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Resumo: Neste artigo desejo verificar se, face ao crescimento dos estudos medievais no Brasil nos
últimos anos, foram desenvolvidas investigações adotando a categoria gênero. Estas preocupa-
ções surgiram no decorrer da pesquisa que venho realizando com o financiamento do CNPq, da
qual tratarei de forma específica em outro ponto deste texto. Neste sentido, estou interessada em
rastrear as regiões do país e o momento em que tais estudos foram realizados, se foram elaborados
por pessoas isoladas ou por equipes, a natureza destes trabalhos (artigos, monografias, disserta-
ções, teses, projetos de pesquisa etc), as concepções de gênero e os teóricos que tais materiais
utilizam, analisando e discutindo os dados levantados.
Abstract: In this article I wish to verify if investigations in Brazil were developed in recent years,
adopting the gender category due to the growth of the medieval studies. These concerns emerged
during the research I am accomplishing with CNPq financing. I am interested to analyze and
discuss the data, tracing the areas of the country and the moment in that such studies were
accomplished, if they were elaborated by isolated people or by teams, as well as the nature of
these works (goods, monographs, dissertations, theses, research projects etc), and the gender
conceptions and the theoretical foundation of such materials.
1
Considero como estudos É visível, nos últimos 13 anos, o desenvolvimento
medievais todos aqueles
desenvolvidos nas diversas dos estudos medievais no Brasil.1 Até o fim da década
áreas do conhecimento, tais de 90 haviam poucos doutores especializados em Ida-
como História, Literatura, de Média atuando nas instituições de ensino superior
Filosofia, Linguística, Teo-
logia, Arte, Música etc, e que no Brasil; eram raros os títulos sobre o medievo publi-
analisam temas referentes a cados por editoras brasileiras; não circulavam periódi-
diversos aspectos do me-
dievo.
cos nacionais especializados exclusivamente no medie-
valismo; as bibliotecas universitárias praticamente não
2
Sobre os estudos medievais possuíam em seus acervos periódicos e livros sobre
no Brasil desenvolvidos até
o início da década de 90 temáticas medievais; não existia uma associação que
ver GUERRAS MARTIN, agregasse, em nível nacional, os interessados no ensino
M. S. A situação da pesquisa e na pesquisa da Idade Média; núcleos de medievalistas
de História Geral no Brasil:
História Medieval. In: WEST- locais e/ou regionais eram praticamente inexistentes.2
PHALEN, C. M. (Org.). Reu- Este quadro começou a mudar no início dos anos
nião da Sociedade Brasileira de
Pesquisa Histórica, 11, São
90, quando os estudos medievais começaram a ter
Paulo, 1991. Anais... Porto maior visibilidade nos ambientes acadêmicos no Bra-
Alegre: Sociedade Brasileira de sil. Em trabalho apresentado em 1991, na XI Reunião
Pesquisa Histórica, 1992. p. 13-
14; PEDRERO-SÁNCHEZ, da Sociedade Brasileira de Estudos Medievais, Maria
M. G. Los estudios medievales en Sonsoles Guerras apontava dois fatores que, certamen-
Brasil. Medievalismo, v. 4, n. 4, te, em muito estimularam o incremento do medievalis-
p. 223-228, 1994; MELLO, J.
R. de A. O pesquisador em mo nacional: os principais órgãos de fomento no Bra-
História Medieval e o públi- sil, CNPq e CAPES, começavam a conceder Bolsas e
co brasileiro. In: RIBEIRO,
M. E. de B. (Org.). Semana de
Auxílios para os interessados em investigar sobre a
Estudos Medievais, 2, Brasília, Idade Média e diversas revistas acadêmicas abriam
Outubro de 1994. Anais... espaço para a publicação de artigos sobre o medievo.3
Brasília: UNB, 1994. p. 43-46.
Assim, a despeito das muitas dificuldades, cresceu
3
GUERRAS MARTIN, M. S. o número de estudiosos que nos últimos anos buscaram
op. cit, p. 14. desenvolver projetos de caráter acadêmico sobre o
4
MACEDO, J. R. (Org.). Os período em questão. Segundo dados reunidos sob a
Estudos Medievais no Brasil. Ca- coordenação do Prof. José Rivair Macedo4,de 1990 a
tálogo de dissertações e teses: Filo-
sofia, História, Letras (1990-
2002, 257 dissertações de mestrado, 71 teses de dou-
2002). Porto Alegre: Editora da torado e 5 teses de livre docência sobre temas referen-
UFRGS, 2003. p. 8. tes ao medievalismo foram redigidas e aprovadas em
nosso país. Segundo informações publicadas pelo Jor-
nal da Abrem em seu número 11, podemos con-
tabilizar ainda mais 4 dissertações de mestrado e 6
teses de doutorado, apresentadas e aprovadas em di-
versas universidades do país durante o primeiro se-
mestre de 2003.
10
Sobre os diversos núcleos lo- extensão, tais como na UFSC, UFPR, UEL, UEM,
cais/regionais dedicados ao
medievalismo no Brasil ver o PUCRS, UFRGS, UFBA, UNICAP, UFPA, UNB,UFG,
editorial do Jornal da Abrem UFES, USP, UNESP, UNICAMP, PUCMinas, UERJ,
número 10, publicado em 2002. UFF e UFRJ;10 multiplicaram-se as publicações, tanto
11
Para só citar alguns exem-
plos recentes: OLIVEIRA, T. de autores nacionais quanto traduções, de trabalhos
(Org.). Luzes sobre a Idade Mé- que tratam sobre aspectos diversos do medievo, incl-
dia. Maringá: Editora da Uni-
versidade, 2002; FERNAN-
uindo as edições críticas de fontes;11 com a populari-
DES, F. R. Sociedade e poder na zação da internet no Brasil, diversos núcleos de estudo
Baixa Idade Média portuguesa. e pesquisa em temas medievais construíram homepages,
Dos Azevedos aos Vilhena: as
famílias da nobreza medieval por- contendo materiais disponíveis on line,12 e encontra-se
tuguesa. Curitiba: Universidade ativa, desde 1999, uma lista de discussão de caráter aca-
Federal do Paraná, 2003; PE- dêmico coordenada pelo Programa de Estudos Me-
REIRA, R. H. S. Avicena. A via-
gem da alma. São Paulo: Pers- dievais (Pem) da UFRJ; a cada ano são organizados,
pectiva-Fapesp, 2002; LAU- em todo o país, eventos de caráter científico ou ativida-
AND, J. Em diálogos com Tomás
de Aquino. São Paulo: Mandru-
des de extensão sobre temáticas medievais, tais como
vá, 2002; LE GOFF, J., o Ciclo A tradição Monástica e o Franciscanismo, realizado
SCHMITT, J-C. Dicionário de 7 a 11 de outubro de 2002 na UFRJ, evento promo-
Temático do Ocidente Medieval. São
Paulo: Imprensa Oficial de São vido pelo Pem e o Instituto Teológico Franciscano de
Paulo/Edusc, 2002. V. 2; SIL- Petrópolis, ou o Curso de Extensão As reminiscências
VA, A. C. L. F. et. al. A Vida de medievais no Brasil Colonial, realizado de 13 a 15 de maio
Santa Maria Madalena. Rio de
Janeiro: Programa de Estu- de 2003 na Biblioteca Pública do Estado do Rio Gran-
dos Medievais, 2002; MON- de do Sul, para só citar dois exemplos.13
GELLI, L. M., VIEIRA, Y. F.
A estética medieval. Cotia: Íbis,
Contudo, a despeito do crescimento dos estudos
2003; COSTA, R. (Org.). Teste- medievais no país, ainda há muito caminho a ser per-
munhos da História. Vitória: E- corrido. Além dos problemas de ordem mais geral,
ditora da UFES, 2003; FRAN-
CO JÚNIOR, H. Legenda Áu- que afetam outras áreas do conhecimento, tais como
rea. São Paulo: Companhia das a escassez de materiais atualizados e específicos nas
Letras, 2003. bibliotecas universitárias, a ausência de concursos públi-
12
Para só citar alguns sites:
w w w. p e m . i f c s . u f r j . b r ; cos que reverte na falta de professores nas IES, os
http://jean_lauand.tripod. constantes cortes de auxílios e de bolsas de estudo, há
com; www.hottopos.com;
w w w. a b r e m . h e . c o m . b r ;
muitos outros problemas de caráter específico. Para
w w w. b r a t h a i r . c j b . n e t ; citar apenas alguns: as temáticas medievais não são
w w w. r i c a r d o c o s t a . c o m ; valorizadas no ensino fundamental e médio, o que não
w w w. g e o c i t i e s . c o m /
pjchronos; www2.fe.usp.br/ só leva a um desconhecimento quase total do período
~cemoroc, www. revistami como também não estimula o interesse pelos estudos
rabilia.com. medievais ainda na infância ou na adolescência; a gran-
13
Para informações sobre os
principais eventos locais e de maioria das escolas não inclui, em sua matriz cur-
regionais organizados no ricular, disciplinas como o latim, não propiciando aos
país desde 1998 ver os diver-
alunos uma formação básica fundamental para um
18
Utilizando como palavra-cha- rados por pessoas isoladas ou por equipes, a natureza
ve o termo gênero e delimi-
tando os anos de 2003 a 2001, destes trabalhos (artigos, monografias, dissertações,
realizamos uma pesquisa no teses, projetos de pesquisa etc), as concepções de gêne-
site Feminae: Medieval Women and ro e os teóricos que tais materiais utilizam, analisando
Gender Index (http://www. ha
verford.edu/library/referen e discutindo os dados levantados.
ce/mschaus/mfi/mfi.html), Faz-se importante ressaltar que é grande o número
um banco de dados on line,
organizado em 1996, que sele-
de textos de História Medieval publicados nos últimos
ciona e reúne dados proveni- anos no exterior e que empregam a categoria gênero.18
entes de artigos, resenhas de Explorando documentos de variadas naturezas e tra-
livros, capítulos de livros, te-
ses e ensaios dos trabalhos tando de aspectos tão diferenciados como santidade,
considerados mais significa- vida religiosa, cruzadas, pobreza, reprodução,
tivos sobre as mulheres e gê- travestismo, alcoolismo, sexualidade, política etc, estes
nero publicados em todo o
mundo e em várias línguas. estudos discutem como tais fenômenos perpassam as
Foram listados 817 títulos, construções culturais de gênero em diferentes momen-
entre resenhas, obras coleti-
vas, artigos em periódicos, e
tos e espaços. Mais do que obras de síntese, os traba-
teses. Faz-se importante res- lhos mergulham em reflexões sobre temas particula-
saltar que nenhuma referên- res, formando grandes coletâneas, cujos textos foram
cia de trabalho elaborado em
português figurou como res- redigidos, em sua maioria, por historiadores(as) ligados
posta à pesquisa. a centros de estudo anglo-saxões19 e, portanto, tratam
19
Os medievalistas franceses e- preferencialmente de temáticas relacionadas à Inglaterra
laboram, sobretudo, trabalhos
de História da Mulher, como medieval.20 Os medievalistas brasileiros têm sido influ-
um campo da História Social enciados por tais trabalhos?
ou da História do Imaginário.
Um claro exemplo desta ten-
Antes de apresentar e discutir a produção dos me-
dência pode ser verificada na dievalistas brasileiros que elaboram suas pesquisas em
obra organizada por J. C. Schmitt História utilizando a categoria gênero, faz-se importante
e O. G. Oaxle, Les tendances actu-
elles de l’histoire du Moyen Âge en destacar o que entendo por estudos de gênero, visto
France et en Allemagne, atas refe- que não há consenso entre os especialistas sobre tal
rentes aos colóquios de Sèvres ponto.21
(1997) e de Gottingen (1998)
publicada em 2002. Dentre os Seguindo as propostas teóricas de Joan Scott e Jane
temas selecionados para deba- Flax,22 considero estudos de gênero aqueles que partem
te encontra-se “Pour une his-
toire des femmes”. O termo
de paradigmas pós-modernistas e estão atentos à análi-
gênero não figura. se de como, em diversas sociedades e momentos, um
20
Para só citar alguns trabalhos dado grupo ou indivíduo dá significação ao feminino
recentes: BENNETT, Judith
M. England: Women and Gen- e ao masculino. São estudos qualitativos que elegem o
der. In: RIGBY, S. H. (Ed.) A particular, sem buscar leis causais e universais para a
Companion to Britain in the Later explicação das diferenças sexuais, tratando homem-
Middle Ages. Londres: Blackwell
Publishing, 2003. p. 87-106; mulher ou feminino-masculino não como categorias
CLARK, Anne L. The priest- fixas, mas constantemente mutáveis. A categoria gêne-
hood of the Virgin Mary: gen-
ro, portanto, rejeita o determinismo biológico e sublinha
que a distinção sexual não é natural, universal ou der trouble in the Twelth Cen-
tury. Journal of Feminist Studies
invariante, a despeito das diferenças anatômicas entre in Religion, v. 18, n. 1, p. 5-24,
machos e fêmeas na espécie humana, mas constrói-se 2002; RICHES Samantha J. E.,
discursivamente de forma inter-relacional, pressupon- SALIH, Sarah (Ed.). Gender and
Holiness: Men, Women, and Saints
do relações hierárquicas de dominação. in Late Medieval Europe. Rou-
Os estudos de gênero configuram-se como um tledge, 2002; RASMUSSEN,
Ann Marie. Gendered Know-
campo da História Cultural e detém-se em discutir ledge and Eavesdropping in
como uma dada visão de gênero construiu-se e impôs- the Late-Medieval “Minnere-
se discursivamente num determinado grupo num certo de”. Speculum, v. 77, n. 4, p. 1168-
1194, Oct./ 2002; MCCLA-
momento, apontando para a sua historicidade, descons- NAN; Anne L., ENCARNA-
truindo-a. Não são sinônimos da História das Mulheres CIÓN, Karen Rosoff (Ed.) The
nem da História Social das relações entre os sexos e Material Culture of Sex, Procrea-
tion, and Marriage in Premodern
visam, mais do que descrever e interpretar, analisar e Europe. Nova York: Palgrave,
explicar as construções de gênero, que implicam na 2002; SALIH, Sarah. Queering
“Sponsalia Christi”: Virginity,
configuração de instituições, representações e práticas Gender, and Desire in the
pelas quais os grupos elaboram o masculino e o femi- Early Middle English Ancho-
nino, legitimando-as; em relações de dominação, em ritic Texts. New Medieval Lite-
ratures, n. 5, p. 155-175, 2002;
símbolos, em normas, em papéis sociais e em identida- ASHLEY, Kathleen and CLARK,
des subjetivas e coletivas. Robert L. A. (Ed.) Medieval Conduct.
Gênero, dentro desta perspectiva teórica, não é si- Minessota: University of Min-
nesota Press, 2001; LAMBERT,
nônimo de sexo.23 É uma categoria que denomina a Sarah, EDGINGTON, Susan
construção cultural da diferença sexual que está presente B. (Ed.) Gendering the Crusades.
University of Wales Press,
em todos os aspectos da experiência humana, constitu- 2001; CLARK, Elizabeth A.
indo-os parcialmente, e que, portanto, pode ser relaciona- Woman, Gender, and the Stu-
do a outras categorias, como etnia, idade, religião etc. dy History. Church History, v.
70, n. 3, p. 395-426, 2001;
Esta reflexão sobre o uso da categoria gênero na MARTIN, A. L. Alcohol, Sex, and
produção histórica sobre o medievo no Brasil funda- Gender in Late Medieval and Early
menta-se, prioritariamente, em dados qualitativos. Não Modern Europe. Nova York: Pal-
grave, 2001; FARMER, S. Sur-
encontrei uma base de dados que contenha o registro viving poverty in medieval Pa-
de todas as produções bibliográficas em História da ris. Gender, Ideology, and the daily
lives of the poor. Ithaca: Cornell
Idade Média elaboradas no Brasil de 1990 até 2003.24 University Press, 2002.
Para as reflexões apresentadas aqui, utilizei um material 21
VARIKAS, E. Gênero, experi-
que se encontra disperso, mas que representa uma ência e subjetividade: a pro-
pósito do desacordo Tilly-
amostragem significativa do que tem sido produzido Scott. Cadernos Pagu, n. 3, p. 63-
pelos historiadores brasileiros sobre o medievo. Desta 84, 1994; POMATA, G. His-
forma, consultei: o Jornal da Abrem, a Revista Signum toire des Femmes et “Gender
History” (note critique). Anna-
e as Atas de eventos cuja temática referia-se unicamente les ESC, n. 4, p. 1019-1026, ju-
ao medievo, que consideramos as principais publica- lho-agosto de 1993; TILLY, L.
A. Gênero, História das Mu-
ções nacionais especializadas sobre o tema; informa-
lheres e História Social. Cader- ções variadas disponíveis na internet; dados enviados
nos Pagu, n. 3, p. 29-62, 1994;
DIERKS, K. Men’s History, através das listas de discussão mantidas pelo Programa
Gender history, or cultural de Estudos Medievais da UFRJ e pela Anpuh;25 publi-
History? Gender & History, v. cações sobre estudos de gênero; e o já citado catálogo
14, n. 1, p. 147-151, 2002.
22
SCOTT, W. J. Prefácio a Gen- de dissertações e teses. Em alguns casos, localizei so-
der and Politics of History. mente a referência da publicação, sem ter tido acesso
Cadernos Pagu, n. 3, p. 11-27,
1994; ___. El género: una ca-
direto aos textos.26
tegoría útil para el análisis his- Só reuni dados quantitativos seguros sobre as dis-
tórico. In: LAMAS, M. (Org.). sertações e teses produzidas no período, reunindo os
El género: la construccion cultural
de la diferencia sexual. Cidade do dados presentes no catálogo já citado, a Plataforma
México: PUEG, 1996. FLAX, Lattes e o Jornal da Abrem. Estas informações, por
J. Pós-modernismo e relações si só, podem ser consideradas uma importante amos-
de gênero na teoria feminista.
In: HOLLANDA, H. B. (Org.) tragem da produção em História Medieval no Brasil
Modernismo e Política. Rio de Ja- nos últimos anos e é por elas que vamos começar.
neiro: Rocco, 1991, p. 217-50.
23
Sobre as distintas constru-
Encontrei dados referentes a 125 dissertações e
ções culturais sobre sexo e teses apresentadas e defendidas em Programas de Pós-
gênero ver LAQUEUR, T. In- graduação em História do país entre 1990 até o primei-
ventando o Sexo. Corpo e Gênero
dos gregos a Freud. Rio de Janei- ro semestre de 2003. Destas, somente 4 empregam a
ro: Relume-Dumará, 2001 e categoria gênero, perfazendo somente 3,2% do total
BUTLER, J. Problemas de gênero: de trabalhos. A seguir, vou apresentar uma síntese de
feminismo e subversão da identida-
de. Rio de Janeiro: Civiliza- cada um desses trabalhos, por ordem cronológica das
ção Brasileira, 2003. defesas.
24
Há um levantamento sendo
feito pelo Prof. Dr. Ruy de
Segundo os dados encontrados, a Prof.ª Dr.ª Dulce
Oliveira Andrade para o Inter- Oliveira Amarante dos Santos, da Universidade Fede-
national Medieval Bibliography ral de Goiás, é a pioneira no uso da categoria gênero
mantido para a University of
Leedes, cuja consulta, porém, é em pesquisa de História Medieval no Brasil. Em um
restrita aos associados. Tam- artigo publicado nas Atas do I Encontro Internacional
bém consultamos a Platafor- de Estudos Medievais, Imagens de mulheres nos reinos ibé-
ma Lattes, mantida pelo CNPq.
Tomando a Idade Média co- ricos de Leão, Castela e Portugal (1250-1350), afirma que
mo palavra chave e limitando- sua pesquisa “insere-se num projeto mais amplo de
nos à área de História e ao pe-
ríodo posterior a 1990, chega-
composição de uma história global das mulheres e
mos a 1230 entradas, entre ar- das relações de gênero”, pautando-se nas reflexões
tigos completos em periódi- de Joan Scott, presente em seu artigo, já clássico, Gênero:
cos, resumos, trabalhos com-
pletos em anais, participações uma categoria útil de análise histórica, citado em nota.27
em congressos, como pales- Entretanto, sua abordagem do gênero, em certos as-
trante ou ouvinte, bancas, arti- pectos, aproxima-se da Sociologia.28
gos em revistas e jornais de
grande circulação etc.. Contu- Como informa neste artigo, em sua pesquisa, a
do, muitas entradas figuram referida professora analisaria documentos de naturezas
mais de uma vez, são conta-
diversas, como o Fuero real, as Siete Partidas, o penitencial
de Martim Perez, o corpus satírico delimitado por bilizados como trabalhos his-
toriográficos aqueles proveni-
Manuel Lapa. Sua investigação dividir-se-ia em duas entes de outras áreas, em espe-
etapas. Na primeira, faria um estudo do imaginário cial literatura e filosofia, mui-
masculino sobre as mulheres. Em um segundo mo- tos dados foram informados
pelos pesquisadores de forma
mento, sua preocupação recairia na delimitação sexual incorreta ou incompleta.
dos campos de trabalho masculino e feminino. 25
Quero agradecer aos colegas
Dulce O. Amarante dos San-
Como resultados desta pesquisa, a autora publi- tos, José Rivair de Macedo,
cou alguns trabalhos,29 além de concluir a sua própria Ricardo da Costa, Valéria Fer-
tese, em 1997, O corpo dos pecados: representações e práticas nandes da Silva, Carolina Coe-
lho Fortes, que gentilmente
sócio-culturais femininas nos reinos ibéricos de Leão, Castela e enviaram dados para que eu
Portugal (1250-1350), que foi orientada pelo Prof. Dr. pudesse utilizar neste artigo.
Victor Deodato Silva e desenvolvida junto ao Pro-
26
Refiro-me especificamente
aos trabalhos SCHWEINBER-
grama de Pós-graduação em História Social da USP. GER, Maria Luisa Tomasi. A
Na tese, segundo o Catálogo de dissertações e teses,30 são mulher entre o individual e
o coletivo no final da Idade
estudados diversos elementos que referendaram a Média. Varia Scientia, Cascavel,
construção de representações corporais masculinas e v.1, n.1, p.139-146, 2001; SAN-
femininas, bem como dos pecados do corpo, por TOS, G. S. A Santa e o Lavrador:
gênero e poder na Baixa Idade
meio da análise de textos eclesiásticos de caráter mo- Média portuguesa (1282-1325).
delador. Acervo: Revista do Arquivo Nacio-
Nos últimos anos, a professora Dulce tem explora- nal, Rio de Janeiro, v.9, n.01-
02, p. 69-84, 1997; ___. A Rai-
do novos objetos e fontes. Contudo, as suas preocupa- nha e os Pares do Rei. Arrabal-
ções relacionadas às mulheres, ao imaginário masculino des Cadernos de História, Niterói,
v. 1, p. 79-89, 1996. Nossas ten-
sobre o feminino e ao corpo permanecem. Neste sen- tativas de contatar as autoras
tido, em seu trabalho Egéria a peregrina numa carta de foram infrutíferas até o mo-
Valério de Bierzo, ressalta, dentre outros elementos, a mento de finalizarmos este
artigo.
contraposição pautada no gênero realizada por este 27
SANTOS, Dulce O. Amaran-
autor eclesiástico entre o corpo frágil feminino e o te dos. Imagens de mulheres nos
corpo vigoroso masculino.31 reinos ibéricos de Leão, Castela e
Portugal (1250-1350). In: En-
Faz-se importante ainda ressaltar que esta pesqui- contro Internacional de Es-
sadora participa do grupo de pesquisa cadastrado no tudos Medievais, 1, 4 a 6 de
julho. Atas...São Paulo: USP-
CNPq Historia, Política e Cultura, o único em que uma UNICAMP- UNESP, 1995. p.
das linhas de pesquisa é Gênero e Cultura na Idade Média 157-160.
Ocidental. 28
Verificando o currículo da
prof.ª Dr.ª Dulce O. Amarante
Em 1999, Milton José Zamboni obteve o grau de dos Santos, disponível na Pla-
mestre junto ao Programa de Pós-Graduação em taforma Lattes, nota-se, através
História da ciência da PUCSP, ao ter sua dissertação, das palavras-chaves que acom-
panham a sua produção acadê-
O Fuero de Cuenca: uma interpretação das relações de gênero mica, uma oscilação teórica
em fins do século XII, orientada pela Prof.ª Dr.ª Ana Maria em sua produção entre uma
história de gênero de matriz
Alfonso-Goldfarb. Infelizmente, só tivemos acesso a
41
Reflexões sobre os discursos de gê- quisas foram produzidas comunicações apresentadas
nero e a representação do corpo na
hagiografia mediterrânica do sécu- em eventos científicos41 e realizada uma conferência,42
lo XIII, comunicação apre- bem como foram redigidos textos,43 dois já publica-
sentada no Ciclo de Debates dos.44 Vamos nos deter nas conclusões parciais pre-
do LHIA-UFRJ, em novem-
bro de 2002; A vida monástica sentes nesses textos já publicados.
e as diretrizes de gênero na obra Em Reflexões metodológicas sobre a análise do discurso em
berceana, comunicação apre-
sentada no V EIEM na UFBA,
perspectiva histórica: paternidade, maternidade, santidade e gê-
em julho de 2003. nero, o objetivo era traçar algumas reflexões sobre o
42
Gênero, Corpo e Sexualidade na conceito de discurso, em especial dos discursos de
Península Ibérica Medieval: uma
leitura das obras Vida de Santo gênero, apontando um possível caminho para a sua
Domingo de Silos e Vida de Santa análise histórica. Neste sentido, incluí no texto um
Oria, palestra proferida na exemplo prático de estudo dos discursos, escolhendo
UERJ em novembro de 2002.
43
Encontra-se no prelo Represen- como unidade de análise o relacionamento dos santos
tações da morte em Tomás de Celano, e santas com seus pais, ou seja, a paternidade e a mater-
a ser publicado pelo Centro
de Memória do Oeste de Santa
nidade.
Catarina nos Cadernos do CEOM, Verificamos que, em sua enunciação, Gonzalo de
nº 16, no dossiê Representa- Berceo materializa um discurso de gênero, no qual há
ções do corpo e da morte.
Este artigo foi escrito em par- uma associação entre a santidade dos genitores e a de
ceria com minha orientanda seus filhos, e que só se faz possível devido à liderança,
Elisabeth da Silva Passos e dis-
cute a forma como o hagió-
moral e espiritual, dos homens na família, seguindo o
grafo Tomás de Celano repre- topos hagiográfico da santidade herdada, típico de tais
senta as mortes de Francisco e obras, e que reafirma o caráter hierárquico das relações
Clara de Assis, um homem e
uma mulher considerados de gênero no seio das organizações familiares na Ida-
santos, a partir de diretivas de de Média.
gênero e à luz das relações de
poder no seio da Ordem Fran- Quanto a Celano, na 1 Cel, utilizando o topos da
ciscana e da Igreja Romana. santidade herdada às avessas, o autor adverte sobre a
44
Reflexões Metodológicas so- má influência dos pais na formação dos filhos, defen-
bre a análise do discurso em
perspectiva histórica...., op. cit.; dendo que o pecado do pai, como o da mãe, é a raiz
Moda, santidade e gênero na dos pecados dos filhos. Na 2 Cel, a figura da mãe de
obra hagiográfica de Tomás
de Celano. In: COSTA, S.,
Francisco é realçada, mas não é feita nenhuma associa-
SILVA, A. C. L. F., SILVA, L. R. ção entre a santidade do filho e a santidade da mãe.45
A tradição monástica e o francisca- Assim, sem associar a santidade de Francisco à educa-
nismo. Rio de Janeiro: Programa
de Estudos Medievais - Insti- ção recebida por seu pai, parece preferir omitir este
tuto Teológico Franciscano, elemento. O discurso de gênero, neste caso, materializa-
2003, p. 230-239. se por meio do silêncio.
45
Há que destacar que fazer uma
relação entre a santidade de Na LSC, obra voltada para um público feminino,
Francisco com a de seu pai há destaque para a mãe da santa, que, apesar de casada,
era, certamente, impossível, já
que os conflitos entre os dois
é vista como uma mulher piedosa. Segundo a obra,
eram de conhecimento geral. ela teria imprimido tal piedade à filha, que se tornou