphroneîn aretê megístê (Estobeu, Florilégio, III, l, l78; DK 22 B ll2).
23
“Héraclite accomplit un pas décisif en proclamant: L’être de l’homme (son éthos) est un
être divin (son démon) – fr. 119. Ce faisant, il ne considère pas l’homme individuel comme
fondateur de sa destinée... L’être de l’homme (son éthos) est déclaré tout simplement comme

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cia, a pré-disposição natural e permanente (em si mesma potencialmente 41
boa) pela qual todos os homens podem reger a sua própria ação, e, desse

Miguel Spinelli
modo, guiar não só a sua sorte, como também (ou ao mesmo tempo) o
destino coletivo da humanidade.24 Na medida em que se restringe ao éthos,
daímon indica tanto a condição quanto a destinação humana (subjetiva e
universal) no contexto da vida do Cosmos; noutro sentido, na medida em
que se desvincula da soberania da phýsis, ele encerra um outro domínio (vo-
luntarioso e deliberativo): aquele pelo qual a todos os homens é dado
gerenciar e conduzir a própria existência.

O DAÍMÔN REFERIDO À PHÝSIS E AO ÊTHOS HUMANO


A correlação feita por Heráclito entre éthos e daímon só pode ser bem
compreendida a partir dos significados que cada termo adquiriu no percur-
so histórico da filosofia grega. Quanto ao termo éthos, em primeiro lugar,
é preciso distinguir o éthos (grafado com épsilón) de éthos (grafado com eta).
O éthos (com épsilon) foi difundido a partir de Ésquilo. Ele deriva da raiz
sfeth, da qual, por exemplo, adveio o vocábulo latino suetus e também o
nosso consueto (costumeiro, usual). Ele indica fundamentalmente a tradição,
o habitual, e, portanto, o costumeiro, o usual, etc. Já o éthos (grafado com
eta) remonta a Homero e comporta uma significação um pouco mais abs-
trata: o hábito, o costume, o uso (não propriamente o modo humano na-
tural de ser, mas o modo “construído” de viver)25. O próprio Aristóteles,

étant un être divin (un démon). Comme le feu du monde est à lui-même son propre destin,
c’est l’être divin de l’homme qui constitue le moteur interne du devenir humain. Héraclite
ne divinise point l’homme et n’humanise aucunement le divin; tout naturellement, le démon
cesse d’être une puissance extérieure, étrange autant qu’étrangère, et devient la forme et le
fond de la vie humaine. De même que la nécessité cosmique et divine du destin forme la
structure de l’Univers, de même l’être divin de l’homme constitue son harmonie discordante.
Nécessité et liberté s’unissent grâce à l’harmonie des contraires, et la liberté de l’homme
consiste dans l’acceptation plénière de sa nature démoniaque” (AXELOS, Kostas. Héraclite
et la Philosophie. La Première saisie de l’être en devenir de la totalité. Paris: Minuit, l979,
p. 192-193).
24
“Daímon significa aqui simplesmente um destino pessoal do homem; este é determina-
do pelo seu próprio caráter, sobre o qual exerce um certo domínio, e não por poderes ex-
ternos e frequentemente caprichosos que atuam, talvez, por intermédio de um génio atri-
buído a cada indivíduo pelo acaso ou Sorte” (KIRK, G.S. & RAVEN, J.E. & SCHOFIELD,
M.. Os Filósofos Pré-Socráticos. História Crítica com Selecção de Textos. trad. de Carlos Alberto
Louro Fonseca, Lisboa: Gulbenkian, l994, p.220).
25
“[...] éthos (tramandato fin da Eschilo) deriva dalla radice sfeth, donde per es. il latino suetus
e anche il nostro consueto, e indica fondamentalmente la tradicione, l’abitudine, la

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42 na Ética a Nicômaco, realçou (sem atribuir-lhe grande valor) essa distinção:
“... a virtude moral (disse) é adquirida em resultado do éthos (com eta), donde
O Daimónion de Sócrates

ter-se formado o seu nome (ethiké) por uma pequena variação da palavra
éthos (com épsilón)”.26
A par dessa distinção, temos, em segundo lugar, vários significados que
podem ser referidos ao éthos: a) assento (no sentido de o lugar onde se erige
a morada, não de um indivíduo, mas de um grupo, com suas tradições, ca-
racterísticas culturais, religiosas, etc. Por isso, e nesse sentido, o éthos jamais
se desassocia do conceito de pólis ou de politéia, ou seja, de um governo
fundado na idéia da ancestralidade e do direito); b) modo de habitar ou de
viver (não propriamente a habitação ou a vivência em si mesmas, mas o
modo como se habita. Por isso, muitas vezes o termo éthos é traduzido in-
clusive por cultura, termo com o qual se quer designar um conjunto de
características humanas instituídas, preservadas e aprimoradas através da
comunicação e cooperação de indivíduos de uma certa comunidade); c)
índole ou caráter27 (no sentido de uma natureza pessoal ou de um modo
subjetivo de ser, sendo um pouco por natureza, outro pouco cumulativo,
em decorrência de opções, decisões, preferências, e, evidentemente, por
empenho racional, que, cumulativamente, talham ou forjam um certo modo
de ser); d) enfim, uso ou costume (referido a um comportamento consue-
tudinário, testado ou experimentado no decurso da gênese histórica, trans-
mitido e recebido em herança, na forma de hábito ou de virtude, sujeito,
todavia, a um constante aprimoramento).
Daímon teve a sua origem relacionada a um conjunto de verbos com
significados bastante próximos: daíszô (dividir ou partilhar a própria vida
ou o destino com alguém), daíô (que também é usado, por um lado, no sen-
tido de dividir ou de partilhar a própria sorte, por outro, de acender, pôr
fogo, iluminar –, sendo que o adjetivo daíôs significava esperto, hábil, sabi-
do) e daíomai (dividir, subdividir, decompor –, o adjetivo dáïo é usado no

consuetudine, il costume, l’usanza ecc. (...); il vocabolo affine êthos (fin da Omero) ha
un’accentuazione più astratta: costume, uso, maniera di vivere” (ESSER, H.-H., In: Dizionario
dei Concetti Biblici del Nuovo Testamento. op. cit. p. 899).
26
ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco, II, 1, 1103a 17-18 – os parênteses foram acrescenta-
dos. (The Complete Works of Aristotle. The Revised Oxford Translation. Edited by J. Barnes,
Princepton, 1984; Éthique à Nicomaque. Trad. Jean Tricot. Paris: Vrin, 1987).
27
“L’interpretatione della parola êthos nei senso di indole, carattere, natura personale,
maniera d’essere, non par dubia in B ll9. (...). Non pare invece accettabile (...) il vecchio senso
di abitazione o residenza... Il senso di indole, carattere, maniera d’essere o simili è confermato
anche dalle interpretazioni antiche...” (ZELLER , E. & MONDOLFO, R.. op.cit., p. 358,
n. 67).

HYPNOS
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sentido de o que está estragado, destruído, posto em ruínas).28 São, portan- 43
to, vários significados que foram adaptados a um certo conceito em depen-

Miguel Spinelli
dência do contexto específico de sua utilização, e, evidentemente, das exi-
gências de comunicação.
Um certo sentido religioso foi imposto a partir de daíomai. Do fato de
se constatar a decomposição ou destruição natural (dos cadáveres, por exem-
plo) se concebeu, como forma plausível de explicação, a idéia de um vigor
ou atividade degenerativa inerente aos entes e à Natureza. Foram, todavia,
a admiração e o gosto pela vida e o temor da morte que levaram os indiví-
duos a cultuar forças naturais generativas e de destruição como “divinda-
des” da Natureza. Daí que daímon, por esse ponto de vista, além de desig-
nar o vigor vivificante (a dýnamis do processo renovador da vida) veio tam-
bém a indicar o vigor degenerativo (a decomposição) da vida do Cosmos.
É bem provável, inclusive, que esteja aí o sentido da proposição atribuída a
Tales, segundo a qual “o todo é animado e pleno de daimónion”,29 e à qual
vem associada esta outra: aquela que diz que o princípio gerador de todas
as coisas é único,30 porque só um princípio único (não mais de um) permi-
te explicar o móvel do fazer-se da geração (como um todo).
“Tales e seus discípulos [o relato é de Aécio] diziam que o kósmos é
um”;31 na versão de Simplício, Tales dissera que “a archê é una e em movi-

28
BAILLY. Anatole. Dictionnaire Grec Français. Édition revue par L. Séchan et P.
Chantraine. Paris: Hachette, 1996; COENEN, L., BEYREUTHER, E. & BIETENHARD,
H.. Dizionário dei Concetti Biblici del Nuovo Testamento. Trad. de A. Dal Bianco, B. Liverani
e G. Massi, Bologna: Dehoniane, 1976; PEREIRA, Isidro. Dicionário Grego-Português/Por-
tuguês-Grego. Braga: Apostolado da Imprensa, 1990.
29
tò dè pãn émpsychon áma kaì daimónôn plêres (Aécio, Opiniões, I, VII, ll; DK 11 A 23). “Ele
considerava (...) que o mundo está pleno de almas e de demônios <émpsychon kaì daimónôn
plêrê>” (DIÓGENES LAÉRCIO, Vidas e Doutrinas dos Filósofos Ilustres, I, 27; DK 11 A 1).
As referências, a de Aécio e a de Diógenes Laércio, remontam a ARISTÓTELES: “Alguns
sustentam que a alma está misturada ao universo; de onde deriva provavelmente a opinião de
Tales segundo a qual todas as coisas estão plenas de divindades <pánta plêrê theôn einai> (De
Anima. I, 5, 411 a 7; DK 11 A 22). Cf. também PLATÃO. Leis. X, 899 b.
30
“A filosofia grega parece começar com uma idéia absurda, com a proposição de que a
água é a origem e o seio materno de todas as coisas. Será realmente necessário parar aqui e
levar esta idéia a sério? Sim, e por três razões: primeiro, porque a proposição assere algo acerca
da origem das coisas; em segundo lugar, porque faz isso sem imagens e fábulas; e, finalmen-
te, porque contém, embora em estado de crisálida, a idéia de que “tudo é um”. A primeira
destas três razões ainda deixa Tales na comunidade dos homens religiosos e supersticiosos,
a segunda separa-o dessa sociedade e mostra-o como investigador da natureza, a terceira faz
de Tales o primeiro filósofo grego” (NIETZSCHE, F., A Filosofia na Idade Trágica dos Gre-
gos. Trad. Maria Inês Madeira de Andrade. Lisboa: Edições 70, l987, p. 27).
31
AÉCIO, Opiniões, II, 1,2; DK 11 A 13b

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44 mento”.32 Foi, com efeito, Anaximandro (discípulo e parceiro de Tales)
quem melhor explicitou a proposição de seu mestre: “Aquilo do qual a ge-
O Daimónion de Sócrates

ração procede para as coisas que são (dizia), é também aquilo pelo qual elas
retornam sob o efeito da corrupção, segundo a necessidade [...]”.33 A arché
da geração (do vigor vivificante) é a mesma da corrupção (do vigor
degenerativo do Cosmos); dito de outro modo, o “princípio” edificador da
vida é o mesmo da morte, porque vida e morte são indissociáveis: um se
converte no outro, mediante um movimento ou um ritmo cíclico próprio
das realizações (temporais).
Uma coisa, porém, é a explicação mítica e popular concernente ao pro-
cesso de vida e morte observável no Cosmos, outra é a explicação filosófi-
ca. No caso da filosofia grega, por ter assumido (frente ao éthos grego) um
propósito essencialmente educador (qualificar racionalmente o homem
grego), ela jamais se desvinculou da Cultura ou Sabedoria popular. O pró-
prio nome designativo da Filosofia (cujo sentido etimológico expressa amor
à sabedoria) contém essa vinculação.
É bem verdade que a Filosofia se viu forçada a inventar novos termos,
a fim de atender propósitos estritamente filosóficos (adequar o ser, o dizer
e o pensar), mas, na maioria das vezes, ele se valeu de termos ancestrais.
Dentre eles, do termo daímon, tanto que o substantivo deisidaimonía (que
designava o temor supersticioso do vulgo frente aos deuses) gerou a idéia
de religião, que se caracterizava pela atitude do envolvimento respeitoso
(carregado de afetação e de superstição), sobretudo temeroso perante o vi-
gor das forças “daimônicas” (mansas ou furiosas, edificantes ou destrutivas)
que se manifestam na Natureza ou no viver. Dá-se que, no território das
crenças, muitas vezes o temor se sobrepõe à confiança, de modo que o crente
passa a dedicar todo o seu tempo a construir uma certa paz com o divino.
Foi, pois, nesse sentido que ao substantivo deisidaimonía se agregou o adje-
tivo deisidaímon, que veio exatamente indicar os sentimentos de respeito e
de temor pelos quais os indivíduos se deixavam possuir; por sua vez, a fim
de expressar a afetação excessiva derivada daqueles sentimentos, o verbo
daímonízomai veio a designar esse estado de espírito, nos termos de uma
possessão, a ponto de o indivíduo (tido como possesso pelo daímon) ser con-
siderado como alguém que perdia a gerência (racional) de si mesmo e
que ficava possuído por um ethos estranho ou anômalo ao humano.

32
SIMPLÍCIO, Comentário sobre a Física de Aristóteles, 23, 21; DK 11 A 13
33
SIMPLÍCIO, Comentário sobre a Física de Aristóteles, 24, 13; DK 12 B 1

HYPNOS
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Daímon (em conseqüência do contexto imediato ou mais restrito de sua 45
utilização) acumulou vários significados: deus ou divindade, destino ou dis-

Miguel Spinelli
posição, ímpeto ou vigor, caráter ou índole, afetação ou possessão. No seu
sentido mais geral, era usado não só como expressão de vigor ou força, mas
também de destreza ou habilidade. Ele encerrava como termo explicativo
(ora referido à Natureza em geral, ora à natureza humana em particular),
não propriamente um saber, e sim, uma potência ou capacidade sapiencial,
quer nos termos de uma habilidade (que, a seu modo, também carecia de
ser edificada) como uma disposição para o bem, quer como uma esperteza
a serviço da astúcia ou maquina.
O uso que Parmênides fez do termo daímon (particularmente no frag-
mento 12) veicula a idéia de uma ação cujo sentido (nos termos de quem
pilota um navio) expressa um governo <kybernáoo>, mas não aleatório,
e sim, diretivo. Na verdade o fragmento comporta duas idéias entre si com-
plementares: uma, a de um domínio diretivo (natural e espontâneo); outra
(conseqüência e explicitação da primeira idéia), a de um governo enquanto
iniciativa, por cuja gerência <archoo>, forças opostas são instigadas a se
unir, mais exatamente a se misturar <míxis>, tendo em vista o processo
generativo da renovação da vida. Eis, em seus próprios termos, o fragmen-
to: “[...] o daímon que tudo governa, de tudo o que existe ele é a gerência
do temível parto e da mistura, pois instiga o sexo feminino a se mesclar com
o masculino, ou, o contrário, o masculino com o feminino”.34 Daímôn, por-
tanto, na expressão (do fragmento 12) de Parmênides designava o movimen-
to de perpetuidade e da renovação da vida: a dýnamis pela qual tudo o que
existe entre si se mistura, resultando a geração numa indissociável mescla.
Já o que consta no fragmento 1 (no qual Parmênides faz alusão a um
“caminho abundante em palavras de daímones”)35, daímones, nesse caso,
poderia designar tanto uma qualidade do ensino quanto uma disposição dos
mestres e aprendizes da velha Grécia. Aqui o termo também conserva o
mesmo significado da dýnamis do fragmento anterior, porém, com uma
intenção distinta, qual seja, antes de se referir ao processo da geração, diz
respeito à educação. Nesse sentido, às idéias de domínio, iniciativa ou ge-
rência, às quais daímon se refere, vem a acrescentar-se o de disposição e o
de qualificação inerentes à atividade do ensino e do aprendizado praticados

34
... daímôn hê pánta kybernãi... (SIMPLÍCIO. Comentário à ‘Física’ de Aristóteles, 31, 10;
39, 12; DK 28 B 12).
35
SEXTO EMPÍRICO. Contra os matemáticos, VII, 111-114; DK 28 B 1).

HYPNOS
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46 na velha Grécia –, ao que posteriormente veio a ser chamado de movimen-
to sofista.
O Daimónion de Sócrates

Foi, com efeito, a necessidade da instrução que provocou esse movimen-


to, ou que levou mestres e discípulos a perambularem pela Grécia divulgan-
do a cultura e o saber. Naquela ocasião, quem quisesse se instruir carecia de
sair de cidade em cidade em busca do saber. O movimento sofista nasceu e
prosperou em razão dessa procura. Na verdade ele se pôs (inicialmente sem
qualquer sentido pejorativo) nas mesmas trilhas dos médicos,36 sobretudo dos
charlatães, que saíam de cidade em cidade oferecendo cura para todos os males.
Referido a uma “disposição” própria da Paidéia grega, daímon (pelo que
consta no frag. 1 de Parmênides) parece designar uma vivacidade interna
(ao sujeito), uma espécie de lucidez própria de quem aprende e de quem
ensina. Também sob esse aspecto, daímon diz respeito a um modo extraor-
dinário de ser: aquele com o qual o ordinário ou o corriqueiro da vida
cotidiana poderia a qualquer momento se defrontar, transformando-se; ou,
ainda, aquele modo de ser pelo qual o indivíduo, conscientemente, se dei-
xava possuir, e com o qual passava a deter um certo poder ou vigor distin-
to do habitual, tornando-se diferente dos demais – aquela diferença que só
a ilustração mediante o saber era capaz de proporcionar.
Por designar, conjuntamente, a dýnamis inerente ao Cosmos e ao hu-
mano, daímon aos poucos agregou tudo o que dizia respeito quer às possi-
bilidades quer aos limites do humano. Daímon, sob esse aspecto, foi o ter-
mo com o qual os filósofos gregos (entre eles, Heráclito, Parmênides e, como
ainda veremos, Demócrito) forjaram a idéia de uma força (inerente à Na-
tureza e ao Homem) que por si mesma impelia ou para o bem ou para o
mal. Em seu sentido negativo, aos poucos acumulou o sentido de derrota,
referido de modo particular à incapacidade humana de gerenciar racional-
mente seus desejos, paixões, emoções e vontades. De lucidez, ele também
passou a designar loucura: algo que denotava, digamos, o estar possuído ou
o estar sob o poder de um vigor arredio à deliberação, a ponto de o indiví-
duo ser incapaz de por si só autodeterminar-se.

36
“Os médicos são um bom exemplo de uma categoria de pessoas que viajava extensamen-
te por toda a Grécia. Eram artesãos e viajavam de cidade em cidade, servindo os distritos
rurais ao longo do caminho, ou se instalavam nas grandes cidades”. “Os gregos inventaram
a medicina como disciplina, retirando-a do domínio do charlatanismo e da magia e fazendo
da observação empírica o seu fundamento” (JONES, Peter. O Mundo de Atenas. Uma In-
trodução à Cultura Clássica Ateniense. Trad. de Ana Lia de Almeida Prado, São Paulo: Martins
Fontes, l997, pp. 193 e 288-289).

HYPNOS
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A tendência da Filosofia (sobretudo dos movimentos filosóficos que se 47
impuseram a partir de Platão e Aristóteles, também como efeito da deca-

Miguel Spinelli
dência da Filosofia) foi o de reservar ao termo, ou melhor, ao substantivo
daímon, em particular à sua forma adjetiva, daimónion, a expressão de um
vigor “maligno”, em geral referido a todo tipo de dificuldade humana, so-
bretudo à de não satisfazer ou de não realizar racional e plenamente seus
fins e necessidades. Com efeito, no contexto da Filosofia grega tradicional,
esse vigor não era tido em si mesmo (ou seja, em sua natureza) nem como
bom e nem como mal. Era tido como bom se impulsionasse para o bem, e,
mau, se para o mal. Nesse caso, relacionado à phýsis, ele era sempre tido
como bom; já em referência ao éthos humano, poderia ser bom ou mal, de-
pendendo da disposição interior do sujeito que lhe desse “tensão” ou “aten-
ção” (e, portanto, dizia respeito às intenções da alma).
Demócrito de Abdera (que viveu entre 460-370, portanto na mesma
época de Sócrates, 480-399), dizia a todos que é na alma que reside o
daimónion. Esse seu dizer contém uma clara ressonância do que dissera
Heráclito, tanto no fragmento 119, já citado, como sobretudo no 155: “Da
alma é o logos que aumenta a si próprio”.37 No fragmento atribuído a
Demócrito (no 171) consta o seguinte: “A felicidade <a eudaimonía> não
reside nem em rebanhos e nem em ouro; é na alma que está a morada do
daimónion”.38 Há, aqui, um visível jogo entre as palavras eudaimonía e
daimónion, semelhante ao que está posto no fragmento 170: “Da alma é a
felicidade <eudaimonín> e o infortúnio <kakodaimonín>”.39 Assim
como a alma é a sede da felicidade, também o é do infortúnio. Todavia, ser
“a morada do daimónion”, para a alma, significava, não uma possessão, e
sim, uma disposição ou para o bem (para a satisfação interior) ou para o mal
(para o infortúnio). Enquanto móvel inerente à alma, tal disposição era tida
como natural, mas (por ser em si mesma imóvel) dependia de uma atitude
diretiva do sujeito intencionante e voluntarioso, e, sobretudo, de educação.
“Das coisas de que nos advêm benefícios [ensinava Demócrito], podem
também nos advir malefícios, dos quais, todavia, podemos nos livrar. Por
exemplo, a água profunda pode ser muito útil, mas também prejudicial, pois
corremos o risco de nos afogar; contra isso, porém, há um caminho: apren-

37
psychês esti logos [...] (ESTOBEU. Florilégio, III, 1; DK 22 B 115). Essa mesma idéia com-
parece no fragmento 45: “Tão longo é o caminho da alma, e tão profundo o logos que ela
retém, que jamais encontrarás os seus limites, percorrendo-o” (DIÓGENES LAÉRCIO.
Vidas e doutrinas dos filósofos ilustres, IX, 2; DK 22 B 45).
38
[...] psychê oikêtêrion daímonos” (ESTOBEU. Textos escolhidos, II, VII, 3 i; DK 68 B 171).
39
ESTOBEU. Textos escolhidos, II, VII, 3 i; DK 68 B 170).

HYPNOS
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48 der a nadar”.40 Um pouco mais adiante (no fragmento 175), Demócrito diz
ainda que os deuses nos dão somente as coisas boas, não as más. Se busca-
O Daimónion de Sócrates

mos o mal, é por nossa causa: por “cegueira do intelecto e por ignorância”.41
“A causa dos nossos erros é o desconhecimento do melhor”.42 É preci-
so, pois, a todo custo, acercar-se do bem, tanto quanto “é necessário mon-
tar a guarda contra o mal <phaúlos>, a fim de que ele não se aproveite de
uma oportunidade”.43 Por um lado, convém escassear a nossa convivência
com os maus, porque junto deles “aumenta a nossa disposição para o vício
<kakíês>”;44 por outro, é necessário se empenhar, porque “é graças ao
esforço que o estudo conquista as coisas nobres, enquanto que as ruins se
dão por si mesmas e dispensam qualquer empenho”.45 “As coisas boas que
buscamos, as obtemos com dificuldades; mas as que não prestam <tà dè
kaká>, essas vêm a nós sem que as tenhamos buscado”.46
A partir do que concebeu Hesíodo e, depois dele, Heráclito, Parmênides
e, enfim, Demócrito, não resta dúvida de que o termo daímon (a par de
entificações decorridas sobretudo do imaginário popular) acomodou con-
ceitos filosóficos bem precisos, quer referidos à physis, quer ao éthos huma-
no. Nos termos da phýsis, daímon designava um princípio de determinação:
aquele pelo qual os existentes nascem, crescem e morrem mantendo-se,
desde o início ao fim de sua geração, sempre os mesmos, inabaláveis em sua
essência. Por exemplo, o humano se mantém por toda a sua existência hu-
mano, o macaco, macaco, etc., sem a interferência de uma astúcia maligna
capaz de, injustamente, subverter-lhes a ordem natural, ou seja, transformá-
los em outros de si mesmos – o humano em macaco, o macaco em homem,
e assim por diante –, a ponto de a ordem <o kósmos> reverter-se num
completo káos.
Como correlato da physis, além de designar uma “bondade” natural re-
ferida aos entes, daímon era também expressão de “justiça”, e, como tal, de
um princípio de permanência, intimamente vinculado às noções de neces-

40
ESTOBEU. Textos escolhidos, II, IX, 1; DK 68 B 172. “O tempo não nos ensina a pensar,
e sim, a educação desde a infância e o dom da natureza” (ESTOBEU. Textos escolhidos, II,
XXXI, 72; DK 68 B 183).
41
dià noû typhhótêta kaì agnômosynen (ESTOBEU. Textos escolhidos, II, IX, 4; DK 68 B 175);
“É preciso vigiar o mal, (DK 68 B 87); “A convivência contínua com os maus aumenta a
nossa disposição para o vício” (ESTOBEU. Textos escolhidos, II, XXXI, 90; DK 68 B 184).
42
hamartíes aitíê hê amathíê... (DK 68 B 83).
43
DK 68 B 87
44
ESTOBEU. Textos escolhidos, II, XXXI, 90; DK 68 B 184
45
ESTOBEU. Textos escolhidos, II, XXXI, 66; DK 68 B 182
46
ESTOBEU. Florilégio, IV, XXXIV, 58; DK 68 B 108

HYPNOS
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sidade <anánke> e de destino <moira> natural (que hoje designamos de 49
“herança genética”). Por vezes, daímon era simplesmente usado como sinô-

Miguel Spinelli
nimo de theîon (de divino), cujo termo era referido à qualidades etéreas do
operar da vida do Cosmos, ou, mais precisamente, da dinâmica (da dynamim
theían kinêtikên) que tudo move e que tudo governa. Foi por conseqüência
dessas vinculações que daímon passou a designar: a) um sentido de direção,
nos termos da moira, ou seja, de uma sorte ou sina da qual nenhum exis-
tente (em termos físicos ou biológicos) é capaz de se livrar; e b) uma idéia
de necessidade <anánke>, nos seguintes termos: tudo o que existe tem,
inerente a si mesmo, uma ordem (sempre em sentido físico) através da qual
vem a ser o que necessariamente deve ser (por exemplo, feijão, feijão; coe-
lho, coelho; homem, homem, e assim por diante), sem surpresas!
Aplicado não estritamente à physis, mas ao éthos humano, daímon veio
a expressar igualmente um princípio de movimento (um vigor), mas não
de determinação, e sim, de espontaneidade. Distinto da physis, a esponta-
neidade inerente ao êthos não era tida como absoluta, mas dependente da
vontade ou do arbítrio deliberativo do sujeito racional.
Dá-se que, todos sabemos, no território do éthos humano sempre se so-
brepõe o risco de um bem almejado se converter em um mal indesejado.
Quem, por exemplo, é capaz de executar os seus bons propósitos sem qual-
quer fissura? Entre a intenção e a ação há sempre um imponderável que
desvia o ser de sua trajetória de humana edificação.
Daímon, portanto, resultou como a designação desse imponderável.
Nesse sentido, ele veio a indicar uma intromissão, interferência, ou coação,
mas não imposta por um ser (por um existente concreto), e sim, por um
acontecer (por um vigor) inerente à alma (sede da vontade e do arbítrio
deliberativo do humano), à qual se interpõe – sobrepondo-se, inclusive, aos
ditames da razão. Por isso, referido ao éthos humano, o daímon acabou de-
tendo um duplo sentido: um, positivo, qual seja, o da atenção deliberada
para o bem; outro, negativo, o da atenção deliberada (ou não, pois dele nin-
guém se livra) para o mal. Em ambos os casos (sendo que, em relação ao
mal, ele exige um cuidado permanente), trata-se de uma disposição de âni-
mo, de modo que não sendo o éthos dado por natureza, é forçoso procurá-
lo: por si mesmo ou com ajuda de um outro. Também não sendo os nossos
bons propósitos perfeitamente executáveis, carecem de serem feitos (deri-
vados do exercício deliberativo do arbítrio ou de bons conselhos), e, por
suposto, praticados!

HYPNOS
ano 11 / nº 16 – 1º sem. 2006 – São Paulo / p. 32-61
50 O SIGNIFICADO QUE LHE ATRIBUIU SÓCRATES
O Daimónion de Sócrates

A acusação feita contra Sócrates imputava-lhe dois crimes: um, corrom-


per os jovens; outro, admitir, em detrimento dos deuses “oficiais”, um deus
novo. Esta era a súmula da acusação: “Sócrates age ilegalmente <adikeîn>
na medida em que corrompe os jovens e não reconhece os deuses que a Pólis
admite, pois anuncia uma divindade <daimonia> nova”.47
Atenas era uma democracia, de modo que Sócrates tinha de ser acusa-
do em nome da lei, a partir de fatos concretos e com testemunhos reais. Era
preciso determinar em seu agir alguma “contrariedade perante a lei” (uma
adikía), pela qual pudesse concretamente ser considerado réu. O argumen-
to era o seguinte: se agiu em detrimento da lei, então cometeu uma injusti-
ça <adikoo>; se foi injusto, então rompeu com o kósmos da vida social, e,
portanto, deve ser condenado.
Quanto ao primeiro pretexto alegado como crime (o de corromper a
juventude), em si mesmo não continha qualquer intenção ou conotação
moral, e sim, política. Na verdade, Sócrates estava sendo acusado de pro-
mover nos jovens (com os quais confabulava pelas ruas e praças da cidade),
uma permanente disposição de perturbar a vida social. Alertados a respei-
to do que é justo, bom, virtuoso, honesto, enfim, do que é ser cidadão, os
jovens logo se dispunham a cobrar tudo isso, a partir de si mesmos, de to-
dos os demais.
“Os jovens que livremente me acompanham (e são os que dispõem de
mais tempo e de famílias mais abastadas) sentem prazer em ouvir o exame
que faço a respeito dos homens. Eles mesmos muitas vezes me imitam, e
saem a interrogar os demais. (...). Em conseqüência disso, os que eles exa-
minam se exasperam contra mim e não contra si mesmos, e divulgam que
há um tal Sócrates, um grande miserável, que corrompe a mocidade”.48
47
Sôkrate phêsin adikein tous te neous diaphtheironta kai theous hous hê polis nomizei ou
nomizonta, hetera de daimonia kaina (PLATÃO. Apologia de Sócrates. I, 24 b-c). Xenofonte
reproduz em sua Apologia praticamente as mesmas palavras constantes em Platão: ... autou
hoi antidikoi hôs hous men hê pólis nomizei theous ou nomizoi, hetera de kaina daimonia eispheroi
kai tous neous diaphtheiroi... (II, 10). Fontes: PLATONOS. Sôkratous. Mit einer Einführung,
testkritischem apparat und kommentar herausgegeben von Franz Josef Weber. Padenborn:
Schöningh, 1981; PLATÓN. Apología de Sócrates. Traducción, análisis y notas de Alejandro
G. Vigo. Santiago do Chile: Universitaria, 2002; PLATÃO. Defesa de Sócrates. Tradução de
Jaime Bruna. São Paulo: Abril Cultural, 1985; XÉNOPHON. Apologie de Socrate. Texte
établi et traduit par François Ollier. Paris: Les Belles Lettres, 1961; XENOFONTE. Apolo-
gia de Sócrates. Trad. de Líbero Rangel de Andrade. São Paulo: Abril Cultural, 1985;
XÉNOPHON. Banquet. Apologie de Socrate. Paris: Les Belles Lettres, 1993.
48
PLATÃO. Apologia de Sócrates. I, 23 c

HYPNOS
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Supondo-se que também o ensino de Sócrates não concretizava em seus 51
alunos todos os objetivos desejados, muitos deles (e, pelo visto, não eram

Miguel Spinelli
poucos, inclusive a maioria não era de pobres com trabalho fixo), queren-
do ser bons cidadãos, tornavam-se exímios contestadores da vida púbica e
privada. Por isso a indisposição de um bom número de cidadãos contra
Sócrates. Levando-se em conta também que seus alunos (a exemplo do
mestre) ensinavam gratuitamente, por certo se indispunham com os sofistas.
Num sentido geral, ser “sofista” não era uma profissão ou ofício, mas
uma designação: eram chamados de sofistas todos aqueles que (ao se ocu-
par com a política, com o ensino e com a produção do saber), constante ou
ocasionalmente, tinham outros interesses que não a verdade: os políticos
com a demagogia, os professores com o salário, os alunos com o diploma,
e assim por diante. O termo detinha uma conotação pejorativa, e se aplica-
va a qualquer um, mas particularmente a dois grupos salientes na Pólis: o
dos poetas (educadores populares que recitavam o saber em praça pública,
mas visavam ao aluno pagante particular); e o dos retores (oradores popu-
lares, mestres da arte do discurso, particularmente da arte forense destina-
da à autodefesa perante o Tribunal, mas que também advogavam, median-
te pagamento, em favor dos acusados).
Além dos sofistas, os discípulos de Sócrates se indispunham igualmen-
te com os artesãos (os technítes), em geral concebidos em dois grupos: o dos
poiêtês, tidos como fabricantes inventores, mestres da arte produtiva; e o dos
dêmiourgós, dos que detinham um ofício ou uma profissão fixa, em geral
ricos senhores, operários livres da Pólis. Era junto aos artesãos que se con-
centrava a grande força econômica promotora da artimanha política, das
festas e dos cultos populares. Por fim, é evidente que os discípulos de
Sócrates se indispunham com os políticos, com os estrategistas da Pólis, com
aqueles que, de um lado, promoviam retoricamente a vida cívica e as cau-
sas populares; de outro, controlavam a pragmática dos negócios públicos e
o status quo do cosmos social.
Quanto ao segundo pretexto imputado a Sócrates como crime, também
ele detinha uma intenção política. É claro que a acusação não continha, em
senso estrito, um veto religioso, pois é sabido que o Estado grego não era
intolerante e tampouco se submetia a um poder religioso institucional.
Portanto, a acusação (dada a sua intenção política) tinha um sentido essen-
cialmente retórico: aguçar o ouvido do povo e, com ele, o imaginário, e
assim transformar o julgamento num evento popular – ao modo assim como
Sócrates informou em sua defesa: “tenho contra mim muita gente que me
odeia... O que vai me arruinar, se eu for condenado, não será Meleto nem

HYPNOS
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52 Anito, mas a calúnia e a inveja <diabole te kaì phthónos>...”.49 Aliás, “não
é de hoje que eles vêm assanhando os ouvidos do povo com calúnias. Ago-
O Daimónion de Sócrates

ra é que Meleto, Anito e Licão se dispuseram a me atacar: Meleto tomou as


dores dos poetas; Anito, dos artesãos e dos políticos; Licão, dos retores”.50
Xenofonte viu na acusação contra Sócrates um ardil bem montado. Ele
diz não ter dúvida de que os seus acusadores o incriminaram valendo-se de
um simples boato, ao qual (por qualquer razão, certamente em conseqüên-
cia de seu modo debochado de ser) Sócrates deu voz:
Corria o boato (testemunha Xenofonte), ateado pelo próprio Sócrates, de que o
inspirava um daímôn; eis, sem dúvida, por que o incriminaram.... A que teste-
munho, afinal, recorreram para provar que ele não honrava os deuses da Pólis,
se fazia sacrifícios freqüentes, às claras, tanto em casa como nos altares públicos,
e até mesmo, como toda gente, se valia da arte divinatória?51
Entre o que Sócrates entendia por daimónion* e o que os seus acusado-
res quiseram fazer crer que ele admitisse, há uma grande divergência. Num
primeiro momento, Sócrates ridiculariza a inconsistência lógica da acusa-
ção, ao mesmo tempo em que ironiza a flagrante contradição de Meleto:
“não consigo entender (Meleto) se afirmas que ensino a crer na existência
de deuses (nesse caso admito que existem deuses... se bem que não são os
do povo...) ou se afirmas que não creio em deus nenhum, e que ensino isso
aos outros”.52 Além de contraditória, Sócrates viu na acusação uma espécie
de armadilha, como se Meleto, intencionalmente, se propusera a enganá-
lo: “Será que o sábio Sócrates vai perceber que estou brincando e me con-
tradizendo, ou vai se deixar lograr [...]?”.53
Num segundo momento, Sócrates tende a demonstrar que ele, a exem-
plo dos demais gregos, também era um crente: “O que pretendes ganhar com
isso (Meleto)? Então eu não creio, como todo mundo, que o sol e a lua são

49
PLATÃO. Apologia de Sócrates. I, 28 a
50
[...] Melêtos men hyper tôn poiêtôn achthomenos, Anytos de hyper tôn dêmiourgôs kai tôn
politikôn, Lykôn de hyper tôn rhêtorôn (PLATÃO. Apologia de Sócrates. I, 23 e, 24 a).
51
XENOFONTE. Ditos e feitos memoráveis de Sócrates. I, I, 2-3 Fontes: XENOPHONTOS.
Apomnêmoneýmata. Xenophontis commentarii, recensuit Carolus Hude. Lipsiae: Teubneri,
1969; XENOPHON. Memorabilia. Edited by Josiah Renick Smith. New York: Arno Press,
1979; XENOFONTE. Ditos e feitos memoráveis de Sócrates. Trad. de Líbero Rangel de
Andrade da tradução francesa de Eugène Talbot. São Paulo: Abril Cultural, 1985;
JENOFONTE. Recuerdos de Sócrates. Económico. Banquete. Apologia de Sócrates.
Introduciones, traducciones y notas de Juan Zaragoza. Madrid: Gredos, 1993.
*
Um adjetivo substantivado de daímôn
52
PLATÃO. Apologia de Sócrates. I, 26 c
53
PLATÃO. Apologia de Sócrates. I, 27 a

HYPNOS
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deuses? Não, atenienses, por Zeus, ele não crê que eu creio. Ele acredita que, 53
para mim, o sol é uma pedra e, a lua, uma terra! Oh, meu caro Meleto, vai

Miguel Spinelli
ver que tu pensas que estás acusando o Anaxágoras [...]”.54 Claro que, para
Sócrates (como homem de ciência, freqüentador da Escola de Anaxágoras),
“o sol era uma pedra, e, a lua, uma terra”, porém, ao admitir as hipóteses
da Ciência, não o fazia no intuito de desqualificar as crenças. Quanto à
existência de daímonas (objeto formal de sua acusação), busca convencer a
todos de que não estava inventado algo novo, ao contrário, simplesmente
revitalizava uma crença antiga: “Não é verdade (pergunta Sócrates a Meleto)
que consideramos os daímonas como deuses ou filho de deuses?”.55 “Diz
inclusive a tradição que eles são filhos bastardos dos deuses, nascidos de
ninfas ou mesmo de mulheres comuns”.56 Sendo assim (pergunta Sócrates
a Meleto): “que homem pode acreditar que existem filhos de deuses sem
admitir que existam deuses?”.57
Posto que na acusação constava que Sócrates acreditava em daímonas;
posto, além disso, que Meleto estava de acordo que os daímonas eram “deu-
ses ou filhos de deuses”, logo, ficava provado a) que o teor da acusação de
Meleto, além de contraditório, era falso, efetivamente uma armadilha –
como se Meleto tivesse dito: “Sócrates é culpado <adikei> de crer nos
deuses ao invés de crer nos deuses”;58 b) que Meleto, ao afirmar que Sócrates,
por crer nos daímonas não cria “em deus nenhum”, renegava a tradição e
as crenças populares; b) que Meleto, por não ter encontrado um pretexto
legítimo (um crime real), valeu-se de um motivo fútil, em nada edificante,
porém eficiente.
Mas será que Sócrates acreditava mesmo, e sinceramente, em daímonas?
Tudo indica que sim, mas não ao modo da crença popular. Parece que exis-
tem dois aspectos bem salientes da mesma questão, e ambos dizem respei-
to a uma sinceridade estratégica. Quanto ao primeiro, Sócrates se mantém
no ponto de vista da tradição, segundo a qual os daímonas eram considera-
dos seres extraordinários, Numes que presidiam (ou protegiam) os destinos
particulares aos quais indicavam (como uma espécie de tutores) as sinas.
Com efeito, a concepção de um mundo escalonado (Zeus, Deuses,
Daímonas, Heróis e Homens), em que a Zeus se concedia a máxima “clari-

54
PLATÃO. Apologia de Sócrates. I, 26 d
55
PLATÃO. Apologia de Sócrates. I, 27 d
56
PLATÃO. Apologia de Sócrates. I, 27 d
57
PLATÃO. Apologia de Sócrates. I, 27 c
58
PLATÃO. Apologia de Sócrates. I, 27 a

HYPNOS
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54 dade” e, aos Homens, a “sombra”, era ainda um tipo de explicação pré-filo-
sófico, mas estava na base do despertar da Filosofia, lugar, aliás, onde tal
O Daimónion de Sócrates

tipo de explicação sempre se manteve.


Com efeito, dentre os homens, além dos heróis, também existiam os
sábios. Sábio era aquele que jamais falava só para si mesmo, tampouco ex-
clusivamente para outro(s) sábio(s). Quem com a Filosofia se ocupava ti-
nha como propósito espalhar ao máximo as sementes da sabedoria, e por
isso não podia se desfazer da linguagem e das formas de explicação condi-
zentes com a inteligibilidade popular. Eis aí o primeiro aspecto da crença
daimónica de Sócrates, pela qual, mais do que crer em daímonas, ele forço-
samente os reconhecia. Ao reconhecê-los, os acatava, e assim trazia para
dentro da Filosofia uma inteligibilidade (coletiva) conveniente à tarefa que
a si mesmo impusera: andar feito um guia por toda Atenas, e, portanto, ao
modo de um daímona ilustre, de um Nume visível e concreto,59 dar a to-
dos conselhos, e, sobretudo distribuir o “maior dos bens humanos, a ins-
trução”.60
Efetivamente, Sócrates sempre se concebeu frente à Pólis com uma fun-
ção (“daimónica”) extraordinária: “Se me matardes [diz ele em sua defesa],
não vos será fácil encontrar um outro cidadão como eu, tão aferrado à
Cidade – e, embora isso seja engraçado dizer –, como a ferradura presa no
casco de um cavalo grande e de raça, porém um tanto lerdo e que precisa
de uma [mosca] mutuca que o incomode e o agite. Parece-me que o deus
(assim como a mutuca para o cavalo) me impôs à Cidade com essa incum-
bência: a de incomodar e agitar a todos [...] sem trégua”.61 “Podeis, aliás,
reconhecer [prossegue] que a divindade <theîa> me impôs à Cidade por
uma razão bem simples: porque não é próprio de um homem fazer o que
tenho feito, negligenciar todos os meus afazeres [...], a fim de me ocupar
com o de vocês [...], e instigar a todos, sem descanso, para que se exercitem
na virtude <epimeleisthai aretés>. Mas é claro que, se eu tivesse me imposto
a tarefa de ganhar dinheiro, se meus conselhos fossem pagos, a minha con-
duta teria outra explicação [...]”.62

59
VERNANT, Jean-Pierre. Mito e Sociedade na Grécia Antiga. pp. 114-115; TORRANO,
Jaa. O Sentido de Zeus. São Paulo: Iluminuras, 1996, pp. 122-123 e 141.
60
Perì tou megisthou agathou anthrôpois peri paideías (XENOFONTE. Apologia de Sócrates.
II, 21).
61
PLATÃO. Apologia de Sócrates. I, 30 e. Os parênteses foram acrescentados.
62
PLATÃO. Apologia de Sócrates. I, 31 b

HYPNOS
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Está visto que Sócrates se serviu do aparato conceitual daimonológico 55
como meio de explicar o destino dentro do qual se viu envolvido, e sua

Miguel Spinelli
atitude frente a ele. De alguma maneira ele se mostra resignado, mas não
infeliz ou indolente, com as tarefas que o dia-a-dia foi-lhe impondo. Por um
lado, ele assumiu para si, e frente a todos, a tarefa que só a um daímona
convinha; por outro (e aqui se impõe o segundo aspecto de sua sinceridade
estratégica), ele, a partir do que o daímon enquanto conceito designava,
passou a conceber a Filosofia como uma tarefa sagrada, ou seja, ao modo
de uma daimonología. Daímona passou a expressar nele (sob o ponto de
vista, digamos, de uma consciência crítico-maiêutica) um qualificativo, não
referido a um sujeito ou soberania externa, e sim, à alma humana, particu-
larmente ao que nela há de mais nobre e extraordinário: a capacidade refle-
xiva e meditativa. Sócrates estava convencido de que se alguém se dispunha
a enveredar por uma vida virtuosa, justa e honesta, não tinha senão um único
caminho: o da qualificação da alma mediante a reflexão e a meditação. Pos-
to que as virtudes não se constituem em ciência, elas resultam, no entanto,
em qualidades da alma, sendo que só há um meio de apropriar-se delas:
dotando a alma, através da Filosofia, de um modo extraordinário de ser, e,
por conseqüência, de um modo específico de agir, melhor ainda, de uma
“pragmática”* condizente com o filosofar: aquela pela qual se ativa a dis-
posição racional do autogerenciamento humano.
A daimología que Sócrates elegeu para si como tarefa resultou na prag-
mática que procurava:
“Diga-me, Meleto, é possível alguém acreditar num modo humano de ser
<antrópeia pragmat’ eînai> e ao mesmo tempo defender que não existem ho-
mens? É possível alguém admitir [...] que não existem flautas, mas tão-somente
modos <pragmata> de tocar flautas?”... Se alguém “admite um modo daimónico
de ser <daimonía pragmat’ eînai>” é óbvio que também reconhece que exis-
tem daímonas?63 ... Por certo uma mesma pessoa não pode acreditar em daimonías
e em divindades <daimonía kaì theîa> e não crer que existam daímonas, deuses
e heróis. Isso é totalmente impossível.64
Portanto, “se admito daimonías então é absolutamente necessário que
eu reconheça a existência dos daímonas”.65 Há, aqui, um evidente jogo en-
tre as palavras daimonías e daímonas: a primeira se refere tanto a um modo

*
Por pragmática os gregos entendiam o mesmo que posteriormente se concebeu como
método.
63
PLATÃO. Apologia de Sócrates. I, 27 b-c
64
PLATÃO. Apologia de Sócrates. I, 27 e, 28 a. Os parênteses foram acrescentados.
65
PLATÃO. Apologia de Sócrates. I, 27 c

HYPNOS
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56 extraordinário de ser quanto de agir, mais precisamente a uma “pragmáti-
ca” existencial; a segunda diz respeito ao ser ou realidade propriamente dita,
O Daimónion de Sócrates

à qual esse modo ou a pragmática se refere. Aliás, ser e agir são coinciden-
tes em Sócrates, de tal modo que ele não concebe um sem o outro. Em sua
vida os ideais de sabedoria filosófica (inferidos nos termos de uma pragmá-
tica ideal) não se desvinculavam da experiência concreta do viver, ou seja,
daquilo que, ao ser executado, vem a se efetivar como um modo real de ser.
A Filosofia, para ele, é uma atividade (uma práxis) a ser exercitada tanto a
nível teórico (no exercício do pensar) quanto a nível prático (no exercício
do viver).
O bem viver é algo que se constrói no tempo e ultrapassa as possibili-
dades concretas quer dos ideais (teóricos) quer da efetivação prática desses
ideais. Quer dizer: assim como a ação muito dificilmente consegue se reali-
zar em perfeita consonância com os ideais teóricos, do mesmo modo os
ideais teóricos não resultam em fórmulas capazes de positivar o comporta-
mento perfeito. A arte do bem viver é algo que se constrói teórica e prati-
camente, todavia não dispensa o imponderável na medida em que alguém,
cheio de boa vontade e de boas intenções, busca forjar o seu próprio desti-
no. Por isso, ao reconhecer a existência de daímonas, Sócrates diz (perante
o Tribunal) que o fez por uma razão bem simples: porque foi levado a as-
sumir uma destinação existencial que se forjou lenta e espontaneamente por
inúmeros fatores, sobretudo, por imponderáveis, ou, segundo as suas pala-
vras, “por determinação divina”. Mas, “não só a relativa aos oráculos, como
também a que se dá em sonhos e por outros meios com quais a divindade
leva os homens a executar o seu destino”.66
É de se supor, portanto, que Sócrates se valia de todos os meios dispo-
níveis, a fim de na vida (no ser e na ação) se acertar. A questão que a ele, e
que ainda hoje a todos nós se impõe, e que de certo modo nos perturba,
consiste em saber o que é certo e o que é errado. O que de fato devemos e
não devemos fazer?
No mundo grego não havia uma instituição moral (ao modo do Cristia-
nismo) em que proliferavam mestres do certo e do errado. Sem os moralistas
da Religião, restava à Filosofia e aos filósofos (mediante um rigoroso apelo à
lógica do exercício racional) regular o bem viver. Eis aí a tarefa que a Sócrates
se impôs frente à Pólis. Ao dar crédito à existência de deuses e de daímones,
particularmente à medida que se propôs autoconhecer-se, buscou, não fora,
mas dentro de si mesmo (como Homem e como cidadão) os indícios da
66
PLATÃO. Apologia de Sócrates. I, 33 c

HYPNOS
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destinação humana e dos desígnios particulares. Ele advertia a todos (sobre- 57
tudo buscava convencer a si mesmo) de que no cotidiano da vida existiam

Miguel Spinelli
“dois tipos de insensatos”: um, o dos que “submetem tudo à inteligência hu-
mana” sem admitir uma “providência divina”, ou seja, sem se dar conta de
que certas coisas ultrapassam a nossa humana capacidade de compreensão;
outro, o dos “que consultam em tudo os oráculos, até naquelas coisas para as
quais os deuses nos deram a capacidade de saber por nós mesmos”.67
Aos que tudo acreditavam saber, sem admitir o imponderável, e aos que
preguiçosamente deixavam tudo por conta dos deuses, sem se empenhar
racionalmente, Sócrates indicava um meio termo: não se afastar demais das
“determinações divinas”, e muito menos dos ditames da razão. Daí a sua
tarefa maiêutico-filosófica: levar os homens a voltar-se ao máximo para
dentro de si mesmos, a fim de “ouvir” ali a voz divina. Afinal, mesmo que
os sinais se pusessem fora, era do lado de dentro do humano (mediante
empenho racional) que eles corretamente deveriam ser ouvidos e interpre-
tados. Foi, pois, em vista disso que Sócrates propôs uma (maiêutica) rever-
são: convocou a todos os que acreditavam nos deuses e na adivinhação, em
especial os que interrogavam a Pítia, “o vôo das aves, as vozes, os signos, as
entranhas das vítimas” e o trovão,68 a que, antes de tudo, interrogassem a si
mesmos, e confiassem mais na própria razão. Para isso era necessário educá-
la; acercar-se da Filosofia. Pois só uma razão educada levaria o homem para
dentro de si mesmo, a envolver-se com a dýnamis do próprio interior, e
aonde encontrar, além de boas indicações e advertências, o “alimento” con-
veniente para o bem viver.
“Diz o povo (constatava Sócrates) que as aves e os encontros fortuitos
nos indicam se devemos prosseguir ou retroceder”.69 “Ora, o que muitos
tomam como sendo presságios, vozes, oráculos, eu denomino simplesmente
de daimónion. Penso que, nomeando assim, expresso mais verdade e res-
peito ao poder dos deuses <tôn theôn dýnamin> do que os que o atribuem
às aves”.70
Eis aí, pois, o fundamento da reversão, sendo que Sócrates, ao referir-
se ao seu daimónion, lhe consigna um tom carinhoso (diminutivo). Ele o
concebe como um dote (natural) subjetivo, particular, personificado, e lhe
confere significados condizentes com a mística oracular e da arte

67
XENOFONTE. Ditos e feitos memoráveis de Sócrates. I, I, 28
68
XENOFONTE. Ditos e feitos memoráveis de Sócrates. I, I, 3
69
XENOFONTE. Ditos e feitos memoráveis de Sócrates. I, I, 4
70
XENOFONTE. Apologia de Sócrates. II, 13

HYPNOS
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58 adivinhatória cultivada pela tradição grega. Ele o chama, por exemplo, de
“minha divindade (particular) e de meu daimónion <moi theîon tì kai
O Daimónion de Sócrates

daimónion>”;71 de “meu mântico costumeiro <eiôthuia moi mantikê>”;72


de “meu sinalizador costumeiro <moi tò eiôthos sêmeîon>”;73 “minha voz
que torna inteligíveis os sinais <moi phônê phainetai sêmaiusa>”.74
Se analisarmos essas referências uma a uma, veremos que, na primeira,
Sócrates concebe o seu daimónion nos termos de uma “divindade” (tó
theîon), ou seja, como algo etéreo, sublime, empiricamente inabordável, mas
de algum modo acessível, na medida em que, de modo recorrente, se mani-
festa na intimidade de sua mente toda vez que é solicitado a ajuizar e a agir
moralmente; na segunda, ele se refere ao seu daimónion como se fosse uma
profetisa <mántis> particular, exclusiva, de modo que não careceria de ir
muito longe (a Delphos, por exemplo) em busca da arte adivinhatória e dos
oráculos da Pítia, pois poderia encontrá-la como uma aptidão interna e ouvir
os oráculos dentro de si mesmo; a terceira repete, em outros termos, a se-
gunda, ou seja, ao invés da Pítia, faz alusão aos sinalizadores populares cos-
tumeiros (ao canto dos pássaros, às luzes da alvorada e do entardecer, aos
raios, aos trovões, etc.); a última contém os dois termos <phoné> e
<sêma> que definem não só o que é, como também o modo (particular e
íntimo) pelo qual Sócrates se relaciona com o seu daimónion.
Phoné diz respeito a um som claro, seja ele referido à voz humana, ao
canto (distinguível) dos pássaros ou ao som (específico) de um instrumen-
to. Phoné também pode expressar uma máxima ou sentença precisa (nos ter-
mos de uma prescrição), ou simplesmente designar uma ou um conjunto
de palavras significantes. Semeîon diz respeito a um sinal igualmente claro,
distinto, ao modo de um aviso ou de um indicativo (por exemplo, de um
caminho) a ser seguido ou desviado. Ambos expressam, conjuntamente, dois
aspectos bem precisos que conferem ao daimónion de Sócrates os significa-
dos que ele, em vários momentos lhe atribuiu: um, relacionado à tradição
divinatória <genethlialogías>, buscando reverter e sobretudo educar a
tendência popular de valorizar bem mais o lado mágico da solução dos pro-
blemas, do que o da ciência ou do empenho racional; outro (de modo mais
específico), relacionado à reversão da phrenéres daimônica em favor da
phrónesis filosófica. Quer dizer, Sócrates, por esse ponto de vista, busca re-

71
PLATÃO. Apologia de Sócrates. I, 31 c
72
PLATÃO. Apologia de Sócrates. III, 40 a
73
PLATÃO. Apologia de Sócrates. III, 40 c
74
XENOFONTE. Apologia de Sócrates. II, 12

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verter a mentalidade daimônica tradicional: aquela segundo a qual, confor- 59
me Hesíodo, Zeus concedera aos daímones a prudência <a phrenéres>, a

Miguel Spinelli
fim de que vigiassem as decisões humanas, particularmente aquelas que
viessem resultar em ações prejudiciais. Sócrates queria convencer a todos,
mesmo às pessoas comuns circulantes na Pólis, de que cada um detinha
dentro de si um daímone, ou seja, uma phrónesis judicativa, mediante a qual
poderia balizar a própria phrenéres, prover os destinos de sua própria vida.
Melhor ainda: detendo a phrónesis, cada um possuía dentro de si o seu pró-
prio guia, com o qual poderia orienta-ser para o bem; pois, afinal para o mal
(para o erro) ninguém carece de ajuda.
Por último, Sócrates denominava o seu daimónion de “a divindade
contraditora” <enantiôthé tò toû theou>.75 As suas últimas palavras, as que
antecederam a sentença de sua condenação, contêm mui claramente esse
significado: “A minha profetisa costumeira (dissera), a do daimónion, que
até hoje me previne, sempre em tudo se contrapôs <enantioumené> de
modo assíduo e rigoroso, mesmo nas mínimas ações, quando algo de erra-
do estivesse por me acontecer”. 76 “Quantas vezes ela me conteve
<epéchou> em meio a outros discursos! Hoje, porém (desde cedo, de casa
em direção ao Tribunal, e no decorrer do julgamento), em nada ela se con-
trapôs <ênantiôthai>, nem nas minhas ações nem nas minhas palavras. Ora,
qual a razão que nisso se oculta? Vou lhes dizer: porque o que hoje está por
me acontecer, dados todos os indícios, será um bem... Estou certo de que
se fosse um mal, o meu sinalizador costumeiro <tò eiôthos sêmeion> (...)
iria se contrapor [...]”.77
São, enfim, vários termos com os quais Sócrates definia o seu daimónion:
o de profetisa ou mântico <mantiké>, o de voz <phoné>, de sinal
<semeîon>, e de contraditor <enantiôthé>. O primeiro comporta a idéia
de um ser (com uma clara referência ao mito e aos costumes populares), os
outros, a um acontecer, porém interno, não externo. Na medida, por exem-
plo, em que ele o concebe como uma voz, refere-se a algo que nascia den-
tro dele <daimónion gignetai phoné>; mas, não uma voz rigorosamente
estranha (de um outro), nem a voz de uma consciência da qual detinha to-
tal controle. Segundo as suas palavras: “Ela é uma voz que nasce <phoné

75
PLATÃO. Apologia de Sócrates. III, 40 b
76
PLATÃO. Apologia de Sócrates. III, 40 a. O itálico foi acrescentado.
77
PLATÃO. Apologia de Sócrates. III, 40 b-c. Os parênteses foram acrescentados; entretanto
são expressões de Sócrates.

HYPNOS
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60 tìs gignomenê>, e, quando nasce <hê hóton genêtais>, sempre me desvia
do que vou fazer, nunca me incita”.78
O Daimónion de Sócrates

O que Sócrates, enfim, chamava de daimónion sempre fazia as vezes de


um contraposto, ao modo de uma voz ou de um sinal contraditor <enantiôthé
semeîon>79 , que, como tal, se impunha internamente como se fosse uma
baliza ou limite <tekmaironthai>, tanto no lógos (no dizer e pensar, uma
vez que o logos filosófico designava conjuntamente essas duas coisas), quan-
to na ação (no arbítrio, ou seja, no fazer ou deixar de fazer alguma coisa). Em
relação ao logos, ele exercia (como uma disposição interna para o diálogo) a
mesma função de seus contraditores, dos que costumeiramente o seguiam ou
dos transeuntes da Pólis com os quais todos os dias confabulava; no que diz
respeito à ação, poderia ser traduzido pelo conceito de obrigação moral: ao
modo de uma disposição interior, mas não exatamente de uma consciência
plenamente ciente do que devia ou não devia fazer, e sim, digamos, o seu
daimónion era uma referência ideal dessa consciência.
Não sendo, pois, uma “incitação” (ou seja, um impulso), então o seu
daimónion era uma dicção que “germinava” dentro dele, e que ali crescia e se
desenvolvia lentamente no tempo. Por ser algo que se construía ou que se
organizava dentro dele, então não era um mero estímulo – ao modo, diga-
mos, de quem, por exemplo, se sente seguro em fazer o que vai fazer, porque
está ciente, de antemão, que vai dar certo –, e sim, uma contenção, ou seja,
um refreio dentro de certos limites ou perante a possibilidade do erro.
De um modo geral, o seu daimónion se manifestava sempre quando a
ação fosse resultar num mal, não em um bem. Se a ação que estivesse por
fazer fosse boa, a contraposição interior não se dava. Daí, todo o seu con-
flito: por um lado, Sócrates estava sempre ciente do que “não deveria” fa-
zer, mesmo assim errava: “estou convencido de que não faço mal a ninguém
por querer, mas não consigo convencer-vos disso”;80 por outro, se mostra-
va a todos ciente, não exatamente do que “devia”, mas do que “não devia”
fazer – porém, ao modo de quem sabe o que deve: “Como pretendes
(Meleto) que eu introduza um daímona diferente se simplesmente digo que
me ilumina uma voz divina que me sinaliza o que devo fazer?”81 ...

78
PLATÃO. Apologia de Sócrates. I, 31 d. Ele diz, aliás, que ela começou em sua infância,
sem especificar quando; talvez aos sete anos, período em que os gregos diziam que as crian-
ças alcançavam a idade da razão.
79
PLATÃO. Apologia de Sócrates. III, 40 b
80
PLATÃO. Apologia de Sócrates. II, 37 a
81
[...] theou moi phônê phainetai sêmainousa ho ti chrê poiein (XENOFONTE. Apologia de
Sócrates. II, 12).

HYPNOS
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Quer dizer, o seu daimónion sempre lhe sinalizava “o que deve” nos 61
termos de “o que não deve”. A questão, digamos, é a seguinte: a possibili-

Miguel Spinelli
dade de errarmos, mesmo quando queremos deliberadamente acertar, está
sempre presente. Se, ao contrário, nos dispomos a fazer algo (moralmente)
errado, não nos incomodamos com qualquer possibilidade de acerto. Ou
seja, mesmo tendo uma intenção deliberada de acertar, a possibilidade do
erro não nos é eventual. Dá-se que, em geral, erramos bem mais do que
acertamos, inclusive temos um vazio de ignorância bem mais “pleno” do
que o volume de sabedoria! Ainda bem, porque é exatamente esse vazio que
nos estimula a humanamente nos qualificar. Por isso, é preciso que façamos
o melhor possível! Tanto mais na medida em que não temos nem o instin-
to apurado dos outros animais e nem a razão nobre da “divindade”. Toda-
via, somos potencialmente capazes, em todos os sentidos, de nos educar.
Portanto, mesmo a custo, temos que nos empenhar. Pois, afinal, é respon-
sabilidade nossa fazer com que o “animal” humano acabe em algum momen-
to dando certo.

[recebido em março de 2005]

HYPNOS
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PLATÃO: O MUNDO, O CORPO E O MAL
PLATO: THE WORLD, THE BODY,
LATO AND EVIL
FERNANDO MUNIZ*

Resumo: A irracionalidade do desejo, sua resistência natural à razão é, nos


diálogos platônicos, diretamente associada ao problema do mal. A investiga-
ção dessa questão, no entanto, depara-se com dificuldades no que concerne à
consistência da doutrina do mal platônica. O mundo externo, o corpo, a
matéria, ou a parte irracional da alma, são candidatos naturais a fonte do mal,
mas o que constituiria a afinidade entre esses elementos é ainda objeto de
perplexidade entre os estudiosos. Este artigo investiga a possibilidade de que
(1) a resistência da matéria, ou "Necessidade" cega, ao ato divino da criação
deixa resíduos em diversos níveis de realidade e que ( 2) a interpretação desses
sinais residuais permite acesso à doutrina platônica do mal.
Palavras-chave: mundo; corpo; mal; alma.

Abstract: The irrationality of desire, its natural resistance to reason, is, in the
Platonic dialogues, directly associated with the problem of evil. Investigation
into this question, however, runs into difficulties when one raises the question
of consistency in the Platonic doctrine of evil. The external world, the body,
matter, and the irrational part of the soul are natural candidates for being the
source of evil, but why they should all be so is still an object of perplexity
among scholars. This paper investigates the possibility that (i) the resistance
of matter or blind “Necessity” to the divine act of creation leaves residues at
various levels of reality, and that (ii) the interpretation of what these residues
are permits access to the Platonic doctrine of evil.
Key-words: World; Body; Evil; Soul.

O presente artigo expõe uma tentativa de dar conta de um tema que,


como todos os temas platônicos, é objeto de litígio. Refiro-me à questão
sobre a existência de uma doutrina do mal coerente nos diálogos de Platão.
A resposta da maioria dos comentadores e intérpretes a essa questão é qua-
se sempre negativa ou inconclusiva. Chega-se a afirmar que “as discrepân-
cias que Platão diz sobre o mal”...“chama a atenção para algo obscuro, tal-
vez incoerente, no seu pensamento metafísico”.1 As discrepâncias que

*
Fernando Muniz é professor na Universidade Federal Fluminense, RJ. E-mail:
munizfernando@uol.com.br
1
CHERNISS, H. (1978).

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geram tais divergências de interpretação dizem respeito, sobretudo, às fon- 63
tes do mal. Há uma multiplicidade heterogênea de males: éticos, epistêmicos,

Fernando Muniz
estéticos etc, mas teriam eles todos uma só origem? Alguns intérpretes, como
Festugière e Vlastos, sustentam que a fonte de todos os males é a matéria e
o corpo; outros, como Cornford e Wilamowitz-Moellendorff, pensam que
o mal se localiza na alma ou, mais especificamente, no elemento irracional
da alma.
O mundo sensível, o corpo, a matéria, e a parte irracional da alma são,
assim, candidatos naturais ao posto de fonte primeira do mal. Mas qual se-
ria a afinidade que reúne elementos tão díspares? Ou mais profundamente
ainda: o que permite a articulação ou a passagem de um desses registros a
outro? Estariam esses elementos – o corpo, a alma, o mundo – integrados
num sistema onde circula o elemento genético do mal? A resposta a esta
questão pode apontar para o que Cherniss, a princípio, supôs haver: uma
teoria perfeitamente coerente em todas as suas partes e consistente com a
ontologia de Platão. Buscarei aqui apresentar, ainda que de modo sumário,
um esboço de resolução desse problema.
Vou partir de uma observação de Greene2 que lança alguma luz sobre
esse assunto. Comentando o Timeu, ele aponta para o problema da resis-
tência, em seus múltiplos aspectos, como o elemento comum que perpassa
todas as espécies de mal. Vendo o movimento genético do mal como um
deslocamento progressivo da fonte material – do mundo– em direção à alma,
Greene reconhece ainda o caráter residual, intratável, indomável como um
traço determinante do conceito do mal. Como diz ele, “a resistência ao
ato divino da criação vem da matéria ou ‘Necessidade’ cega, inerte, recal-
citrante”.3
Essa resistência ao ato divino da criação deixa resíduos, resíduos da
“Necessidade”, e seriam esses resíduos que encontramos espalhados sobre
os vários planos da realidade humana. Se, como afirma Greene, nós quiser-
mos levar a sério o mito da Criação contado no Timeu, devemos levar em
conta a presença da Causa Errante dentro da narrativa da criação, e, conse-
qüentemente, trazê-la para dentro do mundo, desde que a Causa Errante
seja uma das partes integrantes dele, e o mundo um resultado, ainda que
parcial, da Causa Errante.4 Seguindo essa indicação, para termos uma idéia
2
GREENE, W. Moira. Fate, Good, and Evil in Greek Thought.p.301 Gloucester, Peter
Smith, 1968.
3
GREENE, W. op. cit., p. 301.
4
Id., p. 299: “Wherefore if one would tell the tale of the making truly, one must bring
the errant cause (...) also into de story, so far as its nature permits”.

HYPNOS
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64 de como os resíduos da errância se manifestam no mundo, seguirei os pas-
sos do mito do Político, uma passagem que quase sempre é associada ao mito
Platão: o Mundo, o Corpo e o Mal

da criação do Timeu.
O mito do Político (272c-273a) descreve o mundo sensível a partir de
um confronto entre tendências opostas. O mundo sensível é visto como um
navio conduzido pelo “piloto do universo”. Quando o piloto abandona os
remos e se torna um mero observador, o mito entende essa ação como a
devolução do controle “ao apetite natural” (272e) do próprio mundo. A
atribuição de um apetite ao mundo, em analogia aos apetites humanos, tem
uma importância especial, não apenas por revelar o modo como a ativida-
de do mundo é compreendida, mas também pelas conseqüências que retira
dela o próprio relato. Assim, movido pelo seu apetite natural, o mundo-
navio ruma em um sentido contrário ao sentido oferecido pelo Criador, e
arrastado por essas duas forças opostas, o mundo-navio é sacudido por aba-
los constantes, que acabam por levá-lo ao desastre fazendo-o submergir no
tumulto e na confusão. O mundo-navio só recuperará a “calmaria” quan-
do, por força das lembranças das instruções do Demiurgo, ele adquirir, de
novo, “domínio sobre si mesmo”, isto é, domínio sobre os elementos que
resistem à ordenação unitária do mundo.
A lembrança que cria a condição para o domínio sobre a errância, no
entanto, vai, aos poucos, se apagando. A causa desse apagamento é atribuí-
da ao elemento corporal, elemento que faz parte da mistura que compõe o
mundo. O elemento corporal que pré-existe à própria ordenação do mun-
do teria a marca da desordem (273b) e a responsabilidade pela proliferação
dos males. Quando o piloto do mundo exercia o seu controle, os males eram
reduzidos ao mínimo pelo tipo de “alimentação” que ele fornecia ao mun-
do. A alimentação do mundo, a dieta adequada para mantê-lo na ordem,
supõe a existência de uma deficiência, deficiência que só é saciada pela se-
melhança, ou pela memória da semelhança. A separação que ocorre no
momento do afastamento do piloto faz com que o esquecimento se
reproduza, isto é, que o mundo retorne ao estado de inanição. É esse esta-
do, essa fome não saciada de semelhança que produz o enfraquecimento da
ordem e a conseqüente retomada do poder pela condição original do mundo.
A existência de um estado não-ordenado anterior à ordenação (não
apenas não ordenado, mas produtor de desordem) cujo modo de ação é não-
racional – ou anti-racional – encarna a ameaça de corrupção total do mun-
do por essa condição original. A persistência dessa ameaça, verificada pela
impossibilidade da eliminação total do mal, em função da resistência que o
elemento corporal opõe à ordenação, revela a heterogeneidade do princí-

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pio corporal em relação ao princípio ordenador. Essa diferença de nature- 65
za do princípio corporal explica, em parte, a irredutibilidade do sensível ao

Fernando Muniz
inteligível que se afirma nessa persistência do mal e que se manifesta em
todos os modos da errância.5
A corrupção total do mundo que esses modos da errância podem pro-
vocar é compreendida em termos da perda da semelhança. Semelhança que,
por sua vez, marca a presença, no sensível, de um apetite de outra nature-
za, um apetite depurado; uma aspiração e um querer que buscam uma iden-
tificação com o mundo inteligível. A perda de tal semelhança significa para
o mundo, obviamente, a perda da sua condição de imagem – que é o senti-
do profundo do “naufrágio” – e, por outro lado, indica a existência de um
apetite, impuro e voraz, pela desordem e pela irregularidade. Uma tal
ameaça faz com que a divindade (“vendo as dificuldades”) retorne e cuide
para que, “atacado pelas tempestades”, o mundo-navio não venha a se “es-
tilhaçar pela agitação e naufragar no mar ilimitado da dessemelhança” (273d).
O elemento corporal, ao qual é atribuído a causa dos efeitos erráticos,
ganha agora precisão “científica” no relato “verossímil” do Timeu (42a-b).
Quando são analisados os efeitos imediatos da “implantação” da alma no
corpos, alguns fatores que intervêm na natureza humana são considerados:
“Segundo uma ordem necessária, a primeira capacidade inata que surge
(a partir de violentas afecções), é a aísthesis, a seguir, éros – essa mistura de
prazer e dor – depois, o medo e assim por diante.6 Esses elementos são de-
signados como aqueles que precisam ser dominados “para que se viva com
justiça”. Novamente a questão do domínio dos elementos sensíveis ou cor-
porais opõe dois princípios ativos em conflito, retomando os principais
pontos do mito do Político e fazendo com que o domínio pela razão signi-
fique o retorno ao melhor estado original.7 Nesses pontos, como em mui-
tos outros, o paralelismo entre a cosmologia e a “psicologia”8 deve-se ao
fato de o microcosmo-homem reproduzir o macrocosmo-mundo sensível.

5
O’BRIEN, D. Theories of Weight in The Ancient World. Vol. Two: Plato Weigth and
Sensation. Paris: Les Belles Lettres, 1984, p.107.
6
Seja na metáfora agrícola da implantação, da judiciária do aprisionamento ou da metá-
fora médica da infecção, a sensação desempenha o papel de protagonista nesse processo de
ligação da alma ao corpo; por exemplo,“quando, em virtude da necessidade, as almas são
implantadas nos corpos (ajmfuteuqeiæen), a aísthesis surge em primeiro lugar” (42a).
7
Timeu, 42 c.
8
BRISSON,L. Platon - Phèdre. Traduction, introduction et notes. Paris: Flammarion
(1989), p.241): “Bref, le microcosme qu’est l’homme doit prendre modèle sur le microcosme,
le monde sensible: ici l’éthique rejoint la cosmologie, comme c’est aussi le cas à la fin du
dialogue (90b-d)”. Cf. Fedro, 256d-e.

HYPNOS
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66 É este paralelismo entre o apetite do homem e o apetite do mundo que
permite a Platão conceber uma natureza do sensível e uma natureza do
Platão: o Mundo, o Corpo e o Mal

apetite humano segundo um mesmo modelo: o modelo da deficiência, da


endeia. Esse substantivo, na verdade, tornou-se um termo técnico nos Diá-
logos a partir do Górgias, em que, pela primeira vez, é apresentada uma
distinção nítida entre o corpo e a alma. Essa mesma distinção tornará pos-
sível a determinação da natureza dos desejos e prazeres associados direta-
mente ao corpo que terá na sede e na fome os paradigmas preferidos. A fonte
física desses desejos será designada por endeia, um vazio que exige o seu
preenchimento.
Ao mesmo tempo que a exposição no Górgias indica, sob o modelo
da sede e da fome, o modo de funcionamento dos apetites que caracterizam
a condição humana, indica também uma diferença insuperável para com o
modo de ser da divindade. Enquanto o modo de ser humano é o da defi-
ciência, o modo de ser dos deuses é o da suficiência, os deuses são definidos
como “os que não têm deficiência”.9 Desse modo, o modelo fisiológico
construído a partir do vazio doloroso – como a endeia é apresentada – e o
preenchimento deste vazio ou a saciedade prazerosa,10 fornece uma visão
do apetite na forma de um movimento circular, uma repetição monótona
que, pela própria natureza do apetite, jamais terá saciedade. A imagem cé-
lebre que o Górgias nos oferece da condição apetitiva humana, nesse senti-
do, é a da condenação ao preenchimento de vasos furados, que esvaziam no
instante mesmo em que estão sendo preenchidos. Essa caracterização do
apetite humano, ao mesmo tempo que reflete o apetite divino, contrasta
com ele, de modo que reúne em si a semelhança e a dessemelhança. Exata-
mente pela mesma razão que faz com que a imagem deixe de ser imagem se
a sua deficiência é corrigida, o homem (ou a mulher) deixa de ser humano
se preenche o seu vazio, ou satisfaz de uma vez por todas a sua deficiência.
Assim como a imagem, a deficiência é a marca incorrigível da inferiorida-
de do humano frente aos deuses.

9
Em República, 529c-e: Sócrates afirma que se deve encarar “esses ornamentos” no céu
como os mais belos e mais precisos que todas as demais coisas sensíveis, desde que se consi-
dere que eles são “muito deficientes” em comparação com os verdadeiros. Esses ornamen-
tos têm tanta utilidade, segundo ele, como paradigmas para nos auxiliarem no estudo do
invisível, quanto os diagramas de Dédalo em relação à geometria. Ou seja, nenhuma.
10
Kénosis, Cf. Hipp. De Flatibus 1: “emptying cures in respect of filling, filling (sc. cures)
emptiness, and rest (sc. cures) exertion, on the principle that every condition is rectified by
its opposite” apud DOVER, K. Plato - Symposium. Ed. Cambridge: University Press, 1980,
p.106.

HYPNOS
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Simultaneamente, há, também no Górgias, a elaboração de um apetite 67
positivo sob o ideal da saciedade divina, um apetite de natureza superior,

Fernando Muniz
desvinculado, (“na medida do possível”), do corpo, mas que se compreen-
de a partir da analogia com o processo de nutrição. Uma epithymía reverti-
da e transformada numa boa epithymía “voltada para as coisas justas”.11 Uma
epithymía purificada que desloca a intensidade de sua potência para a busca
do verdadeiro, em oposição aos apetites que entregues a sua própria lei ten-
dem à multiplicação e intensificação progressiva que tem o seu limite na
pleonexía – esse desejar, cada vez e sempre, um pouco mais – traço distin-
tivo do apetite do tirano.12
A novidade que o Fédon introduz nesse quadro é a de fazer com que o
próprio mundo sensível ostente a marca da deficiência. E, o que é funda-
mental, essa deficiência do sensível só se mostra como deficiência, segundo
a passagem, quando a reminiscência coloca lado a lado a lembrança da For-
ma e o seu exemplar sensível. Assim, a endeia marca no homem a sua
imperfeição, sua falha ontológica enraizada na sua própria fisiologia, como
também caracteriza a inferioridade do sensível.
Mas se nós reconhecermos nessa deficiência dos apetites humanos e da
natureza do sensível a presença do mal que buscamos, teríamos dado um
passo errado. Em primeiro lugar, trata-se aqui de uma visão negativa do mal.
O sensível – ou o apetite – revela-se deficiente apenas em relação à
positividade do inteligível. Seria um engano não se observar que esse mal
negativo é necessário, pois o reconhecimento da deficiência é o que permi-
te a distinção dos dois planos de realidade, é o que permite que um possa
ser visto como original e o outro como imagem. Sem o reconhecimento da
deficiência, os planos se equivaleriam e o mundo sensível poderia ser pen-
sado como pleno, suficiente tendo nele mesmo a sua própria justificação.
Assim, sem o reconhecimento da deficiência inata dos apetites, tais desejos
ganhariam o direito de maximização. Portanto, não podemos aceitar que a
deficiência seja a marca da maldade no mundo, mas devemos, sim, tomar a
deficiência como um fator positivo. Por mais paradoxal que possa parecer
a deficiência é boa e o mal negativo que ela representa é bom.

11
FRÈRE, J. Le Désir de L’Être. Paris: Les Belles Lettres, 1981, p. 151: “Le vrai ‘souhaiter’
(boulesthai) est un souhaiter toute de force (dynamis, [Górgias, 509d]) au service de la
justice...” “Dans le epithymein, le sage aspire aux eide, dans le boulesthai, il s’efforce de réaliser
des actions justes, e de poursuivre le beau e le bien.”
12
República, 579b-e: O tirano, como a cidade que domina, não pode ter satisfação (preen-
chimento) dos seus desejos, aparece pobre de verdade e “pleno de deficiências” .

HYPNOS
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68 Devemos, então, entender o mal como a supressão da deficiência, ou o
não reconhecimento da deficiência. O Fédon nos guiará também no cami-
Platão: o Mundo, o Corpo e o Mal

nho para essa compreensão. Pois, é exatamente no Fédon, que, além das
Formas e da noção correspondente de deficiência do sensível, a imagem de
encadeamento da alma ao corpo é apresentada pela primeira vez.
Esse tema do encadeamento da alma ao corpo é um dos temas centrais
do Fédon. Logo na abertura do diálogo, nota-se uma mudança na estrutura
dramática comum aos diálogos anteriores a ele. Um deslocamento que as-
sinala uma dupla conversão da filosofia socrática: da temática das virtudes
para uma surpreendente escatologia; dos espaços abertos para a clausura;
das palestras e ginásios para o Desmotério. Essa palavra tem um significado
todo especial, derivada do verbo desmóo,13 prender com correntes, encade-
ar, o substantivo “desmotério” designa o lugar onde permanecem os enca-
deados. Daí ser o “Desmotério” o lugar apropriado para uma reflexão so-
bre a dialýsis– o desligamento da alma do corpo. Esse cenário e essa atmos-
fera antecipam, por um lado, a Caverna da República e seus “estranhos pri-
sioneiros” acorrentados desde a infância; por outro, fazem com que o acon-
tecimento histórico (o encarceramento de Sócrates) sirva de metáfora para
a condição humana em geral, fornecendo, na imagem privilegiada da pri-
são, os elementos para a compreensão da composição corpo e alma.
O contexto dessa discussão sobre a imortalidade da alma fornece as
condições para a busca de uma resposta à questão sobre como o mal passa
do elemento corporal para o elemento psíquico. Na linguagem usual dos
Diálogos, como a alma é infectada pelo corpo.
Para respondermos a essa questão, precisamos reconhecer mais duas
novidades teóricas introduzidas por Platão no Fédon: a primeira é o apro-
veitamento da ambigüidade do termo endeia (que significa tanto deficiên-
cia quanto encadeamento) para a construção de uma dupla de conceitos
interdependentes que tem como meta fazer com que a deficiência corporal
se torne encadeadora e a alma encadeada. Sabemos que a alma por seu en-
cadeamento ao corpo sofre os abalos gerados pelas afecções sensíveis e as
percepções correspondentes, entrando num estado de errância e perturbação,
mas esses estados provocados por essa conexão não explicam a etiologia da
infecção, na verdade, são apenas os seus sintomas. A causa só será revelada
um pouco mais adiante, ainda no Fédon, quando Sócrates declara que “o
supremo mal, o maior e o mais extremo dos males é ser afetado excessiva-

13
Desmós, corrente, ligadura etc.; desmótes: que está encadeado, acorrentado; a partir de
déo : prender, atar, encadear.

HYPNOS
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mente pelo prazer”. Observe-se que o supremo mal não é atribuído ao sen- 69
sível, entendido genericamente, mas a um tipo específico de sensação, o

Fernando Muniz
prazer intenso. Em 83c, “quando alguém sente prazeres intensos ou dores
ou medos ou apetites”, o mal que daí advém não é o que podemos imagi-
nar – por exemplo, a doença ou a ruína, por causa dos apetites – porque “o
maior de todos os males, o supremo mal, é experimentado sem que se dê
conta”.
Nessa passagem intrigante, Sócrates retira da razão que oferece para a
recusa dos prazeres excessivos seus aspectos externos. Não se trata do
malefício que os prazeres e apetites podem trazer à saúde, ou da ruína fi-
nanceira que podem engendrar. O real malefício não é tão evidente, tão
observável, quanto podemos julgar. Eis por que não se deve deixar-se ilu-
dir pela noção de obstáculo. Esse obstáculo que faz do corpo e suas distra-
ções, suas ocupações, apenas um desperdício de tempo. Há um sentido pro-
fundo da recusa do prazer, um sentido ontológico que, esse sim, permite a
compreensão do papel que desempenha na trama dos Diálogos.14
Se entendermos o mal como o resultado da prisão da alma ao corpo e
este encadeamento como um processo gerador de erro, engano e ilusão,
teremos novamente recaído em uma visão negativa do mal como ignorân-
cia. Bastaria que a ignorância se soubesse ignorante para que esse mal apa-
rente e ilusório desaparecesse diante de nós. O corpo seria assim tomado
como um obstáculo à verdade num sentido meramente secundário. Esta-
ríamos ainda muito longe de uma positividade do mal, de um poder que,
como vimos no mito do Político poderia nos tragar – nós e o mundo – para
o fundo do “oceano ilimitado da dessemelhança”.
Resta-nos perguntar como a deficiência corporal torna-se encadeadora
e a alma, encadeada. Para isso precisamos compreender o que é uma
epithymía, um apetite, e como ele surge. Essas questões são, enfim, tratadas
detalhadamente no Filebo. O modelo é, como de hábito, a sede e a fome. E
a questão torna-se: o que há de comum entre essas formas variadas de ape-
tites? A resposta a essa pergunta toma como ponto de partida o significado

14
KAHN, C. Plato’s Theory of Desire in Review of Metaphysics 41 (september 1987), p.99:
“When one feels intense pleasure or pain concerning a given object, one is forced to regard
this thing as clearly real and true, although it is not...Each pleasure and pain is like a nail
which clasps and rivets the soul to the body and makes it corporeal, so that it takes for real
what the body declares to be so. Unless it is enlightened by philosophy, reason is obliged
to live in the darkness of the cognitive cave, constructed by sensual appetites, or by thymos,
by ambition and competition for honor: one´s ontology is affected by one´s favorite pursuits”.
Grifo meu.

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70 de algumas expressões usuais: “Ele tem sede”, por exemplo, que significa “ele
está vazio”. “Será a sede”, pergunta, enfim, Sócrates a Protarco, “um apeti-
Platão: o Mundo, o Corpo e o Mal

te por bebida ou pelo preenchimento? Se é pelo preenchimento, e não por


bebida, quem quer que esteja vazio, tem apetite pelo contrário daquilo que
experimenta, em suma, quem quer que esteja vazio ama preencher-se”.
Finalmente, Sócrates toca no nervo da questão: “quem está vazio pela
primeira vez, a partir de quê manteria contato com o preenchimento?” Não
poderia ser pela sensação, nem pela memória, pois não está experimentan-
do naquele momento nem nunca experimentou esse preenchimento no
passado. Fica assentado, então, que é necessário que haja algum ponto de
contato entre aquele tem sede e o preenchimento da sede para que possa
haver o apetite. Como ambos reconhecem que é impossível que seja o cor-
po, resta, apenas, alma para desempenhar essa função de conexão.
A importância dessa passagem é crucial para a compreensão da gênese
e da natureza do apetite. Hackforth chamou a atenção para o que Apelt
havia visto, sem que ninguém tivesse visto antes: que “havia ali um proble-
ma”. A questão é a seguinte: em 35a, Sócrates havia dito que, na primeira
ocasião kénosis, o vazio, não poderia haver memória de plérosis, o preenchi-
mento, que parece entrar em contradição com o que é dito em 35b-c15 (“A
única alternativa, então, é que a alma apreenda o preenchimento, e o faça
por meio da memória, e por meio do que mais poderia fazê-lo?”– diz
Sócrates). A solução de Hackforth parte do que Sócrates não diz, “mas está
implicado no que ele diz, que nenhum apetite pode ocorrer na primeira
ocasião de kénosis [vazio]”.16 Ora, se o corpo não pode operar a ligação do
objeto do preenchimento com o vazio correspondente, o resultado desse
argumento é que, como conclui Sócrates, “não há apetite do corpo” (35c)
e, deve ser a memória a condutora “na direção das coisas que são objeto de
apetite e que todo impulso e apetite e comando pertença à alma” (35d).
Mas é preciso retornar à questão decisiva. Se, no momento em que o
ser vivo, pela primeira vez, experimenta o vazio, não é por meio do corpo
que ele pode conectar-se ao objeto, o que nos leva, obrigatoriamente, a
concluir que é a aísthesis, conservada pela memória, que torna qualificado

15
Diz Hackforth (HACKFORTH, R. Plato’s Philebus. Translated with an Introduction
and Commentary. Cambridge: CPU, 1972, p.66 n.1): “Apelt (note 53 to his translation of
the dialogue) seeks to remove [ a contradição] by understanding the memory of 345c1 to
be not of plérosis, but of original equilibrium. This I find difficult to accept”... “But though
Apelt has given (as I think) the wrong solution, he seems to see, as nobody else does, that
there is a problem”... Grifo meu.
16
Id.

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o vazio, ou seja, que conecta o vazio a um “objeto” de preenchimento, isto 71
é, de satisfação. Seja a água a aísthesis do primeiro preenchimento, espe-

Fernando Muniz
cializa o vazio na conexão vazio – água = sede. A vinculação do vazio e a
aísthesis engendra o apetite. Por essa razão, diz, Sócrates, “de nenhum modo
o corpo pode ter sede ou fome ou qualquer coisa desse tipo”.
Fazendo com que o primeiro apelo de preenchimento e, conseqüente-
mente, de prazer, seja uma aísthesis e fazendo da aísthesis, desta vez – e mais
perfeitamente – o elemento que opera o encadeamento da alma ao corpo,
torna-se mais fácil compreender a razão pela qual prazer e sensação são
recusados tão enfaticamente por Platão. Fica evidente, portanto, que, se não
existe desejo do corpo, não podemos atribuir a ele a fonte do mal, mas
podemos entender que é a deficiência corporal que encadeia a alma aos
objetos sensíveis pelos elos do apetite. Esse é o sentido mais profundo do
encadeamento. Mas ele seria ainda negativo se ele não constituísse um ponto
de vista cognitivo sobre o mundo.
O Fédon apresenta o encadeamento da alma como a construção de um
ponto de vista cognitivo do mundo. É isso que se revela claramente na
resposta que Sócrates dá a Cebes sobre a razão pela qual sentir um prazer
excessivo é o supremo mal.: “O que quer dizer isso?”. Sócrates explica esse
sentido ontológico da seguinte forma: “Consiste numa inferência inevitá-
vel que se impõe à alma de todo homem. No instante mesmo em que expe-
rimenta uma sensação intensa de prazer ou dor: é-se levado a tomar a cau-
sa da afecção como a coisa mais evidente e verdadeira, ainda que não o seja
– já que se trata de coisas visíveis”. Essa vinculação das práticas de prazer à
prática cognitiva estabelecida nessa passagem abre uma nova possibilidade
de abordagem da questão. Em 83d, Sócrates não deixa dúvidas, “são
afecções” desse tipo que irão “encadear” cada vez mais estreitamente a alma
ao corpo. De modo que “cada prazer ou cada dor” funciona como “pre-
gos” que “prendem” a alma ao corpo, “fixando-a nele” e dando a alma uma
“forma corporal”, “a ponto de fazer com que ela tome por verdadeiro tudo
o que o corpo afirma ser”.
Esse processo de “somatização” da alma, quando ela “se conforma às
opiniões do corpo, ao seu modo de vida e à sua dieta”,17 confunde-se com o
processo de contaminação, e tem como resultado prático a alma “infectada”,
excluída da conexão com o que é “puro” e “único em sua forma”.18 São,
17
KAHN, C. op. cit., p. 88.
18
Fédon, 78e: “a alma assemelha-se ao divino, ao imortal e ao inteligível de forma única e
indissolúvel ao sempre semelhante a si mesmo. O que é humano, mortal multiforme,
ininteligível, sujeito a dissolução e que mais se assemelha ao corpo”.

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72 portanto, os prazeres e apetites que exercem sobre a alma sua magia.19 Um
feitiço que se desenvolve na unicidade intransferível de cada “desmotério”-
Platão: o Mundo, o Corpo e o Mal

indivíduo. Mesmo desqualificado filosoficamente, esse “feitiço” acaba por


atribuir um valor “cognitivo” a essa “desmoterização” da alma, pois a filo-
sofia opera sobre a alma o “desencadeamento”, nos dois sentidos do termo:
“quando a filosofia toma posse de uma alma, ela está grudada nele” (82e).
Nessa situação, em que ela é obrigada a examinar “todas as coisas que são
verdadeiramente”, não por si mesma, mas através do ponto de vista desse
cárcere. O ponto de vista da prisão contrapõe-se diretamente à filosofia e,
em relação à qual é definido como “a mais completa ignorância” . Esse ponto
de vista do corpo constitui, na verdade, uma máthesis, um saber, ainda que
subversivo, e o amigo do corpo, o philosômatós, torna-se, por conseqüên-
cia, o maior inimigo das Formas.20
O ponto mais importante da exposição de Sócrates, nessa passagem,
vem na seqüência: depois de ter fundado ontologicamente a possibilidade
de um perspectivismo hedonista – que traz à luz para combater – Sócrates
revela o caráter mais surpreendente e “terrível” dessa prisão, que “só a filo-
sofia pode discernir”: essa prisão é obra dos apetites e é construída de tal
forma que “o encadeado” colabora, o máximo que pode, “com o seu pró-
prio encadeamento” . Há que se chamar a atenção, aqui, para o fato de o
encadeado em questão ser a alma e de que esse papel da alma de colabora-
dora do corpo indica a transformação de sua natureza em uma segunda
natureza perpassada pelo elemento corporal. Aqui, enfim, podemos encon-
trar o elo perdido que supõe os múltiplos efeitos do mal: o apagamento entre
as fronteiras entre o corpo e alma e entre o sensível e o inteligível.

[recebido em novembro de 2005]

REFERÊNCIAS
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Burnet.Oxford:Oxford University at Clarendon Press, 1944.
CHERNISS, H. “The Philosophical Economy of the Theory of Ideas.” in VLASTOS,
G. Plato I . Notre Dame: University Press, 1978, 16-27pp.
______. The Sources of Evil According to Plato in VLASTOS,G. PlatoII. Notre Dame:
University Press,1978,244-258pp.

19
GOSLING,.J.C.B. e TAYLOR, C. The Greeks on Pleasure. Oxford: Clarendon Press,
1984, 191p.
20
No Sofista, 246a-b.

HYPNOS
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CORNFORD, F.M. Plato’s Cosmologie. London: Routledge & Kegan Paul, 1952. 73
FRÈRE, J. Le Désir de L’Être. Paris: Les Belles Lettres, 1981, p. 462

Fernando Muniz
FRIEDLANDER, P. Plato. Translated by Hans Meyerhoff. 3 vol. London: Routledge
& Keagan Paul, 1962.
GREENE,W. Moira. Fate, Good, and Evil in Greek Thought. Gloucester:Peter Smith,
1968, 450p.
GRUBE,G. Plato’s Thought. Indianapolis: Hackett, 1980.
GUTHRIE, W.C.K. A History of Greek Philosophy IV: The Man and his Dialogues –
Earlier Period. Cambridge: University Press, 1978, 603p.
_____. A History of Greek Philosophy V: Later Plato and The Academy. Cambridge:
University Press, 1978, 603p.
HACKFORTH, R. Plato’s Philebus. Translated with an Introduction and Commentary.
Cambridge: CPU, 1972, 143p.
KAHN, C. Plato’s Theory of Desire in Review of Metaphysics 41 (september 1987) 77-
103pp.
O’BREIN, D. Theories of Weight in The Ancient World. Vol. Two: Plato Weigth and
Sensation. Paris: Les Belles Lettres, 1984, 463p.
VLASTOS, G. Platonic Studies. Princeton: Princeton University Press, 1960, 478p.

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ALGUNOS ASPECTOS DE LA CRÍTICA PLATÓNICA AL ARTE
IMITATIVO – LA ANALOGÍA ENTRE EL SOFISTA Y EL PINTOR *

SOME ASPECTS OF PLATO’S CRITICISM OF IMITATIVE ART


THE ANALOGY BETWEEN THE SOPHIST AND THE PAINTER
GRACIELA E. MARCOS DE PINOTTI**

Resumo: No Sofista, 234b-c, Platão descreve o sofista como um criador de


“imagens faladas”. Para esclarecer essa arte, é proposta uma analogia entre a
pintura e a sofística. A analogia tem sido criticada por implicar assimilação
ilegítima entre imagens visuais e faladas, ou entre objetos da visão e do enun-
ciado/crença. De qualquer forma, tento demonstrar neste artigo que é possí-
vel uma interpretação diferente.
Palavras-chave: Sofista; imagens; mímesis.

Abstract: In the Sophist 234b-c, Plato attempts to characterize the sophist as


a maker of "spoken images". This analogy between painting and sophistry,
which the dialogue proposes in order to clarify the art practiced by sophists,
has been criticized as involving an illegitimate assimilation of visual to spoken
images, or of the objects of seeing to those of stating/believing. However, as
I try to demonstrate in this paper, a different interpretation is possible.
Key-words: Sophist; Images; Mímesis.

En Sofista 235e, en el marco de la búsqueda de una definición del perso-


naje de este nombre, Platón traza una analogía entre el sofista y el pintor.
De fugaz aparición en Protágoras 312d, esta analogía reconoce un antece-
dente en República X, en el contexto de la crítica a la poesía imitativa, don-
de se establece un paralelo en principio similar, esta vez entre el poeta y el
pintor. En ambos casos, Platón dirige sus dardos contra un tipo de arte
imitativo, i.e. el arte que produce imágenes, sean visuales, como es el caso
de las imágenes debidas a la pintura, o, como da en expresar en Sofista 234c6,

*
Este artículo amplía y desarrolla cuestiones presentadas en un trabajo más breve, leído
en el XIIIº Congreso Nacional de Filosofía celebrado en Rosario (Argentina) en noviembre
de 2005.
**
Graciela E.Marcos de Pinotti é professora na Universidade de Buenos Aires e investiga-
dora do Conicet, Argentina. E-mail: greemarcos@gmail.com

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“imágenes habladas” (eídola legómena), las que tienen por artífices a poetas 75
y a sofistas y cuyo dominio propio son los discursos. En este segundo caso,

Graciela E. Marcos de Pinotti


el blanco de la crítica es, en efecto, un cierto tipo de discurso, un modo de
decir que distorsiona lo que las cosas son sin otro fin que hechizar y per-
suadir al auditorio, lo que no impide a Platón comparar estos efectos a los
que ejercen las imágenes visuales sobre un espectador inexperto, o mal si-
tuado. Su comparación podría parecer, a primera vista, poco afortunada.
De hecho, la analogía entre imágenes visuales e imágenes habladas ha
sido puesta en tela de juicio sobre la base de que envolvería una asimilación,
ilegítima, entre el plano perceptual y el del lenguaje. Se ha intentado
descalificarla aduciendo p.e. que convierte a las imágenes verbales en imá-
genes “pintadas en palabras” y a las imágenes pictóricas en falsas, lo que sería
absurdo porque sólo las primeras poseen un valor de verdad. O que envuelve
un dudoso paralelismo entre acciones tan diferentes como ver y decir, como
si fueran de la misma naturaleza.1
La cuestión, empero, merece cierta atención. El propósito de mi traba-
jo es mostrar que la analogía entre pintura y sofística ofrecida en Sof. 231b-
236c es una buena analogía, no sólo válida sino singularmente fecunda.
Captar su verdadero sentido requiere, sin embargo, que apartemos la aten-
ción de los objetos producidos por ambos tipos de técnicas imitativas, a sa-
ber, pinturas y enunciados (lógoi), para concentrarla en las acciones o pro-
cesos que llevan a ellos: pintar y decir. Sólo entonces el punto de vista de la
captura (ktésis) o aprehensión de algo que puede ser sustituido por el de la
producción (poíesis) en tanto llevar a ser lo que antes no era,2 cambio de
rumbo metodológico llevado a cabo en Sofista, que además de posibilitar a
Platón un tratamiento acabado de la mímesis, da paso a la solución de bue-
na parte de los problemas que le plantea el intento de refutar al sofista,
describiéndolo como artífice de falsedades.
El tránsito desde el género del arte adquisitivo (ktetiké téchne) al produc-
tivo (poietiké téchne), giro metodológico crucial en la búsqueda de una defi-
nición del sofista a través del método de división dicotómica, lo concreta
el Extranjero eleático, portavoz de Platón, hacia Sof. 235b-d, tras una serie
de intentos que no consiguen exhibir la verdadera naturaleza, productora

1
Tal la crítica que dirige expresamente a la analogía platónica W. BONDESON, “Plato’s
Sophist: Falsehoods and Images”, Apeiron VI (1972), 2, pp. 1-6, cuya interpretación discutiré
más adelante. Se trata aparentemente de una crítica justificada y ceñida a la letra del texto
platónico, de ahí mi interés en examinarla y ensayar, en la medida de lo posible, una lectura
diferente del símil que brinda Platón.
2
Cf. Sof. 219a8-b6, 265b8-10, Symp. 205b8-c1.

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76 más bien que apresora, del quehacer sofístico. La dicotomía adquisición –
producción (ktêsis – poíesis) preside desde un comienzo la búsqueda,3 pero
Algunos aspectos de la crítica platónica al arte imitativo - La analogía entre el sofista y el pintor

lo cierto es que la definición a la que se aspira se alcanza únicamente tras


abandonar el género adquisitivo para incursionar en el género productivo,
más específicamente el de la producción de imágenes en que consiste la
imitación (mímesis). Sugeriré que un giro similar debemos cumplir noso-
tros, los lectores, para aprehender el verdadero sentido de la analogía que
Platón nos brinda, la cual no apuntaría primariamente a parangonar sen-
dos tipos de imágenes, es decir, los objetos resultantes de ambos tipos de
imitaciones, sino el acto mismo de producirlas. La división clave de Sofista,
punto en el que nunca se insistirá lo bastante, es, en efecto, una división entre
dos tipos de producción de imágenes (dúo ... eíde tês eidolopoiikês, Sof. 236c6),
y a ella debe dirigirse la atención.4 Únicamente al concentrarnos en la poíesis
en que Platón hace consistir la labor imitativa de pintores y sofistas, esto
es, en la producción de imágenes, sean visuales o habladas, respectivamen-
te pintar y hablar, antes que en sus productos y/o en las operaciones diri-
gidas a captarlos –ver y oír–, la analogía entre el pintor y el sofista revela
su verdadero sentido.
Dividiré mi examen en dos secciones. En la primera me referiré breve-
mente a la comparación de Rep. X, 595ess. entre el pintor y el poeta, por
constituir un antecedente de la que Platón ofrecerá luego en Sofista. De ésta
me ocuparé, más extensamente, en la sección siguiente. No insistiré en los
indudables puntos de contacto entre ambos símiles, sino que me interesa
subrayar ciertas diferencias en los planteos de uno y otro diálogo que, a mi
entender, reflejan perspectivas diferentes acerca de la mímesis. Si mi inter-
pretación sobre este punto es correcta, la invitación de Sof. 235b-d a aban-
donar el género adquisitivo y desplazar la búsqueda, cuando se trata de dar
con la naturaleza de la imitación, al género productivo, envuelve la supera-
ción del enfoque sobre el arte imitativo que el propio Platón ha privilegia-
do en República X.

3
Cf. Sof. 219a-c, en que se presenta esta dicotomía en el contexto de la búsqueda de la
definición de la pesca con caña, que se propone a modo de mera ejercitación propedeútica.
Seguidamente se aplica tal dicotomía a la búsqueda de una definición del sofista, obteniéndose
seis definiciones, la mayoría de las cuales hacen de él un adquisidor. Un análisis detallado
de las mismas se hallará en V. Li CARRILLO, “Las definiciones del sofista”, Epistéme (1959-
1960), pp. 83-184.
4
Por otra parte, ambas formas de producción de imágenes (eídola), como veremos, lo son
de copias (eikónes) y de apariencias (phantásmata), pudiendo ser cada una de ellas tanto
imágenes visuales como habladas.

HYPNOS
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I 77

Graciela E. Marcos de Pinotti


En la sección inicial del libro X de República (595a-602b), Platón retoma
con nuevos bríos su crítica a la poesía imitativa, iniciada en libros anterio-
res.5 Como aclaré arriba, no pretendo analizar en todos sus pormenores esta
crítica, sino llamar la atención sobre algunas diferencias significativas con
la que más tarde dirigirá Sofista a la imitación. Por lo demás, me ocuparé
sobre todo del paralelismo que Platón establece entre pintura y poesía, en
tanto puede echar luz sobre la analogía entre producción de imágenes vi-
suales y habladas cuyo sentido me interesa sobre todo dilucidar.
Comencemos por aclarar que la comparación que establece República
X es entre imágenes visuales e imágenes sonoras, o auditivas. Así p.e. en Rep.
X, 595b, tras anunciar que en la pólis ideal no habrá cabida para la poesía
imitativa, Platón funda su exclusión en que las obras de los trágicos y los
demás poetas imitativos causan estragos en quienes las “oyen” (tôn
akouónton, 595b6) a menos que posean como antídoto, como phármakon,
el conocimiento de su verdadera naturaleza. Hay aquí una referencia inequí-
voca a la poesía en tanto palabra hablada con la que se entra en relación a
través del oído, y a lo mismo apunta Platón más adelante, cuando se refie-
re al momento en que “oímos” (akroómenoi, 605c10) cómo Homero u otro
de los trágicos imita a alguno de sus héroes.6 Ahora bien, las imágenes so-
noras o auditivas debidas al poeta imitador son imágenes cuyo vehículo son
los discursos (lógoi), justamente las que en Sof. 234c6 se describirán en tér-
minos de imágenes “habladas” (legómena).
En el pasaje de República que comentamos, en cambio, el énfasis está
puesto en la operación a través de la cual se capta el discurso del poeta an-
tes que en el acto de decir que lo produce. Esta diferencia explica a su vez
que las imágenes en cuestión, justamente en tanto imágenes oídas, sean re-
legadas al plano sensorial antes que al discursivo, plano al que realmente
pertenecen y que Platón transitará resueltamente en Sofista. Tales diferen-
cias, a mi modo de ver, se explican en virtud de que en esta sección del fi-
nal de República, las obras del arte imitativo son tomadas como objetos que
se ofrecen a nuestros sentidos, a través de los cuales son aprehendidos. Es
decir, se presupone que las imágenes debidas al poeta se captan a través del

5
Sobre el diferente tratamiento de los libros II-III, en que Platón critica cierta poesía, y el
que ofrecerá el libro X, en que toda poesía es rechazada, véase P. HWANG, “Poetry in Plato’s
Republic”, Apeiron XV (1981) 1, pp. 29-37.
6
Sobre el dominio de la comunicación oral en el marco cultural en que se sitúa la crítica
platónica a la poesía véase E. HAVELOCK, Preface to Plato, Harvard, 1963, espec. cap. III.

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78 oído, del mismo modo que las imágenes pictóricas son aprehendidas por la
vista. De aquí a asimilar unas y otras como si fueran de igual naturaleza,
Algunos aspectos de la crítica platónica al arte imitativo - La analogía entre el sofista y el pintor

no hay más que un paso. Habrá que esperar al Sofista para reformular la
cuestión. La ocasión la proporcionará la búsqueda de una definición del
sofista, enfocada desde el comienzo como una definición del arte que el
sofista practica. Es en este marco, que examinaré luego, donde se establece
la analogía que nos interesa entre la labor imitativa de sofista y pintor.
Un segundo rasgo del tratamiento ofrecido en República X que no es aje-
no, posiblemente, a esta perspectiva que privilegia el objeto en lugar de la
práctica que conduce a él, es el procedimiento metodológico empleado a la
hora de explicar qué es la imitación. En Rep. X, 596a, Sócrates propone dilu-
cidarlo apelando al procedimiento de búsqueda de “lo uno sobre lo múltiple”,
el cual conduce a reconocer, frente a una “multitud de camas y una multitud
de mesas”, que “las ideas relativas a esos muebles son dos: una idea de cama y
otra idea de mesa”.7 La problemática afirmación de la existencia de Ideas de
artefactos8 es aquí ni más ni menos una consecuencia de adoptar dicho pro-
cedimiento, considerablemente diferente del que regirá, en Sofista, la búsqueda
de una definición del personaje homónimo.9 Allí, tanto como el poeta de
República, el sofista terminará siendo parangonado al pintor y caracterizado,
también, como imitador, pero su definición se alcanzará a través de reunio-
nes y divisiones dirigidas a caracterizar su quehacer más propio, antes que a
poner énfasis en la precariedad ontológica de la obra imitativa.

7
Rep. X, 596a9-b4. Véase también la referencia a un eîdos de lanzadera en Crátilo 389b1-6.
8
Algunos como Jenócrates negaban que hubiera tales Ideas de productos artificiales.
Aristóteles acuerda en ello, por entender que la causa del artefacto es su representación en
la mente del artífice. Adviértase que si bien la crítica del libro X de República toma sentido
a la luz de la teoría de las Ideas, y como tal envuelve un aspecto ontológico que la distingue
de las críticas expuestas en los libros anteriores, las únicas ideas que se mencionan son aquellas
cuya existencia, hasta donde sabemos a partir del testimonio aristotélico, los platónicos
tuvieron dificultad en admitir. Sobre el problema de la existencia de ideas de artefactos, una
exposición muy completa de las distintas interpretaciones que ha merecido la afirmación
aristotélica de que fueron rechazadas por los platónicos se hallará en G. FINE, On Ideas.
Aristotle’s Criticism of Plato’s Theory of Forms, Oxford, Clarendon, 1993, capítulo 6, pp. 81-88.
9
En lugar de abstraer los rasgos comunes a una multiplicidad homónima, lo cual presupone
que los nombres que utilizamos en el lenguaje pueden considerarse indicadores fiables de
las realidades que les subyacen, el procedimiento de reunión y división empleado por Platón
en Sofista y en Político envuelve una mayor cautela en el uso del lenguaje y, a la hora de
definir, invita a discriminar, a desplegar los elementos diversos que se presentan bajo la
envoltura engañosa de la unidad del nombre. En este sentido son particularmente claras las
páginas del comienzo de Sofista, donde la contraposición que se establece entre génos y ónoma
invita a los interlocutores a no fiarse excesivamente de los nombres. Cf. Sof. 217a3-b3, 255c8-
10, y también Pol. 262c10-c6 y 261e1-7.

HYPNOS
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Así en el pasaje de República que comentamos, la obra del artesano 79
manual, p.e. la cama que fabrica, es considerada de suyo algo oscuro con

Graciela E. Marcos de Pinotti


relación a la verdad, en tanto que la del pintor imitativo, p.e. la pintura de
una cama, al concebirse como copia de una copia resulta triplemente aleja-
da de lo real (trítos apò tês aletheías, Rep. X 599d2).
El pintor imitativo de Rep. X se presenta como una suerte de prestidi-
gitador capaz de “fabricar”10 no solo los objetos debidos al artesano, sino
“todo cuanto brota de la tierra y produce todos los seres vivos, incluido él
mismo, y además de esto, la tierra y el cielo y los dioses y todo lo que hay
en el cielo y bajo tierra en el Hades”.11 Se trata, claro está, de una fabrica-
ción de apariencias y no de cosas existentes en verdad (phainómena, ou ónta,
Rep. X 596e4), por lo que la crítica a la obra del arte imitativa toma la for-
ma de una crítica en nombre de la verdad contra la apariencia.12 Hay en
este contexto una ambigüedad, a la que Platón posiblemente no es ajeno,
en el uso de términos tales como phainómenon o phántasma, que designan

10
No es del todo claro que el imitador sea, después de todo, artífice y hacedor, al menos
según Rep. X, 597d-e, en que Platón sitúa al imitador o pintor en el último lugar de una
gradación en la que dios ocupa el primer rango y el carpintero el segundo. Podría llegar a
interpretarse que en este contexto “sólo los dos primeros son artífices o demiurgos” –así p.e.
J. Manuel Pabón y M. Fernández Galiano, cf. nota ad loc. X, 597e4, en Platón, La Repúbli-
ca. Edición bilingüe, trad., notas y estudio preliminar de, Madrid, Instituto de Estud Políti-
cos, 1969, tomo III. Sin embargo, líneas después el imitador es caracterizado inequívocamente
como fabricante de imágenes (eidólou demiourgós, 599d4), en términos que reaparecerán en
la definición que Platón ofrecerá de él en Sofista. La vacilación, por decirlo así, podría deberse
a que lo producido o fabricado por el imitador es en definitiva una apariencia (phántasma),
algo que no es verdaderamente, y resulta en cierto modo contradictorio atribuir a alguien
la fabricación de algo que “no” es. Una dificultad de este tipo se plantea en Sof. 236d9-237a1,
tras intentar caracterizar al personaje de este nombre como artífice de falsedades,
caracterización que no podrá prosperar hasta una vez demostrada la realidad del no ser a
título de alteridad. Sobre este importante pasaje, que lleva a interrumpir momentáneamente
la definición del sofista -de “Platon, son ‘père Parménide” et l’heritage sophistique”, en M.
FATTAL (éd.), La philosophie de Platon. Tome II, Paris, L’Harmattan, 2005, espec. pp. 240-
243.
11
Cf. Rep. X, 596c y su paraledo casi exacto en Sof. 234a, donde Platón se refiere también
al imitador como alguien capaz de producir, mediante un único arte, todas las cosas: no solo
hombres, animales y plantas, sino también productor “del mar, del cielo, de la tierra, de los
dioses y de todo lo que hay”.
12
Mientras que el fabricante de camas no fabrica la cama existente por sí (hò ésti kíne) sino
una cama determinada (klínen tiná), que como tal resultará también en cierta medida algo
oscuro en comparación con la verdad, el imitador hace algo más alejado aún y más oscuro.
Resultan así tres clases de camas: la que existe en la naturaleza, fabricada por la divinidad, la
que hace el carpintero y finalmente la que hace el pintor. Divinidad, artesano manual, pin-
tor, son así “los tres maestros de estas tres clases de camas” (Rep. X, 595b).

HYPNOS
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80 tanto a los productos que resultan de la práctica imitativa13 como a lo imi-
tado,14 es decir, el modelo a imitar, que como tal preexiste al imitador.15
Algunos aspectos de la crítica platónica al arte imitativo - La analogía entre el sofista y el pintor

Otra será la perspectiva de Sofista, donde la técnica imitativa no será


situada ya por debajo de la técnica que fabrica un objeto, sino que una y
otra quedarán en un mismo nivel en tanto especies del género de la produc-
ción humana.16 Esta última se escinde así en producción de cosas reales, p.e.
la casa fabricada por el constructor, y producción de imágenes, p.e. la casa
representada por el pintor. Reaparece al final de Sofista, pues, la distinción
del libro X de República entre arte útil y arte imitativo, pero con una valo-
ración diferente, como si el interés primario de Platón no fuese ya distin-
guir la imitación de la fabricación,17 sino subrayar el carácter productor
común a ambas. Ni el producto del primero es considerado, en rigor, algo
oscuro con relación a la verdad, como enfatizaba República, ni el objeto del
segundo, al menos no explícitamente, se sitúa en un rango ontológico to-
davía más degradado que el anterior.
En Rep. X, 598b, lo dicho a partir del ejemplo de la pintura se hace
extensivo a la imitación en su conjunto, subrayándose cuán lejos está el arte
imitativo de la verdad y cómo su capacidad de representar todo es
inversamente proporcional a lo que alcanza, “muy poco de cada cosa”, nada
más que una imagen (eídolon). El siguiente paso consistirá, en 598d, en apli-
car lo dicho a la poesía, como si se tratase de un caso exactamente análogo
al de la pintura.18 El poeta, nos dice entonces Platón, es imitador de imáge-

13
Cf. Rep. X, 596e4: phainómena; 596e11: phaninoménen; 599a2: phantásmata; 601b10:
phainoménou. Tal es también el sentido de eídolon en 599a7.
14
Cf. Rep. X, 598be: phainómenon.
15
Sobre esta distinción cf. KEULS, E., Plato and Greek Painting, Leiden, 1978, Brill, p.
113.
16
Cf. Sof. 266c-d, en el marco de la séptima definición del sofista con que se cierra el diálo-
go. Platón, tras distinguir la producción en divina y humana, divide cada una de éstas en
producción de originales y producción de imágenes.
17
Uso aquí ‘fabricación’ en un sentido restringido, aplicable a la técnica del artesano ma-
nual pero no a la fabricación de apariencias propia del imitador. Sobre la dificultad que
plantea caracterizar al imitador como artífice y hacedor véase supra n. 10.
18
De hecho Platón describe aquí al poeta en términos que hacen de él una suerte de pin-
tor, afirmando que las imágenes que produce persuaden únicamente a quienes “juzgan por
los colores y las formas (ek tôn chromáton dè kaì schemáton theoroûsin, Rep. 601a 2-3)”. Llama
la atención, por cierto, la profusión de términos ligados a lo visual cuando de lo que se tra-
ta de describir un cierto tipo de discurso. En este marco la poesía imitativa, en un lenguaje
que evoca claramente el empleado en Gorgias, es presentada como “antístrofa” (605a9) de
la pintura. Sobre la afinidad entre la crítica a la imitación en República y la crítica de Gorgias
a la retórica véase E. BELFIORE, “Plato’s Greatest Accusation against Poetry”, Canadian
Journal of Philosophy. Supplementary Volume IX (1983), espec. p. 47. n. 10.

HYPNOS
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nes de virtud y de todo aquello sobre lo que compone sin tener conocimien- 81
to. Y así como un pintor hábil puede engañar a observadores inexpertos,

Graciela E. Marcos de Pinotti


“niños y hombres necios” (paidás ge kaì áphronas anthrópous, Rep. X 598c;
toùs anoétous tôn néon paídon, Sof. 234b8) que sólo juzgan por los colores y
las figuras, mostrándole desde lejos representaciones de objetos de los que
aparenta ser conocedor, así también el poeta es capaz de hechizar a quie-
nes juzgan por las palabras, imitando lo que parece bello a la mayoría.19
Hasta aquí la analogía entre pintura y poesía en República.

II
Pasemos por fin al tratamiento que ofrece Sofista de la imitación, que
Platón define ahora como “producción de imágenes” y de la que distingue
dos especies: una produce copias o semejanzas (eikónes), la otra, meras apa-
riencias o simulacros (phantásmata). La analogía que nos interesa entre pin-
tura y sofística se inserta en el marco de esta distinción cuyo núcleo, como
he adelantado, es diferenciar esos dos tipos de producción de imágenes, sean
éstas visuales como habladas.
Es importante aclarar que la mencionada división se traza en ocasión
del séptimo intento de definir al sofista a través del procedimiento de re-
unión y división, tras seis definiciones que resultan insatisfactorias. Cuan-
do en un comienzo se sitúa su quehacer dentro del género del arte adquisi-
tivo, el sofista aparece de tantas maneras que se hace necesario descubrir
dónde confluyen todos los conocimientos y habilidades que presuntamen-
te posee. Es la quinta definición, finalmente, la que delata su naturaleza: el
sofista es un contradictor (antilogikós, Sof. 232b6), posee un arte que se pre-
tende una capacidad suficiente para discutir sobre cualquier asunto, pero
puesto que es imposible que un hombre sepa todo, la suya no será una sa-
biduría genuina sino puramente aparente. Adjudicarle un pseudosaber que
produce en sus discípulos la ilusoria creencia en la propia sabiduría hace que
la adquisitividad, base de todas las divisiones realizadas hasta allí, comience
a revelarse inesencial en lo tocante a la sofística, desplazándose la investiga-

19
Me ocupo en detalle de este pasaje en “Mímesis e ilusiones de los sentidos en República
X. Observaciones a la crítica de Aristóteles a la phantasía platónica”, que aparecerá
próximamente en Méthexis XVIII (2005). Dicho trabajo a su vez amplía y desarrolla algunas
cuestiones presentadas en “Platón y el antídoto contra las ilusiones de los sentidos”, leído
en el IV Seminario Internacional de filosofía Antigua celebrado en Medellín en setiembre
de 2004.

HYPNOS
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82 ción, a la altura de 235b, desde el género adquisitivo hacia el productivo.
La técnica del sofista imitador, punto éste que Platón se preocupa por su-
Algunos aspectos de la crítica platónica al arte imitativo - La analogía entre el sofista y el pintor

brayar, no consistirá finalmente en una adquisición (ktêsis) o captura de algo


dado, sino en una producción (poíésis), entendida como la capacidad de lle-
var a ser algo que previamente no era.20
Este desplazamiento hacia el género productivo es el que da lugar al
paralelo que nos interesa entre el sofista y el pintor, quienes mediante sus
artes respectivas y por mero juego se pretenden capaces de hacer y realizar
todas las cosas. Ambos son “imitadores de las cosas que son” (mimetès tôn
ónton, Sof. 235a1), embaucadores y fabricantes del tipo especial de imáge-
nes (eídola) que son los simulacros o apariencias (phantásmata). Platón se
apresura a dividir el género de la producción de imágenes en producción
de copias o semejanzas (eikónes) y producción de apariencias o simulacros
(phantásmata). La primera (eikastiké téchne) fabrica réplicas fieles a las pro-
porciones del modelo que imitan (katà tàs toû paradeígmatos summetrías, Sof.
235d7-8), la segunda (phantastiké téchne) deja de lado lo verdadero para dar
a sus productos no las proporciones reales (alethinèn summetrían, 235e7),
sino aquellas que los hacen parecer bellos.21 Producir este segundo tipo de
imágenes conlleva la deformación intencional de las características del ori-
ginal imitado, introduciendo elementos de engaño e ilusión y operando una
distorsión que únicamente la confrontación con el original pondría al des-
cubierto. La única diferencia es que el artista crea imitaciones y homónimos
de las cosas que son sirviéndose de la técnica de la pintura (Sof. 234b6-7),
mientras que la técnica del sofista atañe a los discursos (perì toùs lógous, 234c2;
toîs lógois, c5), esto es, produce “imágenes habladas” (eídola legómena, c6)
o, como dirá también Platón, apariencias en el dominio de los discursos (en
toîs lógois phantásmata, 234d1). Con estas salvedades, las falsedades, de cuya
producción se intenta acusar al sofista, resultan comparables a las malas
pinturas.
W. Bondeson, en un artículo en el que discute y objeta esta analogía,
altera desde el vamos sus términos cuando afirma que “las imágenes
habladas”, i.e. las imágenes habladas sin más, “distorsionan al modo en que

20
Sobre la noción platónica de poíesis cf. supra n. 2.
21
Sobre el problema de la aplicabilidad de la distinción entre eikástiké y phantastiké a la
pintura, que a diferencia p.e. de la escultura, sólo puede simular profundidad y en tal senti-
do no puede ser sino una phantastiké téchne, cf. E. KEULS, Plato and Greek Painting, Leiden,
Brill, 1978, p. 114 y también M. VILLELA-PETIT, “La question de l’image artistique dans
le Sophiste”, en P. AUBENQUE ET M. NARCY (éds.), Études sur le Sophiste de Platon,
Bibliopolis, 1991, pp. 74-75.

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lo hacen las malas imágenes pintadas”,22 omitiendo que Platón deja abierta 83
la posibilidad de que las imágenes, sean pintadas como habladas, ostenten

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el carácter de copias o semejanzas (eikónes) capaces de reproducir fielmen-
te aquello que imitan. Aun cuando todo discurso, incluso el que llamaría-
mos verdadero, es una imagen hablada comparable, en cierto sentido, a una
pintura, la división de Sofista entre dos tipos de producción de imágenes,
una que produce copias y otra que produce apariencias, eikónes y
phantásmata, impide asimilar sin más cualquier tipo de producción de imá-
genes habladas a la de una mala pintura.
Es cierto que en Sof. 234c5 “eídola legómena” alude a las imágenes pro-
ducidas por el sofista, presumiblemente lógoi falsos que, al modo de las malas
pinturas, distorsionan lo que pretenden representar. Sin embargo, tan pron-
to como Platón diferencia, en el seno del género de la producción de imá-
genes, la producción de copias de la producción de apariencias, queda cla-
ro que sólo estas últimas distorsionan. La expresión “imagen hablada” de-
signará, pues, a todo lógos, al verdadero no menos que al falso, sin que sea
correcto implicar – como hace Bondeson – que toda imagen hablada
distorsiona a la manera de una mala pintura. Por otra parte, no hay que
olvidar que la distinción entre copias y apariencias, entre eikónes y
phantásmata, sirve al propósito de Platón de denunciar la falsedad del dis-
curso del sofista, cuya técnica no es más que una parodia de la del filóso-
fo.23 Dado que se trata de imágenes habladas, imágenes en el ámbito de los
discursos, el contraste entre producción de copias y producción de aparien-
cias encarna el contraste entre discurso verdadero y discurso falso, antes que
el contraste ontológico entre realidad y apariencia.24 A diferencia, en suma,
del planteo del libro X de República, el reconocimiento en Sofista de una
buena imitación, por decirlo así,25 una producción de imágenes habladas que
llamaríamos verdaderas, impide condenar toda forma de imitación.
22
Cf. BONDESON, ob. cit., p. 2.
23
Cf. A. PECK, “Plato’s Sophist: the symploké tôn eidôn”, Phronesis VII (1962) 1, p. 52.
24
Así p.e. N. GULLEY, “Plato’s Theory of Recollection”, Classical Quarterly IV (1954)
3, 4, p. 205 y A. PECK, “Plato’s Parmenides. Some Suggestions for its Interpretation. Part
II”, Classical Quarterly V (1954) 4, pp. 37 y 39. Sobre el explícito paralelo platónico entre la
verdad de los lógoi y la corrección de las imágenes cf. el comentario de R. PATTERSON a
Cratilo 430a10-d7 en Image and Reality in Plato’s Metaphysics, Indianapolis, Hackett
Publishing, 1985, pp. 112-113. Como bien observa este autor, también en Filebo 38c-39c
resulta natural a Platón extender los términos ‘verdadero’ y ‘falso’ a las imágenes. Sobre el
uso de la noción de imagen para explicar la naturaleza y función del discurso, es particular-
mente ilustrativo Critias 107b-d.
25
Con independencia de la distorsión que una imagen exhibe siempre respecto de su origi-
nal, sin lo cual dejaría de ser imagen para convertirse en otra cosa real, un doble, como

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84 En segundo lugar, aceptando que Platón está parangonando las malas
pinturas y las falsedades, de ello no se sigue que tengamos que llamar ‘fal-
Algunos aspectos de la crítica platónica al arte imitativo - La analogía entre el sofista y el pintor

sas’ a las malas pinturas, como pretende Bondeson para descalificar la ana-
logía. “¿En qué sentido una pintura puede ser una falsedad pictórica? Esto
equivale a preguntar en qué sentido una pintura puede llamarse falsa”, afir-
ma el autor. 26 Sin embargo, así como una mala pintura puede p.e. ser
desproporcionada o borrosa, sin que esto implique que una mala imagen
hablada, lo que llamaríamos una falsedad, tenga que ser a su vez
desproporcionada o borrosa, la analogía de Platón entre imágenes habladas
e imágenes pintadas se mantiene aunque las primeras admitan ser califica-
das falsas y las segundas no. Sólo se trata de aplicar la terminología propia
de cada área, acorde a la naturaleza, visual o hablada, de la imagen que esté
en juego en cada caso, sin que esta distinción invalide la analogía.27
El punto quizás más conflictivo del planteo de Bondeson lo constituye
su afirmación de que al mantener la analogía entre imágenes pictóricas e
imágenes habladas, los interlocutores de Sofista están equiparando dos ti-
pos de acciones bien distintas como lo son ver y decir. Dado que no se puede
sostener de ningún modo que cuando vemos lo que no es vemos algo falso,
en cambio sí es posible creer o decir algo y, sin embargo, que eso que cree-
mos o decimos sea falso, la analogía platónica quedaría invalidada. En este
punto, el autor se remite a Teeteto 188c-189b, donde se argumenta que así
como es imposible ver (oír, tocar, etc.) sin ver algo que es, es imposible
juzgar sin juzgar algo que es. La conclusión allí es que o bien juzgamos y
nuestro juicio, en tanto juzga algo que es, es verdadero, o bien no hay jui-
cio. Hallamos que una conclusión inaceptable como lo es la de que no es
posible juzgar falsamente resulta, pues, de un paralelismo, a todas luces ile-
gítimo, entre verbos de percepción tales como ver, u oír, y un verbo de
acción intelectual falible como juzgar (doxazein), al que podría añadirse una
larga lista de verbos tales como decir, creer, etc. sin que cambie
sustancialmente el sentido del argumento. Un paralelismo de este tipo está
envuelto, concluye Bondeson, en la analogía de Sofista entre imágenes vi-
suales e imágenes habladas, impidiendo una distinción nítida entre lo que

ilustra con claridad Platón en Crátilo 432b4-d2. Sobre este pasaje véase PATTERSON, ob.
cit., pp. 38-39. Sobre su aplicación al problema de la falsedad cf. N. DENYER, Language,
Thought and Falsehood in Ancient Greek Philosophy, London & N. York, 1991, pp. 80-82.
26
Cf. BONDESON, ob. cit., p. 2.
27
Debo esta observación, al igual que la que figura infra en n. 35, a Cecilia Tilli, con quien
tuve la suerte de discutir buena parte de las objeciones a la interpretación de W. Bondeson
que desarrollo en estas páginas.

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vemos y lo que decimos o creemos, sin la cual – subraya aquí con razón – 85
no es posible dar una respuesta satisfactoria al problema de la falsedad.

Graciela E. Marcos de Pinotti


Hay aquí varias cuestiones que merecen discusión. En primer térmi-
no, con relación al núcleo del argumento ofrecido en Teeteto 188b-189c, es
cierto que la raíz del problema de no poder dar cabida a la falsedad es la
analogía que allí se establece entre ver y juzgar. Se trata de una analogía,
sin embargo, de raigambre protagórica y que Platón mismo está lejos de
suscribir,28 de ahí que nos ofrezca un argumento que muestra que el pre-
sunto paralelismo entre ver y juzgar (decir, etc.) tiene consecuencias inacep-
tables.29 En efecto, tan contradictorio como decir ‘vi a Sócrates pero él no
estaba allí’ lo sería, en la perspectiva mencionada, decir ‘juzgo (digo, creo,
etc.) esto, pero esto no es así’. ‘Vi a Teeteto’ – ilustra R. Robinson – impli-
ca que Teeteto estaba allí, de lo contrario sólo se habrá creído verlo. Así
usamos los verbos de percepción, no hablamos de ‘ver falsamente’ sino de
‘parecer ver’.30 Claro está que si empleásemos los verbos de acción intelec-
tual tal como empleamos los de percepción, el fracaso de un juicio o de un
enunciado falso en referirse a un hecho existente se interpretará como un
intento vano de juzgar o hablar.31
En esta dirección avanza la argumentación que Platón despliega en
Teeteto 188bss., en cuyo marco el acto de juzgar (doxázein) queda reducido
a captación inmediata de hechos, o fragmentos de realidad. O bien juzga-
mos y damos con algo que efectivamente es, que se ofrece directamente a

28
Sobre Platón, Teeteto 188c-189b, me remito a G. MARCOS DE PINOTTI, Platón ante
el problema del error. La formulación de Teeteto y la solución de Sofista, Buenos Aires, Fundec,
1995, cap. II, espec. pp. 61-75, donde analizo en detalle el argumento a la luz tanto de la
definición de conocimiento como sensación que se propone al comienzo del diálogo, como
de la posición de Protágoras, que Platón asocia a dicha definición.
29
Toda la discusión sobre el juicio falso en Teeteto 188a-200c, en rigor, consiste en una serie
de argumentos que intentan infructuosamente dar razón del mismo, partiendo de premisas
que muy improbablemente Platón suscribiría, y que de ese modo resultan indirectamente
refutadas. Si bien esa sección del diálogo tiene la apariencia de una digresión, varios autores
han argumentado a favor de su conexión con la discusión sobre el conocimiento que recor-
re el diálogo en su conjunto. En este sentido son particularmente recomendables los trabajos
de G. FINE, “False Belief in the Theaetetus”, Phronesis XXIV (1979) 1, pp. 70-80, y de H.
BENSON, “Why is there a Discussion of False Belief in the Theaetetus”, Journal of the History
of Philosophy XXX (1992) 2, pp. 171-199.
30
Cf. R. ROBINSON, “Forms and Error in Plato’s Theaetetus”, Philosophical Review LIX
(1950) 1, pp. 22-23.
31
Quien habla falsamente, como da en expresar Crátilo en el diálogo de este nombre, sólo
“emite ruidos, agitándose a sí mismo en vano, como si agitara un objeto de bronce
golpeándolo” (Crátilo 430a4-5).

HYPNOS
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86 la experiencia de nuestros sentidos, o no juzgamos en absoluto, ya que es
imposible juzgar sin juzgar algo que es. Se concluye que “no es posible,
Algunos aspectos de la crítica platónica al arte imitativo - La analogía entre el sofista y el pintor

entonces, juzgar lo que no es, ni acerca de las cosas que son, ni tampoco en
sí mismo y por sí mismo”.32
Ahora bien, coincido con Bondeson en que la solución al problema que
representa no poder dar cabida a la falsedad requiere establecer una fronte-
ra nítida entre lo que vemos y lo que decimos o creemos, de modo que lo
dicho o creído pueda ser calificado ‘verdadero’ o ‘falso’ en un sentido en
que estos términos no son aplicables a lo que vemos u oímos.33 Pero consi-
dero que es mérito de Platón en Sofista, precisamente, establecer dicha dis-
tinción, sin lo cual difícilmente habría podido probarse allí, una vez esta-
blecida la realidad del no ser a título de diferencia, que es posible pensar o
decir falsedades, de modo que no se rehúse ya el título de pensamiento y
de discurso a aquellos que en lugar de capturar algo que es, instauran lo que
no es. Al demostrar que es posible decir y pensar falsedades, i.e. cosas dife-
rentes de las cosas que son (hétera tôn ónton), Platón pone a salvo la natura-
leza del pensamiento y del discurso como instancias distintas de las cosas
que son y más elevadas que cualquiera de los actos perceptuales aplicados a
aprehenderlas. En Sofista, el lógos pierde por fin todo vestigio de apresamien-
to o captura de lo que es, revelando su naturaleza propia, la de ser una ima-
gen de las cosas que son. Mas toda imagen debe confrontarse con su origi-
nal para así determinarse si está convenientemente lograda o no, de modo
que es posible pronunciarse sobre el valor de la imitación – en el caso del
lógos, sobre su valor de verdad – según el grado de ajuste o fidelidad a las
realidades imitadas.34 Habrá así imágenes bellas y no bellas, lógoi verdade-
ros que representan lo que es tal como es, pero también lógoi falsos que
distorsionan aquello que dicen representar.
A esto apunta justamente la división platónica del arte que produce
imágenes en dos especies, una que produce copias y otra productora de
apariencias, que por consiguiente ha de vincularse a la solución al proble-
ma de la posibilidad de lo falso, antes que a la fuente que le da origen. La
analogía que nos interesa entre producir imágenes visuales e imágenes
habladas, no hay que olvidarlo, se traza en el marco de dicha división, es
32
Teet. 189b1-2. La conclusión se formula en los dos sentidos de ‘lo que no es’ (to mè ón).
Recién en Sofista demostrará Platón que es posible pensar y decir lo que no es con relación
a las cosas que son, un no ser relativo que permite explicar por qué el pensamiento y el dis-
curso, lejos de ser siempre verdaderas, son pasibles de verdad y falsedad.
33
Cf. BONDESON, ob. cit., p. 6
34
Cf. Crát. 439a1-4, Sof. 235d6-c7.

HYPNOS
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decir, en el contexto de la solución que Platón brinda al problema del error 87
demostrando que el lógos puede ser verdadero o falso, de modo que mal

Graciela E. Marcos de Pinotti


podríamos vincularla a la que se establece en Teeteto 188c-189b entre ver y
creer (decir, etc.), analogía que impide dar razón de la falsedad.
La crítica de Bondeson envuelve un error de apreciación, hasta don-
de alcanzo a ver, de la naturaleza y propósito de la analogía que brinda
Sofista. Omite, como ya señalé, que se la establece en el seno del género
imitativo en tanto “productor” de imágenes, lo cual permitiría advertir que
la correspondencia que interesa no es propiamente entre imágenes visuales
e imágenes habladas, sino más bien entre los quehaceres o acciones que cris-
talizan en ellas como en sus productos. A partir de tal omisión, el autor se
esfuerza por encontrar similitudes entre los dos tipos de imágenes en jue-
go, i.e. pinturas y discursos, en lugar de dirigir la atención a las operacio-
nes a través de las cuales pintor y sofistas producen esos objetos. Esto lo lleva
a interpretar la analogía platónica en cuestión como si expresara una corres-
pondencia, ciertamente poco afortunada, entre aquello que vemos y aque-
llo que decimos o pensamos, o entre “ver” y decir, cuando de lo que se tra-
ta es de parangonar “pintar” y decir.35 En efecto, al comparar la produc-
ción de imágenes pictóricas a la producción de imágenes habladas, Platón
lejos está de sugerir que hablar es análogo a ver. No ignora que cuando
vemos, vemos algo que es, en cambio cuando hablamos, producimos “imá-
genes habladas” de lo que es, por cuyo medio nos es dado decir lo que es
pero también lo que no es, allí cuando lo que decimos es falso. Menos aún
busca homologar pintar y ver: pintar, una vez más, no es acción que captu-
re algo que ya es, sino productora de algo que antes “no” era.
Mediante la analogía en cuestión aspira a mostrar que pintar y decir son
acciones que buscan “imitar” lo que es, ofreciendo de ello una imagen, con
lo cual pierden la relación de inmediatez que operaciones tales como ver u
oír guardan con las cosas que son. Al ser productoras, requieren además
criterios de corrección, de perfección, que permitan determinar cuándo
estamos ante una imagen convenientemente lograda o no. En este sentido,
la crítica de Sofista a la imitación sigue lineamientos similares a los de la
República pero va mucho más allá, en tanto enfatiza suficientemente que

35
Contribuye a una confusión como la de Bondeson, posiblemente, el hecho de que una
pintura, al par que representa algo que vemos, a su vez es vista, del mismo modo que un
discurso, a la vez que dice algo acerca de una cosa, a su vez es oído. Eso que denominamos
‘lo que vemos’, o ‘lo que decimos’ podría ser abordado, en rigor, desde una u otra perspec-
tiva, ambivalencia a la que Platón seguramente no es ajeno.

HYPNOS
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88 la imitación envuelve una producción. En cuanto desplazamos nuestra aten-
ción desde el objeto hacia la práxis que lo constituye, la analogía entre pro-
Algunos aspectos de la crítica platónica al arte imitativo - La analogía entre el sofista y el pintor

ducir imágenes visuales y producir imágenes habladas adquiere buen senti-


do y logra dar cuenta de la verdadera naturaleza del discurso, por cuyo
medio no capturamos algo que es, sino que producimos una imagen.
La conclusión que deseo establecer es que no corresponde objetar a
Platón que no distingue suficientemente entre ver y decir o creer, o entre
lo que vemos y lo que decimos o creemos. En Teeteto 188c-189b, justamen-
te el pasaje al que Bondeson remite su interpretación, ha dejado suficiente-
mente en claro las dificultades que plantea una analogía de ese tipo, que al
asimilar verbos tales como pensar o decir a verbos de percepción tales como
ver o tocar, cuya acción es infalible, impide dar cuenta del error. En Sofista,
donde demuestra que es posible pensar o decir lo falso, Platón difícilmente
podría quedar prisionero de esa analogía cuyos límites conoce tan bien. Y
no es necesario esperar al final del diálogo para dar con la solución al pro-
blema de lo falso, pues esta solución está envuelta en su división del arte de
producir imágenes. En este marco se inserta la analogía entre producir
imágenes pintadas y producir imágenes habladas, una analogía que no so-
lamente es válida. Es, también, singularmente fecunda, porque permite
explorar distintos sentidos que contribuyen a iluminar la naturaleza del
discurso y del pensamiento, cuestión cuya complejidad no impidió que
Platón le dedicara admirables esfuerzos.

[recebido em janeiro de 2006]

HYPNOS
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Comunicações

PROFECIA EM AVICENA:
QUANDO O HUMANO SE UNE AO DIVINO
PROPHECY IN AVICENNA: THE UNION OF HUMAN AND DIVINE
ROSALIE HELENA DE SOUZA PEREIRA*

Resumo: Para a filosofia do mundo islâmico, a falsafa, e para seu ilustre re-
presentante, Avicena, a profecia é resultante de certas condições físicas e psí-
quicas determinadas pelo fluxo necessário das emanações das inteligências
supralunares, se bem que, sob a ótica do racionalismo, ele também apresenta
os princípios de uma ética em que a ação profética é o paradigma da perfeição
humana.
Palavras-chave: Avicena; profetologia; inteligência; pefeição humana.

Abstract: For philosophy, falsafa, in the Islamic world, and for Avicenna in
particular, its most prominent representative, prophecy comes about as the
result of certain physical and psychic conditions. What determines these
conditions is the emanations that flow necessarily from the celestial
intelligences, although Avicenna also presents a rationalistic picture of ethical
principles, where prophetic action is understood as the paradigm of human
perfection.
Key-words: Avicenna; Prophet; Intelligence; Human perfection.

O Islã se define como constituído no evento da profecia (nubuwwa), já


que é uma religião fundada num Livro revelado por Deus, o Corão. Toda
revelação exige um Deus que se dirige à humanidade e transmite uma men-
sagem universal que, entretanto, deve ser distinta de uma inspiração indi-
vidual posto admitir-se que Deus também possa se dirigir a cada coração
humano individualmente. Como na revelação Deus, por meio de seu men-
sageiro, se dirige a toda a humanidade e tem necessariamente um caráter
social. Conduzida ao conjunto da humanidade, a revelação é uma verdade
que deve ser imposta a todos, com regras às quais todos devem submeter-
se, configurando-se, desse modo, o seu aspecto ético. Central ao dogma e à

*
Rosalie Helena Pereira é pesquisadora em História da Filosofia na Universidade Esta-
dual de Campinas, Brasil. E-mail:rosaliepereira@uol.com.br

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90 vida religiosa,1 a profecia ocupa no pensamento do Islã medieval um lugar
capital, com conseqüências na vida social e política.
Profecia em Avicena: quando o humano se une ao divino

A problemática específica em torno do fato da profecia é um dos aspec-


tos mais significativos do pensamento filosófico islâmico clássico. Pode-se
até mesmo afirmar que a questão da profecia é um ponto nodal para os fi-
lósofos do Islã medieval porque, enquanto muçulmanos, eles se viam dian-
te de um fato ensinado pela religião, fato inexistente na filosofia grega da
qual eles se valiam como herdeiros. O caso de Ibn Si>na>, o Avicena dos lati-
nos (980-1037), é particularmente significativo porque, em sua gigantesca
obra, observa-se que ele trata de temas religiosos, como a eternidade de Deus,
a criação do mundo, a vida futura, a profecia, as orações e os milagres, com
o mesmo rigor científico com que trata das matemáticas, da lógica e da
medicina.2 O seu pensamento – como, aliás, o de qualquer outro filósofo
muçulmano – está impregnado de valores islâmicos, como atestam várias
passagens de sua obra em que comenta o Corão, a missão de Maomé e os
dogmas religiosos. Filho de um ambiente político e social islamizado, as
conclusões de sua filosofia devem coincidir com a dogmática islâmica.
Avicena, porém, apressa-se em afirmar que as “verdades da fé” podem ser
conhecidas, na medida das possibilidades humanas,3 ou seja, na medida em
que o intelecto humano atinge a sua perfeição e se une ao divino. É na figu-
ra do profeta, portador de um intelecto com o mais elevado grau de perfei-
ção, o intelecto santo (qudsi>), que o conhecimento da verdade divina é der-
ramado pela última inteligência, a mais próxima do mundo terreno. É, pois,
na junção do intelecto santo com a décima inteligência que o divino se
manifesta no humano.
As reflexões sobre o fato profético podem ser abordadas em um duplo
registro:
1) Vimos surgir a relação entre a filosofia e a religião, que tentou a con-
ciliação entre o que fora revelado ao Profeta Maomé e os diversos

1
Ver um abrangente estudo sobre os grandes temas da teologia islâmica e o seu tratamen-
to pelas disciplinas “racionalistas” em: GARDET, Louis. Dieu et la destinée de l’homme. Paris:
J. Vrin, 1967. Outro eminente arabista, cujos ensaios cobrem vários aspectos da relação entre
as disciplinas “racionalistas” e a fé islâmica é: ARNALDEZ, Roger. “Prophétie et sainteté
en Islam”, ensaio publicado numa coleção de trabalhos do mesmo autor: Aspects de la pensée
musulmane, Paris: Vrin-Reprise, 1987, p. 37 e ss.
2
Sobre o “misticismo de Avicena”, ver: GARDET, Louis. Quelques aspects de la pensée
avicennienne. In Revue Thomiste, t. XLV – nº 3, juillet-septembre 1939, p. 537-575; IDEM. La
mystique avicennienne. In Revue Thomiste, t. XLV – nº 4, octobre-décembre 1939, p. 693-742.
3
Na parte dedicada à lógica no Livro da cura. Cit. in GARDET, Louis. Quelques aspects
de la pensée avicennienne. In Revue Thomiste, t. XLV – nº 3, p. 541.

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tipos de conhecimento que os muçulmanos buscaram em outras 91
civilizações, em especial na greco-bizantina, na persa e na indiana,

Rosalie Helena de Souza Pereira


pressionados pela especulação filosófica e por necessidades mate-
riais, tais quais os conhecimentos de ordem prática como os relati-
vos à medicina, à farmacologia, à astronomia etc. Foi necessário que
se articulassem esses dois tipos de conhecimento, o profético
(endógeno) e o científico (exógeno), e que fossem encontradas solu-
ções aos problemas que surgiam nessa interseção. Para os filósofos
islâmicos era perfeitamente natural procurar elaborar um conheci-
mento lógico a partir de fontes tão heterogêneas, e construir seus
sistemas numa perspectiva convergente.
2) Vimos surgir a preocupação para compreender, sob a ótica do
racionalismo, os princípios da ação humana, ou melhor, os princí-
pios de uma ética em que a ação profética fosse o paradigma da per-
feição humana. A ação profética não foi vista como contraditória ao
saber recebido de outros povos, e, sim, tomada como modelo da ação
perfeita.

Para os primeiros muçulmanos, o profeta é um homem como outro


qualquer, que recebe de Deus um dom gratuito, dom que faz dele apenas
um instrumento da divindade. E para ser um instrumento de Deus, não é
necessário possuir uma natureza perfeita, uma vez que Deus cria ou não cria
a perfeição quando e como lhe apraz. A filosofia no mundo islâmico, a
falsafa, e principalmente o seu ilustre representante, Avicena, mudam essa
perspectiva. A profecia passa a ser resultante de certas condições físicas e
psíquicas determinadas pelo fluxo necessário das emanações das inteligên-
cias supra-lunares, esquema nitidamente neoplatônico.
Para os primeiros muçulmanos e para algumas correntes místicas, como
o sufismo, o profeta é o escolhido de Deus para ser o seu enviado e mensa-
geiro, e não dispõe necessariamente de um organismo perfeito. Para os fi-
lósofos racionalistas do Islã, o profeta, enquanto representante supremo da
raça humana, deve necessariamente possuir uma natureza cujo grau de per-
feição é o mais alto a ser atingido no mundo terreno. Nesse sentido, a ilu-
minação profética não ultrapassa a capacidade humana para recebê-la. O
profeta possui o mais alto grau de desenvolvimento do intelecto, posto em
ato pelas inteligências separadas por meio da última inteligência. Como delas
recebe o fluxo criador “necessário e designado”, deve ser dotado de quali-
dades naturais, que fazem dele o mais alto representante da raça humana

HYPNOS
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92 em virtude de suas capacidades extraordinárias. A falsafa, desse modo, faz
do profetismo um “fenômeno natural”.4
Profecia em Avicena: quando o humano se une ao divino

O profeta, para esses filósofos, deve ser dotado de um organismo cujas


qualidades físicas são a ele conferidas pela bondade divina. Investido de uma
missão, ele é um legislador civil e religioso.5 Contudo, por meio de uma
ascese apropriada, alguns organismos menos dotados podem elevar-se a um
conhecimento próximo ao da iluminação profética, que, no entanto, dela
difere pelas propriedades e qualidades intelectivas exclusivas do profeta
enviado de Deus. No caso dos santos, não há atribuição divina de uma
missão social, sendo esta conferida apenas aos profetas.
A noção de profecia está integrada no sistema de Avicena. No entanto,
podemos discernir em sua obra o duplo registro supramencionado, isto é,
de um lado a inserção da idéia de profetismo na teoria da alma, no interior
de um quadro referencial dos sistemas aristotélico e neoplatônico; de ou-
tro, temos a abordagem ética e política em que Avicena afirma a necessida-
de da profecia para a subsistência da espécie humana, porquanto o profeta
– modelo a ser seguido – é o legislador que deverá velar para que se mante-
nha a justiça entre os homens. Nas passagens da Metafísica (e outras corres-
pondentes) em que Avicena trata do legislador, reconhecemos a figura do
rei-filósofo de Platão, embora nosso autor não se estenda em considerações
políticas como o fará, mais tarde, Averróis em seu Comentário à República
de Platão.
No que concerne à profetologia, dois grupos de textos avicenianos apre-
sentam referências às duas direções apontadas: o primeiro deles se inscreve
no que se convencionou chamar de noética ou de psicologia. Embora o tema
da profecia esteja virtualmente presente em todos os seus trabalhos siste-
máticos, desde os relativamente primeiros – o Livro da origem e do retorno
(Kita>b al-mabda wa al-maca>d), escrito entre 1012 e 1014 – até os trabalhos
de maturidade – como o Livro da salvação (Kita>b al-naja>t), escrito em 1030
ou em 1032, o Livro de ciência (Dânésh-nâma), escrito em persa, e as Dire-
trizes e admoestações (Iša>ra>t wa al-tanbi>ha>t), ambos escritos entre 1030 e 10346 –

4
Cf. GARDET, Louis. La pensée religieuse d’Avicenne. Paris: J. Vrin, 1951, p. 112.
5
Ver o papel atribuído ao profeta por Al-Fa>ra>bi> em seu tratado Maba>di’ a>ra>’ ahl al-madi>na
al-fa>d{ila (Princípios das opiniões dos habitantes da cidade virtuosa): AL-FA<RA<BI<. La Ciudad
Ideal, trad. ALONSO, M. A.; apres. de CRUZ HERNÁNDEZ, Miguel. Madrid: Tecnos,
1985.
6
Cf. MICHOT, Jean R. La destinée de l’homme selon Avicenne, Louvain, Peeters, 1986,
pp. 6-7.

HYPNOS
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é no Livro da alma (Kita>b al-nafs),7 muito estudado em decorrência do inte- 93
resse na teoria do conhecimento de Avicena, que é preconizada a profecia

Rosalie Helena de Souza Pereira


como o termo final da perfeição da potência intelectual humana.8
O segundo grupo de textos trata da profecia num contexto ético-políti-
co: na Metafísica X, cap. 2, cujas passagens são retomadas literalmente no
Livro da salvação (Kita>b al-naja>t), afirma-se a necessidade da existência do
profeta para o bem-viver social e para a continuidade da espécie humana.
O profeta, sobre quem desceu a revelação divina (wah{y), legislará em nome
de Deus e proverá para que a Lei divina (Sharc) seja obedecida e seguida. O
caráter político da profecia é corroborado pela Epístola da divisão das ciên-
cias intelectuais (Risala> fi> aqsa>m al-culu>m al-caqli>ya)9 em que, ao apresentar a
divisão das ciências práticas (ética, economia e política), Avicena informa
que o estudo da política versa sobre a profecia e sobre a Lei religiosa.
Não cabe aqui comentar o caráter político e social da ação profética.
Vamos, portanto, apresentar em linhas gerais como Avicena explica filo-
soficamente a recepção da revelação divina por um intelecto humano.
Avicena trata da capacidade profética em seus textos dedicados ao estu-
do da alma (psicologia). Nesse contexto, porém, ele apenas examina as ca-
pacidades anímicas que são típicas dos profetas, ou melhor, examina os
meios necessários para que a profecia se realize, mas não se detém na fina-
lidade ou no sentido da profecia. Ao nos debruçarmos sobre as linhas que
tratam da profecia, inferimos que a sua análise não tem por objeto próprio
o estudo da profecia, uma vez que não aborda as capacidades proféticas de
modo unificado, isto é, na perspectiva de construir uma teoria da profecia.

7
O Livro da alma faz parte do segundo tomo, dedicado à física, do Livro da Cura (Kita>b
al-shifa> ’). O primeiro tomo é dedicado à lógica, o terceiro, à matemática e o quarto, à
metafísica. Avicena terminou a redação do Livro da cura por volta de 1024.
8
Cf. ELAMRANI-JAMAL, Abdelali. De la multiplicité des modes de la prophétie chez Ibn
Si>na>. In JOLIVET, Jean; RASHED, Roshdi (Orgs.). Études sur Avicenne. Paris: Les Belles
Lettres, 1984, p. 125 e ss. Ver no final de nosso trabalho o elenco dos textos avicenianos
que tratam da profecia no quadro da teoria da alma.
9
Traduções de ANAWATI, G. C. Les Divisions des Sciences Intellectuelles d’Avicenne. In
MIDEO, t. 13, Cairo: Dar al-Maaref, 1977, pp. 323-335; de MIMOUNE, R. Épître sur les
parties des sciences intellectuelles d’Abu> ‘Ali> al-H{usayn Ibn Si>na>. In Etudes sur Avicenne. Paris:
Les Belles Lettres, 1984; de MICHOT, J. R. Les Sciences Physiques et Métaphysiques selon la
Risa>la fi> Aqsa>m al-‘Ulu>m d’Avicenne. Essai de traduction critique. In Bulletin de Philosophie
Médiévale, 22, Louvain, 1980, pp. 64-71, esta última é uma tradução parcial à Física e à
Metafísica; também uma tradução parcial de MAHDI. M.: Avicenna. On the divisions of the
rational sciences. In LERNER, R.; MAHDI. M. (Orgs. com a colaboração de FORTIN, E.
L.). Medieval Political Philosophy: A Sourcebook. ¹1963, reprint USA: Cornell Univ. Press,
1972, p. 95-97.

HYPNOS
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94 Antes, ele examina essas capacidades em partes diferentes e disseminadas ao
longo de sua principal obra dedicada ao estudo da alma, o Livro da alma
Profecia em Avicena: quando o humano se une ao divino

(Kita>b al-nafs). Assim, cada vez que examina uma faculdade da alma, Avicena
alude à capacidade profética. Em seu tratamento hierarquizado das facul-
dades humanas,10 Avicena finaliza sua exposição afirmando que a perfeição
suprema do desenvolvimento do intelecto pertence tanto ao filósofo como
ao profeta.11 O profeta, porém, deve necessariamente ter qualidades que o
distingam do resto da humanidade, pois ele representa a perfeição da raça
humana, ele é o enviado de Deus e portador da mensagem divina.
A preocupação de Avicena com a capacidade profética permeia seus
estudos sistemáticos, como já mencionamos, e é apresentada como prova
racional das crenças populares na revelação profética. É, portanto, no con-
texto de uma filosofia racional e sistematizada que veremos ser incluído o
estudo da profecia.
Embora não apresentadas de modo unificado, numa leitura cuidadosa
podemos discernir as três propriedades ou qualidades do estado profético,
tal como Avicena as apresentou de modo coerente num quadro metafísico
e epistemológico. São elas: 1) a inspiração profética recebida diretamente
da inteligência agente e que caracteriza o “intelecto santo” do profeta, grau
supremo da perfeição humana; 2) a percepção da revelação em forma sen-
sível, conferida por meio da faculdade da imaginação, e que se traduz em
símbolos; e 3) a capacidade de realizar milagres e de prever o futuro de even-
tos particulares.

10
Para um estudo detalhado das faculdades da alma, ver ATTIÉ Fº, Miguel. Os sentidos
internos em Ibn Si>na> (Avicena). Porto Alegre: Edipucrs, 2000; e, do mesmo autor, sua tese
de doutorado: O intelecto no Livro da Alma de Ibn Si>na> (Avicena). FFLCH-USP, 2004.
11
A classificação dos intelectos é a seguinte: O intelecto material é assim chamado por sua
proximidade e semelhança com a matéria, já que não recebeu ainda da inteligência agente
qualquer inteligível e, portanto, nada conhece ainda. O “intelecto em potência” já possui a
potencialidade possível para receber os primeiros inteligíveis, ou melhor, os primeiros princí-
pios ou axiomas; nesse estágio, o intelecto aceita proposições consolidadas, pois não elabo-
ra pensamentos próprios, tais como “o todo é maior que as partes”. O intelecto em hábito
está em potência próxima ao ato; já munido dos inteligíveis, tem a perfeição da
potencialidade: une-se de modo imperfeito à inteligência agente, pois recebe os primeiro
inteligíveis que lhe possibilitam receber os outros; as formas já estão no intelecto, o que lhe
faculta o ato de pensar por si próprio. Os estágios do intelecto em ato são os seguintes: O
“intelecto efetivo”, já em ato, possui a capacidade de separar as noções comuns dos princí-
pios primeiros. O “intelecto adquirido” ou “ajustado” já tem a capacidade de se unir à inte-
ligência agente; nesse estágio, já plenamente desenvolvido, o intelecto está absolutamente
atualizado. Finalmente, o intelecto santo, que, unido à inteligência agente, recebe a revela-
ção divina.

HYPNOS
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Ao mencionar o estado profético, no Livro da alma, seja na passagem 95
que trata da faculdade da imaginação, seja na passagem sobre o poder de agir

Rosalie Helena de Souza Pereira


sobre a matéria exterior,12 Avicena adverte que estes são distintos “modos”
de profecia. Somente ao tratar do intelecto que o veremos qualificar o “in-
telecto santo” como o mais alto grau das potências proféticas.13 Parece que,
ao tratar em separado, cada uma das três características proféticas, o filóso-
fo esteja tentando ocultar a conexão essencial que há entre elas, em espe-
cial a conexão entre a inspiração do tipo intelectiva e as representações
imaginais e simbólicas da profecia. Ele não explicita qualquer relação entre
a inspiração de caráter filosófico – tal como é apresentada nas passagens que
tratam da alma –, a inspiração possível para alguns profetas (nabi>’s)14 e as
funções políticas de legislador dos mensageiros proféticos (ru>sul), aludidas
no final do Livro da cura (Kita>b al-šifa>’).
Para Avicena, receber a revelação e conduzir a sociedade são prerroga-
tivas de alguém que necessariamente tem qualidades excepcionais, mas que
são sempre humanas e passíveis de demonstração. O que se retém da leitu-
ra dessas passagens é a demonstração de que o estado profético é resultado
de raras condições físicas e psíquicas humanas.
Em três momentos a progressão da análise da alma conduz a um modo
ou estado de profecia: no início da seção 2, do cap. IV do Livro da alma,
Avicena anuncia que tratará “das atividades da imaginação e da faculdade
cogitativa dentre os sentidos internos, [tratará] do sono e da vigília, do so-
nho verdadeiro e enganador e de uma espécie das propriedades da profecia”.
Já na seção 4 do mesmo cap. IV, Avicena menciona uma outra proprieda-

12
AVICENA, Livro da alma, Parte IV, seções 2 e 4, respectivamente.
13
AVICENA, Livro da alma, Parte V, seção 6.
14
Na teologia islâmica há que se distinguir nabi>’, profeta, de rasu>l (pl. ru>sul) que significa
enviado, apóstolo. A idéia de missão está mais ligada ao enviado, e a idéia de revelação, ao
profeta; o nabi>’ é quem recebeu seja uma revelação (wah{y) por intermédio de um anjo, seja
uma inspiração (ilha>m) em seu coração, ou ainda uma admoestação (tanbi>h) por meio de
um sonho verdadeiro; o rasu>l, enviado e apóstolo, é superior ao profeta porque recebeu uma
revelação (wah{y) especial, superior à recebida pelo profeta; é sobre o rasu>l (Maomé) que o
Anjo Gabriel fez descer, por parte de Deus, o Livro, o Corão, que é uma Lei religiosa a ser
transmitida aos homens. O enviado se distingue do profeta porque recebeu uma missão a
ser transmitida para a humanidade, recebeu um Livro que contém a Lei divina que deverá
ser seguida por todos. Maomé é nabi>’ e rasu>l porque recebeu a revelação divina contida no
Corão junto com o encargo de transmiti-la aos homens. Cf. GARDET, Louis. Dieu et la
destinée de l’homme. Paris: J. Vrin, 1967, p. 158. Gardet esclarece que o termo wah{y, tradu-
zido por revelação, conota a idéia de voz, de som, o que sugere uma revelação exterior re-
cebida por meio do ouvido; ilha>m, traduzido por inspiração, exprime a idéia de engolir,
deglutir, donde uma inspiração interior, recebida no coração. Cf. Ibid., n. 2.

HYPNOS
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96 de da alma do profeta: a capacidade de agir sobre a matéria exterior. No final,
ele afirma categoricamente que o que acabou de expor é apenas um “modo”
Profecia em Avicena: quando o humano se une ao divino

da capacidade profética, ou seja, o que havia sido exposto anteriormente,


ao tratar da imaginação, é relativo a uma “propriedade profética pendente
das potências sensíveis de apreensão”15 enquanto a capacidade de agir sobre
a matéria exterior é uma propriedade pendente da virtude sensível motora
do consentimento (ijma>‘)16 ao desejo que pertence à alma do profeta digno
de profetizar. Finalmente, no capítulo V, seção 6, Avicena se dedica à aná-
lise dos diferentes graus do intelecto, em que o mais elevado é o “intelecto
santo”, uma espécie de profecia.
Haverá, então, vários modos de profecia? Se sim, como operam esses
modos?
Como não está apresentada em uma única obra, muito menos de modo
unificado, a concepção de profecia de Avicena tem, de certo modo, de ser
reconstruída pelas informações esparsas que ele nos dá. Podemos, contudo,
discernir três condições necessárias a um ser humano para que nele a pro-
fecia se realize, condições necessárias àquele que se intitula ou profeta ou
enviado ou mensageiro da palavra divina:17
1) “Clareza e lucidez da inteligência”, principal condição e que comanda
as outras duas, pois é devido à acuidade de sua inteligência que o
profeta está apto a receber o eflúvio do mundo celeste, tal como lhe
é transmitido pelo anjo, isto é, pela inteligência separada da matéria
ou alma universal.18 Contudo, clareza e lucidez de inteligência são
ambas condições comuns tanto ao profeta como, até certo ponto,
também aos sábios, donde a necessidade de uma segunda condição
necessária ao profeta;
2) “Perfeição da faculdade da imaginação”, o que significa que a faculda-
de da imaginação deve estar em harmonia com o mundo das esferas
celestes. Sábios e santos recebem a emanação da inteligência agente sob
a forma de uma inspiração interior (ilha>m), que, no caso dos profetas,
15
AVICENA, Avicena latinus, IV-V, p. 66; Trad. Bakóš, p. 138.
16
A faculdade do consentimento (ijma>‘ ) põe um grande problema, pois ela é tanto traduzida
por “deliberativa” como por “desiderativa”. Cf. RIET, S. Van, Avicena latinus, IV-V, Léxi-
co árabe-latino, p. 223, onde aparecem os vários termos latinos correspondentes a ijma>‘; cf.
trad. Bakóš: este traduz tanto por résolution como por délibérative.
17
Cf. STRAUSS, Leo. Maïmonide, Paris: PUF, p. 120-121. Cf. GARDET, Louis. La pensée
religieuse d’Avicenne (Ibn Si>na>). Paris: J. Vrin, 1951, p. 121.
18
Avicena usa as duas expressões intercambiáveis, Alma do Todo (nafs al-kull) e Alma
universal (nafs kulli> ). As inteligências separadas são também chamadas, por Avicena, de
“anjos”.

HYPNOS
ano 11 / nº 16 – 1º sem. 2006 – São Paulo / p. 89-100
se derrama sobre a imaginação. À inspiração interior se une a revela- 97
ção (wah{y), que, sendo exterior à alma do profeta, é apreendida sob a

Rosalie Helena de Souza Pereira


forma de algo sensível. O profeta, então, vê o anjo e ouve a sua voz.
Desse modo ele recebe os preceitos divinos e pode realizar a sua mis-
são de se tornar o guia e o legislador da sociedade humana. Com a sua
imaginação tornada perfeita, o profeta não está mais à mercê das ilu-
sões dos sentidos, pois sua faculdade de imaginar participa do conhe-
cimento das almas celestes e delas recebe, sob a forma de símbolos, a
revelação das coisas ocultas que, por meio dele, são transmitidas aos
homens comuns. Como a humanidade só pode compreender o ocul-
to por meio de símbolos e alegorias, a imaginação do profeta, quan-
do, livre dos sentidos corporais, se comunica com as almas celestes,
recebe do anjo uma visão e uma voz antropomorfizadas.
3) “Poder da alma sobre a matéria exterior”, isto é, o poder de realizar
milagres e de profetizar o futuro. Esta não é uma condição essencial
própria da profecia, mas é necessária ao profeta porque confere a ele
o poder de apresentar sinais e milagres como prova de sua missão.
Dentre esses sinais e milagres, alguns procedem da perfeição do in-
telecto e outros da perfeição da imaginação. Assim, os jejuns prolon-
gados e as forças físicas extraordinárias dependem da lucidez e da
força do intelecto profético que se une ao mundo dos inteligíveis;
quanto à capacidade de compreender segredos e de prever aconteci-
mentos futuros, esta depende da faculdade da imaginação, que rece-
be das inteligências celestes o conhecimento dos particulares. No
sistema de Avicena não há lugar para atos livres e futuros contingen-
tes. Tudo já está inscrito no intelecto universal. As inteligências ce-
lestes são conhecedoras dos acontecimentos individuais, que, em
última instância, são determinados sempre por Deus, pois é do Prin-
cípio Primeiro, ou Deus, que procede todo conhecimento.

Mas, já que a alma humana pode agir sobre o seu próprio corpo, se as fa-
culdades estiverem devidamente aperfeiçoadas, por que não pode também agir
sobre corpos alheios? Para Avicena, alguns indivíduos, e principalmente os
profetas, possuem esse poder desde o nascimento, porquanto sábios e santos
poderão consegui-lo apenas depois de uma ascese apropriada, embora não haja
entre todos eles uma diferença intrínseca no resultado da ação produzida.19 Esse

19
Cf. GARDET, L. Dieu et la destinée de l’homme. Paris: J. Vrin, 1967, p. 199. IDEM. La
pensée religieuse d’Avicenne (Ibn Sînâ). Paris: J. Vrin, 1951, p. 122-125.

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ano 11 / nº 16 – 1º sem. 2006 – São Paulo / p. 89-100
98 terceiro grupo de sinais e milagres depende da perfeição do operar sobre o
mundo físico: trata-se dos atos exercidos sobre a matéria exterior, como a cura
Profecia em Avicena: quando o humano se une ao divino

de enfermos, como as bênçãos e maldições seguidas de efeitos milagrosos, e como


o poder exercido sobre a natureza, isto é, o poder de provocar chuvas, secas e
tempestades.
Não se trata de fazer intervir elementos sobrenaturais, já que a explica-
ção está na natureza da própria alma humana, numa simpatia que une o
macrocosmo celeste e o microcosmo humano. No eflúvio das emanações
que procedem do Uno através das esferas celestes, o conhecimento é derra-
mado no mundo sublunar pela última inteligência, a da esfera da Lua, tam-
bém chamada de intelecto agente. O profeta, pela perfeição de sua nature-
za, está mais apto a receber do intelecto agente a iluminação direta, sendo
ele o mais capaz de penetrar na harmonia que une o homem ao cosmo. Essa
capacidade também a tem o iniciado (ca>rif) habituado a orientar o seu inte-
lecto para receber o fluxo emanado do mundo supralunar e ver, no espe-
lho purificado de sua alma, os fundamentos não apenas das verdades
especulativas, mas também cultuais da Lei religiosa, embora a perfeição de
sua natureza psíquica seja sempre inferior à do profeta.20
Avicena ensina que, dentre os homens, os mais excelentes são os que
possuem condições excepcionais, tanto intelectivas como morais. E dentre
estes, o profeta ocupa o grau mais elevado porquanto possui as três carac-
terísticas ou propriedades necessárias para a efetivação do estado profético,
isto é, possui a acuidade do intelecto para receber o conhecimento imedia-
to, possui a perfeição de sua imaginação e, ainda, por meio de uma faculda-
de motora, possui o poder de transformar a matéria exterior. No Livro da
alma, porém, seja na passagem que trata da imaginação, seja na passagem

20
Esse aspecto da simpatia do microcosmo com o macrocosmo é comum nos tratados
considerados “místicos” de Avicena, principalmente nos que versam sobre a oração, so-
bre a peregrinação aos túmulos dos santos etc. Avicena foi profundamente influenciado
pela Teologia pseudo-aristotélica. A Teologia pertencia inicialmente a um grupo de textos
de metafísica que compreendia não apenas textos de Plotino (paráfrases das Enéadas IV a
VI), mas ainda de Próclo (Elementos de Teologia) e de Alexandre de Afrodísia, coleção que
visava completar a Metafísica de Aristóteles, elaborada em Bagdá, no século IX, pelo cír-
culo de Al-Kindi>. A versão árabe do Liber de Causis, cuja doutrina é derivada dos Elemen-
tos de Teologia, de Próclo, teria feito parte desta coleção, mas, depois, circulou indepen-
dente. O compêndio das duas fontes neoplatônicas - a paráfrase árabe das Enéadas IV a
VI e os Elementos de Teologia de Próclo - forma o que se convencionou denominar
Plotiniana Arabica. Cf. D’ANCONA COSTA, Cristina. Recherches sur le Liber de Causis,
Paris: J. Vrin, pp. 155-167. Ver GARDET, Louis. La pensée religieuse d’Avicenne (Ibn Si>na>).
Paris: J. Vrin, 1951, p. 130.

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sobre o poder de agir sobre a matéria exterior,21 Avicena adverte, ao men- 99
cionar o estado profético, que há distintos “modos” de profecia. Contudo,

Rosalie Helena de Souza Pereira


ao desenvolver a teoria do intelecto, vemos que Avicena distingue o profe-
ta dos sábios e santos, pois somente o primeiro é possuidor de um intelec-
to “santo” – o mais alto grau das potências intelectuais –, que se traduz na
capacidade do intelecto em conhecer a verdade sem mediações e sem o apoio
de silogismos e provas.22
Somente aquele que, além de suas qualidades morais, dispõe dessas três
condições está apto a receber as revelações divinas, ou por meio da visão
dos anjos ou ao ouvir a palavra diretamente de Deus.23 Para Avicena, são
hierarquizados também os modos de profecia: o inferior é quando a profe-
cia se dá por meio da imaginação; em seguida vem o poder de operar mila-
gres, isto é, o de modificar a matéria. O grau mais elevado está no nível da
intelecção, ou seja, na perfeição do intelecto quando este se torna santo. Isto,
contudo, não significa que o profeta, cujo intelecto pertence ao mais alto
grau, não disponha também das condições inferiores. A participação de uma
faculdade anímica inferior na profetologia de Avicena, como é o caso da
imaginação, está no fato de que o profeta ouve o som da palavra divina e
vê os anjos com forma visível. Os anjos aparecem para quem recebe uma
revelação divina: os olhos do profeta os vêem sob a forma de simulacros e
em seus ouvidos produz-se uma voz que o profeta entende ser de Deus e
dos anjos.24 Cabe, portanto, à faculdade da imaginação a função de receber
do mundo celeste essas visões e vozes antropomorfizadas.
Resumindo, para o filósofo-médico, o estado profético é o resultado de
raras condições físicas e psíquicas humanas. Nada há de sobrenatural, nada
há no fenômeno da profecia que não possa ser explicado racionalmente.

[recebido em junho de 2005]

21
AVICENA. Livro da alma, Parte IV, seções 2 e 4, respectivamente.
22
Ibid. V, 6.
23
AVICENA. Metafísica X, 1.
24
Ibid.

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100 BIBLIOGRAFIA SUMÁRIA
Profecia em Avicena: quando o humano se une ao divino

1) Kita>b al-šifa>’, II, (Livro da cura, II), que comporta o Kita>b al-nafs (Livro da alma);25
nesta obra, Avicena refere-se à capacidade profética em três ocasiões: Parte IV, caps.
2 e 4 e Parte V, cap. 6. A versão resumida, feita pelo próprio Avicena, segue de perto
o Kita>b al-šifa>’ (Livro da cura) e está no Kitâb al-najât (Livro da salvação), Livro II,
cap. 6.26
2) Na segunda parte do Kita>b al-iša>ra>t wa al-tanbi>ha>t (Livro das direções e admoestações),27
o terceiro segmento, dedicado ao estudo das almas terrestres e celestes, contém uma
“direção” sobre as faculdades da alma racional, explicadas segundo o ponto de vista da
alegoria corânica da luz ou lâmpada (Corão, XXIV, 35: su>rat al-nu>r), que Avicena reto-
ma e explicita com maior esmero na Rissa>la fî i£ba>t al-nubuwwa>t (Epístola sobre a pro-
va das profecias).28
Acrescente-se três obras que podem servir de apoio às passagens mais complexas: uma
epístola redigida entre 1012 e 1014, Risâla fî al-huddûd (Epístola das definições);29 o úni-
co texto em persa, escrito entre 1030 e 1034, o Dânèsh-nâma (Livro de ciência)30 e, por
fim, a Epístola dos estados da alma (Rissa>la fi> ah{wa>l al-nafs),31 possivelmente redigida por
Avicena também em seus últimos anos de vida, entre 1030 e 1037.

25
Tradução de BAKOŠ, Ján. Psychologie d’Ibn Si>na> d’après son oeuvre Aš-Šifa>’ II. Praga:
Éditions de l’Académie Tchécoslovaque des Sciences, 1956.
26
Tradução de RAHMAN, Fazlur. Avicenna’s Psychology (An English Translation of Kita>b
al-Naja>t, Book II, ch. 6) com notas e comentários. Oxford: Oxford Univ. Press, ¹1952; reprint
USA: Hyperion Press, Inc., 1981, 1990.
27
Tradução de GOICHON, A.-M. Livre des Directives et Remarques. Paris: J. Vrin, 1951.
28
Tradução de MARMURA, M. E. On the proof of prophecies and the interpretation of
the prophet’s symbols and metaphors. In LERNER, R.; MAHDI. M. (Orgs. com a cola-
boração de FORTIN, E. L.). Medieval Political Philosophy: A Sourcebook. ¹1963, reprint
Cornell University Press, 1972, pp. 112-121.
29
Tradução de GOICHON, A.-M. Introduction à Avicenne, son Épître des Définitions. Pa-
ris: Desclée, de Brouwer et Cie., 1933.
30
Tradução do persa de ACHENA, M.; MASSÉ, H. Le Livre de Science. Paris: Belles Lettres-
Unesco, 1986.
31
Cf. MICHOT, J. R. Prophétie et divination selon Avicenne. Présentation, essai de
traduction critique et index de l’“Épître de la sphère”. In Revue Philosophique de Louvain, t.
83, nov. 1985, pp. 512-522: apresenta a tradução da seção XIII, que circulou autônoma com
o título “Do estabelecimento da profecia”.

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A TRIBUNA DE GÓRGIAS:
LINGUAGEM, RETÓRICA E OPORTUNIDADE
GORGIAS THE PUBLIC SPEAKER: LANGUAGE, RHETORIC, AND TIMING
FERNANDO CZEKALSKI*

Resumo: Este artigo visa destacar a concepção retórica de Górgias de


Leontinos. Mais conhecido como sofista e niilista, seu pensamento sobre o
discurso, suas possibilidades e finalidade baseado no kairós, nos faz repensar
o legado de Górgias não apenas para a retórica em geral mas, inclusive, para a
filosofia da linguagem.
Palavras-chave: retórica; linguagem; kairós.

Abstract: This article outlines Gorgias of Leontini's concept of rhetoric.


Gorgias is best known as a sophist and nihilist, but what he had to say on the
nature of discourse, its possibilities, and its teleological relation to kairós,
should make us rethink his legacy, not only for rhetoric generally, but also
for philosophy of language in particular.
Key-words: Rhetoric; Language; Kairós.

Parece sempre impossível que qualquer incursão sobre um elemento


constituinte da cultura ocidental não acabe, cedo ou tarde, por retornar à
Grécia. É nesta terra, afinal, que o ocidente costuma identificar sua origem.
Nesta perspectiva, o retornar pode ser caracterizado como um nostálgico
toque original com nossa procedência. Ao mesmo tempo, retornar pode ser
entendido como nada mais nada menos do que o reconhecimento de que
algo não corre bem, de que alguma coisa se corrompeu ou mesmo se per-
deu no caminho. Pois esta é, justamente, a sensação que a retórica parece
estimular. Uma arte que, desde a Grécia, atravessou os séculos mas cujo viço
parece perdido. Pompa, artificialidade e até mesmo falsidade parecem cons-
titui-la; e é assim, afinal de contas, que ela é percebida até pelos veículos que,
voluntária ou involuntariamente, acabam por institucionalizar significados,
ou seja, os dicionários.1 Qualificar alguém de retórico constitui um eufemis-

*
Fernando Czekalski é pós-graduando na Pontifícia Univ.Católica de Porto Alegre, RS.
E-mail: fecze@terra.com.br
1
Nos dois mais importantes dicionários de língua portuguesa editados no Brasil, o signi-
ficado de retórica não é dos mais nobres. Tanto o dicionário Aurélio quanto o dicionário

HYPNOS
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102 mo; eventualmente, é puro ultraje. Ele, o retórico, é o vilão do discurso e
aliciador de razões desprotegidas, que sempre sucumbem ao seu encanto
A tribuna de Górgias: linguagem, retórica e oportunidade

perverso. Retórica é prestidigitação verbal que envenena o espírito e o es-


craviza. É, em uma palavra, simulacro.
Este juízo, que eventualmente passa por contemporâneo, não é,
realmente, tão contemporâneo como parece. É o juízo de Platão; ao me-
nos, o Platão do diálogo Górgias. Este diálogo, antes mesmo de expressar a
negativa concepção platônica sobre a retórica, expressa algo muito mais
substancial, isto é, a relação historicamente tensa entre retórica e filosofia.
Esta, surgida da admiração humana,2 sempre foi respeitada por sua complei-
ção verdadeira e límpida, sem pompa nem adornos. Aquela, surgida da ne-
cessidade pragmática,3 era apontada pelo seu meneio encantador, pelo bri-
lho ofuscante e pelo espetáculo.
Embora o mesmo Platão tenha revisitado sua idéia original sobre a
retórica no diálogo Fedro, devolvendo-lhe alguma credibilidade,4 o socorro
não foi tão eficiente quanto o golpe por ele mesmo desferido no Górgias.
Foi preciso que Aristóteles socorresse a arte, teorizando-a sob nova pers-
pectiva em sua Arte retórica. Como resultado, o tratamento aristotélico a
fez caminhar novamente sobre suas próprias pernas como uma heurística
do discurso. E quando tudo, finalmente, parecia estar resolvido, um novo
golpe atinge a arte, pois sua convalescença foi assistida por homens menos
experimentados. Estes, preocupados apenas em recuperar sua bela expres-
são, acabaram por esquecer dos membros, atrofiando-os. Dito de outro
modo, tratou-se excessivamente do Livro III d’Arte retórica de Aristóteles,
que versa sobre o estilo. Virtualmente salva pelo Estagirita, ela, agora, via-
se reduzida a uma simples teoria do estilo pelos que se propuseram a dela

Houaiss concordam, em seus respectivos verbetes, que adornos empolados, pompa e


discursosvazios de conteúdo são próprios da retórica. De resto, o juízo é praticamente o
mesmo nos dicionários das principais línguas de cultura no mundo ocidental, como o ale-
mão, espanhol, francês, inglês e italiano.
2
Sobre a admiração como estopim para o filosofar ver PLATÃO, Teeteto 155d e
Aristóteles, Metafísica, 982b.
3
Sobre as querelas judiciais que parecem ter desencadeado o surgimento da retórica, ver
Cícero, Brutus, § 46.
4
Isto, contudo, não decorre do fato de Platão repensar a retórica como autônoma e legí-
tima. Ao contrário, se a retórica renovada de Platão possui alguma credibilidade, é somen-
te porque o filósofo atrelou-a e subjugou-a à sua dialética. Em certo sentido, Platão
‘dialetizou’ a retórica para nela aplicar cores filosóficas. Mesmo assim, aparece no Fedro um
viés mais respeitoso. Em vista disso, nos animamos a dizer que, se no Górgias há uma con-
denação moral, no Fedro é a desconfiança mnemônica para com a escrita que impede Platão
de assumir a retórica de modo mais efetivo.

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tomar conta. A capacidade de trânsito dada por seus gêneros, o desprendi- 103
mento para relacionar-se do modo adequado com as experiências mais

Fernando Czekalski
desconcertantes dada por seus tópicos, a sutileza no provar pelo exemplo e
pelo entimema e a sagacidade necessária para conduzir a alma pelo discur-
so foram subjugados pela beleza imanente à arte. Não compreenderam que
sua beleza reside (e aparece) na sua articulação completa e não apenas em
um de seus aspectos.
Tratar de infortúnios, contudo, não é nosso desejo; ao contrário, dese-
jamos tratar de um tempo em que a retórica flanava vivaz pela pólis, arre-
batava juízos na ágora e era velada por aquele que mais lhe dedicou aten-
ção: Górgias de Leontinos. Seu cuidado para com a retórica não era produ-
to do acaso; ela foi seu único amor. E por isto, por ter olhos somente para
ela, que a remodelou profundamente. Não há dúvida sobre o fato de ter sido
este o homem que mudou e mesmo revolucionou a elaboração de discur-
sos na Grécia. Tal cuidado e atenção, refletidos em suas percepções sobre o
tema, foram considerados tão surpreendentes que a própria construção de
um discurso recebeu o nome de gorgianizar e falar ao estilo de Górgias tor-
nou-se moda. Provavelmente, a melhor ilustração desta reviravolta
discursiva foi sua famosa embaixada a Atenas, onde convenceu seus anfi-
triões a prestar socorro aos leontinenses, pois estes não conseguiam solu-
cionar suas querelas militares com os siracusanos. Os atenienses ficaram,
segundo relatos, maravilhados e não hesitaram em oferecer a ajuda solici-
tada (Frag. A 4). Feitos desta espécie fizeram com que o impacto discursivo
de Górgias fosse comparado por Filóstrato ao efetivado por Ésquilo no
teatro (Frag. A 1).5
Embora tenha sido unicamente retor, Górgias é comumente associado
pela tradição ao movimento sofístico e apresentado como um de seus
maiores representantes ao lado do não menos famoso Protágoras de Abdera.
Ora, é justamente neste interesse comum para com a linguagem que Górgias
poderia ser enquadrado como sofista e é esta mesma característica que, pa-
radoxalmente, não o qualifica como um sofista típico. Górgias, ao contrá-
rio dos sofistas, jamais se apresentou como portador de um saber enciclo-
pédico. Tampouco prometia ensinar técnicas que consumassem o sucesso
na vida pública. Sua ambição concentrava-se em um único objetivo: forjar
oradores. “Essa é a profissão que exerço, não apenas aqui, mas em toda a
5
Flávio Filóstrato, historiador romano. Viveu entre 170-244. Em sua Poética, IV,
Aristóteles afirma: “Foi Ésquilo quem teve a iniciativa de elevar de um para dois o número
de atores; ele diminuiu o papel do coro e atribuiu ao diálogo a primazia; o número de três
atores e o cenário devem-se a Sófocles”.

HYPNOS
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104 parte” (Górgias, 449b). É evidente que, numa sociedade como a grega, o bem
falar poderia ser considerado muito mais decisivo que um saber enciclopé-
A tribuna de Górgias: linguagem, retórica e oportunidade

dico. Não que isto fosse dispensável mas, afinal, de que poderia valer uma
vasta coleção de saberes se estes não pudessem ser adequadamente comuni-
cados? A comunicação eficiente do próprio saber era o elemento vital para
que não apenas o cidadão se fizesse notar mas também o sábio. Nesta pers-
pectiva, uma arte retórica não seria apenas o coroamento de uma educação,
mas sim aquilo mesmo que a efetiva publicamente. É ela que permitirá ao
cidadão ilustrado transitar com desenvoltura por todos os níveis da pólis. É
justamente por isto que a retórica se constituía como atividade eminente-
mente política, ou seja, que acontecia, se efetivava e se justificava no âmbi-
to da pólis.
Mas, que escritos de Górgias sobreviveram para testemunhar sua
revolução? Ou melhor: suas possíveis teorizações sobre o discurso estão
presentes nos escritos que chegaram até nós? Excetuando testemunhos e
fragmentos pouco maiores que algumas palavras, o tempo conservou qua-
tro fragmentos de extensão considerável das seguintes obras: o Tratado do
Não-Ser ou Da Natureza, uma Oração Fúnebre, uma Defesa de Palamedes e
um Elogio de Helena.6 Nestes fragmentos, o espírito de Górgias ainda res-
soa com força suficiente para que entendamos seu impacto. Se para eles
estivermos abertos, desarmados e sem vícios conceituais, talvez possamos
espreitar e, quem sabe, intuir o trato por ele dado à retórica.
Do catálogo de obras acima mencionado, o Tratado do Não-Ser é, de
longe, o escrito mais filosófico – e famoso – de Górgias. É também o texto
responsável por sua fama de niilista. Em si mesmo, o texto é uma longa
paráfrase feita por Sexto Empírico7 no seu Contra os matemáticos e deve,
portanto, ser tão exato quanto uma paráfrase possa permitir. Mesmo assim,
nele existem elementos suficientes que deixam transparecer o uso hábil dos
argumentos na construção do raciocínio. Ademais, tanto por sua constitui-
ção como pelo estado em que chegou até nós, tudo indica que o real moti-
vo de sua composição tenha sido, de fato, o de atacar a filosofia eleata. E,

6
Refiro-me a fragmentos substanciais que permitem análise. Contudo, entre obras perdi-
das e fragmentos de extensão ínfima, pode-se fazer um rol de suas obras: Tratado do Não-
Ser ou Da natureza, Elogio de Helena, Defesa de Palamedes, Oração fúnebre, Olímpico, Pítico,
Elogio aos habitantes de Élis, Elogio de Aquiles, A arte oratória e o Onomástico.
7
Físico e filósofo céptico que viveu no final do séc. II d.C. Existe uma outra versão do Tra-
tado, atribuída ao pseudo-Aristóteles. No opúsculo intitulado Sobre Melisso, Xenófanes e Górgias,
é feito um longo comentário explicativo sobre o Tratado de Górgias. Embora não sejam exa-
tamente iguais, as versões de Sexto e do pseudo-Aristóteles são bastante semelhantes.

HYPNOS
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com efeito, a idéia apresentada por Górgias não deixa de ser um eleatismo 105
às avessas ou mesmo – o que não seria exagero – um eleatismo pervertido.8

Fernando Czekalski
O desenvolvimento do Tratado concentra-se no aspecto ontológico
e gnoseológico. Sua preocupação é expor a incapacidade cognitiva dos ho-
mens no que tange à captação do ser e a impossibilidade – se por ventura
fosse possível captar o ser – de comunicá-lo. Não se trata, portanto, de uma
concepção niilista. Tampouco é uma ontologia do não-ser, ou seja, do ser
do não-ser, mas sim uma crítica ao dogmatismo dos que pretendem dizer o
que o ser é. Mas não é exatamente esta a perspectiva que pretendemos des-
tacar. Do Tratado citaremos uma singular passagem que permitirá recolher
uma importante percepção de Górgias sobre o discurso e, portanto, sobre
a retórica. Diz Górgias:
Na verdade, é com a palavra [8@v(@H] que identificamos algo, mas a palavra não
é nem aquilo que está à vista nem o ser: logo, aos que nos rodeiam, não comuni-
camos o ser mas sim a palavra, que é diferente das coisas visíveis. Tal como o que
é visível não se pode tornar audível e vice-versa, também o ser, porque subsiste
exteriormente, nunca se pode transformar na nossa palavra. E, não sendo pala-
vra, não se poderá comunicar a outrem (Frag. B 3, § 84).
Focando a passagem de acordo com nossa predisposição, destacamos
dois aspectos decisivos: 1) a clara distinção entre linguagem e objeto e 2) a
palavra possui um télos, cuja natureza é não somente identificar mas igual-
mente enunciar o mundo, colocando-o ao alcance de nossa compreensão,
mesmo que ela própria seja algo inteiramente diverso daquilo que enuncia
(pois linguagem e objeto são distintos). Melhor ainda: o mundo e tudo o
mais que o compõe tornam-se possíveis somente na palavra e nela é que
passam a valer. Ademais, se poderia mesmo perguntar: como seria possível
ao discurso enunciar o mundo se ele mesmo não fosse distinto do próprio
mundo? Se discurso fosse mundo e se mundo fosse discurso, um não se re-
meteria ao outro. Com Górgias, então, a palavra passa a plasmar o mundo
e, a partir disso, ela mesma (e, portanto, a linguagem) é catapultada para um
patamar até então inédito no mundo grego. Evidentemente, ao se pensar
que tudo o que existe para os homens é o que pode ser plasmado pela lin-
guagem, se quer dizer que, tudo o que existe, existe porque tem nome. O
inominado simplesmente não existe; mesmo se existir, não pode ser conhe-
8
Não se pode, contudo, esquecer ou ignorar a faceta zombeteira de Górgias. Ao final de
Elogio de Helena ele afirmará que compôs aquele discurso para “divertimento próprio”. Além
disso, como todo o Tratado não deixa de ser, em última análise, um grande argumento de
retorsão, é perfeitamente possível que sua concepção tenha sido regulada, senão pelo espí-
rito zombeteiro, pelo espírito de um puro exercício retórico.

HYPNOS
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106 cido. E não pode ser conhecido porque não é percebido. Além disso, a fal-
ta de percepção que impede o conhecimento também impede que algo seja
A tribuna de Górgias: linguagem, retórica e oportunidade

enunciado. Pois é o nome, a palavra, o discurso, que faz a compreensão


perceber o mundo enunciado. O que está fora da palavra, fora do discurso,
em suma, fora do 8ov(@H, é um absurdo.
Por si mesma, esta concepção já teria sido suficientemente revolucio-
nária em sua época para garantir fama ao seu criador. Concepção tão sur-
preendente foi esta que Heidegger, mais de dois mil anos depois, viria, ao
seu modo, a concordar e quase que a repeti-la, quando escreveu que o “8`(@H
deixa e faz ver (n"\<gF2"4) aquilo sobre o que se discorre e o faz para quem
discorre (medium) e para todos aqueles que discursam uns com os outros”.9
É neste deixar (pôr, apresentar o mundo) e fazer ver (iluminar o obscuro,
as reentrâncias do mundo)10 que o 8ov(@H tem seu ser. O 8ov(@H é como que
o 6ovFμ@H da compreensão. Portanto, o discurso, entendido como o veícu-
lo no qual o mundo se torna possível para a compreensão humana, é o pri-
meiro indício a ser notado no pensamento retórico de Górgias.
Tendo este indício sido encontrado, podemos deixar o Tratado do Não-
ser e avançar, agora dirigindo nossa atenção para o discurso intitulado Ora-
ção Fúnebre. Daqui recolheremos um elemento fundamental para a concep-
ção retórica de Górgias: o 6"4DovH (kairós). Antes, porém, é útil observar
os contornos da Oração.
Com este discurso, o autor visa exaltar a bravura dos soldados atenienses
mortos no campo de batalha. Não há certeza se sua composição teria sido o
resultado do exercício de técnicas retóricas ou se, de fato, foi pronunciado.11
Seu fraseado é vívido e, até certo ponto, demasiadamente passional. Aliás, isto
é um tanto curioso, na medida em que Górgias exalta a capacidade dos solda-
dos de eliminar, mediante a sensatez da razão, a insensatez da força com este
mesmo fraseado repleto de passionalidade. A vivacidade passional parece

9
HEIDEGGER, Martin. Ser e Tempo. § 7, B, p. 62-3. É de se destacar, aliás, que uma con-
cepção de 8ov(@H ao mesmo tempo tão similar, leve Górgias e Heidegger a posicionamentos
tão conflitantes. O primeiro, desiste imediatamente do ser por julgar impossível captá-lo,
ao passo que, o segundo, percorre toda sua vida tentando capturá-lo.
10
Quanto a este ponto, podemos lembrar Aristóteles. Em sua concepção retórica, metá-
foras e símiles possuem função vital no discurso, pois colocam diante dos olhos uma atuali-
dade complexa ou obscura. Metáforas e símiles permitem visualizar o que o discurso enun-
cia. Ao mesmo tempo, no De anima, III, 431 a 15, está posto que a alma jamais pensa sem
imagens. Além disto, Aristóteles considera a própria memória (:<Z:0) como impossível
sem uma imagem. Sobre isto, ver Sobre a memória, 450 a.
11
Se foi realmente pronunciado, a Oração parece relacionar-se ou com a guerra do
Peloponeso ou com a guerra de Corinto.

HYPNOS
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querer invocar a sobriedade da razão. Mas o fim para o qual este discurso se 107
dirige é certamente alcançado: a glorificação dos soldados mortos.

Fernando Czekalski
Estes, com efeito, são exaltados não apenas por sua coragem, mas
também pela sua razão, força, justiça e lealdade aos camaradas. Se nenhu-
ma qualidade faltava a esses guerreiros é pelo fato de que consideravam “ser
esta a lei mais divina e universal: falar e calar, fazer e deixar fazer o que se
deve no momento devido” (Frag. B 6). Se estes guerreiros realmente pos-
suíam esta qualidade ímpar ou se Górgias deliberadamente neles a enxer-
tou tendo em vista o louvor, não é algo tão importante. O que se afigura
como decisivo é que esta é a única passagem de seus escritos remanescentes
onde a idéia de 6"4DovH, o momento oportuno, é mencionada. No entanto,
Dionísio de Halicarnasso, ao afirmar que “nenhum retor ou filósofo estu-
dou a fundo a arte da oportunidade, nem mesmo Górgias de Leontinos, o
primeiro que se dedicou a escrever sobre este assunto, escreveu algo digno
de menção” (Frag. B 13) parece não deixar dúvidas de que uma teorização
sobre o tema foi realizada por Górgias. Onde teria sido depositada tal re-
flexão, porém, não se sabe.
É provável que jamais venhamos a saber ao certo a extensão e pro-
fundidade das reflexões de Górgias sobre o 6"4DovH, até mesmo porque, como
afirmamos, é apenas na Oração fúnebre que ocorre a menção ao 6"4DovH e
seu conteúdo, distribuído em ínfimas vinte e três linhas não permite maio-
res inferências. Mesmo assim, o fato mesmo de Górgias ter realizado tal
reflexão já é algo notável. Embora seja quase irresistível não pensar na pos-
sibilidade de relacionar o 6"4DovH a alguma ontologia gorgiânica sobre o
tempo, importa aqui pensar que tal idéia representa mais uma revolução no
que diz respeito ao discurso. Antes de qualquer coisa, um discurso orienta-
do pelo 6"4DovH é um discurso na oportunidade, isto é, na ocasião própria
sobre algo próprio. Este princípio faz com que, inevitavelmente, o discur-
so gorgiânico se regule pelos fatos do mundo, opondo-se a qualquer discur-
so que pretenda manter-se puro em uma esfera transtemporal e que auto-
nomamente pretenda regular ou explicitar o mundo de sua própria esfera
independente. Como poderia, aliás, um discurso enunciar o mundo, torná-
lo visível, sem mesmo se deixar afetar pelo mundo? Nos limites dessa
racionalidade, não se poderia cogitar, por exemplo, um discurso que afir-
masse, de modo categórico, que justiça é ‘x’ e que o conceito de justiça, agora
cristalizado, possa se aplicar a todos os casos, todos os povos, todos os tem-
pos. Não; um fato novo ao conceito – e por isso mesmo não contemplado
anteriormente por ele – sempre pode surgir. Discursar oportunamente é
essencialmente discursar com os fatos do mundo.

HYPNOS
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108 A intuição do 6"4DovH como senso de oportunidade regulador do dis-
curso revela-se ainda mais surpreendente por possuir uma função bastante
A tribuna de Górgias: linguagem, retórica e oportunidade

similar com aquilo que Aristóteles mais tarde viria a configurar como tópi-
co.12 O 6"4DovH mencionado por Górgias não reflete, absolutamente, algum
oportunismo interesseiro e conveniente; reflete, isto sim, uma situação
própria pela qual o discurso deve se orientar. E é da alçada do retor possuir
o espírito suficientemente apurado para verificar as várias oportunidades,
as várias circunstâncias de uma situação para bem construir seu discurso.
A perspectiva do 6"4DovH fica bastante evidente em um discurso que
sobreviveu in extenso: Defesa de Palamedes. É este o mais dinâmico e ritmado
discurso sobrevivente de Górgias. Seu objetivo? Representar a fala de auto-
defesa de Palamedes perante o tribunal.13 Este discurso encerra passagens
ilustrativas sobre a aplicação do 6"4DovH e com ele agora nos ocuparemos,
apresentando duas destas passagens. Estas passagens, que pensamos ser exem-
plares, deverão esclarecer a funcionalidade do 6"4DovH.
O primeiro elemento que se deve considerar é a estrutura do discur-
so. Toda a estrutura da Defesa de Palamedes é orientada pela questão da in-
justiça – esta, podemos dizer, configura o tópico – e é próprio do retor
perceber as possibilidades argumentativas deste caso justamente através das
oportunidades discursivas que justiça e injustiça oferecem. “Uma acusação
não demonstrada provoca um espanto evidente e, por causa desse espanto,
o discurso fica forçosamente bloqueado se eu nada descobrir a partir da
própria verdade e da presente situação de constrangimento, perante mes-
tres mais perigosos do que inventivos” (Frag. 11 a, § 4). Esta passagem re-
flete a conexão imprescindível entre mundo e discurso. A oportunidade
discursiva deve ser buscada no fato vivido, isto é, na acusação não demons-
trada que motiva o próprio discurso. É para não ser vitimado por alguma
espécie de bloqueio que o discurso se volta para a presente situação de cons-
trangimento, desencadeada pela acusação não demonstrada. O único pre-
ceito extra discursivo é a atitude de se voltar para a própria situação.
12
Aristóteles não define com precisão o que é exatamente um tópico, nem mesmo em sua
obra Tópicos. Sua melhor definição está na Retórica, 1358 a, onde ele dirá que tópicos são os
assuntos comuns à ética, política, física e outras disciplinas. De modo geral, um tópico é o
lugar onde a relação entre os conceitos têm sua possibilidade de articulação efetivada. As-
sim, p. ex., o tópico de causa, que pode estar presente tanto em estudo sobre física como
em um estudo sobre política.
13
De acordo com a tradição grega, Ulisses havia simulado loucura para não participar da
guerra de Tróia. Palamedes desmascarou-o e Ulisses, não esquecendo o fato, tramou uma
cilada para Palamedes que veio a culminar na morte deste na mesma guerra. O aconteci-
mento acabaria por assumir forma exemplar da morte injusta.

HYPNOS
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Ora, o movimento para a própria circunstância é subsidiado pelo 109
senso de oportunidade. É ele, o 6"4DovH, que permitirá a Górgias operar com

Fernando Czekalski
um outro tópico que é, a saber, o da necessidade. Com efeito, Palamedes,
de acordo com o discurso, acaba tendo o reconhecimento de seu acusador
tanto por sua engenhosidade, habilidade e inventividade mas, também, por
sua loucura, caracterizada por uma suposta traição à Grécia. “E contudo,
de que forma há-de ser forçoso acreditar num homem que, no mesmo dis-
curso sobre a mesma pessoa, afirma a respeito dela duas coisas tão opostas?”
(Frag. 11 a, § 25). A questão é simples: não pode haver duas verdades simul-
tâneas sobre uma mesma questão. Ou Palamedes é culpado ou Palamedes
não é culpado. Mas a ‘simplicidade’ não acaba aqui; não havendo necessi-
dade, simplesmente não há causalidade no que é dito e, não havendo causa-
lidade, não há fundamento para a acusação apresentada. Não há causa evi-
dente para a acusação. Deste modo, ela é automaticamente rebaixada para
o patamar da mera impressão pessoal do acusador. E este, convém que não
esqueçamos, preocupa-se unicamente com seu desejo de vingança.
Que tu não conheces bem aquilo de que me acusas, torna-se assim evidente.
Resta então dizer que, não sabendo, inventas. Então tu, ó mais audacioso dos
homens, baseando-se na opinião, que é a coisa menos digna de fé, e desconhecen-
do a verdade, ousar condenar um homem à morte? Como sabes que ele praticou
tal ação? Com certeza que é dado a todos formar uma opinião a respeito de tudo,
e nisso tu em nada és mais sábio do que os outros. Nem é nos que julgam que
sabem que convém depositar confiança, mas nos que sabem; nem há de dar mais
crédito à opinião do que à verdade, antes pelo contrário, há que dar mais crédito
à verdade do que à opinião (Frag. 11 a, § 24).
Seria natural que, após rebaixar a acusação ao nível da impressão
pessoal do acusador, este fosse igualmente lançado a uma situação embara-
çosa, pois a mera impressão pessoal é *ov>", é opinião, e opinião é algo des-
tituído de necessidade e verdade. Como, afinal de contas, uma acusação
embebida na opinião poderia vingar? O essencial a ser percebido é que a
argumentação se estrutura e assume sua forma a partir do 6"4DovH . É a
situação específica vivida por Palamedes que permite a Górgias pensar e
argumentar que o acusador nem mesmo de uma acusação verdadeira
dispõe. E isto depõe ainda mais contra Ulisses; tão cego de ódio ele estava,
tão obcecado estava em seu desejo de vingança que sua falsa acusação,
inconsistente devido à paixão, revela, finalmente, sua má-fé e, portanto, seu
caráter pérfido. Inocente, é o veredicto.
Do que até aqui se viu, o 6"4DovH é formalmente válido para qualquer
discurso como elemento ordenador mas sempre assume o conteúdo espe-

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110 cífico de uma situação específica, pois a oportunidade de cada situação é
própria e única. Este é, portanto, um novo indício sobre o pensamento
A tribuna de Górgias: linguagem, retórica e oportunidade

retórico de Górgias: 6"4DovH é princípio ordenador mas é, acima de tudo,


um princípio formal. Sua aplicação efetiva depende da recolha dos dados
da situação ou circunstância para que sua eficiência de fato se concretize.
Da Defesa de Palamedes podemos, ainda, extrair um novo indício sobre a
ordenação do discurso. Ao seu fim, Górgias alude a consagrada regra da
recapitulação do conteúdo do discurso quando este se aproxima do fim.
Neste caso, não haverá recapitulação pois os ouvintes são por demais qua-
lificados e recapitular seria duvidar da capacidade de atenção e apreensão
dos ouvintes. Embora isto seja antes uma vênia do que qualquer outra coi-
sa, é sugestivo a menção de Górgias quanto a recapitulação como parte
constituinte do discurso retórico. Se este recurso não foi aqui empregado é
porque a qualificação do auditório dispensava tal movimento. A partir dis-
to, podemos inferir que a recapitulação não era estranha ao pensamento de
Górgias.14
O poder ordenador do 6"4DovH se faz ainda mais evidente em outro
discurso de Górgias que nos chegou in extenso: o Elogio de Helena. Uma vez
mais, um aspecto da tradição grega é resgatado para dar vida ao discurso,
cujo objetivo é isentar Helena da culpa de ter sido ela a causadora da guer-
ra de Tróia.15 Este encômio, aliás, encerra preciosas observações de Górgias
sobre o discurso e sua constituição. Ao se propor a tarefa de defender He-
lena, Górgias não apenas se move através de um aspecto da tradição grega.
Sua apologia pretende colidir com a tradição, trincá-la e, até mesmo, suge-
ri-la sob nova perspectiva.
Ao mesmo tempo, a elaboração de uma defesa pode assumir tantas pe-
culiaridades e ser tão variável quanto as várias pessoas que podem se dispor
a assumir tal defesa. No caso de Górgias, toda sua elaboração decorre da
concepção do 6"4DovH. Contudo, antes de qualquer coisa, a introdução do
encômio apresenta a idéia de uma ortologia, de um discurso correto. “O
ordenamento duma cidade está na coragem dos seus cidadãos, o dum cor-
po na sua beleza, o duma alma na sua sabedoria, o duma acção na sua exce-
lência e o dum discurso na sua verdade. O contrário será o caos” (Frag. 11,
§ 1). Se a correção do discurso reside no seu ordenamento, em sua própria
14
A recapitulação não é um movimento acessório, mas sim a própria chancela do discurso
no espírito. Platão a chamou de peroração (Fedro, 267 d) e Aristóteles de epílogo (Retórica,
1419 b).
15
De acordo com a tradição grega, a guerra de Tróia fora causada pelo fato de Helena ter
abandonado seu marido Menelau para ficar com Páris, filho do rei de Tróia.

HYPNOS
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constituição, vê-se o quão importante será a capacidade de se perceber as 111
oportunidades residentes em cada situação. No caso presente, a verdade do

Fernando Czekalski
discurso, ou a verdade a que se propõe este discurso, está em inocentar
Helena e esta verdade somente virá à tona devido seu ordenamento e este,
por sua vez, é regulado pelo senso de oportunidade, o 6"4DovH É por isto
que Górgias pode escrever: “O que eu pretendo, ao dar uma lógica ao dis-
curso, é libertar da culpa quem sofre de tão má reputação, desmascarar os
que pela calúnia enganam e, mostrando a verdade, fazer cessar a ignorân-
cia” (Frag. 11, § 2). Uma vez mais, a lógica deste discurso é regulada pela
situação específica a que se refere.
O senso de oportunidade faz o retor perceber e avaliar as várias pos-
sibilidades para que Helena tenha agido do modo como agiu e, a partir da
análise destas possibilidades, elabora seu discurso. Antes de entrar no mé-
rito, a beleza da protagonista do conflito é mencionada. Beleza de ascen-
dência divina (Frag. 11, § 3), ela mesma já deveria se afigurar como possí-
vel motivo causador de atitudes irrefletidas por parte de homens mais an-
siosos. Tal fato, contudo, já era conhecido e não haveria necessidade de
insistir neste ponto, mesmo porque, o “dar-se informações a quem já está
informado traz credibilidade mas não propicia prazer” (Frag. 11, § 5).
É importante destacar esta sutileza. Mencionar os belos e harmonio-
sos traços de Helena não é simplesmente um movimento supérfluo (na
medida em que isto já era sabido por todos); pelo contrário, tal alusão tem
como propósito afirmar a idéia de que a argumentação vindoura baseia-se
em algo realmente novo. O surpreendente é que esse algo novo que a argu-
mentação visa apresentar é entrelaçado com conceitos bastante familiares
aos gregos. “Foi certamente pelos desígnios do Destino, pelas resoluções dos
deuses e pelos decretos da Necessidade, que ela fez o que fez, quer tenha
sido levada à força, convencida pelos discursos, ou arrebatada pelo Amor”
(Frag. 11, § 6). Estas são, para Górgias, as únicas causas possíveis para o ato
do qual Helena era acusada. A relevância do 6"4DovH, aqui, é extrair o ex-
traordinário do ordinário que, neste caso, se manifesta através dos familia-
res conceitos de destino (JbP0) e necessidade (•<V(60).
Todo o desenvolvimento da defesa de Helena decorre desta premis-
sa. Seria, contudo, algo simplório inocentar a grega culpando o destino ou
a necessidade. Deter o discurso neste ponto seria uma trivialidade, pois é
simplesmente impossível lutar contra a Necessidade ou o Destino. Do
mesmo modo, a vontade divina é infinitamente mais poderosa que a von-
tade humana; se não fosse mais poderosa, nem mesmo poderia ser divina.
“O mais forte comanda e o mais fraco vai atrás. A divindade é mais pode-

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112 rosa que o homem, tanto na força como na sabedoria e em tudo o mais”
(Frag. 11, § 6).16 Este raciocínio é fundamental, pois embasa o seguinte para,
A tribuna de Górgias: linguagem, retórica e oportunidade

em seguida, com ele se mesclar: se Helena agiu como agiu por ser fisicamente
mais fraca que Páris, se, por ser mais fraca não lhe seria possível impedir a
atitude violenta e se o mais forte comanda e o mais fraco vai atrás, Helena
não poderia, mesmo se desejasse, evitar o desfecho. Também por este viés
Helena não pode ser condenada, pois é “evidente que procedeu injustamente
quem a raptou e ultrajou, enquanto ela teve a infelicidade de ser raptada e
ultrajada. Logo, é o bárbaro que se lançou a esta bárbara empresa que me-
rece ser responsabilizado pelo discurso, pela lei e pela ação” (Frag. 11, § 7).
A grande trama da argumentação, contudo, se dá na possibilidade
restante: ter sido Helena seduzida pelo discurso. É nesse ponto, também,
que surgem outras percepções de Górgias sobre o discurso. “O discurso é
um senhor soberano que, com um corpo diminuto e quase imperceptível
leva a cabo ações divinas. Na verdade, ele tanto pode deter o medo como
afastar a dor, provocar a alegria e intensificar a compaixão” (Frag. 11, § 8).
Como anteriormente, a possível causa da ação é caracterizada como uma
causa irresistível. Mas, agora, a grande novidade é que a força motriz do
polêmico ato é o discurso. Não um discurso qualquer, mas um discurso
construído que visa o fim específico para o qual ele se propõe. E frente a
um discurso assim pensado e construído, nem Helena nem qualquer outra
pessoa parecem ter forças para resistir. O que o torna, de fato, um senhor
soberano, é sua capacidade de pôr em movimento os ânimos de quem por
ele é afetado. Afetar e mover os ânimos é afetar o receptor do discurso
integralmente. O efeito do discurso gorgiânico é o contrário exato do
efeito produzido pelo olhar das górgonas; este imobiliza, aquele põe em
movimento.
O decisivo movimento produzido pelo discurso não é, obviamente,
de ordem motora. Trata-se, isto sim, de trazer o ouvinte para si, ou seja,
fazer com que o ouvinte passe a comungar com o discurso que lhe é trans-
mitido. O movimento proposto é a mudança do juízo. A transmissão do
que é dito e sua conseqüente aceitação não pode, contudo, se dar em uma
única estocada ou de modo instantâneo. “Eu concebo e designo igualmen-
te toda a poesia como um discurso com ritmo. Um temor reverencial, uma
comovida compaixão e uma saudade nostálgica insinua-se nos que a ouvem.

16
No diálogo Górgias, 483 d, Cálicles afirma: “o mais poderoso deve dominar o mais fraco
e gozar as vantagens da sua superioridade”. O mesmo Platão, no livro I da República, faz
outra personagem, o sofista Trasímaco, defender ponto de vista semelhante.

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Por intermédio das palavras, o espírito deixa-se afetar por um sentimento 113
especial, relacionado com sucessos e insucessos de pessoas e acontecimen-

Fernando Czekalski
tos que nos são alheios” (Frag. 11, § 9). O discurso, seja ele qual for, afeta
seja qual for o espírito. Em vista disso, um discurso preparado de modo
especial parece poder afetar de modo igualmente especial seu receptor. O
discurso parece poder ser capaz de atravessar todos os poros para atingir o
espírito em cheio, tal qual uma flecha. O discurso, esse corpo diminuto mas
de informação concentrada, pode afetar de modo tão profundo que altera
a percepção do receptor sobre aquilo que lhe é enunciado. Nesta alteração
floresce algo que lhe altera o mundo e o juízo, tornando-os comuns ao dis-
curso enunciado. Floresce a persuasão.
Na passagem acima mencionada, Górgias alarga consideravelmente
o entendimento sobre a poesia ao declarar que o ritmo a constitui e lhe
caracteriza. Nesta perspectiva, o seu Defesa de Palamedes é um excelente
poema pois ritmo é justamente o que não lhe falta. Sua alusão ao ritmo pode
nos fazer inferir que o discurso deve pulsar no ritmo do receptor, desen-
volver-se sincronicamente com ele.17 Embora isto faça sentido, tal concep-
ção por parte de Górgias reflete apenas seu grande entusiasmo pela prosa e
o desejo de elevá-la a um patamar tão bem conceituado quanto aquele no
qual a poesia já estava tão bem assentada. Mais importante é sua intuição
de que um discurso ritmado possui a singular capacidade de preparar me-
lhor sua própria recepção por parte do ouvinte. Um discurso linear e cons-
tante anestesia, digamos, a capacidade de recepção.18 Por isso, muitas vezes,
a capacidade de improvisar pode ser simplesmente decisiva e mais uma vez
Górgias parece ter sido o primeiro a dar-se conta da importância do impro-
viso para uma boa comunicação (Frag. A, § 1a).
Ao mesmo tempo, o discurso deve, se não partir de uma pré-com-
preensão, trazê-la em si, de modo que os ouvintes possam identificá-la, pois
esta pré-compreensão é fundamental para a melhor recepção do discurso.
Ora, nada mais elementar ao homem que suas próprias impressões. Um
intróito que enuncia reações a impressões comuns como sucesso-insucesso,
ventura-desventura, atividade-passividade, etc., faz despertar o sentimento
adequado ao tema. Assim, por exemplo, se um discurso versa sobre a
temática ‘casamento’, é conveniente despertar o sentimento de confiança
17
É exatamente por causa disto que as tematizações sobre a retórica em Platão e Aristóteles
darão especial atenção ao conhecimento da alma. Se conheço a alma, posso construir um
discurso que a afetará mais eficazmente.
18
Não se esqueça que o pensamento Górgias gravitava em torno da ágora, ou seja, eram
discursos preparados para que fossem ouvidos e não lidos.

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114 ou desconfiança, cortesia ou descortesia ou quaisquer outros sentimentos
similares. Também aqui o 6"4DovH tem importante papel ao se configurar
A tribuna de Górgias: linguagem, retórica e oportunidade

como recurso capaz de verificar qual sentimento é o mais compatível com


o tema em discussão. É por isso que “os discursos harmoniosos, inspirados
pelos deuses, provocam uma sensação de bem-estar, dissipando a tristeza.
A força da palavra-mágica, convivendo com a opinião do espírito, fascina-
o, convence-o e transforma-o por encantamento” (Frag. 11, § 10). O gran-
de discurso não apenas coloca em movimento o juízo, mudando-o, mas
também o modifica de modo prazeroso; e o prazer se dá, fundamentalmente,
na nova compreensão surgida sobre aquilo que enuncia o discurso. Conhe-
cer algo novo é prazeroso. É assim que, havendo a mudança de juízo, con-
suma-se o objetivo máximo do discurso, ou seja, a persuasão.
De fato, no que respeita à persuasão, esta não é de modo algum apenas parecida
com a necessidade, mas possui a mesma força. É que o discurso persuasor da
mente, persuade-a, força-a tanto a acreditar no que foi dito como a consentir no
que é feito. Portanto, é quem persuade que é culpado de prática de violência, ao
passo que a que foi persuadida, porque constrangida pelo discurso, é, sem razão,
objeto de má reputação (Frag. 11, § 12). Poderia Helena resistir?
Tal passagem é exemplar. Na medida em que ela é compreendida
dentro do propósito do discurso apresentado por Górgias, que é mudar o
juízo sobre o ato de Helena – e, portanto, inocentá-la – trata-se de algo
perfeitamente natural. Por outro lado, alguém poderia argumentar que
Górgias, na qualidade de retor e produtor de discursos, pratica tanta vio-
lência quanto aquele que seduziu Helena (se esta foi seduzida por um dis-
curso). E tal argumento não seria absurdo pois o retor ainda afirma que,
(...) assim como certos medicamentos expulsam do corpo certos humores, supri-
mindo uns a doença e outros a vida, do mesmo modo, de entre os discursos, uns
há que inquietam, outros que encantam, outros que atemorizam, outros que
incutem coragem no auditório, outros ainda que, mediante uma funesta persua-
são, envenenam o espírito. (Frag. 11, § 14)19

19
Sobre a relação entre medicina e discurso ver Górgias, 456 b. Cabe ressaltar que a rela-
ção (metafórica ou não) entre medicina e linguagem aqui mencionada, combinada com o
uso de expressões como ‘inspirados pelos deuses’, ‘força da palavra-mágica’ e ‘encantamen-
to’ no §10, também pode indicar algum contato de Górgias com o filósofo (e místico)
Empédocles de Ácragas. Segundo Diógenes Laércio (VIII, 58), Górgias teria não apenas tes-
temunhado Empédocles a praticar sortilégios mas também teria sido seu discípulo. Em vis-
ta disso, a capacidade do discurso ser um corpo diminuto capaz de atravessar os poros não
é mero malabarismo lingüístico, pois é conhecida a importância dos poros no pensamento
de Empédocles. Além do próprio Diógenes Laércio, também Platão sugere uma ligação mais

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Pode ser que haja violência; no entanto, é importante destacar que tal 115
argumento insere-se em um plano moral e a moral, para Górgias, não rela-

Fernando Czekalski
ciona-se com a manufatura de discursos. Ou melhor: a retórica, entendida
como técnica para fabricação de discursos, não encerra em si mesmo moral
alguma. Nem mesmo poderia. A retórica, defende-se Górgias, “deve ser
usada com justiça. Portanto, entendo que, se um homem adquire uma pre-
paração retórica e depois se serve deste poder e desta arte para praticar o
mal, não há o direito de odiar e desterrar da cidade aquele que o ensinou”
(Górgias, 457 b). De fato, condenar um mestre retórico por algum de seus
alunos elaborar discursos odiosos seria o mesmo que condenar um profes-
sor de química por ter ensinado algum aluno a manipular certas substân-
cias e este, depois de apropriar-se de tal conhecimento, manufaturar, por
exemplo, armas químicas. Do mesmo modo como se deve condenar o mau
químico e não a química, deve-se condenar o mau retórico e não a própria
retórica. Mas, para além desta perspectiva, a retórica, mesmo que opere com
regras, tem espaço para a inventividade, para a criação livre, para a supera-
ção, mesmo que momentânea, de suas próprias regras. Por isto, além de uma
técnica, a retórica também é arte. É no espaço retórico que a lida com as
palavras ou com a linguagem pode assumir-se e postar-se com arte. E
Górgias, indiscutivelmente, era um artista do discurso. Uma arte que se
autocensura ou impõe a si mesma preceitos morais é sempre suspeita.
O fato é que o Elogio de Helena, devido sua inusitada conclusão, consti-
tui-se, ainda, no discurso mais intrigante de Górgias.
Com este discurso afastei a ignomínia que pesava sobre uma mulher e permaneci
fiel ao objetivo que fixei no início do discurso; tentei destruir a injustiça duma
censura e a ignorância duma opinião; quis fazer deste discurso um elogio para
Helena e um divertimento para mim. (Frag. 11, § 21)20
Galhofa? Mesmo que seja, isto em nada invalida a perspicácia dos racio-
cínios e seu firme trançado. Ao mesmo tempo, se não for uma galhofa, os
raciocínios continuam perspicazes e seu trançado se mantêm igualmente fir-
me. E talvez seja exatamente nisto que reside o verdadeiro gracejo (caso te-
nha ocorrido o gracejo).

estreita entre o pensamento de Empédocles e Górgias (Menon 76 a). Finalmente, como am-
bos eram sicilianos, é perfeitamente possível tal ligação.
20
É curioso que na República, 376 d, onde Platão discute a relação entre educação, música
e ginástica, esteja colocado o seguinte: “Eduquemos estes homens em imaginação, como se
estivéssemos a inventar uma história e como se nos encontrássemos desocupados”. Terá sido
a reflexão posterior originada por algum desejo de recrear ou divertir o espírito? Se sim, isto
em nada invalida a perspicácia dos raciocínios platônicos e seu firme trançado. Se não, os
raciocínios continuam perspicazes e seu trançado se mantêm igualmente firme.

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116 Seja como for, neste encômio subsistem, se não as mais significativas,
pelo menos as mais explícitas percepções de Górgias sobre o discurso. Jo-
A tribuna de Górgias: linguagem, retórica e oportunidade

cosas ou não, é o que dele sobreviveu. Mesmo assim, em combinação com


os outros fragmentos que chegaram até nós e com a doxografia, é impossí-
vel não reconhecer o impacto e a transformação desencadeados por Górgias.
A palavra que plasma o mundo e torna-o possível no discurso é uma gran-
de conquista para o futuro do próprio discurso pois, agora, este enuncia e
propõe o mundo. Sua intuição do 6"4DovH como regulador do discurso é
também notável. É ele, igualmente, co-autor (ao lado do talento) da harmo-
nia, da beleza e do prazer que o discurso inspirado pode proporcionar. Suas
metáforas e a primazia do ritmo sobre o metro21 indicam a vitória da pro-
sa sobre a poesia. Melhor: surge agora, para Górgias, a verdadeira poesia.
Diante disto, pode-se perguntar: o que, então, Górgias terá sido? Retor
ou poeta? Esta não é uma pergunta secundária; ao contrário, é a que define
a questão. E a resposta é que Górgias é tanto retor quanto poeta. Mas ape-
nas porque, primordialmente, Górgias é “poiético”. Antes de qualquer ou-
tra significação, B@\0F4H é produção e criação. Portanto, de uma maneira
mais original, será poeta qualquer produtor de discursos. É em virtude dis-
to que, por exemplo, a idéia de Horácio, expressa posta em sua Arte poéti-
ca, de que o verdadeiro poeta deve dominar cada tipo de gênero literário se
justifica. O verdadeiro poeta deve poder transitar por qualquer gênero de
escrita e qualquer gênero de escrita sempre comportará a retórica. Como
diz Nietzsche, “o que se chama ‘retórica’, para designar os meios de uma
arte consciente, estava já em ato, como meios de uma arte inconsciente, na
linguagem e no seu devir, e mesmo que a retórica é um aperfeiçoamento
(Fortbildung) dos artifícios já presentes na linguagem. Não existe de manei-
ra nenhuma a ‘naturalidade’ não-retórica da linguagem à qual se pudesse
apelar: a linguagem ela mesma é o resultado de artes puramente retóricas”.22
Por isto, agora surge, para Górgias, a verdadeira poesia.

[recebido em outubro de 2004]

21
Na Poética, I, Aristóteles afirma: “Costuma-se dar esse nome mesmo a quem publica
matéria médica ou científica em versos, mas, além da métrica nada há de comum entre
Homero e Empédocles; por isso o certo seria chamar poeta ao primeiro e, ao segundo, an-
tes naturalista do que poeta. Semelhantemente, quem realizasse a imitação combinando todos
os metros, como Querêmon na rapsódia Centauro, mesclada de todos os metros, também
devia ser chamado poeta”.
22
NIETZSCHE, Friedrich. Da retórica, p. 44-5.

HYPNOS
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REFERÊNCIAS 117

Fernando Czekalski
ARISTÓTELES. Poética. In: A poética clássica. Tradução de Jaime BRUNA. 7ª ed.
São Paulo: Cultrix, 1997. p. 19-52.
GÓRGIAS. Testemunhos e fragmentos. Tradução, comentário e notas de Manuel José
de Souza BARBOSA e Inês Luisa de Ornellas e CASTRO. Lisboa: Edições
Colibri, 1993. Edição Bilíngüe Grego - Português.
HEIDEGGER, Martin. Ser e Tempo. Tradução de Márcia de Sá CAVALCANTE. 6ª.
ed. Petrópolis: Vozes, 1997. Parte I.
NIETZSCHE, Friedrich. Da retórica. Prefácio e tradução de Tito Cardoso da
CUNHA. 2ª.ed. Lisboa: Passagens, 1999.
PLATÃO. Górgias. Introdução, tradução do grego e notas de Manuel de Oliveira
PULQUÉRIO. Lisboa: Edições 70, 1992.
_____. República. Introdução, tradução do grego e notas de Maria Helena da Rocha
PEREIRA. 8ª ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1996.

HYPNOS
ano 11 / nº 16 – 1º sem. 2006 – São Paulo / p. 101-117
Resenha crítica

NOTÍCIAS SOBRE SÓCRATES E XENOFONTE.* Para uma nova abordagem


da questão socrática: desenvolvimentos recentes e futuros (no prelo).

Já se passaram três lustros desde que pensamento socrático levando em con-


Gabriele Giannantoni publicou suas ta, na medida do possível, o “conjunto”
Socratis et socraticorum Reliquiae,1 cha- das translações da figura de Sócrates que
mando a atenção do mundo científico foram feitas e creditadas a seus discípu-
para os testemunhos socráticos “meno- los – e assim prescindindo-se da subdi-
res” e “mínimos”. Um dos maiores visão em “socráticos escolarcas” e
méritos desta obra foi mostrar como a “socráticos não escolarcas”. O Sócrates
questão socrática podia ser tratada so- que, pouco a pouco, emergiu desta
mente a partir de uma análise da “lite- nova abordagem hermenêutica de-
ratura” socrática antiga, e em particu- monstrou ser um Sócrates fundado não
lar dos lógoi dos maiores discípulos do apenas nos diálogos platônicos,3 mas
filho de Sofronisco. Os estudos mais também em extenso número de outros
recentes 2 têm, em parte, confirmado testemunhos (mais ou menos “meno-
esta hipótese. Em parte, porém, a supe- res”), finalmente livres de comparações
raram, sustentando a necessidade de ou paralelismos enfadonhos.
reconstruir os aspectos particulares do Neste quadro, assume um valor

*
Resenha de trabalhos apresentados em vários colóquios sobre Xenofonte leitor de Sócrates
(no prelo).
1
G. GIANNANTONI, Socratis et Socraticorum Reliquiae, collegit, deposuit, apparatibus
notisque intruduxit, Napoli, Bibliopolis: 1990. Está em fase de preparação, sob s organiza-
ção de Emidio Spinelli com a colaboração técnica de G. Iannotta, A. Manchi e D. Papitto,
e a coordenação de V. Celluprica, um hipertexto digitas das Reliquiae, que contém os tex-
tos recolhidos por Giannantoni e os relativos índices das fontes e dos nomes, aos quais se
acrescentam dois novos apêndices, respectivamente, o texto completo das Nuvens, de
Aristófanes, e os escritos socráticos de Xenofonte.
2
Como promotores da renaissance dos estudos socráticos, dos quais nos ocuparemos nes-
ta resenha, citamos, sem pretender de algum modo aproximar suas variadas posições, Donald
Morrison, Louis-André Dorion, Michel Narcy e Livio Rossetti.
3
Um Sócrates filho apenas do testemunho platônico é aquele de Gregory Vlastos e, em
geral, de grande parte dos estudiosos norte-americanos. A copiosa messe de monografias
publicadas nos Estados Unidos a partir do início dos anos noventa tem, de fato, como ob-
jeto quase que exclusivamente Plato’s Socrates, como aparece no título de um dos mais co-
nhecidos volumes de T.C. Brickhouse e N.D. Smith (New York-Oxford, Oxford University
Press: 1994).

HYPNOS
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paradigmático a recente reavaliação de te moral (Jean-Baptiste Gourinat, La 119
Xenofonte,4 um autor freqüentemente dialectique de Sócrates selon les

Resenha crítica
lido à luz do que “não” soube escrever, ‘Memorables de Xénophon’; Hugues-
nem ser em relação a Platão, ao invés Oliver Ney, Y-a-t-il um art de
de ser considerado pelo que ele foi ca- penser? La techné manquante de
paz de compreender e transmitir in- l’enseignement socratique dans les
dependentemente de seus contemporâ- Mémorables de Xénophon). Uma
neos. “arte” dialética que tende não tanto a
O Colloque International de refutar os adversários de Sócrates,
Philosophie Ancienne “Xénophon et como acontece em Platão, mas antes
Socrate”, que teve lugar em Aix-en destinada à paide…a, aos amigos e com-
Provence, de 6 a 9 de novembro de panheiros (François Renaud, Les
2003, por iniciativa de Alonso de Mémorables de Xénophon et le
Tordesilhas (Université de Provence, Gorgias de Platon. Etude comparative
Aix) e Michel Narcy (CNRS, Paris), de s stratégies de questionnement; Livio
representa talvez uma das tentativas Rossetti, Savoir imiter c’est connaître:
que mais teve sucesso na tarefa de libe- le cas de Mémorables III,8). Alonso de
rar Xenofonte do jugo da “superiorida- Tordesilhas (Socrate et Prodicos dans
de filosófica” do testemunho platônico. les Mémorables de Xénophon) mos-
A variedade e a riqueza especulativa dos trou quanto, em Xenofonte, a idéia de
temas que surgiram no curso dos traba- uma dialética “moral” está ligada à con-
lhos e, sobretudo, a peculiaridade des- cepção socrática da linguagem, e quan-
tes temas em relação àqueles tratados to essa concepção depende, por sua vez,
por Platão, fazem surgir um Sócrates de um sofista como Pródico. As contri-
totalmente novo, digno alter ego daque- buições de Louis-André Dorion
le platônico. Encontramo-nos, por (Socrate et l’oikonomía), Vana
exemplo, diante de uma dialektik¾ Nikolaïdou-Kyrianidou (Autonomie et
tšcnh estreitamente ligada ao conceito obéissance. Le maître ideal de
de ™gkr£teia, e portanto eminentemen- Xénophon face à son ideal de prince),

4
Se trata de uma reavaliação que, em âmbito anglo-saxão, não se restringe mais aos escrtios
de Donald Morrison (como a sua contribuição já clássica On Professor Vlastos’s Xenophon,
in: Ancient Philosophy, VII, 1987, pp. 9-22). Os ensaios organizados por Paul Van Der Waerdt
(The Socratic Movement, Ithaca, NY, Cornell University Prees: 1994) mostraram como nos
Estados Unidos há estudiosos interessados em um Sócrates não exclusivamente platônico
e, no caso, “xenofontiano”. Neste sentido se deve colocar o comentário pontual das Memo-
ráveis, escrito pela estudiosa australiana Vivienne J. Gray (The Framing of Socrates. The
Literary Interpretation of Xenophon’s Memorabilia, Suttgart, Steines: 1998). Confirmando esta
tendência de estudos, um dos últimos volumes da Ancient Philosophy (XXIII, 2003) contém,
uma acurada revisitação da memória de Morrison, Xenophon’s Socrates on the Just and the
Lawful, que saiu na mesma revista em 1987 (VII, pp. 329-347), assinada por David M. Johnson
(pp. 255-281). É lícito agora esperar uma réplica de Morrison em um dos próximos núme-
ros da Ancient Philosophy...

HYPNOS
ano 11 / nº 16 – 1º sem. 2006 – São Paulo / p. 118-124
120 e Domingo Plácido (L’historicité due abrindo caminho para novos desenvol-
personnage de Socrate dans vimentos da questão socrática. Outros
Resenha crítica

l’Économique de Xénophon) sublinha- impulsos para uma abordagem tenden-


ram como o modelo ético do Sócrates te a restituir a dignidade plena ao teste-
de Xenofonte é profundamente inspi- munho de Xenofonte provêm direta-
rado nos aspectos políticos, além de mente de Louis André Dorion, que
“paidêuticos”, do conceito de depois de ter publicado o primeiro li-
kalokagaq…a. Isto vale também para o vro das Memoráveis na edição Belles-
oikos e a polis, duas realidades gover- Lettres (com o texto estabelecido nova-
náveis só e unicamente mediante as vir- mente por Michel Bandini)6, e ter coor-
tudes morais de um un basilikÕj ¢n»r. denado um número monográfico do
A concepção legalista da ética é um ele- Les Études Philosophiques (2004/2), de-
mento característico também da reli- dicado ao Sócrates de Xenofonte (com
giosidade socrática em Xenofonte, intervenções do próprio Dorion,
como revelaram Tomás Calvo (La Michel Nercy, Vivienn J. Gray,
religiosité de Socrate chez Xénophon) Donald Morrison e Aldo Branacci),
e Alessandro Stavru (Socrate et la dedica-se agora à conclusão da tradução
confiance dans les agraphoi nomoi comentada dos três livros restantes das
[Xénophon, Mémorables, IV, 4, 19-25]. Memorabilia.
Réflexions sur la Socratica de Walter Uma grande atenção às fontes
Friedrich Otto).5 Até mesmo a doutri- socráticas, “antes” e “além” de qualquer
na da yuc» assume aqui conotações comparação com Platão, caracteriza
especificamente morais (Donald também o primeiro número da revista
Morrison, Le Socrate de Xénophon et dirigida por André Laks e Michel
la psycologie morale; Michel Narcy, Narcy, que contém uma série de ensai-
Socrate et son âme dans les os dedicados às múltiplas figuras de
Mémorables). Sócrates (referimo-nos aos artigos de
Ao conseguir evitar a deletéria Louis André Dorion, Klaus Döring,
justaposição com Platão, o Congresso Jean-Baptiste Gourinat, Sébastien
de Aix evidenciou a riqueza Allard, Livio Rossetti, Aldo Brancacci
especulativa do Sócrates de Xenofonte, e Francesca Alesse).7

5
A interpretação socrática do filólogo clássico e historiador das religiões Walter F. Otto
está profundamente ligada ao testemunho de Xenofonte. Dos seus escritos socráticos iné-
ditos (cerca de 2000 folhas manuscritas) está para sair, em tradução italiana, o curso dado
em Königsberg, em 1943-1944: Socrate e l’uomo greco, editado por STAVRU, A. Milano,
Marinotti: 2005.
6
XÉNOPHON, Mémorables, livre I, texte étabili par M. Bandini et traduit par L.-A.
Dorion, Paris, Les Belles-Lettres: 2000.
7
O número da Philosophie Antique que saiu em 2001 (Lille, Pesses Universitaires du
Septentrion) se intitula de fato Figures de Socrate. Isto representa o ponto de chegada de um
programa articulado de pesquisa, que nasceu por iniciativa de Michel Narcy e Gabriele
Giannantoni do CNRS, em colaboração com o Centro di Studio del Pensiero Antico.

HYPNOS
ano 11 / nº 16 – 1º sem. 2006 – São Paulo / p. 118-124
E se uma semelhante abordagem zendo assim justiça à sua insuperável 121
parece hoje pertencer aos estudiosos grandeza.8

Resenha crítica
francófonos (franceses e canadenses, no Em explícita continuidade com o
caso de Dorion), o ciclo de conferên- congresso de Aix e o seminário
cias dado por Livio Rossetti em Nápo- napolitano de Rossetti, teve lugar as
les demonstra como esta abordagem “Prime Giornate di Studio Sulla
está começando a se afirmar também na Letteratura Socratica Antica”, 9 que
Itália. Em um simpósio intitulado “O aconteceu em Senigallia (Ancona) de 17
universo dos diálogos socráticos”, que a 19 de fevereiro de 2005, por iniciati-
aconteceu de 26 a 30 de janeiro de 2004, va do Departamento de Filosofia da
em Nápoles, no Instituto Italiano para Universidade de Perúsia (onde está o
os Estudos Filosóficos, Rossetti de fato próprio Livio Rossetti, portanto), em
mostrou como o paradigma proposto colaboração com o Município de
em Aix pode ser aplicado também ao Senigallia e com a patrocínio de algu-
enorme corpus dos sokratikoi logoi, mas importantes instituições culturais
documentos preciosos para reconstruir (a International Plato Society, o Centre
e circunstanciar as dinâmicas dos diálo- d’Études sur la Pensée Antique “Kairos
gos socráticos. No momento em que kái Logos” de Aix-em-Provence, e o
estes lógoi são considerados um conjun- Instituto Italiano per gli Studi filosofici
to do qual a obra platônica é uma par- di Napoli). Deste importante congres-
te, mas somente uma parte, torna-se so surgiu com mais força a necessidade
possível ter uma idéia das constantes, de elaborar um Sócrates não mais fun-
características de gênero, lógica interna dado exclusivamente no testemunho
e linhas de desenvolvimento, e assim platônico. Um atento exame das fontes
ver sob uma nova luz todo um perío- deixa claro como o processo de
do literário e filosófico. Isto significa, “socratização” da filosofia, que se esta-
por um lado, compreender que os assim beleceu em Atenas na primeira metade
chamados socráticos “menores” foram do IV século a.C., graças à difusão ca-
bem mais do que simples contemporâ- pilar dos sokratikoi logoi, vai muito
neos de Platão; por outro, enquadrar além do corpus platonicum, impondo-se
corretamente o contexto no qual um como um fenômeno literário sem pre-
gênio como Platão agiu e se afirmou, fa- cedentes, capaz de suplantar qualquer

8
Estas e outras importantes teses sobre a gênese e o desenvolvimento dos diálogos
socráticos estão também no centro das atenções das seguintes contribuições de Rossetti. Le
dialogue socratique in statu nascendi, in Philologie Antique, I, 2001: Figures de Socrate, pp.
11-35; The sokratikoi logoi as a Literary Barrier. Toward the Indentification of a Standard
Socrates, in Socrates 2400 years Since His Death, a cura di V. Karasmanis, Athina, ECCD:
2004, pp. 81-94; Le contexte littéraire dans le quel Platon a écrit, in La philosophie de Platon,
2, a cura di M, Fattal, L’Harmattan, Paris, 2005, pp. 51-80.
9
Um dossiê do congresso, com programa, resumos e ensaios introdutórios, está disponí-
vel on line no site www.socratica2005.info.

HYPNOS
ano 11 / nº 16 – 1º sem. 2006 – São Paulo / p. 118-124
122 outro gênero de escrita filosófica (Livio Sofista), com os quais se pode distinguir,
Rossetti, L’invenzione dei dialoghi e até mesmo contrapor, o pensamento
Resenha crítica

socratici: un fatto quanto innovativo?).10 de Sócrates com o pensamento de seu


As modalidades dos logoi socráticos, mais importante discípulo. Aos
em parte totalmente inovadora, em socráticos Antístenes e Aristipo se de-
parte situadas no âmbito da tradição dicaram, respectivamente, as contribui-
retórico-literária do V século, foram ções de Franco Trabattoni (Antistene,
ilustradas tanto por Leônidas Platone e l’uso deis piaceri nel Fedone)
Bargeliotis (Indentifying Some of the e Annie Hourcade (Aristippe: la
Dramatic Scenes of Socrates), como por sagesse, le plaisir et l’argente), de cujas
Kendall Sharp (Socratics and contribuições emergem algumas ques-
Sokratikoi lógoi in Plato’s Dialogues). tões que, freqüentemente, em nome do
Quanto à literatura dos grandes retores “verdadeiro Sócrates”, estiveram no
do V e IV séculos, e a influência nos es- centro do debate filosófico do IV sécu-
critos com os quais os discípulos de lo e ao longo de todo o pensamento
Sócrates defenderam o seu mestre das helenístico. As contribuições dedicadas
acusações da condenação, foi revelada ao Sócrates de Xenofonte vão na estei-
por Alonso de Tordesilhas (Difesa di ra do congresso de Aix, na medida em
cause perse: la difesa dei Palamede que permitem colher aspectos do pen-
di giorgia e le apologie di Socrate di samento do filho de Sofronisco que não
Platone e di Senofonte), e por Mauro são imediatamente evidentes na obra
Tulli (Isocrate storico del pensiero: platônica. Neste sentido, Emido
Antistene, Platone, gli eristi Spinelli (La parabola del Socrate
nell’Encomio di Elena). Michel Narcy senofonteo: da Labriola a Mondolfo)
(IL discorso di Alcibiade nel Simpósio forneceu uma reconstrução precisa da
platonico) e Elsa Grasso (Socrate dans questão do Sócrates de Xenofonte na
le Sophiste de Platon: juge ou Itália, pondo em confronto as interpre-
prétendant?) propuseram modelos de tações de An-tonio Labriola11 e Rodolfo
leitura de passagens dos diálogos platô- Mondolfo.12 Hugues-Olivier Ney (Ame
nicos (respectivamente o Banquete e o et corps: l’expressivité de l’invisibile

10
Sobre as profundas implicações do fenômeno literário e filosófico dos socrakikoi logoi
e sobre outras questões fundamentais que surgiram no curso dos trabalhos, se realizou, como
conclusão do congresso, um profícuo debate, coordenado por Mauro Tulli, entre Mario
Vegetti, Givanni Casertano e Giovanni Cerri.
11
A. Labriola. La dottrina di Socrate secondo Senofonte, Platone ed Aristotele. Stamperia della
Regia Università di Napoli: 1871. Recentemente o ensaio de Labriolafoi reimpresso como
introdução à edição dos Memoráveis de Xenofonte, organizada por Anna Santoni (Milão,
Biblioteca Universale Rizzoli: 2001).
12
R. Mondolfo, “Socrate” capítulo central dos Moralisti gregi: la coscienza morale da Omero
a Epicuro (primeira edição: Moralistas griegos: la consciencia moral, de Homero a Epicuro.
Buenos Aires, Imán: 1941), Tradução italiana de Castigliano, organização de V.E. Alfieri,
Milão, Riccardi: 1960.

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ano 11 / nº 16 – 1º sem. 2006 – São Paulo / p. 118-124
chez Socrate et Xénophon) demons- pois permite pesquisas, também cruza- 123
trou como a concepção da teoria da das, de vocábulos, formas, expressões,

Resenha crítica
yuc» por Xenofonte, que em Aix tinha frases, loci e assuntos em todo o corpus
aparecido com uma conotação nitida- platonicum. Emido Spinelli apresentou
mente moral, pode prestar-se também a edição eletrônica das Socratis et
a uma interpretação “cosmológica”, se Socraticourm Reliquae, que será lançada
não mesmo “física”. em breve, e cuja particularidade consis-
Outra questão de difícil resolução te na possibilidade de recuperar e
em Platão é o tema da definição visualizar as menções textuais elabora-
socrática que em Xenofonte, ao contrá- das por gramáticos no apparatus superi-
rio, aparece desvinculada da teoria das or da edição em papel. Outra novidade
idéias – e portanto suscetível de uma que estará disponível em breve é a bi-
análise livre de sobreposições bliografia platônica, organizada por
doutrinais (Alessandro Stavru, Aporia Luc Brisson (Pythia. Bibliographie
o definizione? L’enigma del ti esti nei platocienne), apresentada no congresso
Socrática di Senofonte). Questões por Benoit Caselnérac. Em relação à
como aquela da kalokagaq…a e edição de papel, este Cd-rom, patroci-
basile…a, fundamentais para se com- nado pelo CNRS, pelo editor Vrin e
preender aspectos fundamentais do pelo Conseil National du Livre, conta-
Sócrates de Xenofonte menos conheci- rá com um motor de procura em con-
do (como aquele do Encômio e do dições de realizar pesquisas bibliográfi-
Hierão), foram examinadas por cas a partir de palavras-chave, de tre-
Alexander Alderman (Phronesis in chos da obra platônica, de nomes pró-
Xenophons’s Oeconomicus in Plato’s prios de autores e de temas principais
Politicus) e Stefan Schron (Di da literatura secundária sobre Platão.
Vorstellung des xen pphontischen Um outro instrumento em vias de rea-
Sokrates von Herrschaft um das lização é Un Eutifrone interattivo. Il
Erziehungsprogram des Hierons). nuovo “Dialoga con Socrate” (organiza-
Uma sessão do congresso foi do por Livio Rossetti, com a colabora-
dedicada à apresentação dos instrumen- ção de Alessandro Treggiari), uma edi-
tos informáticos sobre Sócrates já no ção eletrônica com um objetivo princi-
comércio ou que estão para ser publi- palmente didático do hipertexto homô-
cados. O funcionamento do Plato nimo que já saiu em 1995 com a orga-
Lexicon (1), lançado em 2003,13 foi ilus- nização de Rossetti.14
trado por Emmanuele Vimercati. Tra- Um outro anel nesta singular cor-
ta-se de um instrumento indispensável rente de eventos é, por fim, o XVI
para qualquer trabalho sobre Platão, Simpósio de Olímpia (25 a 30 de julho

13
Plato Lexicon (1) , organizado por R. Radice em colaboração com I. Ramelli e E. Vimercati,
edição eletrônica de R. Bombacigno, iblia, ilão, 2003.
14
Em sua primeira verão, a versão digital saiu junto com um volume em papel: PLATÃO,
Eutifrone, editado por Rossetti, Roma, Armando: 1995.

HYPNOS
ano 11 / nº 16 – 1º sem. 2006 – São Paulo / p. 118-124
124 de 2005), promovido por Olympiako da ser refinado e aprofundado, antes
Kendro Philosophias kai Paideias (por- que ele possa afirmar-se definitivamente
Resenha crítica

tanto, por Leonidas Bergeliotis) com a como uma nova chave de leitura de “to-
colaboração de universidades e entida- das” as fontes socráticas. Mas é igual-
des locais gregos. O tema escolhido mente evidente que este paradigma
para as seções do simpósio foi, mais merece ser colocado à prova, tendo em
uma vez, “Sokrates kai Sokratikes vista os resultados encorajadores que já
Scholes”, com intervenções que foram obtidos com ele. Neste sentido,
concerniam a Xenofonte e Antístenes, esperamos que Le prime Goirnate de
o œlegcoj socrático e a fortuna de Senigallia e as futuras sessões da
Sócrates no mundo grego. Conco- nascitura escola de Elide possam tornar-
mitantemente ao simpósio de Olímpia, se eventos com uma freqüência regular
se propôs, entre outras coisas, fundar capazes de coagular, nos próximos
novamente a antiga Escola de Elis anos, os novos impulsos dados recente-
(como se sabe, Olímpia se encontra na mente à questão socrática.
Elis), e a iniciativa é promissora para o
futuro dos estudos sobre este tema. Alessandro Stavru
Concluindo esta resenha, é ne- Università degli Studi
cessário observar como o paradigma di Napoli “L’orientale”
hermenêutico que surgiu em Aix, e foi- Traduzido por Renato Ambrósio
se firmando até Senigallia, precisa ain- E-mail: titol@ajato.com.br

HYPNOS
ano 11 / nº 16 – 1º sem. 2006 – São Paulo / p. 118-124
Resenha

CATTANEI, Elisabetta. Entes matemáticos e Metafísica –Platão, a Academia


e Aristóteles em confronto. Trad. do italiano de Fernando S.Moreira, Ed.
Loyola, São Paulo, 486 págs.

Confrontar dois poderosos da Filo- máticos) e de Thomas Szlezák, conhe-


sofia - Platão e Aristóteles – é difícil. Se cido intérprete de Platão mais próxi-
o confronto elege a questão dos entes mo à chamada Escola de Tübingen (da
matemáticos nas duas reflexões, isso se qual a autora também se aproxima pela
torna duas vezes mais difícil. Elisabet- via milanesa de Giovanni Reale, de
ta Cattanei é audaz: enfrenta a reflexão quem foi aluna). Nos dez capítulos,
sobre o estatuto dos entes matemáticos Cattanei analisa o status das ciências
nas duas filosofias, sua relação com a matemáticas do tempo de Platão e Aris-
Física e a Metafísica. Saiu-se muito bem. tóteles, a diferença conceitual entre o
Ademais, é uma empreitada corajosa, sensível e o matemático e deste com a
uma decisão firme da editora Loyola Metafísica.
em traduzir e lançar este livro aqui, no A autora não se contenta, em sua
Brasil, para um público muito específi- investigação, em comparar e comentar
co e de pequeno número. Que as bi- os textos da Academia (Xenócrates e
bliotecas atentem a essa obra. Que os Espeusipo além do próprio Platão). Foi
estudiosos de Filosofia grega não a dis- estudar matemática para compreender
pensem. melhor o significado desse saber naque-
A autora é analítica, vai tecendo seus la época, familiarizar-se com as coloca-
comentários ponto a ponto, exaustiva- ções de Euclides e seu elementos, para
mente, primeiro ao evidenciar as colo- explicitar o que é linha, ponto, super-
cações aristotélicas sobre os entes ma- fície, ângulo e o que significa esse estu-
temáticos como intermediários ou não, do para a Filosofia dos dois grandes fi-
se são “seres” no rigor do termo, e as lósofos em confronto. Cuidadosa nas
criticas que o estagirita endereça à Aca- fontes primárias, tenaz nas fontes se-
demia. Depois, adentra nas colocações cundárias, Cattanei presenteia o estu-
platônicas, que expõem os entes mate- dioso atento de Filosofia Antiga, uma
máticos como seres de fato, mostran- vez que, segundo ela mesma diz, a Fi-
do a hierarquia construída pelo filóso- losofia e a Matemática sempre estão
fo quanto aos “modos do ser, ser”, di- juntas, desde o princípio. Uma “namo-
gamos assim. ra” a outra. Será? Ou, eu diria, se os
A obra, dividida em dez capítulos, matemáticos não estão enamorados da
tem dois prefácios: de Imre Toth (in- Filosofia, esta, sim, vive enamorada da
trodutor da autora nos estudos mate- Matemática, desde sua origem.

HYPNOS
ano 11 / nº 16 – 1º sem. 2006 – São Paulo / p. 125-127
126 O ponto nuclear de sua investigação platônica, principalmente para aquela
parece estar na discussão entre Xenó- exposta nos seus últimos diálogos. Evi-
Resenha

crates, Platão e Espeusippo, as resso- dentemente, em se falando da Matemá-


nâncias da teoria pitagórica na filoso- tica e de Platão, somos levados à Musi-
fia platônica relativamente às matemá- cologia, abordada pela autora por tra-
ticas, e a crítica aristotélica a essa he- tar-se do campo da harmonia teórica
rança. As idas e vindas à Metafísica de que “...é uma relação de números”,
Aristóteles são constantes, uma vez que como aponta ao citar a Metafísica N, 5
o estagirita noticia, em inúmeras pas- de Aristóteles. E faz notar, mesmo que
sagens de seus textos, certa leitura dos com rapidez, a questão que daí emerge
princípios platônicos pela via do Uno quanto aos primeiros passos da Ótica e
e da Díada, de sabor pitagórico, que Pla- da Mecânica, “...disciplinas fisico-ma-
tão não explicita nos diálogos, mas é temáticas recém nascidas na época de
claro nessas notícias, a dar-se crédito às Aristóteles” (pág.241), e que não têm,
compilações feitas posteriormente des- ao menos aparentemente, precedentes
sa obra marcante para o Ocidente que pitagóricos e platônicos (ao menos no-
é a Metafísica. Essas notícias criam um minalmente, eu diria).
corpus consignado como pertinente às A pergunta sobre o papel das mate-
“doutrinas não-escritas” de Platão, máticas como saber intermediário en-
como se sabe. tre o fisico e o metafísico tem um co-
Claro que a questão do “número ir- roamento interessante no texto de Cat-
racional”, negado pela escola pitagóri- tanei: um estudo especial sobre a Ale-
ca, está no centro das reflexões dessa goria da Linha, exposta na República
época, o que a autora recolhe com es- de Platão (509 sgts). Esta passagem pa-
pecial cuidado. Diz, à pág. 223, por rece deixar clara a especificidade das
exemplo: matemáticas como seres intermediá-
rios, questão muito bem aprofundada
“...A Aritmética pitagórica tem cons-
pela autora. Mais ainda, crê Cattanei
ciência plena, dramática, da contradi-
que há uma matemática pitagórica con-
ção fundamental que a atravessa, e pre-
servada nos Elementos, de Euclides,
tende resolvê-la com uma regulamen-
“... em que os números são reconduzi-
tação semântica, compartilhada tam-
dos ao par e ao ímpar”, matemática à
bém por Aristóteles, por força da qual
qual Platão faria referência já no diálo-
o número fracionário e o lógos são ex-
go Parmênides (pág.252). Evidentemen-
pulsos do universo dos números. Per-
te, os platonistas estarão curiosos para
corrida por fortes tensões, a mais anti-
aprofundar este ponto. Apesar de
ga ciência do número exila a contradi-
Elisabetta Cattanei não se fixar em ne-
ção que fica, todavia, em seus confins,
nhum diálogo platônico em particular,
apenas além, mas nas proximidades, de
passeia por alguns e deixa muitas se-
seu princípio”.
mentes para verticalizar reflexões im-
Ora, sabem os platonistas da impor- portantes para a compreensão do que é
tância desse assunto para a doutrina a Filosofia de Platão.

HYPNOS
ano 11 / nº 16 – 1º sem. 2006 – São Paulo / p. 125-127
A finalização de sua obra – funda- “...Eu disse que Aristóteles, negan- 127
mental para quem quer sair da superfi- do que os entes matemáticos sejam

Resenha
cialidade na leitura das duas filosofias, pertencentes ao hiperurânio platô-
a de Platão e a de Aristóteles – focaliza nico, inicia uma própria, nova, apo-
problemas como as dimensões geo- logia pro mathematica. Mas, inespe-
métricas e o ponto (“dogma dos radamente, termina por defender
geômetras”, como diz), se os números uma opinião de Platão, especialmen-
são anteriores às grandezas, qual a rela- te contra Espeusipo, e em certa me-
ção das matemáticas com a Beleza e a dida também contra Xenócrates: os
Bondade, idéias supremas para Platão. entes matemáticos e seus princípios
Não é demais citar o último pará- não são a suprema realidade, a suma
grafo de seu livro. A analista Elisabetta beleza e o sumo bem”.
Cattanei consegue sintetizar o que pre-
Instigante investigação, certamente.
tendeu e podemos ter melhor idéia do
significado de seu texto para os estu- Rachel Gazolla (PUC-SP)
dos de Filosofia Grega Antiga: rachelgazolla@ajato.com.br

HYPNOS
ano 11 / nº 16 – 1º sem. 2006 – São Paulo / p. 125-127
128 NORMAS E INFORMAÇÕES / RULES AND INFORMATION

NORMAS DA ABNT / ABNT RULES

Conforme exigência da Associação Brasi- Título do Periódico, local, volume,


leira de Normas Técnicas (ABNT): número, páginas inicial e final do artigo,
mês e ano.
Títulos de obras em itálico no texto e rodapé / c. ARTIGOS DE CONGRESSO: SOBRENOME
Nome do autor em maiúscula no rodapé e DO AUTOR, Nome. Título do artigo. In:
bibliografia final, quando houver: NOME DO CONGRESSO, Número do
a. LIVROS: SOBRENOME DO AUTOR, Nome. congresso, ano em que foi realizado, local
Título. edição. Local: editora, data, páginas. onde foi realizado. Título da publicação.
b. ARTIGOS DE PERIÓDICOS: SOBRENOME Local de publicação: editora, data. páginas
DO AUTOR, Nome. Título do artigo. inicial e final do artigo.

CRITÉRIOS PARA TRANSLITERAÇÃO DO GREGO /


CRITERIA FOR TRANSLITERATION FROM GREEK

Não havendo unanimidade quanto aos critéri- In the absence of a settled convention among
os para a transliteração do alfabeto grego para scholars for transliteration, Hypnos has de-
outros alfabetos, a Hypnos transliterará do cided to adopt the following rules when trans-
seguinte modo: literating Greek letters:
1. A letra ‘x’ (chí) poderá aparecer como “kh” 1. The letter ’x’ (chi) may appear as “kh” or
ou “ch”. Ex.: psyché ou psykhé. “ch”. Ex: psyché or psycké.
2. A letra ‘u’ (upsilon) poderá aparecer como 2. The letter ‘u’ (upsilon) may appear as ‘ü’ or
‘ü’ ou ‘y’. Ex.: phüsis ou physis. ‘y’. Ex: phüsis or physis.
3. As letras ‘h’ (eta) e ‘v’ (ômega) serão
transliteradas como ‘e’ e ‘o’ respectivamen- 3. The letter ‘h’ (eta) and ‘v’ (omega) will be
te, sem qualquer acento para sinalizar o re- transliterated as ‘e’ and ‘o’ respectively, with-
dobro. out any diacritical mark to indicate the long
4. O ‘iota’ subscrito não aparecerá; sound.
5. Os acentos graves e agudos serão preserva- 4. The ‘iota’ subscript is not used.
dos segundo a própria acentuação da pala- 5. Grave and acute accents are kept as they
vra grega no texto em questão. are in the Greek word used in the quoted
6. Quando houver espírito rude, a trans- text.
literação será por ‘h’. Por ex.: Ïpnow por
6. When there is spiritus asper, ‘h’ will be used
hý pnos; o espírito doce não aparecerá. Por
in the transliteration. For ex.: Ïpnow for
ex: ˆrganon será órganon;
hypnos; the spiritus lenis will not appear. For
7. Quando houver ‘til’ (~) sobre a letra ‘e’ ou
‘u’ será transliterado por circunflexo (^), p. ex.: ˆrganon will be órganon.
ex.: noûs. 7. The letter ‘g’ (gamma) before ‘k’ (kapa) will
8. A letra ‘g’ (gamma) antes de ‘k’ (kapa) será be transliterated as ‘n’; ex.: énãgkh for
transliterada por ‘n’. Ex: énãgkh por anánke.
anánke.

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ano 11 / nº 16 – 1º sem. 2006 – São Paulo
PARA ENVIO DE ARTIGOS, PERMUTAS DE REVISTAS 129
TO SUBMIT ARTICLES, EXCHANGE JOURNALS

Para envio de artigos, intercâmbio de re- Address for submitting articles, exchan-
vistas ou envio de obras a serem creditadas ge of journals, and works to be credited in
por esta revista (p/ decisão do Conselho this Journal (at discretion of the Editorial
Editorial), o endereço é o seguinte: Board):

Programa de Pós-graduação em Programa de Pós-graduação em


Filosofia –PUC-SP (posfil@pucsp.br) Filosofia –PUC-SP (posfil@pucsp.br)
Revista Hypnos Revista Hypnos
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R. Ministro Godoi 969, 4º andar. Profa. Rachel Gazolla
05014-001 – São Paulo/SP – Brasil R. Ministro Godoi 969, 4º andar.
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produção universitária) basta enviar o(s) volu- For exchange of journals and publications,
me(s) com carta de apresentação do editor e it is sufficient to send the issues accompanied
solicitação de intercâmbio. by a presentation letter from the editor and a
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REVISTAS E CADERNOS PERMUTADOS COM HYPNOS


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Serão mantidas as permutas com Revistas cuja


periodicidade seja contínua; após três anos sem
recebimento de exemplares a permuta será cancelada
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The exchange will be cancelled if no issues are
received for a period of three years.

Ágora Filosófica Cadernos Nietzsche


Universidade Católica de Pernambuco Grupo de Estudos Nietzsche da
Recife, PE Universidade de São Paulo, São Paulo, SP
Areté Classica Boliviana
Revista de Filosofia da Pontifícia Revista dos Encontros bolivianos
Universidade Católica do Peru de Est. Clasicos, La Paz, Bolivia
Lima, Peru www.discurso.com.br
Boletim do CPA Cognitio
Bol. Centro do Pensamento Antigo, Revista do Depto. de Filosofia da Pontifícia
Universidade Estadual de Campinas, SP Universidade Católica
de São Paulo, SP

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130 Dissertatio Perspectiva Filosófica
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Educação e Filosofia Phaos
Revista da Universidade Federal Revista do Departamento de Lingüística
de Uberlândia, Uberlândia, MG do IEL/Unicamp, Campinas, SP
Ethica (phaos@iel.unicamp.br)
Revista da Universidade Philosophica
Gama Filho, Rio de Janeiro, RJ Revista da Universidad Católica
(editora@ugf.br) de Valparaiso, Valparaiso, Chile
Ética e Filosofia (rochoa@ucv.cl)
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de Uberlândia (CCHA), Uberlândia, MG Rev. da Univ. Fed. Espírito Santo, ES
Ética e Filosofia Política Revista de Filosofía
Revista da Universidade Federal Univ. de Costa Rica, C.Rica
de Juiz de Fora (ICHF), Juiz de Fora, MG
Síntese Revista de Filosofia
Filosofia e Ciências Humanas Faculdade de Filosofia da Cia. de Jesus,
Revista da Universidade Belo Horizonte, MG
de Passo Fundo (IFCH), RS (publicações@cesjesuitas.br)
Ideação Scripta
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de Feira de Santana (NEF II), de Minas Gerais, Belo Horizonte, MG
Feira de Santana, BA Sofia
Kléos Revista de Filosofia, UFES, ES
Revista de Filosofia Antiga (sofia@npd.ufes.br)
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(phronesis@fcs.ufrj.br) Universidade Nacional de la Plata
Kriterion Argentina, La Plata
Revista da FAFICH, UFMG Teoria e Prática da Educação
Belo Horizonte, MG Revista da Universidade Estadual
de Maringá, PR
Limes
Revista do Centro de Estudos Clássicos da Universitas Philosophica
Univ. Metropolitana de Ciências da Revista da Universidad Javeriana,
Educação, Santiago, Chile Bogotá, Colômbia
(uniphilo@javercol.javeriana.edu.co)
Lumen
Veritas
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Revista de Filosofia da PUCRS,
São Paulo Porto Alegre, RS
Nova Tellus Yachai
Revista do Centro de Est. Clasicos Revista da Universidad Católica
da Universidad Nacional Autónoma Boliviana, Cochabamba, Bolívia
de México, México (yachai@ucbcba.edu.bo)

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ano 11 / nº 16 – 1º sem. 2006 – São Paulo
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BELÉM - PA CURITIBA - PR
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