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HUMANO E DIVINO
HUMAN AND DIVINE
Nº 16
Ano 11 – 1º sem. 2006
Editora TRIOM
Editor Responsável:
Editor:
Rachel Gazolla (rachelgazolla@ajato.com.br)
Conselho Deliberativo:
Deliberative Council:
Marcelo Perine (m.perine@superig.com.br)
Rachel Gazolla (rachelgazolla@ajato.com.br)
Conselho Editorial:
Editorial Council:
Nacional: CARLOS ROBERTO CIRNE-LIMA (Unisinos, Porto Alegre, RS, Brasil)
FRANCISCO BENJAMIM DE SOUZA NETO (Unicamp, Campinas, Brasil)
HENRIQUE GRACIANO MURACHCO (Univ. Fed. Campina Grande, PB, Brasil)
JAYME PAVIANI (Pont. Univ. Católica de Porto Alegre, RS, Brasil)
MARCELO PERINE (Pont. Univ. Católica de São Paulo, Brasil)
OLGÁRIA MATOS (Univ. de São Paulo, Brasil)
RACHEL GAZOLLA (Pont. Univ. Católica de São Paulo e Faculdade Filosofia S. Bento, SP, Brasil)
SCARLETT MARTON (Univ. de São Paulo, Brasil)
Internacional: ELISABETTA CATTANEI (Univ. Studi di Cagliari, Itália)
FRANCISCO BRAVO (Universidad Central de Venezuela, Caracas, VE)
FRANCISCO LISI (Univ. Carlos III, Madrid, Espanha)
HUGO RENATO OCHOA DISSELKOEN (Univ. Católica de Valparaíso, Chile)
JORGE MARTINEZ BARRERA (Pont. Universidad Católica de Chile, Santiago, Chile)
JOSÉ GABRIEL TRINDADE (Universidade de Lisboa, Portugal)
MARCELO BOERI (Universidad de los Andes, Santiago, Chile)
PETER P. SIMPSON (City Univ. of New York, EUA)
THOMAS M. ROBINSON (Univ. de Toronto, Canadá)
Comitê Executivo:
Executive Committee:
Bruno Conte
Claudiano dos Santos
Ivanete Pereira
José Fernandes
Luizir de Oliveira
Maria Paula Curto
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Joice Tremonti (Programa de Estudos Pós-graduados em Filosofia – PUC-SP)
(posfil@pucsp.br – www.pucsp.br/~posfil)
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Os textos publicados são de responsabilidade exclu- Published material is the sole responsibility of their
siva dos autores. authours.
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V
EDITORIAL
R.Gazolla
Editora responsável
1
“...Com certeza é um deus aquele que ouve e vê o que fazemos.”
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VII
SUMÁRIO
ARTIGOS (ARTICLES)
COMUNICAÇÕES (COMMUNICATIONS)
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VIII RESENHA CRÍTICA (CRITICAL REVIEW)
Alessandro Stavru ................................................................................................. 118
RESENHA (REVIEW)
Rachel Gazolla ...................................................................................................... 125
Normas e informações / Rules and Information
Normas da ABNT ................................................................................................ 128
Critérios para transliteração do grego ............................................................. 128
Criteria for Transliteration from Greek
Endereços para entrega de artigos .................................................................... 129
Addresses for sending articles
Permutas e doações ............................................................................................. 129
Exchanges and donations
Endereços para compra da revista .................................................................... 131
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ano 11 / nº 16 – 1º sem. 2006 – São Paulo
Artigos
Abstract: This paper will offer an overview of, and some conjectures upon,
the probable collective force of the transformations of the philosophical scene
that took place in Athens soon after Socrates' trial and death. It will be argued
that the new way of doing philosophy, devised by the Socratics, was in fact
antipodal to the traditional offerings of doctrines and theories openly endorsed
by existing authors, and is therefore to be carefully distinguished from the
dialogues where new bodies of doctrine happen to be openly professed.
Because of the invention of the "open" Socratic dialogue, the philosophical
community of Athens very likely underwent a first-order "velvet revolution",
especially during the crucial years when Plato's identity as a writer and thinker
was being set in place.
Key-words: Socrates; Athenas; Plato; Dialogue.
*
Livio Rossetti é professor da Universidade de Perugia, Itália. E-mail: Rossetti@unipg.it
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2 rânea. Assim, tentemos formar uma idéia do contexto em que o nome de
Platão se elevou a tal eminência. Não fazer é certamente arriscado, já que
O diálogo socrático “aberto” e sua temporada mágica
bem poderia abrir caminho para uma idéia tendenciosa – talvez seriamen-
te tendenciosa – do impacto que os “herdeiros” de Sócrates podem ter tido
sobre a comunidade filosófica (e, de modo mais geral, sobre a comunidade
letrada) de Atenas quando começaram a inundá-la com seus diálogos.
Assim, meu primeiro ponto será que temos acesso a evidência que nos
ajudará a montar um quadro realista do impacto que tiveram os socráticos
sobre Atenas no começo de sua atividade literária e filosófica. E meu segun-
do ponto será que levar em conta o todo, de que Platão era tão eminente-
mente uma parte, pode afetar de modo significativo o quadro do que pode
ter acontecido quando os socráticos começaram a dedicar suas melhores
energias como autores de grupos inteiros de Sokratikoi lógoi.
1
As páginas 23-27 de ROSSETTI, 2004, serviram de esboço para as páginas de abertura
do presente artigo.
2
Para um catalogue raisonné, ver ROSSETTI, 2005, 53-56.
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de tratados. Assim, uma brusca descontinuidade no fluxo de tratados filo- 3
sóficos é possível de ter ocorrido devido ao sucesso da forma de diálogo.
Livio Rossetti
III. Considerando que para a maior parte dos filósofos pré-socráticos era
uma prática comum fazer reinvidicações explícitas em seus livros, e argu-
mentar pela plausibilidade dessas reinvindicações, em muitos diálogos
socráticos – não somente nos diálogos aporéticos de Platão, mas também,
por exemplo, em seu Parmênides – não havia um demonstrandum bem es-
tabelecido pelo qual o autor estivesse ansioso por argumentar da maneira
mais convincente possível. Em clara descontinuidade com os padrões de
erudição comumente aceitos durante o século quinto, esses autores geral-
mente ficavam contentes em deixar abertas as questões que os seus livros
tratavam, e frequentemente falhavam em chegar, ou, ainda, ativamente
evitavam chegar a conclusões firmes, explícitas, com argumentos ampara-
dos por evidência confiável.
IV. No mesmo período, enquanto os socráticos inundavam Atenas
(e, portanto, a Grécia) com seus escritos, e especialmente com seus diálo-
gos socráticos, quase nenhum outro livro – de fato, talvez nenhum outro
livro – que se pudesse considerar de caráter filosófico e que se mantivesse
não afetado pelo socratismo – foi publicado em Atenas ou em qualquer outra
parte. Em outras palavras, durante o primeiro quartel do novo século, tor-
nou-se mais e mais inusual (para não dizer mais e mais difícil) ser um filó-
sofo mantendo-se não afetado pelo socratismo. Por conseguinte, a filoso-
fia grega nesse período parece ter sido marcada por uma forma singular de
descontinuidade com um recente (e glorioso) passado.
V. Segue-se que o aparecimento de uma rica literatura socrática prova-
velmente teve um efeito profundo sobre a própria noção de filosofia que
herdamos desse período.
VI. Se leitores contemporâneos de livros filosóficos chegaram a uma
percepção em larga escala de como precisamente era novo esse tipo de es-
tratégia (algo que me parece ter razoável probabilidade), então a “nova era”
da filosofia grega (aquela “revolução de veludo” que mencionei acima) foi
provavelmente uma característica proeminente das primeiras décadas do
século quarto.
Agora, alguns comentários.3 As indicações acima bem podem produzir
incredulidade em alguma medida, já que não estamos acostumados a dar
3
Já deve ter se tornado aparente que, neste artigo, tentarei considerar todo um grupo de
tópicos inter-relacionados. Dizer algo sobre cada lado do complexo poliedro exige demais
para que não se entre numa discussão incompleta da literatura relevante nestas poucas
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4 muita atenção à literatura socrática de autoria dos pupilos diretos de
Sócrates como um todo. A suposta desproporção entre Platão e todos os
O diálogo socrático “aberto” e sua temporada mágica
páginas. Além disso, os leitores não ignoram como seria grande o volume de trabalho de
erudição a ser levado em consideração de modo a argumentar com mais detalhe sobre cada
um desses pontos.
4
Se Xenofonte se torna escritor somente após seu retiro em Squílus cerca de três décadas
após a morte de Sócrates, ele não pode estar envolvido na criação do gênero literário lado
a lado com a maioria dos demais autores.
5
Entre nove e vinte e três, nos é indiscutivelmente afirmado em DIÓGENES LAÉRCIO,
II, 84 e 121-124.
6
Para um levantamento mais detalhado das evidências, ver ROSSETTI, 2005, pp. 56-58.
7
Digo praticamente, já que ao menos as Antilogias poderiam valer como uma exceção à
regra. Como é amplamente conhecido, as Antilogias foram compostas por ao menos
Protágoras e Antifon, junto com o autor dos Dissoi lógoi. Entretanto, as Tetralogias de
Antifon, apesar de também serem de algum interesse para os filósofos, não concernem à
filosofia mas sim à literatura legal da época. No entanto, se essa obra é a única exceção à
regra, é seguro assumir que durante o século quinto a adoção da forma de tratado para li-
vros de ciência era praticamente universal.
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escrever textos em que enunciavam um ou mais demonstranda e expunham 5
algumas teorias, e então sustentá-las com o melhor de suas habilidades, e
Livio Rossetti
finalmente alegar ter obtido sucesso em seus esforços. Até mesmo Górgias,
nos seus escritos remanescentes, e Antifon, nas suas famosas Tetralogias,
proclamam sua glória pelas habilidades de oferecer provas aparentemente
irresistíveis em prol de seus demonstranda. Considerando tudo, é difícil achar
exceções a esta regra entre homens de ciência do século quinto.
Comparativamente, os esforços da maior parte dos escritores socráticos
eram impressionantemente diferentes. Antístenes, Xenofonte e, talvez,
Aristipo compuseram tanto diálogos socráticos quanto outros escritos em
prosa sem influência da adoção da forma de diálogo. Em contraste, Ésquines
de Sfeto, Fédon, Símon, Críton, Símias, Cebes, Glauco e Platão,8 junto
(hipoteticamente) com Euclides de Mégara e Alexamenos de Téos, aban-
donaram de uma vez por todas a forma de tratado e compuseram apenas
diálogos socráticos. Esta última foi uma ocorrência maior e repentina: por
um período de tempo – talvez um par de décadas próximo ao início do sé-
culo quarto – novas idéias em filosofia foram lançadas não por meio de
tratados, mas quase inteiramente por meio de diálogos.
Os diálogos aporéticos de Platão, em particular, empenham-se em re-
presentar pessoas no ato de ficarem perplexas quando em face de observa-
ções inesperadas, acham necessário buscar uma resposta mais apropriada,
ou em representar Sócrates no ato de preparar uma nova cilada para seus
interlocutores de acordo com o modo como reagiram a um contra-exem-
plo prévio. Isso equivale a dizer que, por um tempo, Platão e alguns outros
escritores socráticos (ou em sua maioria) tentaram retratar pessoas no ato
de pensar e, portanto, no ato de adotar ou modificar impromptu uma pos-
tura teórica.9
Além disso, nos diálogos aporéticos de Platão (e alhures!), nenhuma
conclusão positiva provém do intercâmbio, e é longe de ser fácil destacar
uma lição “definitiva” do diálogo. Nos diálogos aporéticos, ele foi especial-
mente cuidadoso – e com notável sucesso – em evitar proferir noções e
argumentos que pudessem ser basicamente inalteráveis e assim apropria-
dos para que fossem aprendidos. E, algumas vezes, – pensa-se, por exem-
8
Temos, é claro, de fazer uma pequena exceção à regra no caso da Apologia, das Cartas e
dos Epigramas.
9
Sabemos que em Xenofonte e também em Ésquino, Sócrates é muito freqüentemente
retratado trazendo analogias, comentários e idéias inesperadas, de tal modo que seus
interlocutores (i. a. Aristipo de Xenofonte, Eutidemo de Xenofonte, Alcibíades de Ésquino)
têm que reconsiderar suas certezas prévias.
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6 plo, na discussão de pontos exegéticos no Protágoras, ou no Eutifron, ou
no Laches – Platão ativamente previne seus leitores de formar uma idéia
O diálogo socrático “aberto” e sua temporada mágica
10
Se a correta definição de piedade é determinável ou não no Eutifro é um ponto ampla-
mente discutido na literatura. Em meu comentário (ROSSETTI 1995, pp. 170-186), argu-
mentei em detalhe que, próximo ao fim do diálogo, o Sócrates de Platão indiscutivelmen-
te obstrui a busca por uma definição razoável, e esta característica sem dúvida se observa
também em outros diálogos aporéticos.
11
Isso sem desconsiderar a lacuna entre a atitude pravalescente na maioria dos Peri physeos
do século quinto e o alto grau de sofisticação alcançado por Górgias. No entanto, a alega-
ção de oferecer muito boas razões para sustentar a tese de que nada existe, ou de que Hele-
na não foi responsável pela guerra de Tróia, é um traço característico da maior parte das
obras gorgianas (e de alguns outros escritos do mesmo período) que conhecemos.
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escritores e filósofos, não sabemos de praticamente nenhum filósofo (ou, 7
em todo caso, de nenhum escrito filosófico) genuinamente independente
Livio Rossetti
e não afetado pelo Socratismo. Se procuramos filósofos contemporâneos que
permaneceram surdos à nova Sereia do Socratismo, podemos talvez men-
cionar o último Górgias ou o último Demócrito, se bem que eles podem
perfeitamente ter composto muitas de suas obras antes do começo do sé-
culo quarto. Ou então poderíamos mencionar Isócrates, um logógrafo e
depois professor de retórica, que certamente tinha algum interesse em fi-
losofia. Mas não dedicou nenhuma obra completa à matéria da filosofia,
nunca pretendeu seriamente ser um filósofo e não educou uma nova gera-
ção de filósofos. Ou ainda poderíamos nos referir ao autor do Papiro de
Derveni, que sem dúvida escreve algo do interesse dos filósofos, mas sem
merecer (e nem pretender) ser um filósofo. Havia algum filósofo grego ati-
vo, próximo ao começo do século quarto, que não fosse socrático?
A única possibilidade é Arquitas de Tarento, que foi sem dúvida um
grande matemático, um músico dotado, um escritor de sensibilidade e um
político instruído. No entanto, sua contribuição para a filosofia permane-
ce matéria de inferência, baseada em suas relações amistosas com Platão e
na notícia de que Aristóteles teria composto “três livros sobre a filosofia de
Arquitas” (Dig. Laércio, V, 25 e outras fontes). Assim, sua suposta filoso-
fia deve ser considerada, se tanto, a única exceção à regra: ele eventualmente
poderia figurar como o “menos representativo” de tradições que estavam
em todo caso desempenhando um papel de evidente decadência na comu-
nidade filosófica da Grécia do século quarto.
A concomitância desses dois eventos – a aparente dissolução de uma nem
por isso menos gloriosa tradição, no momento em que um brilhante gru-
po de nouveaux philosophes vem a se afirmar e ocupar o palco – claramen-
te sugere que eles não tiveram lugar independentemente um do outro. E,
se considerarmos como Platão era cool comparado a seus predecessores,12
torna-se fácil suspeitar que, face ao novo estilo de filosofar introduzido pelos
socráticos, as antigas tradições filosóficas perderam muito de seu apelo.
Meu quinto ponto enfatiza como, se uma maneira bastante nova de fazer
filosofia, bem como de ser um filósofo, havia sido um traço da literatura
socrática inicial, e se àquele tempo não existia oponente válido a ele (como
é bem conhecido, os filósofos ativos na Grécia durante o século quarto eram
ex-pupilos de Sócrates, ex-pupilos de Platão ou de algum outro escritor
12
Esse é um ponto razoavelmente controverso, relativo ao qual veja-se ROSSETTI 2004a.
Para uma abordagem diferente, veja-se por exemplo DIXSAUT-BRANCACI, 2002.
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8 socrático, ou ex-pupilos de Aristóteles), isto significa que um espantoso
processo de “socratização” da própria noção de filosofia deve ter tido lugar
O diálogo socrático “aberto” e sua temporada mágica
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impressão de viver em meio a uma evolução irreversível nos modos de fa- 9
zer filosofia (mesmo que não, talvez, de fazer ciência) foi tão amplamente
Livio Rossetti
partilhada, ainda que somente por curtos períodos de tempo. Com efeito,
parece razoável assumir que a novidade do diálogo socrático foi largamen-
te percebida, tanto por autores quanto por leitores, como algo bruscamen-
te descontínuo com modos já conhecidos de fazer filosofia.
Muito mais poderia (e deveria) ser dito sobre cada um dos pontos ora
discutidos, é claro, mas o esboço prévio mostra acima de dúvidas como os
socráticos foram bem sucedidos (com alguma sorte) em provocar e levar
adiante uma poderosíssima “revolução de veludo”. E esses socráticos foram
um grupo bem identificado de intelectuais e escritores (nem todos pode-
riam ser chamados de “filósofos”), além simplesmente de Platão. Esse é o
ponto principal que eu quero defender. Sob muitas facetas dessa história so-
fremos de uma dramática falta de informação, e muitas áreas permanecem
obscuras ou controversas, mas parece haver pouco espaço para dúvida quan-
to ao impacto do novo gênero literário, do lógos sokrátikos, sobre a comu-
nidade letrada de Atenas e, provavelmente, da Grécia como um todo.
Com efeito, enxergar simplesmente essa literatura peculiar pelo ângu-
lo de observação das pessoas pensantes (ou dos pretendentes a filósofos do
período) que tinham acesso a uma generosa amostra dos novos textos pu-
blicados por filósofos contemporâneos, é perceber imediatamente a
descontinuidade espetacular que eles devem ter visto entre os novos escri-
tos filosóficos dos socráticos e a literatura filosófica composta durante o
século quinto, especialmente no que diz respeito à quantidade de produção
escrita.
De modo inverso, se nos concentramos exclusivamente em Platão,
como é de costume, a imagem que esboçamos simplesmente desaparece.
Esquecendo que Platão, mesmo que de longe o maior entre os socráticos,
não estava sozinho, perdemos nosso tempo especulando – freqüentemente
em vão – sobre a continuidade/descontinuidade de seu pensamento, ou
sobre a fidelidade/infidelidade do pupilo com relação ao mestre, ou se cer-
to diálogo é “anterior” ou “posterior”, ou sobre a suposta “unidade” sub-
terrânea dos diálogos a despeito de uma quantidade de óbvias diferenças
entre eles, e assim por diante. Mas, dessa forma, o movimento literário e
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10 filosófico como um todo escapa imperceptivelmente do campo de visão,
como sendo algo sem relevância. Além disso, é demasiado fácil persuadirmo-
O diálogo socrático “aberto” e sua temporada mágica
nos de que é tão difícil, enquanto estudiosos de Platão, encontrar uma tri-
lha no tremendo emaranhado de suas obras e idéias, que é quase impossí-
vel considerar quaisquer outros socráticos, ainda que estejamos predispos-
tos a reconhecer que assim deveríamos fazer. Há argumento mais eficaz do
que este para dissuadir os estudiosos de se lembrarem da importância do
contexto?
Graças a essa reação automática, nasceu uma infeliz subclasse que con-
siste nos “outros” socráticos (isto é “menores”), e nos tornamos em conse-
qüência dramaticamente inaptos a prestar a devida atenção a eles e a seus
escritos, como muitos estudiosos contemporâneos13 têm mostrado de modo
mais e mais convincente. Não é surpresa que a visão de uma única enorme
baleia (ou, se preferirem, de um único enorme tubarão) nos faça perder de
vista outros peixes do mar, a ponto de deixá-los praticamente sem identifi-
cação.
Outra falha, que ocorre sempre que perdemos de vista o grupo em sua
totalidade, vincula-se à possibilidade de analisar o problema da fidelidade/
infidelidade desses escritores ao Sócrates real, o qual tiveram o privilégio
de conhecer e de a ele se associarem. Pois, se consideramos o número notá-
vel de novos diálogos compostos pelos diversos socráticos ano após ano, e
isso em um período de no mínimo um par de décadas, torna-se fácil adivi-
nhar como deve ter sido importante, por um período razoavelmente lon-
go e para “todo” autor desse grupo, dar forma a novas e novas histórias, em
inéditas ambientações e com diferentes interlocutores, mas com o próprio
Sócrates claramente reconhecível como basicamente o “mesmo” Sócrates
que o Sócrates de outros diálogos, isto é, como um personagem que se com-
porta aproximadamente da mesma maneira aqui como ali. Com efeito,
oferecer um retrato do “mesmo” Sócrates bem podia valer como um traço
da autenticidade de uma obra, e portanto de seu valor, e assim garantia uma
resposta favorável por parte do público. De outro lado, se o sucesso sob esse
aspecto estimulou os socráticos a compor tantos diálogos socráticos, é ra-
zoável esperar que a maioria desses diálogos tivesse por objetivo ser reco-
nhecidamente do mesmo tipo que aqueles que já haviam alcançado notó-
13
Pode ser suficiente mencionar os trabalhos de estudiosos como NARCY, Michel,
MORRISON, Donald e DORION, Louis-André, e ainda a conferência Xénophon et
Socrate. Aix-en-Provence, 11/2003 (no prelo), e a conferência Letteratura Socratica Antica.
Senigallia, 2/2005 (no prelo).
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rio sucesso; daí sua tendência a retratar Sócrates de maneira substancialmente 11
reconhecível. Além disso, quando os socráticos começaram a escrever es-
Livio Rossetti
ses lógoi, eles estavam, sem dúvida, engajados numa tentativa bastante sé-
ria de reabilitar a reputação de um homem amado e de defender a reputa-
ção (e o futuro) da maneira socrática de filosofar e, por meio disso, ofere-
cer um futuro (e assim um certo prestígio e um papel na sociedade) a si
mesmos como os “novos filósofos”.
Portanto, em alguma medida, próximo ao começo de sua aventura como
escritores, os socráticos podem bem ter se esforçado em oferecer um retra-
to de Sócrates-como-pessoa-viva-agindo-como-costumava-agir, e tal retrato
bem poderia nos ser de valor informativo. Devo também lembrá-los de que
os diálogos socráticos costumavam levar leitores do século quarto a interagir
com a escrita de maneiras bastante inusuais: leitores dos diálogos aporéticos
de Platão – e de muitos outros sokratikoi lógoi – deveriam, entre outras
coisas, decidir, passo a passo, quem está certo e se Sócrates é justo com seu
interlocutor; tentar imaginar como a interação de alguém com Sócrates vai
se desenvolver; experimentar (ao invés de observar) mudanças na identifi-
cação emocional;14 e imaginar qual deve ser a lição do diálogo... Tudo isso
bem pode ter sido suficiente para fazer a leitura de diálogos socráticos bas-
tante contagiante!
Tal dinâmica claramente pravaleceu durante algum tempo (por um par
de décadas?), quando então um sentimento de saturação com relação ao
Sócrates “ortodoxo” bem pode ter começado a se manifestar. Certamente
Platão, mas provavelmente também outros socráticos (e, definitivamente,
Antístenes), depois de terem composto muitos diálogos socráticos “típicos”,
sentiram-se muito mais livres para desviarem-se do Sócrates “padrão” do
primeiro período, e essa dinâmica explica por que, em vários dos diálogos
de Platão, Sócrates passa a não ser mais reconhecível. Assim, tentativas de
distinguir entre diálogos anteriores e posteriores não devem ser tomadas
como uma tarefa de Sísifo, já que é bastante razoável reconhecer, primei-
ro, que há diálogos em que Sócrates “comporta-se como Sócrates” (e este
Sócrates é reconhecível como basicamente a mesma pessoa que ainda ve-
mos em ação em muitos outros diálogos, longos, curtos e em anedotas) e,
em segundo lugar, que em diálogos onde Sócrates é ostensivamente o pro-
14
Especialmente no caso de diálogos aporéticos, os leitores freqüentemente tendem a se
sentirem simpáticos ao interlocutor no início, mas então inevitavelmente passam a se sen-
tir mais e mais na mesma freqüência de Sócrates.
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12 ponente de doutrinas específicas, que quase certamente refletem as idéias
do autor do diálogo, ele então não mais está “se comportando como
O diálogo socrático “aberto” e sua temporada mágica
Sócrates”.
De fato, é constante encontramos um personagem chamado “Sócrates”
que, ao invés de se comportar, falando amplamente, como um questionador,
comporta-se, ao invés disso, como um professor que já tem a expor muitas
teorias próprias bem-estruturadas (como, por exemplo, em porções subs-
tanciais do Fédon de Platão); ou como um professor que quer ser seguido
por um interlocutor bastante disciplinado que não ousa ter idéias próprias,
mas que simplesmente tenta entendê-lo passo por passo (como, por exem-
plo, na República de Platão, com exceção do Livro I); ou como alguém que
está silenciosamente contente 15 em aprender um bom tanto de seu
interlocutor (como no Oeconomicus de Xenofonte); ou como alguém bas-
tante consciente das habilidades necessárias para ser um hipparchos profici-
ente (como em Mem. III 3); ou como alguém que sabe como os pintores
revelam emoções e éthos através de figurações, e como os escultores retra-
tam o corpo humano como se estivesse vivo (como em Mem. III 10.1-8).
“Este” Sócrates, certamente, tem muito pouco em comum com o Sócrates
de recognição comum e, o que é mais importante, não deveria ser confun-
dido com aquele filósofo.16
É fácil demais presumir que diálogos do segundo tipo foram escritos
quando não era mais uma prioridade oferecer o retrato mais fiel de Sócrates
tal qual realmente existira. E já que é bastante fácil ver onde, quando (e até
que ponto) Sócrates se torna o proponente de doutrinas específicas, que ele
não está mais “se comportando como Sócrates”, podemos assumir com se-
gurança que os socráticos estavam de acordo em que o Sócrates que se com-
portava de uma certa maneira reconhecível era um Sócrates próximo ou
bastante próximo do original e, reciprocamente, que não faziam uma ale-
gação séria de aderir ao original quando ousavam transformá-lo no simples
proponente de doutrinas específicas.17
15
Quero dizer: longe de meramente parecer apreciar o que o interlocutor tem a dizer (como,
digamos, no Eutífron de Platão: cf. 6c8-9), Sócrates aqui sinceramente aceita aprender, i. é,
participar da transferência de peças prontas de conhecimento de seu interlocutor para si
mesmo.
16
Mais sobre esse ponto em ROSSETTI, 2004 b.
17
É pena não poder discutir este – e outros – tópicos com mais vagar. Este artigo tinha a
intenção, na verdade, de explorar um grupo razoavelmente complexo de temas estritamen-
te inter-relacionados, ao mesmo tempo adiando o levantamento erudito de cada um deles
para uma ocasião posterior.
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Estas conjecturas nos ajudam a identificar outra mudança importante 13
que ocorreu algum tempo (algumas décadas, de fato) após o nascimento do
Livio Rossetti
fenômeno literário e filosófico chamado sokratikoi lógoi. Em um tempo em
que a nova fórmula havia deixado de ser novidade, Platão e outros autores
podem ter sentido uma inclinação a introduzir mais doutrinas, teorias, doxai
e ensinamentos explícitos em seus diálogos socráticos. É claro que não sa-
bemos exatamente como e quando as coisas mudaram, mas é ao menos plau-
sível que Platão tenha abandonado o molde aporético de seus diálogos em
favor de uma nova fórmula em que, falando amplamente, há um mestre e
há algo sendo ensinado. Assim fazendo, ele inventou um novo tipo de diá-
logo, que teve por objetivo garantir espaço amplo para ensinamentos posi-
tivos por parte do locutor principal, e estava provavelmente contente em
aceitar a entrada de toda uma nova série de filosofemas em seus diálogos.
Mesmo nesses diálogos “doutrinários”, Platão freqüentemente mostra in-
teresse em apontar como certas questões cruciais não devem ser tomadas
como tendo sido definitivamente fixadas.
Observe-se, por exemplo, como freqüentemente há uma desproporção
entre o corpo doutrinário principal de um dado diálogo e sua conclusão
explícita, tal que deixa ainda aberta a questão com relação a importantes
pontos de vista (veja-se o Fédon, o Eutidemo, o Crátilo, a República, o Teeteto,
o Parmênides e outros diálogos).18 No entanto, estes permanecem diálogos
doutrinários já que seu locutor central normalmente professa “já ter” de-
senvolvido algumas idéias, alcançado algum conhecimento, estar conven-
cido de algo quando chega para partilhá-las com seus interlocutores e, de
outro lado, quase todos nesses diálogos evitam fazer declarações, definições
ou objeções impromptu.
Assim, seja quais forem os detalhes da história, podemos concluir que
houve “primeiro” um período de entusiasmo pela forma do diálogo e uma
nova maneira de filosofar, e “então” um novo período marcado pela prefe-
rência por diálogos que incorporam um corpo todo de doutrinas, teorias e
doxai como uma parte importante deles. Desse modo, as doutrinas mais uma
vez começaram a formar o “conteúdo” de diálogos bem como de tratados
18
Essas declarações certamente deveriam ser qualificadas, e isto não pode ser feito aqui. É
suficiente notar que, quanto à República, a desproporção entre o mito final e os principais
demonstranda do diálogo têm sido tratada convincentemente (ainda que de modo incom-
pleto) no paródico Livro XI da República recentemente composto por Mario Vegetti
(VEGETTI 2004).
HYPNOS
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14 filosóficos enquanto tais (isto é, ocupando, por assim dizer, o campo semân-
tico de “filosofia”).19 Nenhuma das inovações provou-se absorvível pela
O diálogo socrático “aberto” e sua temporada mágica
19
Este é mesmo o caso, se Platão é freqüentemente cuidadoso em evitar preservar distân-
cia das teorias sustentadas por seus principais personagens.
HYPNOS
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ainda, ao encontrarem, não alguma doutrina precisa que pudesse ser toma- 15
da como confiável, e possivelmente como um avanço sobre outras teorias,
Livio Rossetti
mas simplesmente uma série de ruminações, cada uma servindo como mero
degrau em direção a um melhor levantamento do assunto em questão, bem
poderiam ter começado a pensar que estavam examinando algo possivelmen-
te inacabado.
Um problema adicional emerge quando se considera que a forma do
diálogo aberto deixa aos autores apenas escassas oportunidades de explicar
seu tipo especial de anomalia. Assim, precisamos levantar a questão: quais
técnicas poderia ter inventado Platão (e possivelmente outros socráticos) de
modo a garantir um entendimento e uma avaliação mais apurados desses
diálogos? Eles poderiam, para começar, ter tomado como axiomático que,
se Sócrates realmente fez filosofia dessa maneira, então eles estavam total-
mente autorizados a apresentar tal discussão “aberta” como um modo per-
tinente de fazer filosofia. Ou, que nesse tipo de diálogo o leitor com bom
discernimento deveria ir bem além do dado, e buscar conclusões que esta-
vam longe de terem sido completamente explicitadas.
Outra alternativa é que eles tenham propositalmente deixado os leito-
res a si mesmos, na esperança de que eles viessem a perceber por si próprios
que um diálogo aberto tem “valor agregado”, no que ele é rico, estimulan-
te, provocativo e instrutivo precisamente “por causa” da falta de uma con-
clusão ou lição definitiva. Ou seu objetivo teria sido o de mostrar que a fi-
losofia é mais uma atividade intelectual do que um ato de aprendizado, e
que o diálogo escrito pode apenas sugerir os primeiros passos de uma in-
vestigação que será levada adiante em um contexto outro que o da mera
leitura. Seja lá o que tenham feito para prevenir o mal entendimento de suas
intenções, os socráticos de alguma forma foram bem-sucedidos, ainda que
apenas por um período, em persuadir um bom número de leitores de que a
maneira deles de filosofar era, não apenas uma maneira legítima, mas
mesmo uma maneira melhor do que as passadas.
Como resultado, emergiu como possibilidade uma concepção de filo-
sofia completamente nova (isto é, de filosofia como um processo de
questionamento, ao invés do oferecimento de respostas tranqüilizadoras a
questões), ainda que não se tenha desenvolvido numa postura filosófica
consciente. Do modo como as coisas se passaram, acabou voltando a “anti-
ga” fórmula (a dos tratados, ou em todo caso a de uma forma de comuni-
cação menos filtrada), e em um espaço de umas poucas décadas mais uma
vez tornou-se o padrão. A temporada do diálogo socrático “totalmente
aberto” foi bastante curta.
HYPNOS
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16 Nesta visão dos eventos, no entanto, algumas bruscas descontinuidades
vieram à luz, especialmente dentro do conjunto de diálogos genuinamente
O diálogo socrático “aberto” e sua temporada mágica
REFERÊNCIAS20
PLATONE. Eutifrone, a cura di L. R. Roma: Armando, 1995.
ROSSETTI, L. Le dialogue socratique in statu nascendi. Philosophie Antique, I, 2001.
pp. 11-35.
_____. Plato on the Pre-Socratics. In: GRACIA, J. & YU, J. (eds.). Uses and abuses of
the classics. Aldershot & Burlington VT: Ashgate, 2004a. pp. 11-35.
_____. The Sokratikoi Logoi as a Litterary Barrier. Toward the Identification of a
Standard Socrates Throught Them. In: KARASMANIS, V. (ed.). Socrates 2004
years Since His Death. Athens: ECCD, 2004b. pp. 81-94.
_____. Le contexte littéraire dans le quel Platon a écrit. In: FATTAL, M. (ed.) La
philosophie de Platon 2. Paris: L’Harmattan, 2005. pp. 51-80.
20
Como foi explicado na nota 3, nenhuma referência sistemática à literatura erudita foi
introduzida neste artigo, com única exceção de DIXSAUT, M. & BRANCACCI, A. (eds.).
Platon, source des Présocratiques. Paris: Vrin, 2002. VEGETTI 2004, i. é PLATONE.
Repubblica Livro XI, Lettera XIV. Socrate incontra Marx, lo Straniero di Treviri. Autentico
falso di Mario Vegetti. Napoli: Guida, 2004, é fruto da imaginação, mas de uma imagina-
ção dirigida por vasta competência como estudioso. Um livro e alguns artigos meus foram
citados para sustentar certos pontos que foram tratados aqui apenas de modo sumário.
HYPNOS
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EL ALMA DEL MUNDO EN SCHELLING
THE WORLD-SOUL IN SCHELLING
HUGO RENATO OCHOA*
Abstract: In the first part of this paper, four interrelated principles are
proposed as being at the foundation of Schelling's philosophy but as being,
nevertheless, beyond its eventual transformations or evolutions. In the second
part, these four principles are used to explain the meaning and place of the
"world-soul" in Schelling's system, especially in its relation to his Philosophy
of Nature.
Key-words: Soul; World; Nature; God.
*
Hugo Renato Ochoa é professor na Universidad Católica de Valparaiso, Chile.
E-mail: rochoa@ucv8.ucv.cl
1
TILLIETTE, X., Schelling, une philosophie en devenir, Paris: Vrin, 1970.
HYPNOS
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18 PRINCIPIOS GENERALES
El alma del mundo en Schelling
Primer principio
El principio fundamental se encuentra ya en una de sus primeras obras,
Acerca del yo como principio de la filosofía o sobre lo incondicionado en el sa-
ber humano: “el comienzo y el fin de toda filosofía es ¡libertad!”,2 y en Ideas
para una filosofía de la naturaleza como introducción al estudio de esta cien-
cia: “la filosofía [...] es completamente obra de la libertad”.3 Así, pues, para
Schelling el primer principio originario, “lo que antiguamente y ahora y
siempre buscado”,4 es la libertad. Esto significa la afirmación de un primer
principio no sustancial cuya identidad radica en la absoluta espontaneidad,
incondicionada por su misma naturaleza, de un acto que se funda radical-
mente a sí mismo. La búsqueda del primer principio, cuyo carácter funda-
mental es el de ser incondicionado y, por lo tanto, absoluto, sólo puede
conducir a aquello que se pone a sí mismo como radical principio de la
acción, y tal puede ser sólo la libertad.
El carácter no sustancial de este principio significa que no puede ser
objeto y nunca puede ser objetualizado, en tanto incondicionado (unbeding),
no puede ser cosa (Ding), es, pues necesariamente sujeto.5 Sin embargo, este
sujeto no debe ser entendido al modo cartesiano, como cogito, sino como
acción de sí mismo; “en el principio era la acción”;6 es sujeto, pero debe ser
entendido como el enclave del acto que se realiza por su mismo acto y es,
por lo tanto, sujeto-objeto. No puede haber nada anterior a él y, como es
principio actuante, todo lo posterior tiene en él su origen. Ser es acción, y
su identidad no puede consistir en una esfera clausurada sobre sí misma o
en algo que meramente se contemple a sí mismo.
La libertad entraña, a la vez, autoposición y autoposesión de sí, nunca
puede dejar de autoafirmarse y, por lo tanto, es imposible que deje de ser o
2
SCHELLING, F.W.J., Vom Ich als Princip der Philosophie oder über des Unbedingte im
menschlichen Wissen, Historisch-Kritische Ausgabe, I, 2, E., Stuttgart: Frommann-Holzboog,
1980, p. 101.
3
SCHELLING, F.W.J., Ideen su einer Philosophie der Natur als Einleitung in das Studium
dieser Wissenschaft, (1ª edición 1797, 2ª 1803), en Schelling Ausgewählte Werke, Darmstadt:
Wissenschaftliche Buchgesellschaft, 1967, p. 335.
4
ARISTÓTELES, Metafísica, 1028 b 2.
5
Cf. SCHELLING, F.W.J., Vom Ich..., op. cit., pp. 87 ss.
6
GOETHE, Fausto, “Das Wessen des Menschen ist handeln.” Cf. SCHELLING, Ideen zu
einer Philosophie der Natur..., en Schelling Ausgewählte Werke, Schriften von 1794-1798,
Darmstadt: Wissenschaftliche Buchgesellschaft, 1967, p. 337.
HYPNOS
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se pierda de sí misma, es, pues, lo absolutamente necesario. Además, care- 19
ce de suyo de todo límite, es un punto absoluto que juega desde sí un juego
Segundo principio
El segundo elemento central para comprender la filosofía de Schelling
se sigue necesariamente del primero. Para Schelling, dado que el primer
principio es libertad, una filosofía que cabalmente se asiente sobre ese prin-
cipio no puede consistir sino en el mismo devenir de éste, lo cual significa
que tal filosofía es genética. Habitualmente la filosofía había sido entendi-
da como un discurso racional especulativo, pero un tal discurso queda siem-
pre en la frontera de este ser absoluto que es libertad, intenta apresarlo en
la necesidad lógica de un sistema y, con ello, oculta su identidad más pro-
funda. El carácter genético de la filosofía significa que ésta entraña un de-
venir por el que la libertad se vuelve sobre sus propias obras para, al asu-
mirlas como propias, dar lugar a una forma de saber reconstructivo.
Así, pues, el que la filosofía sea genética responde al mismo carácter
genético de lo real, en la medida que éste tiene su principio en la libertad;
la necesidad, entendida como “condición” necesaria, por el contrario, como
señala Kant, es puesta por el sujeto al conocer lo real transformándolo en
fenómeno y, por lo tanto, no puede ser jamás originaria. De modo que si
“quien quiere saber algo, quiere a la vez que su saber tenga realidad”,8 para
alcanzar tal saber se debe seguir el mismo itinerario de lo real. Para Schelling,
la filosofía debe dar cuenta de la génesis de lo real, por ello el sistema que
lo comprenda debe ser dinámico y no estático. “Una vez despertado el es-
píritu dinámico, todo filosofar que no tome su fuerza de él, sólo debe ser
7
SCHELLING, F.W.J., Vom Ich..., op. cit., p. 101.
8
Ibid, p. 85.
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20 considerado como un mero abuso del don generoso de hablar y pensar”.9
Pero este carácter dinámico implica que ha de haber una evolución interna
El alma del mundo en Schelling
9
SCHELLING, F.W.J., Las edades del mundo, Santiago: Editorial Cerro Alegre, 1993, p. 33.
10
SCHELLING, Ideen zu einer Philosophie der Natur..., en Schelling Ausgewählte Werke,
Darmstadt: Wissenschaftliche Buchgesellschaft, 1967, p. 340.
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filosofía, pues, rehace el camino que previamente ha transitado el princi- 21
pio a partir del encuentro del principio consigo mismo, que es lo que ocu-
Tercer principio
El tercer elemento que está presente a lo largo de toda la filosofía de
Schelling se deriva, también, del anterior. Dado el carácter dinámico real
del principio, la filosofía es contemplación, pero contemplación de la his-
toria del principio, de su desarrollo, y consiste en rehacer el camino desde
la autoconciencia. Pero este camino no puede ser dialéctico hasta el final.
“Toda ciencia debe, pues, estar transida de dialéctica. Pero otra cuestión es,
si caso nunca llega al punto donde se vuelve libre y viviente, como en el
historiador, quien, para representar el cuadro de las épocas, ya no piensa
en sus investigaciones. Acaso nunca pueda el recuerdo del comienzo origi-
nario de las cosas volverse tan viviente que la ciencia, que en razón del objeto
y del significado mismo de la palabra es historia, pudiera también serlo se-
gún su forma exterior, y el filósofo sea capaz de volver a la sencillez de la
historia a la manera como el divino Platón, cuya obra está transida de dia-
léctica, pero que en la cumbre y último punto de su transfiguración, toda
su obra se vuelve historia”,11 y, como toda historia, se trata de la recons-
trucción de una vida bajo la forma de un recuerdo; saber es, pues, anámnesis.
Ahora bien, si se entiende el espíritu como el acto de autoposición de
la libertad, la contemplación contempla la historia trascendental del abso-
luto. Esta contemplación es una visión de lo reconstruido por el pensar y,
por ser una reconstrucción del pensar, es auténtico y legítimo saber racio-
nal. Este punto es capital: se trata de un saber que, no obstante su facticidad,
en la medida que lo que allí se contempla es la misma reconstrucción de lo
absoluto, el acto de asentimiento alcanza a lo absoluto no objetivamente,
sino como sujeto-objeto porque contempla y, por lo tanto, objetivamente
algo que se revela en un acto de manifestación de sí mismo, es decir, como
sujeto. Pero el que sea sujeto-objeto no significa que supere absolutamente
11
SCHELLING, F.W.J., Las edades del mundo, op. cit., p. 42.
HYPNOS
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22 estas determinaciones, y esto porque se trata inevitablemente de un saber
propiamente humano. Se trata de retornar a una metafísica del ser y no del
El alma del mundo en Schelling
nous. Schelling intenta, pues, alcanzar el ser como existencia, porque la li-
bertad no es sino existencia pura.
Ahora bien, la existencia como libertad es precisamente lo que nunca
puede ser pensado porque trasciende absolutamente el ámbito de la concien-
cia que sólo puede aprehender algo bajo la forma de concepto. Pero tam-
poco puede ser llamado No-Yo; la existencia es, de hecho, realmente, ante-
rior al Yo y al No-Yo, es, como afirmaba Schelling en Acerca del Yo,12 lo
que nunca puede ser objeto, pero, paradójicamente, tampoco puede ser
sujeto en respectividad.13 Ahora bien, la existencia es, precisamente, lo es-
condido, lo oculto, lo reprimido; la libertad es constreñida en el acto de dar
lugar a algo, lo que aparece son, pues, las formas de su represión. Es esa re-
presión la que engendra la multiplicidad. En este sentido, la conciencia de
sí, en definitiva, el cogito, termina por ser la forma más peculiar de repre-
sión, (se trata de un “encadenamiento”), porque intenta alcanzar la liber-
tad sometiéndola. Por ello es necesario abandonar la dialéctica para dar lugar
a un saber que asume la historia desde su forma propia, pero una historia
que es paulatino y sistemático revelación del absoluto.
Cuarto principio
Finalmente, el cuarto elemento recurrente en toda la filosofía de
Schelling es el carácter peculiar del saber propio de la autoconciencia. Como
hemos visto, la filosofía, si ha de dar cuenta de lo real existente, debe con-
sistir en un saber histórico. Pues bien, se trata de una reconstrucción desde
la autoconciencia, pero en este devenir el absoluto sale y retorna a sí mis-
mo, en un círculo. La naturaleza es entendida como la prehistoria de la
conciencia, como un despliegue en el que, en su cúspide, la naturaleza al-
canza, por medio de una evolución y un desarrollo, la subjetividad propia
del Yo y la plena autoconciencia. Ciertamente, como ya había sido plan-
teado en el mundo clásico, el ordo cognoscendi es inverso al ordo essendi, sin
embargo, ahora la conciencia vuelta sobre sí misma constituye una suerte
de recuperación del principio para sí mismo, en la medida que, en virtud
12
SCHELLING, F.W.J., Vom Ich..., op. cit., p. 89.
13
Cf. LOER, B., Das Absolute und die Wirklichkeit in Schellings Philosophie. Mit der
Erstedition einer Handschrift aus dem Berliner Schelling-Nachlaß, Berlin-New York: Ed. Walter
de Gruyter, 1974, p. 31: “Diese Überschwendlichkeit, diese daß weder Subjekt noch Objekt Ist,
ist also die Voraussetzung aller Philosophie (...)”. El texto es de Schelling.
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de la autoconciencia, la libertad se constituye en Yo,14 pero un Yo que con- 23
tiene en sí la totalidad de la naturaleza porque es el punto de término del
14
Cf. SCHELLING, F.W.J., Ideen zu einer Philosophie der Natur..., op. cit., pp. 338 ss.
15
SCHELLING, F.W.J., Las edades del mundo, op. cit., p. 125.
16
Ibid., p. 126.
17
Ibid., p. 33.
HYPNOS
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24 imposible por contradictorio, pues significaría para la conciencia un salir
de sí sin sí misma y, por lo tanto, no podría ser consciente. Si el objeto no
El alma del mundo en Schelling
18
SCHELLING, F.W.J., Las edades del mundo, op. cit., p. 35.
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tud de estructuras a priori, el originario caos de sensaciones. Desde esta 25
perspectiva, por decirlo así, el mérito es del entendimiento, éste es el que
19
Denkmal, Cf. Ibid., p. 38.
20
SCHELLING, F.W.J., Erster Entwurf eines Systems der Naturphilosophie, Schellings Werke
(En adelante SW) III, M. Schröter, München: Ed. Beck, 1958, p. 331.
21
Ibid, p. 85.
22
SCHELLING, F.W.J., Abhandlungen zur Erläuchterung des Idealismus der
Wissenschaftslehre, SW, I, p. 311.
23
SCHELLING, F.W.J., Ueber Mythen, historische Sagen und Philosopheme, SW, I, p. 36
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26 naturaleza sólo se conoce en la medida que su mismo espíritu se despierta a
la autoconciencia.
El alma del mundo en Schelling
24
SCHELLING, F.W.J., Ideas para una filosofía de la naturaleza como introducción al
estudio de esta ciencia, en Experiencia e historia, Madrid: Ed. Tecnos, 1990, p. 163.
25
SCHELLING, F.W.J., Abhandlungen... SW, I, p. 320.
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tu que reclama desde sí mismo un ámbito de libertad que sólo lo puede 27
encontrar al final, pero que desde un principio lo contiene como aspiración,
26
Cf. SCHELLING, Ideas para una filosofía de la naturaleza como introducción al estudio
de esta ciencia, op. cit., pp. 169 ss.
27
SCHELLING, F.W.J., Erste Entwurf…, SW III, p. 245.
28
SCHELLING, F.W.J., Ideas para una filosofía de la naturaleza como introducción al
estudio de esta ciencia, op. cit., p. 198. SW, I, p. 706.
29
Cf. SCHELLING, F.W.J., Las edades del mundo, op. cit., p. 75.
30
SCHELLING, F.W.J., Die Weltseele, en Schelling Ausgewählte Werke, Darmstadt:
Wissenschaftliche Buchgesellschaft, 1967, p. 435.
31
Cf. SCHELLING, F.W.J., Las edades del mundo, op. cit., p. 85.
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28 modo que la vida no constituye una suerte de azar fortuito que meramente
sobreviene a un ser, sino que la totalidad acoge al ser viviente como algo
El alma del mundo en Schelling
necesario y esperado. Así como a partir de un resto animal puede ser re-
construido el animal completo, asimismo, a partir de un solo ser viviente,
más aún, de un ser cualquiera, puede ser reconstruida la totalidad de la na-
turaleza, un ser reclama a otro y a otro y así la naturaleza es un todo orgá-
nico.
Pero no se trata sólo de un orden de hecho, por decirlo así, en el que
las partes están integradas orgánicamente entre sí constituyendo un todo;
el carácter “animado” de este todo significa algo más, significa, por una parte,
como hemos visto, que tiene historia, es decir, su identidad se gesta en un
curso temporal, pero que a lo largo de todo él conserva un núcleo origina-
rio que trasciende toda modificación, y, por otra parte, se autorregula a sí
mismo, de modo que toda génesis, todo cambio, toda transformación, res-
ponde a un sentido. Pues bien, este doble carácter no sólo revela la condi-
ción de “animada” de la naturaleza, sino que también supone un punto en
el cual se vuelve sobre sí reflexivamente y se aprehende como un todo, se
clausura, se refleja a sí misma en el espejo de la autoconciencia. Lo anterior
significa que el alma del mundo, a lo largo de toda la historia natural, no va
sino al encuentro de sí misma, sin embargo, ese encuentro que alcanza en
la autoconciencia no es pleno, porque se realiza en un ser que, si bien se tiene
a sí mismo y es, por lo tanto, libre, esa misma libertad supone un abando-
no de las posiciones originarias y, de este modo, si bien no pierde el carác-
ter orgánico, que no lo puede perder porque constituye su identidad, se
oscurece la relación con lo anterior en la misma medida que se libera.
Sin embargo, naturaleza y espíritu no son dos “sustancias” enfrentadas,
sino que una no es sino el devenir la otra, y el principio que impera este
devenir, como es necesariamente acción pura, no puede ser sustancia nin-
guna, sino que es, precisamente, principio de acción total, es decir, un prin-
cipio radical cuya realidad consiste en ser el principio animador de la reali-
dad, pero, en cuanto animador, es también el principio realizador de la rea-
lidad; no algo que se sobreañada a algo ya constituido, dos realidades no
pueden jamás constituir una sola. De modo que no se debe entender que el
principio es algo que está meramente al comienzo, el principio impera todo
el desarrollo, y no lo hace “desde fuera”, sino que constituye en cada mo-
mento del despliegue la identidad que configura cada cosa y le da sentido,
por ello, pese a su trascendencia, puede ser descubierto o, más bien, “indu-
cido” desde cada dimensión de lo natural, no obstante, sólo en la
autoconciencia se refleja como lo que es absolutamente: acto incondicio-
HYPNOS
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nado; lo que se hace presente en la autoconciencia, por lo tanto, no es un 29
objeto, –un saber objetivo supone necesariamente una distinción–, lo
32
Cf. SCHELLING, F.W.J., Escritos sobre filosofía de la naturaleza, Madrid: Ed. Alianza,
1996; Introducción de Leyte, Arturo, p. 33.
33
Cf. SCHELLING, F.W.J., Erste Entwurf..., SW III, p. 284.
34
SCHELLING, F.W.J., Weltseele, op. cit., p. 401.
35
SCHELLING, F.W.J., Akademische Ausgabe, I, 5, p. 93 (SW II, p. 40)
36
Cf. SCHELLING, Escritos sobre filosofía de la naturaleza, Madrid: Ed. Alianza, 1996;
Introducción de Leyte, Arturo, pp. 38-39.
HYPNOS
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30 Tal organización no puede proceder de un principio material, porque
sólo daría origen a una secuencia mecánica de causas y efectos, lo cual no
El alma del mundo en Schelling
logra explicar jamás una estructura que se regula a sí misma, que se ordena,
por decirlo así, desde dentro, que reclama cada parte para configurar un todo
de elementos que, puestos uno al lado del otro, constituirían un mera suma
de partes que podrían interactuar entre sí, pero que jamás podrían dar lu-
gar a la conciencia. Por otra parte, “la vida se deja representar tan poco fuera
de la vida como la conciencia fuera de la conciencia’,37 lo cual significa que
sólo es posible conocer el carácter viviente y animado de la naturaleza des-
de el interior mismo, en la medida que la conciencia es un momento pro-
pio del mismo principio que anima la totalidad. No puede haber concien-
cia de sí, por lo tanto, sin que ésta se revele como un momento de tránsito
hacia una conciencia superior: la conciencia del uno-todo; en la conciencia
de sí se transparenta una radical pertenencia,38 al punto que la existencia
queda definida como un modo de pertenencia al todo.
Esta pertenencia, por una parte, se reconoce en el imperativo práctico,
por cuanto“mi existencia moral sólo adquiere un propósito y una determi-
nación gracias a la existencia de otros seres morales externos a mí”.39 Pero,
por otra parte, “sólo creemos en una naturaleza externa a nosotros cuando
percibimos infinitud del efecto y finitud del medio”.40 Sin embargo, no se
trata de preguntar cómo ha surgido una naturaleza fuera de nosotros, sino
cómo ha podido llegar hasta nosotros la idea de semejante naturaleza. Por
lo tanto sólo en la absoluta identidad del espíritu en nosotros con la natu-
raleza fuera de nosotros, se puede comprender el perfecto ajuste entre lo
ideal y lo real. La apelación a una armonía preestablecida o una divinidad
providente sólo traslada el problema. Ahora bien, una identidad sólo pue-
de tener lugar entre lo que es absolutamente semejante.
“Lo infinito no puede llegar a lo finito, pues entonces tendría que diri-
girse por sí mismo a lo finito, es decir, tendría que no ser infinito. Pero, del
mismo modo, es imposible que lo finito llegue hasta lo infinito (...). Am-
bos tienen que ser reunidos en virtud de una determinada y absoluta nece-
37
SCHELLING, F.W.J., Introducción a Ideas para uma filosofia de la naturaleza, en Es-
critos sobre filosofía de la naturaleza, Madrid: Ed. Alianza, 1996, p. 107
38
Schelling intenta afirmar uma filosofia que no quede clausurada em una conciencia pu-
ramente reflexiva.
39
SCHELLING, F.W.J., Introducción a Ideas para uma filosofia de la naturaleza, op. cit.,
p. 108
40
Ibid. p. 110
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sidad, si en general parecen estar unidos. A ésta la llamamos “necesidad”, 31
mientras no encontremos otra expresión, “vínculo” (Bund) absoluto o có-
41
SCHELLING, F.W.J., Weltseele, op. cit., p. 414.
HYPNOS
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O DAIMÓNION DE SÓCRATES
THE DAÍMON OF SOCRATES
MIGUEL SPINELLI*
*
Miguel Spinelli é professor da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM-RS).
E-mail: migspinelli@yahoo.com.br
1
FREIRE, Antonio. “Sócrates no pensamento grego”. In: Revista Portuguesa de Filosofia.
Braga, t.37, 1981, p.168.
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é natureza” (a ponto de, por exemplo, Hesíodo ter dito que “da mesma 33
origem nasceram deuses e homens”)2 . Admite-se na Filosofia grega que o
Miguel Spinelli
ser <tò ón> ou que as coisas <tà ónta> detêm dimensões diferentes, mas
não deslocadas do ser ou das coisas mesmas, como se fossem
compartimentos estanques de uma mesma realidade. O que se distingue são
modos de ser dessa realidade ou das coisas, das quais se concebe
(intelectivamente) o fora e o dentro, melhor ainda, o “que é” oculto (o em
si, a essência ou a qüididade das coisas) e o “que é” empiricamente manifesto
(o aparente ou o que se vê).
Outra questão a ser considerada diz respeito ao universo das máxi-
mas sobre as quais se assentou o exercício do pensar filosófico grego, e pelo
qual esse mesmo pensar foi levado a distinguir campos diferenciados de
investigação. Dentre todas as máximas, eis a fundamental: “Tenha coragem
de ser homem, não queira ser um deus”. Dela dependeu todas as demais,
em primeiro, a do “Conhece-te a ti mesmo”, adotada como modo peculiar
de filosofar – o da interiorização do homem sobre si mesmo – como via de
conhecimento do humano e das relações humanas, quer dos homens entre
si, quer em relação com as coisas do alto e com as divinas.
O estudo das “coisas divinas” e das “coisas do alto” refere-se a dois
campos distintos, mas não entre si desassociados. O estudo das coisas do alto
corresponde à ciência que os filósofos gregos denominavam (em sentido
amplo) de “meteorologia” (que englobava a Geometria, a Aritmética e a
Astrologia). O estudo das coisas divinas abrangia um sentido mais extenso,
pois dizia respeito não propriamente a uma ciência (a uma suposta
“daímonologia”), e sim ao modo peculiar de filosofar ou de fazer ciência,
em que o conhecimento (racional humano) tende finalmente a se subtrair
da empiria para se deter no território dos símbolos, das idéias ou dos con-
ceitos, numa palavra: do “divino”. Daí que a “Daímonologia” foi uma ex-
pressão arcaica da Teologia. Daímon se impôs como um correlato de théos,
de modo que ambos (na linguagem corriqueira da Filosofia clássica) deti-
nham a mesma função comunicativa.
No caso específico da investigação das coisas do alto, a Filosofia ti-
nha como função observar (além do comportamento dos astros ou de seus
movimentos) os fenômenos celestes, a fim de por eles, em última instân-
2
HESÍODO. Os trabalhos e os dias, v. 105 – Fontes: Théogonie. Les travaux et les jours. Le
bouclier. Text établi et traduit par Paul Mazon. Paris: Les Belles Lettres, 1972; bem como:
Os Trabalhos e os Dias. Tradução, introdução e comentários de Mary de Camargo Neves
Lafer. São Paulo: Iluminuras, 1996.
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34 cia, decifrar os segredos do Cosmos. Não, porém, no sentido de decifrar
qualquer suposto segredo de um Deus, mas sim, os segredos do Homem.
O Daimónion de Sócrates
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Heráclito, Parmênides, Empédocles, Demócrito. Praticamente em todos 35
eles há uma estreita correlação entre théos (theîon) e daímon. Porém, antes
Miguel Spinelli
deles, o próprio Hesíodo fez uso do termo, ao qual dotou de uma significa-
ção que orientou a reflexão filosófica posterior.
Na Teogonia (dedicada ao nascimento dos deuses), Hesíodo se serve por
duas vezes do termo: uma, a fim de exaltar qualidades de Zeus, a sua inteli-
gência e o seu saber incomum;4 outra, para indicar uma função ou ativida-
de exercida, no interior do Templo, pelo filho de Aurora e de Céfalo (mais
exatamente filho do alvorecer da mente humana), ao qual Hesíodo dá o
nome de Phaéthon, sem, porém, concebê-lo como um deus e sim como um
daímona ilustre. Não sendo propriamente um deus, ele é, na verdade, “um
homem muito semelhante aos deuses <theoîs epieíkelon ándra>”, um ser
extraordinário e brilhante (epíteto do brilho e da luz do Sol). Quando ele
era ainda criança, “uma inteligência infanto-juvenil <paîd’ atalà
phronéonta>”, Afrodite, a deusa da beleza e do amor, dele se apoderou e o
fez ministro do sagrado Templo.5 Ora, supondo-se que o interior do Tem-
plo era o lugar para onde convergiam as máximas (as primícias da sabedo-
ria grega, ou) da inteligência humana, então o filho de Aurora e Kéfalos
foram levados ao lugar certo; e, logo por Afrodite, pela deusa que restaura
as forças geradoras e que ativa os desejos (a promotora do páthos)!
Em Os Trabalhos e os Dias, Hesíodo dá ao termo daímones um signifi-
cado aparentado com o da Teogonia. Os daímones não são criações de Zeus,
mas dos homens, dos quais herdaram todos os atributos humanos, com o
acréscimo da imortalidade. Foi uma descendência nobre de homens (uma
D.L, 1996; CAMARERO, Antonio. Sócrates y las creencias demónicas griegas. Bahia Blanca:
Instituto de Humanidades, Universidade Nacional del Sur, 1968; SAUVAGE, Micheline.
Sócrates y la consciência del hombre. Con la colaboración de Marie Sauvage. Trad. de Isabel
Gil de Ramales. Madrid: Aguilar, 1963. A recepção do daimónion de Sócrates pode ser ana-
lisada sobretudo em três autores do II século d. C (Plutarco, Apuleo e Máximo de Tiro) e
também em Proclo, representante do Neoplatonismo do VI século d.C. Para essa análise
podem ser consultadas as seguintes obras: APULÉE. Opuscules philosophiques et fragments.
Introduction, texte, traduction et notes par J. Beaujeu. Paris: Les Belles Lettres, 1973;
MAXIME OF TYRE. The philosophical orations. Edited by M. B. Trapp. Oxford: Clarendon
Press, 1996; PLUTARQUE. Le démon de Socrate. Intruduction, texte, traduction et notes
par André Corlu. Paris: Klincksieck, 1970; PROCLUS. Sur le ‘Premier Alcibiades’ de Platon.
Intruduction, texte, traduction et notes par A. Seconds. Paris: Les Belles Lettres, 1985.
4
HESÍODO. Teogonia. vv. 655-660 – Fontes: Théogonie. Les travaux et les jours. Le bouclier.
Text établi et traduit par Paul Mazon. Paris: Les Belles Lettres, 1972; Teogonia. A origem
dos deuses. Estudo e tradução de Jaa Torrano. São Paulo: Iluminuras, 1995.
5
HESÍODO. Teogonia. vv. 985-990
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36 “geração de ouro”* ) que “criou esses imortais”. Vivendo no Olimpo, eles
vieram a ser, “por determinação do grande Zeus, daímones prudentes,
O Daimónion de Sócrates
guardiões terrestres dos homens mortais”. Zeus lhes atribuiu, por decreto,
uma função nobre: “vigiar as decisões e as ações (dos homens, particular-
mente aquelas que viessem a ser) prejudiciais [...]”.6 Visto que habitavam o
Olimpo, de cuja morada Zeus era o soberano absoluto, conseqüentemente,
estavam sujeitos à sua deliberação, por isso lhes atribuiu a função de
guardiões, não, porém, à revelia dos homens. Ocorre que, mesmo não sen-
do diretamente o soberano dos homens, Zeus era, no entanto, o bom
tribuno: aquele ao qual competia administrar a justiça entre deuses e ho-
mens, melhor ainda, aquele que, em atenção aos homens, dava aos deuses
(caso falhassem ou fossem indolentes frente aos homens) a justiça merecida.
No que diz respeito aos daímones, enquanto criações dos homens, tal-
vez Xenófanes nos ajude a entender Hesíodo. Ao procurar convencer seus
contemporâneos de que os deuses eram meras criações humanas, Xenófanes
lançou mão da seguinte ilustração:
Se os bois, os cavalos e os leões tivessem mãos, e com elas pudessem pintar e
produzir obras como os homens, os cavalos pintariam figuras de deuses seme-
lhantes a cavalos, os bois semelhantes a bois; cada um reproduziria o seu deus
atribuindo-lhe a sua aparência e a sua forma.
“Os etíopes (acrescenta no frag. 16) representam os seus deuses de cor
negra e de nariz chato, enquanto que os trácios os pintam de olhos azuis e
de cabelos cor de fogo”.7 Tanto na Teogonia como em Os Trabalhos e os Dias,
Hesíodo não identifica os daímones com os deuses, e sim com qualidades
superiores da alma humana. Hesíodo os concebe em íntima dependência
ou conexão com a intelecção de valores ou com a orientação da vida hu-
mana. Dotados da mesma índole, eles eram, digamos, a representação
(conceitual) do “alter ego” do modo humano de ser, mais exatamente da
phrónesis humana. Afinal, o Phaétonta, o filho de Aurora e de Kéfalos, era
um phronéonta. Ora, phrónesis era um termo com o qual se concebia uma
qualidade da alma: a prudência, a sagacidade, o juízo sábio. Tal termo dizia
respeito a um saber aplicado à ação, nos termos assim como indicava o ver-
*
Geração traduz-se de génos, quase sempre traduzido por raça ou estirpe. Ocorre que génos,
aqui, tem um sentido ativo, e não passivo. Ele evoca um íntimo parentesco com a natureza
dos genitores ancestrais. Portanto, ele é um correlativo da phýsis.
6
HESÍODO. Os Trabalhos e os dias. vv. 109-124. Os parênteses foram acrescentados.
7
Clemente de Alexandria. Miscelâneas <Strômateis>, V, 110 e VII, 22; DK 21 B 15 e 16.
Fonte DK: DIELS, Herman & KRANZ, Walther. Die Fragmente der Vorsokratiker. l8ª ed.,
<Unveränderter Nachdruck der 6. Auflage l95l>, Zürich-Hildesheim, Weidmann, l989).
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bo phronéo, ou seja, a atividade do pensar. O pensamento, ao se exercitar, 37
promove um juízo, dá um parecer, e assim dispõe o interior humano para
Miguel Spinelli
a ação. Era essa disposição interior que especificava a phrónesis: uma dispo-
sição pela qual o sujeito promovia uma avaliação (exercitava um juízo), e,
por ela, formulava uma decisão, que resultava em um bem ou num mal. Era,
enfim, a phrónesis que especificava os daímones, ou vice-versa. Melhor ain-
da, dado que o território das decisões é sempre conflituoso e problemático
(pleno de dúvidas e de incertezas), os daímones faziam às vezes de um re-
curso (conceitual) extra. Por um lado, com esse conceito se introduzia uma
idéia de inabordável no interior das decisões; por outro, com ele se inseria
no território conflituoso das decisões um elemento pacificador. Em nome
dos daímones o agente da ação (que carrega consigo a intenção de acertar
sempre) poderia promover um descarrego de culpa, ou seja, errando, ele
poderia tranqüilizar a si mesmo com uma justificativa bem plausível: foi
culpa dos guardiões! E se foi culpa deles, não poderia prontamente ser res-
ponsabilizado pelos seus atos.
Heráclito, a partir de Hesíodo, foi quem melhor nos deu a compreen-
der o que o termo daímon, na sua relação com a phrónesis, significava. O
termo daímôn comparece em três de seus fragmentos: no 79, no 119 e no
128. No 79, vem expresso no seguinte contexto:
“O homem é tido como uma criança perante o daímôn <pròs daímonos>, tal
como uma criança perante o adulto <pròs ándrós>”;8 (no 119): “o éthos do
homem é o seu daímon”;9 (e no 128): “Eles (as pessoas comuns) dirigem preces a
estátuas de daímones como se elas ouvissem alguma coisa, mas na verdade elas
não intercedem em nada, assim como nada pedem em troca”.10
Os fragmentos de Heráclito dão conta de várias coisas. Em primeiro
lugar, nos fazem ver como os daímones ultrapassaram as fronteiras do con-
ceito transformando-se em entidades religiosas do culto popular. Eles sal-
taram da esfera (culta) da explicação racional para a do imaginário (popu-
lar), migraram da razão para o mito. Em segundo lugar, Heráclito desmen-
te Hesíodo, na medida em que desloca os daímones para uma dimensão
totalmente outra da esfera humana. Eles são alheios ao universo da delibe-
ração humana (se cultuados, não ouvem, não intercedem, e nada barga-
nham). Dá-se que, se os homens são responsáveis pelas próprias decisões (no
8
Orígenes, Contra Celso, VI, 12; DK 22 B 79
9
êthos anthrópôi daímôn (Estobeu, Florilégio. IV, XI, 23; DK 22 B 119).
10
Aristócrites, Teosofia. 74; DK 22 B 128
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38 que Heráclito contesta, além de Hesíodo, Homero), então, forçosamente,
devem ser imputados em razão de seus próprios atos.
O Daimónion de Sócrates
11
PLATÃO, Hípias maior, 289b; DK 22 B 83
12
ARISTÓTELES, Ética a Nicômacos, VIII, 2, 1155b 4; DK 22 B 8
13
PSEUDO-ARISTÓTELES, Sobre o Mundo, V, 396 b 7; DK 22 B 10,10-12
14
DIÓGENES LAÉRCIO, Vidas e Doutrinas dos Filósofos Ilustres, IX, 8; DK 22 A 1
15
ORÍGENES, Contra Celso, VI, 42; DK 22 B 80
16
ARISTÓTELES, Ética a Nicômacos, VIII, 2, 1155b 4; DK 22 B 8
HYPNOS
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É nesse contexto que se insere o fragmento 119: “o éthos do homem é o 39
seu daímôn”. A fim de melhor compreendê-lo, convém relacioná-lo ao 78:
Miguel Spinelli
“O êthos humano não tem conhecimentos, mas o divino <tó theîon> tem”.17
Convém, além disso, recorrer ao que disse Apolônio de Tiana (um pitagórico
que viveu no I século d. C.): “[...] o homem, para Heráclito, é por natureza
desprovido de logos <álogon>”;18 ou ainda, ao que disse Sexto Empírico:*
“Heráclito afirmava que o homem (por natureza) é irracional <tò me einai
logikòn>, e que só o orbe celeste é dotado da providência <phrenéres>”.19
Levando-se em conta o que disseram tanto Apolônio como Sexto
Empírico, a contraposição de Heráclito entre “divino” e “humano” não tem
por finalidade distinguir uma suposta natureza de um Deus da natureza
humana, como se fossem “duas naturezas espirituais opostas”.20 Sexto
Empírico, em particular, identifica o divino <tó theion> com o orbe ce-
leste <tò periéchon>. Não sendo a designação de entes concretos, os adje-
tivos “divino” e “humano” são dimensões conceituais que designam (nos ter-
mos da arché e da phýsis) uma mesma e única natureza. Enquanto tal, refe-
rem-se a uma disposição interior permanente (a um governo ou soberania,
mas jamais a um soberano externo), sob dois aspectos: uma referida ao
Cosmos (à Natureza ou ao Todo) que, em si mesmo, é dotado da suprema
sabedoria (da necessária “sensatez” <phrenéres> regulativa) mediante a
qual, espontaneamente, tudo o que existe (menos o homem, a não ser físi-
17
ORÍGENES, Contra Celso, 18; DK 22 A 16, 35
18
APOLÔNIO DE TIANA, Cartas, VI, 12; DK 22 A 16
*
Sexto Empírico é o principal representante do tardio ceticismo clássico fundado por
Pirron(*). Sexto Empírico viveu entre o II e III séculos depois de Cristo (em Alexandria,
Atenas e Roma). É denominado Empírico, porque, como médico, preferia as experiências
realizadas pelos médicos célebres às suas construções teóricas. Dele ainda se conservam duas
obras: Hipotiposes Pirronianas (que é uma exposição e defesa do ceticismo) e Contra os Ma-
temáticos e Contra os Dogmáticos (que é uma crítica a todos aqueles que ensinam as ciências
ou que professam o saber e a certeza).
(*) Consta na tradição que ele nasceu em Élide (no Peloponeso) por volta de 360/365 a.C.
e morreu em 270/275 a.C. A data de seu nascimento foi estabelecida a partir do ano de 334,
período em que participou de uma expedição promovida por Alexandre da Macedônia contra
os Persas até se concluir na Índia.
19
SEXTO EMPÍRICO, Contra os matemáticos, VIII, 286; DK 22 A 16. O entre parênteses
foi acrescentado.
20
O que propõe Zeller/Moldolfo a partir de Ramnoux, verdadeiramente não faz sentido:
“... l’opposizione fra l’êthos umano, al quale sono negati i pensieri saggi (gnômas), e l’êthos
divino cui invece essi sono reconosciuti, è certamente (secondo propone CL. RAMNOUX,
Héraclite, pp. 319 e 418) opposizione di “maniere d’essere” o “disposizioni” delle due nature
spirituali contraposte” (ZELLER , E., & MONDOLFO, R., La Filosofia dei Greci nel suo
Sviluppo Storico. trad. de Rodolfo Mondolfo. Firenze: La Nuova Italia, l967, p. 358, n. 67).
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40 ca ou biologicamente) alcança a realização plena de seu próprio fim; a ou-
tra, é referida especificamente ao humano, que, por natureza, destoa dos
O Daimónion de Sócrates
demais, por ser dotado de razão, ou melhor, da potência racional, mas não
da razão cultivada. É por causa dessa carência que os homens não dispõem,
por natureza, da providência ou sensatez que os conduz, espontaneamen-
te, ou sem esforço, à edificação da própria humanidade. Porém, mesmo não
tendo, por natureza, conhecimentos, ou seja, não sendo dotados da supre-
ma sabedoria orientadora do querer e do agir, somos, todavia, capazes de
adquiri-la. Afinal, “a todos os homens é facultado o conhecer a si mesmos
e o pensar sensato <sôphroneîn>”.21 E se essa é a nossa condição humana
(distinta, por exemplo, da do cavalo, cuja “cavalidade” se realiza esponta-
neamente por natureza, e assim com os outros animais) então carecemos
de nos exercitar, tanto mais que é no “exercício do pensar” (na posse da
phrónesis) que está “a mais alta virtude”.22 Visto também que não sabemos
exatamente o “que é ser” humano (ou seja, qual é a verdade bem redonda a
respeito de nós mesmos), então, é evidente que, a qualquer custo (errando
e acertando), devemos forçosamente procurá-la!
Heráclito, ao dizer que “o éthos do homem é o seu daímon”, por certo
intencionava comunicar um entendimento preciso. No termo daímon, ele
agregava algum conceito que forçosamente se adaptava à exposição e expli-
cação de seu lógos. Pelo que ficou visto a partir do fragmento 78 (“O éthos
humano não tem conhecimentos, mas o divino tem”), daímon, referido ao
éthos humano, expressava, digamos, um conceito de “potência intermédia”
(em proporção à dýnamis inerente ao Todo). Por ser expressão de certas
qualidades específicas (do vigor, habilidade e excelência próprias do
Phaétonta e Phronéonta descritos por Hesíodo), ser daímon, para o éthos
humano, significava ser dotado de todas essas qualidades.
Por ser um predicado do éthos humano, daímon, enfim, deve ser visto
como um atributo da potência (intelectiva) pela qual a todo homem é fa-
cultado edificar soberanamente o dever ser de sua humanidade. Não, po-
rém, como uma potência meramente subjetiva, mas, sobretudo, universal,
comum a todos; dito de outro modo: a edificação da humanidade não é uma
mera abstração universal, mas depende concretamente da destinação sub-
jetiva.23 Enquanto termo ou conceito, daímon designa, em última instân-
21
ESTOBEU, Florilégio, III, v. 6; DK 22 B 116
22
sôphroneîn aretê megístê (Estobeu, Florilégio, III, l, l78; DK 22 B ll2).
23
“Héraclite accomplit un pas décisif en proclamant: L’être de l’homme (son éthos) est un
être divin (son démon) – fr. 119. Ce faisant, il ne considère pas l’homme individuel comme
fondateur de sa destinée... L’être de l’homme (son éthos) est déclaré tout simplement comme
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cia, a pré-disposição natural e permanente (em si mesma potencialmente 41
boa) pela qual todos os homens podem reger a sua própria ação, e, desse
Miguel Spinelli
modo, guiar não só a sua sorte, como também (ou ao mesmo tempo) o
destino coletivo da humanidade.24 Na medida em que se restringe ao éthos,
daímon indica tanto a condição quanto a destinação humana (subjetiva e
universal) no contexto da vida do Cosmos; noutro sentido, na medida em
que se desvincula da soberania da phýsis, ele encerra um outro domínio (vo-
luntarioso e deliberativo): aquele pelo qual a todos os homens é dado
gerenciar e conduzir a própria existência.
étant un être divin (un démon). Comme le feu du monde est à lui-même son propre destin,
c’est l’être divin de l’homme qui constitue le moteur interne du devenir humain. Héraclite
ne divinise point l’homme et n’humanise aucunement le divin; tout naturellement, le démon
cesse d’être une puissance extérieure, étrange autant qu’étrangère, et devient la forme et le
fond de la vie humaine. De même que la nécessité cosmique et divine du destin forme la
structure de l’Univers, de même l’être divin de l’homme constitue son harmonie discordante.
Nécessité et liberté s’unissent grâce à l’harmonie des contraires, et la liberté de l’homme
consiste dans l’acceptation plénière de sa nature démoniaque” (AXELOS, Kostas. Héraclite
et la Philosophie. La Première saisie de l’être en devenir de la totalité. Paris: Minuit, l979,
p. 192-193).
24
“Daímon significa aqui simplesmente um destino pessoal do homem; este é determina-
do pelo seu próprio caráter, sobre o qual exerce um certo domínio, e não por poderes ex-
ternos e frequentemente caprichosos que atuam, talvez, por intermédio de um génio atri-
buído a cada indivíduo pelo acaso ou Sorte” (KIRK, G.S. & RAVEN, J.E. & SCHOFIELD,
M.. Os Filósofos Pré-Socráticos. História Crítica com Selecção de Textos. trad. de Carlos Alberto
Louro Fonseca, Lisboa: Gulbenkian, l994, p.220).
25
“[...] éthos (tramandato fin da Eschilo) deriva dalla radice sfeth, donde per es. il latino suetus
e anche il nostro consueto, e indica fondamentalmente la tradicione, l’abitudine, la
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42 na Ética a Nicômaco, realçou (sem atribuir-lhe grande valor) essa distinção:
“... a virtude moral (disse) é adquirida em resultado do éthos (com eta), donde
O Daimónion de Sócrates
ter-se formado o seu nome (ethiké) por uma pequena variação da palavra
éthos (com épsilón)”.26
A par dessa distinção, temos, em segundo lugar, vários significados que
podem ser referidos ao éthos: a) assento (no sentido de o lugar onde se erige
a morada, não de um indivíduo, mas de um grupo, com suas tradições, ca-
racterísticas culturais, religiosas, etc. Por isso, e nesse sentido, o éthos jamais
se desassocia do conceito de pólis ou de politéia, ou seja, de um governo
fundado na idéia da ancestralidade e do direito); b) modo de habitar ou de
viver (não propriamente a habitação ou a vivência em si mesmas, mas o
modo como se habita. Por isso, muitas vezes o termo éthos é traduzido in-
clusive por cultura, termo com o qual se quer designar um conjunto de
características humanas instituídas, preservadas e aprimoradas através da
comunicação e cooperação de indivíduos de uma certa comunidade); c)
índole ou caráter27 (no sentido de uma natureza pessoal ou de um modo
subjetivo de ser, sendo um pouco por natureza, outro pouco cumulativo,
em decorrência de opções, decisões, preferências, e, evidentemente, por
empenho racional, que, cumulativamente, talham ou forjam um certo modo
de ser); d) enfim, uso ou costume (referido a um comportamento consue-
tudinário, testado ou experimentado no decurso da gênese histórica, trans-
mitido e recebido em herança, na forma de hábito ou de virtude, sujeito,
todavia, a um constante aprimoramento).
Daímon teve a sua origem relacionada a um conjunto de verbos com
significados bastante próximos: daíszô (dividir ou partilhar a própria vida
ou o destino com alguém), daíô (que também é usado, por um lado, no sen-
tido de dividir ou de partilhar a própria sorte, por outro, de acender, pôr
fogo, iluminar –, sendo que o adjetivo daíôs significava esperto, hábil, sabi-
do) e daíomai (dividir, subdividir, decompor –, o adjetivo dáïo é usado no
consuetudine, il costume, l’usanza ecc. (...); il vocabolo affine êthos (fin da Omero) ha
un’accentuazione più astratta: costume, uso, maniera di vivere” (ESSER, H.-H., In: Dizionario
dei Concetti Biblici del Nuovo Testamento. op. cit. p. 899).
26
ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco, II, 1, 1103a 17-18 – os parênteses foram acrescenta-
dos. (The Complete Works of Aristotle. The Revised Oxford Translation. Edited by J. Barnes,
Princepton, 1984; Éthique à Nicomaque. Trad. Jean Tricot. Paris: Vrin, 1987).
27
“L’interpretatione della parola êthos nei senso di indole, carattere, natura personale,
maniera d’essere, non par dubia in B ll9. (...). Non pare invece accettabile (...) il vecchio senso
di abitazione o residenza... Il senso di indole, carattere, maniera d’essere o simili è confermato
anche dalle interpretazioni antiche...” (ZELLER , E. & MONDOLFO, R.. op.cit., p. 358,
n. 67).
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sentido de o que está estragado, destruído, posto em ruínas).28 São, portan- 43
to, vários significados que foram adaptados a um certo conceito em depen-
Miguel Spinelli
dência do contexto específico de sua utilização, e, evidentemente, das exi-
gências de comunicação.
Um certo sentido religioso foi imposto a partir de daíomai. Do fato de
se constatar a decomposição ou destruição natural (dos cadáveres, por exem-
plo) se concebeu, como forma plausível de explicação, a idéia de um vigor
ou atividade degenerativa inerente aos entes e à Natureza. Foram, todavia,
a admiração e o gosto pela vida e o temor da morte que levaram os indiví-
duos a cultuar forças naturais generativas e de destruição como “divinda-
des” da Natureza. Daí que daímon, por esse ponto de vista, além de desig-
nar o vigor vivificante (a dýnamis do processo renovador da vida) veio tam-
bém a indicar o vigor degenerativo (a decomposição) da vida do Cosmos.
É bem provável, inclusive, que esteja aí o sentido da proposição atribuída a
Tales, segundo a qual “o todo é animado e pleno de daimónion”,29 e à qual
vem associada esta outra: aquela que diz que o princípio gerador de todas
as coisas é único,30 porque só um princípio único (não mais de um) permi-
te explicar o móvel do fazer-se da geração (como um todo).
“Tales e seus discípulos [o relato é de Aécio] diziam que o kósmos é
um”;31 na versão de Simplício, Tales dissera que “a archê é una e em movi-
28
BAILLY. Anatole. Dictionnaire Grec Français. Édition revue par L. Séchan et P.
Chantraine. Paris: Hachette, 1996; COENEN, L., BEYREUTHER, E. & BIETENHARD,
H.. Dizionário dei Concetti Biblici del Nuovo Testamento. Trad. de A. Dal Bianco, B. Liverani
e G. Massi, Bologna: Dehoniane, 1976; PEREIRA, Isidro. Dicionário Grego-Português/Por-
tuguês-Grego. Braga: Apostolado da Imprensa, 1990.
29
tò dè pãn émpsychon áma kaì daimónôn plêres (Aécio, Opiniões, I, VII, ll; DK 11 A 23). “Ele
considerava (...) que o mundo está pleno de almas e de demônios <émpsychon kaì daimónôn
plêrê>” (DIÓGENES LAÉRCIO, Vidas e Doutrinas dos Filósofos Ilustres, I, 27; DK 11 A 1).
As referências, a de Aécio e a de Diógenes Laércio, remontam a ARISTÓTELES: “Alguns
sustentam que a alma está misturada ao universo; de onde deriva provavelmente a opinião de
Tales segundo a qual todas as coisas estão plenas de divindades <pánta plêrê theôn einai> (De
Anima. I, 5, 411 a 7; DK 11 A 22). Cf. também PLATÃO. Leis. X, 899 b.
30
“A filosofia grega parece começar com uma idéia absurda, com a proposição de que a
água é a origem e o seio materno de todas as coisas. Será realmente necessário parar aqui e
levar esta idéia a sério? Sim, e por três razões: primeiro, porque a proposição assere algo acerca
da origem das coisas; em segundo lugar, porque faz isso sem imagens e fábulas; e, finalmen-
te, porque contém, embora em estado de crisálida, a idéia de que “tudo é um”. A primeira
destas três razões ainda deixa Tales na comunidade dos homens religiosos e supersticiosos,
a segunda separa-o dessa sociedade e mostra-o como investigador da natureza, a terceira faz
de Tales o primeiro filósofo grego” (NIETZSCHE, F., A Filosofia na Idade Trágica dos Gre-
gos. Trad. Maria Inês Madeira de Andrade. Lisboa: Edições 70, l987, p. 27).
31
AÉCIO, Opiniões, II, 1,2; DK 11 A 13b
HYPNOS
ano 11 / nº 16 – 1º sem. 2006 – São Paulo / p. 32-61
44 mento”.32 Foi, com efeito, Anaximandro (discípulo e parceiro de Tales)
quem melhor explicitou a proposição de seu mestre: “Aquilo do qual a ge-
O Daimónion de Sócrates
ração procede para as coisas que são (dizia), é também aquilo pelo qual elas
retornam sob o efeito da corrupção, segundo a necessidade [...]”.33 A arché
da geração (do vigor vivificante) é a mesma da corrupção (do vigor
degenerativo do Cosmos); dito de outro modo, o “princípio” edificador da
vida é o mesmo da morte, porque vida e morte são indissociáveis: um se
converte no outro, mediante um movimento ou um ritmo cíclico próprio
das realizações (temporais).
Uma coisa, porém, é a explicação mítica e popular concernente ao pro-
cesso de vida e morte observável no Cosmos, outra é a explicação filosófi-
ca. No caso da filosofia grega, por ter assumido (frente ao éthos grego) um
propósito essencialmente educador (qualificar racionalmente o homem
grego), ela jamais se desvinculou da Cultura ou Sabedoria popular. O pró-
prio nome designativo da Filosofia (cujo sentido etimológico expressa amor
à sabedoria) contém essa vinculação.
É bem verdade que a Filosofia se viu forçada a inventar novos termos,
a fim de atender propósitos estritamente filosóficos (adequar o ser, o dizer
e o pensar), mas, na maioria das vezes, ele se valeu de termos ancestrais.
Dentre eles, do termo daímon, tanto que o substantivo deisidaimonía (que
designava o temor supersticioso do vulgo frente aos deuses) gerou a idéia
de religião, que se caracterizava pela atitude do envolvimento respeitoso
(carregado de afetação e de superstição), sobretudo temeroso perante o vi-
gor das forças “daimônicas” (mansas ou furiosas, edificantes ou destrutivas)
que se manifestam na Natureza ou no viver. Dá-se que, no território das
crenças, muitas vezes o temor se sobrepõe à confiança, de modo que o crente
passa a dedicar todo o seu tempo a construir uma certa paz com o divino.
Foi, pois, nesse sentido que ao substantivo deisidaimonía se agregou o adje-
tivo deisidaímon, que veio exatamente indicar os sentimentos de respeito e
de temor pelos quais os indivíduos se deixavam possuir; por sua vez, a fim
de expressar a afetação excessiva derivada daqueles sentimentos, o verbo
daímonízomai veio a designar esse estado de espírito, nos termos de uma
possessão, a ponto de o indivíduo (tido como possesso pelo daímon) ser con-
siderado como alguém que perdia a gerência (racional) de si mesmo e
que ficava possuído por um ethos estranho ou anômalo ao humano.
32
SIMPLÍCIO, Comentário sobre a Física de Aristóteles, 23, 21; DK 11 A 13
33
SIMPLÍCIO, Comentário sobre a Física de Aristóteles, 24, 13; DK 12 B 1
HYPNOS
ano 11 / nº 16 – 1º sem. 2006 – São Paulo / p. 32-61
Daímon (em conseqüência do contexto imediato ou mais restrito de sua 45
utilização) acumulou vários significados: deus ou divindade, destino ou dis-
Miguel Spinelli
posição, ímpeto ou vigor, caráter ou índole, afetação ou possessão. No seu
sentido mais geral, era usado não só como expressão de vigor ou força, mas
também de destreza ou habilidade. Ele encerrava como termo explicativo
(ora referido à Natureza em geral, ora à natureza humana em particular),
não propriamente um saber, e sim, uma potência ou capacidade sapiencial,
quer nos termos de uma habilidade (que, a seu modo, também carecia de
ser edificada) como uma disposição para o bem, quer como uma esperteza
a serviço da astúcia ou maquina.
O uso que Parmênides fez do termo daímon (particularmente no frag-
mento 12) veicula a idéia de uma ação cujo sentido (nos termos de quem
pilota um navio) expressa um governo <kybernáoo>, mas não aleatório,
e sim, diretivo. Na verdade o fragmento comporta duas idéias entre si com-
plementares: uma, a de um domínio diretivo (natural e espontâneo); outra
(conseqüência e explicitação da primeira idéia), a de um governo enquanto
iniciativa, por cuja gerência <archoo>, forças opostas são instigadas a se
unir, mais exatamente a se misturar <míxis>, tendo em vista o processo
generativo da renovação da vida. Eis, em seus próprios termos, o fragmen-
to: “[...] o daímon que tudo governa, de tudo o que existe ele é a gerência
do temível parto e da mistura, pois instiga o sexo feminino a se mesclar com
o masculino, ou, o contrário, o masculino com o feminino”.34 Daímôn, por-
tanto, na expressão (do fragmento 12) de Parmênides designava o movimen-
to de perpetuidade e da renovação da vida: a dýnamis pela qual tudo o que
existe entre si se mistura, resultando a geração numa indissociável mescla.
Já o que consta no fragmento 1 (no qual Parmênides faz alusão a um
“caminho abundante em palavras de daímones”)35, daímones, nesse caso,
poderia designar tanto uma qualidade do ensino quanto uma disposição dos
mestres e aprendizes da velha Grécia. Aqui o termo também conserva o
mesmo significado da dýnamis do fragmento anterior, porém, com uma
intenção distinta, qual seja, antes de se referir ao processo da geração, diz
respeito à educação. Nesse sentido, às idéias de domínio, iniciativa ou ge-
rência, às quais daímon se refere, vem a acrescentar-se o de disposição e o
de qualificação inerentes à atividade do ensino e do aprendizado praticados
34
... daímôn hê pánta kybernãi... (SIMPLÍCIO. Comentário à ‘Física’ de Aristóteles, 31, 10;
39, 12; DK 28 B 12).
35
SEXTO EMPÍRICO. Contra os matemáticos, VII, 111-114; DK 28 B 1).
HYPNOS
ano 11 / nº 16 – 1º sem. 2006 – São Paulo / p. 32-61
46 na velha Grécia –, ao que posteriormente veio a ser chamado de movimen-
to sofista.
O Daimónion de Sócrates
36
“Os médicos são um bom exemplo de uma categoria de pessoas que viajava extensamen-
te por toda a Grécia. Eram artesãos e viajavam de cidade em cidade, servindo os distritos
rurais ao longo do caminho, ou se instalavam nas grandes cidades”. “Os gregos inventaram
a medicina como disciplina, retirando-a do domínio do charlatanismo e da magia e fazendo
da observação empírica o seu fundamento” (JONES, Peter. O Mundo de Atenas. Uma In-
trodução à Cultura Clássica Ateniense. Trad. de Ana Lia de Almeida Prado, São Paulo: Martins
Fontes, l997, pp. 193 e 288-289).
HYPNOS
ano 11 / nº 16 – 1º sem. 2006 – São Paulo / p. 32-61
A tendência da Filosofia (sobretudo dos movimentos filosóficos que se 47
impuseram a partir de Platão e Aristóteles, também como efeito da deca-
Miguel Spinelli
dência da Filosofia) foi o de reservar ao termo, ou melhor, ao substantivo
daímon, em particular à sua forma adjetiva, daimónion, a expressão de um
vigor “maligno”, em geral referido a todo tipo de dificuldade humana, so-
bretudo à de não satisfazer ou de não realizar racional e plenamente seus
fins e necessidades. Com efeito, no contexto da Filosofia grega tradicional,
esse vigor não era tido em si mesmo (ou seja, em sua natureza) nem como
bom e nem como mal. Era tido como bom se impulsionasse para o bem, e,
mau, se para o mal. Nesse caso, relacionado à phýsis, ele era sempre tido
como bom; já em referência ao éthos humano, poderia ser bom ou mal, de-
pendendo da disposição interior do sujeito que lhe desse “tensão” ou “aten-
ção” (e, portanto, dizia respeito às intenções da alma).
Demócrito de Abdera (que viveu entre 460-370, portanto na mesma
época de Sócrates, 480-399), dizia a todos que é na alma que reside o
daimónion. Esse seu dizer contém uma clara ressonância do que dissera
Heráclito, tanto no fragmento 119, já citado, como sobretudo no 155: “Da
alma é o logos que aumenta a si próprio”.37 No fragmento atribuído a
Demócrito (no 171) consta o seguinte: “A felicidade <a eudaimonía> não
reside nem em rebanhos e nem em ouro; é na alma que está a morada do
daimónion”.38 Há, aqui, um visível jogo entre as palavras eudaimonía e
daimónion, semelhante ao que está posto no fragmento 170: “Da alma é a
felicidade <eudaimonín> e o infortúnio <kakodaimonín>”.39 Assim
como a alma é a sede da felicidade, também o é do infortúnio. Todavia, ser
“a morada do daimónion”, para a alma, significava, não uma possessão, e
sim, uma disposição ou para o bem (para a satisfação interior) ou para o mal
(para o infortúnio). Enquanto móvel inerente à alma, tal disposição era tida
como natural, mas (por ser em si mesma imóvel) dependia de uma atitude
diretiva do sujeito intencionante e voluntarioso, e, sobretudo, de educação.
“Das coisas de que nos advêm benefícios [ensinava Demócrito], podem
também nos advir malefícios, dos quais, todavia, podemos nos livrar. Por
exemplo, a água profunda pode ser muito útil, mas também prejudicial, pois
corremos o risco de nos afogar; contra isso, porém, há um caminho: apren-
37
psychês esti logos [...] (ESTOBEU. Florilégio, III, 1; DK 22 B 115). Essa mesma idéia com-
parece no fragmento 45: “Tão longo é o caminho da alma, e tão profundo o logos que ela
retém, que jamais encontrarás os seus limites, percorrendo-o” (DIÓGENES LAÉRCIO.
Vidas e doutrinas dos filósofos ilustres, IX, 2; DK 22 B 45).
38
[...] psychê oikêtêrion daímonos” (ESTOBEU. Textos escolhidos, II, VII, 3 i; DK 68 B 171).
39
ESTOBEU. Textos escolhidos, II, VII, 3 i; DK 68 B 170).
HYPNOS
ano 11 / nº 16 – 1º sem. 2006 – São Paulo / p. 32-61
48 der a nadar”.40 Um pouco mais adiante (no fragmento 175), Demócrito diz
ainda que os deuses nos dão somente as coisas boas, não as más. Se busca-
O Daimónion de Sócrates
mos o mal, é por nossa causa: por “cegueira do intelecto e por ignorância”.41
“A causa dos nossos erros é o desconhecimento do melhor”.42 É preci-
so, pois, a todo custo, acercar-se do bem, tanto quanto “é necessário mon-
tar a guarda contra o mal <phaúlos>, a fim de que ele não se aproveite de
uma oportunidade”.43 Por um lado, convém escassear a nossa convivência
com os maus, porque junto deles “aumenta a nossa disposição para o vício
<kakíês>”;44 por outro, é necessário se empenhar, porque “é graças ao
esforço que o estudo conquista as coisas nobres, enquanto que as ruins se
dão por si mesmas e dispensam qualquer empenho”.45 “As coisas boas que
buscamos, as obtemos com dificuldades; mas as que não prestam <tà dè
kaká>, essas vêm a nós sem que as tenhamos buscado”.46
A partir do que concebeu Hesíodo e, depois dele, Heráclito, Parmênides
e, enfim, Demócrito, não resta dúvida de que o termo daímon (a par de
entificações decorridas sobretudo do imaginário popular) acomodou con-
ceitos filosóficos bem precisos, quer referidos à physis, quer ao éthos huma-
no. Nos termos da phýsis, daímon designava um princípio de determinação:
aquele pelo qual os existentes nascem, crescem e morrem mantendo-se,
desde o início ao fim de sua geração, sempre os mesmos, inabaláveis em sua
essência. Por exemplo, o humano se mantém por toda a sua existência hu-
mano, o macaco, macaco, etc., sem a interferência de uma astúcia maligna
capaz de, injustamente, subverter-lhes a ordem natural, ou seja, transformá-
los em outros de si mesmos – o humano em macaco, o macaco em homem,
e assim por diante –, a ponto de a ordem <o kósmos> reverter-se num
completo káos.
Como correlato da physis, além de designar uma “bondade” natural re-
ferida aos entes, daímon era também expressão de “justiça”, e, como tal, de
um princípio de permanência, intimamente vinculado às noções de neces-
40
ESTOBEU. Textos escolhidos, II, IX, 1; DK 68 B 172. “O tempo não nos ensina a pensar,
e sim, a educação desde a infância e o dom da natureza” (ESTOBEU. Textos escolhidos, II,
XXXI, 72; DK 68 B 183).
41
dià noû typhhótêta kaì agnômosynen (ESTOBEU. Textos escolhidos, II, IX, 4; DK 68 B 175);
“É preciso vigiar o mal, (DK 68 B 87); “A convivência contínua com os maus aumenta a
nossa disposição para o vício” (ESTOBEU. Textos escolhidos, II, XXXI, 90; DK 68 B 184).
42
hamartíes aitíê hê amathíê... (DK 68 B 83).
43
DK 68 B 87
44
ESTOBEU. Textos escolhidos, II, XXXI, 90; DK 68 B 184
45
ESTOBEU. Textos escolhidos, II, XXXI, 66; DK 68 B 182
46
ESTOBEU. Florilégio, IV, XXXIV, 58; DK 68 B 108
HYPNOS
ano 11 / nº 16 – 1º sem. 2006 – São Paulo / p. 32-61
sidade <anánke> e de destino <moira> natural (que hoje designamos de 49
“herança genética”). Por vezes, daímon era simplesmente usado como sinô-
Miguel Spinelli
nimo de theîon (de divino), cujo termo era referido à qualidades etéreas do
operar da vida do Cosmos, ou, mais precisamente, da dinâmica (da dynamim
theían kinêtikên) que tudo move e que tudo governa. Foi por conseqüência
dessas vinculações que daímon passou a designar: a) um sentido de direção,
nos termos da moira, ou seja, de uma sorte ou sina da qual nenhum exis-
tente (em termos físicos ou biológicos) é capaz de se livrar; e b) uma idéia
de necessidade <anánke>, nos seguintes termos: tudo o que existe tem,
inerente a si mesmo, uma ordem (sempre em sentido físico) através da qual
vem a ser o que necessariamente deve ser (por exemplo, feijão, feijão; coe-
lho, coelho; homem, homem, e assim por diante), sem surpresas!
Aplicado não estritamente à physis, mas ao éthos humano, daímon veio
a expressar igualmente um princípio de movimento (um vigor), mas não
de determinação, e sim, de espontaneidade. Distinto da physis, a esponta-
neidade inerente ao êthos não era tida como absoluta, mas dependente da
vontade ou do arbítrio deliberativo do sujeito racional.
Dá-se que, todos sabemos, no território do éthos humano sempre se so-
brepõe o risco de um bem almejado se converter em um mal indesejado.
Quem, por exemplo, é capaz de executar os seus bons propósitos sem qual-
quer fissura? Entre a intenção e a ação há sempre um imponderável que
desvia o ser de sua trajetória de humana edificação.
Daímon, portanto, resultou como a designação desse imponderável.
Nesse sentido, ele veio a indicar uma intromissão, interferência, ou coação,
mas não imposta por um ser (por um existente concreto), e sim, por um
acontecer (por um vigor) inerente à alma (sede da vontade e do arbítrio
deliberativo do humano), à qual se interpõe – sobrepondo-se, inclusive, aos
ditames da razão. Por isso, referido ao éthos humano, o daímon acabou de-
tendo um duplo sentido: um, positivo, qual seja, o da atenção deliberada
para o bem; outro, negativo, o da atenção deliberada (ou não, pois dele nin-
guém se livra) para o mal. Em ambos os casos (sendo que, em relação ao
mal, ele exige um cuidado permanente), trata-se de uma disposição de âni-
mo, de modo que não sendo o éthos dado por natureza, é forçoso procurá-
lo: por si mesmo ou com ajuda de um outro. Também não sendo os nossos
bons propósitos perfeitamente executáveis, carecem de serem feitos (deri-
vados do exercício deliberativo do arbítrio ou de bons conselhos), e, por
suposto, praticados!
HYPNOS
ano 11 / nº 16 – 1º sem. 2006 – São Paulo / p. 32-61
50 O SIGNIFICADO QUE LHE ATRIBUIU SÓCRATES
O Daimónion de Sócrates
HYPNOS
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Supondo-se que também o ensino de Sócrates não concretizava em seus 51
alunos todos os objetivos desejados, muitos deles (e, pelo visto, não eram
Miguel Spinelli
poucos, inclusive a maioria não era de pobres com trabalho fixo), queren-
do ser bons cidadãos, tornavam-se exímios contestadores da vida púbica e
privada. Por isso a indisposição de um bom número de cidadãos contra
Sócrates. Levando-se em conta também que seus alunos (a exemplo do
mestre) ensinavam gratuitamente, por certo se indispunham com os sofistas.
Num sentido geral, ser “sofista” não era uma profissão ou ofício, mas
uma designação: eram chamados de sofistas todos aqueles que (ao se ocu-
par com a política, com o ensino e com a produção do saber), constante ou
ocasionalmente, tinham outros interesses que não a verdade: os políticos
com a demagogia, os professores com o salário, os alunos com o diploma,
e assim por diante. O termo detinha uma conotação pejorativa, e se aplica-
va a qualquer um, mas particularmente a dois grupos salientes na Pólis: o
dos poetas (educadores populares que recitavam o saber em praça pública,
mas visavam ao aluno pagante particular); e o dos retores (oradores popu-
lares, mestres da arte do discurso, particularmente da arte forense destina-
da à autodefesa perante o Tribunal, mas que também advogavam, median-
te pagamento, em favor dos acusados).
Além dos sofistas, os discípulos de Sócrates se indispunham igualmen-
te com os artesãos (os technítes), em geral concebidos em dois grupos: o dos
poiêtês, tidos como fabricantes inventores, mestres da arte produtiva; e o dos
dêmiourgós, dos que detinham um ofício ou uma profissão fixa, em geral
ricos senhores, operários livres da Pólis. Era junto aos artesãos que se con-
centrava a grande força econômica promotora da artimanha política, das
festas e dos cultos populares. Por fim, é evidente que os discípulos de
Sócrates se indispunham com os políticos, com os estrategistas da Pólis, com
aqueles que, de um lado, promoviam retoricamente a vida cívica e as cau-
sas populares; de outro, controlavam a pragmática dos negócios públicos e
o status quo do cosmos social.
Quanto ao segundo pretexto imputado a Sócrates como crime, também
ele detinha uma intenção política. É claro que a acusação não continha, em
senso estrito, um veto religioso, pois é sabido que o Estado grego não era
intolerante e tampouco se submetia a um poder religioso institucional.
Portanto, a acusação (dada a sua intenção política) tinha um sentido essen-
cialmente retórico: aguçar o ouvido do povo e, com ele, o imaginário, e
assim transformar o julgamento num evento popular – ao modo assim como
Sócrates informou em sua defesa: “tenho contra mim muita gente que me
odeia... O que vai me arruinar, se eu for condenado, não será Meleto nem
HYPNOS
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52 Anito, mas a calúnia e a inveja <diabole te kaì phthónos>...”.49 Aliás, “não
é de hoje que eles vêm assanhando os ouvidos do povo com calúnias. Ago-
O Daimónion de Sócrates
49
PLATÃO. Apologia de Sócrates. I, 28 a
50
[...] Melêtos men hyper tôn poiêtôn achthomenos, Anytos de hyper tôn dêmiourgôs kai tôn
politikôn, Lykôn de hyper tôn rhêtorôn (PLATÃO. Apologia de Sócrates. I, 23 e, 24 a).
51
XENOFONTE. Ditos e feitos memoráveis de Sócrates. I, I, 2-3 Fontes: XENOPHONTOS.
Apomnêmoneýmata. Xenophontis commentarii, recensuit Carolus Hude. Lipsiae: Teubneri,
1969; XENOPHON. Memorabilia. Edited by Josiah Renick Smith. New York: Arno Press,
1979; XENOFONTE. Ditos e feitos memoráveis de Sócrates. Trad. de Líbero Rangel de
Andrade da tradução francesa de Eugène Talbot. São Paulo: Abril Cultural, 1985;
JENOFONTE. Recuerdos de Sócrates. Económico. Banquete. Apologia de Sócrates.
Introduciones, traducciones y notas de Juan Zaragoza. Madrid: Gredos, 1993.
*
Um adjetivo substantivado de daímôn
52
PLATÃO. Apologia de Sócrates. I, 26 c
53
PLATÃO. Apologia de Sócrates. I, 27 a
HYPNOS
ano 11 / nº 16 – 1º sem. 2006 – São Paulo / p. 32-61
deuses? Não, atenienses, por Zeus, ele não crê que eu creio. Ele acredita que, 53
para mim, o sol é uma pedra e, a lua, uma terra! Oh, meu caro Meleto, vai
Miguel Spinelli
ver que tu pensas que estás acusando o Anaxágoras [...]”.54 Claro que, para
Sócrates (como homem de ciência, freqüentador da Escola de Anaxágoras),
“o sol era uma pedra, e, a lua, uma terra”, porém, ao admitir as hipóteses
da Ciência, não o fazia no intuito de desqualificar as crenças. Quanto à
existência de daímonas (objeto formal de sua acusação), busca convencer a
todos de que não estava inventado algo novo, ao contrário, simplesmente
revitalizava uma crença antiga: “Não é verdade (pergunta Sócrates a Meleto)
que consideramos os daímonas como deuses ou filho de deuses?”.55 “Diz
inclusive a tradição que eles são filhos bastardos dos deuses, nascidos de
ninfas ou mesmo de mulheres comuns”.56 Sendo assim (pergunta Sócrates
a Meleto): “que homem pode acreditar que existem filhos de deuses sem
admitir que existam deuses?”.57
Posto que na acusação constava que Sócrates acreditava em daímonas;
posto, além disso, que Meleto estava de acordo que os daímonas eram “deu-
ses ou filhos de deuses”, logo, ficava provado a) que o teor da acusação de
Meleto, além de contraditório, era falso, efetivamente uma armadilha –
como se Meleto tivesse dito: “Sócrates é culpado <adikei> de crer nos
deuses ao invés de crer nos deuses”;58 b) que Meleto, ao afirmar que Sócrates,
por crer nos daímonas não cria “em deus nenhum”, renegava a tradição e
as crenças populares; b) que Meleto, por não ter encontrado um pretexto
legítimo (um crime real), valeu-se de um motivo fútil, em nada edificante,
porém eficiente.
Mas será que Sócrates acreditava mesmo, e sinceramente, em daímonas?
Tudo indica que sim, mas não ao modo da crença popular. Parece que exis-
tem dois aspectos bem salientes da mesma questão, e ambos dizem respei-
to a uma sinceridade estratégica. Quanto ao primeiro, Sócrates se mantém
no ponto de vista da tradição, segundo a qual os daímonas eram considera-
dos seres extraordinários, Numes que presidiam (ou protegiam) os destinos
particulares aos quais indicavam (como uma espécie de tutores) as sinas.
Com efeito, a concepção de um mundo escalonado (Zeus, Deuses,
Daímonas, Heróis e Homens), em que a Zeus se concedia a máxima “clari-
54
PLATÃO. Apologia de Sócrates. I, 26 d
55
PLATÃO. Apologia de Sócrates. I, 27 d
56
PLATÃO. Apologia de Sócrates. I, 27 d
57
PLATÃO. Apologia de Sócrates. I, 27 c
58
PLATÃO. Apologia de Sócrates. I, 27 a
HYPNOS
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54 dade” e, aos Homens, a “sombra”, era ainda um tipo de explicação pré-filo-
sófico, mas estava na base do despertar da Filosofia, lugar, aliás, onde tal
O Daimónion de Sócrates
59
VERNANT, Jean-Pierre. Mito e Sociedade na Grécia Antiga. pp. 114-115; TORRANO,
Jaa. O Sentido de Zeus. São Paulo: Iluminuras, 1996, pp. 122-123 e 141.
60
Perì tou megisthou agathou anthrôpois peri paideías (XENOFONTE. Apologia de Sócrates.
II, 21).
61
PLATÃO. Apologia de Sócrates. I, 30 e. Os parênteses foram acrescentados.
62
PLATÃO. Apologia de Sócrates. I, 31 b
HYPNOS
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Está visto que Sócrates se serviu do aparato conceitual daimonológico 55
como meio de explicar o destino dentro do qual se viu envolvido, e sua
Miguel Spinelli
atitude frente a ele. De alguma maneira ele se mostra resignado, mas não
infeliz ou indolente, com as tarefas que o dia-a-dia foi-lhe impondo. Por um
lado, ele assumiu para si, e frente a todos, a tarefa que só a um daímona
convinha; por outro (e aqui se impõe o segundo aspecto de sua sinceridade
estratégica), ele, a partir do que o daímon enquanto conceito designava,
passou a conceber a Filosofia como uma tarefa sagrada, ou seja, ao modo
de uma daimonología. Daímona passou a expressar nele (sob o ponto de
vista, digamos, de uma consciência crítico-maiêutica) um qualificativo, não
referido a um sujeito ou soberania externa, e sim, à alma humana, particu-
larmente ao que nela há de mais nobre e extraordinário: a capacidade refle-
xiva e meditativa. Sócrates estava convencido de que se alguém se dispunha
a enveredar por uma vida virtuosa, justa e honesta, não tinha senão um único
caminho: o da qualificação da alma mediante a reflexão e a meditação. Pos-
to que as virtudes não se constituem em ciência, elas resultam, no entanto,
em qualidades da alma, sendo que só há um meio de apropriar-se delas:
dotando a alma, através da Filosofia, de um modo extraordinário de ser, e,
por conseqüência, de um modo específico de agir, melhor ainda, de uma
“pragmática”* condizente com o filosofar: aquela pela qual se ativa a dis-
posição racional do autogerenciamento humano.
A daimología que Sócrates elegeu para si como tarefa resultou na prag-
mática que procurava:
“Diga-me, Meleto, é possível alguém acreditar num modo humano de ser
<antrópeia pragmat’ eînai> e ao mesmo tempo defender que não existem ho-
mens? É possível alguém admitir [...] que não existem flautas, mas tão-somente
modos <pragmata> de tocar flautas?”... Se alguém “admite um modo daimónico
de ser <daimonía pragmat’ eînai>” é óbvio que também reconhece que exis-
tem daímonas?63 ... Por certo uma mesma pessoa não pode acreditar em daimonías
e em divindades <daimonía kaì theîa> e não crer que existam daímonas, deuses
e heróis. Isso é totalmente impossível.64
Portanto, “se admito daimonías então é absolutamente necessário que
eu reconheça a existência dos daímonas”.65 Há, aqui, um evidente jogo en-
tre as palavras daimonías e daímonas: a primeira se refere tanto a um modo
*
Por pragmática os gregos entendiam o mesmo que posteriormente se concebeu como
método.
63
PLATÃO. Apologia de Sócrates. I, 27 b-c
64
PLATÃO. Apologia de Sócrates. I, 27 e, 28 a. Os parênteses foram acrescentados.
65
PLATÃO. Apologia de Sócrates. I, 27 c
HYPNOS
ano 11 / nº 16 – 1º sem. 2006 – São Paulo / p. 32-61
56 extraordinário de ser quanto de agir, mais precisamente a uma “pragmáti-
ca” existencial; a segunda diz respeito ao ser ou realidade propriamente dita,
O Daimónion de Sócrates
à qual esse modo ou a pragmática se refere. Aliás, ser e agir são coinciden-
tes em Sócrates, de tal modo que ele não concebe um sem o outro. Em sua
vida os ideais de sabedoria filosófica (inferidos nos termos de uma pragmá-
tica ideal) não se desvinculavam da experiência concreta do viver, ou seja,
daquilo que, ao ser executado, vem a se efetivar como um modo real de ser.
A Filosofia, para ele, é uma atividade (uma práxis) a ser exercitada tanto a
nível teórico (no exercício do pensar) quanto a nível prático (no exercício
do viver).
O bem viver é algo que se constrói no tempo e ultrapassa as possibili-
dades concretas quer dos ideais (teóricos) quer da efetivação prática desses
ideais. Quer dizer: assim como a ação muito dificilmente consegue se reali-
zar em perfeita consonância com os ideais teóricos, do mesmo modo os
ideais teóricos não resultam em fórmulas capazes de positivar o comporta-
mento perfeito. A arte do bem viver é algo que se constrói teórica e prati-
camente, todavia não dispensa o imponderável na medida em que alguém,
cheio de boa vontade e de boas intenções, busca forjar o seu próprio desti-
no. Por isso, ao reconhecer a existência de daímonas, Sócrates diz (perante
o Tribunal) que o fez por uma razão bem simples: porque foi levado a as-
sumir uma destinação existencial que se forjou lenta e espontaneamente por
inúmeros fatores, sobretudo, por imponderáveis, ou, segundo as suas pala-
vras, “por determinação divina”. Mas, “não só a relativa aos oráculos, como
também a que se dá em sonhos e por outros meios com quais a divindade
leva os homens a executar o seu destino”.66
É de se supor, portanto, que Sócrates se valia de todos os meios dispo-
níveis, a fim de na vida (no ser e na ação) se acertar. A questão que a ele, e
que ainda hoje a todos nós se impõe, e que de certo modo nos perturba,
consiste em saber o que é certo e o que é errado. O que de fato devemos e
não devemos fazer?
No mundo grego não havia uma instituição moral (ao modo do Cristia-
nismo) em que proliferavam mestres do certo e do errado. Sem os moralistas
da Religião, restava à Filosofia e aos filósofos (mediante um rigoroso apelo à
lógica do exercício racional) regular o bem viver. Eis aí a tarefa que a Sócrates
se impôs frente à Pólis. Ao dar crédito à existência de deuses e de daímones,
particularmente à medida que se propôs autoconhecer-se, buscou, não fora,
mas dentro de si mesmo (como Homem e como cidadão) os indícios da
66
PLATÃO. Apologia de Sócrates. I, 33 c
HYPNOS
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destinação humana e dos desígnios particulares. Ele advertia a todos (sobre- 57
tudo buscava convencer a si mesmo) de que no cotidiano da vida existiam
Miguel Spinelli
“dois tipos de insensatos”: um, o dos que “submetem tudo à inteligência hu-
mana” sem admitir uma “providência divina”, ou seja, sem se dar conta de
que certas coisas ultrapassam a nossa humana capacidade de compreensão;
outro, o dos “que consultam em tudo os oráculos, até naquelas coisas para as
quais os deuses nos deram a capacidade de saber por nós mesmos”.67
Aos que tudo acreditavam saber, sem admitir o imponderável, e aos que
preguiçosamente deixavam tudo por conta dos deuses, sem se empenhar
racionalmente, Sócrates indicava um meio termo: não se afastar demais das
“determinações divinas”, e muito menos dos ditames da razão. Daí a sua
tarefa maiêutico-filosófica: levar os homens a voltar-se ao máximo para
dentro de si mesmos, a fim de “ouvir” ali a voz divina. Afinal, mesmo que
os sinais se pusessem fora, era do lado de dentro do humano (mediante
empenho racional) que eles corretamente deveriam ser ouvidos e interpre-
tados. Foi, pois, em vista disso que Sócrates propôs uma (maiêutica) rever-
são: convocou a todos os que acreditavam nos deuses e na adivinhação, em
especial os que interrogavam a Pítia, “o vôo das aves, as vozes, os signos, as
entranhas das vítimas” e o trovão,68 a que, antes de tudo, interrogassem a si
mesmos, e confiassem mais na própria razão. Para isso era necessário educá-
la; acercar-se da Filosofia. Pois só uma razão educada levaria o homem para
dentro de si mesmo, a envolver-se com a dýnamis do próprio interior, e
aonde encontrar, além de boas indicações e advertências, o “alimento” con-
veniente para o bem viver.
“Diz o povo (constatava Sócrates) que as aves e os encontros fortuitos
nos indicam se devemos prosseguir ou retroceder”.69 “Ora, o que muitos
tomam como sendo presságios, vozes, oráculos, eu denomino simplesmente
de daimónion. Penso que, nomeando assim, expresso mais verdade e res-
peito ao poder dos deuses <tôn theôn dýnamin> do que os que o atribuem
às aves”.70
Eis aí, pois, o fundamento da reversão, sendo que Sócrates, ao referir-
se ao seu daimónion, lhe consigna um tom carinhoso (diminutivo). Ele o
concebe como um dote (natural) subjetivo, particular, personificado, e lhe
confere significados condizentes com a mística oracular e da arte
67
XENOFONTE. Ditos e feitos memoráveis de Sócrates. I, I, 28
68
XENOFONTE. Ditos e feitos memoráveis de Sócrates. I, I, 3
69
XENOFONTE. Ditos e feitos memoráveis de Sócrates. I, I, 4
70
XENOFONTE. Apologia de Sócrates. II, 13
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58 adivinhatória cultivada pela tradição grega. Ele o chama, por exemplo, de
“minha divindade (particular) e de meu daimónion <moi theîon tì kai
O Daimónion de Sócrates
71
PLATÃO. Apologia de Sócrates. I, 31 c
72
PLATÃO. Apologia de Sócrates. III, 40 a
73
PLATÃO. Apologia de Sócrates. III, 40 c
74
XENOFONTE. Apologia de Sócrates. II, 12
HYPNOS
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verter a mentalidade daimônica tradicional: aquela segundo a qual, confor- 59
me Hesíodo, Zeus concedera aos daímones a prudência <a phrenéres>, a
Miguel Spinelli
fim de que vigiassem as decisões humanas, particularmente aquelas que
viessem resultar em ações prejudiciais. Sócrates queria convencer a todos,
mesmo às pessoas comuns circulantes na Pólis, de que cada um detinha
dentro de si um daímone, ou seja, uma phrónesis judicativa, mediante a qual
poderia balizar a própria phrenéres, prover os destinos de sua própria vida.
Melhor ainda: detendo a phrónesis, cada um possuía dentro de si o seu pró-
prio guia, com o qual poderia orienta-ser para o bem; pois, afinal para o mal
(para o erro) ninguém carece de ajuda.
Por último, Sócrates denominava o seu daimónion de “a divindade
contraditora” <enantiôthé tò toû theou>.75 As suas últimas palavras, as que
antecederam a sentença de sua condenação, contêm mui claramente esse
significado: “A minha profetisa costumeira (dissera), a do daimónion, que
até hoje me previne, sempre em tudo se contrapôs <enantioumené> de
modo assíduo e rigoroso, mesmo nas mínimas ações, quando algo de erra-
do estivesse por me acontecer”. 76 “Quantas vezes ela me conteve
<epéchou> em meio a outros discursos! Hoje, porém (desde cedo, de casa
em direção ao Tribunal, e no decorrer do julgamento), em nada ela se con-
trapôs <ênantiôthai>, nem nas minhas ações nem nas minhas palavras. Ora,
qual a razão que nisso se oculta? Vou lhes dizer: porque o que hoje está por
me acontecer, dados todos os indícios, será um bem... Estou certo de que
se fosse um mal, o meu sinalizador costumeiro <tò eiôthos sêmeion> (...)
iria se contrapor [...]”.77
São, enfim, vários termos com os quais Sócrates definia o seu daimónion:
o de profetisa ou mântico <mantiké>, o de voz <phoné>, de sinal
<semeîon>, e de contraditor <enantiôthé>. O primeiro comporta a idéia
de um ser (com uma clara referência ao mito e aos costumes populares), os
outros, a um acontecer, porém interno, não externo. Na medida, por exem-
plo, em que ele o concebe como uma voz, refere-se a algo que nascia den-
tro dele <daimónion gignetai phoné>; mas, não uma voz rigorosamente
estranha (de um outro), nem a voz de uma consciência da qual detinha to-
tal controle. Segundo as suas palavras: “Ela é uma voz que nasce <phoné
75
PLATÃO. Apologia de Sócrates. III, 40 b
76
PLATÃO. Apologia de Sócrates. III, 40 a. O itálico foi acrescentado.
77
PLATÃO. Apologia de Sócrates. III, 40 b-c. Os parênteses foram acrescentados; entretanto
são expressões de Sócrates.
HYPNOS
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60 tìs gignomenê>, e, quando nasce <hê hóton genêtais>, sempre me desvia
do que vou fazer, nunca me incita”.78
O Daimónion de Sócrates
78
PLATÃO. Apologia de Sócrates. I, 31 d. Ele diz, aliás, que ela começou em sua infância,
sem especificar quando; talvez aos sete anos, período em que os gregos diziam que as crian-
ças alcançavam a idade da razão.
79
PLATÃO. Apologia de Sócrates. III, 40 b
80
PLATÃO. Apologia de Sócrates. II, 37 a
81
[...] theou moi phônê phainetai sêmainousa ho ti chrê poiein (XENOFONTE. Apologia de
Sócrates. II, 12).
HYPNOS
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Quer dizer, o seu daimónion sempre lhe sinalizava “o que deve” nos 61
termos de “o que não deve”. A questão, digamos, é a seguinte: a possibili-
Miguel Spinelli
dade de errarmos, mesmo quando queremos deliberadamente acertar, está
sempre presente. Se, ao contrário, nos dispomos a fazer algo (moralmente)
errado, não nos incomodamos com qualquer possibilidade de acerto. Ou
seja, mesmo tendo uma intenção deliberada de acertar, a possibilidade do
erro não nos é eventual. Dá-se que, em geral, erramos bem mais do que
acertamos, inclusive temos um vazio de ignorância bem mais “pleno” do
que o volume de sabedoria! Ainda bem, porque é exatamente esse vazio que
nos estimula a humanamente nos qualificar. Por isso, é preciso que façamos
o melhor possível! Tanto mais na medida em que não temos nem o instin-
to apurado dos outros animais e nem a razão nobre da “divindade”. Toda-
via, somos potencialmente capazes, em todos os sentidos, de nos educar.
Portanto, mesmo a custo, temos que nos empenhar. Pois, afinal, é respon-
sabilidade nossa fazer com que o “animal” humano acabe em algum momen-
to dando certo.
HYPNOS
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PLATÃO: O MUNDO, O CORPO E O MAL
PLATO: THE WORLD, THE BODY,
LATO AND EVIL
FERNANDO MUNIZ*
Abstract: The irrationality of desire, its natural resistance to reason, is, in the
Platonic dialogues, directly associated with the problem of evil. Investigation
into this question, however, runs into difficulties when one raises the question
of consistency in the Platonic doctrine of evil. The external world, the body,
matter, and the irrational part of the soul are natural candidates for being the
source of evil, but why they should all be so is still an object of perplexity
among scholars. This paper investigates the possibility that (i) the resistance
of matter or blind “Necessity” to the divine act of creation leaves residues at
various levels of reality, and that (ii) the interpretation of what these residues
are permits access to the Platonic doctrine of evil.
Key-words: World; Body; Evil; Soul.
*
Fernando Muniz é professor na Universidade Federal Fluminense, RJ. E-mail:
munizfernando@uol.com.br
1
CHERNISS, H. (1978).
HYPNOS
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geram tais divergências de interpretação dizem respeito, sobretudo, às fon- 63
tes do mal. Há uma multiplicidade heterogênea de males: éticos, epistêmicos,
Fernando Muniz
estéticos etc, mas teriam eles todos uma só origem? Alguns intérpretes, como
Festugière e Vlastos, sustentam que a fonte de todos os males é a matéria e
o corpo; outros, como Cornford e Wilamowitz-Moellendorff, pensam que
o mal se localiza na alma ou, mais especificamente, no elemento irracional
da alma.
O mundo sensível, o corpo, a matéria, e a parte irracional da alma são,
assim, candidatos naturais ao posto de fonte primeira do mal. Mas qual se-
ria a afinidade que reúne elementos tão díspares? Ou mais profundamente
ainda: o que permite a articulação ou a passagem de um desses registros a
outro? Estariam esses elementos – o corpo, a alma, o mundo – integrados
num sistema onde circula o elemento genético do mal? A resposta a esta
questão pode apontar para o que Cherniss, a princípio, supôs haver: uma
teoria perfeitamente coerente em todas as suas partes e consistente com a
ontologia de Platão. Buscarei aqui apresentar, ainda que de modo sumário,
um esboço de resolução desse problema.
Vou partir de uma observação de Greene2 que lança alguma luz sobre
esse assunto. Comentando o Timeu, ele aponta para o problema da resis-
tência, em seus múltiplos aspectos, como o elemento comum que perpassa
todas as espécies de mal. Vendo o movimento genético do mal como um
deslocamento progressivo da fonte material – do mundo– em direção à alma,
Greene reconhece ainda o caráter residual, intratável, indomável como um
traço determinante do conceito do mal. Como diz ele, “a resistência ao
ato divino da criação vem da matéria ou ‘Necessidade’ cega, inerte, recal-
citrante”.3
Essa resistência ao ato divino da criação deixa resíduos, resíduos da
“Necessidade”, e seriam esses resíduos que encontramos espalhados sobre
os vários planos da realidade humana. Se, como afirma Greene, nós quiser-
mos levar a sério o mito da Criação contado no Timeu, devemos levar em
conta a presença da Causa Errante dentro da narrativa da criação, e, conse-
qüentemente, trazê-la para dentro do mundo, desde que a Causa Errante
seja uma das partes integrantes dele, e o mundo um resultado, ainda que
parcial, da Causa Errante.4 Seguindo essa indicação, para termos uma idéia
2
GREENE, W. Moira. Fate, Good, and Evil in Greek Thought.p.301 Gloucester, Peter
Smith, 1968.
3
GREENE, W. op. cit., p. 301.
4
Id., p. 299: “Wherefore if one would tell the tale of the making truly, one must bring
the errant cause (...) also into de story, so far as its nature permits”.
HYPNOS
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64 de como os resíduos da errância se manifestam no mundo, seguirei os pas-
sos do mito do Político, uma passagem que quase sempre é associada ao mito
Platão: o Mundo, o Corpo e o Mal
da criação do Timeu.
O mito do Político (272c-273a) descreve o mundo sensível a partir de
um confronto entre tendências opostas. O mundo sensível é visto como um
navio conduzido pelo “piloto do universo”. Quando o piloto abandona os
remos e se torna um mero observador, o mito entende essa ação como a
devolução do controle “ao apetite natural” (272e) do próprio mundo. A
atribuição de um apetite ao mundo, em analogia aos apetites humanos, tem
uma importância especial, não apenas por revelar o modo como a ativida-
de do mundo é compreendida, mas também pelas conseqüências que retira
dela o próprio relato. Assim, movido pelo seu apetite natural, o mundo-
navio ruma em um sentido contrário ao sentido oferecido pelo Criador, e
arrastado por essas duas forças opostas, o mundo-navio é sacudido por aba-
los constantes, que acabam por levá-lo ao desastre fazendo-o submergir no
tumulto e na confusão. O mundo-navio só recuperará a “calmaria” quan-
do, por força das lembranças das instruções do Demiurgo, ele adquirir, de
novo, “domínio sobre si mesmo”, isto é, domínio sobre os elementos que
resistem à ordenação unitária do mundo.
A lembrança que cria a condição para o domínio sobre a errância, no
entanto, vai, aos poucos, se apagando. A causa desse apagamento é atribuí-
da ao elemento corporal, elemento que faz parte da mistura que compõe o
mundo. O elemento corporal que pré-existe à própria ordenação do mun-
do teria a marca da desordem (273b) e a responsabilidade pela proliferação
dos males. Quando o piloto do mundo exercia o seu controle, os males eram
reduzidos ao mínimo pelo tipo de “alimentação” que ele fornecia ao mun-
do. A alimentação do mundo, a dieta adequada para mantê-lo na ordem,
supõe a existência de uma deficiência, deficiência que só é saciada pela se-
melhança, ou pela memória da semelhança. A separação que ocorre no
momento do afastamento do piloto faz com que o esquecimento se
reproduza, isto é, que o mundo retorne ao estado de inanição. É esse esta-
do, essa fome não saciada de semelhança que produz o enfraquecimento da
ordem e a conseqüente retomada do poder pela condição original do mundo.
A existência de um estado não-ordenado anterior à ordenação (não
apenas não ordenado, mas produtor de desordem) cujo modo de ação é não-
racional – ou anti-racional – encarna a ameaça de corrupção total do mun-
do por essa condição original. A persistência dessa ameaça, verificada pela
impossibilidade da eliminação total do mal, em função da resistência que o
elemento corporal opõe à ordenação, revela a heterogeneidade do princí-
HYPNOS
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pio corporal em relação ao princípio ordenador. Essa diferença de nature- 65
za do princípio corporal explica, em parte, a irredutibilidade do sensível ao
Fernando Muniz
inteligível que se afirma nessa persistência do mal e que se manifesta em
todos os modos da errância.5
A corrupção total do mundo que esses modos da errância podem pro-
vocar é compreendida em termos da perda da semelhança. Semelhança que,
por sua vez, marca a presença, no sensível, de um apetite de outra nature-
za, um apetite depurado; uma aspiração e um querer que buscam uma iden-
tificação com o mundo inteligível. A perda de tal semelhança significa para
o mundo, obviamente, a perda da sua condição de imagem – que é o senti-
do profundo do “naufrágio” – e, por outro lado, indica a existência de um
apetite, impuro e voraz, pela desordem e pela irregularidade. Uma tal
ameaça faz com que a divindade (“vendo as dificuldades”) retorne e cuide
para que, “atacado pelas tempestades”, o mundo-navio não venha a se “es-
tilhaçar pela agitação e naufragar no mar ilimitado da dessemelhança” (273d).
O elemento corporal, ao qual é atribuído a causa dos efeitos erráticos,
ganha agora precisão “científica” no relato “verossímil” do Timeu (42a-b).
Quando são analisados os efeitos imediatos da “implantação” da alma no
corpos, alguns fatores que intervêm na natureza humana são considerados:
“Segundo uma ordem necessária, a primeira capacidade inata que surge
(a partir de violentas afecções), é a aísthesis, a seguir, éros – essa mistura de
prazer e dor – depois, o medo e assim por diante.6 Esses elementos são de-
signados como aqueles que precisam ser dominados “para que se viva com
justiça”. Novamente a questão do domínio dos elementos sensíveis ou cor-
porais opõe dois princípios ativos em conflito, retomando os principais
pontos do mito do Político e fazendo com que o domínio pela razão signi-
fique o retorno ao melhor estado original.7 Nesses pontos, como em mui-
tos outros, o paralelismo entre a cosmologia e a “psicologia”8 deve-se ao
fato de o microcosmo-homem reproduzir o macrocosmo-mundo sensível.
5
O’BRIEN, D. Theories of Weight in The Ancient World. Vol. Two: Plato Weigth and
Sensation. Paris: Les Belles Lettres, 1984, p.107.
6
Seja na metáfora agrícola da implantação, da judiciária do aprisionamento ou da metá-
fora médica da infecção, a sensação desempenha o papel de protagonista nesse processo de
ligação da alma ao corpo; por exemplo,“quando, em virtude da necessidade, as almas são
implantadas nos corpos (ajmfuteuqeiæen), a aísthesis surge em primeiro lugar” (42a).
7
Timeu, 42 c.
8
BRISSON,L. Platon - Phèdre. Traduction, introduction et notes. Paris: Flammarion
(1989), p.241): “Bref, le microcosme qu’est l’homme doit prendre modèle sur le microcosme,
le monde sensible: ici l’éthique rejoint la cosmologie, comme c’est aussi le cas à la fin du
dialogue (90b-d)”. Cf. Fedro, 256d-e.
HYPNOS
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66 É este paralelismo entre o apetite do homem e o apetite do mundo que
permite a Platão conceber uma natureza do sensível e uma natureza do
Platão: o Mundo, o Corpo e o Mal
9
Em República, 529c-e: Sócrates afirma que se deve encarar “esses ornamentos” no céu
como os mais belos e mais precisos que todas as demais coisas sensíveis, desde que se consi-
dere que eles são “muito deficientes” em comparação com os verdadeiros. Esses ornamen-
tos têm tanta utilidade, segundo ele, como paradigmas para nos auxiliarem no estudo do
invisível, quanto os diagramas de Dédalo em relação à geometria. Ou seja, nenhuma.
10
Kénosis, Cf. Hipp. De Flatibus 1: “emptying cures in respect of filling, filling (sc. cures)
emptiness, and rest (sc. cures) exertion, on the principle that every condition is rectified by
its opposite” apud DOVER, K. Plato - Symposium. Ed. Cambridge: University Press, 1980,
p.106.
HYPNOS
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Simultaneamente, há, também no Górgias, a elaboração de um apetite 67
positivo sob o ideal da saciedade divina, um apetite de natureza superior,
Fernando Muniz
desvinculado, (“na medida do possível”), do corpo, mas que se compreen-
de a partir da analogia com o processo de nutrição. Uma epithymía reverti-
da e transformada numa boa epithymía “voltada para as coisas justas”.11 Uma
epithymía purificada que desloca a intensidade de sua potência para a busca
do verdadeiro, em oposição aos apetites que entregues a sua própria lei ten-
dem à multiplicação e intensificação progressiva que tem o seu limite na
pleonexía – esse desejar, cada vez e sempre, um pouco mais – traço distin-
tivo do apetite do tirano.12
A novidade que o Fédon introduz nesse quadro é a de fazer com que o
próprio mundo sensível ostente a marca da deficiência. E, o que é funda-
mental, essa deficiência do sensível só se mostra como deficiência, segundo
a passagem, quando a reminiscência coloca lado a lado a lembrança da For-
ma e o seu exemplar sensível. Assim, a endeia marca no homem a sua
imperfeição, sua falha ontológica enraizada na sua própria fisiologia, como
também caracteriza a inferioridade do sensível.
Mas se nós reconhecermos nessa deficiência dos apetites humanos e da
natureza do sensível a presença do mal que buscamos, teríamos dado um
passo errado. Em primeiro lugar, trata-se aqui de uma visão negativa do mal.
O sensível – ou o apetite – revela-se deficiente apenas em relação à
positividade do inteligível. Seria um engano não se observar que esse mal
negativo é necessário, pois o reconhecimento da deficiência é o que permi-
te a distinção dos dois planos de realidade, é o que permite que um possa
ser visto como original e o outro como imagem. Sem o reconhecimento da
deficiência, os planos se equivaleriam e o mundo sensível poderia ser pen-
sado como pleno, suficiente tendo nele mesmo a sua própria justificação.
Assim, sem o reconhecimento da deficiência inata dos apetites, tais desejos
ganhariam o direito de maximização. Portanto, não podemos aceitar que a
deficiência seja a marca da maldade no mundo, mas devemos, sim, tomar a
deficiência como um fator positivo. Por mais paradoxal que possa parecer
a deficiência é boa e o mal negativo que ela representa é bom.
11
FRÈRE, J. Le Désir de L’Être. Paris: Les Belles Lettres, 1981, p. 151: “Le vrai ‘souhaiter’
(boulesthai) est un souhaiter toute de force (dynamis, [Górgias, 509d]) au service de la
justice...” “Dans le epithymein, le sage aspire aux eide, dans le boulesthai, il s’efforce de réaliser
des actions justes, e de poursuivre le beau e le bien.”
12
República, 579b-e: O tirano, como a cidade que domina, não pode ter satisfação (preen-
chimento) dos seus desejos, aparece pobre de verdade e “pleno de deficiências” .
HYPNOS
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68 Devemos, então, entender o mal como a supressão da deficiência, ou o
não reconhecimento da deficiência. O Fédon nos guiará também no cami-
Platão: o Mundo, o Corpo e o Mal
nho para essa compreensão. Pois, é exatamente no Fédon, que, além das
Formas e da noção correspondente de deficiência do sensível, a imagem de
encadeamento da alma ao corpo é apresentada pela primeira vez.
Esse tema do encadeamento da alma ao corpo é um dos temas centrais
do Fédon. Logo na abertura do diálogo, nota-se uma mudança na estrutura
dramática comum aos diálogos anteriores a ele. Um deslocamento que as-
sinala uma dupla conversão da filosofia socrática: da temática das virtudes
para uma surpreendente escatologia; dos espaços abertos para a clausura;
das palestras e ginásios para o Desmotério. Essa palavra tem um significado
todo especial, derivada do verbo desmóo,13 prender com correntes, encade-
ar, o substantivo “desmotério” designa o lugar onde permanecem os enca-
deados. Daí ser o “Desmotério” o lugar apropriado para uma reflexão so-
bre a dialýsis– o desligamento da alma do corpo. Esse cenário e essa atmos-
fera antecipam, por um lado, a Caverna da República e seus “estranhos pri-
sioneiros” acorrentados desde a infância; por outro, fazem com que o acon-
tecimento histórico (o encarceramento de Sócrates) sirva de metáfora para
a condição humana em geral, fornecendo, na imagem privilegiada da pri-
são, os elementos para a compreensão da composição corpo e alma.
O contexto dessa discussão sobre a imortalidade da alma fornece as
condições para a busca de uma resposta à questão sobre como o mal passa
do elemento corporal para o elemento psíquico. Na linguagem usual dos
Diálogos, como a alma é infectada pelo corpo.
Para respondermos a essa questão, precisamos reconhecer mais duas
novidades teóricas introduzidas por Platão no Fédon: a primeira é o apro-
veitamento da ambigüidade do termo endeia (que significa tanto deficiên-
cia quanto encadeamento) para a construção de uma dupla de conceitos
interdependentes que tem como meta fazer com que a deficiência corporal
se torne encadeadora e a alma encadeada. Sabemos que a alma por seu en-
cadeamento ao corpo sofre os abalos gerados pelas afecções sensíveis e as
percepções correspondentes, entrando num estado de errância e perturbação,
mas esses estados provocados por essa conexão não explicam a etiologia da
infecção, na verdade, são apenas os seus sintomas. A causa só será revelada
um pouco mais adiante, ainda no Fédon, quando Sócrates declara que “o
supremo mal, o maior e o mais extremo dos males é ser afetado excessiva-
13
Desmós, corrente, ligadura etc.; desmótes: que está encadeado, acorrentado; a partir de
déo : prender, atar, encadear.
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mente pelo prazer”. Observe-se que o supremo mal não é atribuído ao sen- 69
sível, entendido genericamente, mas a um tipo específico de sensação, o
Fernando Muniz
prazer intenso. Em 83c, “quando alguém sente prazeres intensos ou dores
ou medos ou apetites”, o mal que daí advém não é o que podemos imagi-
nar – por exemplo, a doença ou a ruína, por causa dos apetites – porque “o
maior de todos os males, o supremo mal, é experimentado sem que se dê
conta”.
Nessa passagem intrigante, Sócrates retira da razão que oferece para a
recusa dos prazeres excessivos seus aspectos externos. Não se trata do
malefício que os prazeres e apetites podem trazer à saúde, ou da ruína fi-
nanceira que podem engendrar. O real malefício não é tão evidente, tão
observável, quanto podemos julgar. Eis por que não se deve deixar-se ilu-
dir pela noção de obstáculo. Esse obstáculo que faz do corpo e suas distra-
ções, suas ocupações, apenas um desperdício de tempo. Há um sentido pro-
fundo da recusa do prazer, um sentido ontológico que, esse sim, permite a
compreensão do papel que desempenha na trama dos Diálogos.14
Se entendermos o mal como o resultado da prisão da alma ao corpo e
este encadeamento como um processo gerador de erro, engano e ilusão,
teremos novamente recaído em uma visão negativa do mal como ignorân-
cia. Bastaria que a ignorância se soubesse ignorante para que esse mal apa-
rente e ilusório desaparecesse diante de nós. O corpo seria assim tomado
como um obstáculo à verdade num sentido meramente secundário. Esta-
ríamos ainda muito longe de uma positividade do mal, de um poder que,
como vimos no mito do Político poderia nos tragar – nós e o mundo – para
o fundo do “oceano ilimitado da dessemelhança”.
Resta-nos perguntar como a deficiência corporal torna-se encadeadora
e a alma, encadeada. Para isso precisamos compreender o que é uma
epithymía, um apetite, e como ele surge. Essas questões são, enfim, tratadas
detalhadamente no Filebo. O modelo é, como de hábito, a sede e a fome. E
a questão torna-se: o que há de comum entre essas formas variadas de ape-
tites? A resposta a essa pergunta toma como ponto de partida o significado
14
KAHN, C. Plato’s Theory of Desire in Review of Metaphysics 41 (september 1987), p.99:
“When one feels intense pleasure or pain concerning a given object, one is forced to regard
this thing as clearly real and true, although it is not...Each pleasure and pain is like a nail
which clasps and rivets the soul to the body and makes it corporeal, so that it takes for real
what the body declares to be so. Unless it is enlightened by philosophy, reason is obliged
to live in the darkness of the cognitive cave, constructed by sensual appetites, or by thymos,
by ambition and competition for honor: one´s ontology is affected by one´s favorite pursuits”.
Grifo meu.
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70 de algumas expressões usuais: “Ele tem sede”, por exemplo, que significa “ele
está vazio”. “Será a sede”, pergunta, enfim, Sócrates a Protarco, “um apeti-
Platão: o Mundo, o Corpo e o Mal
15
Diz Hackforth (HACKFORTH, R. Plato’s Philebus. Translated with an Introduction
and Commentary. Cambridge: CPU, 1972, p.66 n.1): “Apelt (note 53 to his translation of
the dialogue) seeks to remove [ a contradição] by understanding the memory of 345c1 to
be not of plérosis, but of original equilibrium. This I find difficult to accept”... “But though
Apelt has given (as I think) the wrong solution, he seems to see, as nobody else does, that
there is a problem”... Grifo meu.
16
Id.
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o vazio, ou seja, que conecta o vazio a um “objeto” de preenchimento, isto 71
é, de satisfação. Seja a água a aísthesis do primeiro preenchimento, espe-
Fernando Muniz
cializa o vazio na conexão vazio – água = sede. A vinculação do vazio e a
aísthesis engendra o apetite. Por essa razão, diz, Sócrates, “de nenhum modo
o corpo pode ter sede ou fome ou qualquer coisa desse tipo”.
Fazendo com que o primeiro apelo de preenchimento e, conseqüente-
mente, de prazer, seja uma aísthesis e fazendo da aísthesis, desta vez – e mais
perfeitamente – o elemento que opera o encadeamento da alma ao corpo,
torna-se mais fácil compreender a razão pela qual prazer e sensação são
recusados tão enfaticamente por Platão. Fica evidente, portanto, que, se não
existe desejo do corpo, não podemos atribuir a ele a fonte do mal, mas
podemos entender que é a deficiência corporal que encadeia a alma aos
objetos sensíveis pelos elos do apetite. Esse é o sentido mais profundo do
encadeamento. Mas ele seria ainda negativo se ele não constituísse um ponto
de vista cognitivo sobre o mundo.
O Fédon apresenta o encadeamento da alma como a construção de um
ponto de vista cognitivo do mundo. É isso que se revela claramente na
resposta que Sócrates dá a Cebes sobre a razão pela qual sentir um prazer
excessivo é o supremo mal.: “O que quer dizer isso?”. Sócrates explica esse
sentido ontológico da seguinte forma: “Consiste numa inferência inevitá-
vel que se impõe à alma de todo homem. No instante mesmo em que expe-
rimenta uma sensação intensa de prazer ou dor: é-se levado a tomar a cau-
sa da afecção como a coisa mais evidente e verdadeira, ainda que não o seja
– já que se trata de coisas visíveis”. Essa vinculação das práticas de prazer à
prática cognitiva estabelecida nessa passagem abre uma nova possibilidade
de abordagem da questão. Em 83d, Sócrates não deixa dúvidas, “são
afecções” desse tipo que irão “encadear” cada vez mais estreitamente a alma
ao corpo. De modo que “cada prazer ou cada dor” funciona como “pre-
gos” que “prendem” a alma ao corpo, “fixando-a nele” e dando a alma uma
“forma corporal”, “a ponto de fazer com que ela tome por verdadeiro tudo
o que o corpo afirma ser”.
Esse processo de “somatização” da alma, quando ela “se conforma às
opiniões do corpo, ao seu modo de vida e à sua dieta”,17 confunde-se com o
processo de contaminação, e tem como resultado prático a alma “infectada”,
excluída da conexão com o que é “puro” e “único em sua forma”.18 São,
17
KAHN, C. op. cit., p. 88.
18
Fédon, 78e: “a alma assemelha-se ao divino, ao imortal e ao inteligível de forma única e
indissolúvel ao sempre semelhante a si mesmo. O que é humano, mortal multiforme,
ininteligível, sujeito a dissolução e que mais se assemelha ao corpo”.
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72 portanto, os prazeres e apetites que exercem sobre a alma sua magia.19 Um
feitiço que se desenvolve na unicidade intransferível de cada “desmotério”-
Platão: o Mundo, o Corpo e o Mal
REFERÊNCIAS
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University Press,1978,244-258pp.
19
GOSLING,.J.C.B. e TAYLOR, C. The Greeks on Pleasure. Oxford: Clarendon Press,
1984, 191p.
20
No Sofista, 246a-b.
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CORNFORD, F.M. Plato’s Cosmologie. London: Routledge & Kegan Paul, 1952. 73
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Fernando Muniz
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KAHN, C. Plato’s Theory of Desire in Review of Metaphysics 41 (september 1987) 77-
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ALGUNOS ASPECTOS DE LA CRÍTICA PLATÓNICA AL ARTE
IMITATIVO – LA ANALOGÍA ENTRE EL SOFISTA Y EL PINTOR *
*
Este artículo amplía y desarrolla cuestiones presentadas en un trabajo más breve, leído
en el XIIIº Congreso Nacional de Filosofía celebrado en Rosario (Argentina) en noviembre
de 2005.
**
Graciela E.Marcos de Pinotti é professora na Universidade de Buenos Aires e investiga-
dora do Conicet, Argentina. E-mail: greemarcos@gmail.com
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“imágenes habladas” (eídola legómena), las que tienen por artífices a poetas 75
y a sofistas y cuyo dominio propio son los discursos. En este segundo caso,
1
Tal la crítica que dirige expresamente a la analogía platónica W. BONDESON, “Plato’s
Sophist: Falsehoods and Images”, Apeiron VI (1972), 2, pp. 1-6, cuya interpretación discutiré
más adelante. Se trata aparentemente de una crítica justificada y ceñida a la letra del texto
platónico, de ahí mi interés en examinarla y ensayar, en la medida de lo posible, una lectura
diferente del símil que brinda Platón.
2
Cf. Sof. 219a8-b6, 265b8-10, Symp. 205b8-c1.
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76 más bien que apresora, del quehacer sofístico. La dicotomía adquisición –
producción (ktêsis – poíesis) preside desde un comienzo la búsqueda,3 pero
Algunos aspectos de la crítica platónica al arte imitativo - La analogía entre el sofista y el pintor
3
Cf. Sof. 219a-c, en que se presenta esta dicotomía en el contexto de la búsqueda de la
definición de la pesca con caña, que se propone a modo de mera ejercitación propedeútica.
Seguidamente se aplica tal dicotomía a la búsqueda de una definición del sofista, obteniéndose
seis definiciones, la mayoría de las cuales hacen de él un adquisidor. Un análisis detallado
de las mismas se hallará en V. Li CARRILLO, “Las definiciones del sofista”, Epistéme (1959-
1960), pp. 83-184.
4
Por otra parte, ambas formas de producción de imágenes (eídola), como veremos, lo son
de copias (eikónes) y de apariencias (phantásmata), pudiendo ser cada una de ellas tanto
imágenes visuales como habladas.
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I 77
5
Sobre el diferente tratamiento de los libros II-III, en que Platón critica cierta poesía, y el
que ofrecerá el libro X, en que toda poesía es rechazada, véase P. HWANG, “Poetry in Plato’s
Republic”, Apeiron XV (1981) 1, pp. 29-37.
6
Sobre el dominio de la comunicación oral en el marco cultural en que se sitúa la crítica
platónica a la poesía véase E. HAVELOCK, Preface to Plato, Harvard, 1963, espec. cap. III.
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78 oído, del mismo modo que las imágenes pictóricas son aprehendidas por la
vista. De aquí a asimilar unas y otras como si fueran de igual naturaleza,
Algunos aspectos de la crítica platónica al arte imitativo - La analogía entre el sofista y el pintor
no hay más que un paso. Habrá que esperar al Sofista para reformular la
cuestión. La ocasión la proporcionará la búsqueda de una definición del
sofista, enfocada desde el comienzo como una definición del arte que el
sofista practica. Es en este marco, que examinaré luego, donde se establece
la analogía que nos interesa entre la labor imitativa de sofista y pintor.
Un segundo rasgo del tratamiento ofrecido en República X que no es aje-
no, posiblemente, a esta perspectiva que privilegia el objeto en lugar de la
práctica que conduce a él, es el procedimiento metodológico empleado a la
hora de explicar qué es la imitación. En Rep. X, 596a, Sócrates propone dilu-
cidarlo apelando al procedimiento de búsqueda de “lo uno sobre lo múltiple”,
el cual conduce a reconocer, frente a una “multitud de camas y una multitud
de mesas”, que “las ideas relativas a esos muebles son dos: una idea de cama y
otra idea de mesa”.7 La problemática afirmación de la existencia de Ideas de
artefactos8 es aquí ni más ni menos una consecuencia de adoptar dicho pro-
cedimiento, considerablemente diferente del que regirá, en Sofista, la búsqueda
de una definición del personaje homónimo.9 Allí, tanto como el poeta de
República, el sofista terminará siendo parangonado al pintor y caracterizado,
también, como imitador, pero su definición se alcanzará a través de reunio-
nes y divisiones dirigidas a caracterizar su quehacer más propio, antes que a
poner énfasis en la precariedad ontológica de la obra imitativa.
7
Rep. X, 596a9-b4. Véase también la referencia a un eîdos de lanzadera en Crátilo 389b1-6.
8
Algunos como Jenócrates negaban que hubiera tales Ideas de productos artificiales.
Aristóteles acuerda en ello, por entender que la causa del artefacto es su representación en
la mente del artífice. Adviértase que si bien la crítica del libro X de República toma sentido
a la luz de la teoría de las Ideas, y como tal envuelve un aspecto ontológico que la distingue
de las críticas expuestas en los libros anteriores, las únicas ideas que se mencionan son aquellas
cuya existencia, hasta donde sabemos a partir del testimonio aristotélico, los platónicos
tuvieron dificultad en admitir. Sobre el problema de la existencia de ideas de artefactos, una
exposición muy completa de las distintas interpretaciones que ha merecido la afirmación
aristotélica de que fueron rechazadas por los platónicos se hallará en G. FINE, On Ideas.
Aristotle’s Criticism of Plato’s Theory of Forms, Oxford, Clarendon, 1993, capítulo 6, pp. 81-88.
9
En lugar de abstraer los rasgos comunes a una multiplicidad homónima, lo cual presupone
que los nombres que utilizamos en el lenguaje pueden considerarse indicadores fiables de
las realidades que les subyacen, el procedimiento de reunión y división empleado por Platón
en Sofista y en Político envuelve una mayor cautela en el uso del lenguaje y, a la hora de
definir, invita a discriminar, a desplegar los elementos diversos que se presentan bajo la
envoltura engañosa de la unidad del nombre. En este sentido son particularmente claras las
páginas del comienzo de Sofista, donde la contraposición que se establece entre génos y ónoma
invita a los interlocutores a no fiarse excesivamente de los nombres. Cf. Sof. 217a3-b3, 255c8-
10, y también Pol. 262c10-c6 y 261e1-7.
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Así en el pasaje de República que comentamos, la obra del artesano 79
manual, p.e. la cama que fabrica, es considerada de suyo algo oscuro con
10
No es del todo claro que el imitador sea, después de todo, artífice y hacedor, al menos
según Rep. X, 597d-e, en que Platón sitúa al imitador o pintor en el último lugar de una
gradación en la que dios ocupa el primer rango y el carpintero el segundo. Podría llegar a
interpretarse que en este contexto “sólo los dos primeros son artífices o demiurgos” –así p.e.
J. Manuel Pabón y M. Fernández Galiano, cf. nota ad loc. X, 597e4, en Platón, La Repúbli-
ca. Edición bilingüe, trad., notas y estudio preliminar de, Madrid, Instituto de Estud Políti-
cos, 1969, tomo III. Sin embargo, líneas después el imitador es caracterizado inequívocamente
como fabricante de imágenes (eidólou demiourgós, 599d4), en términos que reaparecerán en
la definición que Platón ofrecerá de él en Sofista. La vacilación, por decirlo así, podría deberse
a que lo producido o fabricado por el imitador es en definitiva una apariencia (phántasma),
algo que no es verdaderamente, y resulta en cierto modo contradictorio atribuir a alguien
la fabricación de algo que “no” es. Una dificultad de este tipo se plantea en Sof. 236d9-237a1,
tras intentar caracterizar al personaje de este nombre como artífice de falsedades,
caracterización que no podrá prosperar hasta una vez demostrada la realidad del no ser a
título de alteridad. Sobre este importante pasaje, que lleva a interrumpir momentáneamente
la definición del sofista -de “Platon, son ‘père Parménide” et l’heritage sophistique”, en M.
FATTAL (éd.), La philosophie de Platon. Tome II, Paris, L’Harmattan, 2005, espec. pp. 240-
243.
11
Cf. Rep. X, 596c y su paraledo casi exacto en Sof. 234a, donde Platón se refiere también
al imitador como alguien capaz de producir, mediante un único arte, todas las cosas: no solo
hombres, animales y plantas, sino también productor “del mar, del cielo, de la tierra, de los
dioses y de todo lo que hay”.
12
Mientras que el fabricante de camas no fabrica la cama existente por sí (hò ésti kíne) sino
una cama determinada (klínen tiná), que como tal resultará también en cierta medida algo
oscuro en comparación con la verdad, el imitador hace algo más alejado aún y más oscuro.
Resultan así tres clases de camas: la que existe en la naturaleza, fabricada por la divinidad, la
que hace el carpintero y finalmente la que hace el pintor. Divinidad, artesano manual, pin-
tor, son así “los tres maestros de estas tres clases de camas” (Rep. X, 595b).
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80 tanto a los productos que resultan de la práctica imitativa13 como a lo imi-
tado,14 es decir, el modelo a imitar, que como tal preexiste al imitador.15
Algunos aspectos de la crítica platónica al arte imitativo - La analogía entre el sofista y el pintor
13
Cf. Rep. X, 596e4: phainómena; 596e11: phaninoménen; 599a2: phantásmata; 601b10:
phainoménou. Tal es también el sentido de eídolon en 599a7.
14
Cf. Rep. X, 598be: phainómenon.
15
Sobre esta distinción cf. KEULS, E., Plato and Greek Painting, Leiden, 1978, Brill, p.
113.
16
Cf. Sof. 266c-d, en el marco de la séptima definición del sofista con que se cierra el diálo-
go. Platón, tras distinguir la producción en divina y humana, divide cada una de éstas en
producción de originales y producción de imágenes.
17
Uso aquí ‘fabricación’ en un sentido restringido, aplicable a la técnica del artesano ma-
nual pero no a la fabricación de apariencias propia del imitador. Sobre la dificultad que
plantea caracterizar al imitador como artífice y hacedor véase supra n. 10.
18
De hecho Platón describe aquí al poeta en términos que hacen de él una suerte de pin-
tor, afirmando que las imágenes que produce persuaden únicamente a quienes “juzgan por
los colores y las formas (ek tôn chromáton dè kaì schemáton theoroûsin, Rep. 601a 2-3)”. Llama
la atención, por cierto, la profusión de términos ligados a lo visual cuando de lo que se tra-
ta de describir un cierto tipo de discurso. En este marco la poesía imitativa, en un lenguaje
que evoca claramente el empleado en Gorgias, es presentada como “antístrofa” (605a9) de
la pintura. Sobre la afinidad entre la crítica a la imitación en República y la crítica de Gorgias
a la retórica véase E. BELFIORE, “Plato’s Greatest Accusation against Poetry”, Canadian
Journal of Philosophy. Supplementary Volume IX (1983), espec. p. 47. n. 10.
HYPNOS
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nes de virtud y de todo aquello sobre lo que compone sin tener conocimien- 81
to. Y así como un pintor hábil puede engañar a observadores inexpertos,
II
Pasemos por fin al tratamiento que ofrece Sofista de la imitación, que
Platón define ahora como “producción de imágenes” y de la que distingue
dos especies: una produce copias o semejanzas (eikónes), la otra, meras apa-
riencias o simulacros (phantásmata). La analogía que nos interesa entre pin-
tura y sofística se inserta en el marco de esta distinción cuyo núcleo, como
he adelantado, es diferenciar esos dos tipos de producción de imágenes, sean
éstas visuales como habladas.
Es importante aclarar que la mencionada división se traza en ocasión
del séptimo intento de definir al sofista a través del procedimiento de re-
unión y división, tras seis definiciones que resultan insatisfactorias. Cuan-
do en un comienzo se sitúa su quehacer dentro del género del arte adquisi-
tivo, el sofista aparece de tantas maneras que se hace necesario descubrir
dónde confluyen todos los conocimientos y habilidades que presuntamen-
te posee. Es la quinta definición, finalmente, la que delata su naturaleza: el
sofista es un contradictor (antilogikós, Sof. 232b6), posee un arte que se pre-
tende una capacidad suficiente para discutir sobre cualquier asunto, pero
puesto que es imposible que un hombre sepa todo, la suya no será una sa-
biduría genuina sino puramente aparente. Adjudicarle un pseudosaber que
produce en sus discípulos la ilusoria creencia en la propia sabiduría hace que
la adquisitividad, base de todas las divisiones realizadas hasta allí, comience
a revelarse inesencial en lo tocante a la sofística, desplazándose la investiga-
19
Me ocupo en detalle de este pasaje en “Mímesis e ilusiones de los sentidos en República
X. Observaciones a la crítica de Aristóteles a la phantasía platónica”, que aparecerá
próximamente en Méthexis XVIII (2005). Dicho trabajo a su vez amplía y desarrolla algunas
cuestiones presentadas en “Platón y el antídoto contra las ilusiones de los sentidos”, leído
en el IV Seminario Internacional de filosofía Antigua celebrado en Medellín en setiembre
de 2004.
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82 ción, a la altura de 235b, desde el género adquisitivo hacia el productivo.
La técnica del sofista imitador, punto éste que Platón se preocupa por su-
Algunos aspectos de la crítica platónica al arte imitativo - La analogía entre el sofista y el pintor
20
Sobre la noción platónica de poíesis cf. supra n. 2.
21
Sobre el problema de la aplicabilidad de la distinción entre eikástiké y phantastiké a la
pintura, que a diferencia p.e. de la escultura, sólo puede simular profundidad y en tal senti-
do no puede ser sino una phantastiké téchne, cf. E. KEULS, Plato and Greek Painting, Leiden,
Brill, 1978, p. 114 y también M. VILLELA-PETIT, “La question de l’image artistique dans
le Sophiste”, en P. AUBENQUE ET M. NARCY (éds.), Études sur le Sophiste de Platon,
Bibliopolis, 1991, pp. 74-75.
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lo hacen las malas imágenes pintadas”,22 omitiendo que Platón deja abierta 83
la posibilidad de que las imágenes, sean pintadas como habladas, ostenten
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84 En segundo lugar, aceptando que Platón está parangonando las malas
pinturas y las falsedades, de ello no se sigue que tengamos que llamar ‘fal-
Algunos aspectos de la crítica platónica al arte imitativo - La analogía entre el sofista y el pintor
sas’ a las malas pinturas, como pretende Bondeson para descalificar la ana-
logía. “¿En qué sentido una pintura puede ser una falsedad pictórica? Esto
equivale a preguntar en qué sentido una pintura puede llamarse falsa”, afir-
ma el autor. 26 Sin embargo, así como una mala pintura puede p.e. ser
desproporcionada o borrosa, sin que esto implique que una mala imagen
hablada, lo que llamaríamos una falsedad, tenga que ser a su vez
desproporcionada o borrosa, la analogía de Platón entre imágenes habladas
e imágenes pintadas se mantiene aunque las primeras admitan ser califica-
das falsas y las segundas no. Sólo se trata de aplicar la terminología propia
de cada área, acorde a la naturaleza, visual o hablada, de la imagen que esté
en juego en cada caso, sin que esta distinción invalide la analogía.27
El punto quizás más conflictivo del planteo de Bondeson lo constituye
su afirmación de que al mantener la analogía entre imágenes pictóricas e
imágenes habladas, los interlocutores de Sofista están equiparando dos ti-
pos de acciones bien distintas como lo son ver y decir. Dado que no se puede
sostener de ningún modo que cuando vemos lo que no es vemos algo falso,
en cambio sí es posible creer o decir algo y, sin embargo, que eso que cree-
mos o decimos sea falso, la analogía platónica quedaría invalidada. En este
punto, el autor se remite a Teeteto 188c-189b, donde se argumenta que así
como es imposible ver (oír, tocar, etc.) sin ver algo que es, es imposible
juzgar sin juzgar algo que es. La conclusión allí es que o bien juzgamos y
nuestro juicio, en tanto juzga algo que es, es verdadero, o bien no hay jui-
cio. Hallamos que una conclusión inaceptable como lo es la de que no es
posible juzgar falsamente resulta, pues, de un paralelismo, a todas luces ile-
gítimo, entre verbos de percepción tales como ver, u oír, y un verbo de
acción intelectual falible como juzgar (doxazein), al que podría añadirse una
larga lista de verbos tales como decir, creer, etc. sin que cambie
sustancialmente el sentido del argumento. Un paralelismo de este tipo está
envuelto, concluye Bondeson, en la analogía de Sofista entre imágenes vi-
suales e imágenes habladas, impidiendo una distinción nítida entre lo que
ilustra con claridad Platón en Crátilo 432b4-d2. Sobre este pasaje véase PATTERSON, ob.
cit., pp. 38-39. Sobre su aplicación al problema de la falsedad cf. N. DENYER, Language,
Thought and Falsehood in Ancient Greek Philosophy, London & N. York, 1991, pp. 80-82.
26
Cf. BONDESON, ob. cit., p. 2.
27
Debo esta observación, al igual que la que figura infra en n. 35, a Cecilia Tilli, con quien
tuve la suerte de discutir buena parte de las objeciones a la interpretación de W. Bondeson
que desarrollo en estas páginas.
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vemos y lo que decimos o creemos, sin la cual – subraya aquí con razón – 85
no es posible dar una respuesta satisfactoria al problema de la falsedad.
28
Sobre Platón, Teeteto 188c-189b, me remito a G. MARCOS DE PINOTTI, Platón ante
el problema del error. La formulación de Teeteto y la solución de Sofista, Buenos Aires, Fundec,
1995, cap. II, espec. pp. 61-75, donde analizo en detalle el argumento a la luz tanto de la
definición de conocimiento como sensación que se propone al comienzo del diálogo, como
de la posición de Protágoras, que Platón asocia a dicha definición.
29
Toda la discusión sobre el juicio falso en Teeteto 188a-200c, en rigor, consiste en una serie
de argumentos que intentan infructuosamente dar razón del mismo, partiendo de premisas
que muy improbablemente Platón suscribiría, y que de ese modo resultan indirectamente
refutadas. Si bien esa sección del diálogo tiene la apariencia de una digresión, varios autores
han argumentado a favor de su conexión con la discusión sobre el conocimiento que recor-
re el diálogo en su conjunto. En este sentido son particularmente recomendables los trabajos
de G. FINE, “False Belief in the Theaetetus”, Phronesis XXIV (1979) 1, pp. 70-80, y de H.
BENSON, “Why is there a Discussion of False Belief in the Theaetetus”, Journal of the History
of Philosophy XXX (1992) 2, pp. 171-199.
30
Cf. R. ROBINSON, “Forms and Error in Plato’s Theaetetus”, Philosophical Review LIX
(1950) 1, pp. 22-23.
31
Quien habla falsamente, como da en expresar Crátilo en el diálogo de este nombre, sólo
“emite ruidos, agitándose a sí mismo en vano, como si agitara un objeto de bronce
golpeándolo” (Crátilo 430a4-5).
HYPNOS
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86 la experiencia de nuestros sentidos, o no juzgamos en absoluto, ya que es
imposible juzgar sin juzgar algo que es. Se concluye que “no es posible,
Algunos aspectos de la crítica platónica al arte imitativo - La analogía entre el sofista y el pintor
entonces, juzgar lo que no es, ni acerca de las cosas que son, ni tampoco en
sí mismo y por sí mismo”.32
Ahora bien, coincido con Bondeson en que la solución al problema que
representa no poder dar cabida a la falsedad requiere establecer una fronte-
ra nítida entre lo que vemos y lo que decimos o creemos, de modo que lo
dicho o creído pueda ser calificado ‘verdadero’ o ‘falso’ en un sentido en
que estos términos no son aplicables a lo que vemos u oímos.33 Pero consi-
dero que es mérito de Platón en Sofista, precisamente, establecer dicha dis-
tinción, sin lo cual difícilmente habría podido probarse allí, una vez esta-
blecida la realidad del no ser a título de diferencia, que es posible pensar o
decir falsedades, de modo que no se rehúse ya el título de pensamiento y
de discurso a aquellos que en lugar de capturar algo que es, instauran lo que
no es. Al demostrar que es posible decir y pensar falsedades, i.e. cosas dife-
rentes de las cosas que son (hétera tôn ónton), Platón pone a salvo la natura-
leza del pensamiento y del discurso como instancias distintas de las cosas
que son y más elevadas que cualquiera de los actos perceptuales aplicados a
aprehenderlas. En Sofista, el lógos pierde por fin todo vestigio de apresamien-
to o captura de lo que es, revelando su naturaleza propia, la de ser una ima-
gen de las cosas que son. Mas toda imagen debe confrontarse con su origi-
nal para así determinarse si está convenientemente lograda o no, de modo
que es posible pronunciarse sobre el valor de la imitación – en el caso del
lógos, sobre su valor de verdad – según el grado de ajuste o fidelidad a las
realidades imitadas.34 Habrá así imágenes bellas y no bellas, lógoi verdade-
ros que representan lo que es tal como es, pero también lógoi falsos que
distorsionan aquello que dicen representar.
A esto apunta justamente la división platónica del arte que produce
imágenes en dos especies, una que produce copias y otra productora de
apariencias, que por consiguiente ha de vincularse a la solución al proble-
ma de la posibilidad de lo falso, antes que a la fuente que le da origen. La
analogía que nos interesa entre producir imágenes visuales e imágenes
habladas, no hay que olvidarlo, se traza en el marco de dicha división, es
32
Teet. 189b1-2. La conclusión se formula en los dos sentidos de ‘lo que no es’ (to mè ón).
Recién en Sofista demostrará Platón que es posible pensar y decir lo que no es con relación
a las cosas que son, un no ser relativo que permite explicar por qué el pensamiento y el dis-
curso, lejos de ser siempre verdaderas, son pasibles de verdad y falsedad.
33
Cf. BONDESON, ob. cit., p. 6
34
Cf. Crát. 439a1-4, Sof. 235d6-c7.
HYPNOS
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decir, en el contexto de la solución que Platón brinda al problema del error 87
demostrando que el lógos puede ser verdadero o falso, de modo que mal
35
Contribuye a una confusión como la de Bondeson, posiblemente, el hecho de que una
pintura, al par que representa algo que vemos, a su vez es vista, del mismo modo que un
discurso, a la vez que dice algo acerca de una cosa, a su vez es oído. Eso que denominamos
‘lo que vemos’, o ‘lo que decimos’ podría ser abordado, en rigor, desde una u otra perspec-
tiva, ambivalencia a la que Platón seguramente no es ajeno.
HYPNOS
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88 la imitación envuelve una producción. En cuanto desplazamos nuestra aten-
ción desde el objeto hacia la práxis que lo constituye, la analogía entre pro-
Algunos aspectos de la crítica platónica al arte imitativo - La analogía entre el sofista y el pintor
HYPNOS
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Comunicações
PROFECIA EM AVICENA:
QUANDO O HUMANO SE UNE AO DIVINO
PROPHECY IN AVICENNA: THE UNION OF HUMAN AND DIVINE
ROSALIE HELENA DE SOUZA PEREIRA*
Resumo: Para a filosofia do mundo islâmico, a falsafa, e para seu ilustre re-
presentante, Avicena, a profecia é resultante de certas condições físicas e psí-
quicas determinadas pelo fluxo necessário das emanações das inteligências
supralunares, se bem que, sob a ótica do racionalismo, ele também apresenta
os princípios de uma ética em que a ação profética é o paradigma da perfeição
humana.
Palavras-chave: Avicena; profetologia; inteligência; pefeição humana.
Abstract: For philosophy, falsafa, in the Islamic world, and for Avicenna in
particular, its most prominent representative, prophecy comes about as the
result of certain physical and psychic conditions. What determines these
conditions is the emanations that flow necessarily from the celestial
intelligences, although Avicenna also presents a rationalistic picture of ethical
principles, where prophetic action is understood as the paradigm of human
perfection.
Key-words: Avicenna; Prophet; Intelligence; Human perfection.
*
Rosalie Helena Pereira é pesquisadora em História da Filosofia na Universidade Esta-
dual de Campinas, Brasil. E-mail:rosaliepereira@uol.com.br
HYPNOS
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90 vida religiosa,1 a profecia ocupa no pensamento do Islã medieval um lugar
capital, com conseqüências na vida social e política.
Profecia em Avicena: quando o humano se une ao divino
1
Ver um abrangente estudo sobre os grandes temas da teologia islâmica e o seu tratamen-
to pelas disciplinas “racionalistas” em: GARDET, Louis. Dieu et la destinée de l’homme. Paris:
J. Vrin, 1967. Outro eminente arabista, cujos ensaios cobrem vários aspectos da relação entre
as disciplinas “racionalistas” e a fé islâmica é: ARNALDEZ, Roger. “Prophétie et sainteté
en Islam”, ensaio publicado numa coleção de trabalhos do mesmo autor: Aspects de la pensée
musulmane, Paris: Vrin-Reprise, 1987, p. 37 e ss.
2
Sobre o “misticismo de Avicena”, ver: GARDET, Louis. Quelques aspects de la pensée
avicennienne. In Revue Thomiste, t. XLV – nº 3, juillet-septembre 1939, p. 537-575; IDEM. La
mystique avicennienne. In Revue Thomiste, t. XLV – nº 4, octobre-décembre 1939, p. 693-742.
3
Na parte dedicada à lógica no Livro da cura. Cit. in GARDET, Louis. Quelques aspects
de la pensée avicennienne. In Revue Thomiste, t. XLV – nº 3, p. 541.
HYPNOS
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tipos de conhecimento que os muçulmanos buscaram em outras 91
civilizações, em especial na greco-bizantina, na persa e na indiana,
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92 em virtude de suas capacidades extraordinárias. A falsafa, desse modo, faz
do profetismo um “fenômeno natural”.4
Profecia em Avicena: quando o humano se une ao divino
4
Cf. GARDET, Louis. La pensée religieuse d’Avicenne. Paris: J. Vrin, 1951, p. 112.
5
Ver o papel atribuído ao profeta por Al-Fa>ra>bi> em seu tratado Maba>di’ a>ra>’ ahl al-madi>na
al-fa>d{ila (Princípios das opiniões dos habitantes da cidade virtuosa): AL-FA<RA<BI<. La Ciudad
Ideal, trad. ALONSO, M. A.; apres. de CRUZ HERNÁNDEZ, Miguel. Madrid: Tecnos,
1985.
6
Cf. MICHOT, Jean R. La destinée de l’homme selon Avicenne, Louvain, Peeters, 1986,
pp. 6-7.
HYPNOS
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é no Livro da alma (Kita>b al-nafs),7 muito estudado em decorrência do inte- 93
resse na teoria do conhecimento de Avicena, que é preconizada a profecia
7
O Livro da alma faz parte do segundo tomo, dedicado à física, do Livro da Cura (Kita>b
al-shifa> ’). O primeiro tomo é dedicado à lógica, o terceiro, à matemática e o quarto, à
metafísica. Avicena terminou a redação do Livro da cura por volta de 1024.
8
Cf. ELAMRANI-JAMAL, Abdelali. De la multiplicité des modes de la prophétie chez Ibn
Si>na>. In JOLIVET, Jean; RASHED, Roshdi (Orgs.). Études sur Avicenne. Paris: Les Belles
Lettres, 1984, p. 125 e ss. Ver no final de nosso trabalho o elenco dos textos avicenianos
que tratam da profecia no quadro da teoria da alma.
9
Traduções de ANAWATI, G. C. Les Divisions des Sciences Intellectuelles d’Avicenne. In
MIDEO, t. 13, Cairo: Dar al-Maaref, 1977, pp. 323-335; de MIMOUNE, R. Épître sur les
parties des sciences intellectuelles d’Abu> ‘Ali> al-H{usayn Ibn Si>na>. In Etudes sur Avicenne. Paris:
Les Belles Lettres, 1984; de MICHOT, J. R. Les Sciences Physiques et Métaphysiques selon la
Risa>la fi> Aqsa>m al-‘Ulu>m d’Avicenne. Essai de traduction critique. In Bulletin de Philosophie
Médiévale, 22, Louvain, 1980, pp. 64-71, esta última é uma tradução parcial à Física e à
Metafísica; também uma tradução parcial de MAHDI. M.: Avicenna. On the divisions of the
rational sciences. In LERNER, R.; MAHDI. M. (Orgs. com a colaboração de FORTIN, E.
L.). Medieval Political Philosophy: A Sourcebook. ¹1963, reprint USA: Cornell Univ. Press,
1972, p. 95-97.
HYPNOS
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94 Antes, ele examina essas capacidades em partes diferentes e disseminadas ao
longo de sua principal obra dedicada ao estudo da alma, o Livro da alma
Profecia em Avicena: quando o humano se une ao divino
(Kita>b al-nafs). Assim, cada vez que examina uma faculdade da alma, Avicena
alude à capacidade profética. Em seu tratamento hierarquizado das facul-
dades humanas,10 Avicena finaliza sua exposição afirmando que a perfeição
suprema do desenvolvimento do intelecto pertence tanto ao filósofo como
ao profeta.11 O profeta, porém, deve necessariamente ter qualidades que o
distingam do resto da humanidade, pois ele representa a perfeição da raça
humana, ele é o enviado de Deus e portador da mensagem divina.
A preocupação de Avicena com a capacidade profética permeia seus
estudos sistemáticos, como já mencionamos, e é apresentada como prova
racional das crenças populares na revelação profética. É, portanto, no con-
texto de uma filosofia racional e sistematizada que veremos ser incluído o
estudo da profecia.
Embora não apresentadas de modo unificado, numa leitura cuidadosa
podemos discernir as três propriedades ou qualidades do estado profético,
tal como Avicena as apresentou de modo coerente num quadro metafísico
e epistemológico. São elas: 1) a inspiração profética recebida diretamente
da inteligência agente e que caracteriza o “intelecto santo” do profeta, grau
supremo da perfeição humana; 2) a percepção da revelação em forma sen-
sível, conferida por meio da faculdade da imaginação, e que se traduz em
símbolos; e 3) a capacidade de realizar milagres e de prever o futuro de even-
tos particulares.
10
Para um estudo detalhado das faculdades da alma, ver ATTIÉ Fº, Miguel. Os sentidos
internos em Ibn Si>na> (Avicena). Porto Alegre: Edipucrs, 2000; e, do mesmo autor, sua tese
de doutorado: O intelecto no Livro da Alma de Ibn Si>na> (Avicena). FFLCH-USP, 2004.
11
A classificação dos intelectos é a seguinte: O intelecto material é assim chamado por sua
proximidade e semelhança com a matéria, já que não recebeu ainda da inteligência agente
qualquer inteligível e, portanto, nada conhece ainda. O “intelecto em potência” já possui a
potencialidade possível para receber os primeiros inteligíveis, ou melhor, os primeiros princí-
pios ou axiomas; nesse estágio, o intelecto aceita proposições consolidadas, pois não elabo-
ra pensamentos próprios, tais como “o todo é maior que as partes”. O intelecto em hábito
está em potência próxima ao ato; já munido dos inteligíveis, tem a perfeição da
potencialidade: une-se de modo imperfeito à inteligência agente, pois recebe os primeiro
inteligíveis que lhe possibilitam receber os outros; as formas já estão no intelecto, o que lhe
faculta o ato de pensar por si próprio. Os estágios do intelecto em ato são os seguintes: O
“intelecto efetivo”, já em ato, possui a capacidade de separar as noções comuns dos princí-
pios primeiros. O “intelecto adquirido” ou “ajustado” já tem a capacidade de se unir à inte-
ligência agente; nesse estágio, já plenamente desenvolvido, o intelecto está absolutamente
atualizado. Finalmente, o intelecto santo, que, unido à inteligência agente, recebe a revela-
ção divina.
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Ao mencionar o estado profético, no Livro da alma, seja na passagem 95
que trata da faculdade da imaginação, seja na passagem sobre o poder de agir
12
AVICENA, Livro da alma, Parte IV, seções 2 e 4, respectivamente.
13
AVICENA, Livro da alma, Parte V, seção 6.
14
Na teologia islâmica há que se distinguir nabi>’, profeta, de rasu>l (pl. ru>sul) que significa
enviado, apóstolo. A idéia de missão está mais ligada ao enviado, e a idéia de revelação, ao
profeta; o nabi>’ é quem recebeu seja uma revelação (wah{y) por intermédio de um anjo, seja
uma inspiração (ilha>m) em seu coração, ou ainda uma admoestação (tanbi>h) por meio de
um sonho verdadeiro; o rasu>l, enviado e apóstolo, é superior ao profeta porque recebeu uma
revelação (wah{y) especial, superior à recebida pelo profeta; é sobre o rasu>l (Maomé) que o
Anjo Gabriel fez descer, por parte de Deus, o Livro, o Corão, que é uma Lei religiosa a ser
transmitida aos homens. O enviado se distingue do profeta porque recebeu uma missão a
ser transmitida para a humanidade, recebeu um Livro que contém a Lei divina que deverá
ser seguida por todos. Maomé é nabi>’ e rasu>l porque recebeu a revelação divina contida no
Corão junto com o encargo de transmiti-la aos homens. Cf. GARDET, Louis. Dieu et la
destinée de l’homme. Paris: J. Vrin, 1967, p. 158. Gardet esclarece que o termo wah{y, tradu-
zido por revelação, conota a idéia de voz, de som, o que sugere uma revelação exterior re-
cebida por meio do ouvido; ilha>m, traduzido por inspiração, exprime a idéia de engolir,
deglutir, donde uma inspiração interior, recebida no coração. Cf. Ibid., n. 2.
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96 de da alma do profeta: a capacidade de agir sobre a matéria exterior. No final,
ele afirma categoricamente que o que acabou de expor é apenas um “modo”
Profecia em Avicena: quando o humano se une ao divino
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se derrama sobre a imaginação. À inspiração interior se une a revela- 97
ção (wah{y), que, sendo exterior à alma do profeta, é apreendida sob a
Mas, já que a alma humana pode agir sobre o seu próprio corpo, se as fa-
culdades estiverem devidamente aperfeiçoadas, por que não pode também agir
sobre corpos alheios? Para Avicena, alguns indivíduos, e principalmente os
profetas, possuem esse poder desde o nascimento, porquanto sábios e santos
poderão consegui-lo apenas depois de uma ascese apropriada, embora não haja
entre todos eles uma diferença intrínseca no resultado da ação produzida.19 Esse
19
Cf. GARDET, L. Dieu et la destinée de l’homme. Paris: J. Vrin, 1967, p. 199. IDEM. La
pensée religieuse d’Avicenne (Ibn Sînâ). Paris: J. Vrin, 1951, p. 122-125.
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98 terceiro grupo de sinais e milagres depende da perfeição do operar sobre o
mundo físico: trata-se dos atos exercidos sobre a matéria exterior, como a cura
Profecia em Avicena: quando o humano se une ao divino
20
Esse aspecto da simpatia do microcosmo com o macrocosmo é comum nos tratados
considerados “místicos” de Avicena, principalmente nos que versam sobre a oração, so-
bre a peregrinação aos túmulos dos santos etc. Avicena foi profundamente influenciado
pela Teologia pseudo-aristotélica. A Teologia pertencia inicialmente a um grupo de textos
de metafísica que compreendia não apenas textos de Plotino (paráfrases das Enéadas IV a
VI), mas ainda de Próclo (Elementos de Teologia) e de Alexandre de Afrodísia, coleção que
visava completar a Metafísica de Aristóteles, elaborada em Bagdá, no século IX, pelo cír-
culo de Al-Kindi>. A versão árabe do Liber de Causis, cuja doutrina é derivada dos Elemen-
tos de Teologia, de Próclo, teria feito parte desta coleção, mas, depois, circulou indepen-
dente. O compêndio das duas fontes neoplatônicas - a paráfrase árabe das Enéadas IV a
VI e os Elementos de Teologia de Próclo - forma o que se convencionou denominar
Plotiniana Arabica. Cf. D’ANCONA COSTA, Cristina. Recherches sur le Liber de Causis,
Paris: J. Vrin, pp. 155-167. Ver GARDET, Louis. La pensée religieuse d’Avicenne (Ibn Si>na>).
Paris: J. Vrin, 1951, p. 130.
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sobre o poder de agir sobre a matéria exterior,21 Avicena adverte, ao men- 99
cionar o estado profético, que há distintos “modos” de profecia. Contudo,
21
AVICENA. Livro da alma, Parte IV, seções 2 e 4, respectivamente.
22
Ibid. V, 6.
23
AVICENA. Metafísica X, 1.
24
Ibid.
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100 BIBLIOGRAFIA SUMÁRIA
Profecia em Avicena: quando o humano se une ao divino
1) Kita>b al-šifa>’, II, (Livro da cura, II), que comporta o Kita>b al-nafs (Livro da alma);25
nesta obra, Avicena refere-se à capacidade profética em três ocasiões: Parte IV, caps.
2 e 4 e Parte V, cap. 6. A versão resumida, feita pelo próprio Avicena, segue de perto
o Kita>b al-šifa>’ (Livro da cura) e está no Kitâb al-najât (Livro da salvação), Livro II,
cap. 6.26
2) Na segunda parte do Kita>b al-iša>ra>t wa al-tanbi>ha>t (Livro das direções e admoestações),27
o terceiro segmento, dedicado ao estudo das almas terrestres e celestes, contém uma
“direção” sobre as faculdades da alma racional, explicadas segundo o ponto de vista da
alegoria corânica da luz ou lâmpada (Corão, XXIV, 35: su>rat al-nu>r), que Avicena reto-
ma e explicita com maior esmero na Rissa>la fî i£ba>t al-nubuwwa>t (Epístola sobre a pro-
va das profecias).28
Acrescente-se três obras que podem servir de apoio às passagens mais complexas: uma
epístola redigida entre 1012 e 1014, Risâla fî al-huddûd (Epístola das definições);29 o úni-
co texto em persa, escrito entre 1030 e 1034, o Dânèsh-nâma (Livro de ciência)30 e, por
fim, a Epístola dos estados da alma (Rissa>la fi> ah{wa>l al-nafs),31 possivelmente redigida por
Avicena também em seus últimos anos de vida, entre 1030 e 1037.
25
Tradução de BAKOŠ, Ján. Psychologie d’Ibn Si>na> d’après son oeuvre Aš-Šifa>’ II. Praga:
Éditions de l’Académie Tchécoslovaque des Sciences, 1956.
26
Tradução de RAHMAN, Fazlur. Avicenna’s Psychology (An English Translation of Kita>b
al-Naja>t, Book II, ch. 6) com notas e comentários. Oxford: Oxford Univ. Press, ¹1952; reprint
USA: Hyperion Press, Inc., 1981, 1990.
27
Tradução de GOICHON, A.-M. Livre des Directives et Remarques. Paris: J. Vrin, 1951.
28
Tradução de MARMURA, M. E. On the proof of prophecies and the interpretation of
the prophet’s symbols and metaphors. In LERNER, R.; MAHDI. M. (Orgs. com a cola-
boração de FORTIN, E. L.). Medieval Political Philosophy: A Sourcebook. ¹1963, reprint
Cornell University Press, 1972, pp. 112-121.
29
Tradução de GOICHON, A.-M. Introduction à Avicenne, son Épître des Définitions. Pa-
ris: Desclée, de Brouwer et Cie., 1933.
30
Tradução do persa de ACHENA, M.; MASSÉ, H. Le Livre de Science. Paris: Belles Lettres-
Unesco, 1986.
31
Cf. MICHOT, J. R. Prophétie et divination selon Avicenne. Présentation, essai de
traduction critique et index de l’“Épître de la sphère”. In Revue Philosophique de Louvain, t.
83, nov. 1985, pp. 512-522: apresenta a tradução da seção XIII, que circulou autônoma com
o título “Do estabelecimento da profecia”.
HYPNOS
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A TRIBUNA DE GÓRGIAS:
LINGUAGEM, RETÓRICA E OPORTUNIDADE
GORGIAS THE PUBLIC SPEAKER: LANGUAGE, RHETORIC, AND TIMING
FERNANDO CZEKALSKI*
*
Fernando Czekalski é pós-graduando na Pontifícia Univ.Católica de Porto Alegre, RS.
E-mail: fecze@terra.com.br
1
Nos dois mais importantes dicionários de língua portuguesa editados no Brasil, o signi-
ficado de retórica não é dos mais nobres. Tanto o dicionário Aurélio quanto o dicionário
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102 mo; eventualmente, é puro ultraje. Ele, o retórico, é o vilão do discurso e
aliciador de razões desprotegidas, que sempre sucumbem ao seu encanto
A tribuna de Górgias: linguagem, retórica e oportunidade
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tomar conta. A capacidade de trânsito dada por seus gêneros, o desprendi- 103
mento para relacionar-se do modo adequado com as experiências mais
Fernando Czekalski
desconcertantes dada por seus tópicos, a sutileza no provar pelo exemplo e
pelo entimema e a sagacidade necessária para conduzir a alma pelo discur-
so foram subjugados pela beleza imanente à arte. Não compreenderam que
sua beleza reside (e aparece) na sua articulação completa e não apenas em
um de seus aspectos.
Tratar de infortúnios, contudo, não é nosso desejo; ao contrário, dese-
jamos tratar de um tempo em que a retórica flanava vivaz pela pólis, arre-
batava juízos na ágora e era velada por aquele que mais lhe dedicou aten-
ção: Górgias de Leontinos. Seu cuidado para com a retórica não era produ-
to do acaso; ela foi seu único amor. E por isto, por ter olhos somente para
ela, que a remodelou profundamente. Não há dúvida sobre o fato de ter sido
este o homem que mudou e mesmo revolucionou a elaboração de discur-
sos na Grécia. Tal cuidado e atenção, refletidos em suas percepções sobre o
tema, foram considerados tão surpreendentes que a própria construção de
um discurso recebeu o nome de gorgianizar e falar ao estilo de Górgias tor-
nou-se moda. Provavelmente, a melhor ilustração desta reviravolta
discursiva foi sua famosa embaixada a Atenas, onde convenceu seus anfi-
triões a prestar socorro aos leontinenses, pois estes não conseguiam solu-
cionar suas querelas militares com os siracusanos. Os atenienses ficaram,
segundo relatos, maravilhados e não hesitaram em oferecer a ajuda solici-
tada (Frag. A 4). Feitos desta espécie fizeram com que o impacto discursivo
de Górgias fosse comparado por Filóstrato ao efetivado por Ésquilo no
teatro (Frag. A 1).5
Embora tenha sido unicamente retor, Górgias é comumente associado
pela tradição ao movimento sofístico e apresentado como um de seus
maiores representantes ao lado do não menos famoso Protágoras de Abdera.
Ora, é justamente neste interesse comum para com a linguagem que Górgias
poderia ser enquadrado como sofista e é esta mesma característica que, pa-
radoxalmente, não o qualifica como um sofista típico. Górgias, ao contrá-
rio dos sofistas, jamais se apresentou como portador de um saber enciclo-
pédico. Tampouco prometia ensinar técnicas que consumassem o sucesso
na vida pública. Sua ambição concentrava-se em um único objetivo: forjar
oradores. “Essa é a profissão que exerço, não apenas aqui, mas em toda a
5
Flávio Filóstrato, historiador romano. Viveu entre 170-244. Em sua Poética, IV,
Aristóteles afirma: “Foi Ésquilo quem teve a iniciativa de elevar de um para dois o número
de atores; ele diminuiu o papel do coro e atribuiu ao diálogo a primazia; o número de três
atores e o cenário devem-se a Sófocles”.
HYPNOS
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104 parte” (Górgias, 449b). É evidente que, numa sociedade como a grega, o bem
falar poderia ser considerado muito mais decisivo que um saber enciclopé-
A tribuna de Górgias: linguagem, retórica e oportunidade
dico. Não que isto fosse dispensável mas, afinal, de que poderia valer uma
vasta coleção de saberes se estes não pudessem ser adequadamente comuni-
cados? A comunicação eficiente do próprio saber era o elemento vital para
que não apenas o cidadão se fizesse notar mas também o sábio. Nesta pers-
pectiva, uma arte retórica não seria apenas o coroamento de uma educação,
mas sim aquilo mesmo que a efetiva publicamente. É ela que permitirá ao
cidadão ilustrado transitar com desenvoltura por todos os níveis da pólis. É
justamente por isto que a retórica se constituía como atividade eminente-
mente política, ou seja, que acontecia, se efetivava e se justificava no âmbi-
to da pólis.
Mas, que escritos de Górgias sobreviveram para testemunhar sua
revolução? Ou melhor: suas possíveis teorizações sobre o discurso estão
presentes nos escritos que chegaram até nós? Excetuando testemunhos e
fragmentos pouco maiores que algumas palavras, o tempo conservou qua-
tro fragmentos de extensão considerável das seguintes obras: o Tratado do
Não-Ser ou Da Natureza, uma Oração Fúnebre, uma Defesa de Palamedes e
um Elogio de Helena.6 Nestes fragmentos, o espírito de Górgias ainda res-
soa com força suficiente para que entendamos seu impacto. Se para eles
estivermos abertos, desarmados e sem vícios conceituais, talvez possamos
espreitar e, quem sabe, intuir o trato por ele dado à retórica.
Do catálogo de obras acima mencionado, o Tratado do Não-Ser é, de
longe, o escrito mais filosófico – e famoso – de Górgias. É também o texto
responsável por sua fama de niilista. Em si mesmo, o texto é uma longa
paráfrase feita por Sexto Empírico7 no seu Contra os matemáticos e deve,
portanto, ser tão exato quanto uma paráfrase possa permitir. Mesmo assim,
nele existem elementos suficientes que deixam transparecer o uso hábil dos
argumentos na construção do raciocínio. Ademais, tanto por sua constitui-
ção como pelo estado em que chegou até nós, tudo indica que o real moti-
vo de sua composição tenha sido, de fato, o de atacar a filosofia eleata. E,
6
Refiro-me a fragmentos substanciais que permitem análise. Contudo, entre obras perdi-
das e fragmentos de extensão ínfima, pode-se fazer um rol de suas obras: Tratado do Não-
Ser ou Da natureza, Elogio de Helena, Defesa de Palamedes, Oração fúnebre, Olímpico, Pítico,
Elogio aos habitantes de Élis, Elogio de Aquiles, A arte oratória e o Onomástico.
7
Físico e filósofo céptico que viveu no final do séc. II d.C. Existe uma outra versão do Tra-
tado, atribuída ao pseudo-Aristóteles. No opúsculo intitulado Sobre Melisso, Xenófanes e Górgias,
é feito um longo comentário explicativo sobre o Tratado de Górgias. Embora não sejam exa-
tamente iguais, as versões de Sexto e do pseudo-Aristóteles são bastante semelhantes.
HYPNOS
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com efeito, a idéia apresentada por Górgias não deixa de ser um eleatismo 105
às avessas ou mesmo – o que não seria exagero – um eleatismo pervertido.8
Fernando Czekalski
O desenvolvimento do Tratado concentra-se no aspecto ontológico
e gnoseológico. Sua preocupação é expor a incapacidade cognitiva dos ho-
mens no que tange à captação do ser e a impossibilidade – se por ventura
fosse possível captar o ser – de comunicá-lo. Não se trata, portanto, de uma
concepção niilista. Tampouco é uma ontologia do não-ser, ou seja, do ser
do não-ser, mas sim uma crítica ao dogmatismo dos que pretendem dizer o
que o ser é. Mas não é exatamente esta a perspectiva que pretendemos des-
tacar. Do Tratado citaremos uma singular passagem que permitirá recolher
uma importante percepção de Górgias sobre o discurso e, portanto, sobre
a retórica. Diz Górgias:
Na verdade, é com a palavra [8@v(@H] que identificamos algo, mas a palavra não
é nem aquilo que está à vista nem o ser: logo, aos que nos rodeiam, não comuni-
camos o ser mas sim a palavra, que é diferente das coisas visíveis. Tal como o que
é visível não se pode tornar audível e vice-versa, também o ser, porque subsiste
exteriormente, nunca se pode transformar na nossa palavra. E, não sendo pala-
vra, não se poderá comunicar a outrem (Frag. B 3, § 84).
Focando a passagem de acordo com nossa predisposição, destacamos
dois aspectos decisivos: 1) a clara distinção entre linguagem e objeto e 2) a
palavra possui um télos, cuja natureza é não somente identificar mas igual-
mente enunciar o mundo, colocando-o ao alcance de nossa compreensão,
mesmo que ela própria seja algo inteiramente diverso daquilo que enuncia
(pois linguagem e objeto são distintos). Melhor ainda: o mundo e tudo o
mais que o compõe tornam-se possíveis somente na palavra e nela é que
passam a valer. Ademais, se poderia mesmo perguntar: como seria possível
ao discurso enunciar o mundo se ele mesmo não fosse distinto do próprio
mundo? Se discurso fosse mundo e se mundo fosse discurso, um não se re-
meteria ao outro. Com Górgias, então, a palavra passa a plasmar o mundo
e, a partir disso, ela mesma (e, portanto, a linguagem) é catapultada para um
patamar até então inédito no mundo grego. Evidentemente, ao se pensar
que tudo o que existe para os homens é o que pode ser plasmado pela lin-
guagem, se quer dizer que, tudo o que existe, existe porque tem nome. O
inominado simplesmente não existe; mesmo se existir, não pode ser conhe-
8
Não se pode, contudo, esquecer ou ignorar a faceta zombeteira de Górgias. Ao final de
Elogio de Helena ele afirmará que compôs aquele discurso para “divertimento próprio”. Além
disso, como todo o Tratado não deixa de ser, em última análise, um grande argumento de
retorsão, é perfeitamente possível que sua concepção tenha sido regulada, senão pelo espí-
rito zombeteiro, pelo espírito de um puro exercício retórico.
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106 cido. E não pode ser conhecido porque não é percebido. Além disso, a fal-
ta de percepção que impede o conhecimento também impede que algo seja
A tribuna de Górgias: linguagem, retórica e oportunidade
9
HEIDEGGER, Martin. Ser e Tempo. § 7, B, p. 62-3. É de se destacar, aliás, que uma con-
cepção de 8ov(@H ao mesmo tempo tão similar, leve Górgias e Heidegger a posicionamentos
tão conflitantes. O primeiro, desiste imediatamente do ser por julgar impossível captá-lo,
ao passo que, o segundo, percorre toda sua vida tentando capturá-lo.
10
Quanto a este ponto, podemos lembrar Aristóteles. Em sua concepção retórica, metá-
foras e símiles possuem função vital no discurso, pois colocam diante dos olhos uma atuali-
dade complexa ou obscura. Metáforas e símiles permitem visualizar o que o discurso enun-
cia. Ao mesmo tempo, no De anima, III, 431 a 15, está posto que a alma jamais pensa sem
imagens. Além disto, Aristóteles considera a própria memória (:<Z:0) como impossível
sem uma imagem. Sobre isto, ver Sobre a memória, 450 a.
11
Se foi realmente pronunciado, a Oração parece relacionar-se ou com a guerra do
Peloponeso ou com a guerra de Corinto.
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querer invocar a sobriedade da razão. Mas o fim para o qual este discurso se 107
dirige é certamente alcançado: a glorificação dos soldados mortos.
Fernando Czekalski
Estes, com efeito, são exaltados não apenas por sua coragem, mas
também pela sua razão, força, justiça e lealdade aos camaradas. Se nenhu-
ma qualidade faltava a esses guerreiros é pelo fato de que consideravam “ser
esta a lei mais divina e universal: falar e calar, fazer e deixar fazer o que se
deve no momento devido” (Frag. B 6). Se estes guerreiros realmente pos-
suíam esta qualidade ímpar ou se Górgias deliberadamente neles a enxer-
tou tendo em vista o louvor, não é algo tão importante. O que se afigura
como decisivo é que esta é a única passagem de seus escritos remanescentes
onde a idéia de 6"4DovH, o momento oportuno, é mencionada. No entanto,
Dionísio de Halicarnasso, ao afirmar que “nenhum retor ou filósofo estu-
dou a fundo a arte da oportunidade, nem mesmo Górgias de Leontinos, o
primeiro que se dedicou a escrever sobre este assunto, escreveu algo digno
de menção” (Frag. B 13) parece não deixar dúvidas de que uma teorização
sobre o tema foi realizada por Górgias. Onde teria sido depositada tal re-
flexão, porém, não se sabe.
É provável que jamais venhamos a saber ao certo a extensão e pro-
fundidade das reflexões de Górgias sobre o 6"4DovH, até mesmo porque, como
afirmamos, é apenas na Oração fúnebre que ocorre a menção ao 6"4DovH e
seu conteúdo, distribuído em ínfimas vinte e três linhas não permite maio-
res inferências. Mesmo assim, o fato mesmo de Górgias ter realizado tal
reflexão já é algo notável. Embora seja quase irresistível não pensar na pos-
sibilidade de relacionar o 6"4DovH a alguma ontologia gorgiânica sobre o
tempo, importa aqui pensar que tal idéia representa mais uma revolução no
que diz respeito ao discurso. Antes de qualquer coisa, um discurso orienta-
do pelo 6"4DovH é um discurso na oportunidade, isto é, na ocasião própria
sobre algo próprio. Este princípio faz com que, inevitavelmente, o discur-
so gorgiânico se regule pelos fatos do mundo, opondo-se a qualquer discur-
so que pretenda manter-se puro em uma esfera transtemporal e que auto-
nomamente pretenda regular ou explicitar o mundo de sua própria esfera
independente. Como poderia, aliás, um discurso enunciar o mundo, torná-
lo visível, sem mesmo se deixar afetar pelo mundo? Nos limites dessa
racionalidade, não se poderia cogitar, por exemplo, um discurso que afir-
masse, de modo categórico, que justiça é ‘x’ e que o conceito de justiça, agora
cristalizado, possa se aplicar a todos os casos, todos os povos, todos os tem-
pos. Não; um fato novo ao conceito – e por isso mesmo não contemplado
anteriormente por ele – sempre pode surgir. Discursar oportunamente é
essencialmente discursar com os fatos do mundo.
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108 A intuição do 6"4DovH como senso de oportunidade regulador do dis-
curso revela-se ainda mais surpreendente por possuir uma função bastante
A tribuna de Górgias: linguagem, retórica e oportunidade
similar com aquilo que Aristóteles mais tarde viria a configurar como tópi-
co.12 O 6"4DovH mencionado por Górgias não reflete, absolutamente, algum
oportunismo interesseiro e conveniente; reflete, isto sim, uma situação
própria pela qual o discurso deve se orientar. E é da alçada do retor possuir
o espírito suficientemente apurado para verificar as várias oportunidades,
as várias circunstâncias de uma situação para bem construir seu discurso.
A perspectiva do 6"4DovH fica bastante evidente em um discurso que
sobreviveu in extenso: Defesa de Palamedes. É este o mais dinâmico e ritmado
discurso sobrevivente de Górgias. Seu objetivo? Representar a fala de auto-
defesa de Palamedes perante o tribunal.13 Este discurso encerra passagens
ilustrativas sobre a aplicação do 6"4DovH e com ele agora nos ocuparemos,
apresentando duas destas passagens. Estas passagens, que pensamos ser exem-
plares, deverão esclarecer a funcionalidade do 6"4DovH.
O primeiro elemento que se deve considerar é a estrutura do discur-
so. Toda a estrutura da Defesa de Palamedes é orientada pela questão da in-
justiça – esta, podemos dizer, configura o tópico – e é próprio do retor
perceber as possibilidades argumentativas deste caso justamente através das
oportunidades discursivas que justiça e injustiça oferecem. “Uma acusação
não demonstrada provoca um espanto evidente e, por causa desse espanto,
o discurso fica forçosamente bloqueado se eu nada descobrir a partir da
própria verdade e da presente situação de constrangimento, perante mes-
tres mais perigosos do que inventivos” (Frag. 11 a, § 4). Esta passagem re-
flete a conexão imprescindível entre mundo e discurso. A oportunidade
discursiva deve ser buscada no fato vivido, isto é, na acusação não demons-
trada que motiva o próprio discurso. É para não ser vitimado por alguma
espécie de bloqueio que o discurso se volta para a presente situação de cons-
trangimento, desencadeada pela acusação não demonstrada. O único pre-
ceito extra discursivo é a atitude de se voltar para a própria situação.
12
Aristóteles não define com precisão o que é exatamente um tópico, nem mesmo em sua
obra Tópicos. Sua melhor definição está na Retórica, 1358 a, onde ele dirá que tópicos são os
assuntos comuns à ética, política, física e outras disciplinas. De modo geral, um tópico é o
lugar onde a relação entre os conceitos têm sua possibilidade de articulação efetivada. As-
sim, p. ex., o tópico de causa, que pode estar presente tanto em estudo sobre física como
em um estudo sobre política.
13
De acordo com a tradição grega, Ulisses havia simulado loucura para não participar da
guerra de Tróia. Palamedes desmascarou-o e Ulisses, não esquecendo o fato, tramou uma
cilada para Palamedes que veio a culminar na morte deste na mesma guerra. O aconteci-
mento acabaria por assumir forma exemplar da morte injusta.
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Ora, o movimento para a própria circunstância é subsidiado pelo 109
senso de oportunidade. É ele, o 6"4DovH, que permitirá a Górgias operar com
Fernando Czekalski
um outro tópico que é, a saber, o da necessidade. Com efeito, Palamedes,
de acordo com o discurso, acaba tendo o reconhecimento de seu acusador
tanto por sua engenhosidade, habilidade e inventividade mas, também, por
sua loucura, caracterizada por uma suposta traição à Grécia. “E contudo,
de que forma há-de ser forçoso acreditar num homem que, no mesmo dis-
curso sobre a mesma pessoa, afirma a respeito dela duas coisas tão opostas?”
(Frag. 11 a, § 25). A questão é simples: não pode haver duas verdades simul-
tâneas sobre uma mesma questão. Ou Palamedes é culpado ou Palamedes
não é culpado. Mas a ‘simplicidade’ não acaba aqui; não havendo necessi-
dade, simplesmente não há causalidade no que é dito e, não havendo causa-
lidade, não há fundamento para a acusação apresentada. Não há causa evi-
dente para a acusação. Deste modo, ela é automaticamente rebaixada para
o patamar da mera impressão pessoal do acusador. E este, convém que não
esqueçamos, preocupa-se unicamente com seu desejo de vingança.
Que tu não conheces bem aquilo de que me acusas, torna-se assim evidente.
Resta então dizer que, não sabendo, inventas. Então tu, ó mais audacioso dos
homens, baseando-se na opinião, que é a coisa menos digna de fé, e desconhecen-
do a verdade, ousar condenar um homem à morte? Como sabes que ele praticou
tal ação? Com certeza que é dado a todos formar uma opinião a respeito de tudo,
e nisso tu em nada és mais sábio do que os outros. Nem é nos que julgam que
sabem que convém depositar confiança, mas nos que sabem; nem há de dar mais
crédito à opinião do que à verdade, antes pelo contrário, há que dar mais crédito
à verdade do que à opinião (Frag. 11 a, § 24).
Seria natural que, após rebaixar a acusação ao nível da impressão
pessoal do acusador, este fosse igualmente lançado a uma situação embara-
çosa, pois a mera impressão pessoal é *ov>", é opinião, e opinião é algo des-
tituído de necessidade e verdade. Como, afinal de contas, uma acusação
embebida na opinião poderia vingar? O essencial a ser percebido é que a
argumentação se estrutura e assume sua forma a partir do 6"4DovH . É a
situação específica vivida por Palamedes que permite a Górgias pensar e
argumentar que o acusador nem mesmo de uma acusação verdadeira
dispõe. E isto depõe ainda mais contra Ulisses; tão cego de ódio ele estava,
tão obcecado estava em seu desejo de vingança que sua falsa acusação,
inconsistente devido à paixão, revela, finalmente, sua má-fé e, portanto, seu
caráter pérfido. Inocente, é o veredicto.
Do que até aqui se viu, o 6"4DovH é formalmente válido para qualquer
discurso como elemento ordenador mas sempre assume o conteúdo espe-
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110 cífico de uma situação específica, pois a oportunidade de cada situação é
própria e única. Este é, portanto, um novo indício sobre o pensamento
A tribuna de Górgias: linguagem, retórica e oportunidade
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constituição, vê-se o quão importante será a capacidade de se perceber as 111
oportunidades residentes em cada situação. No caso presente, a verdade do
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discurso, ou a verdade a que se propõe este discurso, está em inocentar
Helena e esta verdade somente virá à tona devido seu ordenamento e este,
por sua vez, é regulado pelo senso de oportunidade, o 6"4DovH É por isto
que Górgias pode escrever: “O que eu pretendo, ao dar uma lógica ao dis-
curso, é libertar da culpa quem sofre de tão má reputação, desmascarar os
que pela calúnia enganam e, mostrando a verdade, fazer cessar a ignorân-
cia” (Frag. 11, § 2). Uma vez mais, a lógica deste discurso é regulada pela
situação específica a que se refere.
O senso de oportunidade faz o retor perceber e avaliar as várias pos-
sibilidades para que Helena tenha agido do modo como agiu e, a partir da
análise destas possibilidades, elabora seu discurso. Antes de entrar no mé-
rito, a beleza da protagonista do conflito é mencionada. Beleza de ascen-
dência divina (Frag. 11, § 3), ela mesma já deveria se afigurar como possí-
vel motivo causador de atitudes irrefletidas por parte de homens mais an-
siosos. Tal fato, contudo, já era conhecido e não haveria necessidade de
insistir neste ponto, mesmo porque, o “dar-se informações a quem já está
informado traz credibilidade mas não propicia prazer” (Frag. 11, § 5).
É importante destacar esta sutileza. Mencionar os belos e harmonio-
sos traços de Helena não é simplesmente um movimento supérfluo (na
medida em que isto já era sabido por todos); pelo contrário, tal alusão tem
como propósito afirmar a idéia de que a argumentação vindoura baseia-se
em algo realmente novo. O surpreendente é que esse algo novo que a argu-
mentação visa apresentar é entrelaçado com conceitos bastante familiares
aos gregos. “Foi certamente pelos desígnios do Destino, pelas resoluções dos
deuses e pelos decretos da Necessidade, que ela fez o que fez, quer tenha
sido levada à força, convencida pelos discursos, ou arrebatada pelo Amor”
(Frag. 11, § 6). Estas são, para Górgias, as únicas causas possíveis para o ato
do qual Helena era acusada. A relevância do 6"4DovH, aqui, é extrair o ex-
traordinário do ordinário que, neste caso, se manifesta através dos familia-
res conceitos de destino (JbP0) e necessidade (•<V(60).
Todo o desenvolvimento da defesa de Helena decorre desta premis-
sa. Seria, contudo, algo simplório inocentar a grega culpando o destino ou
a necessidade. Deter o discurso neste ponto seria uma trivialidade, pois é
simplesmente impossível lutar contra a Necessidade ou o Destino. Do
mesmo modo, a vontade divina é infinitamente mais poderosa que a von-
tade humana; se não fosse mais poderosa, nem mesmo poderia ser divina.
“O mais forte comanda e o mais fraco vai atrás. A divindade é mais pode-
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112 rosa que o homem, tanto na força como na sabedoria e em tudo o mais”
(Frag. 11, § 6).16 Este raciocínio é fundamental, pois embasa o seguinte para,
A tribuna de Górgias: linguagem, retórica e oportunidade
em seguida, com ele se mesclar: se Helena agiu como agiu por ser fisicamente
mais fraca que Páris, se, por ser mais fraca não lhe seria possível impedir a
atitude violenta e se o mais forte comanda e o mais fraco vai atrás, Helena
não poderia, mesmo se desejasse, evitar o desfecho. Também por este viés
Helena não pode ser condenada, pois é “evidente que procedeu injustamente
quem a raptou e ultrajou, enquanto ela teve a infelicidade de ser raptada e
ultrajada. Logo, é o bárbaro que se lançou a esta bárbara empresa que me-
rece ser responsabilizado pelo discurso, pela lei e pela ação” (Frag. 11, § 7).
A grande trama da argumentação, contudo, se dá na possibilidade
restante: ter sido Helena seduzida pelo discurso. É nesse ponto, também,
que surgem outras percepções de Górgias sobre o discurso. “O discurso é
um senhor soberano que, com um corpo diminuto e quase imperceptível
leva a cabo ações divinas. Na verdade, ele tanto pode deter o medo como
afastar a dor, provocar a alegria e intensificar a compaixão” (Frag. 11, § 8).
Como anteriormente, a possível causa da ação é caracterizada como uma
causa irresistível. Mas, agora, a grande novidade é que a força motriz do
polêmico ato é o discurso. Não um discurso qualquer, mas um discurso
construído que visa o fim específico para o qual ele se propõe. E frente a
um discurso assim pensado e construído, nem Helena nem qualquer outra
pessoa parecem ter forças para resistir. O que o torna, de fato, um senhor
soberano, é sua capacidade de pôr em movimento os ânimos de quem por
ele é afetado. Afetar e mover os ânimos é afetar o receptor do discurso
integralmente. O efeito do discurso gorgiânico é o contrário exato do
efeito produzido pelo olhar das górgonas; este imobiliza, aquele põe em
movimento.
O decisivo movimento produzido pelo discurso não é, obviamente,
de ordem motora. Trata-se, isto sim, de trazer o ouvinte para si, ou seja,
fazer com que o ouvinte passe a comungar com o discurso que lhe é trans-
mitido. O movimento proposto é a mudança do juízo. A transmissão do
que é dito e sua conseqüente aceitação não pode, contudo, se dar em uma
única estocada ou de modo instantâneo. “Eu concebo e designo igualmen-
te toda a poesia como um discurso com ritmo. Um temor reverencial, uma
comovida compaixão e uma saudade nostálgica insinua-se nos que a ouvem.
16
No diálogo Górgias, 483 d, Cálicles afirma: “o mais poderoso deve dominar o mais fraco
e gozar as vantagens da sua superioridade”. O mesmo Platão, no livro I da República, faz
outra personagem, o sofista Trasímaco, defender ponto de vista semelhante.
HYPNOS
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Por intermédio das palavras, o espírito deixa-se afetar por um sentimento 113
especial, relacionado com sucessos e insucessos de pessoas e acontecimen-
Fernando Czekalski
tos que nos são alheios” (Frag. 11, § 9). O discurso, seja ele qual for, afeta
seja qual for o espírito. Em vista disso, um discurso preparado de modo
especial parece poder afetar de modo igualmente especial seu receptor. O
discurso parece poder ser capaz de atravessar todos os poros para atingir o
espírito em cheio, tal qual uma flecha. O discurso, esse corpo diminuto mas
de informação concentrada, pode afetar de modo tão profundo que altera
a percepção do receptor sobre aquilo que lhe é enunciado. Nesta alteração
floresce algo que lhe altera o mundo e o juízo, tornando-os comuns ao dis-
curso enunciado. Floresce a persuasão.
Na passagem acima mencionada, Górgias alarga consideravelmente
o entendimento sobre a poesia ao declarar que o ritmo a constitui e lhe
caracteriza. Nesta perspectiva, o seu Defesa de Palamedes é um excelente
poema pois ritmo é justamente o que não lhe falta. Sua alusão ao ritmo pode
nos fazer inferir que o discurso deve pulsar no ritmo do receptor, desen-
volver-se sincronicamente com ele.17 Embora isto faça sentido, tal concep-
ção por parte de Górgias reflete apenas seu grande entusiasmo pela prosa e
o desejo de elevá-la a um patamar tão bem conceituado quanto aquele no
qual a poesia já estava tão bem assentada. Mais importante é sua intuição
de que um discurso ritmado possui a singular capacidade de preparar me-
lhor sua própria recepção por parte do ouvinte. Um discurso linear e cons-
tante anestesia, digamos, a capacidade de recepção.18 Por isso, muitas vezes,
a capacidade de improvisar pode ser simplesmente decisiva e mais uma vez
Górgias parece ter sido o primeiro a dar-se conta da importância do impro-
viso para uma boa comunicação (Frag. A, § 1a).
Ao mesmo tempo, o discurso deve, se não partir de uma pré-com-
preensão, trazê-la em si, de modo que os ouvintes possam identificá-la, pois
esta pré-compreensão é fundamental para a melhor recepção do discurso.
Ora, nada mais elementar ao homem que suas próprias impressões. Um
intróito que enuncia reações a impressões comuns como sucesso-insucesso,
ventura-desventura, atividade-passividade, etc., faz despertar o sentimento
adequado ao tema. Assim, por exemplo, se um discurso versa sobre a
temática ‘casamento’, é conveniente despertar o sentimento de confiança
17
É exatamente por causa disto que as tematizações sobre a retórica em Platão e Aristóteles
darão especial atenção ao conhecimento da alma. Se conheço a alma, posso construir um
discurso que a afetará mais eficazmente.
18
Não se esqueça que o pensamento Górgias gravitava em torno da ágora, ou seja, eram
discursos preparados para que fossem ouvidos e não lidos.
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114 ou desconfiança, cortesia ou descortesia ou quaisquer outros sentimentos
similares. Também aqui o 6"4DovH tem importante papel ao se configurar
A tribuna de Górgias: linguagem, retórica e oportunidade
19
Sobre a relação entre medicina e discurso ver Górgias, 456 b. Cabe ressaltar que a rela-
ção (metafórica ou não) entre medicina e linguagem aqui mencionada, combinada com o
uso de expressões como ‘inspirados pelos deuses’, ‘força da palavra-mágica’ e ‘encantamen-
to’ no §10, também pode indicar algum contato de Górgias com o filósofo (e místico)
Empédocles de Ácragas. Segundo Diógenes Laércio (VIII, 58), Górgias teria não apenas tes-
temunhado Empédocles a praticar sortilégios mas também teria sido seu discípulo. Em vis-
ta disso, a capacidade do discurso ser um corpo diminuto capaz de atravessar os poros não
é mero malabarismo lingüístico, pois é conhecida a importância dos poros no pensamento
de Empédocles. Além do próprio Diógenes Laércio, também Platão sugere uma ligação mais
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Pode ser que haja violência; no entanto, é importante destacar que tal 115
argumento insere-se em um plano moral e a moral, para Górgias, não rela-
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ciona-se com a manufatura de discursos. Ou melhor: a retórica, entendida
como técnica para fabricação de discursos, não encerra em si mesmo moral
alguma. Nem mesmo poderia. A retórica, defende-se Górgias, “deve ser
usada com justiça. Portanto, entendo que, se um homem adquire uma pre-
paração retórica e depois se serve deste poder e desta arte para praticar o
mal, não há o direito de odiar e desterrar da cidade aquele que o ensinou”
(Górgias, 457 b). De fato, condenar um mestre retórico por algum de seus
alunos elaborar discursos odiosos seria o mesmo que condenar um profes-
sor de química por ter ensinado algum aluno a manipular certas substân-
cias e este, depois de apropriar-se de tal conhecimento, manufaturar, por
exemplo, armas químicas. Do mesmo modo como se deve condenar o mau
químico e não a química, deve-se condenar o mau retórico e não a própria
retórica. Mas, para além desta perspectiva, a retórica, mesmo que opere com
regras, tem espaço para a inventividade, para a criação livre, para a supera-
ção, mesmo que momentânea, de suas próprias regras. Por isto, além de uma
técnica, a retórica também é arte. É no espaço retórico que a lida com as
palavras ou com a linguagem pode assumir-se e postar-se com arte. E
Górgias, indiscutivelmente, era um artista do discurso. Uma arte que se
autocensura ou impõe a si mesma preceitos morais é sempre suspeita.
O fato é que o Elogio de Helena, devido sua inusitada conclusão, consti-
tui-se, ainda, no discurso mais intrigante de Górgias.
Com este discurso afastei a ignomínia que pesava sobre uma mulher e permaneci
fiel ao objetivo que fixei no início do discurso; tentei destruir a injustiça duma
censura e a ignorância duma opinião; quis fazer deste discurso um elogio para
Helena e um divertimento para mim. (Frag. 11, § 21)20
Galhofa? Mesmo que seja, isto em nada invalida a perspicácia dos racio-
cínios e seu firme trançado. Ao mesmo tempo, se não for uma galhofa, os
raciocínios continuam perspicazes e seu trançado se mantêm igualmente fir-
me. E talvez seja exatamente nisto que reside o verdadeiro gracejo (caso te-
nha ocorrido o gracejo).
estreita entre o pensamento de Empédocles e Górgias (Menon 76 a). Finalmente, como am-
bos eram sicilianos, é perfeitamente possível tal ligação.
20
É curioso que na República, 376 d, onde Platão discute a relação entre educação, música
e ginástica, esteja colocado o seguinte: “Eduquemos estes homens em imaginação, como se
estivéssemos a inventar uma história e como se nos encontrássemos desocupados”. Terá sido
a reflexão posterior originada por algum desejo de recrear ou divertir o espírito? Se sim, isto
em nada invalida a perspicácia dos raciocínios platônicos e seu firme trançado. Se não, os
raciocínios continuam perspicazes e seu trançado se mantêm igualmente firme.
HYPNOS
ano 11 / nº 16 – 1º sem. 2006 – São Paulo / p. 101-117
116 Seja como for, neste encômio subsistem, se não as mais significativas,
pelo menos as mais explícitas percepções de Górgias sobre o discurso. Jo-
A tribuna de Górgias: linguagem, retórica e oportunidade
21
Na Poética, I, Aristóteles afirma: “Costuma-se dar esse nome mesmo a quem publica
matéria médica ou científica em versos, mas, além da métrica nada há de comum entre
Homero e Empédocles; por isso o certo seria chamar poeta ao primeiro e, ao segundo, an-
tes naturalista do que poeta. Semelhantemente, quem realizasse a imitação combinando todos
os metros, como Querêmon na rapsódia Centauro, mesclada de todos os metros, também
devia ser chamado poeta”.
22
NIETZSCHE, Friedrich. Da retórica, p. 44-5.
HYPNOS
ano 11 / nº 16 – 1º sem. 2006 – São Paulo / p. 101-117
REFERÊNCIAS 117
Fernando Czekalski
ARISTÓTELES. Poética. In: A poética clássica. Tradução de Jaime BRUNA. 7ª ed.
São Paulo: Cultrix, 1997. p. 19-52.
GÓRGIAS. Testemunhos e fragmentos. Tradução, comentário e notas de Manuel José
de Souza BARBOSA e Inês Luisa de Ornellas e CASTRO. Lisboa: Edições
Colibri, 1993. Edição Bilíngüe Grego - Português.
HEIDEGGER, Martin. Ser e Tempo. Tradução de Márcia de Sá CAVALCANTE. 6ª.
ed. Petrópolis: Vozes, 1997. Parte I.
NIETZSCHE, Friedrich. Da retórica. Prefácio e tradução de Tito Cardoso da
CUNHA. 2ª.ed. Lisboa: Passagens, 1999.
PLATÃO. Górgias. Introdução, tradução do grego e notas de Manuel de Oliveira
PULQUÉRIO. Lisboa: Edições 70, 1992.
_____. República. Introdução, tradução do grego e notas de Maria Helena da Rocha
PEREIRA. 8ª ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1996.
HYPNOS
ano 11 / nº 16 – 1º sem. 2006 – São Paulo / p. 101-117
Resenha crítica
*
Resenha de trabalhos apresentados em vários colóquios sobre Xenofonte leitor de Sócrates
(no prelo).
1
G. GIANNANTONI, Socratis et Socraticorum Reliquiae, collegit, deposuit, apparatibus
notisque intruduxit, Napoli, Bibliopolis: 1990. Está em fase de preparação, sob s organiza-
ção de Emidio Spinelli com a colaboração técnica de G. Iannotta, A. Manchi e D. Papitto,
e a coordenação de V. Celluprica, um hipertexto digitas das Reliquiae, que contém os tex-
tos recolhidos por Giannantoni e os relativos índices das fontes e dos nomes, aos quais se
acrescentam dois novos apêndices, respectivamente, o texto completo das Nuvens, de
Aristófanes, e os escritos socráticos de Xenofonte.
2
Como promotores da renaissance dos estudos socráticos, dos quais nos ocuparemos nes-
ta resenha, citamos, sem pretender de algum modo aproximar suas variadas posições, Donald
Morrison, Louis-André Dorion, Michel Narcy e Livio Rossetti.
3
Um Sócrates filho apenas do testemunho platônico é aquele de Gregory Vlastos e, em
geral, de grande parte dos estudiosos norte-americanos. A copiosa messe de monografias
publicadas nos Estados Unidos a partir do início dos anos noventa tem, de fato, como ob-
jeto quase que exclusivamente Plato’s Socrates, como aparece no título de um dos mais co-
nhecidos volumes de T.C. Brickhouse e N.D. Smith (New York-Oxford, Oxford University
Press: 1994).
HYPNOS
ano 11 / nº 16 – 1º sem. 2006 – São Paulo / p. 118-124
paradigmático a recente reavaliação de te moral (Jean-Baptiste Gourinat, La 119
Xenofonte,4 um autor freqüentemente dialectique de Sócrates selon les
Resenha crítica
lido à luz do que “não” soube escrever, ‘Memorables de Xénophon’; Hugues-
nem ser em relação a Platão, ao invés Oliver Ney, Y-a-t-il um art de
de ser considerado pelo que ele foi ca- penser? La techné manquante de
paz de compreender e transmitir in- l’enseignement socratique dans les
dependentemente de seus contemporâ- Mémorables de Xénophon). Uma
neos. “arte” dialética que tende não tanto a
O Colloque International de refutar os adversários de Sócrates,
Philosophie Ancienne “Xénophon et como acontece em Platão, mas antes
Socrate”, que teve lugar em Aix-en destinada à paide…a, aos amigos e com-
Provence, de 6 a 9 de novembro de panheiros (François Renaud, Les
2003, por iniciativa de Alonso de Mémorables de Xénophon et le
Tordesilhas (Université de Provence, Gorgias de Platon. Etude comparative
Aix) e Michel Narcy (CNRS, Paris), de s stratégies de questionnement; Livio
representa talvez uma das tentativas Rossetti, Savoir imiter c’est connaître:
que mais teve sucesso na tarefa de libe- le cas de Mémorables III,8). Alonso de
rar Xenofonte do jugo da “superiorida- Tordesilhas (Socrate et Prodicos dans
de filosófica” do testemunho platônico. les Mémorables de Xénophon) mos-
A variedade e a riqueza especulativa dos trou quanto, em Xenofonte, a idéia de
temas que surgiram no curso dos traba- uma dialética “moral” está ligada à con-
lhos e, sobretudo, a peculiaridade des- cepção socrática da linguagem, e quan-
tes temas em relação àqueles tratados to essa concepção depende, por sua vez,
por Platão, fazem surgir um Sócrates de um sofista como Pródico. As contri-
totalmente novo, digno alter ego daque- buições de Louis-André Dorion
le platônico. Encontramo-nos, por (Socrate et l’oikonomía), Vana
exemplo, diante de uma dialektik¾ Nikolaïdou-Kyrianidou (Autonomie et
tšcnh estreitamente ligada ao conceito obéissance. Le maître ideal de
de ™gkr£teia, e portanto eminentemen- Xénophon face à son ideal de prince),
4
Se trata de uma reavaliação que, em âmbito anglo-saxão, não se restringe mais aos escrtios
de Donald Morrison (como a sua contribuição já clássica On Professor Vlastos’s Xenophon,
in: Ancient Philosophy, VII, 1987, pp. 9-22). Os ensaios organizados por Paul Van Der Waerdt
(The Socratic Movement, Ithaca, NY, Cornell University Prees: 1994) mostraram como nos
Estados Unidos há estudiosos interessados em um Sócrates não exclusivamente platônico
e, no caso, “xenofontiano”. Neste sentido se deve colocar o comentário pontual das Memo-
ráveis, escrito pela estudiosa australiana Vivienne J. Gray (The Framing of Socrates. The
Literary Interpretation of Xenophon’s Memorabilia, Suttgart, Steines: 1998). Confirmando esta
tendência de estudos, um dos últimos volumes da Ancient Philosophy (XXIII, 2003) contém,
uma acurada revisitação da memória de Morrison, Xenophon’s Socrates on the Just and the
Lawful, que saiu na mesma revista em 1987 (VII, pp. 329-347), assinada por David M. Johnson
(pp. 255-281). É lícito agora esperar uma réplica de Morrison em um dos próximos núme-
ros da Ancient Philosophy...
HYPNOS
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120 e Domingo Plácido (L’historicité due abrindo caminho para novos desenvol-
personnage de Socrate dans vimentos da questão socrática. Outros
Resenha crítica
5
A interpretação socrática do filólogo clássico e historiador das religiões Walter F. Otto
está profundamente ligada ao testemunho de Xenofonte. Dos seus escritos socráticos iné-
ditos (cerca de 2000 folhas manuscritas) está para sair, em tradução italiana, o curso dado
em Königsberg, em 1943-1944: Socrate e l’uomo greco, editado por STAVRU, A. Milano,
Marinotti: 2005.
6
XÉNOPHON, Mémorables, livre I, texte étabili par M. Bandini et traduit par L.-A.
Dorion, Paris, Les Belles-Lettres: 2000.
7
O número da Philosophie Antique que saiu em 2001 (Lille, Pesses Universitaires du
Septentrion) se intitula de fato Figures de Socrate. Isto representa o ponto de chegada de um
programa articulado de pesquisa, que nasceu por iniciativa de Michel Narcy e Gabriele
Giannantoni do CNRS, em colaboração com o Centro di Studio del Pensiero Antico.
HYPNOS
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E se uma semelhante abordagem zendo assim justiça à sua insuperável 121
parece hoje pertencer aos estudiosos grandeza.8
Resenha crítica
francófonos (franceses e canadenses, no Em explícita continuidade com o
caso de Dorion), o ciclo de conferên- congresso de Aix e o seminário
cias dado por Livio Rossetti em Nápo- napolitano de Rossetti, teve lugar as
les demonstra como esta abordagem “Prime Giornate di Studio Sulla
está começando a se afirmar também na Letteratura Socratica Antica”, 9 que
Itália. Em um simpósio intitulado “O aconteceu em Senigallia (Ancona) de 17
universo dos diálogos socráticos”, que a 19 de fevereiro de 2005, por iniciati-
aconteceu de 26 a 30 de janeiro de 2004, va do Departamento de Filosofia da
em Nápoles, no Instituto Italiano para Universidade de Perúsia (onde está o
os Estudos Filosóficos, Rossetti de fato próprio Livio Rossetti, portanto), em
mostrou como o paradigma proposto colaboração com o Município de
em Aix pode ser aplicado também ao Senigallia e com a patrocínio de algu-
enorme corpus dos sokratikoi logoi, mas importantes instituições culturais
documentos preciosos para reconstruir (a International Plato Society, o Centre
e circunstanciar as dinâmicas dos diálo- d’Études sur la Pensée Antique “Kairos
gos socráticos. No momento em que kái Logos” de Aix-em-Provence, e o
estes lógoi são considerados um conjun- Instituto Italiano per gli Studi filosofici
to do qual a obra platônica é uma par- di Napoli). Deste importante congres-
te, mas somente uma parte, torna-se so surgiu com mais força a necessidade
possível ter uma idéia das constantes, de elaborar um Sócrates não mais fun-
características de gênero, lógica interna dado exclusivamente no testemunho
e linhas de desenvolvimento, e assim platônico. Um atento exame das fontes
ver sob uma nova luz todo um perío- deixa claro como o processo de
do literário e filosófico. Isto significa, “socratização” da filosofia, que se esta-
por um lado, compreender que os assim beleceu em Atenas na primeira metade
chamados socráticos “menores” foram do IV século a.C., graças à difusão ca-
bem mais do que simples contemporâ- pilar dos sokratikoi logoi, vai muito
neos de Platão; por outro, enquadrar além do corpus platonicum, impondo-se
corretamente o contexto no qual um como um fenômeno literário sem pre-
gênio como Platão agiu e se afirmou, fa- cedentes, capaz de suplantar qualquer
8
Estas e outras importantes teses sobre a gênese e o desenvolvimento dos diálogos
socráticos estão também no centro das atenções das seguintes contribuições de Rossetti. Le
dialogue socratique in statu nascendi, in Philologie Antique, I, 2001: Figures de Socrate, pp.
11-35; The sokratikoi logoi as a Literary Barrier. Toward the Indentification of a Standard
Socrates, in Socrates 2400 years Since His Death, a cura di V. Karasmanis, Athina, ECCD:
2004, pp. 81-94; Le contexte littéraire dans le quel Platon a écrit, in La philosophie de Platon,
2, a cura di M, Fattal, L’Harmattan, Paris, 2005, pp. 51-80.
9
Um dossiê do congresso, com programa, resumos e ensaios introdutórios, está disponí-
vel on line no site www.socratica2005.info.
HYPNOS
ano 11 / nº 16 – 1º sem. 2006 – São Paulo / p. 118-124
122 outro gênero de escrita filosófica (Livio Sofista), com os quais se pode distinguir,
Rossetti, L’invenzione dei dialoghi e até mesmo contrapor, o pensamento
Resenha crítica
10
Sobre as profundas implicações do fenômeno literário e filosófico dos socrakikoi logoi
e sobre outras questões fundamentais que surgiram no curso dos trabalhos, se realizou, como
conclusão do congresso, um profícuo debate, coordenado por Mauro Tulli, entre Mario
Vegetti, Givanni Casertano e Giovanni Cerri.
11
A. Labriola. La dottrina di Socrate secondo Senofonte, Platone ed Aristotele. Stamperia della
Regia Università di Napoli: 1871. Recentemente o ensaio de Labriolafoi reimpresso como
introdução à edição dos Memoráveis de Xenofonte, organizada por Anna Santoni (Milão,
Biblioteca Universale Rizzoli: 2001).
12
R. Mondolfo, “Socrate” capítulo central dos Moralisti gregi: la coscienza morale da Omero
a Epicuro (primeira edição: Moralistas griegos: la consciencia moral, de Homero a Epicuro.
Buenos Aires, Imán: 1941), Tradução italiana de Castigliano, organização de V.E. Alfieri,
Milão, Riccardi: 1960.
HYPNOS
ano 11 / nº 16 – 1º sem. 2006 – São Paulo / p. 118-124
chez Socrate et Xénophon) demons- pois permite pesquisas, também cruza- 123
trou como a concepção da teoria da das, de vocábulos, formas, expressões,
Resenha crítica
yuc» por Xenofonte, que em Aix tinha frases, loci e assuntos em todo o corpus
aparecido com uma conotação nitida- platonicum. Emido Spinelli apresentou
mente moral, pode prestar-se também a edição eletrônica das Socratis et
a uma interpretação “cosmológica”, se Socraticourm Reliquae, que será lançada
não mesmo “física”. em breve, e cuja particularidade consis-
Outra questão de difícil resolução te na possibilidade de recuperar e
em Platão é o tema da definição visualizar as menções textuais elabora-
socrática que em Xenofonte, ao contrá- das por gramáticos no apparatus superi-
rio, aparece desvinculada da teoria das or da edição em papel. Outra novidade
idéias – e portanto suscetível de uma que estará disponível em breve é a bi-
análise livre de sobreposições bliografia platônica, organizada por
doutrinais (Alessandro Stavru, Aporia Luc Brisson (Pythia. Bibliographie
o definizione? L’enigma del ti esti nei platocienne), apresentada no congresso
Socrática di Senofonte). Questões por Benoit Caselnérac. Em relação à
como aquela da kalokagaq…a e edição de papel, este Cd-rom, patroci-
basile…a, fundamentais para se com- nado pelo CNRS, pelo editor Vrin e
preender aspectos fundamentais do pelo Conseil National du Livre, conta-
Sócrates de Xenofonte menos conheci- rá com um motor de procura em con-
do (como aquele do Encômio e do dições de realizar pesquisas bibliográfi-
Hierão), foram examinadas por cas a partir de palavras-chave, de tre-
Alexander Alderman (Phronesis in chos da obra platônica, de nomes pró-
Xenophons’s Oeconomicus in Plato’s prios de autores e de temas principais
Politicus) e Stefan Schron (Di da literatura secundária sobre Platão.
Vorstellung des xen pphontischen Um outro instrumento em vias de rea-
Sokrates von Herrschaft um das lização é Un Eutifrone interattivo. Il
Erziehungsprogram des Hierons). nuovo “Dialoga con Socrate” (organiza-
Uma sessão do congresso foi do por Livio Rossetti, com a colabora-
dedicada à apresentação dos instrumen- ção de Alessandro Treggiari), uma edi-
tos informáticos sobre Sócrates já no ção eletrônica com um objetivo princi-
comércio ou que estão para ser publi- palmente didático do hipertexto homô-
cados. O funcionamento do Plato nimo que já saiu em 1995 com a orga-
Lexicon (1), lançado em 2003,13 foi ilus- nização de Rossetti.14
trado por Emmanuele Vimercati. Tra- Um outro anel nesta singular cor-
ta-se de um instrumento indispensável rente de eventos é, por fim, o XVI
para qualquer trabalho sobre Platão, Simpósio de Olímpia (25 a 30 de julho
13
Plato Lexicon (1) , organizado por R. Radice em colaboração com I. Ramelli e E. Vimercati,
edição eletrônica de R. Bombacigno, iblia, ilão, 2003.
14
Em sua primeira verão, a versão digital saiu junto com um volume em papel: PLATÃO,
Eutifrone, editado por Rossetti, Roma, Armando: 1995.
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ano 11 / nº 16 – 1º sem. 2006 – São Paulo / p. 118-124
124 de 2005), promovido por Olympiako da ser refinado e aprofundado, antes
Kendro Philosophias kai Paideias (por- que ele possa afirmar-se definitivamente
Resenha crítica
tanto, por Leonidas Bergeliotis) com a como uma nova chave de leitura de “to-
colaboração de universidades e entida- das” as fontes socráticas. Mas é igual-
des locais gregos. O tema escolhido mente evidente que este paradigma
para as seções do simpósio foi, mais merece ser colocado à prova, tendo em
uma vez, “Sokrates kai Sokratikes vista os resultados encorajadores que já
Scholes”, com intervenções que foram obtidos com ele. Neste sentido,
concerniam a Xenofonte e Antístenes, esperamos que Le prime Goirnate de
o œlegcoj socrático e a fortuna de Senigallia e as futuras sessões da
Sócrates no mundo grego. Conco- nascitura escola de Elide possam tornar-
mitantemente ao simpósio de Olímpia, se eventos com uma freqüência regular
se propôs, entre outras coisas, fundar capazes de coagular, nos próximos
novamente a antiga Escola de Elis anos, os novos impulsos dados recente-
(como se sabe, Olímpia se encontra na mente à questão socrática.
Elis), e a iniciativa é promissora para o
futuro dos estudos sobre este tema. Alessandro Stavru
Concluindo esta resenha, é ne- Università degli Studi
cessário observar como o paradigma di Napoli “L’orientale”
hermenêutico que surgiu em Aix, e foi- Traduzido por Renato Ambrósio
se firmando até Senigallia, precisa ain- E-mail: titol@ajato.com.br
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ano 11 / nº 16 – 1º sem. 2006 – São Paulo / p. 118-124
Resenha
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ano 11 / nº 16 – 1º sem. 2006 – São Paulo / p. 125-127
126 O ponto nuclear de sua investigação platônica, principalmente para aquela
parece estar na discussão entre Xenó- exposta nos seus últimos diálogos. Evi-
Resenha
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ano 11 / nº 16 – 1º sem. 2006 – São Paulo / p. 125-127
A finalização de sua obra – funda- “...Eu disse que Aristóteles, negan- 127
mental para quem quer sair da superfi- do que os entes matemáticos sejam
Resenha
cialidade na leitura das duas filosofias, pertencentes ao hiperurânio platô-
a de Platão e a de Aristóteles – focaliza nico, inicia uma própria, nova, apo-
problemas como as dimensões geo- logia pro mathematica. Mas, inespe-
métricas e o ponto (“dogma dos radamente, termina por defender
geômetras”, como diz), se os números uma opinião de Platão, especialmen-
são anteriores às grandezas, qual a rela- te contra Espeusipo, e em certa me-
ção das matemáticas com a Beleza e a dida também contra Xenócrates: os
Bondade, idéias supremas para Platão. entes matemáticos e seus princípios
Não é demais citar o último pará- não são a suprema realidade, a suma
grafo de seu livro. A analista Elisabetta beleza e o sumo bem”.
Cattanei consegue sintetizar o que pre-
Instigante investigação, certamente.
tendeu e podemos ter melhor idéia do
significado de seu texto para os estu- Rachel Gazolla (PUC-SP)
dos de Filosofia Grega Antiga: rachelgazolla@ajato.com.br
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128 NORMAS E INFORMAÇÕES / RULES AND INFORMATION
Não havendo unanimidade quanto aos critéri- In the absence of a settled convention among
os para a transliteração do alfabeto grego para scholars for transliteration, Hypnos has de-
outros alfabetos, a Hypnos transliterará do cided to adopt the following rules when trans-
seguinte modo: literating Greek letters:
1. A letra ‘x’ (chí) poderá aparecer como “kh” 1. The letter ’x’ (chi) may appear as “kh” or
ou “ch”. Ex.: psyché ou psykhé. “ch”. Ex: psyché or psycké.
2. A letra ‘u’ (upsilon) poderá aparecer como 2. The letter ‘u’ (upsilon) may appear as ‘ü’ or
‘ü’ ou ‘y’. Ex.: phüsis ou physis. ‘y’. Ex: phüsis or physis.
3. As letras ‘h’ (eta) e ‘v’ (ômega) serão
transliteradas como ‘e’ e ‘o’ respectivamen- 3. The letter ‘h’ (eta) and ‘v’ (omega) will be
te, sem qualquer acento para sinalizar o re- transliterated as ‘e’ and ‘o’ respectively, with-
dobro. out any diacritical mark to indicate the long
4. O ‘iota’ subscrito não aparecerá; sound.
5. Os acentos graves e agudos serão preserva- 4. The ‘iota’ subscript is not used.
dos segundo a própria acentuação da pala- 5. Grave and acute accents are kept as they
vra grega no texto em questão. are in the Greek word used in the quoted
6. Quando houver espírito rude, a trans- text.
literação será por ‘h’. Por ex.: Ïpnow por
6. When there is spiritus asper, ‘h’ will be used
hý pnos; o espírito doce não aparecerá. Por
in the transliteration. For ex.: Ïpnow for
ex: ˆrganon será órganon;
hypnos; the spiritus lenis will not appear. For
7. Quando houver ‘til’ (~) sobre a letra ‘e’ ou
‘u’ será transliterado por circunflexo (^), p. ex.: ˆrganon will be órganon.
ex.: noûs. 7. The letter ‘g’ (gamma) before ‘k’ (kapa) will
8. A letra ‘g’ (gamma) antes de ‘k’ (kapa) será be transliterated as ‘n’; ex.: énãgkh for
transliterada por ‘n’. Ex: énãgkh por anánke.
anánke.
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PARA ENVIO DE ARTIGOS, PERMUTAS DE REVISTAS 129
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130 Dissertatio Perspectiva Filosófica
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de Pelotas, Pelotas, RS de Pernambuco, Recife, PE
Educação e Filosofia Phaos
Revista da Universidade Federal Revista do Departamento de Lingüística
de Uberlândia, Uberlândia, MG do IEL/Unicamp, Campinas, SP
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Revista da Universidade Philosophica
Gama Filho, Rio de Janeiro, RJ Revista da Universidad Católica
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Ética e Filosofia (rochoa@ucv.cl)
Revista da Universidade Federal Redes
de Uberlândia (CCHA), Uberlândia, MG Rev. da Univ. Fed. Espírito Santo, ES
Ética e Filosofia Política Revista de Filosofía
Revista da Universidade Federal Univ. de Costa Rica, C.Rica
de Juiz de Fora (ICHF), Juiz de Fora, MG
Síntese Revista de Filosofia
Filosofia e Ciências Humanas Faculdade de Filosofia da Cia. de Jesus,
Revista da Universidade Belo Horizonte, MG
de Passo Fundo (IFCH), RS (publicações@cesjesuitas.br)
Ideação Scripta
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de Feira de Santana (NEF II), de Minas Gerais, Belo Horizonte, MG
Feira de Santana, BA Sofia
Kléos Revista de Filosofia, UFES, ES
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Kriterion Argentina, La Plata
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Belo Horizonte, MG Revista da Universidade Estadual
de Maringá, PR
Limes
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Univ. Metropolitana de Ciências da Revista da Universidad Javeriana,
Educação, Santiago, Chile Bogotá, Colômbia
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Lumen
Veritas
Centro Universitário Assunção
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São Paulo Porto Alegre, RS
Nova Tellus Yachai
Revista do Centro de Est. Clasicos Revista da Universidad Católica
da Universidad Nacional Autónoma Boliviana, Cochabamba, Bolívia
de México, México (yachai@ucbcba.edu.bo)
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