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Maria Rita de Almeida Toledo

Fernando de Azevedo e A Cultura Brasileira.


Ou as Aventuras e Desventuras do Criador e da
Criatura

PUC-SP
1995

1
Introdução

Este trabalho é fruto de duas pesquisas que foram desenvolvidas a partir do projeto
Historiografia da Educação Brasileira: a construção da memória e do conhecimento,
coordenado por Warde: uma, cujos resultados foram apresentados no artigo
Historiografia da Educação Brasileira: no rastro das fontes secundárias1; e a outra, que
resultou Contribuição à Leitura de Fernando de Azevedo.2
O projeto Historiografia da Educação Brasileira: construção da memória e do
conhecimento, cujo objetivo geral consiste em "verificar como a educação se faz objeto
do conhecimento e como o conhecimento sobre a educação se produz", elegendo, para o
desenvolvimento de sua primeira fase, os trabalhos de História da Educação Brasileira
produzidos nos programas de pós-graduação em Educação como objetos de análise.
Justifica-se essa eleição pelo fato de que “esses programas são responsáveis pela maior
parcela de estudos teóricos na área, bem como por alterações substantivas na qualidade
das teorizações nela produzidas", e, em um segundo aspecto, a eleição de trabalhos de
natureza historiográfica se justifica porque através desse tipo de abordagem evidenciam-
se as formas através das quais é construída a memória da educação, a partir de quais
conceitos e/ou paradigmas ela é concebida e explicada. (Warde,1990a:2-3)
Apoiados nas diretrizes do projeto Historiografia...., demos início a uma pesquisa
que pretendeu, a partir de levantamento quantitativo, detectar temas, periodizações,
universos de análise e fontes de apoio e verificar o modo como esse conhecimento foi
produzido.(Bontempi e Toledo,1994: 11). Os resultados parciais da pesquisa indicavam
que havia regularidades nesta produção, como por exemplo, em relação aos temas,
das 145 dissertações e teses cotejadas, apenas 13,1% não estão delimitadas no
âmbito do século XX, significando que a preferência por este século representa

1
Fruto da hipótese central de “que os critérios de escolha e o modo de manipulação das fontes secundárias
dentro da trajetória argumentativa dos estudos historiográficos poderiam nos indicar quais as funções
conferidas à História dentro dessa produção, evidenciando a mecânica de inclusão dos objetos educacionais
nesse campo do conhecimento”(Bontempi e Toledo, 1994:10. no prelo.)
2
Este trabalho foi apresentado no II Congresso Ibero-Americano de História da Educação Latino -
Americana. Campinas 11-15 de setembro de 1994. Participaram da Pesquisa Bruno Bontempi Jr., Jorge
Carvalho do Nascimento e Maria Rita de Almeida Toledo.
2
86,9% do total das periodizações3. Além disso, foi constatado que 13 delas (10,3%
do grupo de dissertações e teses incluídas no século XX) têm como marco inicial o
ano de 1930, e 11 (8,7% dentre as mesmas) dedicam-se ao pós-64. É notável,
igualmente, a quantidade de estudos que delimitam seu objeto “até os dias
atuais”, partindo de qualquer ponto do século XX. Dos 126 trabalhos referentes
ao século XX, 13 optam por essa “periodização”. A porcentagem de dissertações
e teses que trabalham com o período em torno de 1920 e 1930 é de 19% do total
das dedicadas ao século XX, ao passo que apenas 3 (2% do total) se ocupam do
período colonial. Saliente-se que nenhum trabalho se dedicou a estudar
especificamente os séculos XVII e XVIII, havendo, a ser conferida, a possibilidade
de estes terem sido indiretamente tratados naquelas 7 dissertações nas quais o
principal marco delimitador foi definido como "até o século XX". Boa parte das
dissertações e teses sobre o século XX (32) apresentam periodização difusa,
devendo ser estudadas com maior acuidade a fim de detectarmos a singularidade
da delimitação de cada trabalho. (Bontempi e Toledo, 1994:.12)
Nas discussões que desenvolvíamos, examinamos uma tendência de pensamento
que por décadas se fez hegemônica: a geração que despontou na década de 20 e se
autodenominou “renovadora”, que chegou para “reconstruir”. Neste debate indagávamos
se havia uma relação entre os resultados que vínhamos obtendo com o levantamento das
dissertações e teses (em relação aos temas, períodos, ou mesmo a maneira de manipulação
das fontes de apoio) e o modo pelo qual essa geração havia “contado” sua história.
Perguntávamos se essa geração, e Fernando de Azevedo como seu porta-voz, haviam
inaugurado uma maneira de fazer história dentro do campo da Educação. Dentro desta
perspectiva, Marta M. C. Carvalho e Zaia Brandão indicavam um caminho a ser
explorado: o de tratar esse legado como memória dentro da historiografia.
A partir dos estudos que havíamos efetuado, tanto dos trabalhos de História da
Educação Brasileira, como da “geração dos Pioneiros”, nos propusemos a estudar o
pensamento de Fernando de Azevedo. A escolha deste entre a geração dos “renovadores”
dava-se pelo fato dele ter se tornado o porta-voz desta geração, por um lado, e por outro,
porque muitas das incidências que encontrávamos na pesquisa sobre as teses e
dissertações, já apareciam em A Cultura Brasileira (como, por exemplo, sua periodização

3
Considerou-se que aí deveriam se incluir também as dissertações e teses que se encontram delimitadas na
intersecção entre os séculos XIX e XX
3
ser da colônia aos dias de hoje; ou ainda o marco fundamental de sua obra ser a década de
30). Este estudo vinha ao encontro com os objetivos do projeto Historiografia...., já que
Azevedo poderia ser uma das raízes deste modo peculiar de produzir História no campo
da Educação. Também verificavamos que muitas das leituras realizadas por seus
“críticos”e “herdeiros” são parciais e/ou pouco consistentes, principalmente no que se
refere aos seus aportes teóricos. (Cf. Bontempi, Carvalho e Toledo,1994)
Iniciamos4, em Contribuição à Leitura de Fernando de Azevedo, uma pesquisa
que predendeu examinar a produção de Azevedo a partir de suas próprias “evidências
internas”, partiamos da hipótese de que levando-se em consideração como fundamento da
leitura da obra de Azevedo os seus próprios marcos teóricos, evitávamos o anacronismo
no exame de uma produção que se move no tempo (como memória), bem como a
arbitrariedade de determinar o indivíduo pelo grupo ao qual se atribui que pertença.(Cf.
Bontempi, Carvalho e Toledo,1994)
A metodologia proposta por nós pretendeu “reconstruir o pensamento de Azevedo
priorizando o sujeito intelectual. Nossas fontes primárias foram, portanto, as obras
publicadas do Autor, que trouxeram notas e referências bibliográficas organizadas, onde
ele explicita as fontes em que buscou ancorar as suas formulações, revelando preferências
de leitura e interlocuções. Foram descartados as conferências, os discursos e os artigos
que não apresentam meios de diferenciar simples menções de obras e de autores das
referências mais importantes incorporadas pelo pensamento de Azevedo. Esta separação,
sujeito intelectual/sujeito político social, era estratégica na medida em que possibilitava
averiguar-se as principais refências teóricas do Autor, que deveriam também conformar a
sua visão de mundo, refletindo em seu discurso político.
A busca do intelectual Fernando de Azevedo nos levou a fazer um minucioso
arrolamento de suas obras5. A metodologia do tratamento das obras6 consistia: no

4
Refiro-me aos autores de “Contribuição...”
5
Inicialmente foram selecionados 34 livros. Examinados esses trabalhos, foram desprezados 22 deles, por
motivos os mais diversos: foram descartados aqueles textos nos quais não estavam indicadas em notas, as
referências bibliográficas do Autor. Outros não foram utilizados porque se repetiam constantemente em
reedições nas quais eram alterados os títulos. Descontadas as reedições parciais, fusões de textos, separatas
e o aproveitamento de partes de diferentes livros para montar um outro, Fernando de Azevedo escreveu 25
livros. Exemplos de reedições são: "A Educação Pública em São Paulo", que reaparece como "A Educação
na Encruzilhada"; "Ensaio de Crítica Literária para O Estado de São Paulo", que volta incluído em
"Máscaras e Retratos - Estudos Literários sobre Escritores e Poetas do Brasil"; "Da Educação Física: o que
ela é, o que ela tem sido e o que deveria ser, seguido de “Antinous, Estudos de Cultura Atlética e Evolução
do Esporte no Brasil", que constituem basicamente o mesmo texto de "Da Educação Física", publicado mais
tarde. As obras inicialmente analisadas foram:
- SOCIOLOGIA EDUCACIONAL. 1970.
4
levantamento de todas as notas de rodapé; no agrupamento das notas a partir dos assuntos
nelas contidos; no reagrupamento dos assuntos das notas sob a forma de problemas a
partir de seus conteúdos 7. Dessa   maneira,   procedemos   a   "construção"   de   nove8  

- UM TREM CORRE PARA O OESTE: ESTUDO SOBRE A NOROESTE E SEU PAPEL NO SISTEMA DE VIAÇÃO
NACIONAL. 1950.
- A EDUCAÇÃO NA ENCRUZILHADA. PROBLEMAS E DISCUSSÕES. 1937.
- A EDUCAÇÃO E SEUS PROBLEMAS. 1946.
- NO TEMPO DE PETRÔNIO: ENSAIOS SOBRE A ANTIGUIDADE LATINA.,1923.
- NOVOS CAMINHOS E NOVOS FINS: A NOVA POLÍTICA DE EDUCAÇÃO. 1958.
- EDUCAÇÃO ENTRE DOIS MUNDOS: PROBLEMAS E PERSPECTIVAS. 1958.
- CANAVIAIS E ENGENHOS NA VIDA POLÍTICA DO BRASIL: ESTUDO SOBRE O ELEMENTO POLÍTICO NA
CIVILIZAÇÃO DO AÇÚCAR. 1958.
- JARDINS DE SALLUSTIO: À MARGEM DA VIDA E DOS LIVROS. 1924.
- A EDUCAÇÃO PÚBLICA EM SÃO PAULO. 1937.
- PÁGINAS LATINAS: PEQUENA HISTÓRIA DA LITERATURA ROMANA. s.d.
- DA EDUCAÇÃO BÁSICA. 1960.
- SEGUINDO MEU CAMINHO. 1946.
- VELHA E NOVA POLÍTICA. 1943.
- NA BATALHA DO HUMANISMO. 1967.
- A UNIVERSIDADE NO MUNDO DO FUTURO. CONFERÊNCIA. 1944.
- FIGURAS DE MEU CONVÍVIO: RETRATOS DE FAMÍLIA, DE MESTRES E EDUCADORES. 1973.
- RUY E O HUMANISMO: CONFERÊNCIA PRONUNCIADA EM SALVADOR. 1949.
- EVOLUÇÃO DO ESPORTE NO BRASIL. 1930.
- REFORMA DO ENSINO NO DISTRITO FEDERAL: DISCURSOS. 1929.
- HISTÓRIA DA MINHA VIDA. 1971.
- DISCURSO SOBRE ISRAEL. 1956.
- A CIDADE E O CAMPO NA CIVILIZAÇÃO INDUSTRIAL. 1962.
- MÁSCARAS E RETRATOS: ESTUDOS LITERÁRIOS. 1962.
- O SEGREDO DA RENASCENÇA E OUTRAS CONFERÊNCIAS. 1925.
- ENSAIOS: CRÍTICA LITERÁRIA PARA "O ESTADO DE SÃO PAULO". 1929.
- PRINCÍPIOS DE SOCIOLOGIA: EMÍLIO DURKHEIM. 1935.
- A UNIVERSIDADE NO MUNDO DE AMANHÃ: SEU SENTIDO, SUA MISSÃO E SUAS PERSPECTIVAS ATUAIS.
1947.
- A CULTURA BRASILEIRA. 1971.
- RECONSTRUÇÃO EDUCACIONAL NO BRASIL: AO POVO E AO GOVERNO; MANIFESTO DOS PIONEIROS
DA EDUCAÇÃO NOVA. 1932.
- A TRANSMISSÃO DA CULTURA. 1976.
- A IDÉIA DE PROGRESSO. 1972.
- AS CIÊNCIAS NO BRASIL. 2 Vols. 1958.
6
São os seguintes os livros pelos quais se fez o levantamento dos interlocutores de Azevedo:
- A CIDADE E O CAMPO NA CIVILIZAÇÃO INDUSTRIAL. 1962.
- MÁSCARAS E RETRATOS: ESTUDOS LITERÁRIOS. 1962.
- SOCIOLOGIA EDUCACIONAL. 1958.
- UM TREM CORRE PARA O OESTE. 1950.
- A EDUCAÇÃO E SEUS PROBLEMAS. 1946.
- PRINCÍPIOS DE SOCIOLOGIA. 1935.
- CANAVIAIS E ENGENHOS NA VIDA POLÍTICA DO BRASIL. 1958.
- NA BATALHA DO HUMANISMO. 1967.
- A CULTURA BRASILEIRA. 1971.
- FIGURAS DE MEU CONVÍVIO. 1973.
- A EDUCAÇÃO ENTRE DOIS MUNDOS. 1958.
- AS CIÊNCIAS NO BRASIL. Vol. 1. 1958.
7
A título de exemplificação, é possível citar o seguinte: "Se a indústria, onde já se estabeleceu, com mais
alto grau de intensidade, favorece ou intensifica a passagem do paternalismo rural de organização cerrada,
para a vida urbana, de um arcabouço cada vez mais diferenciado, a cidade, por isso mesmo, como escreve
Robert Park, tende a quebrar a rigidez social, a estender o campo da divisão do trabalho 'pela multiplicação
de preocupações e profissões, a libertar o indivíduo da rotina, estimulando sua ambição e energia para
invenções e realizações novas' ". Cf. AZEVEDO, Fernando de. As Ciências no Brasil. SP: Melhoramentos,
1958. pp 34-35. A citação no texto de Azevedo: PARK, Robert. "The city and civilization". In: Select
Readings For The Course In The Study of Contemporary Society. Univ.of Chicago. Bookstore, 1936. O
assunto abordado nesse exemplo foi identificado como a relação entre modernização e industrialização. O
assunto foi enquadrado no tema Cidade X Campo. Cidade X Campo, Industrialização e Modernização vão
compor, juntamente com outros assuntos, o problema ordenador "Idéia de Modernidade".
8
Os  nove  problemas  ordenadores  são:  
  1  -­‐  VISÃO  DE  HOMEM  
5
problemas  ordenadores  que  possibilitaram  a  estruturação  do  mapeamento  efetuado,  
organizando-­‐se  sistematicamente  as  fontes,  e  assim  os  princípios,  os  conceitos  e  os  
interlocutores  de  Azevedo,  nela  dispostos. 9
   

  Além  das  questões  e  argumentos  propriamente  utilizados  pelo  autor  para  definir  a  sua  VISÃO  
DE  HOMEM,  o  problema  é  também  tratado  nas  referências  feitas  por  Azevedo  quanto  aos  seguintes  
problemas:   Heróis   da   Renovação   Cultural,   Educação   para   o   Homem   Total   e   Universalização   do  
Homem.  
  2  -­‐  CONCEPÇÃO  DE  EDUCAÇÃO  
  A   esta,   Fernando   de   Azevedo   chega   a   discutir   questões   sobre:   Conceito   de   Democracia,  
Educação   e   Sociedade,   Educação   como   agente   de   mudança   social,   Estado   e   administração,   História  
política  do  Brasil  e  Concepção  de  política  educacional.  
  3  -­‐  EDUCAÇÃO  BRASILEIRA  
  Este   problema   ordenador   está   separado   do   anterior   pela   sua   relevância   com   respeito   à  
apropriação   da   obra   de   Azevedo,   pois   a   interpretação   do   Autor   a   respeito   da   História   da   Educação  
Brasileira,  como  indicamos,  tem  constantemente  subsidiado  estudos  na  área  de  Educação.    
  4  -­‐  IDÉIA  DE  MODERNIDADE  
  Obtida   a   partir   das   observações   do   Autor   em   torno   das   questões:   Homem/Humanidade,  
Técnicas,  Idéia  de  Progresso,  Cidade  X  Campo,  Indústria  e  Modernização  e  Civilização  e  Indústria.  
  5  -­‐  MOBILIDADE  SOCIAL  
  Obtida   a   partir   das   observações   do   autor   em   torno   das   questões:   Sociedade   e  
Sociedade/Brasil  
  6  -­‐  CONCEITO  DE  CIÊNCIA  
  Além   das   questões   próprias   ao   problema,   aparece   em   :   Método   Sociológico   e   Cultura  
Científica  no  Brasil  
  7  -­‐  CIVILIZAÇÃO  E  CULTURA  
  Referências   a:   Formação   histórico-­‐cultural   das   nações   (cultura   humanística   X   cultura  
científica),  Instituições  e  crenças  e  Religiões  no  Brasil.  
  8  -­‐  EXPRESSÕES  DA  CULTURA  
  Este   problema   ordenador   foi   separado   do   anterior,   por   ser   aquele   voltado  
predominantemente  a  problemas  de  tratamento  da  cultura  sob  uma  ótica  antropológica  e  por  discutir  
mais  especificamente  questões  em  torno  da  relação  entre  arte  e  educação.  Ademais,  mantê-­‐los  sob  o  
mesmo   rótulo   significaria   generalizar   em   excesso   as   discussões   que   Azevedo   faz   em   torno   do  
problema  da  cultura  e  retirar  do  problema  a  própria  natureza  explicativa,  proposta  deste  trabalho.  A  
discussão  da  cultura  sob  o  prisma  da  arte  aparece  na  obra  do  Autor  sempre  articulada  aos  problemas:  
Literatura  no  Brasil,  Literatura  na  escola  e  Artes  no  Brasil  
  9  -­‐  FORMAÇÃO  ECONÔMICA  DO  BRASIL  
  Trata   de   questões   próprias   à   economia   e   também   aparece   com   freqüência   quando   o   Autor   se  
refere  ao  transporte  ferroviário,  problema  classificado  como  Vias  Férreas.
9
Na redação original, apresentada no congresso, no lugar de problemas ordenadores aparece temas
explicativos. Porém , a expressão problemas ordenadores traduz de forma mais plena o grupos de questões
(e temas) que são condutores da obra de Azevedo.
6
A Continuidade do estudo da obra de Azevedo

Compartilhando os objetivos da pesquisa Historiografia.... tornou-se fundamental


desvendar o modo de historiar de Fernando de Azevedo, modo este que vem marcando a
produção da História da Educação Brasileira. Com essa perspectiva dei continuidade aos
estudos iniciados em Contribuições..., porém, operando revisões e reformulações do
ponto de vista metodológico e reavaliando alguns dos resultados obtidos.
Por ser A Cultura Brasileira, como verificamos, o único trabalho, dentro da
produção intelectual, delimitado nos termos de a Contribuição..., onde Azevedo trata da
História da Educação Brasileira e por este ser referência de outros trabalhos no campo da
História da Educação, foi privilegiado como fonte primeira. A Cultura Brasileira , possui
outra peculiaridade: Azevedo opera nela a leitura de seu presente, estabelecendo a
representação dominante sobre o movimento educacional na década de 20 e 30 e da
“evolução” do processo educacional brasileiro, à medida que sua obra transformou-se
numa das principais fontes de referência dos estudos de História da Educação Brasileira.
A escolha de A Cultura Brasileira como objeto de estudo reunifica o que
haviamos separado em Contribuições...: o sujeito intelectual e o sujeito político Fernando
de Azevedo10. O sujeito intelectual é contemplado na medida em que a obra é constituida
a partir de um sólido programa científico. O sujeito político-social é contemplado na
medida em que as opções, as escolhas, a lógica de reconstruir o passado é marcada pelas
condições de produção da obra, pelo momento político que o Autor vivia;11 e ainda, pelas
razões que o levaram a optar por produzir essa espécie de obra, quando ele mesmo
reconhece que ela deveria ser entregue a um “historiador da cultura, altamente
especializado em estudos brasileiros”, estando, portanto, relativamente fora de seu campo
de atuação intelectual. (Cf. Azevedo,1958:11)

10
Não entendo que os outros escritos “intelectuais” de Azevedo deixem de ter essa dimensão política ou
deixem de estar marcados pelos momentos de suas produções, porém em A Cultura Brasileira essa
condiçãoé mais fácil de se verificar pelo próprio caráter da obra - descreve o momento histórico em que a
obra é escrita.
11
Para  Chartier,  o  texto  literário  ou  documental,  não  pode  nunca  anular-­‐se  como  texto,  ou  seja,  como  
sistema   de   percepção   e   de   apreciação,   regras   de   funcionamento,   que   remetem   para   as   próprias  
condições   de   produção.   [Ainda   considera   que]   “Os   <materiais-­‐documentos>     obedecem   também   a  
processos   de   construção   onde   investem   conceitos   e   obsessões   dos   seus   produtores   e   onde   se  
estabelecem  as  regras  de  escrita  própria  do  género  de  que  emana  o  texto.  (...)  O  real  assume  assim  um  
novo  sentido:  aquilo  que  é  real,  efectivamente,  não  é  (ou  não  é  apenas)  a  realidade  visada  pelo  texto,  
mas  a  própria  maneira  como  ele  a  cria,  na  historicidade  da  sua  produção  e  na  intencionalidade  da  sua  
escrita.”  (Chartier,1990:63.  destaques  do  Autor)
7
Para compreender a situação de produção do Autor e que condições o levaram a
optar por produzir um trabalho sobre a cultura brasileira, de suas origens a seu estado
atual, e ainda dimensioná-la como “um retrato de corpo inteiro do Brasil, uma síntese ou
um quadro de conjunto de nossa cultura e civilização”, fui ao Arquivo Fernando de
Azevedo - IEB. (Cf. Azevedo,1958:11). Pretendia eu comparar as edições de A Cultura
Brasileira, para verificar se Azevedo havia operado mudanças significativas na obra e, a
partir desta verificação rastrear as referências utilizadas pelo Autor nas diferentes
versões12. Também pretendia rastrear a possível participação de Venâncio Filho no
levantamento da bibliografia e da documentação utilizada por Azevedo, no intuito de
compreender os processos de produção da obra.
Pretendia, também, encontrar indícios do processo pelo qual Azevedo havia
trocado o convite para ser presidente da Comissão Censitária Nacional, para ser o autor de
sua Introdução e, o que essa troca significou para o Autor. E nesta perspectiva entender
qual o significado, para o Autor, de escrever uma obra como A Cultura Brasileira.
A partir da correspondência de Azevedo, que se encontra no Arquivo, pude
levantar informações sobre o processo pelo qual foi o Educador convidado, por Teixeira
de Freitas, para ser o presidente da Comissão Censitária, bem como o que era o projeto do
Censo de 1940. Essa documentação foi complementada pelas cartas publicadas nos
Anexos do livro de Penna (1987). Isso porque, apesar da Autora informar que parte da
correspondência ativa de Azevedo está alocada no IEB, encontrei apenas as cartas de
1960 em diante, período que não mais me interessava. Como, porém, as cartas que se
encontram publicadas nos Anexos de Penna estão na íntegra e nelas encontrei muitos
indícios para a reconstrução do momento de produção de A Cultura Brasileira, aceitei o
risco de que a seleção feita pela Autora pudesse estar “conduzindo” o meu “olhar”.
Essa dificuldade de ter o “olhar conduzido” por uma seleção prévia da
documentação praticada por outro, encontra-se também no Arquivo Fernando de
Azevedo. Ao se ter contato com a documentação percebe-se que o material que ali se
encontra foi meticulosamente organizado. Indício dessa seleção é o fato de o conjunto das
cartas de Venâncio Filho a Azevedo estarem desencontradas das de Azevedo a Venâncio
Filho, publicadas por Penna.
12
A Cultura Brasileira obteve cinco edições: 1943, 1944, 1958, 1964 e 1971. As duas primeiras edições não
contêm qualquer modificação no corpo do texto. A segundo edição foi feita para que a obra fosse vendida,
dado que a primeira teria circulação restrita por ser Introdução do Censo; a terceita edição foi revista e
ampliada - é uma segunda versão da obra-; as outras edições tiveram apenas reformulações na paginação,
não sofrendo acréscimos ou supressões.
8
Portanto, pesquisar no Arquivo Fernando de Azevedo é ter certeza da companhia
de sua “mão invisível” que opera a seleção das cartas, dos artigos, dos documentos etc.
que devem ser lidos para que o Educador seja conhecido dentro dos limites que ele
mesmo impõe.
Para responder à questão da situação de produção de A Cultura Brasileira, a
correspondência, apesar dos limites impostos pelas diversas seleções que antecederam a
esta, são bastante férteis porque revelam o encontro com o universo mais íntimo de
Azevedo, na relação com seus amigos-confidentes. Encontram-se na correspondência as
discussões produzidas no “calor” dos acontecimentos que o impactaram. Outra
peculiaridade desta documentação é a liberdade dos escritores, em relação à opinião
pública, na produção de críticas e comentários mais mordazes, assim como a troca
generosa de amizade e admiração mútua, garantida pelo caráter privado da leitura do
interlocutor. Usei também, os artigos referentes à publicação de A Cultura Brasileira ,
bem como os originais da segunda versão da obra.
Pesquisei a correspondência passiva de Azevedo com várias pessoas, mas
sobretudo com Teixeira de Freitas e Venâncio Filho, por serem as duas personagens que
acompanharam o desenvolvimento de A Cultura Brasileira. Teixeira de Freitas, como
intermdiário de Azevedo com o Estado e com o IBGE e Venâncio Filho, como
interlocutor preferencial da obra e dos problemas pessoais do Autor.
Pelo próprio tom das cartas, do início da série pesquisada (1932-1935),
esfuziantes, e do final (1935-1944), angustiado e deprimido, dividi a história de Azevedo
em aventuras e de desventuras. A partir de 1935, na correspondência com Venâncio Filho
ameaça várias vezes o suicídio. Mesmo após a publicação de A Cultura Brasileira, as
cartas não perdem o tom angustiado e infeliz. O que indica um descompasso com o
próprio relato que faz em A Cultura... sobre a vitórias e a derrotas dos Pioneiros e dos
Católicos em relação ao Estado Novo.
Para responder à primeira questão, optei por dar continuidade aos estudos que
vinha empreendendo em Contribuições.... Parti da hipótese de que a verificação do modo
pelo qual Azevedo apresenta as suas fontes e como as utiliza na lógica interna de sua
narrativa, poderia clarificar o próprio método pelo qual o Autor conduz a sua reconstrução
do passado.
Para empreender tal verificação, não utilizei as tabelas dos problemas ordenadores
porque, apesar de serem um bom “guia” para acompanhar a seleção das fontes

9
apresentadas por Azevedo em relação aos assuntos discutidos na obra, são limitadas para
um estudo mais aprofundado, dado que muitos dos autores utilizados por Azevedo no
corpo do texto, não são citados nas notas de rodapé. Foi, por isso, necessário o exame de
todas as referências feitas, por Azevedo, aos diversos autores ao longo de toda a obra. A
busca das fontes foi guiada pelas questões: para que Azevedo utiliza as fontes? Que
funções as fontes preenchem no texto de Azevedo? Qual a lógica de organização do vasto
universo bibliográfico citado por Azevedo? O fio condutor para o mapeamento da
organização das fontes é a própria definição dada pelo Autor para a obra: síntese da
cultura e da civilização brasileira. Ao dimensionar sua obra como síntese Azevedo
enuncia a tarefa principal que deve empreender:
Uma obra de síntese tem, pela sua própria natureza, o duplo objetivo de unificar
os conhecimentos dispersos até hoje nos trabalhos de detalhe, e de abandonar
tudo que é secundário, inexpressivo, acessório, para fixar o essencial e indicar as
grandes linhas do desenvolvimento.(Azevedo,1958:37)
A hipótese a ser explorada é de que Azevedo, em sua síntese, utiliza os fatos
construídos por outros, considerando-os, não como construções a partir de um
determinado ponto de vista, mas como a verdade que pode ser alcançada por meio de um
método científico objetivo. E este método está nos avanços da Sociologia; por isso,
Azevedo pode utilizar dois autores com pontos de vista diferentes, contanto que os fatos
(ou dados) sejam diferenciados das análises e explicações impregnadas de “ideologia” ou
“interesses”.
Essa hipótese foi levantada a partir da constatação de que alguns resultados
obtidos na primeira fase da pesquisa não eram corretos. Ao  retomar  A  Cultura  Brasileira,  
pude   verificar   que   Azevedo   manipulava   as   notas   de   rodapé   no   texto   com   diversas  
intensões  e,  por  isso,  com  diferentes  funções:  as  que  apoiam  as  afirmações  do  Autor  
do   ponto   de   vista   teórico;   as   que   informavam   o   texto   com   alguns   dados;   as   que,  
através   de   informações   -­‐   fatos   históricos   construídos   por   outros   autores   -­‐   serviam  
como   apoio   explicativo   para   Azevedo;   notas   em   que   o   autor   discutias   sua  
discordância   em   relação   a   determinadas   interpretações   ou   teorias.   A   partir   daí   pude  
verificar  que  muitas  vezes  Azevedo  utilizava  autores  com  posições  teóricas  opostas  
como   fontes   informativas   dos   fatos   históricos   ignorando   tais   diferenças13.Ficava  

13
Como por exemplo Gilberto Freyre e Oliveira Viana para descrever o processo de urbanização do Brasil.
Azevedo, 1943: cap.IIII, tomo I)
10
claro   que   apesar   de   Freyre   fornecer   muitos   dos   marcos   históricos   (períodos)   e   fatos  
históricos   para   a   obra   de   Azevedo,   este   não   utilizava   as   mesmas   fontes   teóricas   de  
Freyre,   como   havíamos   suposto   em   a   “Contribuição....”.   Também   ficava   claro   que   o  
recurso  ao  uso  das  notas,  n’A  Cultura  Brasileira,  não  era  constante.  Muitos  autores,  
em   diversas   passagens   do   texto,   que   tinham   a   mesma   função   de   outro   não   eram  
referenciados  nas  notas  enquanto  estes  sim.    
Para empreender, este estudo utilizei-me da terceira edição e segunda versão da
obra. Essa opção justifica-se não só por ser a versão mais completa, dado que as
modificações operadas pelo Autor são de acréscimos e não de supressão, como também,
pelo fato de ela possuir um excelente Prefácio que, por muitas vezes, serve de guia de
leitura da obra monumental. Além disso, é a versão mais utilizada pelos leitores d’A
Cultura Brasileira, já que as duas primeiras edições são muito difíceis de serem
encontradas e é a segunda que é reproduzida nas edições posteriores.
O trabalho está dividido em cinco capítulos. No primeiro, faço uma revisão
bibliográfica dos textos que tratam de Azevedo e sua obra, dentro e fora dos marcos
explicativos da História da Educação Brasileira. A intenção é verificar como este Autor e
sua produção são objeto da historiografia. No segundo, é historiada a situação de
produção d’A Cultura Brasileira, procurando apreender as perspectivas que conformaram
a interpretação de Azevedo de seu presente e por conseqüência, do passado. No terceiro,
ainda com o intuito de verificar a situação de produção da obra monumental de Azevedo,
enfoco o projeto do Censo ao qual A Cultura Brasileira serviu de introdução. No quarto
capítulo, apresento alguns subsídios que indicam possíveis acessos à análise do método
histórico d’A Cultura Brasileira. No quinto capítulo, discuto a dimensão proposta por
Azevedo para a sua obra - a síntese do Brasil - e analiso o modo pelo qual, a partir da
idéia de síntese, Azevedo organiza as suas fontes. Por fim, à guisa de conclusão,
apresento algumas considerações sobre o estudo aqui desenvolvido, e possíveis
desdobramentos para a Historiografia da Educação Brasileira.

11
Fernando de Azevedo como objeto da História

Neste capítulo, pretendo examinar a literatura historiográfica cujo objeto é


Fernando de Azevedo e sua produção. Ao fazer o levantamento das fontes bibliográficas
sobre Azevedo, não encontrei um espectro grande de obras que estudassem este
pensador/político. Entre as abordagens, a mais comum é a que se refere a Azevedo junto a
seu grupo. Para mim, que busco estudá-lo fora desta condição - de “Pioneiro da
Educação” - esta abordagem é secundária.
Procurei enfrentar a bibliografia que abordasse Azevedo independentemente do
“palco onde ele mesmo se colocou”, ou a bibliografia que tivesse como objeto específico
A Cultura Brasileira. Percebi que as obras que tratavam de Azevedo especificamente, o
faziam a partir de três abordagens:
- do ponto de vista filosófico: buscam na obra de Azevedo seu sistema de pensamento, a
lógica que o compõe e suas contradições;
- do ponto de vista da crítica historiográfica: as obras que abordam as construções
históricas de Azevedo, com o objetivo de criticá-las para, a partir daí, reconstruir os seus
objetos históricos, diferenciando-os da maneira como foram propostos pelo Autor;
- do ponto de vista da História: os trabalhos que tomam Azevedo e suas ações como
objeto histórico.
Dei prioridade às duas últimas abordagens, por serem aquelas que, por um lado,
me auxiliam na compreensão de meu objeto, e por outro, são as obras que abordam
Azevedo da maneira como aponto em “Contribuição....”. As obras que tratam
especificamente de A Cultura Brasileira também têm abordagens diferenciadas14, porém
considerei a necessidade de examiná-las à medida que são utilizadas como subsídios, em
algumas das abordagens acima expostas. Por outro lado, são as obras que tratam
especificamente de meu objeto.
Os textos aqui expostos foram ordenados a partir do modo pelo qual constituem
seu recorte específico, em torno de um mesmo tema:
- os que se referem aos escritos "políticos" de Azevedo, nos quais estaria exposto o
projeto político - educacional do Autor e, por vezes, o de seu grupo, ou ainda a sua ação
política, nos momentos em que assumiu cargos públicos;

14
Dentre os trabalhos aqui expostos podem ser apontados dois tipos de abordagem: a crítica historiográfica
e a crítica ideológica.
12
- os autores que trabalham a literatura de Azevedo como constituidora (ou como uma das
constituidoras) de uma memória, dentro da própria historiografia da Educação. Tal
ordenação permite verificar as diferentes questões que têm sido levantadas em relação ao
tema e como este tem se transformado em objeto, dentro e fora do campo da História da
Educação Brasileira.
- e, por fim, os que têm como alvo principal o livro A Cultura Brasileira, procurando
compreender o emaranhado de questões suscitadas pela história da cultura produzida por
Azevedo.

O criador: Fernando de Azevedo como objeto da História

Os trabalhos aqui expostos, além de se debruçarem sobre a produção de Azevedo,


como explicitado anteriormente, têm outro ponto comum: são produtos dos programas de
pós-graduação em Educação, das décadas de 70 e 80, com exceção do trabalho de Irene
R. Cardoso, apresentado junto ao Departamento de Ciências Sociais (FFLCH-USP). Estes
trabalhos têm características peculiares, tanto em relação às condições de sua produção
(Cf. Warde, 1990b), como por serem objeto de crítica historiográfica que será considerada
na exposição referente à memória constituída por Azevedo, na Historiografia da Educação
Brasileira.
Na dissertação intitulada A Educação Preventiva de Fernando de Azevedo,
Manoel J. Soares se propõe a, "a partir do Inquérito da Instrução Pública em São Paulo,
realizado em 1926 por Fernando de Azevedo, a pedido do Jornal o Estado de São Paulo,
tentar identificar (...) qual a proposta educacional nele contida, através do discurso do seu
organizador e orientador."(Soares,1978:11).
Soares considera que
o Inquérito de Fernando de Azevedo, talvez seja o primeiro grande debate público
sobre educação realizado no Brasil, na década dos vinte - constituindo-se numa
crítica aberta e forte ao sistema de ensino vigente, e numa (citando o próprio
Azevedo) “vontade decidida de atacar pela frente reformas escolares, destinadas
a ajustar as instituições educacionais às novas condições da vida social e
econômica do país”. (1978:3).
Também entende que o estudo do Inquérito tem relevância na medida em que:

13
- a década de vinte foi um momento histórico de grande importância para
a cultura brasileira, com a afirmação da consciência nacional, e para a educação
brasileira, onde os debates sobre os problemas educacionais praticamente
nasceram, e se multiplicaram as reformas de ensino.(1978:8)
- é nessa época que as questões da instrução pública transpõem os muros
do Legislativo e passam a ser objeto da ampla discussão, reunindo figuras das
mais expressivas entre educadores políticos, intelectuais, jornalistas, bem como
as páginas da grande imprensa, como o jornal O Estado de S. Paulo (1978:8-9).
- é esse Inquérito que inaugura para Fernando de Azevedo uma nova
carreira, que o acompanhará até o fim da vida (...) (1978:9)
Nota-se que as afirmações de Soares sobre a relevância de seu estudo estão
apoiadas na própria opinião de Azevedo que, por um lado, afirma ter tido o Inquérito
relevância nacional, e por outro reconstrói em A Cultura Brasileira este momento, que é
citado por Soares.( ver notas de rodapé no 11 e 12 - 1978:8-9). Assim, Azevedo não é
apenas o objeto de estudo do Autor, mas também fonte de referência - informa a própria
história, complementando ou apoiando os fatos que a constituem - de personagem
principal, passa a referência historiográfica de sua própria história.
O propósito do trabalho de Soares é "tentar identificar, nesse documento, o projeto
educacional que, para a época (década de 20), formulou Fernando de Azevedo, em
perfeito acordo com os demais produtores da pesquisa"(1978: resumo)
Para que o objetivo da dissertação, segundo seu autor, seja alcançado, "tentamos
descobrir a relação existente entre esse discurso e o contexto histórico - social da época
em que se realizou o Inquérito, ou seja, a década dos vinte"(1978:11). O capítulo I é,
então, a contextualização do período.
"O caráter histórico da educação impede-nos, pois, de tratá-la, em qualquer
hipótese, como fenômeno isolado do processo social global. Daí a razão deste
capítulo, que pretende traçar, embora sucintamente, um panorama das
transformações sociais, políticas, econômicas e culturais pelas quais passou o
Brasil na década dos 20, período em que se realizou o “Inquérito sobre a
Instrução Pública em São Paulo"(1978:12).
O estudo do Inquérito é, dessa forma, sobreposto ao cenário característico da
época, ficando definitivamente apartado de sua historicidade - na medida em que as
características históricas do período "não podem ser" percebidas a partir do objeto e de
14
suas implicações, têm que ser explicitadas separadamente - assim, para que apareçam sua
historicidade e vínculos com o momento histórico, as conexões se tornam externas ao
objeto e às questões que esse suscita.
A operação metodológica se dá em três tempos: contexto, descrição do objeto;
conexões entre contexto e objeto (que são as conclusões), daí a distância entre o que se lê
no capítulo I e os outros capítulos do texto, nos quais o objeto é tomado isoladamente.
Essa distância só diminui nas conclusões, onde já se teriam as condições ( descrição do
momento e do objeto) para operar as relações objeto/tempo histórico ou contexto. Para
Soares, há a necessidade de "antes (...) de demonstrarmos as conexões entre o Inquérito e
seu contexto, apresentamos nos capítulos que se seguem os resultados da pesquisa de
Fernando de Azevedo, seguindo a mesma ordem pela qual ela foi realizada"(1978:37).
Observa-se, então que o objeto é estático: pode ser descrito independentemente de suas
relações temporais ou contextuais, sem que o contexto interfira no objeto ou o objeto no
contexto.15
Ainda sobre o contexto histórico, é interessante notar que é constituído a partir de
fontes secundárias16. Para a conjuntura político-econômica contribuem Maria Isabel P.
Queiróz, Paulo Sérgio Pinheiro, Décio Saes, Jorge Nagle, Octávio Ianni, Edgar Carone,
Fernando Henrique Cardoso, Celso Furtado, Caio Prado Júnior e outros; para a conjuntura
sócio-cultural e educação: principalmente Jorge Nagle, com contribuições de Vanilda
Paiva e do próprio Azevedo. A despeito das diferenças teóricas e metodológicas, ou
mesmo dos diferentes pontos de vista em relação aos fatos históricos, bem como das
explicações e conseqüências dos mesmos, as fontes cumprem o papel de constituidoras
destes fatos e explicações, que são harmonizados a partir dos diferentes assuntos

15
Em artigo onde empreende o balanço e avaliação da produção historiográfica da educação brasileira,
referente ao período entre 1970 1984, Warde considera existirem quatro principais tendências características
neste campo, dentre elas a "segunda" e a "quarta" tendências, por enfatizarem o trato concreto da educação,
acabam por trazer "as marcas do tratamento setorizado, daquilo que é tomado como 'determinações
econômicas, sociais e político-ideológicas' e a educação propriamente dita". Para Warde, no exame dos
trabalhos inscritos nessas tendências, "o que se constata é a adição, ou se quiser a justaposição dos traços
contextuais de um momento histórico ou de diferentes momentos históricos e traços caracterizadores da
educação", operação pela qual, ao fim e ao cabo, as determinações concretas acabam por não se revelar. Nos
trabalhos parece prevalecer a idéia de que a educação é "uma esfera da realidade social na qual se reflete a
'infra-estrutura' ", e não "uma das manifestações, em suas particularidades, do momento político-ideológico,
e [ que ] assim deve ser explicada historicamente..." (Cf.Warde, 1984: 4)
16
Entendo como fontes secundárias ( ou de apoio ) a literatura que versa sobre o tema e por isso subsidia o
autor a construir o seu objeto, não sendo, portanto, fontes empíricas diretas (primárias) a partir das quais o
objeto da pesquisa é construído.
15
abordados no contexto17. Assim, Saes é chamado para as questões dos partidos políticos,
Furtado indica e explica as transformações econômicas, Ianni contribui com as
características das lutas político - sociais, Nagle e Paiva fornecem o quadro cultural e
educacional da época. Com exceção do debate em torno do Tenentismo - em uma
passagem onde o autor indica que não há concordância dos autores em relação ao tema
(21, nota 20) - os fatos e explicações são tomados de seus produtores sem o cuidado com
as devidas diferenças, sem considerar as diferentes lógicas que fizeram emergir tais
interpretações.18
O Inquérito é descrito minuciosamente por Soares, nos capítulos subsequentes,
divididos em três partes:
- síntese dos artigos de introdução às questões discutidas em cada nível de ensino,
escritos por Azevedo;
- "os comentários e as sugestões apresentadas pelo organizador do Inquérito, a partir dos
depoimentos por ele recolhidos entre os entrevistados"( 1978:38;56;78);
- os questionários utilizados por Azevedo para cada um dos níveis de ensino, que -
reconstituem a tônica das discussões desenvolvidas no Inquérito, evidenciando as
características de cada segmento da pesquisa, tirando conclusões específicas para cada um
deles.
O último capítulo, cujo nome é o mesmo da dissertação, tem como objetivo
discutir a questão que nos parece mais relevante, sugerida pelo discurso de
Fernando de Azevedo na condução do Inquérito (...): a pregação do orientador do
Inquérito e, portanto, do Jornal O Estado de S. Paulo que o promoveu, encerra
um projeto educacional bem definido e com uma função precisa dentro do
contexto histórico-social em que o Inquérito se realiza. Em outras palavras,
pretendemos mostrar como Fernando de Azevedo, revestindo de roupagem liberal
o caráter elitista de seu projeto, tenta recuperar, pela educação “modernizada”,
a hegemonia ameaçada das oligarquias rurais. (1978:98-99).

17
No entender de Warde, o tratamento da educação como uma esfera da realidade social na qual se reflete a
infra-estrutura, leva os autores de dissertações e teses a buscar apoio para as contextuações em obras
variadas, assimilando fontes que nem sempre se compatibilizam ou que não servem de suporte às posições
educacionais que querem defender ou às críticas que querem elaborar (Cf. Warde, 1984: 5).
18
Segundo Adam Schaff, para que um acontecimento seja considerado fato histórico é preciso que o
historiador defina a priori o grau de importância do mesmo no âmbito do processo histórico em estudo, ou
seja, que este acontecimento se integre a um determinado "sistema de referência", em um contexto dado
pelas "suas relações com certa totalidade". Adam Schaff (1991) História e Verdade.
16
Para chegar a essa conclusão, Soares faz dois movimentos: no primeiro, identifica
Azevedo como porta-voz do Jornal O Estado de S. Paulo; no segundo, em nota, identifica
o referido jornal à oligarquia paulista - "Em A Ideologia de O Estado de S. Paulo (1927-
1932), Maria Helena Rolim Capelato afirma ser esse jornal porta-voz das oligarquias
paulistas"(1978:99, nota 2). Logo - conclui o autor - " Azevedo fala pelas oligarquias."
A tese do Autor é que o sistema fechado e "elitista"19 de educação proposto por
Azevedo estaria construído em função de salvaguardar as oligarquias rurais, no momento
em que seu domínio estava ameaçado pelo curso das transformações históricas.
(...) As mudanças da sociedade brasileira - que já não se podiam conter - não
afetariam a estabilidade social e o equilíbrio das instituições, se conduzidas por
um tipo de educação que, formando nas classes dirigentes elites esclarecidas e
educando adequadamente - para a submissão - as massas populares, produzisse a
necessária e urgente “coesão nacional".
Tais conclusões despertam algumas questões, tanto em relação ao método, quanto
em relação à lógica histórica contida na pesquisa:
- É possível afirmar, de maneira tão categórica, a identidade de Azevedo com O Estado de
S. Paulo, por este ter sido contratado pelo seu diretor para dirigir o Inquérito?
- Os indícios encontrados nos textos de Azevedo são suficientes para indicá-lo como
porta-voz do jornal ?20
- Como é possível justificar a identidade do jornal com a oligarquia, a partir das
conclusões do trabalho de outrem - identidade essa que tem peso decisivo nas conclusões
- sem que este mencionado trabalho seja discutido minuciosamente pelo Autor ?
Ao amarrar o contexto histórico e o Inquérito a partir da caracterização da
identidade de Azevedo, Soares esquece que Nagle e Paiva, utilizados no contexto das

19
"Como ficou demonstrado, no seu projeto educacional, Fernando de Azevedo acentua mais a necessidade
da 'formação das elites' e para isto 'a educação que aloca os indivíduos conforme seus dons, os diferencia e
com isto dá coesão ao todo social'"(Cf. Soares, 1978:118-119)
20
Para Irene Cardoso, existe sintonia entre o projeto de Fernando de Azevedo e o Jornal O Estrado de S.
Paulo, porém "convém não esquecer (...) a sua relativa autonomia em relação ao 'grupo do Estado', expressa
nas demais iniciativas que realiza (Reforma da Instrução Pública no Distrito Federal, em 1927, e a sua
ligação expressa no núcleo dos educadores da Escola Nova, ao lado de Lourenço Filho, Anísio Teixeira,
Almeida Júnior, dentre outros elementos sem ligação com o 'grupo do Estado'). Daí a caracterização, feita
anteriormente a seu respeito, como elemento não tipicamente do núcleo do 'grupo do Estado'."(Cf. Cardoso,
1982: 105). Mesmo trabalhando com a identidade existente entre Azevedo e o Jornal, a Autora propõe um
movimento inverso onde O Estado de S. Paulo recupera a Campanha de reconstrução educacional como
parte de sua campanha (Cf. Cardoso,1982:95). Ou seja, a sintonia existente entre as campanhas de
Renovação da Educação promovida pelos "Pioneiros" e a campanha pela educação do Jornal não faz de
Azevedo um porta-voz imediato ou óbvio de todos os projetos políticos do mesmo.
17
transformações culturais e educação, inserem Azevedo em um outro grupo - os "Pioneiros
da Educação"- que não se identificaria com o Estado de S. Paulo. Como conciliar as duas
explicações históricas? 21
Segundo Soares, o "caráter corretivo das desordens populares, das convulsões
sociais, com o povo guiado por elites competentes e esclarecidas, seria o principal papel
da educação projetada por Fernando de Azevedo no Inquérito...". Quem é a "elite
dirigente" apontada por Azevedo ? Não poderia ser a "burguesia emergente", citada no
contexto, já que seu projeto estaria inscrito entre os que, a partir dos novos movimentos
políticos e sociais, que defendiam a nova civilização urbano-industrial (p.27),
22
introduziram "novos padrões de pensamento e de conduta"? Ainda se supusermos
correta a identidade de Azevedo com o projeto político do Jornal, como entender a
identidade deste com as oligarquias, a partir da citação - feita por Soares - de J. Mesquita
Filho23, que critica o regime político daquele momento e as elites que ocupavam o poder ?
A "elite dirigente", idealizada por Azevedo, é a classe "economicamente dominante", ou
seria um outro grupo formado para ocupar esta função como, por exemplo, os
intelectuais?
Por um lado, as conclusões de Soares se apoiam em uma operação metodológica
pouco eficiente, na medida em que não explicita os critérios que o levaram a adotar as
conclusões de Capelato; por outro, o documento estudado e descrito tão minuciosamente,
é secundarizado, tanto para estabelecer o contexto, quanto para as conclusões, que são
construídas fora dos indícios produzidos na leitura e análise do documento: as
características do Inquérito (o "elitismo" e "autoritarismo" do projeto de Azevedo),
produzidas no trabalho, são submetidas à lógica de explicações externas, formuladas por
outro.

Em tese de doutorado Irene R. Cardoso, com o objetivo de compreender e


desvendar o "mito de criação" da USP - "mito liberal-democrático"- vasculha o projeto de

21
"Nesta parte do capítulo, inspiramo-nos sobretudo na 2a parte dessa obra de Nagle."(Cf. Soares1978:27).
Refere-se a Jorge Nagle. (1974) Educação e sociedade na Primeira República. São Paulo. e a Vanilda P.
Paiva.(1973) Educação Popular e Educação de Adultos.
22
"O fortalecimento do grupo industrial-urbano das classes dominantes, a ampliação dos setores médios e do
proletariado urbano, o nacionalismo suscitado pela guerra e a pressão dos padrões da democracia liberal
republicana definem o período como de mudança, 'caracterizado pelo estabelecimento mais firme de
requisitos da nova fase do Capitalismo'."(Cf. Soares,1978:26).
23
"(...)'A reação que se esboça contra o regime oligárquico é a única manifestação palpável da vitalidade
Nacional'."(Cf. Soares, 1978:102, nota 6A).
18
criação, a implantação e os primeiros passos da Universidade. Para ela, há um mito "por
que se trata de uma invocação que realça o espírito de liberdade ( de pensamento, de
ensino e de pesquisa) que teria presidido a criação da Universidade”, e com ele
"escamoteia-se que foi criada sob a ditadura Vargas, quando Armando Salles de Oliveira
era interventor (...)"; se omite, também, que no momento de sua implantação, "os liberais
estavam no auge de seu empenho anti-comunista, fazendo alianças com os setores mais
intransigentemente reacionários"; assim como se omite que, nesse momento, os "liberais
postaram-se contra a liberdade de pensamento e de expressão". (Cardoso,1982:18). Deste
problema, nasce a necessidade de compreensão do projeto político ao qual esta proposta
de Universidade está ligada.
A Autora percebe, então, que a leitura dos documentos, ou as fontes primárias, que
tratam especificamente da criação da Universidade não são suficientes, ampliando a
consulta24 para o que chama de "projeto político ideológico do grupo do Estado".25
Cardoso estrutura a exposição de seu trabalho, acompanhando "os momentos do
projeto político e ideológico da Comunhão paulista26, de modo que cada uma de suas
partes corresponde a uma configuração desse projeto".27(1982:21). Para Cardoso, "o
projeto da Universidade é parte desse projeto mais amplo da Comunhão, proposto como o

24
"A pesquisa foi iniciada com a leitura de textos que tratavam da criação da Universidade. Gradativamente
foi aparecendo a necessidade de consultar textos referentes ao projeto político e ideológico do 'grupo do
Estado'."(Cardoso,1982:20). Os textos selecionados pela Autora são: na primeira parte, Inquérito sobre a
Instrução Pública em São Paulo, de Azevedo, 1926, A Crise Nacional, de Júlio de Mesquita Filho, 1925,
A Comunhão Paulista, de Mesquita Filho, 1922; na segunda parte, Manifesto de 32, de Azevedo, 1932, o
Plano Nacional de Educação, da 5o Conferência Nacional de Educação, 1934, Projeto do Decreto que
cria a Universidade, de Azevedo, 1934.; na terceira parte, os discursos políticos de Azevedo e Mesquita
Filho.(Cf. Cardoso,1982:20)
25
A Autora entende por "Grupo do Estado": os "diretores e principais redatores do jornal, que transitavam
num universo político e ideológico assemelhado, constituíam o núcleo do Estado".(Cf. Cardoso,1982:43)
26
"O 'grupo do Estado' considera-se a Comunhão Paulista. (...) A Comunhão Paulista não se identifica com
O Estado de S. Paulo, mas é a representação ideológica que o 'grupo do Estado' faz de si mesmo"(Cf.
Cardoso,1982:41).
27
Parte I: "Regeneração dos costumes políticos da nacionalidade", corresponde "ao aparecimento de A Crise
Nacional, de J. Mesquita Filho, primeiro texto em que se fala explicitamente da necessidade de criação da
universidade em São Paulo; por outro lado a Revolução incorpora a Revolução de 30 como parte do seu
projeto, vendo nela a possibilidade da 'regeneração dos costumes políticos da nacionalidade, cujo
significado seria a superação da 'crise das oligarquias', e a solução principal a criação da universidade.".
ParteII: "Reconstrução Nacional", onde se daria a luta contra a "centralização" e "arbítrios" do Governo
Provisório, através das campanhas de "Reconstitucionalização" e "autonomia de São Paulo". "Por outro
lado, a 'reconstrução nacional' implica também a incorporação pela Comunhão, para seu projeto de temas do
ideário do 'movimento de renovação educacional'(...)". Na parte III, "Criação da Mística Nacional", "inicia-
se com a comunhão no poder(...) e com a criação da Universidade. Caracteriza-se pela tentativa de garantir
que a Universidade cumpra sua missão"- "o da 'arrancada da Comunhão' em busca do poder nacional e o da
'cruzada anticomunista' pela defesa da democracia. Este momento expressa o auge do autoritarismo de que o
liberalismo da Comunhão foi capaz e, simultaneamente, a impossibilidade da realização do seu projeto
político ideológico mais amplo, com a instalação do Estado Novo"(Cf. Cardoso,1982: 22,23)
19
seu ponto nuclear". Assim, só ganha "inteligibilidade" a partir da reconstrução deste , pois
cada um dos momentos do projeto mais amplo "permite reter os conjuntos de significados
que a Comunhão atribui à Universidade.". Estes momentos também são conformadores da
periodização estabelecida pela Autora: 1925-1930, 1930-1934, 1934-1937. (1982:22).
Para a compreensão do problema levantado, Cardoso procura identificar, no que
considera os principais documentos produzidos pelo Grupo28, o que este entendia por
"crise das oligarquias" e, a partir daí, o que propropunha como solução de superação da
mesma29
A possibilidade da reconstrução histórica do projeto e da identidade do grupo que
o produz, segundo a Autora, está no entendimento dos temas principais discutidos nos
documentos selecionados, indícios das posições político-ideológicas que seus produtores
assumem, a partir dos quais pode-se acompanhar sua ação.(1982:22.)
O momento histórico se revela, na medida em que vai se tecendo a identidade do
grupo perante cada um dos temas, e a forma pela qual age para impor seu próprio projeto,
a cada novo desafio que lhe é posto, conforme os novos acontecimentos. Ou seja, o objeto
não é estático, estudado isoladamente, mas se move conforme movem-se a economia, a
política, as forças sociais. Está inserido nestes movimentos e, ao mesmo tempo, é o
próprio movimento interferindo ativamente nestes planos - não é apenas o fruto da
mudança, nem se debate, esterilmente, contra a inexorável transformação; seu projeto
interfere, assim como é modificado, conforme os múltiplos acontecimentos se dão. Neste
sentido não há a necessidade de um contexto para que o objeto adquira historicidade e
estabeleça relações com as histórias econômica, política, social e cultural.
Assim como Soares, Cardoso entende que a proposta educacional de Azevedo é
uma proposta política, por ser a educação um instrumento - "instrumento político de
coesão" - para a transformação social. Porém, para a Autora, Azevedo também considera
a educação um problema técnico, que deve estar acima de qualquer interesse político.
Para desvendar essa aparente "discrepância", propõe a retomada do conceito de "elite
orientadora", tal qual é entendido por Azevedo. "É a elite que teria condições de propor
um projeto para a nacionalidade que estivesse acima das paixões partidárias, na medida
em que ela é concebida como composta pelas iniciativas particulares, esclarecidas e
28
"Os documentos considerados mais significativos foram os seguintes : 1) Inquérito sobre a Instrução
Pública em São Paulo (...); 2) A Crise Nacional (...); 3) A Comunhão Paulista (...)"(Cf. Cardoso,1982:27)
29
“A análise destes documentos irá demonstrar como a proposta educacional da Universidade está
inextrincicavelmente ligada a um projeto para a sociedade. Fornecerá, ainda, os elementos necessários à
caracterização do que o 'grupo do Estado' denomina 'crise das oligarquias’”(Cf. Cardoso,1982:27).
20
sustentadas em todas as classes e direções"(1982:29). Daí a ênfase dada, no projeto, à
formação da elite e à organização da Universidade30
Cardoso conclui que o projeto do "grupo do Estado" seria "democrático e liberal",
pois a "democracia só pode ser realizada por uma elite, onde o jogo democrático é
caracterizado pela possibilidade sempre aberta de renovação, e que afirma a
incompetência das massas de se auto-governarem.", daí a necessidade da elite esclarecida,
e onde a concepção de liberalismo "é construída na mesma direção, sendo que, já na sua
matriz, a possibilidade histórica de um Estado forte é, no limite, aceita" como estratégia
para garantir a própria democracia contra o comunismo e o fascismo.(1982:91-92).
Depois de caraterizar o projeto político do "grupo do Estado", Cardoso, nos
momentos subsequentes da periodização, acompanha, por um lado, a luta do Grupo para
chegar ao poder e, por outro, a luta empreendida, pelo mesmo, contra a possibilidade do
comunismo e do fascismo se instalarem no Brasil31, mapeando as estratégias do Grupo
para impor seu projeto até a derrota, com o estabelecimento do Estado Novo. É a partir
deste duplo reposicionamento do Grupo, que a Autora estabelece as condições em que foi
concebido e perpetuado o "mito liberal - democrático de criação" da USP.
Ao comparar A Cultura Brasileira e entrevistas a Azevedo, realizadas por ela, com
os escritos dele entre 1925-37, em relação ao caráter político da fundação da
Universidade, Cardoso verifica uma mudança de posição (para ela quase inexplicável),32
dado
(...) que os textos deste autor no período de 1925 a 1937 eram claramente
políticos. A posteriori, a problemática central de fundação da Universidade, qual
seja a da formação das elites dirigentes, aparece de forma muito atenuada ou não
aparece. Na obra de Fernando de Azevedo A Cultura Brasileira, por exemplo, a
criação da Universidade aparece na exposição, sucedendo às inúmeras iniciativas
educacionais da época, sem destaque da formação das elites dirigentes, esvaziada
do conteúdo político (...).(1982:55).

30
"A Universidade teria basicamente duas funções dentro da sociedade: formação do professorado
secundário e superior e, 'função superior inalienável', formação, isto é, preparo e aperfeiçoamento das
classes dirigentes. (...) São concebidas como 'organismos vivo', adaptados às sociedades e destinados a
acompanhar e dirigir-lhes a evolução, em todos os aspectos de sua vida múltipla e variada"(Cf. Cardoso,
1982: 28-29)
31
Segundo a Autora, "as desordens populares" a que Azevedo se refere são a possibilidade do comunismo e
do fascismo.(ver capítulo 5, parte III)
32
Para as posições encontradas no A Cultura Brasileira levanta a hipótese de assim serem pelo livro ter sido
produzido durante o Estado Novo.(1982: 55, nota 19)
21
Constata que, além de Azevedo, outros autores (cita Jorge Nagle ) buscaram
analisar este período, ressaltando o plano educacional.
A adoção de uma postura que tentasse explicar a fundação da Universidade a
partir de um “panorama educacional”, que autonomiza a dimensão educacional,
acabaria por, no limite, explicar aquela fundação como parte de um movimento
de renovação educacional, reduzindo ou anulando a dimensão política e
ideológica daquele projeto."(1982:55).
Para a Autora, tais posições estariam contribuindo com a perpetuação do "mito da
criação".

Outro trabalho que se refere à obra política de Azevedo é a dissertação de Nelson


Piletti sobre a Reforma Fernando de Azevedo do Distrito Federal, entre 1927 - 1930.
O Autor procura,
na medida em que a Reforma foi fruto da interação que se estabeleceu entre o
pensamento do reformador e o meio em que era exercida - não importando aqui a
proporção do domínio de cada um dos pólos dessa interação - estudá-la e
apresentá-la a partir dela mesma, do seu interior.( Piletti,1982:9)
Piletti também pretende
oferecer elementos que permitam verificar até que ponto a reforma fez jus a essa
avaliação33, mas o objetivo é, principalmente, interrelacionar as propostas
teóricas transformadas em lei e as realizações práticas, condimentadas pelas
condições reais, o que se fará, particularmente nas conclusões.
E, ainda, espera "lançar um pouco mais de luz sobre o nosso passado educacional,
na esperança de que esta luz reflita no presente e no futuro"(Piletti,1982:29).
As fontes primárias utilizadas pelo Autor são "o pensamento manifesto de
Fernando de Azevedo na época da reforma e a sua materialização no projeto de sua
autoria retificado por emendas e vetos"; também utiliza os jornais de maior circulação do
Distrito Federal.
Piletti se preocupa, na apresentação do texto, em situar a posição do historiador em
relação ao conhecimento que este produz. Considera, a partir de Marrou, que o

33
Piletti se refere à avaliação produzida por Nagle - Reforma de Azevedo teria sido um movimento ao
mesmo tempo "reformista" e "remodelador". (Piletti,1982:28).
22
conhecimento histórico é científico, porém limitado pela impossibilidade de se reconstruir
o passado tal como foi, por ser o historiador também histórico e estar impregnado de seu
tempo. Para superar esses limites, inerentes à própria espécie de conhecimento, o Autor
tenta, na medida do possível, se "imbuir" do pensamento de Azevedo e, "até mesmo
assimilá-lo de forma a identificar-se com seu processo".
Apesar destas observações teóricas, Piletti utiliza-se da história produzida por
outros historiadores como se fossem o próprio passado "tal como foi".
Na introdução da dissertação, dedicada à época histórica que antecede a Reforma,
inspira-se no trabalho de Nagle e, assim como Soares, percorre, sucintamente, os "setores"
econômico, político, social e educacional, harmonizando diferentes autores conforme as
questões tratadas. Esquece-se, assim, da própria advertência sobre as peculiaridades do
conhecimento histórico, adaptando as explicações dos diferentes autores, sem a
preocupação da peculiaridade inerente à construção dos fatos históricos. 34
O problema do isolamento do objeto em relação à sua própria historicidade
também é verificado aqui, com o agravante do contexto não se relacionar com o objeto,
tornando-se um quadro solto.
Piletti estrutura seu trabalho
exatamente pelos princípios que configuraram o espírito da Reforma e pelos
dispositivos legais que os consubstanciaram: escola única, escola do trabalho e
escola do trabalho em cooperação, temas analisados nos capítulos 3o, 4o, 5o. (...)
O capítulo 1o, destacando o recenseamento escolar (...); e o capítulo 2o, em que
se apresenta a tramitação do projeto de Fernando de Azevedo no Conselho
Municipal e suas repercussões na opinião pública, bem como as providências
concretas tendentes à sua execução(...). O 6o capítulo é dedicado ao que seria o
meio mais eficiente de infundir aqueles princípios no aparelho escolar e na
comunidade: o professor e sua formação; enquanto na parte referente às
conclusões retomo criticamente, em função dos objetivos inicialmente traçados
pelo movimento renovador, cada um dos seus aspectos. (1982:10)
A operação metodológica efetuada por Piletti é descrever, através dos documentos
selecionados, a Reforma e o impacto da mesma no que chama de "opinião pública". Os
documentos são praticamente compilados, sem que se desvende a lógica que os
34
Piletti utiliza-se de J. Nagle, E. Carone, B. Fausto, C. Prado Jr., Werneck Sodré, conforme os temas
percorridos.(1982: 15-31)
23
constituiu. A opinião pública é identificada com os jornais. O documento é tomado, então,
como se fosse a fonte mais fidedigna do real, ou mesmo o próprio real; na medida em que
a reconstrução das características do Ensino Público são informadas pelo próprio
Reformador, a sua visão não é diferenciada de outras possíveis, assim como a identidade
dos jornais com a opinião pública não é questionada.
Enquanto Soares e Cardoso se preocupam em demonstrar o comprometimento dos
trabalhos produzidos por Azevedo com um projeto específico ou um grupo social, Piletti
constrói "sua" história da Reforma a partir da visão de Azevedo, sem a consciência do
comprometimento que essa possa ter com os grupos e projetos políticos, ou seja com as
condições de sua produção.
Azevedo também é considerado, a partir da construção de Nagle, como parte de
um grupo homogêneo - os Pioneiros da Educação (não, necessariamente, considerados
como grupo político - para Nagle, promovem a despolitização da educação [Nagle,1977]).
Seu projeto é vinculado a esse movimento a priori e será avaliado por Piletti como tal.
As conclusões do Autor são os resultados desta avaliação - das propostas da
Reforma em relação à realidade e em relação aos princípios da Escola Nova. Procura
verificar o mérito X demérito; eficácia X ineficácia; elitismo X democracia, etc..
Para fazer tal avaliação, utiliza os escritos de Azevedo como fontes primárias - que
constituem a Reforma - o A Cultura Brasileira e o trabalho de J. Nagle como os
informantes da realidade, à qual a Reforma será comparada e avaliada.
Três problemas podem ser considerados sob o enfoque desta operação:
1) Seria essa uma operação de reconstituição histórica, já que o objeto é retirado
de sua própria realidade para ser comparado, posteriomente, a ela, deixando de ser
produto da mesma?
2)Se o conhecimento da realidade, ou de suas características, às quais será
comparada a Reforma (produto do conhecimento histórico, limitado por sua própria
condição) foi produzido pelo próprio reformador, não estaria esta comprometida com
determinada visão de seu produtor? Não se estaria formando um jogo de espelhos onde a
visão de Azevedo acaba por prevalecer, já que é ele o objeto e, ao mesmo tempo, é ele o
construtor da realidade à qual o objeto será comparado?
3) Ao se verificar as diferenças entre a "materialidade da reforma" e os princípios
da Escola Nova, não seria isso menos um indício das deficiências da Reforma e mais uma

24
pista de que o movimento escolanovista não era tão homogêneo como propuseram Nagle
e o próprio Azevedo?
Há uma outra espécie de apropriação do objeto, voltada para a compreensão do
sistema de pensamento "filosófico, sociológico ou educacional" de Fernando de Azevedo,
onde a História está em segundo plano, ou seja, não é a História o principal objetivo do
estudo, mas a lógica do pensamento de Azevedo e as influências sob as quais se
desenvolveu. Exemplos desta espécie de produção são Fernando de Azevedo: Educação e
transformação e Fernando de Azevedo: sua contribuição à Educação Brasileira, de
Maria Luisa Penna e Catherine C. Rato, respectivamente. Por esse motivo estes trabalhos
não serão expostos com maior profundidade
Penna tem como objetivo específico "estudar o pensamento azevediano, em
especial suas reflexões sobre as relações entre educação e mudança
social".(Penna,1987:XXI). O método empregado, segundo a Autora, "derivou-se
exclusivamente dos problemas que o pensamento de Fernando de Azevedo parece
levantar. Por isso optou-se pela reflexão e crítica instrumentalizando-se as citações e
pontuando-as com algumas observações e indagações."(1987:XXVII). Apesar de suas
contribuições serem importantes, estão em outro campo, não auxiliando diretamente as
discussões da História, que aparece como "pano de fundo" do desenvolvimento do
pensamentode de Azevedo.
O mesmo se dá com o trabalho de Rato, que tem como objetivos: " 1) caracterizar
o pensamento pedagógico e sociológico de Fernando de Azevedo expresso entre 1930 e
1945, através da exposição sistemática de suas idéias sociológicas, educacionais e
conceitos ideológicos, relacionando-os ao contexto social da época; 2) Fazer uma
apreciação crítica do pensamento pedagógico de Fernando de Azevedo e da sua
contribuição ao desenvolvimento da Sociologia no Brasil, avaliando sua coerência interna
e aplicabilidade, de modo a situá-lo no contexto do pensamento educacional e cultural
contemporâneo.".35

A Memória: uma história com longa duração

35
A Autora considera seu trabalho como um "estudo de natureza não empírica, que se fundamenta no exame
de documentos, mais especificamente de livros e artigos de F. Azevedo (...). A metodologia combina
elementos de investigação histórica, sociológica e filosófica (...)".
25
Os trabalhos aqui discutidos fazem parte de um movimento de superação, em
forma de crítica historiográfica, de um modo peculiar de produção da História no campo
da Educação36.
Em torno do tema dos movimentos educacionais das décadas de 20 e 30, suas
autoras, Marta M C. de Carvalho e Zaia Brandão entre outros, procuraram criticar o
isolamento da História da Educação brasileira em relação à Ciência da História, os aportes
e métodos freqüentemente utilizados neste campo, assim como as cristalizações que se
formaram em relação aos fatos históricos e suas explicações.37
O interesse em destacar esses trabalhos, que não têm como tema principal
Fernando de Azevedo e seus escritos, está na discussão que fazem em torno da memória
cunhada por ele na História da Educação brasileira. Por isto, as conclusões em relação aos
seus objetos mais específicos entraram na exposição apenas secundariamente (na medida
em que contribuem para o debate), e são privilegiadas as passagens das teses que se
referem a esta questão, assim como os artigos que a desenvolvem.
Em tese intitulada, Molde nacional e forma cívica: higiene, moral e trabalho no
projeto da Associação Brasileira de Educação (1924-1931), Marta M. C. de Carvalho,
com o objetivo de delinear o projeto articulado na organização da ABE, procurou
verificar os pontos de consenso e divergência dos diferentes projetos ali existentes. Como,
segundo a Autora, a inexistência de consenso se deu na própria concepção do que era ou
do que deveria ser a Associação, ela " valorizou a dissensão entre as propostas
educacionais em debate, na tentativa de constituir dinamicamente o processo de discussão
desencadeado na ABE, também como recurso para explicitar os limites e intersecções
destas propostas".(Carvalho, 1986: I- II) Este trabalho, segundo Carvalho, não foi
construído a partir de um referencial teórico rigidamente demarcado em que se
enquadrassem os resultados da pesquisa empreendida. "Ele se posiciona (...) a respeito de

36
Bruno Bontempi Jr. e Maria Rita de A.Toledo.(1994) “Historiografia da Educação Brasileira: no Rastro
das Fontes Secundárias.”; Clarice Nunes.(1992) "História da Educação Brasileira: novas abordagens de
velhos objetos"; Marta M. C. de Carvalho e Clarice Nunes.(1993) "Historiografia da Educação e Fontes.”;
Ana W.P.C. Mendonça.(1994) "A História da Educação face à crise dos Paradigmas”.
37
O debate historiográfico instalado na História da Educação tem origem na discussão efetuada em artigos
de 1984, dos prof.es Jorge Nagle e Mirian J. Warde, fomentando duas espécies de movimentos no âmbito da
História da Educação: por um lado lançaram as bases nas quais o projeto de Warde, de 1990, e o projeto "A
Historiografia da Educação Brasileira: construção da memória e do conhecimento (do qual faço parte desde
1992, sob orientação da profa.Warde) ancoram os primeiros alicerces para a constituição de uma
Historiografia da Educação Brasileira. Por outro, contribuíram para fundamentar o movimento de superação
que será exposto.(Bontempi Jr. e Toledo,1994:1) Ver também Mirian J. Warde.(1984) "Anotações para uma
Historiografia da Educação”; Jorge Nagle.(1984). "História da Educação Brasileira - problemas Atuais".
26
questões importantes que marcaram o debate historiográfico atual sobre o
período."(1986:II)
No primeiro capítulo da tese de Carvalho, "são problematizadas representações
dominantes sobre o movimento educacional na década de 20, em especial sobre a ABE no
período, de modo a evidenciar a posição assumida" pelo texto.(1986:III). Na medida que
os “textos de Azevedo são uma das principais fontes de estudos de história da educação
do período", as problematizações incidem sobre as descrições operadas por ele, em sua
narrativa, assim como sobre muitas das descrições correntes nos estudos que o utilizam
como fonte.(1986:6).38
Para a Autora, "o discurso de Fernando de Azevedo em A Cultura Brasileira -
produzido durante o Estado Novo - consagra, em aspectos relevantes, a memória, então
oficial sobre a história recente do país."39 A oposição tradicionalistas X renovadores,
segundo Carvalho, funciona como regra de ordenação de seu discurso. "É ela que articula
como narrativa de eventos conexos as realizações 'renovadoras', constituindo-as. O
movimento educacional dos anos 20 é unificado como marcha ascensional pelo novo.
Após 30, é esquadrinhado pela oposição 'tradicionalistas' e 'renovadores', que dele apaga a
sua conexão com os conflitos político-ideológicos do período."(1986:4).
Segundo Carvalho, A Cultura Brasileira, além da referida importância como fonte,
tem características muito peculiares:
protagonista deste movimento e porta-voz por ele credenciado, Fernando de
Azevedo se auto-constituiu como seu principal intérprete ao lançar-se à redação
de A Cultura Brasileira, que não se pretendia doutrinária e muito menos
engajada nos embates pedagógicos nela relatados. Isto, combinado com sua
situação de protagonista de acontecimentos de cujo significado renovador é
avalista no relato que faz, determina uma situação de produção de seu discurso
que não tem sido suficientemente aquilatada.
A Autora considera que

38
Muitas das observações encontradas em sua tese estão em seu artigo "Notas para Reavaliação do
Movimento Educacional Brasileiro (1920-1930)". 1988
39
"Ruptura com a 'política oligárquica', a Revolução de 30 propunha-se como desfecho necessário da
insatisfação política dos anos 20, capturada como embate contra o arcaico. Concretizada teria potenciado a
circulação de idéias e as trocas culturais.(...) " (Carvalho, 1986:3)
27
uma crítica do testemunho de Azevedo à luz do exame de sua inserção política
nos anos 30 e de um estudo sobre o qual, enquanto sujeito de enunciação40, ele se
posiciona no discurso que produz sobre o movimento, não foi empreendida
ainda.(1986:5).
Para empreendê-la, mapeia as acepções de "novo", propostas por Azevedo -
desvendando a lógica do seu texto.41
Dentro desta perspectiva, a Autora pretende "criticar a oposição tradicionalistas X
renovadores enquanto categoria descritiva que biparte o movimento em dois campos
nitidamente diferenciados e antagônicos". Afirma ,a partir de outros estudos
historiográficos42 e de seus próprios resultados, colocando -se contra tal posição, que
no movimento educacional em 20 não estiveram engajados apenas os apologistas
do “novo”, sendo possível distinguir, nele “tradicionalistas” e “renovadores”.
As diferenças entre eles, contudo, foram relativamente compatibilizadas.
“Renovadores” e “tradicionalistas” moviam-se num mesmo campo de debates.
Propunham a questão educacional preponderantemente da ótica da “formação da
nacionalidade”. Por isso, nas propostas, as semelhanças eram mais relevantes
que as diferenças.(1986:6).
Para Carvalho, "a crítica principal que se faz neste trabalho à oposição 'novo'/
'velho' no uso de Fernando de Azevedo em A Cultura Brasileira é que ela despolitiza o
movimento educacional. Seqüelas desta despolitização atingem, de modos diversos, os
estudos de história da educação sobre o período."(1986:11)
Para a compreensão destas seqüelas, a Autora estende o debate para os
“perpetuadores” da maneira como foram descritos o movimento dos Renovadores da

40
Para Carvalho, valorizar a enunciação significa operar a crítica no intertexto construído seja pela
intersecção do corpus documental com a bibliografia sobre questões correlatas, em alguns casos, seja no
intertexto constituído pelo próprio corpus documental, em outros"(1986:II)
41
Segundo a Autora são três acepções que caracterizam o "novo" de Azevedo:
"1o) permeabilização do país aos valores culturais da Europa e dos EUA do pós-guerra, com destaque
especial para as 'reformas educacionais com que se sonhava forjar uma humanidade nova em que se
concentravam as últimas esperanças de uma vida melhor, da restauração da paz pela escola e da formação
de um novo espírito, mais ajustado às condições e necessidades de um novo tipo de civilização' "; 2o)
"adaptação do sistema escolar 'às exigências de uma sociedade nova, de forma industrial, em franca
evolução para uma democracia social e econômica', sem que fosse descurada sua adaptação às condições
específicas do meio social brasileiro, ainda não profundamente atingido pelos efeitos da revolução
o
industrial'"; 3 ) "unificação do sistema educativo a nível nacional por uma 'política orgânica traçada pelas
elites governantes', em outros termos, o que era entendido por uma 'política nacional de educação'"(1986: 4
-5)
42
Cita Edgar S. de Decca.(1984) "A ciência da produção : Fábrica despolitizada”.
28
Educação e a ABE, a partir de Azevedo, afetados, portanto, pela “despolitização”
engendrada por ele. Carvalho critica a história produzida por Jorge Nagle e Vanilda Paiva
(que por sua vez, como vimos anteriormente, são intensamente utilizados para a
organização dos contextos culturais e educacionais do período).
Para Carvalho, a historiografia produzida sobre o movimento, parte do
pressuposto, cunhado por Azevedo, que na ABE, desde a década de 20, já estariam
congregados os integrantes daquele grupo que, a partir de 30, seria conhecido como grupo
dos Pioneiros da Educação Nova. Segundo a Autora,
se, de fato, parcela deste grupo teve razoável participação nas Conferências
Nacionais de Educação, a maioria dele não integrou a ABE.(...) A partir do
trabalho de Jorge Nagle sobre a Educação e Sociedade na Primeira República,
tornou-se impossível referir-se ao movimento educacional do período sem utilizar
a nomenclatura que criou para expressar os momentos distintos desse movimento
com suas características: “entusiasmo pela educação” e “otimismo pedagógico”
e “profissionais da educação”.(1986:12)43
Tal nomenclatura, descreve Carvalho, indica os diferentes momentos pelos quais
passou o movimento, que culmina na dissociação, nos projetos produzidos em seu
interior, entre problemas sociais, políticos e econômicos e problemas pedagógicos. A
história de Nagle, seguindo os caminhos abertos por Azevedo, estaria despolitizando o
movimento educacional.44 (1986:13)
Vanilda Paiva, segundo Carvalho, toma a nomenclatura de Nagle estabelecendo
um limite temporal rígido: “até 1925 estaríamos diante dos ‘entusiasmo pela educação’; a
partir de então, do ‘otimismo’”, coisa que Nagle não considerou importante na
diferenciação dos movimentos.(1986:13)
Carvalho considera que

43
Segundo Carvalho, com base em Nagle, “o ‘entusiasmo pela educação ‘caracterizar-se-ia pela
importância atribuída à educação, constituída como o maior dos problemas nacionais, problema de cuja
solução adviria o equacionamento de os outros. O ‘otimismo pedagógico, manteria, do ‘entusiasmo’, a
crença no poder da educação, mas não de qualquer tipo de educação, enfatizando a importância da nova
pedagogia para a formação do homem novo. A expressão ‘profissionais da educação’ caracteriza a
emergência do ‘técnico’, no movimento designado como ‘otimismo pedagógico’, indicando a crescente
dissociação que se produz no movimento entre problemas sociais, políticos e econômicos e pedagógicos
“(1986:13)
44
Em artigo de 1993, “Escola, Memória, Historiografia: a produção do vazio”, Carvalho aprofunda a crítica
da “despolitização” do movimento educacional das décadas de 20 e 30 operadas por Azevedo e Nagle,
constituidores de uma determinada memória na História da Educação brasileira.
29
o texto de Vanilda Paiva amarra o “entusiasmo pela educação” às “tentativas de
recomposição do poder político através da ampliação do número de votantes
iniciado em meados da década de 10”. Ter-se-ia aí um momento em que a política
e a educação estavam vinculadas. A partir de meados da década de 20, esse
vínculo desaparecia, dando lugar a um enfoque “técnico” da questão
educacional. Todo movimento desencadeado pela ABE estaria dominado pelas
“idéias de tecnificação pedagógica’”(1986:14)
As intenções de Azevedo, no A Cultura Brasileira, de manter os movimentos dos
quais fez parte, fora das relações políticas, estariam se perpetuando na historiografia,
como também verificou Cardoso.45
Em artigo, “O Novo, o Velho, o Perigoso: relendo A Cultura Brasileira”,
Carvalho retoma as questões levantadas em sua tese, e se propõe-a “problematizar a
narrativa de Fernando de Azevedo, procurando apontar para questões que ele obscurece,
ao expulsar do campo da investigação em história da educação todo um debate que remete
para aquela zona perigosa”.46
O estudo de Carvalho é efetuado a partir dos capítulos III e IV do tomo III de A
Cultura Brasileira, onde Azevedo descreve os movimentos de renovação da
educação.(Carvalho,1989:30).
Recolocando as acepções do “novo” cunhadas por Azevedo e já discutidas em sua
tese, a Autora conclui:
a polarização novo x velho homogeiniza cada um dos grupos em conflito e, por
outro lado, assinala os vilões e os heróis da estória. A distribuição dos “fatos”
relatados por séries marcadas diferencialmente pelas rubricas “novo” e “velho”
é operação suficiente para amalgamar iniciativas díspares, constituindo-se seja

45
Segundo Carvalho, a documentação que levantou não confirma o relato de Paiva: 1) “porque o grupo que
compunha os órgãos diretores da Associação dificilmente pode ser qualificado de ‘profissionais da
educação’. Nele predominaram médicos advogados e sobretudo engenheiros(...) ; 2) “porque tal grupo
guardou do chamado ‘entusiasmo’ a prioridade da educação como grande problema nacional, cuja solução
transformaria política, social e economicamente o país”; 3) “porque a ênfase do grupo na qualidade de
ensino em detrimento da simples difusão da escola - o que faria deles ‘otimistas’- não foi decorrente das
razões pedagógicas, mas políticas. Dependendo de sua qualidade, a educação foi claramente valorizada
como instrumento social.”(1986: 15).Ver Cardoso, 1982
46
“A intensa agitação que marcou o movimento de renovação educacional nos anos 20, tinha se traduzido
na organização da Associação Brasileira de Educação (ABE), promotora das notórias Conferências
Nacionais de educação. A convergência de projetos de construção da nacionalidade através da educação
possibilitou forte coesão do movimento, neutralizando divergências que aflorariam na década de 30. Ao
referir-se a essas divergências como ‘zona perigosa’, Fernando de Azevedo minimiza o significado político
do confronto que se instaura a partir de 1930.”(Carvalho,1989:30).
30
como “renovadores”, seja como “tradicionalistas”. Com tal procedimento a
narrativa opera com a indeterminação semântica dos termos “novo” e “velho”,
de modo a neles capturar a significação produzida no relato apologético da
história então recente do país.
Para ela, a desmontagem da narrativa de Fernando de Azevedo sobre o movimento
educacional, nos anos 20 e 30, tem o objetivo de lançar algumas perguntas provocativas
para os pesquisadores em História da Educação Brasileira.
Não estaria o campo de pesquisa excessivamente demarcado pela narrativa de
Azevedo? Não tem ele funcionado como espécie de pano de fundo, sobre o qual se
configuram os objetos de investigação? Sua ênfase nas disposições legais, que
teriam garantido a constituição de um sistema nacional de ensino, não tem
desviado a investigação de temas mais aptos para elucidar a história da escola
brasileira na República? Qual teria sido, por exemplo, o impacto da prática da
geração de educadores que atuou nas décadas de 20 e30 - incluindo-se nela os
militantes católicos - na constituição dos saberes produzidos na escola e sobre
ela? Quais seriam as conseqüências, para o conhecimento da escola brasileira, se
nos dispuséssemos a percorrer a zona de perigo referida por Azevedo, resgatando
não apenas os termos de um conflito, mas as práticas dos agentes nele
envolvidos? (1989:33)
Carvalho pensa a geração de educadores, à qual pertence Azevedo, como aquela
que tem a ambição confessada de enfrentar os “problemas de organização nacional” por
meio de uma “reforma da cultura” que promovesse “uma grande reforma dos costumes”,
imprimindo “sentido e direção” à vida nacional. Conscientes da importância de uma
hegemonia cultural, “que garantisse a eficácia do aparelho escolar na consecução do
projeto de sociedade que ideava”, organizam-se através da ABE, sendo reconhecidos
pelos governos. Com a Revolução de 30, alcançam o status político almejado e “passando
a funcionar como espécie de prolongamento do Ministério da Educação, então criado”.
Neste período, segundo a Autora, eram os católicos que detinham o controle da entidade,
só se retirando dela um ano após a Quarta Conferência. (1989:34)
Com essas conclusões, Carvalho questiona a história tal como Azevedo a propôs:
onde as vitórias, a partir da Revolução de 30, teriam sido a derrota dos católicos - “os
tradicionalistas”. “Quando, sob influxo desta, e na nova correlação de forças inaugurada
com a Revolução de 1930, o movimento educacional se fratura e os antigos aliados se
31
transformam em adversários, o que está em jogo é mais do que a disputa em torno de
tópicos isolados de um programa ou de inofensivas teorias pedagógicas”, como fez crer
Azevedo.47 Para ela “é um projeto de ‘organização nacional por meio da cultura’, que se
fratura em pelo menos duas propostas políticas rivais.”(1989:34).
Carvalho termina seu artigo indicando a possibilidade de um caminho ainda não
trilhado pela historiografia da Educação Brasileira.
Desmontar as estratégias com que se construíram as acusações recíprocas [ entre
pioneiros e católicos] , bem como as narrativas sobre os episódios que marcaram
o debate político travado no domínio educacional, pode vir a evidenciar que a
linha que demarca o campo de contenda, constituindo os oponentes e seu objeto,
os vencidos e os vencedores, pode ser sinuosa, passando a dividir os que se
apresentam como parceiros e unir os que se declaram adversários. Este
deslocamento pode vir a abrir novas perspectivas para os estudos de História da
Educação Brasileira. Pode até, eventualmente, vir a revelar que a realidade da
escola brasileira está menos distante dos propósitos reformistas dos que a
elegeram como objeto de intervenção.( 1989:34)
Adverte, ainda, que a consecução deste projeto
supõe um amplo programa de pesquisas. Um programa que implica em
considerar narrativas como a de Fernando de Azevedo como intervenções que
efetuam uma determinada memória histórica a partir de uma posição
determinada. Envolve explicitar o recorte que efetuam, fazendo falar aquilo que
silenciam pelo cotejo com documentação mais ampla. Envolve também evidenciar
as escolhas que as organizam, estabelecendo os nexos narrativos que determinam
a maior ou menor pertinência de narrar isto ou aquilo, assim como a maior ou
menor relevância de cada tópico narrado. A partir daí, será possível reavaliar as
práticas dos agentes envolvidos na contenda. Entre elas, as práticas discursivas
que recortaram e reordenaram o campo doutrinário da pedagogia, tomadas
também como intervenções num campo de lutas e conciliações.(1989:34).

47
Ao evitar o que chamou de “zona do pensamento perigoso”, Azevedo, segundo Carvalho, reduz as
disputas deste momento a alguns temas - entre eles a “laicidade”, “a coeducação” e o chamado “monopólio
estatal - e “a luta que se espraiou no campo específico da pedagogia em torno do ideário da chamada Escola
Nova.”(1989:31)
32
Zaia Brandão, em tese denominada Por entre Histórias e Memórias: Paschoal
Lemme e a Escola Nova no Brasil, observa a existência de duas pautas de interpretação
sobre o processo de construção de uma escola pública no Brasil, no campo da História da
Educação brasileira:
1) “A memória sobre a construção de uma escola para todos no Brasil,
tradicionalmente destaca a contribuição de um grupo de educadores : os ‘Pioneiros da
Educação Nova’ ”;
2) A historiografia48 que critica essa interpretação - “credora da memória49
cunhada pelos Pioneiros, a respeito do movimento da Escola Nova no Brasil como
memória da renovação educacional” - considerando que essa construção histórica teria
“obscurecido o caráter eminentemente conservador daquele movimento”. Reinterpretação
que, segundo a Autora, “provocou uma profunda inflexão na historiografia, transmutando
aqueles educadores de heróis em vilões.” (Brandão, 1992:1-2)
A pesquisa de Brandão “inseriu-se na confluência dessas versões contrapostas,
com o intuito de ampliar esse debate, a partir de uma outra memória a de Paschoal
Lemme (...)”(1992:2).
Nesta perspectiva, tomou como “eixo para a releitura da historiografia, a
problematização do processo de construção e desconstrução das memórias sobre o
movimento da escola nova no Brasil”. Considera, também, essas memórias como
monumentos50. Cabe, portanto “trabalhá-las enquanto montagens interessadas que, para
terem valor de testemunhos, precisariam ser desmontadas, analisadas e problematizadas
enquanto memórias/monumentos”. (Cf. Brandão,1992:15-16)
Brandão trabalha, na primeira parte de sua tese, “um subconjunto da historiografia
sobre o movimento da Escola Nova, no objetivo de pôr em evidência como se teria dado o
processo de transmutação da memória, a respeito dos pioneiros”. Pecorre “os autores
selecionados com o objetivo de compreender o processo de homogeneização do discurso
historiográfico, no sentido da construção de uma outra memória/monumento: o
‘escolanovismo’”(1992:26)
A historiografia, segundo Brandão, pode ser identificada no seguinte movimento:

48
A Autora se refere ao “conjunto de teses geradas desde o início da década de 80 na PUC de SP, tendo
como centro o prof. Demerval Saviani; entre outros (...)”(1992:1)
49
Todas as palavras em negrito desta parte do texto são de Zaia Brandão.
50
A Autora toma de Jacques Le Goff o conceito de documento/monumento, assim como a relação entre
história e memória de Foucault. Cita Jacques Le Goff.(1984) “Documento/Monumento”. e Michael
Foucault. (1987) A Arqueologia do Saber. (1992:15-16)
33
.a construção da memória-monumento por Azevedo;
. a relativização dessa memória-monumento, onde situo Nagle, Paiva e Cury;
. a desconstrução da memória-monumento e a fixação de uma outra memória: a
do escolanovismo, com Saviani;
. a re-historização da construção da memória-documento com os trabalhos de
Chagas de Carvalho e Monarcha.(1992:27)
Segundo Brandão, com A Cultura Brasileira, Azevedo alicerça “duplamente” a
construção dessa memória51: “a da sua atuação pessoal, no campo da administração
pública, e da liderança do movimento renovador no campo da cultura brasileira; ou
seja, não só afirmava a sua importância no campo educacional, como também a
importância desse na construção da cultura brasileira.”(1992:32)
Para ela,
as gerações subsequentes de educadores parecem ter assimilado essa dada
memória como uma tradição no campo educacional: a da inovação, a da ruptura
com o ensino tradicional, a da reconstrução social pela educação, empreendida
pelos pioneiros da educação nova; tendo como seus principais líderes Fernando
de Azevedo e Anísio Teixeira.(1992:32)
Também considera que A Cultura Brasileira, “texto encomendado para ser a
introdução ao censo de 40, é uma obra que pelo objetivo - ser um retrato cultural do censo
- e pelo sentido ampliado daquele censo, tinha todas as características para ser o ‘pedestal’
da memória/monumento do movimento renovador.”(1992:37). Porém não foi apenas aí
que Azevedo constituiu essa memória. Segundo Brandão, ela está nos principais escritos
dele, como em A História de Minha Vida52 - livro auto-biográfico e Educação entre Dois
Mundos - publicação do Manifesto de 32, em livro.
Brandão entende ser a pesquisa de Nagle um marco na historiografia
porque constitui-se, sem dúvida alguma, num momento de avanço no trato
histórico da educação brasileira. Foi um dos primeiros trabalhos no campo que
procurou localizar na própria dinâmica da sociedade (conjuntura política,
econômica e social ) a gênese do movimento educacional. Até então, a

51
“O estudo da construção dessa memória permite identificar o caráter heróico, com que Azevedo orna a
memória do grupo dos Pioneiros da Educação Nova.”(1992:31)
52
Livro onde, segundo a Autora, faz referências à política renovadora encaminhada pela geração de
educadores. “No espaço de 44 linhas ele usa 20 expressões para qualificar o caráter inovador daquele
movimento.”(1992:31 e 33)
34
historiografia trabalhava na lógica linear e descritiva dos “fatos educacionais”
em sequência cronológica. Suas categorias - “entusiasmo pela educação” e
“otimismo pedagógico”- são utilizadas na maioria dos trabalhos historiográficos
como matriz explicativa do movimento dos educadores do início do século.
(1992:41).
Depois de discutir tais categorias conclui, na mesma direção de Carvalho, que
quando a historiografia retoma a análise do entusiasmo pela educação e do
otimismo pedagógico, a partir de Nagle, o faz com fixação dessas categorias,
enquanto dois momentos que se sucedem cronológicamente, e onde o otimismo
teria significado a “despolitização” do campo educacional. (1992:44).
Para a Autora isso se deve ao fato de
ao invés de dialogar com os documentos e com a própria historiografia, no
processo de interpretação de memória do movimento da escola nova, boa parte da
historiografia tem fixado a matriz elaborada por Nagle, de forma gradativamente
empobrecida, sem nem mesmo retomar o processo de construção dessa
interpretação (1992:44).
Como consequência do trato específico dado pelos historiadores da educação às
interpretações anteriores aos seus trabalhos, Brandão observa que
essa historiografia passou a funcionar como um lugar de memória que, ao não
problematizar o processo de interpretação que critica (o legado dos pioneiros),
nem o que desenvolve (como caminha, onde se afasta e onde se aproxima das
interpretações da historiografia), acaba por repor uma nova memória,
cristalizando uma outra interpretação com o sinal invertido.(1992:44).
Brandão destaca ainda, como característica desta historiografia, que
são trabalhos que resultam de uma forma de trabalhar com história, que não
debate com os autores que se debruçam sobre o objeto de interesse comum,
tentando aprofundar e ampliar as questões já colocadas anteriormente; mas
simplesmente, buscam na historiografia as categorias que possam servir melhor:
às interpretações que procuram fixar na memória da educação brasileira.
(1992:48).
Após discutir o modo pelo qual Vanilda Paiva toma as categorias de Nagle -
fixando-as cronologicamente (no mesmo sentido que Carvalho criticou) - avança no

35
debate, verificando que “a historiografia passa a reeditar essa leitura das categorias de
Nagle, assim como imprimir um caráter acentuadamente dicotômico ao seu uso”(1992:50)
A consequência desta apropriação da leitura de Paiva em relação a Nagle, segundo
a Autora, é que
a historiografia que começa a se desenvolver a partir desses dois autores, tende a
dicotomizar, trabalhar com polaridades e classificar os movimentos e idéias
pedagógicas segundo tonalidades progressistas ou conservadoras. Guardam
assim uma proximidade com as duas cristalizações da memória, sobre os
pioneiros: a construída por Fernando de Azevedo, e a que se propôs à sua
desconstrução. (1992:50)
Concluindo que “essa historiografia resvala constantemente para uma análise,
onde o foco está na ruptura ou na continuidade absoluta, trabalhando os movimentos
educacionais na perspectiva de uma causalidade indesejavelmente linear para a pretensão
de reconstrução histórica.” (1992:50)

É a partir dos trabalhos analisados na primeira parte do texto e do debate que vem
sendo desenvolvido para a construção de uma outra história da educação brasileira, que
fica claro como a construção do passado operada por Azevedo tem extrapolado o
confronto com seus interlocutores e críticos e tem sobrevivido em nossa historiografia,
com características muito peculiares: a historiografia produzida pelos críticos e herdeiros
tem conservado as periodizações, conceitos, categorias e dados (fatos históricos)
produzidos pelo Autor. O olhar de Azevedo para o passado não foi desmontado,
permanecendo, de certa forma intacto em seus herdeiros e críticos - parece ter inaugurado
uma tendência historiográfica no campo da História da Educação brasileira. Tendência
cujas permanências podem estar além do tema dos movimentos das décadas de 20 e 30 e
marcando também outros, como o da história da educação jesuítica ou da educação no
Império.
Para que possamos compreender o modo pelo qual Azevedo e sua história têm
perdurado eficazmente no campo da História da Educação, diferentes acessos podem ser
construídos, como os propostos por Carvalho e Brandão, entre estes o que verifica como a
história foi produzida - a lógica pela qual constituiu os conceitos, os marcos
(periodização) e os fatos conformadores de sua história que tem se perpetuado dentro
deste campo - não só na maneira pela qual ordena sua narrativa ou constitui suas
36
representações, mas o método que persegue para produzir uma determinada verdade
histórica. Tal tarefa pode vir a revelar se além da memória, outras características da
história de Azevedo têm se projetado no tempo, ao longo da construção da própria
disciplina. Talvez, mais do que a eficácia de sua narrativa constituidora de uma memória
na disciplina, Azevedo tenha conseguido inaugurar e perpetuar um modo de se fazer
história, assim como uma função específica da história no campo da Educação, que tem
marcado os trabalhos para além da memória.53

A Criatura: A Cultura Brasileira como objeto da História

Os trabalhos, que serão expostos aqui, tratam do livro de Azevedo A Cultura


Brasileira. Não foram produzidos no âmbito da História da Educação, com exceção dos
artigos de Luís Antônio Cunha, por isso a História da Educação está secundarizada nestas
discussões. O livro A Cultura Brasileira é inserido na historiografia mais ampla,
juntamente com autores como Gilberto Freyre, Sérgio Buarque de Hollanda, Oliveira
Viana, entre outros. O objeto privilegiado por estes autores foram os diferentes modos de
leitura do passado, produzida pelos intelectuais brasileiros, que teriam promovido
determinadas identidades para a cultura nacional; dentre elas está a cunhada por Azevedo
em A Cultura Brasileira. Ao expor esta espécie de discussão, tenho o objetivo de verificar
que tipo de tratamento A Cultura Brasileira vem recebendo, do ponto de vista
historiográfico, ou ainda do ponto de vista da crítica historiográfica.
Dante Moreira Leite, em O Caráter Nacional Brasileiro, pretende apresentar “as
várias interpretações do caráter brasileiro supondo-se que apresentam diferentes etapas na
maneira de intelectuais brasileiros verem o Brasil e as características do povo brasileiro”.
Para isto, segundo o Autor, procurou “apresentar tão fiel quanto possível essas ideologias,
deixando em segundo plano, ou como material subsidiário, a sua vinculação social, isto é,
com a realidade econômica e política do Brasil das várias épocas”(Leite,1969:137-138).
O trabalho de Leite não está ancorado no campo da História, ou da Historigrafia.
O Autor pretende analisar os ideólogos com vistas ao desenvolvimento da crítica no
campo da Psicologia Social. Portanto, não pretendo, ao incluí-lo nas discussões,
questionar a validade das observações por ele produzidas, mas alertar para a utilização

53
Sobre as principais tendências da História da Educação Brasileira ver Warde,1984 e Bontempi e Toledo,
1994
37
destas como subsídios “diretos” em outras condições das que constituem seu trabalho,
como tem acontecido no campo da História da Educação Brasileira.
Leite seleciona os ideólogos, considerando apenas as interpretações “relativamente
coerentes”, “isto é, com certa unidade e sentido.”. (1969:139). O Autor valoriza os
intelectuais que tentam explicar os traços característicos dos brasileiros - “(...) a indicação
de um ou vários traços não constitue uma ideologia, isto é, não pode ser um sistema
relativo ou aparentemente coerente. Além disso, a indicação de traços parece menos
significativa que a tentativa de explicação, pois é nesta que o ideólogo se
revela.”(1969:140).
Seus objetivos são: 1) “verificar as características psicológicas atribuídas aos
brasileiros”, utilizando. os traços psicológicos propostos pelos autores como categorias,
tabulando as características indicadas no brasileiro; 2) ao mesmo tempo, fazer a “análise
intuitiva ou compreensiva de cada autor, de forma a salientar as influências que recebeu,
bem como o nível de sua descrição. (...) Procura-se o que é geral em todos os ideólogos -
no caso, as características psicológicas atribuídas ao brasileiro - e, ao mesmo tempo,
procura-se salientar a sua individualidade”. (1969:145)
Para apresentar a ideologia de Fernando de Azevedo nos moldes que havia
proposto54, Leite analisa o capítulo V do tomo I de A Cultura Brasileira isoladamente do
resto da obra. Tal operação é justificada por estar essa descrição da psicologia do povo
brasileiro “isolada” neste capítulo, não “falseando a concepção de caráter nacional aí
revelada.”(1969:293).
Leite observa que embora comece com uma nota de Durkheim - para quem “um
temperamento coletivo ou individual é coisa eminentemente complexa e não poderia ser
traduzida numa simples formula” .- Fernando de Azevedo parece aproximar-se, sob
alguns aspectos, da concepção já encontrada em Euclides da Cunha. Observa também que
“Azevedo admite ser impossível uma generalização a partir de indivíduos, de forma que
procura, não a observação direta, mas a análise dos fatores que condicionem o caráter
coletivo”. Estes fatores, segundo Leite, seriam o meio físico, o clima e a raça; eles que
modelam “um povo no momento em que sua alma é virgem ainda” e são capazes ,

54
Leite propõe o seguinte esquema para as várias fases das ideologias do caráter nacional: I- A fase
colonial: descoberta da terra e o movimento nativista (1500-1822); II- O Romantismo: a independência
política e a formação de uma imagem positiva da Brasil e dos brasileiros (1822-1880); III- As ciências
sociais e a imagem pessimista do brasileiro (1880-1950); IV- O desenvolvimento econômico e a superação
do caráter nacional brasileiro: a década 1950-1960. Azevedo está inscrito no terceiro período e dentro dele
apresentado juntamente com Sérgio Buarque de Hollanda e Viana Moog.
38
“através da modificação do meio humano, de perpetuar os traços hereditários que se
imprimiram desde o princípio às primeiras gerações”.(1969: 294).
Leite, a partir destas observações, conclui que
portanto , é perfeito o símile entre indivíduo e nação: assim como às vezes se
admitiu que o indivíduo seria tabula rasa na qual se imprimiram as influências de
vários fatores, Fernando de Azevedo admitiria um momento histórico em que o
povo não teria caráter e em que este seria moldado pelo físico, clima e raça. Mas
a partir daí o símile é abandonado, pois o caráter é transmitido hereditariamente,
através da sociedade. Em outras palavras, esta representa uma estabilização do
caráter inicial, formado pelos fatores naturais, isto é, o meio físico e a
raça.(1969:294)

A operação metodológica de Leite, a partir da própria apresentação do texto de


Azevedo, desperta algumas questões. Se, para explicar o caráter nacional ou a psicologia
do povo brasileiro, Azevedo destaca como fatores fundamentais o meio físico e a raça,
como Leite pode “isolar” este capítulo do que se refere justamente à estas questões,
capítulo estrategicamente colocado na abertura da análise de Azevedo, onde esclarece o
que entende por raça, meio físico e a relação entre os dois? Esse “isolamento” não poderia
estar encobrindo, em vez de revelar, os conceitos discutidos por Azevedo, e fundamentais
para a análise de Leite? A metodologia de Azevedo não estaria se perdendo neste
“isolamento”?
Por outro lado, ao se retomar o capítulo de A Cultura Brasileira analisado por
Leite, percebe-se uma redução daquilo que Azevedo indicava como fatores responsáveis
pela formação da psicologia de um povo:
produto de grande variedade de fatores, geográficos, étnicos, econômicos e
sociais, dos quais os dois primeiros têm um papel importante mas não
preponderante, na sua formação, o caráter coletivo é uma síntese de elementos os
mais diversos, concordantes e resistentes, que se combinam ou tendem a
combinar-se, marcando a fisionomia original de um povo ou de uma nação.
(Azevedo, 1943: 105)55
Ainda sobre os fatores, indicados por Azevedo, que determinariam a psicologia de
um povo, Leite observa, em sua leitura, que

55
Utilizarei aqui a mesma edição de A Cultura Brasileira indicada por Leite.
39
à medida que a civilização se desenvolve, as forças sociais passam a ter, por isso,
maior influência que as naturais; no entanto, Fernando de Azevedo admite que a
alma de um povo não é uma “essência eterna”, e está sujeita a transformações,
embora seja possível encontrar hábitos e tendências mentais “suficientemente
persistentes e suficientemente gerais”. No caso do brasileiro, como se trata de um
povo ainda jovem, essa definição é mais difícil, pois ainda não se realizou a fusão
harmônica dos diversos elementos mentais que entraram em sua composição.
(1969:294)
Azevedo não estaria aí valorizando a história como um dos fatores predominantes,
e ainda, tendo em vista uma determinada história ? Ao tentar identificá-lo com os demais
ideólogos, não estaria Leite enfatizando mais, um tipo de fatores que outros, sem
conseguir clarificar as “confusões” teóricas do Autor estudado?
Azevedo, ao se propor a tarefa de caracterizar os traços do povo brasileiro tem em
seu horizonte interlocutores56 que devem ser criticados por sobreporem a raça aos outros
fatores que julga importantes, de modo que ao fazer a observação notada por Leite, parece
ter como objetivo principal o questionamento destas explicações.
Que já temos um caráter próprio, uma feição particular, uma personalidade viva
e, a certos respeitos, marcada, não há dúvida; mas, além de alguns elementos
básicos, mais facilmente definíveis, o que há de vago e impreciso, de flutuante e
variável em outros traços psicológicos, torna essa psicologia, em muitos pontos,
senão inabordável, ao menos, rebelde a uma análise segura e penetrante. As
monografias e os estudos feitos anteriormente, devidos a vários autores
pensadores e sociólogos, não nos fornecem elementos suficientes para uma
psicologia política e social do povo brasileiro, tanto nos traços que se esforçam
por defini-lo, - transitórios, porque são antes ligados a fases diversas de nossa
evolução e tendem a desaparecer com as transformações sociais -, como na sua
explicação quase sempre ligada às condições geográficas e às três raças que
concorrem, inicialmente, para constituição do povo
brasileiro.(Azevedo,1943:105)
Daí, a partir de C. Bouglé questiona:

56
Azevedo critica principalmente as posições de Paulo Prado e A.A. de Melo Franco.(1943:108-109)
40
mas por maior que tenha sido a pressão do meio sobre a raça, no tempo em que
quase nenhum produto social se interpunha entre um e outro, entre raça e o meio,
poder-se-á explicar muitas cousas, na história de um povo, pergunta C. Bouglé,
por essa pressão primitiva? E por maior que tenha sido, em alguns pontos do
território nacional, a mestiçagem de brancos e índios e de brancos e negro, ou a
influência de sua culturas respectivas, sobre nós nos três primeiros séculos,
poder-se-ão aceitar essas explicações por atavismo, em relação a elementos que
se devem menos aos índios ou aos negros do que a formas de vida social e tomar,
como traços gerais e persistentes, traços peculiares a certos grupos ligados a
diversos estágios de nossa evolução? (1943:106)
Para Leite tais questionamentos são uma “oscilação” entre as várias explicações:
ora questiona a força da raça e do meio, ora adota a raça como fator modificador das
características do povo. (1969:294-295). É certo que Azevedo, ao não se decidir sobre a
força da influência destes fatores sobre a psicologia de um povo, atenua a crítica que
produziu sobre as teorias “racistas”. Porém, ao enfatizar, em sua leitura, esses fatores (
raça e meio) e evitar tocar em outros, Leite pode afirmar mais facilmente as contradições
do Autor sem clarificar, para o leitor, as confusões teóricas produzidas por ele. Os
conceitos de raça e cultura, neste capítulo, estão tão claros a ponto de podermos
diferenciá-los, tão facilmente, para indicar as contradições de Azevedo? Não existiria a
possibilidade de Azevedo usar raça e cultura com diferentes significados?
Segundo Leite, Azevedo
utiliza(dos) apenas dados intuitivos e só em alguns casos procura ligar os traços
descritivos com os fatores57 que antes enumerou. E é provavelmente o fato de
utilizar dados intuitivos que permite a Fernando de Azevedo tentar uma descrição
dos vários aspectos do caráter brasileiro, pois nem sempre procura ligar cada um
dos aspectos a uma influência específica - o que lhe dá grande liberdade na
indicação dos traços (1969:295).
Ao fazer esta afirmação, Leite não leva em conta que os traços do caráter
brasileiro, enumerados por Azevedo, são tirados das fontes que cita, operação
“legitimadora” de todas as suas afirmações: critica Paulo Prado, através de Humberto
Campos; para comparar a psicologia dos norte-americanos à dos brasileiros, cita Boutmy

57
Os fatores referidos aqui não são apenas a raça e o meio, tanto no texto de Azevedo, como no texto de
Leite, porém esse nunca se refere o que são os “outros fatores”.
41
e Freyre; para afirmar a religiosidade dos brasileiros chama Freyre; para discutir as teorias
racistas, cita Hubert e Bouglé; para caracterizar os brasileiros, cita, entre outros Milton
Rodrigues, Sérgio Buarque de Hollanda e Euclides da Cunha.
Azevedo “fala” pela boca de suas fontes secundárias e pelas suas fontes teóricas.
Talvez seu erro metodológico esteja menos na utilização de dados intuitivos e mais na
forma como utiliza essas fontes, sem verificar a natureza de seus dados, ou ainda
retirando delas, o que lhe interessa, sem verificar a real compatibilidade das explicações
de diversas naturezas com as fontes teóricas ou entre elas mesmas.
Em suas conclusões, Leite afirma que
1) O interesse da descrição de Fernando de Azevedo reside nas sua conclusões.
Em primeiro lugar, o autor pretende fazer uma síntese das descrições anteriores
e, embora recuse várias delas (...) continua a ter um esquema formalmente
incompatível. Por exemplo, não tem sentido falar em individualismo e, ao mesmo
tempo, falar em moral de senzala; ou falar em sobriedade e imprevidência, como
se fossem características compatíveis. No entanto essa contradição ainda não é a
mais grave, pois seria possível imaginar a existência de vários tipos de
individualismo, ou condições diferentes em que aparecem a sobriedade e a
imprevidência.(1969:297);
2) Fernando de Azevedo aceita teorias incompatíveis e isto provoca contradições
insuperáveis. De um lado, o autor admite que o caráter nacional evolui; de outro,
pensa que existem tendências ‘essenciais’ e imutáveis. É difícil imaginar quais os
recurso para distinguir entre os dois tipos de características e, de qualquer forma,
Fernando de Azevedo não esclarece como pôde distingui-los. (1969:297);
3) o autor pretendeu conciliar a tradição de uma ideologia do caráter nacional e
as concepções mais recentes da Sociologia; por isso sua descrição
inevitavelmente oscila, sem definir-se por um dos extremos teóricos. (1969:297).
Algumas questões podem ser formuladas a partir destas conclusões:
como o próprio Leite indica, a primeira das contradições aparentes de Azevedo
poderia ser dissolvidas com um estudo mais aprofundado do que esse entende como sendo
cada um dos traços e onde estes traços aparecem?
A segunda contradição aparente não poderia, pelo menos em parte, ser clarificada
pelo entendimento do que seria a história para Azevedo, já que este imagina haver uma

42
evolução histórica, com sentido e direção, para todas as sociedades, e ao mesmo tempo
haver características culturais que as diferenciam, ou marcam as várias sociedades,
compatiblizando assim o geral com o específico?58
Segundo Azevedo,
era preciso, em todo caso, fazer entrar a cultura brasileira não só nos quadros
sociais, econômicos e políticos da história do país, estudando-lhe os fatores e as
condições especiais do meio, como no movimento geral da civilização do
Ocidente, de que a cultura nacional não é senão uma das formas particulares.59
(1943:10)

No ensaio, A Ideologia da Cultura Brasileira (1933-1974), Carlos Guilherme


Mota tem o objetivo de
apreender alguns momentos mais significativos em que a intelectualidade se
debruçou sobre si mesma para auto-avaliação ou, ainda sobre o objeto de seu
labor para defini-lo, situando-o em relação ao contexto vivido. Os pressupostos
ideológicos que jazem na base de formulações sobre o que o que seja uma cultura
(“brasileira”, “nacional”, “popular”, “de massa”, etc.), eis o que importa neste
estudo”.

58
Na introdução de A Cultura Brasileira, Azevedo, ao se referir à organização de seu livro, explica “Antes
de entrar, pois, no estudo da cultura propriamente dita que constitui a parte central do livro, pareceu-nos
necessário proceder à análise das grandes influências que puderam agir sobre a produção dos fatos de
cultura, como sejam, o meio físico e étnico (o país e a raça), o meio econômico, social e político, o meio
urbano (tipos e vida das cidades) e a mentalidade particular do povo, determinada esta, por sua vez, por
todos esses elementos que condicionaram a sua formação. Essas diversas ordens de fenômenos podem
todas, em proporções variáveis, ter determinada relação com os fatos culturais, não só por lhe fornecerem
assuntos, mas, sobretudo porque os provocam e orientam, agindo sobre eles à maneira de causas ou de
fatores, e podem ainda, quanto a certas categorias de fenômenos (econômicos, urbanos, espírito coletivo)
sofrer contragolpes e reações dos fatos de cultura e receber deles um impulso determinado. É por isso que,
em vez de os julgarmos como causas verdadeiras, preferimos considerá-los como um complexo de fatores
ou de condições, substituindo o conceito de causa pelo de correlação entre os fenômenos que constituem o
objeto principal do estudo e os que condicionam e contribuem para explicá-los”(1943:8)
59
Neste trecho, para sustentar sua posição, Azevedo cita: “Já Durkheim ensinava, antes de M. Mauss, que,
se há fenômenos sociais estritamente ligados ao organismo, social e político determinado, a um povo ou a
uma nação, há outros que ‘transcendem um território nacional e se desenvolvem por períodos de tempos que
ultrapassam a história de uma sociedade’(...) Se, pois uma civilização - seja no caso, a civilização
mediterrânea, - ‘constitui uma espécie de meio moral no qual são mergulhadas um certo número de nações e
de que cada cultura nacional não é senão uma forma particular’ compreende-se quanto interessa, para a
compreensão do fenômeno brasileiro, ligá-lo constantemente `a sua fonte fundamental, - à civilização
ibérica e de um modo geral, à civilização ocidental, e analisar os caracteres particulares que essa civilização
tomou no interior do país, sob pressão de fatores e de acordo com as condições diversas de nossa evolução
histórica e social”(Azevedo,1943:10)
43
Segundo o Autor o ensaio, “ocupa-se a maior parte do tempo em rediscutir
algumas matrizes de formas de pensamento no Brasil, em angulação que se pretende
histórica”. (Mota,1980:19).
Nesta perspectiva, afirma que
não se trabalhará com documentação (“textos”) levando em conta apenas as
estruturações internas, tão exclusivamente, para apontar as eventuais
descontinuidades entre tipos diversos de “discursos”. Pelo contrário, (...) o que se
pretende é redimensionar a noção de produção cultural, reinstaurando o conceito
de processo ideológico, menos atentos às descontinuidades - tema que tanto
absorveu os analistas, estruturalistas sobretudo, no último lustro - que às
continuidades. (1980:20).

Para a execução da tarefa proposta, Mota vê a necessidade de estabelecer uma


periodização “que permita a consideração de momentos significativos da Historiografia
em geral e, em particular das ocasiões em que algumas matrizes básicas de pensamento
foram redefinidas ou reelaboradas no Brasil”(1980:21). A periodização “aponta os temas
predominantes em cada momento, bem como alguns traços metodológicos e os conteúdos
ideológicos das principais produções.”(1980:21)
Mota divide a historiografia brasileira em cinco “momentos decisivos”60 e
inscreve a obra de Fernando de Azevedo, juntamente com os trabalhos de Caio Prado
Jr.(1933), Gilberto Freyre (1933), Sérgio Buarque de Hollanda (1936) e Roberto
Simonsen (1937), no primeiro período denominado “Redescobrimento do Brasil (1933-
1937)”. (1980:27-28).
Este período, segundo Mota, pode ser registrado na própria sucessão das
produções historiográficas posteriores à Revolução de 30.
A Revolução, se não foi suficientemente longe para romper com as formas de
organização social, ao menos abalou as linhas de interpretação da realidade
brasileira - já arranhadas pela intelectualidade que emergia em 1922, com a
Semana de Arte Moderna, de um lado, e com a fundação do Partido Comunista,
de outro. Assim como no plano da política, na seara historiográfica novos estilos
surgiram, contrapondo às explicações autorizadas de Varnhagem, Euclides da

60
Os outro períodos são: “Primeiros frutos da Universidade (1948-1951)”; “Era de ampliação e revisão
reformista (1957-1964)”; “Revisões radicais (1964-1969)”; “Impasses da dependência (1969-1974)”
(1980:27)
44
Cunha, Capistrano de Abreu e Oliveira Viana concepções até então praticamente
inéditas, e que soariam como revolucionárias no momento. A Historiografia da
elite, empenhada na valorização dos feitos dos heróis da raça branca, e
representada pelo Instituto Histórico Geográfico Brasileiro (fundado em 1838),
vai ser contestada de maneira radical por um conjunto de autores que
representarão os pontos de partida para o estabelecimento de novos parâmetros
no conhecimento do Brasil e de seu passado. (1980:28).
Para “redimensionar” a noção de cultura proposta por Azevedo, Mota começa por
indicar o momento em que a obra do Autor foi escrita.
As formulações de Fernando de Azevedo ocorreram num período especialmente
crítico da História do Brasil: o Estado Novo. Vivendo com intensidade a
experiência renovadora das Faculdades de Filosofia, em ambiente de ensino
ativados por novas técnicas de trabalho e por uma descida às fontes e aos debates
sobre o método, participando da fermentação intelectual dada pela presença de
professores estrangeiros que compunham as missões culturais, F. de Azevedo
produz em 1943 um quadro referencial de grandes planos (...). (1980:75)
Para Mota, “não constitui tarefa demasiado difícil apurar alguns de seus
envolvimentos ideológicos” (1980:75). Considera que Azevedo absorve “os lineamentos
gerais e a mesma postura de Gilberto Freyre”, sendo apenas mais “otimista em face dos
recursos disponíveis e colocados ao seu alcance para a tarefa educacional”. E são esses
mesmos recursos - “posição destacada no Manifesto dos Pioneiros da Educação Nova” e
“autoridade adquirida com a ocupação de postos-chave da administração” - que acabaram
por transformá-lo em “um dos principais responsáveis pela difusão do conceito de cultura
brasileira”. (1980:75)
A partir dessas considerações gerais, Mota passa à análise da obra:
o tom geral da obra é otimista, equilibrado, incorporando em sua concepção de
cultura as manifestações dos vários campos do saber e, nesses campos, as
diversas tendências. Não há antagonismos aparentes entre as variadas “escolas”
apresentadas. A plasticidade do conceito de cultura empregado garante harmonia
entre as posições. No máximo, pode-se registrar menos apreço pelas formas de
organização do saber dentro dos quadros de instituições religiosas; afinal, o
grande personagem é o ensino público, veiculador do saber laico (...). (1980:75)

45
Três questões aparecem aqui: o que Azevedo estaria homogeneizando, o conceito
de cultura de várias escolas sociológicas - ou seja a confusão é teórica - ou englobando
em seu conceito plástico qualquer tipo de forma de organização do saber,
homogeneizando todas elas?; A afirmação de que “não há antagonismos aparentes entre
as variadas ‘escolas’”, não estaria esvaziando aquilo que é o mais precioso na narrativa de
Azevedo (que foi apontado por Carvalho) o confronto entre o “novo” e o “velho”, entre o
“tradicional” e o “moderno”?; É realmente a “grande personagem” de toda a obra o
“ensino público e o saber laico” ou isto é apenas característica do último tomo, onde o
tema principal é a “transmissão da cultura”?
Segundo Mota, é o “esforço incessante para a unidade” a meta de Fernando de
Azevedo, que considera que “as forças culturais devem ser assimiladas entre si,
incorporando a experiência do passado, a ‘herança sagrada, que deve ser imortal, de nossa
história e de nossas tradições’ ”. Para Mota, a proposta de Azevedo contida em seu
conceito de cultura e no esforça da unidade estaria um processo de “assimilação dos
contrários”, onde “não teriam escapado elementos antagônicos representativos da
democracia liberal e do socialismo, que se absorvem compondo um todo orgânico e
equilibrado”(1980:76).
Há duas questões inerentes à discussão de Fernando de Azevedo deixadas à
sombra por Mota. A primeira delas é o sentido atribuído, por Azevedo, à história da
cultura, onde haveria fases pelas quais a cultura, que acompanha as diversas fases da
civilização, passaria (já comentadas na exposição do trabalho de Leite61). Para Azevedo, a
unidade cultural está no desenrolar da história de um determinado país- não há rupturas na
história-, porém os padrões culturais são substituídos, marcando as novas fases do
processo de civilização.62 Comentando a Reforma do Distrito Federal, executada por ele
mesmo, Azevedo afirma: “Certamente, com a reforma do ensino de uma cidade, e
constrangida pela Carta Orgânica a encerrar-se nos limites do ensino primário, normal e

61
Ver notas 3 e 4.
62
Sobre a Reforma do Distrito Federal, Azevedo explica : “Mas se ela foi ‘a geratriz do grande movimento
renovador da educação no Brasil’, foi também uma das manifestações ou um ‘sintoma’ do novo estado de
coisas que se estabelecera, sob a pressão de causas econômicas. sociais e políticas, e dessa fermentação de
idéias que, depois da guerra de 1914, se alastrava por todos os domínios culturais. A mobilidade e as várias
populações, devidas não só às correntes imigratórias, mas às próprias migrações internas, especialmente
para a região meridional; o surto de industrialismo dos Estados do sul (...), para os quais afluiu a população
atraída como por um ímã irresistível, polarizado em melhor padrão de vida e salários mais altos; as
evoluções da vida econômica e as agitações de idéias que se propagavam da Europa e dos Estados Unidos,
acarretavam transformações da mentalidade, como deviam determinar as de instituições e crenças
características da vida brasileira, criando uma atmosfera francamente revolucionária nos grandes centros
urbanos”(1971:667). Usei aqui a mesma edição indicada por Mota - a quinta edição.
46
profissional, não se quebrou, nem se podia quebrar, essa unidade que existe em cada
cultura, dando-lhe um caráter próprio, como a forma e o espírito de uma fase dessa cultura
em que se modelam as novas aquisições que surgem ou são importadas.”(1971:266)
A outra questão consiste na necessidade de verificar se o conceito de socialismo
proposto por Azevedo é o mesmo indicado por Mota em sua leitura, dado que existem
diferentes acepções da palavra e que Azevedo poderia estar se referindo, por exemplo, à
discussão proposta por Durkheim no livro 63 Le Socialisme, citado por ele em bibliografia.
Se o conceito de Azevedo tiver realmente essa acepção, o socialismo poderia ser um
caminho para o desenvolvimento da civilização, portanto poderia vir a ser uma etapa
futura da evolução das sociedades.
A conclusão de Mota sobre esta questão parece ser fruto de apropriação externa
dos conceitos de Azevedo. Para ele,
o anticapitalismo de elite de Azevedo, se permite, por um lado, encerrar sua obra
em cima de uma proposta de socialismo (brando) para o Brasil, não permite,
entretanto, verificar como a Constituição de 1937, por exemplo, corresponde a um
instrumento de articulação da sociedade de classes, capitalista. Seus louvores
com “a mais democrática e revolucionária das leis em matéria de educação”
parecem desmedidos, uma vez que, na verdade, a nova constituição - ao instaurar
por lei a cooperação entre as indústrias e o Estado - mais não estava fazendo que
estabelecer um vínculo entre o desenvolvimento capitalista e os quadros
educacionais. Em suma, cuidava da qualificação técnica do trabalho (...), para o
desenvolvimento industrial - numa linha que não apontava, certamente, para o
socialismo. (1980:77)
A contradição aparente de Azevedo, em querer conciliar uma proposta de
socialismo com um projeto de educação com o fim de desenvolver o capitalismo, como
observado por Mota, intriga aos leitores de Azevedo mais pelo “socialismo” do que pelo
elogio à Constituição de 1937, onde parte de seu projeto educacional foi encampado -
projeto que objetivava a construção da civilização industrial no país.
Para Mota,

63
DURKHEIM, E. Le Socialisme. Paris, Alcan,1928 - Neste trabalho Durkheim discute um conceito
“científico” de socialismo, negando outras acepções, entre elas a de Marx. Socialismo, segundo Durkheim,
seria “toda doutrina que reivindique a ligação de todas as funções econômicas, ou de algumas delas, que são
atualmente difusas, aos centros diretores e conscientes da sociedade.” DUKHEIM, E. e WEBER, M.
Socialismo (1993).
47
o processo de desenvolvimento econômico articulava-se a outras frentes de
atividades que ficavam, pela intervenção do Estado, integradas num mesmo
projeto nacional. Que a laicização do saber estava ligada às linhas da montagem
de um poderoso e complexo sistema ideológico de cunho nacionalista (...) A
respeito dessa ação do Estado (...) Fernando de Azevedo dirá que obedecia ao
“temperamento coletivo” à “vocação nacional”. (1980:78).
As expressões “vocação nacional” e “temperamento coletivo”, segundo Mota,
“surgem como caras para a elite ilustrada que se outorgaria a ‘missão’ educativa e se
incubiria de lançar os fundamentos de uma Escola Nova” (1980:78). É desse gancho que
passa discutir o “elitismo” do projeto de universidade de Fernando de Azevedo e seu
grupo.
Para o Autor, o “elitismo” estava no “medo do nivelamento social e da
participação mais direta da ‘massa’ no processo político-educacional”. Tal medo, segundo
o Autor, “era a contrapartida do pensamento aristocrático, e gerava essa visão apocalíptica
em relação ao nivelamento social e cultural - idéia que sempre estava presente nos
momentos de revitalização liberal, desde os primeiros movimentos sociais do século
passado.”(1980:79)
O princípio central, segundo Mota, explícito, da ideologia de Azevedo é “‘um
maior número’ em comunhão com a cultura, tende a rebaixar a cultura”(1980:80).
Parece que Mota acaba por reduzir a ideologia de Azevedo a “um princípio”
apenas, enquanto que Azevedo tinha um projeto para a sociedade bem mais elaborado e
consistente, que não foi causado apenas pelo “medo do rebaixamento cultural e social.64
Mota conclui que
importa reter, nesta trajetória, e visto em perspectiva o papel desempenhado por
Fernando de Azevedo, sua atuação de caráter liberal (não propriamente
socialista, como ele afirmaria no final de sua obra clássica) progressista, contra
as linhas mestras básicas da concepção religiosa da vida educacional e,
sobretudo, como agente receptor, nos novos quadros educacionais -
universitários, notadamente - dos valores aristocráticos do senhoriato de terras,
do qual Gilberto Freyre seria a melhor expressão. (1980:81)

64
Ver os estudos de Carvalho e Cardoso, apresentados anteriormente.
48
Azevedo é, para Mota, da aristocracia rural e um defensor do liberalismo. Usa a
identidade que entende ter Azevedo como um dos indícios para afirmar a sua condição de
“difusor” do conceito de cultura de Freyre. Seria este um indício suficiente para indicar a
filiação do progama daquele a este?
Mota afirma a identidade de Azevedo com Gilberto Freyre a partir da citação que
Azevedo faz de Freyre, no final de seu livro. Seria essa uma operação metodológica
correta, na medida em que Freyre não é o único autor amplamente citado por Azevedo,
outros como Roberto Simonsen, Oliveira Viana, Euclides da Cunha, também são
referências importantes para a história produzida por Azevedo?
Por isso há a necessidade, a meu ver, de se analisar o modo como Azevedo
manipula suas fontes para verificar quais são suas filiações teóricas..
Ainda para Mota, “a universidade, inclusive nas áreas em fase de acelerada
industrialização e urbanização, como São Paulo, capta e retém o sentido de ‘cultura
brasileira’, que não é, necessariamente (...), sentido profundamente impregnado dos
valores do estamento dominante. As classes, tanto a burguesia como a proletária, não
haveriam tão cedo de imiscuir-se nas salas de aula, nem mesmo como temas de pesquisa,
e fazer sentir os seus dinamismos próprios à organização acadêmica.”(1980:81-82).
Essa consideração de Mota causa estranheza na medida em que o livro, que é
objeto de sua análise, tem como um dos temas a “indústria e o crescimento urbano”, assim
como a idéia de que o foco do progresso das civilizações estaria no desenvolvimento das
cidades industriais, permeia toda a obra.( Azevedo, 1971: Cap III, Tomo I ,127-157).

Luiz Antônio Cunha, em três textos, procura analisar A Cultura Brasileira do


ponto de vista da crítica historiográfica. Os textos compõem três momentos: em “A
análise do Pensamento sobre o Ensino Superior no Brasil” (1978), o Autor analisa a
concepção de universidade que norteia os estudos históricos de Azevedo65; em A
Universidade Temporã (1986), indica a necessidade de superar a história produzida nos
moldes da de Azevedo; em “Diretrizes para o Estudo Histórico do Ensino Superior no
Brasil” (1990), explicita os procedimentos metodológicos que orientaram diferentes
histórias do ensino superior e os critica.

65
A análise efetuada neste texto serve de base para as críticas dos outros dois. Cunha se refere a esta
discussão em nota nos outros dois textos.
49
Em “Análise do Pensamento sobre o Ensino Superior”, Cunha, a partir da
formulação de algumas questões66, tem como objetivo “analisar o que dizem a esse
respeito pensadores do ensino superior, no Brasil contemporâneo”( 1978: 83)
São cinco autores eleitos por Cunha : Fernando de Azevedo, Anísio Teixeira,
Florestan Fernandes, Darcy Ribeiro e Álvaro Vieira Pinto. Segundo Cunha, foram
selecionados aqueles “cujo pensamento está vivo, de alguma maneira”67 e a unidade entre
os autores (que não tratam dos mesmos períodos) está no fato “de que as proposições
básicas de todos eles são, a cada momento, repetidas.”(1978:83-84)
A operação metodológica proposta por Cunha é caracterizada por quatro
momentos: no primeiro, expõe duas modalidades teóricas de definição do ensino superior
a “funcionalista” e a “dialética”, “utilizados como critério para a análise do pensamento
dos autores”; no segundo, mostra o “pensamento dos autores, junto a alguns dados
biográficos considerados úteis para sua compreensão; no terceiro, faz uma abordagem
comparativa, tomando temas que permeiam o pensamento de cada um”; no quarto,
apresenta o “posicionamento de cada autor relativamente às modalidades teóricas”.(1978:
84). “Fernando de Azevedo e Vieira Pinto são os que se aproximam mais das referências
polares: este, da concepção dialética e aquele, da concepção funcionalista.” (1978:135)
Cunha define o funcionalismo a partir das concepções de sociedade e aparelho
escolar contidos nessa teoria.
Se a sociedade é definida como um conjunto articulado de instituições, segundo o
princípio da homeostase, onde os conflitos como perturbações da ordem social, o
aparelho escolar é visto, inevitavelmente, como a instituição encarregada do
processo de socialização. Através da inculcação dos valores, dos padrões de
comportamento, das normas, da cultura, enfim, em todos os indivíduos imaturos, a
sociedade socializa a si própria conforme as suas próprias convergências,
independentemente de interesses individuais ou grupais. (1978:84)
Dentro desta perspectiva, segundo Cunha, há valores que são inculcados em todos
- para que haja uma interação social harmoniosa - e há valores destinados a cada grupo

66
“O que é o ensino superior? Para que serve? Qual é sua organização? A que se destina? Quais são as suas
funções?” (1975: 83)
67
Só tratarei aqui da análise referente a Fernando de Azevedo.
50
social, conforme os meios sociais a que se destinam. “Esta função homogeneizadora da
socialização (educação) é vital para a sociedade (1978:85)68.
Para o Autor, “esse funcionalismo (sociológico) está articulado com o idealismo
(filosófico)”.(1978:85)
E a universidade, segundo Cunha, será definida como
a instituição própria do ensino superior, o qual consiste na elaboração e
transmissão de um saber superior.(...) A cultura produzida na universidade não
coincide com a cultura popular. (...) A produção do conhecimento não coincide,
também, com a simples transmissão, própria dos outros graus de ensino, pois a
universidade produz o conhecimento que vai ensinar sem outras limitações que
não sejam as dos seus próprios recursos e sem outra meta além da busca da
verdade (na pesquisa pura) e da procura do ótimo (na pesquisa aplicada).
(1978:85)
Outra característica desta concepção de universidade, observa o autor, é a de que a
universidade deve ser seletiva, pois “a massificação do ensino superior, resultado de
políticas demagógicas, produz, inevitavelmente, a deterioração da qualidade de ensino e
pesquisa.”(1978:85-86)
A função da universidade, para o funcionalismo, é
ser o motor do desenvolvimento, na medida em que produz recursos humanos na
qualidade e na quantidade requeridas; realiza pesquisas, puras e aplicadas, que
permitem solucionar, de modo criativo, os problemas que impedem ou retardam o
desenvolvimento e, também, aqueles colocados pelo próprio processo; contribui
para a difusão de um novo tipo de consciência social que veja no desenvolvimento
um meio de realização das metas da sociedade em busca do bem-estar coletivo.
(1978:86)
A partir da exposição do quadro teórico metodológico, Cunha passa para a análise
do pensamento dos autores. A exposição sobre Azevedo está dividida em duas partes: na
primeira, Cunha faz um pequeno histórico da vida do pensador; na segunda, expõe seu
pensamento. Para Cunha, “Fernando de Azevedo pode ser considerado como o primeiro

68
“Sendo débil, impede a interiorização das mesmas normas, dos valores e dos padrões básicos, por todos
os indivíduos, gerando a situação de anomalia, ameaçando, no limite, a própria sobrevivência da
sociedade.”(1978:85) Cunha remete essa concepção à E. Durkheim, em Educação e Sociologia (1967), a W.
F. Burkley, em A Sociologia e A Moderna Teoria dos Sistemas ( 1971) e a T. Parsons (org.), em Hacia una
Teoria General de la Acción (1969)
51
intelectual brasileiro que elaborou uma história da educação no país. Seu livro A Cultura
Brasileira69 contém uma ordenação bastante coerente dos fatos históricos.” (1978:91)
Cunha afirma que “para analisar a origem e a evolução do ensino superior,
Fernando de Azevedo construiu uma definição abstrata de universidade70 que utilizou
como referência absoluta, para dar forma a esse grau de ensino no país.”(1978:92)
Para Azevedo, segundo Cunha, “universidade propriamente dita é aquela que
consegue promover o cultivo da cultura livre e desinteressada, a que organiza os
conhecimentos para elevá-los ao nível mais alto e os difunde, de modo que a comunidade
tire proveito de tudo isso.”(1978:92)
A definição do meio social, no qual a universidade está inserida, observa Cunha, é
a comunidade, “organizada de tal modo que seja possível à cultura desinteressada, isto é,
aquela que não corresponde aos interesses de classes ou grupos sociais. O produto da
universidade, assim entendido, não concorre para o conflito social, mas para a harmonia e
o bem comum71.”(1978:93)
Para Cunha, Azevedo “munido dessa definição constrói a história do ensino
superior brasileiro distinguindo duas fases. A primeira, ainda na época colonial, quando
os jesuítas montaram no Brasil um sistema de ensino cada vez mais completo e extenso, a
ponto de estar se formando(...) uma universidade no Colégio da Bahia”. Essa fase
terminou com a expulsão dos jesuítas pelo Marquês de Pombal. A partir daí, tem início
uma segunda fase, ainda não terminada, onde o ensino superior, apesar de modificado,
tem se caracterizado pela carência universitária.(1978:93)
Tendo exposto o modelo funcionalista e, logo após, o pensamento de Azevedo,
Cunha indica a filiação deste àquele. Sua análise parece clarear mais adequadamente as
verdadeiras filiações de Azevedo.
Em A Universidade Temporã, cujo propósito é estudar a história do ensino
superior, Cunha indica a questão que tem sido posta pelos pesquisadores em torno do
tema: Como explicar a ausência de universidades no Brasil até o século XX ?

69
Cunha se refere apenas ao tomo III de A Cultura Brasileira (1978: 91, nota 7)
70
Segundo Cunha, a universidade para Azevedo “é definida pela forma e pelo conteúdo. A forma da
universidade é a de um conjunto de escolas destinadas a formar os profissionais de nível mais elevado nas
diversas atividades existentes na sociedades, subordinadas a uma direção comum que lhes coordena as
atividades acadêmicas e de pesquisa aplicada. Mas o que dá a marca propriamente universitária à
organização de escolas profissionais é a sua articulação com uma faculdade de filosofia e letras, escola não
profissional, destinada ao suprimento de um substrato cultural comum aos alunos de todas as demais e
dedicada à pesquisa pura.”(1978:92).
71
Segundo Cunha, Azevedo admite a existência dos conflitos sociais, conflitos esses que podem inclusive
ameaçar a existência da universidade.(1978:93).
52
Para o Autor essa questão é fruto de uma definição prévia de uma organização
administrativo-pedagógica própria do ensino superior, a universidade”. E por ser uma
definição prévia não é possível encontrá-la no passado. “Desta maneira, todo o ensino
superior não universitário é visto como impróprio, já que a forma institucional
universitária seria da própria natureza desse grau.”(1986:11-12).
Cunha observa que “os cronistas do ensino superior no Brasil, especialmente
Souza Campos e Fernando de Azevedo, alinharam as tentativas, ou as ‘lutas’, pela criação
da universidade no Brasil, como parte de um esforço continuado de pessoas esclarecidas
para organizar um ensino superior que não podia ser não universitário, pela sua própria
natureza.”(1986:14)
Criticando essa maneira de historiar o ensino superior, Cunha afirma: “não
entendo assim essas tentativas. Para mim, as ‘lutas pela criação da universidade no Brasil’
são lutas diferentes, de pessoas e grupos diferentes que, em momentos diferentes,
buscaram instituições diferentes que de comum só tinham o nome
universidade.”(1986:14)
A possibilidade, para o Autor, de fazer uma história do ensino superior,
ultrapassando as deficiências da história até então produzida, estaria na mudança do
conceito de ensino superior.
Numa formação social, concebida historicamente, não se encontram apenas um
saber, mas vários: fundamentalmente, os saberes dominantes (das classes
dominantes) e os saberes dominados (das classes dominadas). Todo ensino,
operado necessariamente por meio de um aparelho escolar, propõe-se a ministrar
um saber dominante, mas não todos os saberes dominantes. Eles estão
hierarquizados, de modo que há saberes dominantes inferiores (por exemplo, o
domínio da leitura e da escrita na língua dominante) e saberes dominantes
superiores (por exemplo, o domínio das práticas letradas mais complexas e da
filosofia com e sem aspas). (1986:15)
Cunha acredita que ao substituir o conceito funcionalista de ensino superior
(universidade) pelo conceito dialético (reprodutivista),72 estaria ultrapassando os limites
até então estabelecidos para a história de um ensino superior.

72
A definição do quadro teórico -metodológico da dialética, tal como Cunha o entende, encontra-se no texto
“Análise do Pensamento sobre Ensino Superior no Brasil”.
53
A crítica à historiografia do ensino superior, anunciada por Cunha em A
Universidade Temporã, é desenvolvida no texto “Diretrizes para o Estudo Histórico do
Ensino Superior no Brasil”.
O objetivo de Cunha neste texto é
refletir sobre o percurso do estudo histórico que deve acompanhar a própria
caminhada do pesquisador na ‘construção’ de seu objetivo de investigação.
Somente essa reflexão propicia a formulação de perguntas e o encontro de
repostas a respeito do valor das diferentes formas de seleção, percepção e
apresentação dos fatos, assim como das várias interpretações possíveis, das
possibilidades e dos limites do conhecimento, de verdade e da objetividade.
(1990:7)

Para explicitar diferentes procedimentos metodológicos, Cunha utiliza o livro de


Adam Schaff, História e Verdade, de onde retira o núcleo das idéias expostas por ele.
Três procedimentos metodológicos referenciais são expostos e, a partir deles,
Cunha analisa alguns autores que produziram na área da História da Educação, entre eles
está Fernando de Azevedo.
Para Cunha, Azevedo procederia como os idealistas73 buscando no presente sua
concepção ideal(izada) de universidade.(1990:9)
Esta concepção, segundo Cunha, está definida no Inquérito sobre a Instrução
Pública de São Paulo, onde “Fernando de Azevedo concebeu um projeto de política
educacional que veio orientar seu pensamento e sua prática política durante pelo menos
quatro décadas.” (1990:9).Cunha retoma, então, as definições de universidade e sua
função explicitadas no texto de 1978, acrescentando que “Fernando de Azevedo foi
buscar em Bréal o papel da universidade alemã do presente para nortear o futuro da
universidade brasileira.” (1990:10)
Para Cunha, “toda a história do ensino superior [de Azevedo] foi feita a partir
desse presente74 numa defesa do projeto original daquela universidade, paradigma a ser
imitado pelas demais.”(1990:11).
73
Segundo Cunha, “ao contrário do positivismo, que parte de um modelo mecanicista do conhecimento, o
idealismo vai para o extremo oposto, pressupondo a predominância, se não a exclusividade, do sujeito que
conhece na relação cognoscitiva. Enquanto que no modelo mecanicista o papel do sujeito é passivo,
resumindo-se a receber as impressões deixadas pelo objeto, o idealismo defende um papel ativo para o
sujeito que conhece, o qual percebe o objeto do conhecimento como sua produção. Neste modelo ativista, o
objeto do conhecimento tende a desaparecer, ao mesmo tempo em que conhece cria, no processo de
conhecimento, a realidade.”(1990:8) E ainda. “(...)a história do ensino superior partiria de um modelo
ideal(izado) de universidade, modelo este situado no passado, no futuro ou mesmo no presente.”(1990:9)
54
E conclui
tudo somado, a história do ensino superior brasileiro de Fernando de Azevedo
segue os padões tradicionais do idealismo: falando da colônia, do Império, da
Primeira República ou do Estado Novo, ele está tratando, de fato, do momento
presente, da insuficiência da realização do modelo de ensino superior na
Universidade de São Paulo. A história do ensino superior é, assim, a história da
sua própria carência: da ausência da universidade como forma de organização e
do ensino e da pesquisa desinteressados como atividades que a caracterizam.
(1990:12)
O método utilizado por Azevedo, segundo Cunha, para escrever “a história do
ensino superior no Brasil é o que Schaff chama de presentismo, aquela vertente do
idealismo que projeta o presente sobre o passado.” (1990:12)
Retomando as reflexões que havia produzido em 1978, Cunha conclui, em relação
ao pensamento de Azevedo sobre a universidade brasileira, que este se filia ao
positivismo de Durkheim. “Nas conferências proferidas na Universidade de São Paulo, no
período imediatamente anterior ao golpe de 1937, Fernando de Azevedo travou uma luta
sistemática contra o radicalismo político, tornado suas influências positivistas bastante
claras. A concepção de Durkheim, vendo na educação, particularmente na escola, um
poderoso instrumento de combate à anomia foi habilmente articulado com a concepção de
Pareto a respeito da circulação das elites.”(1990:16)
Sobre a herança deixada por Azevedo no campo da História da Educação, Cunha
conclui: “o ecletismo da obra de Fernando de Azevedo fez com que ela servisse de matriz
fértil para diferentes reconstruções da história recente da educação escolar no Brasil,
elaborada segundo orientações estranhas ao pensamento desse autor.”(1990:16)
O caminho proposto por Cunha para desvendar a história produzida por Azevedo é
bastante fértil. Porém deve ser ampliado para o desvelamento do “ecletismo” desse Autor.
Ecletismo, que como indica Cunha, tem propiciado não só a continuidade de um modelo
de pensamento desse autor, produzida por seus leitores.

74
Segundo Cunha “Fernando de Azevedo tomou como referência o antigo projeto educacional de 1926,
acrescido das alterações ditadas pela conjuntura, como, também das vicissitudes da realização desse projeto
da Universidade de São Paulo, sujeito às deformações do radicalismo, dos interesses corporativos dos
professores e da ditadura Vargas. Nesta história, o futuro do ensino superior no Brasil já dispensava a
indicação de Bréal, pois a Universidade de São Paulo era vista como o futuro quase presente.”(1990:10)
55
O próprio Cunha, embora sua crítica veemente tenha valimento, acaba por aceitar,
em diferentes passagens de sua obra A Universidade Temporã, as explicações de
Azevedo, utilizando-o como fonte secundária para os períodos em que este não é o objeto
da história75 ou mesmo utilizando os fatos e períodos propostos e consagrados pela
história de Azevedo76. Por vezes, também acaba por colocar Azevedo, a priori, no grupo
dos Pioneiros da Educação Nova, e historiar sua prática política a partir daí, ou seja a
partir do lugar onde o próprio se colocou.

75
Ver as citações que faz de Azevedo nas páginas 54 e 55, sobre a reforma Pombalina.(Cunha, 1986)
76
Cunha utiliza os mesmos marcos temporais de Azevedo, assim como muitos dos fatos históricos que este
construiu para comprovar as suas teses.
56
As aventuras e desventuras do criador

No Prefácio à terceita edição de A Cultura Brasileira, Azevedo relata o processo


pelo qual tornou-se o Autor da Introdução do censo de 1940 e apresenta o seu trabalho
como sendo “um serviço que devia ao (...) país” (Cf.Azevedo,1058:11). O convite inicial
era para presidir a Comissão Censitária Nacional, não tendo aceito, foi convidado para
escrever a sua Introdução - traçar “um retrato de corpo inteiro do Brasil, uma síntese ou
um quadro de conjunto da nossa cultura e civilização”. - mesmo reconhecendo que tal
empresa deveria ter sido confiada “a um historiador da cultura, altamente especializado
em estudos brasileiros”, dedica-se a ela durante dois anos.
Por que Fernando de Azevedo? Tal pergunta pode ser adequadamente respondida
se posicionamos o Autor e a obra no momento histórico de produção. Parto da hipótese de
que o momento histórico e político em que foi escrita a obra parece ter determinado
algumas escolhas do Autor na produção da sua interpretação do Brasil, bem como a
escolha de seu nome para essa incumbêmcia.
Azevedo é capturado por Brandão como “encarregado”da tarefa de construir a
memória sobre o “significado renovador do trabalho do Pioneiros da Educação Nova”,
sendo A Cultura Brasileira destinada a “pedestal” da memória desse movimento. (Cf.
Brandão, 1992:32). Segundo a Autora, é nessa obra que Azevedo alicerça “duplamente a
construção da memória: a da sua atuação pessoal, no campo da administração pública, e a
da liderança do movimento renovador no campo da cultura brasileira (...).
(Brandão:1992:34).
Para Carvalho, como
protagonista deste movimento e porta-voz por ele credenciado, Fernando de
Azevedo se autoconstituiu como principal intérprete ao lançar-se à redação de A
Cultura Brasileira, que não se pretendia doutrinário e muito menos engajado nos
embates pedagógicos nela relatados. Isto, combinado com a situação de
protagonista de acontecimentos de cujo significado renovador é o avalista no
relato que faz, determina uma situação de produção do discurso que não tem sido
suficientemente aquilatada. (Carvalho,1984:5)
A Cultura Brasileira foi produzida em condições peculiares: o intérprete que
apanha seu tempo e sua própria história como objeto. A história do Autor pode ser objeto
57
de sua síntese na medida em que sua atuação política é notabilizada e projetada no campo
da educação e no próprio campo político. De que lugar pôde Fernando de azevedo
construir sua interpretação a respeito da educação brasileira, enquanto sujeito autorizado a
traduzir-lhe os fatos, e enquanto partícipe de um movimento que se pretende promotor e
definidor de uma nova cultura?
As condições de produção da obra são objeto de preocupação do próprio Autor.
No Prefácio à terceira edição, Azevedo ressalta a condição oportuna do período histórico
em que escreve sua obra:
A elaboração dessa obra coincidiu com um duplo movimento que, havia mais de
dez anos, se vinha desenvolvendo quer num sentido de renovação quer para
avivar o esfôrço por uma tomada de consciência nacional, e de que a
“Brasiliana”, - coleção de estudos brasileiros, que fundamos em 1931, foi uma de
suas primeiras e mais significativas expressões no plano cultural. Nessa atmosfera
de inquietação e de pesquisas que eu ajudara a criar e em que o pensamento se
orientava, não raramente, para as tentativas de interpretação da civilização
brasileira, planejou-se e redigiu-se essa obra com a mesma preocupação de
objetividade, o mesmo anseio de descoberta, e a mesma sinceridade radical que
começavam a predominar em trabalhos dessa natureza. Ela é, pois, um produto de
circunstâncias favoráveis e se levantou na crista da onda dêsse movimento que se
desencadeara naquela época, sobretudo em São Paulo e no Rio, por um conjunto
de fatôres econômicos, sociais e culturais. (Azevedo,1958:16)
Para o Autor, a “atmosfera de inquietação e de pesquisa”, que ajudara a criar,
marcam profundamente a perspectiva de seu trabalho. Ao mesmo tempo que se vê como
constituidor, entende estar sendo ele, e a sua obra constituídos, pelo momento histórico
que vive. O Autor destaca que os fatores econômicos, sociais e culturais, possibilitam a
produção de interpretações mais objetivas (e científicas) do Brasil, assim como as
interpretações e o desenvolvimento científico colocam tais transformações no compasso
do progresso e da civilização, já que podem ser dirigidas a partir do conhecimento
produzido sobre o país.
O período histórico em que a obra é escrita, na perspectiva do Autor, é
fundamental, na medida em que é o principal marco da obra. É a partir do presente, ou do
ponto mais evoluído da civilização, que a pesquisa do passado é conduzida. O Brasil
daquele presente deve se tornar mais conhecido dos brasileiros, porém, o conhecimento
58
do presente envolve a compreensão, dos fatores que o compuseram - e os fatores (ou a
relação de causalidade) estão no passado.77 Assim, o olhar do intérprete sobre o passado é
conformado por seu presente e pelas necessidades do presente, ou ainda pelas
características ou identidades que este reconhece no presente.
Sendo um dos sujeitos constituidores das “circunstâncias favoráveis” de seu tempo
é, concomitantemente, intérprete e testemunha; sua história é emaranhada com a história
do país. Na sua própria interpretação, sua ação é dada pelas condições de seu tempo; a
inteligibilidade das circunstâncias em que vive permite que, como agente, modifique os
rumos da história do país. Assim, sua síntese da cultura do Brasil é marcada pelas
preocupações e interesses do cientista que busca o entendimento do presente; e pelo
político que parte desse conhecimento para conduzir suas ações.
Ainda no Prefácio à terceira edição de A Cultura Brasileira, expõe a dificuldade
de produzir uma análise objetiva sem que sua própria vivência transpareça:
Não é sòmente quando um autor faz falar o seu país, como uma pessoa que “êle
bem sabe ser êle quem fala, êle próprio com suas lembranças, sua experiência do
país”, mas êle mesmo e não (como o observa ainda há pouco Merleau - Ponty a
respeito da França) “êsses quarenta e cinco milhões de esfinges que aliás não
guardam mais a França no seu pensamento e ainda bem menos essa literatura,
êsses costumes, essas paisagens às quais já se fez dizer tantas coisas diversas se
não opostas”. Ainda mesmo quando falamos sôbre o país como objeto dado à
observação, e não o fazemos falar como uma pessoa, e, por maior que seja o
nosso esfôrço de objetividade, não raramente acontece cedermos, aqui e ali, sob a
pressão de nossas lembranças e de nossa própria formação intelectual, aos
sentimentos e às apreciações subjetivas o lugar que devia caber aos juízos
fundados em observações positivas. (Azevedo,1958:18)
A síntese da cultura produzida por Azevedo, em sua própria perspectiva, é
cunhada pela “pressão das lembranças” e por sua “formação intelectual”. Indica, no
Prefácio, os problemas que envolve o intérperte que pretende tomar como objeto o
77
Para Azevedo, “a análise da cultura brasileira, sob seus aspectos principais, é como tinha de ser,
precedida, de um lado, pelo estudo dos fatores que, em seus graus variáveis, a condicionaram, na sua
formação e no seu desenvolvimento, como a raça e o meio, a evolução econômica, social e política, a vida
urbana, e, seguida, pelo exame atento e por uma revisão geral, dos mecanismos de transmissão, da técnica
coletiva e, particularmente, das instituições e métodos, com que a sociedade, desde os tempos coloniais,
procurou modelar o o homem, iniciando-o nos seus valores, e que, sem cessarem de transformar-se dentro
de certos limites, no decurso da história, contribuíram em largas medida para fazer de nós o que
somos.”(1958:17)
59
próprio momento da produção e, mais do que tomá-lo como objeto transformá-lo no
principal marco da interpretação. Porém, da situação privilegiada que se encontra ao
poder traduzir a sua ação e a ação dos “opositores” destaca, por um lado, o intendo de
produzir uuma obra objetiva e, por outro, o limite inerente a qualquer tentativa deste tipo,
reduzindo assim as possíveis críticas ao excesso de “lembranças”contidas na
interpretação.
Perguntar sobre a situação de produção d’A Cultura Brasileira tem dupla
importância: é a referência fundamental da interpretação. Portanto, desconstruir a história
relatada na obra é desconstruir a memória cunhada pelo Autor; essa operação possibilita a
compreensão das perspectivas que conformaram a interpretação de Azevedo de seu
presente e por conseqüência do passado, já que é o modo como explica o presente que
conduz sua interpretação do passado. Assim, a abordagem do período histórico em que o
Autor escreve sua obra não tem, então, o objetivo de estabelecer um “pano-de-fundo”, ou
mesmo um contexto, que informa o leitor , em grandes quadros gerais, da época em que
viveu o Autor, mas, com ela, busco indícios que revelem as escolhas que conformam a
interpretação de Azevedo- o “conteúdo normativo” que conduz as perguntas que faz ao
passado78.(Cf. Thompson,1981:51)
Em A Cultura Brasileira, o início do século XX é caracterizado como um período
onde, por um lado, iniciam-se mudança na estrutura econômica, com a introdução da
indústria, a intensificação da urbanização, implementação do trabalho livre no lugar do
escravo - é por isso um momento de mudança da tradição do país. “O país jovem, ligado à
tradição e à rotina do trabalho agrícola, afirmava pela primeira vez, nos grandes centros, a
sua vontade de industrializar-se”. (Azevedo,1956:116). Por outro lado, a sociedade
brasileira ainda não havia conseguido modificar-se o suficiente em termos culturais (as
elites desprezavam o trabalho manual, as escolas não desenvolviam-se com perspectiva a
formar homens para a ciência etc.) para acompanhar a transformação estrutural
(desenvolvimento da indústria e desenvolvimento urbano). As tradições culturais
intocadas refletiam-se na política que mal conduzida pela elite despreparada, provocou
perturbações crônicas na economia pela direção errônea que imprimia ao país.

78
Para Chartier, “As percepções do social não são de forma alguma discursos neutros: produzem estratégias
e práticas (sociais, escolares, políticas) que tendem a impor uma autoridade à custa de outros, por ela
menosprezados, a legitimar um projeto reformador ou a justificar, para os próprios indivíduos, as suas
escolhas e condutas.”(Chartier, 1990:17-19)
60
A elite política relegando a educação à esfera local contribuiu também para o
desequilíbrio e descompasso entre as transformações que ocorriam na economia e a
tradição não modificada da cultura. A falta de recursos para implementar a educação no
âmbito local e falta de uma política centralizada que desse novas diretrizes à educação
mantinham a crise causada pelo o descompasso economia/cultura. Esse “descompasso” é
descrito por Azevedo como:
Com a descentralização imposta pela vitória das idéias federalistas; com a
desorganização resultante da abolição do elemento servil, e com as lutas que se
seguiram para a consolidação do novo regime, transferiram do primeiro plano as
questões essenciais de ordem política e financeira, a educação e a cultura, que só
se expandiram nas mais importantes regiões econômicas do país, como São
Paulo, puderam seguir, sem transformações profundas, as linhas de seu
desenvolvimento tradicional, predeterminando na vida colonial e no regime do
Império.(Azevedo, 1956:119)
A cultura, e por conseguinte a educação, estão em uma fase da evolução
desencontrada da evolução da estrutura do país. Por isso são, para o Autor, incapazes de
auxiliar a continuidade da evolução econômica e social, transformando-se em obstáculo à
própria evolução. A situação em que o país se encontra é a de desequilíbrio entre duas
evoluções que deveriam ser complementares. Tal desequilíbrio, para Azevedo, pode vir a
ser positivo com a renovação das tradições que acompanharão a evolução da estrutura
social; ou pode ser negativo, causando desordens tão profundas que a tendência desta
sociedade é se desintegrar79.
A idéia de crise, para o Autor, consiste no desequilíbrio das instituições de uma
dada sociedade em relação à sua estrutura econômica e social. As transformações
estruturais, assim que se consolidam, provocam uma crise nas antigas tradições que antes
garantiam o funcionamento - a ordem - da sociedade, mas posteriormente acarretam
transformações nestas tradições, renovando-as, e re-estabelecendo, assim, um novo
equilíbrio80. As novas tradições devem ser absorvidas e adaptadas à cultura, garantindo o

79
Para Azevedo, “a evolução social deve ser definida como uma transformação continua da organização
social, e em cuja base se encontra a mudança das relações economicas que, proporciona, sem duvida, uma
‘oportunidade’ para o progresso, mas não é o progresso em si mesmo.”(1935:100)
80
A tradição, para Azevedo, é o conjunto das crenças e dos sentimentos comuns à média dos membros de
uma sociedade e formando um sistema determinado (de semelhanças) que tem vida própria. Da manutenção
da tradição depende o equilíbrio da sociedade. Se esse se rompe, dá lugar às crises sociais (períodos
61
processo evolutivo da civilização - a nova ordem deve se estabelecer e se perpetuar. A
educação, lugar da transmissão das tradições e, por isso mesmo, mantenedora da coesão
social, passa, nestes períodos, por intensificada crise, por ser o lugar onde as tradições se
encontram mais arraigadas. Porém, se as mudanças em seu interior forem devidamente
conduzidas, o reequilibro social é produzido, e a normalidade da sociedade é
retomada.(Cf. Azevedo,1935)
Nos períodos de crise, para Azevedo, o campo da educação é o lugar das lutas
entre o novo e o velho, entre as antigas tradições e as novas. A vitória do novo é a
garantia do processo evolutivo da civilização, e do restabelecimento do equilíbrio social
(período orgânico).
O descompasso entre as transformações econômicas e as tradições culturais, no
Brasil, se intensificam com a I Guerra Mundial, quando há um novo surto de
industrialização, e o país e o mundo (principalmente a Europa) se lançam num movimento
renovador causado pelas conseqüências da guerra. (1958:151-152). Para Azevedo,
A intensidade das trocas econômicas e culturais, o desenvolvimento das
aglomerações urbanas, pelos quais se exprimia vigorosamente o impulso tomado
pela indústria nacional, depois do conflito europeu, criavam o ambiente mais
favorável à fermentação de idéias novas que irradiavam dos principais centros de
cultura, tanto da Europa como dos Estados Unidos.
(...) Foi nesse ambiente de agitação de idéias, de transformações econômicas e de
expansão dos centros urbanos, que se iniciou no planalto e no litoral, para se
propagar pelas principais cidades do país, o movimento reformador da cultura e
da educação. (Cf.Azevedo,1958:153)
O novo período que se inicia no Brasil, na interpretação de Azevedo, tem seu
marco nas mudanças econômicas (aglomerações urbanas, impulso na industrialização)
criadoras do ambiente de luta pela renovação cultural que deve acompanhar essas
mudanças fundamentais.
Essa luta, segundo o Autor, é caracterizada por duas correntes que entram em
confronto: os que defendem a renovação; e os que defendem a tradição. O início deste
confronto, em sua perspectiva, é assinalado por dois acontecimentos fundamentais: o

críticos). A educação é o lugar da transmissão das tradições. Por isso, se as tradições são abaladas, as
instituições que mais sofrem com a crise são as educacionais. (Cf. Azevedo,1954:147)
62
Inquérito da Educação Pública, que orienta as reformas educacionais executadas em
vários estados entre 1927 à 1935; a Reforma do Distrito Federal. Para ele,
foi, porém, na reforma de ensino empreendida no Distrito Federal, em 1927-1930,
pelo autor desse inquérito, que se acentuaram com mais precisão e vigor as
grandes linhas diretrizes, então nìtidamente definidas, que já se anunciavam
naquela sondagem de opinião e orientaram as mais importantes tentativas de
renovação e reconstrução educacional no país.
(...) Mas, certamente, pelas formidáveis fôrças morais que mobilizou, pelo
movimento de idéias e de opinião que desencadeou, pela rapidez com que se
difundiu e, pela extensão do campo que abrangeu, a reforma do Distrito Federal
(1927-1930), foi, de tôdas as que se realizaram no país, a mais vigorosa, a mais
revolucionária e a de maior repercussão, compreendendo no seu raio de
influência quase todos os estados. (Cf. Azevedo,1958:156-157)
A ação de Azevedo é, em sua interpretação, marco fundamental da história da
Educação brasileira. Sua ação e seus feitos são ressaltados no processo de “evolução” do
Brasil. Sua interpretação é autorizada por seu próprio testemunho dos fatos e de sua
participação nos acontecimentos. As vivências do Ator são reconstruídas pelo intérprete a
partir do método que elege e das escolhas que procede. Que vivências da testemunha
possibilitaram ao intérprete constituir uma determinada história - um determinado palco -
cujos marcos se perpetuaram na historiografia da educação brasileira? Em que condições
a ator-testemunha se transforma em intérprete de sua história e da história do Brasil?
A história do Autor (tanto de suas ações públicas, quanto de sua formação
intelectual) pode fornecer pistas para a compreensão de questões lançadas por seus
críticos à sua interpretação tais como: quais as intenções de Azevedo, em A Cultura
Brasileira, de manter os movimentos educacionais, dos quais fez parte, fora das relações
políticas? Por que o período entre 20 e 30 é marco explicativo fundamental em sua
síntese? Entendendo-se de que lugar Azevedo construiu sua interpretação torna-se
possível nos aproximarmos melhor das conexões causais estabelecidas pelo Autor, as
quais determinarão seu modo de ler a História.

As Aventuras

63
No período que é convidado para executar a obra de introdução do censo,
Fernando de Azevedo havia conquistado grande projeção pública como jornalista -
publicando, por exemplo, o Inquérito da Educação Pública do Estado de São Paulo -
como político de educação81, com sua atuação nas Reformas do Distrito Federal e de São
Paulo, como sociólogo com a publicação de Princípios de Sociologia. Era, portanto,
intelectual credenciado para produzir uma síntese de Brasil que introduzisse o censo de
1940.
Sua projeção nacional é alcançada no período em que se acirra a disputa, na qual
está inserido, entre os diferentes projetos das elites no campo da educação, projetos que
tinham como objetivo promover a reforma da cultura , a partir de novos sistemas
educacionais - reforma dos costumes - imprimindo sentido e direção à vida nacional, ou
seja, solucionando através da educação os problemas da organização nacional. Desde a I
Guerra Mundial, a escola tornava-se, para as elites, um recurso para a incorporação da
população à ordem social e econômica, sem conflitos ou “desordens”, já tendo fracassado
outros mecanismos para elevar o Brasil ao patamar das grandes nações ou civilizações -
ao progresso da indústria e à modernização.(Cf. Carvalho,1993)
Numerosos educadores mobilizaram-se e constituem um movimento em defesa de
uma educação nova onde a escola é concebida como instrumento civilizatório. Estes
educadores organizaram-se na Associação Brasileira de Educação para viabilizar a
reforma educacional e, com ela, a reorganização nacional. Na ABE, fundada em 1924,
reuniam-se aqueles que acreditavam na relevância dos problemas educacionais,
minimizando as divergências políticas sob a luta comum por uma reforma educacional. A
Associação ganha notoriedade a partir de 1927, transformando o problema educacional
em causa cívica, difundindo sua importância em todo o país. (Cf. Carvalho,1986)
Os Pioneiros da Educação Nova aparecem na cena, já constituída por este
movimento, defendendo um sistema único de ensino e a escola pública, leiga e gratuita.
Seu projeto é afirmado no Manifesto dos Pioneiros da Educação Nova, lançado em
1932. A convergência dos projetos políticos educacionais, criada e mantida na ABE até
1930, é dissolvida no momento em que há o espaço político, com o Governo Provisório,
para se realizar a reforma educacional nacional. O Manifesto dos Pioneiros é uma das
expressões dessa cisão.

81
Em carta para Venâncio Filho, Fernando de Azevedo se descreve: “eu sempre fui menos um técnico do
que um político de educação” (Azevedo. 6/1/1936. In: Penna, 1987:115)
64
A dissolução definitiva da convergência dos projetos se dá com o “golpe”82da IV
Conferência Nacional de Educação (1931), quando o grupo católico sai da ABE,
reorganizando-se na Confederação Católica Brasileira da Educação, num combate sem
tréguas contra os princípios da reforma educacional firmados no Manifesto e contra seus
defensores. (Cf. Carvalho,1994)
A polêmica entre os dois grupos acirra-se através da imprensa e das publicações de
ambas as partes. A luta por uma educação renovada já difundira-se na década de 20 e, no
período posterior a Revolução de 30, transforma-se em questão política fundamental,
tendo espaço na imprensa para os debates educacionais. As críticas, idéias e projetos dos
grupos ligados as questões da educação são difundidos e o espaço do jornal torna-se
espaço de luta. (Cf. Carvalho, s/d.)
O grupo dos Pioneiros projeta-se na cena política e no campo da educação,
afirmando-se no mercado editorial, com obras próprias ou organizando coleções, ganham
espaço para fixar e difundir orientações doutrinárias no campo da pedagogia, organizar e
dirigir importantes reformas escolares a partir da ocupação de cargos públicos nos
âmbitos estaduais e federais. (Cf. Carvalho,1993)
Azevedo é um dos intelectuais do grupo que, a partir da Reforma do Distrito
Federal (1927-1931) e do Manifesto (1932), do qual foi redator, destaca-se como político
de educação, sendo convidado a ocupar cargos públicos, como o de Diretor da Instrução
Pública de São Paulo em 1933, e como intelectual, produzindo trabalhos nos campos da
Educação e da Sociologia, participando ativamente da montagem de instituições voltadas
à produção intelectual e formação de quadros para a educação. Difundindo suas idéias a
partir de sua afirmação no mercado editorial83.
Segundo Carvalho,
a escolha de Fernando de Azevedo para redigir o Manifesto deveu--se
principalmente à sua atuação como reformador escolar no Distrito Federal (...). A
82
Na IV Conferência Nacional de Educação, Nobrega da Cunha consegue levar os educadores que a
compunham considerarem -se incapazes para fixar uma nova política de educação nacional para o Governo
Discricionário. O Governo e os organizadores da IV Conferência contavam com o lançamento de uma
política que perpetuasse a dualidade do sistema escolar e da orientação religiosa. (Cf. Cunha, 1932)
“Controlada, desde 1929, por um grupo de católicos, a ABE organiza a Conferência de modo a encaminhar
as deliberações tomadas nestadireção. Mas não foi bem sucedida, pois um novo grupo, de que Nóbrega da
Cunha era porta-voz, já se tornara suficientemente forte para impedí-lo.” (Carvalho,1994:72). No vácuo
deixado pela IV Conferência é lançado o Manifesto dos Pioneiros da Educação Nova, firmando posições de
defesa da escola única e da laicidade do ensino. (Cf. Azevedo, 1932. In: Penna,1987)
83
Azevedo trabalhou, entre 1931 e 1946, na Cia Editora Nacional; foi professor catedrático do Instituto
Pedagógico de São Paulo; diretor do Instituto de Educação de São Paulo; colaborador do Projeto da USP;
presidente da ABE; Diretor da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da USP.
65
Reforma contara com a colaboração de diversos educadores cariocas, então
sediados na ABE, funcionando como polo aglutinador em torno de propostas de
remodelação escolar.
Aceitar a incumbência de redigir o Manifesto era, da perspectiva de Azevedo,
assumir a “suprema liderança da nova educação no Brasil”. Isto significava
colocar-se no centro das disputas políticas que, após 1930, configuraram o campo
do debate educacional.” (Carvalho,1994:73-74)
Tanto a Reforma como o Manifesto conferiram-lhe autoridade intelectual e política
incontestáveis no campo da educação e na cena política nacional. Portanto, como
liderança do movimento da educação nova no Brasil e como autoridade no campo da
política de educação, conferida pelo êxito da Reforma do Distrito Federal e pela difusão
do Manifesto, Azevedo ambiciona o Ministério da Educação, onde poderia efetivamente
implementar o seu projeto de educação.
Além da ligação que mantinha com os Pioneiros, Fernando de Azevedo
relacionava-se, desde o início de sua carreira pública, com outros grupos políticos, como
o “grupo do Estado”, que o havia convidado para promover o Inquérito sobre Instrução
Pública de São Paulo (1926), onde o projeto de Universidade, defendido por ele, aparece
pela primeira vez articulado com o projeto das forças político-liberais de São Paulo84.
Tais relações são sempre marcadas pelo tema da Educação que o permite enfatizar seus
ideais educacionais em detrimento à qualquer alinhamento com partidos políticos ou
grupos85. Mesmo defendendo um projeto de universidade comum ao do “grupo do
Estado”, considera-se autônomo, “um franco atirador em política”, perfilando- se,
reiteradas vezes, apenas com os Renovadores, estejam eles ligados ao governo de Vargas,
como é o caso de Lourenço Filho, ou por ele perseguidos, como é o caso de Anísio
Teixeira. O que os “une” é, para o Educador, o ideal de renovação educacional.
Assim, Azevedo articula em torno de si uma rede de relações, através da qual
participa de diferentes iniciativas que o possibilitam desenvolver o seu projeto
84
Conferir dicussão sobre Cardoso no capítulo I desta dissertação.
85
Em cartas a Venâncio Filho, Azevedo critica o governo da “Comunhão Paulista”: “tenho andado doente e
fatigado. As esperanças de cooperar para a renovação educacional, em S. Paulo, já se desvaneceram: afora a
Universidade, que já está organizada, mas ainda na sua fase crítica e sem substrato material (prédios,
instalações, laboratórios), em que se possam apoiar as instituições universitárias, tudo mais, em matéria
educacional, vai no pior dos mundos. A desordem é total, e do abandono em que está a educação pública, já
é dificil levantá-la, já porque as influências políticas retomaram o ímpeto e o gosto das interferências e
injunções partidárias, já porque o espírito conservador e de rotina, o personalismo e a ignorância voltaram,
nos domínios na educação, a solapar todas as iniciativas e realizações, com quase indiferença dos poderes
públicos.” (Azevedo in: Penna,1987:113)
66
educacional. No entanto, mantém relativa autonomia perante os grupos (principalmente os
declaradamente políticos) para se deslocar entre eles com maior facilidade86. Sobrepondo
-se aos vínculos políticos, alimenta as relações de amizade com pessoas de diferentes
círculos identificadas com o Manifesto. Assim, conserva a “neutralidade” política de sua
ação em favor da educação. A contradição apontada por seus leitores posteriores - de ora
criticar, ora participar, e conseqüentemente apoiar os governos anteriormente criticados -
era justificada, por ele, pela preponderância do projeto educacional sobre qualquer tipo de
ideologia, pela própria função política que continha a educação: formar o cidadão.
Posição que o próprio movimento educacional (a ABE) a partir do qual se projetou havia
proposto para si.
Nas várias funções que exerceu no campo da educação, soube se cercar de uma
plêiade de colaboradores, nos quais despertava o entusiasmo e uma dedicação
sem limites. Os dissabores que às vezes encontrou no curso dessas atividades
jamais veio de seus auxiliares, podendo afirmar com convicção, em 1945, que “se
há, pois, um homem que não teve abissínios; nunca foi atacado quando decaiu do
poder, pelos que o apoiaram, e não sofreu desilusões daqueles em que realmente
confiou, esse foi o antigo diretor da instrução pública”. A cujas deficiências a
sorte deu por compensação a doçura e solidez das amizades.” (A. Vênancio
Filho,1994:51)
Entre estas amizades estavam a de Francisco Venâncio Filho, Teixeira de Freitas,
Lourenço Filho, Frota Pessoa, Anísio Teixeira, e outras que, como ele, ocupavam postos
no Estado, tanto nas instituições públicas ligadas à educação como nas esferas mais
próximas ao poder, ligadas diretamente à Presidência da República. Tal “rede”, ou “rede
de colaboradores”, não só o informava dos acontecimentos como, muitas vezes,
intermediava Azevedo e seus “opositores” que estavam no poder. Garantia sua
“neutralidade” política em relação aos partidos políticos e às posições ideológicas que, a
seu ver, sobrepunham-se aos interesses coletivos e à modernização da educação. O espaço

86
Em carta (2/7/1936) a Frota Pessoa, Fernando de Azevedo comenta sobre a possível indicação de seu
nome à pasta federal da Educação: “Ora, não vejo possibilidade da indicação de meu nome, por um dos
partidos de São Paulo, os dois partidos mais fortes, a nenhum dos quais estou filiado (sempre fui um franco
atirador), embora ligado intimamente a algumas das figuras mais eminentes, não ‘saberiam’ indicar para
uma pasta senão representantes diretos, expressões políticas de suas agremiações. Não nos iludamos. Os
partidos, ainda acentuadamente personalistas, não se reorganizaram ‘em torno de idéias’; eles lutam para a
conquista do poder e para a distribuição dos ‘cargos de direção’ aos seus correligionários mais destacados.”
(In:.Penna,1987:155)
67
político de Azevedo também era assegurado pelo diálogo com os diversos governos,
também intermediado pelos “colaboradores”.
Para Antônio Cândido, na análise sobre a atuação política do Educador, Fernando
de Azevedo tinha uma87
mentalidade política sui generis, voltada para a educação e a cultura, mas,
curiosamente, sem qualquer vinculação ou mesmo interesse partidário.(...) Sem
opção por este ou aquele tipo de regime, entre os que no seu tempo se sucederam
no Brasil. Convencido da importância fundamental da educação para chegar à
democracia de fato, esteve sempre disposto a colaborar com dirigentes de
variados perfis, desde conservadores classicamente escolhidos, como Washington
Luís ou, mais especificamente, Antonio Prado Júnior, seu Prefeito no antigo
Distrito Federal, até governantes impostos pelo poder central, como Waldomiro
de Lima, tão mal visto pelos seus amigos do jornal O Estado de S. Paulo. Da
mesma forma, colaborou com Armando Sales de Oliveira, tanto na fase em que
este era interventor quanto na fase que era governador. (...)
O que se desprende deste exemplo88, quando via sua idéias favorecidas pelo poder
público, reconhecia neste uma espécie de legitimidade cultural, sem com isto
apoiá-lo necessariamente enquanto regime político89.(Cândido,1994:14-16)
A identidade política de Fernando de Azevedo é dada por seu projeto educacional
contido no Inquérito, nas Reformas do Distrito Federal e de São Paulo e no projeto da
USP. Seus opositores eram aqueles que não compartilhavam as mesmas diretrizes gerais -
escola única, escola pública e gratuita, escola leiga que ele queria imprimir à reforma da
educação brasileira. Constrói para si a imagem da “neutralidade” que era, a seu ver,
própria do cientista ou do técnico.
Em sua interpretação da história da educação brasileira os embates ideológicos são
caracterizados não por opções políticas de esquerda ou de direita, já que os grupos em

87
Antônio Cândido foi assistente de Fernando de Azevedo a partir de 1941.
88
Antono Cândido discute, neste momento de seu depoimento, o modo como Azevedo descreve o Estado
Novo e sua política educacional em A Cultura Brasileira.(Cândido,1994:15)
89
Cândido ainda reforça a idéia de que Azevedo defendia não um partido político mas um projeto cultural e
educacional, classificando o político de educação como um “oportunista desinteressado”: “(...) punha os
interesses das reformas acima de regimes e partidos aos quais encarava, frequentemente, como
oportunidades e instrumentos. Era, portanto, um oportunista desinteressado, contradição em termos, que no
entanto serve para caracterizar a sua natureza de reformador impetuoso e mesmo impaciente, disposto a pôr
no primeiro plano as possibilidades de realizar os projetos que lhe pareciam essenciais.”(Cândido,1994a:16)
Ver também Cândido,1994b:180-182
68
disputa propunham reformas para o desenvolvimento de uma civilização urbana e
industrial, mas pelas opções educacionais que os diferentes grupos defendiam,
constituindo, assim, o lugar para a neutralidade política de sua ação e da ação dos
Pioneiros.
Essa imagem de neutralidade, construída nos seus discursos e na sua atuação
política e firmada por sua interpretação histórica em A Cultura Brasileira, posteriormente,
abriu espaço na historiografia para interpretações que o consideram ou o reformador
ingênuo à frente de seu tempo, ou político defensor da oligarquia que se utiliza da
educação para, disfarçadamente, manter-se no poder, ou ainda, tendo seu projeto
“julgado” em relação à seu tempo e aos princípios da Escola Nova, conclui-se das
distâncias entre a atuação do reformador e os princípios que defendia. Essas
interpretações são operadas a partir da imagem que o próprio Autor construiu para si e do
modo como reconstituiu o movimento educacional. Reiteram, portanto, seu testemunho,
porém transformam-no ora em vilão, ora em herói da história que participou.90
Na interpretação de Azevedo, esse “período crítico, profundamente conturbado,
mas renovador e fecundo, que sucedera a um longo período orgânico, de domínio da
tradição, e de idéias estabelecidas”, caracteriza-se pela fragmentação da vida educacional
e cultural do país, “a princípio numa dualidade de correntes” e depois numa “pluralidade e
confusão de doutrinas”, que se organizaram em torno dos conservadores, dos renovadores
e da “zona de pensamento perigoso”. As duas primeiras correntes lutam entre si em um
mesmo campo, o da conservação das tradições que preservam a sociedade; já o terceiro
desenvolve um pensamento capaz de “desagregar a rotina, de desorganizar os costumes,
de abalar a fé e propagar o ceticismo.”(Cf. Azevedo,1958:179-180)
A reforma educacional, segundo Azevedo, deveria ficar restrita à renovação das
tradições que operassem o progresso da sociedade, para isso era necessário que a política
ou as paixões estivessem do lado de fora das discussões, não permitindo que a “zona de
pensamento perigoso” ameaçasse o pensamento da “escola nova”. Também seria
necessário que as transformações ocorressem para que o novo período orgânico, adivindo
da crise, se restabelecesse. A luta fundamental, para o Autor, não estava em apoiar este ou
aquele grupo político, mas em garantir as reformas “racionais” da educação e da cultura.
Em pleno governo de Armando Salles de Oliveira, quando é instalado o projeto de USP,

90
Conferir discussão sobre Brandão no Capítulo I desta Dissertação.
69
Azevedo escreve a Venâncio Filho criticando a atuação do Governo em relação à
educação:
A desordem é total, e do abandono em que está a educação pública, já é dificil
levantá-la, já porque as influências políticas retomaram o ímpeto e o gosto das
interferências e injunções partidárias, já porque o espírito conservador e de
rotina, o personalismo e a ignorância voltaram, nos domínios na educação, a
solapar todas as iniciativas e realizações, com quase indiferença dos poderes
públicos. (Azevedo, 30/5/1935. In: Penna,1987:113)
Na interpretação do Autor, apesar dos desvios que a reconstrução educacional, que
se iniciaram com a Reforma do Distrito Federal, poderia ter sofrido, foi continuada pelo
manifesto, pela V Conferência e pelas Reformas no Distrito Federal, em Minas Gerais e
em São Paulo.(Cf. Azevedo,1958:180-181)
O período considerado por Azevedo como o da “vigorosa ofensiva renovadora”,
entre 1932-1935, é o momento em que os Pioneiros da Educação Nova, parecem ganhar a
hegemonia no campo da educação, tanto no âmbito federal como no estadual, oferecendo,
por um lado, ao Ministério da Educação e Saúde Pública, através da V Conferência
Nacional de Educação (esvaziada do grupo católico), as diretrizes para a Constituição
(1934)91, por outro, as Reformas educacionais do Distrito Federal e de São Paulo são
dirigidas pelos membros do grupo (Fernando de Azevedo em São Paulo e Anísio Teixeira
no Rio de Janeiro, assessorado por Venâncio Filho)92.

91
Cardoso considera que a vitória das propostas contidas no Manisfesto, para serem incluídas na
Constituição de 1934, foram parciais, na medida em que “foi garantido o princípio da descentralização”,
porém, no projeto original, o Estado deveria “exercer ação estimuladora e coordenadora” da educação e na
Constutição a função do Estado passa a ser fiscalizadora (no lugar de estimuladora). (Cardoso,1992:120)
Para Schwartzman, Bomeny e Costa, toda a belicosidade da Igreja no debate da Assembléia Constituinte “é
aplacado finalmente com a aprovação de duas ‘emendas religiosas’: a invocação do nome de Deus no
preâmbulo do anteprojeto constituicional e o restabelecimento da colaboração entre Igreja e Estado”
(Schwartzman,1984:60) O que demonstra força que a Igreja continuava mantendo junto ao poder.
92
Para Schwartzman, Bomeny e Costa, o decreto de 1931 que permitiu o ensino religioso nas escolas
públicas, parecia ao grupo católico prova do compromisso firmado entre a Igreja e o governo provisório, e
mais especificamente Francisco Campos. Porém a partir 1932, o projeto católico parece ameaçado pela
ofensiva dos Pioneiros. A presença dos líderes do movimento da Escola Nova em posições de
responsabilidade no Rio de Janeiro (Anísio Teixeira) e em São Paulo (Fernando de Azevedo), quando
Francisco Campos já deixara o ministério, parece ameaçar este projeto. Em janeiro de 1932, a redação de A
Ordem protesta contra a revogação do decreto de ensino religioso pelo interventor de São Paulo, acusa os
maçons e apela ao então Ministro da Justiça, Maurício Cardoso, para restabelecê-lo. A reforma do ensino
secundário de abril de 1932, introduzindo disciplinas de caráter técnico-científico, definindo as condições
para o reconhecimento oficial e instituindo o sistema de inspeção federal nas escolas, ampliara
significativamente a interferência do governo na educação. (...) A revista A Ordem reserva espaços cada vez
maiores para a análise do papel da Igreja na educação dos povos. Ressalta que é um fato reconhecido
historicamente. A revogação do decreto que permitia o ensino da religião nas escolas públicas é interpretada
como resultado da influência da maçonaria, para depois ser atribuída aos liberais, aos céticos e, finalmente,
70
Também é neste período que o projeto da Universidade, tão acalentado por
Azevedo, é implementado (1934), significando uma “vitória”, por notabilizá-lo como um
dos fundadores e por viabilizar, pelo menos em parte, seu projeto educacional - de criar as
elites responsáveis que dirigiriam o Brasil; e a nova instituição poderia “produzir um novo
professorado que, bem formado nos princípios da Escola Nova e da educação científica e
profissionalizante, reformaria a escola e, com ela, a educação brasileira. 93

As Desventuras

Se até 1935, com o Manifesto e a V Conferência, os projetos dos renovadores


pareciam se hegemonizar no campo educacional, a partir daí, a contra-ofensiva dos
Católicos começa a dar sinais de vida, ganhando terreno junto ao Estado. Na Constituição
de 1934 a Igreja obtém importantes vitórias. Na versão final da Constituição, três
propostas da Liga Eleitoral Católica (LEC) - a indissolubilidade do matrimônio, o ensino
religioso facultativo nas escolas públicas e a assistência facultativa às classes armadas -
são incorporadas, representando a aproximação dos Católicos do Estado94. Os Católicos
são chamados pelo Centro D. Vital para continuar sua luta prioritária pelo ensino religioso
e pelo estabelecimento das escolas confessionais95. Outro indício da aproximação Igreja e
Estado é a nomeação do Ministro da Educação e Saúde Pública Gustavo Capanema,
diretamente ligado a Alceu de Amoroso Lima.96

aos protestantes. Artigo da Redação em fevereiro de 1932 alerta os católicos contra o predomínio da
mentalidade laicista que seculariza o Estado. Alceu Amoroso Lima levanta-se contra o manifesto dos
Pioneiros da Educação Nova, que sugere a concentração do ensino nas mãos do Estado, contribuindo assim,
segundo ele, para a implantação do regime comunista. Adverte contra a institucionalização da nova política
educacional, que significará, a seu ver, um atentado contra a nacionalidade. Em junho de 32, a mesma
revista denuncia a orientação dada à educação desde 30, cujo ‘naturalismo’ levará à descristianização do
ensino e ao advento da pedagogia comunista. Refere-se a Fernando de Azevedo, Anísio Teixeira e Celina
Padilha como precursores do comunismo.”(Schwartzman, Bomeny e Costa, 1984:57-58)
93
Em carta a Venâncio Filho comenta: “Leu o Decreto criando a Universidade São Paulo? Mandei-o ao
Anísio, pedindo-lhe que lesse aos amigos comuns, e entre estes, a você evidentemente, que aliás, se não me
engano, citei pelo empenho de ter sua opinião. Esse Decreto é um grande serviço a S. Paulo e uma vitória
para os nossos ideais.”(In: Penna,1987:111)
94
Na interpretação de Azevedo, os pioneiros conseguiram implementar seu projeto porque forneceram os
principais subsídios que guiaram o estabbelecimento das leis. (Azevedo,1958:190-191)
95
Ver Schwartzman, Bonemy e Costa,1984.
96
Para Schwartzman,Bonemy e Costa, “desde o início é inequivoca a influência de Alceu Amoroso Lima em
sua designação . (...) Empossado no Ministério, Capanema teria em Alceu Amoroso Lima seu principal
conselheiro, que indicaria nomes, vetaria outros, proporia leis e trataria de dar conteúdo às principais
iniciativas do ministro.” (Schwartzman, Bonemy e Costa,1984:48-49
71
A contra ofensiva católica é logo sentida por Azevedo, que passa a avaliar
cuidadosamente os convites que recebe para colaborar nas diferentes reformas
educacionais dos outros estados. A sua meta era chegar no ministério da Educação- o que
para ele seria a vitória dos Pioneiros - e para tanto seria fundamental ocupar os lugares lhe
garantissem projeção para alcançar o cargo. Com a oposição cada vez mais forte era
necessário acumular “feitos” bem sucedidos, como era o caso da Universidade de São
Paulo.
Dentro dessa perspectiva, quando é convidado por Anísio Teixeira para participar
de sua gestão no Distrito Federal avalia em carta a Venâncio Filho:
Espero que o Anísio tenha compreendido todo o cuidado, inquieto e constante,
que pus em evitar que se magoasse, ainda que levemente, com minha resposta
definitiva, determinada pelas mais graves razões, entre as quais, não foi menor o
desejo de afastá-lo da idéia do Conselho Técnico, que dadas as condições da
situação atual, poderá vir a ser mais uma fonte de contrariedade e de decepção
para ele e para o Dr. Pedro Ernesto.
(...) Quanto mais reflito sobre a criação do Conselho, mais se acentuam as
dúvidas levantadas ao primeiro exame da questão. Sabe você que nunca fiz
objeções à idéia, em si mesma, que me parece excelente. Mas, passado o período
do governo discricionário, e no momento em que os antigos grupos políticos, que
se diriam definitivamente liquidados com a revolução de 30, voltam a rondar a
administração, dispostos aos assaltos a que os habituara a politicalha mais
sórdida e desenfreada, - não vejo como poderá funcionar com eficiência esse
Conselho, cujos planos de execução, submetidos à Câmara de Vereadores, serão
fatalmente mutilados e deformados. Tudo isso me entristece e me preocupa, tanto
mais quanto a política, se infiltrar ainda mais na administração acabará por
sacrificar as magníficas realizações empreendidas, no terreno educacional.
(Azevedo in:Penna,1987:112-113)
A ação dos Pioneiros, e principalmente de Anísio Teixeira, é denunciada pelos
Católicos como a tentativa de implantação do comunismo. A forte oposição que a
Reforma de Anísio Teixeira vinha sofrendo poderia anular a atuação de Azevedo sem lhe
proporcionar qualquer ganho político, ainda que lhe permitisse retomar a obra que havia
iniciado em 1927. As acusações que pesavam sobre Pedro Ernesto e sua gestão no Distrito
Federal, também foram ampliadas aos seus homens de confiança que participavam de seu
72
governo. Mesmo já tendo sido acusado de comunista, a participação de Azevedo em uma
gestão denunciada como tal, poderia-lhe acarretar maiores prejuizos, nas pretensões
ministeriáveis.
Em dezembro de 1935, Anísio Teixeira é levado a renunciar ao cargo. Em seu
lugar é empossado Francisco Campos, na secretaria de Educação e Cultura do Distrito
Federal. Apesar do Governo, e através de seu representante Francisco Campos, querer
anular a Reforma empreendida por Anísio Teixeira, não se opunham a idéia de uma
reforma. O próprio Campos participara do movimento Renovador nos anos 20; propunha
a continuidade de uma Reforma que não se confundisse com a emprendida por Anísio
Teixeira. Pretendia manter um renovador no Distrito Federal, “dando continuidade à obra
em crise”, porém com “equilíbrio”. (Cf .Azevedo, 6/1/1936. In: Penna,1987:114-115)
Azevedo não aceita o convite para substituir Anísio Teixeira. Para ele, o que
pretendia Campos era manter a aparência da continuidade da Reforma e não efetivamente
preservá-la. Muitas das inovações introduzidas por Anísio Teixeira não seriam mantidas
por Campos. Portanto, não haveria continuidade mas substituição do que aquele educador
havia proposto. Para Azevedo, Anísio Teixeira vinha dando prosseguimento à Reforma
que havia iniciado. O ataque a obra de Teixeira, significava um ataque à sua própria obra.
A substituição das inovações introduzidas por Teixeira seria a substituição das inovações
iniciadas por ele Em carta a Venâncio Filho comenta o convite:
recebi ao meio-dia um telefonema do Lourenço Filho. Em resumo, foi o seguinte: -
Disse-me ele que telefonou, a pedido e em nome de Francisco Campos, para me
convidar para diretor do Departamento de Educação, do Rio, adiantando-me que,
no caso de aceitar este cargo, eu seria contratado para professor da Universidade
do Distrito Federal, acumulando-me, portanto, os cargos de Diretor Geral da
Educação e de professor de um instituto universitário, para que minha situação,
no Rio, fosse ao menos equivalente à que tenho em S. Paulo.
Este, o convite. Agora as razões. Tivera ele uma longa conferência com Campos,
de que resultou a convicção de ambos, de que, tendo sido eu o iniciador desta
obra continuada por Anísio, ninguém , em melhores condições do que eu, para
continuá-la, dentro de uma orientação renovadora, mas com equilíbrio (palavras
dele).
(...) Acho que infelizmente, não posso aceitar o cargo. E o digo, por todos os
motivos, com grande pesar. E você sabe as razões por que me parece não dever
73
nem poder aceitar o cargo; a gravidade da situação criada pela confusão geral; a
incerteza quanto aos propósitos do Campos; o pouco conhecimento pessoal que
tenho dele, e as informações pouco favoráveis que me dão, a respeito dele, e são
confirmadas por atitudes, em diversos momentos; os seus últimos discursos, e a
desconfiança de que, convidando-me, ele quis convidar um Técnico para ficar à
disposição de uma (e qual?) política da educação. Ora, eu fui sempre menos um
técnico do que um político de educação, e a minha política tem sido sempre a
política de educação. (Azevedo, 6/1/1936. In:Penna,1987:114-115. Grifos
originais)
Para Azevedo, a condição de técnico, submetido às decisões políticas de outros,
era inaceitável, principalmente estando essa política em franca oposição à Reforma
iniciada por ele, daí a recusa ao convite. Em carta (23/3/1936) a Venâncio Filho critica a
política de educação do Distrito Federal e do Ministério de Capanema:
Espero que aqui ou na primeira viagem que eu fizer tenhamos tempo para matar
as saudades e trocar idéias sobre a grave crise que atravessa a educação no
Brasil, ameaçada, sobre tudo no Rio, por essa estúpida e desavisada reação
clerical. Nunca fui anti-católico ou anti-religioso, mas o que se está fazendo, com
o Tristão e outros à frente é criar uma gravíssima questão religiosa, que pode
provocar uma reação anti-clerical, das piores conseqüências.
Li com toda a atenção sua carta que pede demissão do cargo de assistente.
Tudo claro, incisivo e documentado. Uma exposição que obrigaria o Ministro a
refletir, se ele fosse capaz de ter momentos de reflexão. Da última conversa que
com ele tive, ainda voltei mais triste e desiludido. A primeira condição para se
realizar uma obra séria da educação no Brasil, é mudar o Ministro. Chamam-lhe
aí “O Louco Rex”. O carioca é um povo que sempre tem razão, nos seus
julgamentos irreverentes. Gostaria que esse juízo sobre o Ministro atual fosse
desmentido pelos fatos. Mas os fatos capazes de desmenti-lo já estão tardando.
Quem sabe ele nos prepara alguma surpresa!...” (In: Penna,1987:116)
Em torno da saída de Anísio Teixeira se estabelece uma estranha situação. Ao
mesmo tempo que é considerado um Pioneiro e sua Reforma é vinculada à iniciativa de

74
Azevedo, outro Pioneiro, também é considerado um subversivo pelo tipo de Reforma que
empreende no Distrito Federal97. Por isso, é forçado a sair de seu cargo.
Para o cargo é convidado o iniciador da obra, Fernando de Azevedo, e a ainda, a
intermediação é feita por outro Pioneiro - Lourenço Filho que, por sua vez, participa das
ações, no campo da educação, propostas pelo Estado que lança uma política de controle
sobre os projetos de renovação empreendidos pelos Pioneiros. Portanto, a atuação de
Azevedo, no primeiro momento da Reforma, não parece ser considerada pelo Estado
subversíva, tanto que é convidado a continuar a obra mas agora com “equilíbrio”. A
identidade entre as propostas de Azevedo e Teixeira ficam atenuados frente à situação do
convite de Azevedo para o cargo a fim de subistituí-lo.
O conflito entre o Estado e a atuação de Anísio Teixeira no Distrito Federal, e as
posições de Azevedo e Lourenço Filho perante o conflito indicam que, apesar de algumas
propostas comuns - escola única, co-educação etc. -, haviam posições diversas no grupo
dos Pioneiros que começam a se revelar a partir de 1934. Enquanto Lourenço Filho
participa ativamento da reação da Igreja em relação às reformas dos Renovadores, Anísio
Teixeira é atingido diretamente por esta política98. A homogeneidade do grupo é
construída e perpetuada em A Cultura Brasileira, que a transforma em memória.99
A interpretação de Azevedo em relação ao grupo suscita algumas questões: por
que na interpretação de Azevedo a coesão do grupo parece tão sólida? Que interesses
marcaram a difusão, por Azevedo, da identidade coesa dos Pioneiros? Por que é essa
interpretação que se perpetua em relação ao grupo dos Pioneiros? Que “mecanismos”
possibilitaram a História da Educação brasileira manter a interpretação proposta por
Azevedo?
O fato de os Católicos obterem uma série de vitórias em relação ao projeto dos
Pioneiros, não significava que o governo de Vargas não tivesse interesse em manter as
97
Ver carta de Azevedo a Frota Pessoa (9/10/1931). (In: Penna, 1987:141-142)
98
Desde de 1931, Lourenço Filho havia se aproximado da Igreja. Em carta (28/10/1931) a Frota Pessoa,
Azevedo critica a aproximação do companheiro à Igreja: “A atitude de Lourenço em face da questão do
ensino religioso, nas escolas, desconcertou-me e entristeceu-me, sobretudo, diante da notoriedade que lhe
deram, acentuando-a, e sublinhando-a, a sua presença constante e a moção de aplausos votada nas sessões
do Congresso Católico de Educação, que se encerrou ontem. (...) Não compreendo. Mas, como o Sr.,
lamento profundamente essa atitude que trairia aos interesses da educação. A laicidade da escola pública é
uma conquista moderna, que consulta os próprios interesses da religião. Não querem, porém, compreendê-lo
aqueles que dirigem esse movimento de reivindicações religiosas, reabrindo para a questão que, no interesse
geral, já estava totalmente resolvida.” Ver também cartas de Azevedo a Frota Pessoa de 5 e 27/12/1931 e .
(In: Penna,1987:145-146)
99
Ver discussão sobre Carvalho no capítulo I.
É interesante notar que não há referências à saída de Anísio Teixeira em A Cultura Brasileira, apesar do
destaque à Reforma deste Pioneiro.(1958:181-183)
75
Reformas propostas pelos Pioneiros. O próprio Capanema cogita a idéia de convidar
Fernando de Azevedo para o cargo de Diretor Geral da Educação, mas o convite é vetado
por Alceu Amoroso Lima.100 Mesmo com o fechamento político que o Estado de Vargas
inicia a partir de 1935 - decreta o estado de Emergência para combater o comunismo - a
política era legitimada pelas necessidades prementes da Reforma do Brasil na ordem, com
equilíbrio.
A Igreja, que participara ativamente da ABE até 1932, e que apoia a política de
“ordem” do Estado, lutava também, para empreender a reformas ou a renovação
educacional que reorganizassem o Brasil, encontrava-se no mesmo terreno de luta que os
Pioneiros, disputando a direção da renovação educacional, interessando a um e outro
submeter os princípios da Escola Nova a seu crivo ideológico. A participação de alguns
Pioneiros nas reformas era aceita pela Igreja desde que esses não se opusessem aos
princípios estabelecidos por ela.
Azevedo, ao se colocar acima dos conflitos políticos- partidários, pensava
legitimar a sua participação no Estado, mesmo este tendo seus posicionamentos alterados
até o Estado Novo. Para Azevedo, o que importava era empreender uma política
educacional com os “pricípios corretos”, que colacasse o Brasil no caminho da
modernidade.
Se por um lado, o Educador não via obstáculos em participar do Estado por
entender que os esforços por uma nova política de educação estavam acima das
“querelas” políticas, por outro, não se submetia a certos princípios propostos pela Igreja,
como a dualidade do sistema escolar e o ensino religioso nas escolas públicas101. Afinal
havia sido ele o redator do Manifesto e, com isso, tornara-se o porta-voz dos princípios ali
defendidos. Os conflitos políticos que enfrentava estavam no campo da educação, e não
da política propriamente dita.
Um dos principais problemas que norteavam as suas decisões em relação aos
convites que eram a ele dirigidos, estava justamente no campo da educação, e não no

100
Alceu Amoroso Lima veta ainiciativa de Capanema em carta de 19/3/1935 “Nada tenho contra a pessoa
do Dr. Azevedo, cuja a inteligência e cujas qualidades técnicas muito admiro. Ele é hoje, porém, uma
‘bandeira’. Suas idéias são conhecidas, seu programa de educação é público e notório. Sua nomeação seria,
por parte do governo, uma opção ou uma confusão. E tudo isso, eu teria de dizer de público, em face de
minha consciência e da certeza que tenho de que, no terreno da educação, é que se está travando a grande
batalha moderna de idéias”(Carta de Alceu Amoroso Lima a Capanema, de 19/3/1935(?). In:.
Schwartzman,1984:301)
101
Em uma passagem d’A Cultura Brasileira, Azevedo opera a críticos a atuação dos partidos políticos
desvelando o seu posicionamento perante a arena política propriamente dita. (Azevedo,1958:174)
76
campo da orientação política geral do Estado. Os possíveis ganhos políticos no campo da
educação se sobrepunham ao posicionamentos ideológicos que o Estado poderia tomar.
Opera, tanto nas suas perspectivas do embate político cotidiano, como na sua
interpretação do Brasil em A Cultura Brasileira, a separação dos campos político e
educacional, legitimando assim, a sua colaboração em diferentes governos, em diferentes
situações políticas.
Entre os convites que Azevedo recebe nesse período está o de dirigir o Censo de
1940. O convite parte de Teixeira de Freitas, também membro da ABE e secretário geral
do Instituto de Geografia e Estatística102. O cargo, no convite de Freitas, era de grande
importância, porque este seria um Censo “muito mais amplo que a operação de 1920”,
uma “empresa gigantesca, e que precisaria ser conduzida com segurança , energia e
grande devotamento por um ‘brain trust’ que tenha ‘alma forte’ de um autêntico condutor
de homens”.103 (Carta de Freitas a Azevedo, 10/6/1937) O censo também seria uma arma
na reconstrução do Brasil. Forneceria os dados fundamentais que balizariam a ação do
Estado.
Em 1937 inicia-se a campanha presidencial. A candidato paulista era Armando
Salles de Oliveira. Um dos pontos da plataforma do candidato era a defesa de uma
política de educação que se aproximava do projeto de Azevedo. No entendimento de
Azevedo, a possível vitória de Salles poderia significar sua chegada ao Ministério da
Educação e Saúde Pública104.

102
Mário Augusto Teixeira de Freitas, era membro ativo da ABE, era, também, Diretor de Estatística do
Ministério da Educação e Saúde e Secretário Geral do Instituto de Estatística
103
Teixeira de Freitas descreve o projeto do Censo: “Deve o prezado amigo ter lido que o Instituto propôs
ao Governo a realização do Recenseamento de 1940 em plano muito mais amplo do que o da operação de
1920. O censo demográfico será mais minucioso, indagando da religião, da situação cultural do indivíduo e
da sua posição na família, e provavelmente também das suas vinculações associativas. O censo agro-
industrial trará maior desenvolvimento. O comercial tentado pela primeira vez. E cogitamos ainda do censo
social e do cultural, que serão vastos inquéritos sobre nossas instituições de natureza sócio-cultural; sendo
provável que simultaneamente se tente censos especiais - o postal, o administrativo (caracterização da
administração pública na sua estrutura, na constituição de seus serviços, nas condições de suas instalações e
na composição de seus quadros), o religioso, etc., - já não aludindo a revisão da carta geral do paiz e ao
levantamento dos mapas municipais, que abordaremos em simultaneidade de ação com os serviços
censitários, propriamente ditos.”(Carta de Freitas a Azevedo, 10/6/1937)
104
Em 1937, a possibilidade parece estar bem próxima, com a candidatura de Armando Sales de Oliveira..
Em carta (3/8/1937) a Venâncio Filho, Azevedo comenta: “Antes de tudo, todo o meu agradecimento, de
coração, pelas palavras com que a sua generosidade estimula e conforta, fazendo-me crer que a minha obra
foi verdadeiramente bela e útil e a minha missão educativa ainda não está concluída. Fala-me do Ministério
da Educação, ‘julgando agora mais do que nunca oportuno (são palavras suas) o momento de minha
investidura no Ministério que de fato criarei’. Oh! o Ministério... Mas isto é sonho de vocês! Um grande
sonho, pelo que tem de idealismo, de sinceridade, de interesse pela educação. Em todo o caso, tudo posso
naqueles que me confortam e no ideal que me anima. Vejo com clareza os problemas e tenho, sobretudo,
uma vontade e uma fé que abalam montanhas.
77
Paralelamente à campanha dão-se as negociações ao cargo de Presidente da
Comissão Censitária. Em todo o segundo semestre de 1937, Azevedo se corresponde com
Freitas sobre a questão do censo. O convite é reiterado em cartas sucessivas, todas
“confidenciais”. Fernando de Azevedo, recebe o projeto do censo entre 15 de Junho e 6 de
outubro, quando Teixeira de Freitas inicia os trabalhos, para a indicação de Azevedo ao
cargo de Diretor do Serviço Censitário. Em carta de 13/12/1937, Freitas entende que seu
convite tem aceitação por parte de Azevedo:
Na segunda parte de sua carta a que me estou referindo encontrei motivos para
duas profundas emoções. Decorreu uma delas da apreciação tão generosa que fez
a-propósito do dossier que havia deixado em suas mãos. E causou-me a segunda
esperança de que o Brasil poderá ter a ventura de vê-lo à testa da formidável
empresa que será o censo de 1940, se a política nefasta não vier criar embaraços
a situação que estou pacientemente preparando sob o mais rigoroso dos sigilos ...
Tenho razões para isto. O nosso “ditador do censo”, para que o Brasil tenha o
serviço de que realmente precisa, há de ser um homem de grande energia, de
enorme capacidade de trabalho, de vistas largas e espírito ágil, com um bom
tirocíneo de administração e larga cultura sociológica, honestíssimo sob todos os
pontos de vista, e capaz de um esforço intensivíssimo para assenhorar-se do
problema, tanto nos seus termos teóricos quanto na sua expressão prática. Achar
alguém nessas condições não era muito fácil .... Depois de uma revista minuciosa
de todas as figuras que poderiam ser lembradas, fixei-me no seu nome, como o
que mais completamente possuía todos os requisitos. E vejo o meu propósito
compreendido e a minha lembrança aceita! Como não teria, então, motivos para
exultar?! (Carta de Freitas a Azevedo, 13/12/1937)

Ainda que a direção do censo fosse atraente para Azevedo, este ainda preferia o
Ministério da Educação. Mesmo com o fortalecimento da posição da Igreja junto ao
Governo Vargas, Azevedo ainda guardava pretensões de chegar ao cargo com as eleições
de 1937, que poderiam levar o grupo do Estado ao poder e com ele a política de educação
próxima a que era defendida pelo Educador. (Cf. Azevedo, 3/8/1937)

Anuncia-se que Armando Sales irá a 14 de agosto a Belo Horizonte, onde fará um grande discurso
político. Para nós, educadores, esse dia deverá ser marcado com uma pedra branca, pois no que ouvi dizer, o
Armando Sales tratará, nessa conferência, da política de educação, que se propõe realizar. Todos aguardam
com ansiedade esse discurso, que deve ter repercussão. Em todo o caso, se não for em Belo Horizonte, será
em outra cidade do país, que Armando Sales falará, na sua campanha presidencial, sobre o problema da
educação.” (Azevedo, 3/8/1937In:. Penna,1987:117)
78
Com o início do novo regime e a derrota do Grupo do Estado, Fernando de
Azevedo ainda vê uma possibilidade de ser indicado para o Ministério da Educação.
Afinal, em sua interpretação, o Estado Novo estaria rompendo com a crise criada pelas
posições antagônicas na política em geral e na política da educação, mas como vinha
indicando, continuaria as reformas educacionais. A hipótese levantada é de que Azevedo
não entendia ter o Estado Novo, pelo menos em seu primeiro mês de vida, assumido
totalmente a diretriz educacional da Igreja, mesmo reconhecendo a sua crescente
influência durante o Governo Descricionário e o período Constitucional de 1934-37, nos
delineamentos da política educacional do Estado. Para ele, ainda havia um espaço a ser
disputado junto ao Estado. E é nessa luta que se engaja para tentar ocupara o espaço que
garantia a influência política sobre a direção da política de educação.105. O indício de que
o Educador poderia ser convidado para o cargo está na carta de Teixeira de Freitas, que
era funcionário do Ministério da Educação e Saúde pública nesse período: “se não
sobrevierem surpresas (e uma que eu, já agora, não sei se temo ou deseje, seria seu
convite para a pasta da Educação...)” (Freitas,8/12/1943).
Porém, Capanema é mantido no cargo, para a continuidade do apoio da Igreja ao governo
de Vargas.
Mesmo com a possibilidade da indicação de Azevedo para o Ministério, Freitas dá
andamento ao processo para efetivar o convite:
Hoje posso adiantar mais o seguinte. O Presidente mandou incluir no orçamento
as verbas que o Instituto lhe pedira, inclusive a de 3800 contos para o
recenseamento. E mandou também preparar o decreto mudando o nome do
Instituto conforme propuseram o CBG e o CNE. Publicado o orçamento
garantindo-nos os recursos para os trabalhos preparatórios do censo, promoverei
o decreto - lei aprovando as bases que a assembléia Geral de CNE propôs para a
próxima operação censitária. De posse dessa decisão proporemos então a
imediata constituição da Comissão Censitária, realizando logo a eleição prévia.

105
Um indício que aponta nessa direção é a mudança do tipo de crítica que Azevedo faz à Interventoria de
São Paulo e a Adhemar de Barros quando é fechado o Instituto de Educação da Universidade São Paulo. Da
crítica mordaz e virulenta, passa a considerar a possibilidade do Interventor ter sido envolvido pela
“camarilhia” de católicos que o rodeavam. Assim, o Estado não era representante da Igreja, mas esta havia
ganhado espaço junto a ele que poderia ser perdido se os Pioneiros soubessem estrategicamente se
reposicionar. (Ver cartas de Azevedo a Venâncio, 26/6/1938/12/12/6/1938 e 10/11/1938. In: Penna,
1987;121-124)
79
O que quer dizer que o caminho vai sendo preparado cautelosamente e até agora
com êxito. Se não sobrevierem surpresas (...) poremos com, ajuda divina, em
movimento a máquina censitária, assegurando-lhe condições imediatas de
eficiência. (Cf. Carta de Freitas a Azevedo, 18/12/1937)
A resposta definitiva de Azevedo só é dada a 20 de março de 1938. Mantendo
Freitas na certeza que aceitaria o cargo, já que este consegue sua nomeação em 25 de
fevereiro de 1938, parece que Azevedo aguarda até o último momento a possibilidade de
sua nomeação para o Ministério. Conforme o projeto político do Estado Novo se revelava,
Azevedo perde as esperanças de chegar ao cargo.
A Comissão Censitária é aprovado pelo Conselho do Instituto no dia 15/2/1938.106
Teixeira de Freitas escreve a Azevedo relatando os acontecimentos:
Aproxima-se a empresa para cuja realização entendi que, em nome do Brasil,
deveria apelar para seu patriotismo e espírito de sacrifício. A penúltima etapa
levada e vencida ante-ontem, com um só voto discordante, este aliás, exprimindo
apenas um gesto elegante de gratidão e admiração.(Carta de Teixeira de Freitas a
Azevedo, 17/2/1938)
Com a aprovação do Conselho, restava ainda a aprovação pelo Presidente dos
nomes indicados. Em 25/2/1938, Freitas escreve a Azevedo dando a notícia da aprovação
da Comissão pelo Presidente Getúlio Vargas. Em carta de 25/2/1938, Freitas começa a
propor as diretrizes de organização dos órgãos e funcionários que deveriam auxiliar o
diretor do Serviço Censitário - “o ditador do censo” - a articular os serviços para o êxito
do trabalho, acreditando que era certa a aceitação do convite.
Mas, para Azevedo, ainda restava verificar se, sobretudo, seria realmente o
“ditador o censo”, e a quem, portanto, estaria subordinado o cargo com as mudanças que
haviam ocorrido nas leis após 1937.
Azevedo escreve a Venâncio Filho pedindo sua opinião em relação ao convite:
Escrevi-lhe [a Freitas], assim que tive notícia de estar próxima a ocasião para a
escolha do presidente da comissão censitária nacional, dando-lhe as razões pelas
quais, reexaminando a possibilidade de ser eu o eleito, devia hesitar em assumir
106
Os eleitos ppara a Comissão Censitária são: Presidente: Fernando de Azevedo (que será também o
diretor do Serviço Censitário Nacional); Vogais: Dr. Elmano Cardim - representando a Imprensa, Pe
Leonel Franca - representando o clero católico, João Lira Madeira - representando o Conselho Atuarial, os
diretores das cinco Repartições Centrais de Estatística (Bracet, Rafael Xavier, Costa Miranda, Teixeira de
Freitas e Leonel d’Afonseca), Licíneo de Almeida - representando os Serviços Estatísticos do Ministério da
Aviação. (Carta de Freitas a Azevedo, 4/1/1938)
80
tão grande responsabilidade e deixando entrever uma recusa em tomar a direção
destes serviços. Nesse dia, sem que esperasse e tivesse conhecimento prévio, era
eu o eleito. O Teixeira telefonou-me . Vem a S. Paulo. Conversamos. Ficou entre
nós entendido que a minha resposta definitiva estaria condicionada a uma
conferência com o presidente da República, a quem supunha estar o cargo
diretamente subordinado. Sei agora por outra carta sua, que está subordinado o
serviço de Recenseamento ao Ministro da Justiça. [Francisco Campos].
Sua atuação, como presidente da Comissão Censitária estaria subordinada a
Francisco Campos e não ao Presidente da República, como havia pensado a partir do
primeiro projeto que havia recebido de Freitas.A proximidade com o Presidente poderia
render-lhe um contato pessoal e trânsito político, e por conseguinte, a possibilidade de
transpor a barreira instalada pelo avanço dos católicos junto ao poder. Porém, seu
trabalho, como no convite anterior para o cargo no Distrito Federal, estaria submetido ao
crivo de Francisco Campos, não tendo portanto, nem a posição política privilegiada de
estar diretamente subordinado à presidência, nem à autonomia para o trabalho, prestando
contas a Campos. Não seria , então, um “ditador do censo”, nem conquistaria uma posição
estrategicamente melhor.
Na carta que Azevedo remete a Venâncio para obter sua opinião, parece apresentar
os motivos da recusa por ordem de importância: em primeiro, estaria submetido a
Campos; em segundo, a presidência do Censo não lhe renderia uma posição
estrtégicamente melhor na medida em que estaria afastado de seu campo de luta
preferencial: o campo da educação; em terceiro, apresenta a falta de condições técnicas e
financeiras que o trabalho estaria submetido .
Entre as razões que me faziam hesitar seriamente estavam o deslocamento que me
obrigaria esse trabalho, de minhas atividades principais e dos campos de minha
especialidade, e a falta de conhecimento profundo dos serviços censitários. Ser-
me-ia muito fácil ser Ministro da Educação; os problemas que teria de enfrentar e
resolver, são-me familiares e, num golpe de vista, poderia abrangê-los e dominá-
los. A minha vida é uma longa preparação, não calculada ou intencional, mas
real e desinteressada, para qualquer posto, por mais alto que seja, nesse domínio
de atividades públicas. Também esse cargo nunca o desejei, e tremeria diante de
um apelo para o exercer, e só concordaria em assumir tamanha responsabilidade
se me fossem assegurados todos os meios para realizar a obra de que o Brasil
81
necessita. O cargo para o qual fui nomeado (não tive ainda qualquer
comunicação oficial) transferir-me-ia do domínio de minhas atividades habituais,
quase estranho às minhas cogitações de todos os dias. O sociólogo não faz
recenseamento, utiliza-se dos dados censitários nos seus estudos e para as suas
conclusões.(Carta de Azevedo a Venâncio Filho, 2/3/1938) ; grifos meus.
Não estando tão próximo da presidência como esperava, consequentemente, o
cargo teria outra significação: obriga-lo-ia a se afastar do campo de luta da política da
educação, sem lhe render posição estratégica, dado que a atuação dos católicos se
intensificava e o seu afastamento do núcleo de discussão, com os trabalhos do censo,
imobilizaria sua atuação direta, abrindo maior espaço aos opositores, que avançavam,
desde a entrada de Capanema no Ministério. Com um cargo de importância mas, por um
lado controlado por Campos e, por outro, afastado da política da educação, ao seu ver,
teria diminuida sua capacidade de intervenção no campo que elegera como seu.
A essas razões, ainda se somava o fato de considerar a verba e as condições do
corpo de funcionários incompatíveis com a grandiosidade do projeto. Não vê, também,
condições objetivas para executá-lo, tanto do ponto de vista de funcionários que estariam
submetidos a ele, quanto do ponto de vista da população que não confiava no novo
Governo e se oporia aos trabalhos do Censo.
Acresce que um recenseamento geral é uma operação extremamente difícil, cujo
êxito depende - em períodos absolutamente normais de estabilidade e segurança -
de grandes créditos, de organização técnica modelar e de meios de administração
suficientes para assegurar a execução de levantamentos completos e precisos. O
último recenseamento da França, que dispõe de sistemas de registro da população
e de aparelhamento permanente para a realização periódica dos censos, custou
mais de 14 mil contos. As dificuldades, em nosso país, da grande extensão
territorial e de população disseminada, de níveis culturais e econômicos tão
diferentes, agravam-se pelas atuais condições econômicas e financeiras, pela
ignorância geral dos habitantes (64% de analfabetos, ao que se calcula), pela
falta de sentimento de interesse comum, pela resistência à centralização que deve
ser a maior possível, e, ainda, pelo estado de desconfiança e às vezes de

82
inquietação, resultante de um período longo de perturbações políticas. (Carta de
Azevedo a Venâncio,2/3/1938)107
Para Azevedo a verba necessária deveria ser estimada em 20 mil contos, o Estado
destinara apenas 3.800 contos. A obra do censo não parecia, também, ser suficiente para
realizar a “obra que acreditava necessária para o Brasil”, assim como não acreditava ter
condições materiais ou políticas para o empreendimento.
Quanto mais examino a questão, mais me convenço de que eu não deva aceitar
essa nomeação, embora me sinta verdadeiramente distinguido pela confiança dos
meus amigos e do presidente da República. Eu só aceito cargos que possa exercer
com consciência profunda de poder servir ao Brasil, dedicando-me a um serviço
público com todas as forças de que eu seja capaz e a certeza de realizar
integralmente a obra, se não me faltarem os recursos materiais e o apoio do
governo. Ora, eu não tenho nem aquela consciência nem essa certeza. (Idem.In:
Penna,1987:)
O convite promovido por Teixeira de Freitas, até então interessante a Azevedo,
transforma-se, após a ofensiva católica, a perda de espaço por alguns Pioneiros e a
política de centralizadora das reformas educacionais promovida pelo Ministério da
Educação e Saúde, em obstáculo para a luta pela “obra que acreditava ser necessária para
o Brasil”, tolhendo sua atuação política em vez de ampliá-la.
Nas cartas que envia a Teixeira de Freitas e ao Presidente da República recusando
a nomeação ao cargo, apresenta como argumentos a sua saúde e o afastamento de sua
especialização:
Fosse outra função pública de maior peso ou responsabilidade, que, no entanto,
não me obrigasse, para bem desempenha-la, nem a este esforço de ajustamento a
uma atividade fora do campo de minha especialização nem a freqüencia durante
mezes, de viagens longas por todo o território nacional, eu não hesitaria em levar
minha colaboração técnica ao governo do paiz. (Carta a Freitas, 20/3/1938)
Ao Presidente da República Azevedo frisa qual é realmente o seu campo de
atuação, sem poder, portanto, assumir outras funções diferentes das ligadas a ele:

107
Junto ao Projeto do Censo recebido por Azevedo há anotações sobre custo de outros censos que haviam
se realizado em outros países, como França, onde averigua que seriam necessários 14.000: 000.000. contos
de reis. (Projeto do Censo, 4/5/1937)
83
Pesando, pois, as minhas forças, poucas, como informei V. Excia., numa saúde,
desde dois anos, seriamente abalada pelas fadigas de uma vida de trabalho
contínuo, e comparando-as com o volume e a extensão dos serviços a organizar e
a dirigir, radicou-se em meu espírito a convicção de que não pudesse respeitar, no
prazo a ser fixado.[alusão ao prazo de início dos trabalhos]. (...) Demais, tendo de
sair do campo de minha especialidade, que é o estudo e solução dos problemas da
educação nacional, para outros domínios de atividade pública, a aceitação deste
cargo me imporia um esforço para uma rápida e completa adaptação (...). (Carta
a Getúlio Vargas, 21/3/1938)
Mais do que a vontade de interpretar os dados, como sociólogo, Azevedo não
queria perder espaço em relação à Educação, como parece ser de interesse da política do
Estado naquele momento,que estrategicamente o alocaria em um importante cargo, mas o
impediria de atuar ou se contrapor a ação proposta na política da educação pelo Estado
Novo, ocupado com o trabalho do Censo108. Se no primeiro momento do convite, Teixeira
de Freitas pretendia aproximá-lo da presidência da República, considerando que o cargo
estaria submetido a ela; no Estado Novo o cargo poderia ser transformado em uma
espécie de “geladeira política” que impediria a oposição à política centralizadora dos
projetos educacionais mantida por Capanema.
A política do Estado Novo, no campo da educação e da cultura, caracterizou-se
pela imposição de um projeto sobre os que até então encontravam-se na disputa. O projeto
da Universidade ganha destaque dentro da política educacional em geral. O investimento
do Estado no projeto universitário visava o controle das elites formar-se-iam sob a diretriz
ideológico das instituições universitárias. A importância de destacar o projeto
universitário no âmbito deste trabalho também se dá pelo confronto da política
universitária proposta por Azevedo e a imposta pelo Ministério da Educação e Saúde.
Em 5 de julho de 1937, Getúlio Vargas sanciona o decreto que institui a
Universidade do Brasil. Segundo Schwartzman, “o primeiro princípio era o de que a

108
A política do Estado, nos anos de 1938-39, atinge diretamente Azevedo. Além do Instituto de Educação
de São Paulo ser incorporado pela USP e a direção da FFLC ser entregue a um católico, Teixeira de Freitas
tenta, junto ao Ministério da Educação e Saúde Publica, uma indicação para Azevedo, em 1939, para a
Comissão de Ensino Primário, em substituição ao seu nome, mas o pedido não é atendido, e o Educador é
mais uma vez excluido de um cargo junto ao Ministério. Esta Comissão era composta pelas entidades:
Cruzada Nacional de Educação e Associação dos Professores Católicos, tendo ainda a participação de
Lourenço Filho. A indicação de Freitas, na perspectiva de Capanema, significava a representação da ABE
na Comissão. Só que em vez de indicar o presidente da entidade, Fernando de Azevedo, prefer indicar um
de seus membros. (Carta a Gustavo Capanema, 12/1/1939)
84
Universidade do Brasil deveria ‘fixar o padrão do ensino superior de todo o país’”. A
Universidade do Brasil, “traria como seqüela, a morte ou a tentativa de sufocamento de
outras iniciativas mais modestas e localizadas que não se ajustassem ao seu grande
projeto”. O sistema de educação superior deveria ser totalmente controlado pela nova
universidade. À União, no projeto de Capanema, é que caberia dar ao ensino superior do
país os padrões de todos os cursos. E a instituição do Estado Novo dá a Capanema os
recursos políticos de que necessitava para impor seu modelo (Schwartzman,1984:212).
A Faculdade Nacional de Filosofia, para Schwartzman, Bomeny e Costa, deveria
ser criada nos moldes da Faculdade de Filosofia Ciências e Letras da USP, mas sob tutela
federal e controle doutrinário da Igreja. A criação dessa Faculdade tinha como objetivo
forjar as condições para a formação de uma elite nacional109. O projeto Ministerial, para o
Autores, foi bem sucedido na consolidação de uma série de concepções, formas
administrativas e procedimentos que continuariam a funcionar de maneira quase
automática nos anos subsequentes110. (Schwartzman, Bomeny e Costa,1984:226-227)
Isso significava a submissão do projeto da USP de constituição de elite que
dirigiria o Brasil, na medida que os programas, as disciplinas e mesmo a organização
interna da Universidade deveriam se ajustar ao modelo da Universidade do Brasil. A
autonomia do projeto uspeano é cortada pelo controle imposto pelo Ministério da
Educação, assim como sua pretensão de se transformar em modelo para as universidades
que surgiriam no futuro.
Assim, com o Estado Novo, a Universidade São de Paulo ficava submetida à do
Brasil, perdendo parte de suas funções políticas em relação ao cenário nacional, abalando
parte do projeto de reconstrução nacional da Comunhão Paulista e, por conseguinte, de
Azevedo.
Na sua interpretação, Azevedo critica a ação do Estado considerando que, apesar
das três universidades - de São Paulo, do Distrito Federal e do Brasil - terem contribuído

109
Para Schwartzman, Bomeny e Costa, o projeto da USP foi mais bem sucedido do ponto de vista
acadêmico, já que o crivo ideológico estrito e os canais oficiais eram os utilizados para a seleção de
professores da Faculdade Nacional, enquanto a USP optou por processos de seleção, para os professores,
mais acadêmicos obtendo melhores resultados. (Cf. Schwartzman, Bomeny e Costa, 1984:226-227)
110
“A idéia de que o sistema universitário necessitava de uma sistematização legal que definisse os
currículos dos diversos cursos; a noção de que deveria haver modelos e padrões válidos para todo o país; o
princípio de que ao título proporcionado pelas universidades deveria corresponder uma profissão
regulamentada pela lei; o papel do ministério da Educação como órgão fiscalizador do sistema educacional,
apoiado por um grande Conselho Nacional; a idéia de que o ponto de partida para a estruturação das
universidades deveria ser a construção física de seu campus; e muitos outros projetos que tinham como
implicação geral o tolhimento de iniciativa no nível das instituições de ensino e seu professorado, e a
concentração do poder nas autoridades ministeriais, administrativas e financeiras.” (Schwartzman,1984:227)
85
para o desenvolvimento de uma nova mentalidade e rasgarem “novas perspectivas à
cultura superior do país”, a “tendência uniformizadora do poder central”, assim como o
“fato de que as repercussões dos ideais correspondentes a uma nova concepção de vida e
de cultura se manifestam em primeiro lugar na cultura de vanguarda, antes de descerem
ao poder político, para as grandes obras de reconstrução”, explicam a “lentidão de
progressos e hesitação das universidades em busca de novas estruturas”, que realmente
correspondessem às necessidades da época e às peculiaridades econômicas políticas e
culturais de cada região.(Cf. Azevedo,1958:255)
O episódio de fechamento do Instituto de Educação111, em junho de 1938, dirigido
por Azevedo, e a sua incorporação à Faculdade de Filosofia Ciências e Letras da USP,
seção de Educação, é outro indício da política do Estado de esvaziar e submeter os
projetos que se diferenciavam da diretriz política que é dada a educação. Para esvaziar e
submeter a proposta ao padrão imposto pelo Estado através da Universidade do Brasil, a
Interventoria de São Paulo decretou que os quadros da Instituição deveriam ser
incorporados ao corpo docente da USP, e seus estatutos reorganizados pelo padrão e,
ainda, retirava-lhe a autonomia. Com isso, o projeto educacional de Azevedo é atingido
profundamente112.
Em carta a Venâncio Filho, Azevedo demonstra toda a sua indignação com as
decisões do Interventor Adhemar de Barros:
Eis os fatos. Por um decreto feito a correr, no atropelo de última hora, embora
maquinado em uma torva conspiração de meses, criou-se a 23 deste uma Escola
Normal Modelo (...). Por esse decreto ficou estabelecido que essa Escola passaria
a funcuionar nos prédios e instalações do Instituto de Educação; que as escolas

111
Em artigo, Nadai afirma ser a extinção do Instituto fruto da necessidade do novo Estado instituido atingir
a obra da Comunhão Paulista, que passava para oposição com a entrada de Ademar de Barros. “A extinção
do Instituto de Educação, como organismo autônomo e complementar ao trabalho realizado pela Faculdade
de Filosofia, foi decorrência implícita da intervenção do poder político, uma vez que não havia razão técnica
que a justificasse”(Nadai,1994:166-170).
112
Em carta (26/6/1938)a Venâncio Filho, Azevedo desabafa: “Por maior que seja a sua capacidade de
imaginação você não poderá reconstituir os fatos que se desenvolveram, provocando a minha demissão, e os
que se seguiram, completando a mais acabada obra de perfídia e de má fé, de ignorância e de brutalidade, de
estupidez e de traição, que já se tentou em S. Paulo. Dizem-me todos ( e foram mais de 200 as pessoas que
me visitaram estes três dias) que não se conhece, nos anais políticos de S. Paulo, uma obra de destruição tão
odiosa e tão repugnante nos seus processos.(...) Se verificar que ainda é possivel lutar pela educação e pela
minha pátria, a que tenho dedicado todas as minhas energias, continuarei a lutar sem desfalecimento; se
verificar, ao contrário, que a minha pessoa é um obstáculo à obra de reconstrução educacional no Brasil, eu
darei, - o único sacrifício que ainda não fiz - a minha própria vida como um protesto contra essa ordem de
coisas e um apelo a todas as forças vivas do país para lutarem pela educação nacional.”
(Azevedo,26/6/1938. In: Penna, 1987:121)
86
experimentais (pré-primária, primária e secundária) anexadas a esse Instituto
estariam desanexadas para serem incorporadas àquela escola (...) Portanto, ficou
o Instituto de Educação, da Universidade São Paulo, sem prédios, sem
instalações, sem secretaria, sem biblioteca, sem laboratórios, sem contínuos e sem
serventes.(...). Hoje, dia 26, saiu publicado um decreto que extingue o Instituto
(...), cria a seção de Educação na Faculdade de Filosofia, Ciências e letras e
transfere cadeiras e professores de instituto exstinto para aquela Faculdade, cuja
direção foi ontem mesmo intregue ao Alexandre Corrêia! (...) Em todos os postos
colocaram desafetos meus e inimigos rancorosos. (...) (Cf.Azevedo,26/6/1937. In:
Penna,1982:121-122)
Os católicos assumem direção da política de Educação paulista - na Secretaria de
Educação de São Paulo, Mariano Oliveira Wendel e na direção da Faculdade de Filosofia,
Ciência e Letras, Alexandre Correia - que comandam o fechamento do Instituto e sua
absorção pela Faculdade. Fernando de Azevedo tenta articular a oposição a esta política e
a revogação da ordem de fechamento, apelando para a ABE e “todos os companheiros e
amigos do Rio” para pressionar Capanema e o Conselho Nacional de Educação113.
Apesar do Interventor de São Paulo, Adhemar de Barros iniciar um diálogo com o
Educador, este não consegue a reversão do processo114. No mesmo ano, Azevedo,
Almeida Júnior e Milton Rodrigues são aposentados compulsoriamente, com a alegação
de que eram contra a constituição de 1937, mantendo atividades subversivas. Teixeira de
Freitas intercede por eles junto ao General José Pinto (do Conselho de Segurança
Nacional), que consegue que as aposentadorias não se efetivem.115
Em 1938, Azevedo se considera e à sua obra derrotados pelos sucessivos golpes
sofridos: com a desorganização da Reforma de Anísio Teixeira no Distrito Federal, que
havia inciado; o controle da Universidade do Brasil sobre todas as universidades, entre
elas a USP, que ainda era dirigida por um inimigo político; com a desorganização do
Instituto de Educação; e a tentativa de aposentá-lo compulsóriamente. Sente-se totalmente
hostilizado em São Paulo. Em carta a Venâncio Filho, desabafa:

113
Ver críticas de Azevedo a Corrêa em carta (sem data) a Frota Pessoa. (In: Penna,1987, 212-122;151-
152). Ver também, debate entre Azevedo e Corrêa, Cury, 1984.
114
Antes de decretar a aposentadoria do grupo, Adhemar de Barros oferece a Azevedo uma viagem ao
exterior tentando afastá-lo da situação de conflito, anulando as críticas que do Educador à sua política
educacional. (Cf. Carta de Azevedo a Venâncio, 4/7/1938)
115
Ver carta (20/9/1938) de Teixeira de Freitas a Gal. José Pinto; Ver também carta (28/9/1938) de Gal. J.
Pinto a T. de Freitas.
87
Tudo me parece estranho, como já não fosse deste mundo e nele vagasse, levando
uma vida sem razão de ser e sem sentido, mal interpretado, incompreendido, e, o
que menos importa, hostilizado. Ah! se pudesse fugir de mim mesmo! Se surgisse
alguém, alguma coisa ou algum ideal bastante forte para empolgar-me,
mobilizando-me todas as forças intelectuais e afetivas!” (Azevedo, 10/11/1938.
In: Penna,1987:124)
A derrota política no campo da educação, parecia um fato. Na sua perspectiva, a
política tomara de assalto a educação, transformando os interesses comuns em pessoais.
Mesmo sua atuação como professor na Universidade São Paulo estaria sob o comando de
seus inimigos.
um gorverno de irresponsáveis e de loucos, além, de refinadamente patifes, que
assaltaram as posições em S. Paulo para desorganizar, destruir e explorar a
administração em seu proveito, com uma desfatez e uma audácia que chegariam a
espantar se alguma coisa ainda pudesse causar espanto.(Azevedo,26/6/1938. In:
Penna,1982:121)
É da derrota política que Azevedo consegue tornar-se o intéprete oficial da
História da Educação Brasileira. Por que Azevedo? Como consegue o direito de tornar-se
o narrador da história dos fatos presentes?
A oportunidade é dada pela Comissão Censitária nacional (CCN) que aprova o
Plano Geral relativo às monografias históricas produzido por Azevedo, em janeiro de
1939, que iria constituir o preâmbulo da obra censitária. O Plano geral era a proposta de
Azevedo para uma monografia sobre “Cultura e Educação no Brasil - origem,
desenvovimento e situação atual”. A monografia faria um balanço da evolução da cultura
e da educação do Brasil para Introduzir o censo que estaria fazendo um balanço em
números da economia, da população, do comércio, da estrutura administrativa do Estado
etc. A monografia deveria tomar como objeto aquilo que o Censo não poderia alcançar
como números e, ao mesmo tempo, dar inteligibilidade aos números censitários.
Talvez A Cultura Brasileira, tenha sido para Azevedo o “ideal bastante forte” para
empolgá-lo e mobilizar-lhe as forças intelectuais e afetivas. Tendo sido derrotado
politicamente, pelo menos naquele momento, transforma a oportunidade de escrever o
Censo e de poder fazer uma espécie de história “oficial” ou de análise “oficial” da
evolução do Brasil, como já havia feito Oliveira Viana, escrever a história da educação,
segundo a sua perspectiva. Nela, poderia organizar o debate do campo educacional
88
demarcando as identidades dos grupos nela inseridos, estabeler os marcos de referência
interpretativa da educação, destacar as personagens mais importantes do desenvolvimento
educacional no Brasil, produzindo a inteligibilidade do “estado atual” da educação e da
“cultura” e projetar suas explicações no passado116. A interpretação estaria alojada em um
projeto de grande impacto que seria o Censo de 1940, destinado, não só a especialistas,
como a um público maior, podendo ser divulgado como “história oficial”.117
Pela escolha do tema e pela escolha dos recortes analíticos Azevedo transforma o
espaço da Introdução do Censo em uma ação política de ereção de um monumento para si
mesmo e para os demais “derrotados”, fazendo com que a derrota política se
transformasse em vitória pela história. Indícios dessa perspectiva de Azevedo inscrita em
sua obra é o fato de não haver qualquer tipo de referência aos motivos pelos quais se dá a
saída de Anísio Teixeira quando, em A Cultura Brasileira, sua Reforma ganha destaque;
ou mesmo não haver qualquer referência ao fechamento do Instituto de Educação, que
abalou tão fortemente a vida de Azevedo. O Interprete suprime da história a derrota do
Educador.
O fato de Azevedo ter aceito escrever a Introdução do Censo de 1940 não
significou, necessariamente, como querem seus leitores, a adesão ao Estado Novo, mas a
oportunidade de construir uma história da educação brasileira e de sua atuação que se
sobrepunha a outras interpretações, transformando sua obra em “marco de referência” e
em “ponto de partida para uma verdadeira escola de investigação” e, ao mesmo tempo, de
usar as próprias condições do lugar de produção da obra - introdução do censo - como
uma estratégia que possibilitou a si e ao seu grupo de serem apreendidos de uma
determinada maneira, constituindo e perpetuando as suas identidadas, assim como a seus
opositores118.
A possibilidade de produzir uma interpretação da “situação atual” e das causas que
a haviam forjado, e difundí-la, era fundamental dentro da perspectiva de luta que se

116
A análise de A Cultura Brasileira, sob esse ponto de vista, pode ser formulada a partir da proposta de
Chartier: “Esta história [cultural] deve ser entendia como estudo dos processos com os quais se constrói um
sentido, rompendo com a antiga idéia que dotava os textos e as obras de um sentido intrínseco, absoluto,
único -, dirigi-se às práticas que, pluralmente, contraditoriamente, dão significado ao mundo Daí a
caracterização das práticas discusivas como produtoras de ornamento, de afirmação de distâncias, de
divisões; daí o reconhecimento das práticas de apropriação cultural como formas de interpretação”
(Chartier, ,1990:27).
117
“Compreender esses enraizamentos exige, na verdade, que se tenham em conta as especificidades do
espaço próprio das práticas culturais, que não é de forma alguma passível de ser sobreposto ao espaço das
hierarquias e divisões sociais.” (Chartier, 1990:28)
118
Uso o conceito de “lugar de produção” com o sentido proposto por Chartie citado na nota 42 desta
dissertação. Ver também Nunes e Carvalho, 1993.
89
travava entre os Pioneiros e os Católicos. Os espaços de divulgação de suas idéias,
projetos, ideais etc. em relação à Educação era prática usual entre os grupos.119.
No plano das publicações, os Renovadores mantêm um espaço atuante na
divulgação de suas idéias, projetos e práticas. A intenção de torná-los obra grandiosa
também dependia de sua divulgação. Mesmo após a ofensiva católica, é grande o número
de publicações de Fernando de Azevedo e de outros Renovadores. Aulas, conferências e
artigos são publicados constantemente na grande imprensa, tranformando-a em campo de
batalha entre Renovadores e Católicos; disputavam a opinião pública e, através dela
ganhando espaço junto ao professorado, e disputavam a condição de dar as diretrizes para
a formação e atuação do professorado nas e instituições escolares e educacionais,
garantindo, assim, o verdadeiro controle do aparelho escolar, normatizando sua
conduta120. (Cf. Carvalho, s/d.:3)
A valorização do trabalho de divulgação das idéias através de todos os possíveis
espaços já constituía - desde o início das campanhas pela educação - poderosa arma.
Em carta (24/3/1932) a Venâncio Filho, Azevedo comenta a divulgação do recém
fundado Instituto de Educação no Distrito Federal: “Fiquei de dar ao Diário de Notícias
uma entrevista sobre a criação do “Instituto de Educação’”.E mais adiante comenta:
o movimento já começou a sofrer os primeiros ataques. O Centro D. Vital, pelos
seus representantes no Rio e em S.Paulo, já assentou contra ele as sua baterias.
Artilharia grossa. Mas nenhum dos obuses o atingiu [Anísio Teixeira] O Sr.
Tristão de Ataíde, cuja cultura honra a nossa geração, está infelizmente
obcecado, no ponto de vista em que se colocou: dá-me a impressão de um
alucinado, que se compraz em imaginosos perigos por todos os lados. A sua
linguagem, no O Jornal, em que figura, em relação aos signatários do manifesto,
até a palavra “desfaçatez”, é de uma violência, grosseira e de má fé, que
surpreendeu em um homem inteligente e culto, como o é, incontestavelmente.
(...) O artigo que o Alexandre Correa, um outro católico, apostólico, romano, de
um sectarismo fanático, deixou sobre a mesa d’O Estado, é peça inepta e
119
A preocupação de Fernando de Azevedo com o impacto e difusão de A Cultura Brasileira na imprensa é
grande. Ver cartas de Azevedo a Venâncio Filho (22/11/1943), de Freitas a Azevedo (13/9/1943;
5/10/1943;4/11/1943) e de Venâncio Filho a Azevedo (28/8/1943)
120
“A minha aula inaugural será sábado (dar-lhe-ei aviso com tempo) na instalação solene do Curso de
Aperfeiçoamento do Instituto Pedagógico. Escrevi sobre esse curso três artigos, dos quais já saíram dois
publicados, ontem e hoje, e o 3o sairá amanhã, com os demais no O Estado. Não os assinei: escreví-os para
defender a obra de Lourenço, em uma de suas mais úteis iniciativas.” (Carta de Azevedo a Venâncio,
11/3/1931.In:. Paiva,1987:104-105)
90
grosseira, que se afina, com a de Tristão, pela sua nota de agressividade. (Cf.
Azevedo. In: Penna,1987:106. grifos originais)
Os livros de Azevedo encontram-se inseridos no movimento de publicações
promovidos, tanto por Católicos como por Pioneiros, com o objetivo de difundir e
mobilizar os debates produzidos em torno das práticas educacionais, assim como definir o
campo educacional, sua importância e suas relações com a sociedade. Autores
estrangeiros, comentadores e divulgadores da Escola Nova foram editados tanto pelo
Centro D. Vital quanto pelas Campanhia Editôra Nacional (na qual Azevedo era um dos
diretores), e Companhia Melhoramentos de São Paulo (na qual Lourenço Filho organizou
a coleção Biblioteca de Educação).
As publicações não se restringiam às questões estritamente educacionais; autores
nacionais e estrangeiros da Literatura, da Sociologia, da Psicologia etc., também foram
publicados com o intuito de promover o desenvolvimento cultural do Brasil, como o era a
própria luta da reforma educacional. Na perspectiva de Azevedo a renovação da educação
e o desenvolvimento da cultura científica colocariam o Brasil em um processo acelerado
para a entrada na modernidade.
Das coleções lançadas por Azevedo, em 1931 - Biblioteca Pedagógica Brasileira121
e Coleção Brasiliana - constam os educadores que participavam do movimento renovador
como Vicente Licíneo Cardoso, Anísio Teixeira, Alberto Tôrres, Mílton Sílva Rodrigues,
Afrânio Peixoto, Heitor Lira. Também são editados, nas coleções, trabalhos que não têm
como tema principal a educação, como os de Gilbeto Freyre, Serafim Leite, José Honório
Rodrigues, Pedro Calmon, Afonso Arinos de Melo Franco, Roberto Simonsen, Nélson
Wernek C. Sodré e outros.122 O Autor marca, assim, sua presença também no mercado
editorial, lançando os novos autores, publicando os já consagrados, reeditando outros,
trazendo para o Brasil obras estrangeiras e traduções. Esse trabalho editorial o autoriza a
interpretar sua atuação à frente das coleções como uma das criadoras da “atmosfera de
inquetação e de pesquisas” e de “tomada de consciência nacional”, bem como, a avaliar a
coleção Brasiliana como “uma das primeiras e mais significativas expressões no plano
cultural” desta atmosfera.(Cf. Azevedo,1958:16)
A escolha do nome de Azevedo para o autor da Introdução do Censo de 1940,
certamente estava apoiada na projeção intelectual que o Autor possuia desde o período em

121
A B.P.B. chega a ter 286 volumes. (Castro, 1994:220)
122
Muitos dos livros publicados nestas coleções serão bibliografia de A Cultura Brasileira.
91
que dirigiu o Inquérito da Instrução pública de São Paulo aquilatada pela Reforma do
Distrito Federal, pela a Reforma de São Paulo e pela sua atuação intelectual no campo da
Sociologia e da Educação.
Os próprios comentaristas, no lançamento do livro, confirmam a legitimidade de
sua interpretação científica pela participação ativa no desenrolar dos acontecimentos:
O autor encontra causas importantes da inércia cultural na história das
instituições educacionais. Nesse terreno, a posição avantajada do autor se faz
sentir a todo momento. Pois Fernando de Azevedo não só conhece a fundo a
história da educação, no Brasil, mas ele próprio é parte integrante dessa história
no que ela se refere ao passado próximo. Foi ele quem tomou parte, em posição
de destaque, nas atividades renovadoras, redigindo o “Manifesto dos Pioneiros
da Educação Nova”, organizando inquéritos e discutindo as necessidades de
reorganização educacional em livros, artigos e conferências. Foi ele que, em
inúmeras aulas de Sociologia Educacional dadas na Universidade São Paulo,
expôs a milhares de alunos, os problemas básicos que se prendem ao
condicionamento social dos fenómenos educacionais. (Willems, 7/12/1943); grifos
meus.
A participação política do Educador é autorizada pelo conhecimento “profundo”
que possui sobre a história da educação, sobre os problemas educacionais e pela maneira
científica de lidar com esses problemas e, por outro lado, o envolvimento político do
Educador o diferencia dos demais pensadores a quem falta a vivência.
A interpretação de Azevedo é legitimada pelo lugar onde é produzida, pelo método
científico adotado e pelo sua própria participação e testemunho da “história mais recente”.
Essa “legitimidade” pode ter contribuído para que sua interpretação tenha se transformado
em memória da História da Educação Brasileira.

92
A Importância do Censo como Locus da Obra

Um pouco antes do lançamento de A Cultura Brasileira, Venâncio Filho, que


“cuidava” do andamento da impressão do livro no Rio de Janeiro, escreve a Azevedo em
carta de 23/6/1934 dando as boas novas: “achara de passar uma hora específica
embevecido folheando os cadernos impressos e prontos de seu fabuloso livro”, que
impressionava pelo cuidado da edição. Mais adiante comenta:
Digo-o com plena consciência, o seu trabalho ficará daqui por diante como os
Capítulos da História Colonial de Capistrano, marco de referência e ao mesmo
tempo ponto de partida para uma verdadeira “escola” de investigação do Brasil.

Venâncio Filho é o interlocutor de Azevedo durante toda a produção da obra,


lendo e comentando os capítulos, também auxiliando-o na reunião de bibliografia,
documentação e informações que compuseram a interpretação; compartilha, assim, da sua
produção sem ser o autor123. Venâncio Filho foi importante interlocutor da produção de A
Cultura Brasileira. Também, contribuiu ativamente reunindo bibliografia e documentação
fundamental desde seu início. Em carta Azevedo agradece sua participação:
“Fico-lhe muito agradecido pelas palavras com que me anima a prosseguir no
livro em preparo. A aprovação que dá aos capítulos que leu, e as expressões
desvanecedoras com que se refere a eles e, de modo geral, ao livro, constituem
para mim um estímulo valioso e uma grande compensação moral na execução
desse trabalho tão penoso sob vários aspectos. Desde do princípio, a mais de um
ano, é você que me tem assistido, auxiliado e animado com uma solicitude e um
interesse que me cativam profundamente e me dão a medida de sua capacidade de
dedicação. Quando tiver concluído a obra e for o momento oportuno para
proceder uma revisão geral, haveremos de fazê-la juntos para que o volume, antes
de ser composto, passe ainda uma vez pelo crivo de uma crítica severa no seu

conjunto e no seu detalhe.” (Carta de Azevedo a Venâncio Filho, 28/1/1940)1.


Externa, em sua carta, as intenções do projeto intelectual de Azevedo que se
consolidava em A Cultura Brasileira: “marco de referência” e “verdadeira escola de
investigação”. Ou seja, a obra conforma um modo de entender e definir a educação, a

123
Ver correspôndencia de Venâncio para Azevedo de 1940 a 1944.
93
partir do qual se estabeleceram reflexões (da sua história e da história da educação
brasileira) e práticas, que deveriam se disseminar tanto entre os educadores quanto entre
os pesquisadores de educação.
A obra de Azevedo, pelo próprio lugar em que foi produzida - Introdução ao
Censo de 1940 - adquire legitimidade de interpretação científica e status de marco de
referência, comparada à introdução do Censo de 1920 de Oliveira Viana. O status de obra
científica era concedido pelo próprio censo - síntese numérica do Brasil- assim como a
124
sua delimitação “síntese da cultura e da educação do Brasil” . Em Artigo sobre o
lançamento da obra, Emílio Willems ressalta o âmbito de sua produção:
Era de se esperar que o legislador se aproveitasse de experiências anteriores para
oferecer novamente ao leitor brasileiro a possibilidade de examinar os resultados
do censo de 1940 à luz do desenvolvimento histórico da cultura brasileira.
Oliveira Viana prefaciou as publicações do recenseamento de 1920 com a
“Evolução do Povo Brasileiro”, livro que se incorporou ao patrimônio da cultura
brasileira como trabalho de valor permanente. Desta vez, Fernando de Azevedo
foi escolhido pela Comissão Censitária, para escrever o volume introdutório.
Deu-lhe o título “A Cultura Brasileira”. Esse título representa um programa
científico de primeira ordem (...).” (Willems,7/12/1943)
As “experiências anteriores” colocavam a Introdução do censo em evidência,
como obra de importância científica que deveria servir de guia para a análise dos dados
produzidos.
A Cultura Brasileira se insere no projeto do censo na medida que este é a sua
referência, delimitando objetivos e traçando a amplitude da obra. A circulação e
distribuição d’A Cultura Brasileira também foi definida pelo Censo, na medida em que os
direitos autorais pertenciam ao IBGE e os volumes da primeira edição foram distribuídos
segundo os critérios estabelecidos pelo Estado. Além disso, a interpretação ganha
importância imediata por seus vículos com o maior Censo que já se havia produzido no
Brasil.. É certo que o livro de Azevedo se desprendeu do projeto ganhando edições e
reedições, circulando para além do censo, assim como uma parte dele acabou ganhando
autonomia, pelo tipo de leitura que foi sendo produzida, posteriormente, chegando a ter

124
Muitos artigos publicados na grande imprensa sobre a obra por volta de seu lançamento ressaltam o fato
de ser a introdução do Censo de 1940, indicando o caráter científico do censo e da obra. Ver Série Recortes,
Caixa 1, Arquivo Fernando de Azevedo - IEB.
94
uma edição independente - A Transmissão da Cultura, 1976 - porém, parte da importância
que a obra adquire, pelo menos naquele momento, está diretamente ligada ao trabalho que
introduzia.
A intenção é, neste capítulo, verificar a que projeto estava vínculada A Cultura
Brasileira, que tipo de vículo foi estabelecido entre o Censo e a obra de Introdução que,
posteriormente, possibilitou a autonomia daquela em relação a este.

O projeto do Censo

A proposta do Recenseamento do Brasil em 1940, produzida e apresentada pela


Junta Executiva Central do Conselho Nacional de estatística, em 4/5/1937, previa-se com
“proporções de empresa gigantesca, podendo-se considerá-la, desde logo, a maior
operação censitária jamais realizada na América do Sul e uma das mais vastas do
mundo.”125
Os elaboradores do projeto, os órgãos técnicos do Conselho Nacional de
Estatística, pretendiam “aproveitar a oportunidade para generalizar a observação
estatística o mais profunda e extensivamente possível, aos aspectos fundamentais da
realidade econômica e social do Brasil.”(Projeto,4/5/1937:1)
O Censo seria produzido por uma “entidade sui generis, de organização compósita,
diretamente subordinado ao Presidente da República”, segundo o Decreto de 6/7/1934. Os
membros do Serviço de Censo Nacional seriam escolhidos pelo Conselho Nacional de
Estatísticas126. (Projeto,4/5/1937:2).
Depois de escolhidos pelo CNE, e seu projeto aprovado, o Serviço de Censo
Nacional ganha autonomia em relação a esse órgão e passa a ser subordinado diretamente
ao Presidente. Para a execução dos trabalhos poder- se-ia utilizar de todos os órgão
ligados ao Instituto na execução dos levantamentos censitários sem autorização prévia.
Para os organizadores da proposta censitária, havia um conjunto de motivos para
efetuá-lo em 1940,

125
O Projeto do Recensenceamento do Brasil de 1940, encontra-se nos anexos das cartas enviadas por
Freitas a Azevedo. As referências desse projeto aparecerão neste texto como: Projeto, 4/5/1937. A data
indicada é a que consta no cabaçalho de apresentação do projeto.
126
Conselho Nacional de Estatística,comandado pela Assembléia Geral que, por sua vez, é composta pelos
Membros da Junta Executiva Central, representantes do Governo da União, e pelos presidentes da Juntas
Executivas Regionais, do Distrito Federal e do Território do Acre. (Projeto do Censo de 1940,4/5/1937:2)
95
filiando-se embora uns à técnica de demografia, outros à organização política do
país, outros aos interesses da administração pública e outros ainda à economia
nacional, convergem todos para o mesmo polo, como que reforçando mutuamente
e formando, em última análise, uma verdadeira evidenciação da necessidade de
proceder, em 1940, a um balanço estatístico geral do Brasil.(Projeto,4/5/1937:3).
A idéia de produzir um Censo com largas perspectivas vinculava-se à concepção
de que a reconstrução do país se engendraria a partir da manipulação, pelo Estado, do
máximo de informações científicas reunidas que apontassem os problemas peculiares do
país, balizando a operação da mudança e sua integração à modernidade.
As justificativas para a operação censitária são expressas em cinco ordens de
motivos:
a) “motivos de ordem técnica” - seguir as decisões tomadas pelo Congresso
Internacional de Estatística, que propõe que os censos sejam produzidos de dez em dez
anos, no ano terminado em “0” para comparar os dados de diferentes países
(Projeto,4/5/1937:6);
b) “motivos de ordem política” - deveriam ser levantadas as populações das
diferentes regiões, estados, cidades, etc., já que os deputados deveriam ser eleitos em
sistema de proporcionalidade, “em sufrágio universal, igual e direto” E a “afixação do
número de deputados(...), quanto ao povo, deverá obedecer ao critério da rigorosa
proporcionalidade com a população de cada estado e do Distrito Federal, não podendo
aquele número exceder 1 por 150.000 habitantes” (Projeto,4/5/1937:8);
c) “motivos de ordem administrativa”-
o bom exercício, por parte da União, das numerosas e difíceis atribuições
privativas que lhe deu a constituição, tanto na parte administrativa, como na
parte legislativa, está imediatamente condicionada - salvo melhor juizo - à
realização inadiável dos censos gerais do Brasil, os únicos meios que dispõem os
Poderes Executivos e Legislativos para assegurarem o imprescindível
conhecimento numérico dos problemas nucleares dos complexus econômico e
social brasileiro. (Grifo original do documento. Projeto,4/5/1937:9);
d) “motivos de ordem econômica” -
é absolutamente impossível a elaboração e, muito mais, a execução de um plano
de reconstrução da economia nacional, sobretudo em um país do tipo do Brasil,

96
onde os fatores fundamentais da economia - capital e trabalho - ainda atuam com
caráter extensivo, sem o conhecimento numérico prévio do comportamento,
distribuição e extensão de energias - energias em atividade e energias em
potencial - que devem ser, necessariamente, objeto de profundos estudos por parte
dos elaboradores do plano(...).(Projeto,4/5/1937:10)
(...) Por que? Porque a estatística, estudos numéricos dos fatos sociais, condensa
em algarismos a extensão dos problemas coletivos, indicando assim, a
oportunidade e a intensidade com que estas [medidas econômicas] devem ser
adotadas. E, às vezes, mostra igualmente o melhor modo de adotá-las.
(...) A organização de um plano econômico pressupõe a existência de informações
estatísticas atuais e tão completas quanto possível.
Os exemplos trazidos à tona [Alemanha, México, EUA] documentam a nossa
afirmativa. Em relação a toda e qualquer medida destinada a ordenar, reerguer,
estruturar, racionalizar a economia de um povo, a estatística exerce, implacável,
o papel de tirana que certa vez um filósofo lhe atribuiu. É insubstituível e,
sobretudo, imprescindível.(Projeto,4/5/1937:1-14)
A proposta do Censo tinha, então, o objetivo de reorganização do Brasil a partir da
“síntese numérica” que seria produzida pela estatística.. O Estado reorganizado e
racionalizado, teria as possibilidades de promover o desenvolvimento econômico e
cultural do país. Assessorado pelos técnicos e informado pelo conhecimento científico
modernizaria e produziria novas bases materiais e humanas promovendo a civilização.
Daí a necessidade de conhecer o Brasil para “atacar” e superar as deficiências. O
desenvolvimento promovido a partir do conhecimento científico é a garantia da mudança
ordenada, que evita o conflito social indesejável, a ação estatal civilizaria a nação porque
estaria munida do conhecimento produzido pela ciência. O Censo era o instrumento de
conhecimento mais eficaz para a reorganização promovida pelo Estado de todas as esferas
da vida nacional.
Com o Estado Novo, a Junta Executiva do Conselho Nacional de Estatísitca (JEC)
reitera a necessidade dos trabalhos censitários e pede autorização para continuá-los127,
“considerando que a nova ordem constitucional, a que passou o país, impõe um trabalho

127 o
A Resolução n 23 da Junta Executiva Central do Instituto Nacional de Estatística de 16/11/1937,
também se encontra nos anexos das cartas de Freitas a Azevedo. As referências dessa Resolução aparecerão
neste texto como: Resolução no 23,16/11/1937
97
de reorganização econômica, administrativa e política, que não pode ser levado a efeito
sem auxilio de meticulosos e seguros levantamentos estatísticos” (Resolução no 23, de
16/11/1937)128.
A reorganização do Brasil, conforme propunha o novo projeto da JEC, deveria ser
ampliada à revisão da carta do Brasil.
O Censo de 1940 seria arma fundamental do Estado para o estabelecimento de
uma nova ordem, com o mínimo de erros, conduzindo sua ação a partir da informações
objetivas controlando um grande espectro de informações sobre o país. O Censo nasce
como uma grande obra que deveria açambarcar todos o problemas da nação, daí a
importância de estudos monográficos que deveriam ser realizados naqueles pontos onde
os números não alcançassem a realidade e ainda utilizassem os números nas
interpretações que revelassem sua importância para além do que até então se fazia.
A Introdução, com o conjunto de monografias que a comporiam, abriria o maior
censo até então realizado em toda a América do Sul. A referência ao Censo de 20 é, por
Teixeira de Freitas, diversas vezes reiterada e é assegurado que este seria maior e mais
importante, sendo como tal divulgado na imprensa.129 Neste sentido a introdução do
Censo deveria adquirir a mesma importância que a obra de Oliveira Viana, que
introduzira o censo vinte anos antes. Os traços fundamentais d’A Cultura Brasileira -
síntese objetiva do Brasil, subsídio para a reorganização do país e, por isso, obra
monumental - estavam inscritos antes mesmo de Azevedo aceitar o encargo, no projeto do
Censo.
Em um artigo, publicado no Jornal do Commercio, por volta do lançamento de A
Cultura Brasileira, o colunista comenta:
O Recenseamento Geral de 1940 - uma das obras de maior relevo do atual
governo - não irá dizer-nos, apenas, quanto somos, respondendo, assim, à
interrogação que se tornou proverbial por angustiante e dolorosa - mas, também,
representará o balanço geral do Brasil, na sua riqueza, cultura, civilização e
conquistas de toda sorte. (...) O recensceamento de 1940 será o maior e mais

128
A Junta Executiva era formada pelo Presidente do Instituto Nacional de Estatísticas e pelos diretores de
estatística dos ministérios da Educação e Saúde, da Justiça e Negócios interiores, da Fazenda, do Trabalho,
Indústria e Comércio, da Agricultura, representante da Comissão de Estatística do Ministro da Aviação e
Obras Públicas, e representantes dos ministérios da Guerra, da Marinha, das Relações Públicas. Podendo ser
considerarado órgão do poder executivo, diretamente relacionado com os seus interesses.(Projeto do
Censo,4/5/1937)
129
Ver carta de Freitas a Azevedo (10/6/1937)
98
prodigioso estudo levado a efeito, num plano, pelos brasileiros, desde o início da
nossa nacionalidade. (Cf. Jornal do Commercio, 13/1/1943)
Os comentários do lançamento da Introdução, inicianam-se destacando o Censo
em toda sua grandeza, indicando a obra de abertura como uma das partes do imenso
trabalho. A interpretação de Azevedo, pelo lugar em que é constituída, ganha notabilidade
e legitimidade, incorporando-se ao “patrimônio da cultura brasileira”, perpetuando sua
construção da história, de seus marcos e de seu modo de operar a explicação histórica.
No relato de Azevedo, no prefácio à 3a edição de A Cultura Brasileira, apresenta o
processo do convite como:
Tendo, muito vivo, o espírito de meu tempo, a devoção para com o passado e a
sensibilidade ao encanto que se aspira de idades antigas, nunca sobrepujaram,
nas minhas preocupações, o interesse pelo presente, a atração pela ciência e pela
técnica e o desejo de contribuir, em amplas reformas, para a edificação do futuro.
Mas um dia, quando menos cuidava, me foi reclamado esse trabalho, como um
serviço que devia a meu país. Em fevereiro de 1938, eleito pela Assembléia Geral
de Geografia e Estatística e indicado ao govêrno da República, fui surpreendido
com minha nomeação para Presidente da Comissão Censitária Nacional,
incubido de organizar, preparar e fazer executar o Recenseamento Geral de 1940,
a operação censitária de mais larga envergadura que já se tentara entre nós.
Apesar dos apelos que me foram feitos (...) não me foi possível aceitar o cargo em
que me investira o chefe da nação. Mas, diante da impossibilidade de encarregar-
me da tarefa que me cometera o Presidente, por indicação da Assembléia Geral a
que me referi, voltaram, em 1939, alguns de meus melhores amigos a solicitar-me
colaboração de outra natureza. Que ao menos tomasse a mim o encargo de
escrever a Introdução ao Recenseamento de 1940, uma vez que declinara da
incubência de lhe dirigir os trabalhos. (Azevedo,1958:11)
Em seu relato, Azevedo ressalta a importância do Censo e de sua atuação como
colaborador do Brasil, mas não informa as razões pelas quais desistiu de participar de seus
trabalhos, apenas indicando a “surpresa” e o despreparo em que se encontrava por não
esperar o convite, como prováveis causas, esvaziando o conteúdo de disputa política que,
tanto o convite, como sua recusa, possuíam. Ao despolitizar o convite e a recusa a ele
Azevedo neutraliza as disputas as posições estratégicas de atuação que tanto um como o

99
outro envolviam no momento em que se deram. O esforço de despolitizar o convite e o
cargo também reforçava a condição de intelectual desinteressado pelas questões políticas
e, portanto, expõe a neutralidade a partir da qual produzirá a Introdução do Censo.
O convite para ser o autor da Introdução indica, na sua versão, que sua
colaboração, como cientista, seria imprescindível. Ressalta, portanto, a sua projeção
intelectual na época do convite e suprime sua condição de político da educação
“derrotado”. O relato do Prefácio condiz com a interpretação do Autor sobre as
transformações políticas do período, onde os embates propriamente políticos são
transformados em “zona de pensamento perigoso” e o que é ressaltado são os embates do
novo frente ao velho, do moderno frente ao tradicional, a seu ver, típicos de um período
em crise. Sobrepondo a perspectiva despolitizada da educação reforça, por uma lado, os
argumentos que legitimaram sua atuação como político da educação e mesmo como
intelectual que trabalha pelo Brasil e não para um governo passageiro. Por outro, opera o
esvazimento das suas derrotas políticas, na medida em que os embates são educacionais
são apartados do terreno político.
O processo pelo qual se transformou em um dos autores de monografias
especializadas para o Censo de 1940 não aparece em sua correspondência.
Uma das referências aos estudos monográficos data de 23/7/1938, onde Venâncio
Filho sugere a Azevedo leituras preliminares para elaboração do plano.
Sobre a grande obra que você vai empreender , queria sugerir como leituras
preliminares, antes mesmo do plano, alguns trabalhos que me parecem úteis (...) :
1) Aspectos Gerais do Brasil (geografia), de Alberto Rangel em Rumos e
Perspectivas - Brasiliana.
2) Da Independência à República de Euclides da Cunha e À Margem da História.
3) La Formation Historique de la Nacionalité Bresilienne - Oliveira Lima
4) Evolução do Povo Brasileiro de Oliveira Viana.
Estes quatro livros lhe darão uma base Geo-histórica para sua leituras
posteriores.
(...) Estou atento a tudo o que lhe possa interessar e já conversei com D. Heloisa
Torres que porá o Museu ao seu dispor quando vier para suas pesquisas
aqui.(carta 23/7/1938)

100
A comparação com a introdução do Censo de 1920 está presente na indicação de
leituras de Venâncio Filho, assim como a diversidade de assuntos que Azevedo pretendia
manejar em seu trabalho.
O tema proposto por Azevedo para a sua obra monográfica - “Cultura e Educação
no Brasil - origem, desenvolvimento e situação atual” é enviada à comissão censitária a
25 de outubro de 1938.
No início de 1939, Freitas escreve a Azevedo dando notícias sobre as decisões
tomadas pela Comissão:
Na sessão da CCN que acaba de se realizar apresentei o plano geral relativo às
monografias históricas que vão constituir a bem dizer o preâmbulo da obra
censitária.

O plano foi aceito, mas com um acréscimo referente a uma série de monografias
mais especializadas, estudando aspectos particularizados da realidade brasileira
à luz dos próprios dados censitários ou de pesquizas especiais. E o Presidente
ficou de estabelecer as instruções que regulam a matéria. (Carta de Freitas a
Azevedo,13/1/1939)
A monografia de Azevedo, por decisão da Comissão não seria a única introdução
prevista para o censo. Em 31 de janeiro de 1939 é celebrado o contrato entre a Comissão e
Azevedo para a monografia “A Cultura e Educação no Brasil - origens desenvolvimento e
situação atual”.
Se de início o estudo parece à Comissão uma monografia reduzida às questões da
cultura e da educação, o projeto vai ganhando espaço e, com isso, os horizontes e
ambições de Azevedo vão ficando mais claros. Pretendia o Autor, produzir síntese
monumental que englobaria, como obra sociológica, os aspectos fundamentais do Brasil,
utilizando toda a espécie de dados produzidos pelo censo (demográfico, agrícola,
industrial, comercial, dos transportes, comunicações, etc.). A cultura e a educação, através
do método sociológico são, para o Autor, não temas redutores, mas o corte preciso que
permitiria uma “síntese do Brasil de corpo inteiro”; operação que tornaria o Brasil “mais
conhecido aos brasileiros e a descobri-lo os homens dos outros países.” O livro já nasce
com a marca de obra monumental, preâmbulo do maior censo que já havia se produzido
no Brasil. A síntese da cultura que introduziria a síntese numérica do país.
A proposta de Azevedo para o livro é

101
dar uma vista de conjunto, tão completa quanto possível, da cultura no Brasil, nos
fatores que a condicionaram, nas suas diversas manifestações artísticas, literárias
e cientificas, etc. e na formação do aparelhamento institucional, cultural e
pedagógico, destinado a perpetuar, transmitir e desenvolver o patrimônio cultural
do país.
Não tem sido dos menores trabalhos o esforço constante de síntese, para não reter
senão o que é essencial e característico e nada omitir, nesse panorama, que tenha
verdadeiramente valor e sentido. Não se trata de uma simples exposição histórica,
com qualquer preocupação de detalhismo, mas antes de uma interpretação
sociológica dos fenômenos da cultura, das formas que revestiram, de sua evolução
e de suas tendências. Tenho estudado e analisado através da melhor
documentação possível e com espírito e métodos objetivos. (Carta de Azevedo a
Venâncio Filho, 30/7/1940. Grifos meus)
Os marcos e amplitude específicos da obra, dentro do horizonte do Censo, estão aí
dados: deveria ser produto de análise da Sociologia, encarando a cultura como fenômeno
social; análise que se utiliza da história para explicar a especificidade do fenômeno;
síntese que é produzida a partir de documentação e outros estudos monográficos que são,
através do método objetivo, organizados transformando-se em interpretação científica.
Os métodos objetivos a que Azevedo se refere, certamente são os produzidos em
Princípios de Sociologia e Sociologia Educacional. Nestes manuais Azevedo apresenta as
discussões em torno de sua concepção de Sociologia e o que entende por método
sociológico. A Cultura Brasileira é, neste sentido, o exercício prático do que já havia
produzido teoricamente. Os três livros formam, então, um tríptico, onde as concepções,
conceitos e método se concentram nas duas primeiras obras e a aplicação na terceira.
Ainda em relação aos dados utilizados pelo Autor em A Cultura Brasileira, nota-
se que apesar da obra ser a Introdução do estudo censitário não há a menor preocupação
do Autor em utilizar os dados produzidos pelo Censo130. A obra não explica os processos
pelos quais os dados censitários foram produzidos e nem tão pouco se debruça sobre as
evidências que deles poderiam resultar. As linhas gerais do projeto do Censo acabam por
dimensionar apenas o tipo de obra que deveria ser a sua Introdução, para além disso, a

130
Os dados estavam sendo produzidos no mesmo período que a obra dificultando, portanto, a utilização
imediata dos números. No entanto não há qualquer referência, na correspondência consultada, a esse tipo de
dificuldade por parte de Azevedo.
102
obra ganha total autonomia. A utilização dos resultados do Censo não se diferenciam do
modo como Azevedo utiliza as monografias especializadas ou as obras de detalhes. Os
vínculos com o Censo vão cada vez mais se atenuando conforme a obra ganha autonomia
e se distancia dele no tempo - os dados do Censo de 1940 são substituídos, na segunda
versão (1958), pelos dados do Censo de 1950, sem o menor prejuizo à lógica do trabalho.
Aceito o projeto e concluída a obra, Azevedo preocupa-se com a divulgação do
livro. As discussões em torno desta questão contemplam três principais assuntos: como a
obra circularia como introdução do censo? O Instituto possuindo os direitos autorais da
obra permitiria a sua publicação em outras línguas? Como a obra chegaria ao grande
público?
Em carta a Azevedo, Freitas esclarece como deve ser seu procedimento para que
tudo seja feito para que vença na Assembléia Geral a proposta de Azevedo e não a do
Presidente da Comissão Censitária Nacional:
Ao ser discutida a sua proposta, ou a do Presidente, sobre as edições que a
obra deva ou possa ter, ser-me-á mais cômodo achar-me na situação que os
demais colegas, sem uma prévia vinculação ao proposto, como aconteceria se
fosse eu o apresentante das sugestões a examinar. Daí o alvitre que lhe proponho
quanto ao modus faciendi: uma carta especial sua (ao Presidente) propondo a
separata para venda avulsa e solicitando o pronunciamento da Comissão sobre as
edições em língua estrangeira. (Freitas,8/8/1942)

Azevedo pretendia que seu livro fosse amplamente divulgado, sendo distribuído
para além dos círculos que receberiam o Censo. Empenha-se em conseguir os direitos
autorais do livro e uma grande divulgação dentro e fora do país. O locus da obra
legitimava sua incorporação ao “patrimônio cultural”, mas para que realmente alcançasse
o impacto esperado era necessário que fosse divulgada e torna-se notícia na imprensa.
A preocupação com o silêncio da imprensa em relação ao lançamento da obra
aparece nas cartas trocadas com Freitas e Venâncio Filho. O caminho da distribuição dos
livros é mapeado por Azevedo e Teixeira de Freitas:
Eu também já estranhara o silêncio da imprensa e foi em torno disso que fiz os
comentários justificativos da proposta131:

131
Freitas refere-se a proposta que fez a Comissão Censitária Nacional para a distribuição imediata da obra
“monumental” de Azevedo. (Carta de 13/9/1943)
103
O Dr. Cardim explicou que o jornal do Comércio ainda não aludira à obra
porque esta não lhe tinha sido remetida. Outros membros apoiaram minha
sugestão.
O Presidente explicou então que a demora fora motivada pela necessidade de
organizar uma cuidadosa lista de destinatários, uma vez que a edição não é
vultuosa.(...)
Posso adiantar ainda que o DIP requisitou vários exemplares destinados a
estudos de escritores especializados. Conta, ao que parece, provocar um
movimento de interesse em torno da obra(...)
Devo esclarecer ainda, que já foi providenciada uma notícia da obra em nossa
Revista Brasileira de Estatística, (no 16). E acrescento que, não obstante a falta
de comentários da imprensa, temos recebido inúmeros pedidos de exemplares, que
vamos encaminhar sempre para o Serviço Nacional de Recenseamento.
(Freitas,13/9/1943)
A obra, distribuída pelo Serviço Nacional de Recenseamento, além de demorar
para completar a distribuição, ainda, ficou restrita a um cículo que não contemplava os
interesses de Azevedo, diminuindo o impacto da interpretação inovadora na imprensa e
em relação ao público. Dos 3.000 exemplares editados, 500 foram destinados às
embaixadas e instituições culturais no exterior, 225 para a distribuição pessoal (25 ao
Autor e o restante a chefes de governos, altas autoridades e funcionários mais graduados
do Instituto, no Distrito Federal e nos estados), 2.275 destinados às entidades culturais,
publicitárias, docentes, administrativas e técnicas de maior expressão, não ficando
qualquer livro para venda ou distribuição (Carta de Freitas a Azevedo, 5/10/1943).
Freitas aconselha Azevedo que tente uma edição particular, “como acontecera com
o estudo de Oliveira Viana no Recenseamento de 1920.”. (idem, 13/9/1943). A
preocupação de Azevedo, que figura em sua correspondência, estão voltadas a dois
problemas: a velocidade da distribuição e seu destino. A primeira edição não parece ter
contemplado o público alvo pretendido por Azevedo, por ser restrita e não “popularizar”
sua interpretação dos problemas brasileiros e da história da educação brasileira. Para
ampliá-la consegue, junto ao JEC, autorização para publicação independente, fazendo-a
pela Cia Editôra Nacional em 1944, portanto, um ano depois de lançada a obra132.

132
Ver Cartas de Freitas a Azevedo de 13/9, 5/10, 18/10, 4/11 de 1943; de Carneiro Felippe a Azevedo
19/10/1943; de Venâncio Filho a Azevedo de 28/8/1943
104
Na imprensa seu livro é comparado a outras obras lançadas no mesmo ano como:
Formação do Brasil Contemporâneo de Caio Prado Júnior, Terras sem Fim de Jorge
Amado, Fogo Morto de José Lins do Rego, Ensaios Sociais, Políticos e Econômicos do
Brasil de Roberto Simonsen, a reedição de História da Literatura Brasileira de Sylvio
Romero, Casa Grande e Senzala de Gilberto Freyre e outros. Torna-se um acontecimento
literário ora valorizado por compor o Censo, ora por sua projeção como educador e
sociólogo, ora pela interpretação inovadora e pelo volume de informações trazidos pelo
texto. Apesar dos “contratempos” de sua distribuição, a obra de Fernando de Azevedo
ganha a notabilidade e a projeção pretendias.
A Azevedo interessava estar e ao mesmo tempo não estar atrelado ao Censo. O
Censo lhe garantira logo de saída o status de interpretação oficial e cientifítica para a
obra, legitimando a interpretação que empreendera e garantia a sua incorporação ao
“patrimonio cultural” brasileiro como fora a obra de Oliveira Viana. Mas, para que fosse
amplamente distribuida e divulgada, Azevedo tinha que se desatrelar da distribuição
restrita efetuada pelo Instituto e pelo Estado. Só com uma divulgação massisa
interpretação explicativa da educação brasileira de Azevedo poderia se sobrepor a outras
garantindo a sua vitória no plano da história.
O posicionamento estratégico de Azevedo, com a opção de interpretar os dados no
lugar de produzí-los, parece ter lhe rendido posição política e projeção mais contundentes
na medida que ganha espaço para estabelecer e perpetuar sua interpretação do “estado
atual” dos acontecimentos e do passado, transformando sua ação em marco divisório das
políticas educacionais no Brasil, constituíndo a identidade dos grupos (Católicos e
Pioneiros) e eliminado outras posições das contendas travadas no campo da educação.
Legitimando sua análise pelo locus da obra, projeta para o futuro sua interpretação que é
incorporada como “patrimônio cultural” juntamente com outras obras de importância,
lançadas no mesmo período ou não133. Construindo as bases para um modo de apreender a
História e a possibilidade de transformar sua interpretação em memória.

Para a formulação de hipóteses em relação a quantidade dos exenplares editados seria necessário o
levantamento de dados comparativos, por isso limito-me a supor que, pela insistência de Azevedo em
relação ao mapeamento da distribuição dos volumes e pela obstinação em conseguir autorização para uma
segunda edição (que sai no ano seguinte), que a obra, com a primeira distribuição, não chegou ao público
que o interessava ou, ainda, não foi suficiente em número (?) para contemplá-lo. Outro indício, encontrado
por mim em seu arquivo, são os destaques em vermelho feitos pelo Autor em uma passagem do artigo de
Emílio Willems (7/12/1943) sobre a necessidade de se produzir uma edição popular acessível ao público em
geral e em um artigo de Hermes de Lima que pergunta: “Por que privar o público do conhecimento de
trabalho dessa natureza, do prazer de adquirí-lo?”(8/1/1944).
133
A Cultura Brasileira tem cinco edições.
105
A Arquitetura d’A Cultura Brasileira: definição, tema, período e fontes

A Cultura Brasileira foi produzido imediatamente após as publicação de


Sociologia Educacional (1940). As reflexões teóricas produzidas neste manual estão
intimamente relacionadas com o modo inovador pelo qual Azevedo aborda a cultura
brasileira. Ali e, em Princípios de Sociologia (1935), encontra-se a definição do campo
desta disciplina: a autonomia em relação a outras ciências, o seu objeto e as possibilidades
de seus resultados, bem como, o seu alcance e os métodos pelos quais se faz ciência.
Muitas das questões desenvolvidas nestes manuais reaparecem em A Cultura Brasileira,
não mais como teoria, mas como método - fio condutor das análises e interpretações
operadas.
Apresentar aquelas reflexões teóricas, ainda que parcialmente, serve como “guia”
para se verificar o modo pelo qual o Autor organiza suas referências na obra monumental.
Não tenho a pretensão de esgotar as profundas extensas questões que a constituição do
método de produção d’A Cultura Brasileira envolvem, mas produzir alguns subsídios que
indiquem possíveis acessos a essa espécie de análise.
As reflexões produzidas, principalmente em Sociologia Educacional, também
auxiliam a compreensão da dimensão conferida por Azevedo à sua obra, da sua “função”
e, mesmo, das condições objetivas que possibilitaram sua produção. Como constitui e, ao
mesmo tempo, entende estarem sendo constituídos, ele e a sua obra, pelo momento
histórico que vive.
Veja que faz triptico com a sociologia geral e a educacional, sendo uma obra
aplicada ao Brasil, estudo específico que fazia falta à sua obra. (Carta de
Venâncio Filho a Azevedo, 28/8/1943)

A Cultura Brasileira: um Brasil mais Conhecido dos Brasileiros

Em A Cultura Brasileira, Fernando de Azevedo tem como objetivo tornar o Brasil


“mais bem compreendido, por uma imagem tão exata quanto possível de sua cultura,
desde suas origens até seu estado atual, nos seus fatores, em suas múltiplas manifestações
e nos seus sistemas de transmissão”. Para tanto pretendia elaborar uma “análise e
106
interpretação social da cultura brasileira” em um “vigoroso trabalho de síntese” (Cf.
Azevedo, 1958:12-13)
Este trabalho de síntese, segundo o Autor, só poderia ser executado por uma
“ciência sólida” e um “conhecimento bastante profundo de todos os grandes problemas”
que permitiriam ir “direto ao essencial”.(Cf. Azevedo, 1958:12)
A ciência a que o Autor se refere é a Sociologia definida, em seu manual
Princípios de Sociologia134, como a ciência que
deve tender, pelo estudo da estrutura e comportamento dos grupos humanos, no
tempo e no espaço, a desprender e isolar o fato social da complexidade dos fatos
que o condicionam, e estabelecer as generalizações fundadas sobre os fatos e,
portanto, as leis gerais que regulam o ritmo da vida social na sua genese,
organização e evolução.
(...) Esta realidade social, real, objetiva e observável, que manifesta a natureza
dos grupos e pertence a um grupo tanto quanto um “todo”, abrange, pois, não
somente os fatos sociais, considerados como realizados, isto é, “instituições”,
senão, tambem os fatos considerados como “em ser”, ou movimentos sociais.(Cf.
Azevedo,1935:49-50)
A Cultura Brasileira, portanto, é fruto do estudo metódico da estrutura e do
comportamento dos grupos humanos, no tempo e no espaço, que a compõem. Por isso a
necessidade de estudá-lo “desde suas origens até seu estado atual”. A idéia e, ao mesmo
tempo, a possibilidade de produzir uma síntese da cultura brasileira está na definição do
próprio objeto de estudo da Sociologia: a sociedade.
A sociedade, para Azevedo, é definida não pela soma dos indivíduos, nem pela sua
média, “é antes a sua ‘sintese’, com propriedades caracteristicas e especificas que cada
individuo não permitiria adivinhar e que é preciso estudar onde elas estão : no conjunto
coletivo, no conjunto considerado como tal e não em cada um dos individuos que o
compõem.” (Cf. Azevedo,1935:44). O objeto da Sociologia é, então, reconhecer os fatos

134
O livro tem como objetivo “estudar a ação e o esforço dos grandes pensadores, antigos e modernos,
sobre o desenvolvimento do pensamento sociológico; desprender de cada autor o que constitui sua
originalidade e restabelecer o laço que o prende aos sociólogos modernos ou imediatamente posteriores;
examinar o conteúdo das principais teorias e sua bases científicas e marcar-lhes o pontos de contato .
(...) Sem se pretender um denominador comum para as diversas doutrinas ou, por outras palavras, sem
nenhum intuito de ser eclético o que traduziria menos uma atitude científica do que uma posição ‘filosófica’
em face dos problemas, procurou-se extremar, nas diferentes doutrinas estudadas, as hipóteses cientificas, as
hipóteses de trabalho e as verdades apuradas” (Azevedo,1935:23-24)
Utilizo aqui a primeira edição, assim, a ortografia das citações estão como nesta edição.
107
sociais e explicá-los - produzir, através do método, a síntese racional que é a essência da
sociedade.
Tornar o Brasil mais conhecido é, portando, reconhecer e estudar seus fatos
sociais, estabelecendo a “esssência” dessa sociedade. O Autor objetiva, em sua síntese da
sociedade brasileira:
acompanhar , sob todos os seus aspectos. a evolução do povo e a formação da
comunidade e da vida nacional em mais de 400 anos de história; assinalar-lhe as
características, tendências e impulsos, que já aparecem, desde a sua origem e na
sua originalidade, enquanto a civilização se forma e se modela nas lutas contra as
invasões e hostilidades do meio; apreender-lhe, em seus traços e por suas reações
aos fenômenos naturais e aos acontecimentos humanos, a “alma” ou a
mentalidade coletiva, e as transformações que sofreu; exprimir o que há de
comum entre regiões extremamente diferenciadas, mas próximas um das outras
pela unidade fundamental da formação de um povo, impregnado através dos
séculos pelo cristianismo e por tudo que lhe carreou, nos seus aspectos materiais
e espirituais, a influência portuguesa, preponderante na interpenetração dos
elementos, indígenas e africanos. (Azevedo,1958:14)
Por um lado, pretende estudar aquilo que faz desta sociedade a sua peculiaridade -
“assinalar-lhe as características, tendências e impulsos” - e, de outro, pretende verificar as
heranças, ou o que há em comum entre o movimento peculiar desta cultura e o
movimento de evolução das culturais a partir das quais surgiu. É, a partir da definição e
do isolamento de um organismo social independente - no tempo e no espaço -, que se
pode estudar as relações causais entre os fatos e diferenciá-los no que são específicos e no
que são gerais e, ainda, verificar como se refletem os fatos gerais na especificidade de
cada sociedade. Assim,
ligando a história da cultura brasileira, de um lado, às idéias que sôbre ela
influíram e, em geral, à evolução das grandes correntes religiosas, políticas e
filosóficas do Ocidente, e, de outro, às condições específicas de nossa formação
social, como um país, a raça, e as formas de estrutura social, econômica e
política, poder-se-á compreender melhor as evoluções paralelas que se operaram,
na Europa e no país, sem grande separação da fonte comum, as formas especiais
que a cultura tomou entre nós, a facilidade com que se propagam certas idéias,

108
como resistências opostas pela sociedade a outras manifestações e movimentos da
cultura ocidental.(Azevedo,1958:33)
A síntese possível da evolução de uma dada sociedade está na determinação do
que é específico ou peculiar dentro das leis gerais que estruturam as transformações de
todas as sociedades.135 Portanto, o método sociológico é o instrumento eficaz para a
compreensão da evolução de uma dada sociedade na medida que classifica os fenômenos
“'segundo a função especial que eles preenchem ou a relação que sustentam com algum
fim social'", estabelecendo as leis gerais que regulam o ritmo da vida social na sua gênese,
organização e evolução. (Cf. Azevedo,1935:51-52)
O estudo deve contemplar duas dimensões: o movimento geral das sociedades
Ocidentais, dado que o Brasil tem sua gênese nessas sociedades; o movimento peculiar
que faz do Brasil uma civilização independente. As duas dimensões são interpretadas à
luz das leis gerais do funcionamento de todas e quaisquer sociedades que traduzem no
próprio método de investigação dos fenômenos sociais.
Para o Autor, dada a impossibilidade de abranger a totalidade da realidade social, e
os fatos sociais devem ser estudados e classificados segundo suas funções ou as relações
que sustentam com algum fim social, podem ser eles estudados separadamente. Cada uma
das categorias de fatos sociais constituem um ramo particular da “sociologia geral” cujos
investigadores têm se especializado explorando um dos campos que compõem a unidade
profunda da Sociologia. (Cf. Azevedo,1935:44-52).
O estudo dos fatos sociais da civilização brasileira, dentro de uma síntese possível,
também requer um recorte temático, onde a partir do estudo dos fatos sociais específicos
pode se compor a unidade dos fatos em geral. A condição de produção da síntese está no
desenvolvimento dos estudos limitados, ou delimitados, dos fenômenos, cujos resultados
recompõem a unidade da ciência - que é a própria síntese da sociedade. 136

135
A Sociologia, segundo o Autor, deve estudar, então, a evolução das sociedades para “desprender as leis
gerais que presidem á sua constituição, o seu funcionamento e á sua evolução.” (Cf. Azevedo, 1935:88). A
evolução social deve ser definida como “uma transformação continua da organização social, e em cuja base
se acha a mudança das relações economicas que, proporciona, sem duvida, uma ‘oportunidade’ para o
progresso , mas não é o progresso em si mesmo.”
136
Para Azevedo, “Êsse trabalho de análise pressupõe, evidentemente, delimitação e escolha de
determinado fenômeno ou grupo de fenômenos, a que o sociólogo reduz o seu campo de investigação. Êle
não poderá, no entanto, aprofundar-se por si nesta ou naquela especialidade sem ter obtido, anteriormente,
uma sólida formação científica que lhe permita uma visão de conjunto e lhe dê elementos para passar da
observação metódica à interpretação dos fatos observados. As teorias ou leis relativas à fenômenos mais
simples podem abrir caminho à explicação de fenômenos mais complexos ou a interpretações e hipóteses de
trabalho verdadeiramente fecundas.” (Azevedo,1954:20)
109
O recorte temático proposto pelo Autor para o estudo da sociedade brasileira é a
cultura. que tem como função a produção, a circulação e organização no domínio
espiritual dos valores e dos bens espirituais “com que instaura um domínio que é uma
pátria e um asilo para todos, a inteligência não só os distribui e se esforça por torná-los
acessíveis a um número possível, como empreende a organização da sociedade, segundo
pontos de vista espirituais”. (1958:28). Para ele,
Assim, limitado o conceito de cultura ou, por outras palavras, tomado esse termo
em seu sentido clássico, o estudo que fazemos incide diretamente sobre a
produção, a conservação, e o progresso dos valores intelectuais, das idéias, de
tudo enfim que constitui um esforço para a vida material e para a libertação do
espírito137. (Azevedo, 1958:28)

A cultura é um dos acessos possíveis ao estudo dos fenômenos sociais. Acesso


este que incide diretamente no modo pelo qual a sociedade se pensa ou se representa.
A cultura pode se tornar recorte temático fértil, na perspectiva do Autor, para o
estudo dos fenômenos sociais do Brasil e guia condutor para a síntese proposta, na media
que
o nível social e espiritual dos intelectuais, sábios, pensadores e artistas, não é
somente imputável a certas superioridades biopsicológicas estritamente ligadas à
natureza individual, mas à intensidade de ação maior ou menor das influências
civilizadoras, e em conseqüência, como não pode haver criação espiritual onde
faltam estímulos à vida do espírito ou não são suficientemente apreciados os
valores espirituais, o estudo da cultura, na variedade de suas formas, como na sua
extensão e na sua intensidade, é, por si mesmo, uma viva luz que se projeta sôbre
a natureza da civilização. (Azevedo, 1958:28-29)

A cultura, por um lado, tem a função de instaurar os bens e os valores espirituais


que definem ou dão identidade a uma determinada civilização e, por outro, só se mantém
e se desenvolve conforme as transformações dos outros fenômenos sociais daquela
sociedade.
Pelas suas próprias condições, o recorte temático para o estudo da sociedade
brasileira permite, segundo o Autor, sintetizar um país que se caracteriza por diferentes

137
Para o Autor, o conceito de cultura é definido, com Humbouldt: “esse estado moral, intelectual e
artístico, “em que os homens souberam elevar-se acima das simples considerações da utilidade social,
compreendendo o estudo desinteressado das ciências e das artes’”(Azevedo,1958:27)
110
tipos e graus de civilização, com contrastes de riqueza, de paisagens naturais e variantes
coletivas que “resultantes das diversidades de sistemas de exploração econômica modos
de vida, tão fáceis de reconhecer nas oposições de escalas de valores, de atitudes e
padrões de comportamento”, cria grande dificuldades para o pesquisador que teria que
produzir um estudo exclusivo de cada uma destes graus de civilização, porém, através da
cultura é possível reconhecer, na diversidade característica do país, as conexões que
comporta e que formam a mentalidade do povo. (Azevedo, 1958:15)
As “conexões” são reconhecíveis no modo como “a terra, os homens e as
instituições contribuíram para modelar” a alma do povo, como a sua ação coercitiva se faz
e se perpetua.. Portanto,
é nas suas tradições e aspirações comuns, na sua história vivida e no seu presente
em que ela se reflete, em suas contradições e em suas lutas, nas suas realizações
materiais e espirituais, em que se concentrou o trabalho humano que podemos
reconhecer o caráter que possui e o caminho que prosseguiram e em que se
encontram consigo mesmas. (Azevedo, 1958:16)
A educação, definida como o lugar da transmissão das tradições ou das
consciências coletivas, o lugar da ação coercitiva que molda os indivíduos a imagem da
sociedade, é locus em que pode ser apanhado o que caracteriza o coletivo na diversidade
das civilizações brasileiras, portanto, é o lugar mais fértil para o estudo da cultura
brasileira138. A educação contém a essência da cultura porque é o que dela é perpetuado
para que se garanta a existência da consciência coletiva - dos sentimentos comuns à média
dos membros de uma mesma sociedade - formando um sistema determinado que tem vida
própria.
O que importa estudar para explicar os destinos das nações, segundo o Autor, são
“as transformações de sua vida material, a sucessão de suas maneiras de produzir, de

138
Em Sociologia Educacional Azevedo considera: “Em todas as sociedades, essas tradições
verdadeiramente conscientes e as demais formas de tradição, jurídicas, morais, religiosas, são fatos que,
ligando de maneira permanente os grupos e subgrupos, os indivíduos no interior dêstes, e todos entre si, no
interior da própria sociedade, “perpetuam entre os tempos da vida social geral a continuidade necessária”,
ao lado de outros fatos tradicionais, técnicos, econômicos, estéticos, etc. que “desempenham êsse mesmo
papel geral para as atividades especiais”. Embora o poder de cada uma dessas tradições seja variável
conforme as espécies, os grupos e as épocas, é certo que a tradição se estende a tudo, observa Mauss, e é ao
menos muito poderosa, impondo-se aos grupos e aos indivíduos por uma ação freqüentemente irresistível a
que Durkheim chamou “poder coercitivo”. Uma vez criada ou estabelecida, o que se transmite é sempre a
tradição, pois é pela transmissão de seus padrões culturais, de suas tradições resultantes de experiências
acumuladas e das necessidades da vida em comum, que as sociedades mantêm a sua coesão, no espaço, e a
continuidade no processo de sua evolução”. (Azevedo, 1954:146)
111
vender e de consumir e, de outra parte, as transformações de sua vida intelectual, a serie
das descobertas, cujos resultados, quando chegam á organização logica à aplicação
industrial, dirigem todo o resto.”(Cf. Azevedo, 1935:100-101) Ou seja, através do estudo
dos fenômenos econômicos é possível determinar o grau de civilização em que uma
sociedade se encontra. E se, por outro lado, a cultura lhe acompanha as transformações
(completando, portanto, a evolução para a civilização), é possível determinar o ritmo do
progresso desta civilização.139
A cultura, para Azevedo, é uma das “pontas” que determina a evolução social, que
dá significado e unidade ao organismo social, em cuja base está a economia, a outra ponta
da evolução social. Se há transformações econômica sem transformações culturais, não há
progresso numa sociedade, porém, se a cultura acompanha as transformações econômicas
o organismo social evolui, mantendo a unidade social.
A educação, na perspectiva do Autor, engendra o acesso seguro ao próprio estudo
da cultura, fornecendo ao pesquisador um guia seguro para a produção da síntese da
cultura e, portanto, da civilização. A perspectiva de Azevedo está ancorada na proposta de
Fauconnet:
No que uma geração faz para criar seus sucessores, há certamente ocasião para
se surpreender o segrêdo de sua alma e traçar o quadro de uma sociedade, vista
através de seu sistema de educação. É por isto, pelos elementos que o estudo da
educação fornece à análise psicológica e social do caráter coletivo, que o
sociólogo francês considera justamente a história da educação como “uma via
das mais seguras de penetração na psicologia de um povo e na história de seu
passado” (Azevedo,1958:35)
O estudo da cultura brasileira deve, nesta perspectiva, ser precedido, na exposição
lógica do texto, da análise das grandes influências que puderam agir sobre a produção dos
fatos de cultura. Para Azevedo, estes fatos são: o meio físico e étnico (o país e raça), o
meio econômico e político, o meio urbano (tipos e vidas das cidades) e a mentalidade
particular do povo, “determinada esta, por sua vez, por todos êsses elementos que
condicionaram a sua formação.”(Cf. Azevedo, 1958:29) Segundo o Autor essas diversas

139
Um dos temas recorrentes na obra é o da urbanização, utilizado pelo Autor como critério para verificar o
grau de civilização em que uma sociedade se encontra: “o desenvolvimento das cidades é um dos
fenômenos mais importantes , na sua função de intensificar as energias coletivas ao mais alto grau de
desenvolvimento possível as capacidades latentes e dispersas na população.” (Cf. Azevedo,1958:31). Para o
Autor, o desenvolvimento das cidades é índice objetivo de uma civilização superior, potanto, está
diretamente relacionado com o desenvolvimento cultural, sendo mesmo um de seus fatores determinantes.
112
ordens de fenômenos têm relações variáveis com os fenômenos da cultura, “porque os
provocam e os orientam à maneira de causas e de fatôres, e podem ainda, quanto a certa
categoria de fenômenos, (econômicos, urbanos, espírito coletivo) sofrer contra golpes e
reações dos fatos de cultura e receber dêles um impulso determinado.” (Cf. Azevedo,
1958:29-30)
Sintetizar a evolução cultural do país pressupõe, segundo o Autor, a análise dos
fenômenos que causam ou se correlacionam com a cultura. Daí o modo pelo qual a obra é
estruturada: Os fatores da cultura; A cultura; A transmissão da cultura. Não há, para
Azevedo, a possibilidade de analisar qualquer fenômeno social sem interligá-los aos fatos
que o precedem (causas) e os fenômenos que também caracterizam a sociedade
examinada(correlação dos fatores)140. Por isso, cada um dos capítulos que compõem os
diferentes tomos contém a evolução daquele determinado fator desde a chegada dos
portugueses até o presente. Justificando-se, assim, a estrutura proposta para A Cultura
Brasileira:
É preciso, para compreendê-la e explicá-la, situar a cultura nacional no seu
quadro geográfico, social e histórico, acompanhá-la nas diferentes etapas de sua
evolução, nas suas orientações e tendências, para mostrar em seguida, quais as
instituições que se organizaram, prepostas ao fim de transmiti-la, já
sistematizada, de geração para geração para assegurar a sua continuidade no
tempo, a sua unidade, a sua difusão e os seus progressos. (Cf. Azevedo, 1958:29)

O primeiro tomo tem como objetivo a análise dos fatores de toda a ordem que
condicionaram a produção dos fenômenos culturais e contribuem, portanto, para explicá-
los. Os quadros geográfico, econômico, social devem ser expostos nas diferentes etapas
de sua evolução. O segundo tomo tem como objetivo a exposição das características da
cultura propriamente dita em suas diferentes fases da evolução, assim como das
instituições, sendo estas os fatos considerados realizados e, portanto, o que a
caracterizam. O terceiro tomo, pretende mostrar quais as instituições que se organizaram
para transmitir a cultura já sistematizada, de geração em geração, para assegurar a sua
continuidade e o seus progressos.

140
A possibilidade da especialização dos estudos sociológicos, que provoca o desenvolvimento da
Sociologia geral, está na interdependência dos fenômenos sociais, ou seja na especificidade do social - a
investigação em qualquer dos setores no vasto domínio dos estudos sociológicos não podem ficar sem
repercussão maior ou menor nos estudos a que se proceder sôbre as categorias de fenômenos, pois há uma
unidade profunda entre as diversas ordens de fatos estudados pelos especialistas (Cf. Azevedo, 1954:21)
113
A cultura, na concepção de Azevedo, mantém a unidade da sociedade, no espaço e
através do tempo, na medida que é transmitida pelas gerações mais velhas às mais novas:
“os seus ideais, o seu caráter coletivo e as suas tendências, a sociedade exprime, melhor e
mais profundamente, (...) pela educação que não sòmente constitui um dos aspectos mais
característicos, mas é o próprio veículo da cultura e da civilização.” (Cf.
Azevedo,1958:35). O Autor opera, então, um recorte dentro do tema escolhido, elegendo
a educação como objeto específico - fenômeno educacional - que, por sua própria
característica, revela a essência de uma civilização, propiciando ao investigador uma das
vias mais seguras de penetração da história de um país. (Cf. Azevedo, 1954:35). Por isso a
exposição sobre as instituições ou os sistemas educacionais, é o que dá fechamento à
obra, é nele que se opera a unificação de todos os fatores que são expostos na síntese e
que, ao longo da pesquisa, foram o fio condutor da análise dos outros fatores.
Para o Autor,
Se se considerar, de fato, que a educação consiste, em sua essência, na
transmissão da civilização, numa pressão exercida pelas gerações adultas sôbre
as gerações jovens, a fim de que estas recolham e realizem os ideais que aquelas
trazem consigo, compreender-se-á que “êsses ideais, como observou P.
Fauconnet, nunca talvez seja mais fácil apreendê-los do que quando se assiste à
sua transmissão”. No que uma geração faz para criar os seus sucessores, há
certamente ocasião para surpreender o segrêdo de sua alma e traçar o quadro de
sua sociedade, vista através de seu sistema de educação. (Azevedo,1958:35)
Azevedo considera, como já foi exposto, a educação a “via segura” pela qual pode
estudar os fenômenos sociais por ser esta determinada pelas estruturas sociais, já que
agem sobre os indivíduos para moldá-los à sua imagem, “marcá-los mais ou menos
conscientemente com o seu caráter e, tornando-os semelhantes, assegura a sua coesão
interna, a continuidade do grupo como tal e o seu crescimento.” (Cf. Azevedo, 1954:33).
As transformações nas estruturas sociais determinam transformações nos sistemas
educacionais que têm justamente a função de moldar as novas gerações. Desta forma,
eleger a educação como eixo de estudo da cultura permite ao Autor operar a síntese dos
fatos sociais.
Azevedo define uma obra de síntese como aquela que tem
duplo objetivo de unificar os conhecimentos dispersos até hoje nos trabalhos de
detalhe, e de abandonar tudo o que é secundário, inexpressivo, acessório, para
114
fixar o essencial e indicar as grandes linha de desenvolvimento. (Grifos do Autor.
Azevedo, 1958:37)
A educação, definida como tal, pode transformar-se no critério daquilo que é o
“essencial” para ser exposto na síntese porque é na educação que a sociedade transmite o
que lhe é essencial para se manter como organismo social, e, ao mesmo tempo, é o eixo
unificador dos fenômenos sociais na medida que é definida como a própria “coesão
social”, mudando quando há transformações nos outros fenômenos sociais.
O estudo se faz no sentido inverso ao da exposição: é a partir da redução do campo
da investigação, portanto da observação metódica dos fenômenos mais simples, que os
fenômenos mais complexos podem ser explicados. É a partir da observação e
interpretação dos fenômenos educacionais (fenômeno mais simples) que a síntese da
evolução social pode ser organizada.
O estudo produzido por Azevedo, em A Cultura Brasileira, se faz, portanto, a
partir da Sociologia Educacional e de seus métodos, cujo objeto é definido por ele como
sendo:
ação exercida pelas gerações adultas sôbre as gerações jovens para adaptá-las à
sua própria mentalidade delas (geração adulta) e, em conseqüência, ao meio
físico e social”; ou por outras palavras, é a transmissão das tradições materiais e
espirituais de uma geração a outra, numa sociedade determinada. É um fato
eminentemente social cuja essência sociológica ressalta de não ser explicável
senão dentro da organização social e por ela, e de não só ter condições sociais,
mas ser de natureza, de origem e de finalidades sociais.
Mas toda a educação que, reduzida à sua essência, como fenômeno social, se
repete identicamente no tempo e no espaço, é solidária com a evolução histórica e
social que a enquadra e a condiciona.(Azevedo, 1954:33)
É a definição do conteúdo do que é transmitido e das instituições que o transmitem
que se define o próprio conteúdo da cultura e consequentemente o estágio de civilização
que esta sociedade se encontra. Para Azevedo,
A quantidade e a natureza dos conhecimentos que se transmitem às novas
gerações, a variedade de instituições de caráter profissional, destinadas a atender
à especialização ditada pelas necessidades coletivas, a pobreza ou a
complexidade do sistema educativo, variam, evidentemente, com as condições

115
sociais de cada grupo humano e refletem as suas necessidades, suas mentalidade
especial, seu passado histórico e as tendências de sua evolução. (Azevedo,
1958:36)
A educação é, assim, uma espécie de espelho da sociedade e da história de sua
evolução porque acompanha as mudanças operadas no seu interior preparando os
indivíduos para o trabalho e para as relações sociais cotidianas e, ao mesmo tempo,
conserva as tradições que dão identidade para o organismo social ao qual o indivíduo está
ligado, assegurando a continuidade do grupo como tal em sua evolução. Para Azevedo,
Se pois, se proceder a um inquérito sôbre as instituições pedagógicas de um povo,
apanhadas, no curso de deu desenvolvimento, e estudadas nas suas estruturas, nos
fins prosseguidos e nos meios adotados para realizar êsses fins, - uns e outros
sociais, porque a natureza dos fins predetermina a dos métodos, - não será difícil
reconstituir não só a sua evolução social, a sua concepção da vida e do homem, a
sua hierarquia de valores, as mudanças que se operam nas suas concepções e na
sua mentalidade particular, como o tipo, as espécies e o grau de cultura que
atingiu e se exprime constantemente nas suas instituições prepostas a mantê-la e a
transmiti-la através de gerações.(Azevedo, 1958:37)
Só há, para o Autor, a possibilidade de estudar a mudança em uma determinada
sociedade se houver uma “unidade” capaz de lhe explicar a continuidade. Se a unidade
desaparecer é sinal que aquela sociedade também desapareceu. A “unidade” não deve ser
procurada nem no econômico nem no geográfico, mas “no sistema de valores incorporado
a este grupo”. Ou seja, é a cultura que dá unidade ao grupo e é na cultura que a unidade se
realiza. “Todo processo histórico comporta, pois, seu padrão, seu tipo caracterizado pelas
relações dos valores de cultura e dos sistemas utilitários (econômico, técnico) com fatôres
propriamente materiais.” (Cf. Azevedo, 1954:159) A função responsável pela coesão
interna das sociedades, ou pela transmissão do “padrão” é a educação, portanto, o lugar da
essência da cultura.
Retomando a idéia de síntese proposta por Azevedo,
exposição ressumidíssima, quase esquemática, que arrisca-se a embaraçar-se na
obscuridade ou a tomar um caráter superficial, se não foi precedida, na sua lenta
elaboração, por prolongado esfôrço analítico para apanhar, em cada época, e
relativamente a cada uma das manifestações culturais, através do que passa, o

116
essencial, o que fica, não só pelo seu valor, autêntico e original, como pelo seu
poder de irradiação. (...) E a síntese ganha certamente em vigor e precisão à
medida que se desceu mais profundamente na sondagem dos acontecimentos,
retomando até às suas causas e descendo às suas conseqüências. (Cf.
Azevedo,1958:37)
Ou seja, a síntese, dentro do programa durkheimiano da Sociologia, deve procurar
nos fatos passados as causas do presente. Deve debruçar-se sobre o que “passa”, “o que
fica”, do passado no presente, os acontecimentos presentes que trazem em si o que
sobreviveu do passado. É sobre os problemas do presente, na perspectiva adotada por
Azevedo, que se deve operar a busca das causas no passado141.
A educação, neste sentido, faz-se, também, via segura de entrada, porque nela, em
seu estado atual, encontram-se as tradições, o que tem sobrevivido e tem se perpetuado do
passado no presente, assim como o modo pelo qual as mudanças introduzidas são
harmonizadas com os padrões da sociedade, dando continuidade a sua coesão.
Para o Autor,
como no período que se estendeu de 1926 a 1940, de agitações e efervescência
intelectual, muitas vezes em minhas elocubrações, como em meus projetos de
reforma da educação, meu pensamento se havia fixado em estudos brasileiros, foi-
me menos difícil de que a princípio cuidara, realizar o plano que esbocei d’ “A
Cultura Brasileira’”. (Azevedo,1958:16)
Os problemas propostos em “A Cultura Brasileira”, para a produção da síntese,
gestados no ambiente de agitações e efervescência intelectual, refletem a busca, no
passado, das explicações e interpretações para o Brasil “presente”. A escolha de seu tema
e da via de acesso metodológica para a análise e interpretação de seu tema são frutos das
próprias condições de produção do período em que a obra foi escrita. As suas escolhas,
assim como sua análise do presente, que conduzirá à busca das causas no passado, são

141
Para Azevedo, se a Sociologia procura nos fatos passados a determinação dos fenômenos presentes, não
o faz como a História: “tem por fim, não reconstituir o passado com suas condições de tempo e de lugar
preciso (o que compete á historia), mas observar á luz dos documentos, as reações e os processos sociais
que os quadros historicos revelam, as atitudes e o comportamento dos grupos sociais, cujo estudo, nas
sociedades atuais, póde e deve ser feito pela observação direta.(...) A observação indireta (ou metodo
historico) póde, no entanto, contribuir não sómente para a explicação de evolução das sociedades humanas,
através do estudo das sequencias naturais historicas dos acontecimentos, como tambem para a explicação
sociologica que consiste exclusivamente, como quer Durkheim, ‘em estabelecer relações de causalidade,
quer se trate de ligar fenomenos á sua causa, quer se trate, ao contrario, de ligar uma causa a seus efeitos
uteis’”. (Cf. Azevedo, 1935:290)
117
legitimadas por sua própria atuação no campo da Educação, como educador e sociólogo
que procura introduzir o proceder científico nos trabalhos intelectuais do Brasil, e por seu
próprio testemunho, como político que participa ativamente do embate pelas reformas
educacionais.
Em seus comentários ao lançamento da obra de Fernando de Azevedo, Emílio
Willems considera:
Mesmo hodiernamente procura-se explicar, não raro, determinadas situações
culturais pelas fraquezas da “raça”, pela mestiçagem, pelo clima, etc.. A leitura
da parte do livro que F. de Azevedo dedicou ao estudo da transmissão cultural
confirmou mais uma vez a minha convicção de que todos os supostos ou reais
“defeitos” do nosso sistema cultural se prendem direta ou indiretamente a certos
fatos do sistema educacional passado ou presente (...) . (Willems,7/12/1943)
Em sua leitura, Willems destaca dois aspectos fundamentais da obra: por um lado,
a busca, no passado, para as explicações dos problemas presentes, que sendo clarificados
poderiam ser resolvidos e, por outro lado, da proposta da educação como principal via
para o entendimento dos problemas do presente e, talvez de sua solução. - numa
perspectiva compartilhada por outros “pensadores” do Brasil.
A Cultura Brasileira é organizada a partir da perspectiva dos problemas do
“estado atual” da educação, daí o título pensado para a monografia apresentada a CCN -
“A Cultura e a Educação no Brasil - origens, desenvolvimento e estado atual”.
A periodização do trabalho - das origens ao estado atual - carrega a idéia de busca,
nas “origens”, das causas dos problemas do estado atual, tal qual indica Willems.
A prática estabelecida por Azevedo na produção de seu trabalho, de ir ao passado
para buscar as causas do presente, é renovada na segunda versão de sua obra. Dez anos
depois da primeira edição, o Autor empreende uma revisão e ampliação dos estudos sobre
a cultura brasileira142. A periodização do trabalho permanece a mesma das origens ao
estado atual - porém isso implica em modificações na medida que a análise se estende até
1953, quando incia a revisão da obra. As modificações perpetradas na 3a edição
caracterizam-se pelas atualizações dos dados e dos “acontecimentos” políticos, que
passam a constituir “estado atual” da cultura e da civilização brasileira143. O Autor serve-

142 a
Ver Anexo - Modificações da 3 Edição d’A Cultura Brasileira.
143
Para uma análise mais aprofundada das moficações, seria necessário verificar mais detalhadamente as
críticas à obra feitas ao longo dos dez anos que separam as versões. As possíveis modificações operadas por
118
se dos novos dados para reiterar as interpretações que havia produzido na versão anterior,
sem modificá-las, sem fazer supressões das considerações ou análises estabelecidas
anteriormente. A bibliografia é atualizada assim como os dados relativos à economia, à
demografia, aos números de escolas, faculdades, etc144. Aqui e ali aparecem novas
informações, principalmente em relação ao final da década de 40, porém, a interpretação,
a lógica que organiza a argumentação, a estrutura do texto e as conclusões permanecem
intactas.
No Prefácio à 3a edição, a “grande” modificação da nova versão, descreve o
momento de sua produção, o locus da obra e a perspectiva de análise adotada. Alerta o
leitor para a sua importância, para colocá-lo a par da dimensão que a obra assumiu no
momento em que foi lançada. No prefácio, ainda, Azevedo explica as principais
características do trabalho e destaca a perspectiva analítica que adota. O prefácio torna-se
uma espécie de “guia”, na medida que explicita o modo como a obra deve ser lida, do
ponto de vista de sua importância e do ponto de vista de sua estrutura. Nele, Azevedo
reitera sua interpretação do presente e do passado, destacando a sua cientificidade, e o seu
impacto como argumentos de legitimidade 145.
Os dados do “estado atual”, que são incluídos na segunda versão, corroboram a
hipótese de que a perspectiva de periodização está centrada em marcos que não os
políticos. Os marcos políticos parecem compor uma referência paralela à periodização
principal. Apesar de sua presença constante no estudo - a Colônia, o Império, a República,
a Revolução de 30, o Estado Novo etc. - a principal periodização estabelecida pelo Autor
tem como referência o modo como caracteriza o presente - a partir do que entende serem
as leis da evolução social. E este presente é analisado a partir da óptica da educação que,
por sua vez, pode torna-se referência para as periodizações: 146.

Azevedo na segunda versão em função às críticas poderiam, através de um estudo desta natureza, ser
clareadas. Em relação a esta questão, levanto a hipótese de que uma das modificações introduzidas pelo
Autor, no capítulo “Psicologia do povo brasileiro”, onde minimiza as conclusões sobre o caráter do
brasileiro, podem ter sido feitas em função a crítica de Dante Moreira Leite em trabalho O Caráter Nacional
Brasileiro.(1969)
144 a
Na 1 versão, Venâncio Filho auxilia Fernando de Azevedo no “recolhimento dos dados e na
a
organização da bibliografia. Para a 2 versãoValdemar Cavalcanti, funcionário do IBGE, fornece os
elementos de atualização dos dados. Ver Cartas de Cavalcanti a Azevedo (1953-1954)
145
Comentando as sucessivas edições que obteve a obra, em diferentes línguas, escreve: “a procura
constante no país e no estrangeiro, testemunham a simpatia com que foi acolhida e já permitem apreciar a
largueza do campo que se abriu à sua influência e penetração.” (Azevedo,1958:13)
146
Nos dois primeiros tomos os períodos políticos - colônia, período Pombalino, Regência, Império,
República, etc. - aparecem em todos os capítulos analisados sob o enfoque do tema proposto - trabalho
humano, vida literária, etc.. No terceiro tomo, os períodos políticos estão sob o enfoque da educação e são
119
Para ele,
Se nessa síntese sôbre a cultura e a educação no país, o quadro geral é histórico,
êle não se constituiu sôbre o plano cronológico, estreito, dos puros historiógrafos,
mas, ao contrário, com espírito sociológico, de análise e de interpretação, que nos
permitisse desprender da rêde complexa dos fatos, iniciativas e reformas, o
movimento de idéias e os fenômenos mais significativos que nos parecem dominar
a educação nas diversas fases de seu desenvolvimento. Nesse estudo analítico e
genético, em que se procurou remontar às origens das instituições e estabelecer,
através de sua evolução, as tendências da educação moderna, fixaram-se o
caráter da cultura brasileira, suas relações com o estado social de cada época e
as influências europeizantes, geralmente tão retardadas, que sôbre ela exerceram
as correntes gerais do pensamento no mundo ocidental.(Azevedo, 1958:tomoIII -
219)
Partindo da análise da educação do estado atual, o Autor pode estabelecer as
características da tradição que a compõe e buscar sua gênese no passado, pode também
verificar quais as mudanças que foram operadas na tradição e como se deu a resistência a
essas mudanças e como a sociedade se adaptou a elas.
O que compõe a tradição brasileira, o que caracteriza a cultura desde sua gênese, é,
para o Autor, a educação jesuítica, humanística e literária, que se propagou, no tempo e no
espaço, conformando a essência da cultura brasileira. Mesmo quando outros tipos de
“influências” ou de inovações são introduzidas no Brasil, acabam por ser “pasteurizadas”
pelas tradições, sem causar mudanças profundas na essência da cultura e da educação.147
Para o Autor, da manutenção da tradição depende o equilíbrio da sociedade, a sua
continuidade como organismo social. A introdução de inovações, tanto tecnológicas
quanto no campo do conhecimento, poderiam desequilibrar a sociedade e desintegrá-la, na
medida que esta pode perder, com as inovações, a sua consciência coletiva, a sua

descritos minuciosamente em cada um dos cinco capítulos: “O sentido da educação colonial”, trata do Brasil
colônia até a Chegada da Família Real; “As origens das Instituições Escolares”, trata do período entre a
estada de D. João VI até o final do II Império; “A Descentralização e a Dualidade de Sistemas”, trata da I
República até a Revolução de 1930; “A Renovação e Unificação do Sistema Educativo”, trata da Revolução
de 1930 até o Estado Novo; “O Ensino Geral e os Ensinos Especiais”, trata do Estado Novo até o “estado
atual”.
147
Azevedo descreve a cultura do Brasil: “Tôda a cultura brasileira, no período colonial como no século
XIX, está nos lineamentos que dela traçaram os jesuítas, com o seu notável ensino humanidades, de efeitos
tão profundos e persistentes que, longe de se apagarem, durante a sua ausência de mais de 80 anos (1759-
1843), se fizeram sentir fortemente, secundados pelas influências francesas, através do Império e
readquiriram um vigor novo, em parte no período republicano.”(Cf. Azevedo,1958:220)
120
identidade coletiva. A introdução de inovações pode, portanto, provocar a desordem
social e essa, o fim de uma determinada sociedade. No Brasil,
Êsse tipo de cultura geral que vinha se desenvolvendo desde o alvorecer da
sociedade colonial até o crepúsculo do Império, ou, mais rigorosamente, do
século XIX, correspondia não só ao ideal da época (século XVI e XVII) como às
próprias condições sociais e econômicas do meio a que se transferia e que, se não
a determinaram, lhe prepararam um clima favorável ao seu desenvolvimento. A
cultura humanística, que nunca foi democrática, satisfazia aos gostos de uma
aristocracia rural e da burguesia urbana, que nela procuravam exatamente êsse
princípio de refinamento ou de qualidade, inerente a tôda cultura superior, e com
que se marcava mais fortemente as distinções de classe. (Azevedo, 1958:223)

A sociedade organizada hieraraquicamente, no Brasil, tem que necessariamente,


segundo o Autor, pensar-se como tal, estruturando suas tradições nos mesmos moldes que
estrutura suas relações econômicas, políticas e sociais. A tradição, portanto, acompanha,
no mesmo compasso, os outros fatores ou fenômenos sociais.
Por isso, Azevedo atribui à tradição a função de “freio social”, capaz de, através de
sua resistência às inovações, absorvê-las de modo que se tornem a nova tradição,
conduzindo as mudanças na ordem, sem que o desequilíbrio provocado necessariamente
pelas inovações, chegue a ser fatal para o organismo social. (Cf. Azevedo,1954:147). As
inovações, por outro lado, são necessárias para a evolução das sociedades, porque sem
elas não há o desenvolvimento da civilização, ficando a sociedade estagnada, porém as
inovação se dão conforme se dão as mudanças estruturais.
A educação, lugar da transmissão das tradições, é conservadora por sua própria
função social. Por isso, quando a sociedade entra em crise - ou há uma intensa renovação
de sua estruturas - a educação é o lugar onde a crise se dá de maneira mais intensa, tendo
parte de seus fundamentos e conteúdos desagregados. (Cf. Azevedo, 1954:153)
As idéias novas e as correntes de renovação no campo da educação, por sua
própria função, aparecem sob forte pressão, de fora para dentro, de fatores econômicos,
políticos, culturais e, às vezes, “por movimentos no interior do próprio grupo,
determinado pela ação criadora de individualidades.” Porém, estes movimentos
renovadores são fruto das transformações que estão se operando no sistema social geral.

121
Os indivíduos espelham as transformações que são gestadas lentamente nos períodos
anteriores às modificações148. (Cf. Azevedo, 1954:148)
Em períodos em que há intensas mudanças nas sociedades, o equilíbrio social se
rompe e dá lugar às crises sociais (períodos críticos) que podem ser provocadas por: “1)
as crises econômicas; 2) os contatos com grupos de culturas diversas e, portanto, as
diferenças de nível e de aspectos de duas civilizações, e 3) a ação de individualidades
(...)” (Cf. azevedo, 1954:147)
A evolução é constituída por períodos orgânicos ou de equilíbrio, seguidos de
períodos críticos ou de desequilíbrio, que podem levar a novos períodos orgânicos ou à
desintegração da sociedade. O cientista deve, portanto, reconhecer na evolução da
sociedade estudada as características específicas de cada período.
Para a análise da evolução do Brasil, Azevedo reconhece no seu presente o
período crítico que todas as a sociedades sofrem:
Nesse período crítico, profundamente conturbado, mas renovador e fecundo, que
sucedera a um longo período orgânico, de domínio da tradição, e das idéias
estabelecidas, a vida educacional e cultural do país caracterizou-se pela
fragmentação do pensamento pedagógico, a princípio, numa dualidade de
correntes e depois numa pluralidade e confusão de doutrinas, que mal se
encobriam sob a denominação genética de “educação nova” ou de “escola
nova”, suscetível de acepções muito diversas. (Azevedo, 1958: tomoIII-179)

A crise da educação das décadas de 20 e 30 é, portanto, sinal das mudanças que


vinham ocorrendo nas estruturas da civilização brasileira. A crise é conturbadora na
medida que os valores, as tradições e as instituições estão descompassadas com as
estruturas sociais e não podem mais traduzi-las e pensá-las como é sua função. Porém, é
um momento renovador porque pode, conforme as mudanças operadas na própria cultura,
conduzir a sociedade ao progresso.
As mudanças que levam o Brasil ao período de crise são provocadas, segundo o
Autor, pela “pressão de causas econômicas, sociais e políticas, e dessa fermentação de
idéias que, depois da guerra de 1914, se alastraram por todos os domínios culturais”. As
causas são:

148
“De fato, por mais que se queira reduzir a esfera de sua influência, não se pode negar a priori o efeito
das iniciativas individuais que, entrando na trama dos acontecimentos, não só constituem objeto de
investigação histórica, mas são suscetíveis de estudos do ponto de vista estritamente sociológico.” (Cf.
Azevedo,1954:149)
122
A mobilidade e as variações da população, devidas não só às correntes
imigratórias, mas às próprias migrações internas, especialmente para a região
meridional; o surto de industrialismo dos Estados do Sul e, sobretudo, São Paulo,
para onde se deslocara o centro de gravidade demográfica do país (...); as
evoluções da vida econômica e das agitações de idéias que se propagavam da
Europa e dos Estados Unidos, acarretaram transformações da mentalidade ,
como deviam determinar as de instituições e crenças da vida brasileira, criando
uma atmosfera francamente revolucionária nos grandes centros urbanos.
(Azevedo, 1958:tomoIII, 167)
As mudanças estruturais, portanto, criam uma “atmosfera” de mudança, onde as
tradições podem ser questionadas e o lugar de suas certezas é substituído pelo conflito do
velho frente ao novo, do tradicional frente ao moderno. A evolução brasileira é marcada
por dois períodos distintos: da colonização até 1930 - cujas tradições são estabelecidas e
perpetuadas, sem conflitos, pelas instituições educacionais e pela própria organização
social; e de 1930 em diante - onde ocorrem mudanças profundas na sociedade e com elas
há a possibilidade das tradições serem postas em xeque e renovadas.
As referências políticas servem, na interpretação do Autor, para verificar as
continuidades das estruturas hierarquizadas, das relações econômicas e das tradições que
são forjadas pela sociedade para se pensar e se manter na ordem estabelecida, até dado
momento. Na Revolução de 1930, quando se instala a crise, surge a real possibilidade de
mudança. A educação, neste sentido, pode fornecer a periodização para a síntese da
evolução brasileira porque é o lugar onde tanto as continuidades quanto as mudanças se
fazem sentir de modo mais radical. Enquanto na política as mudanças podem ser
superficiais - na forma apenas - e por isso aparentes, na educação, pelo contrário, elas se
fazem profundas, refletindo as novas condições sociais, econômicas, morais e políticas149.
Desvelam, assim, a essência das transformações e a força das tradições.
É nos momentos de crise que a sociedade incentiva seus intelectuais a estudarem
os problemas, descobrirem suas causas, para encontrarem, através da ciência, as soluções,

149
Para Azevedo à crise “sucedem-se as reformas escolares de larga envergadura, ou, como conseqüência
imediata das mudanças de estrutura social, econômica e política (como nos casos da Rússia, México,
Alemanha e Itália), partindo de cima para baixo, ou preparadas no interior do próprio grupo pedagógico e
realizadas por inovadores ou reformadores que, tomando atitude revolucionária, conseguem implantar, em
circunstâncias especiais, como no Chile e no Brasil, por exemplo, uma nova política de educação”.”(Cf.
Azevedo, 1954:153)
123
que garantam a sua refuncionalização, de modo a perpetuar o próprio organismo social e
evitar seu desaparecimento.
Cada um dos períodos, orgânico e crítico, produz seus tipos sociais
correspondentes, que, no domínio espiritual, organizarão a sociedade, que darão vida à
moral que circula entre seus indivíduos, modelando-os. Na educação, os tipos de
educadores são:
a) o formador, tipo autêntico de educador, modelador de caracteres e de almas,
que, não sendo exclusivo dos períodos orgânicos, prevalece nessas épocas em que
as sociedades atingiram um alto grau de consistência ou de unificação e b) o
reformador, tipo que encarnando as idéias novas, rompe com as tradições e se
caracteriza pela audácia de pensamento, pela liberdade de juízo e pelo ímpeto da
ação. São os reformadores que dominam nas crises sociais e revolucionárias, nos
períodos críticos, em suma. (...) Entre o formador e o reformador, situam-se os
“precursores” que constituem tipos intermediários, e assim, chamados porque, no
domínio educacional ou em quaisquer outros da vida social, percorrem, às vezes
a séculos de distância, as doutrinas e idéias dominantes mais tarde, criando
sistemas ou embriões de sistemas novos que não encontram, em sua época, as
condições favoráveis ao seu pleno desenvolvimento. Os percursores surgem nos
meios sociais e nas épocas em que se acham os germes de determinada teoria ou
se criam as doutrinas de que chegam a adquirir a intuição e a formular alguns
princípios com mais ou menos nitidez e precisão. (Grifos do Autor. Cf. Azevedo,
1954:152)
Os jesuítas são, portanto, na fase cuja tradição brasileira é criada e perpetuada sem
grandes conflitos, os “formadores”: conseguem manter a unidade cultural brasileira, na
pluralidade de culturas e na diversidade do território nacional. Dominam a educação
durante todo o período orgânico. Os Pioneiros da Educação Nova, que iniciam as
reformas das décadas de 20 e 30 são os reformadores, que munidos das novas idéias,
rompem a tradição e dão início às mudanças necessárias para o progresso social. Ainda,
entre os dois tipos, Azevedo indica, em sua interpretação, os precursores como Rui
Barbosa, que tentam imprimir mudanças no seio dos sistemas educacionais, mas são
neutralizados pelas próprias condições estruturais da sociedade.

124
Identificando a si e ao seu grupo como os reformadores, e o período em que agem
o de crise social, pode transformar-se na referência para a periodização, indicando como
marco a Reforma que empreende no Distrito Federal.
Dentro desta perspectiva, constrói a identidade de seu grupo, amalgamando os
diferentes conteúdos das reformas sob o rótulo da renovação. A oposição aos renovadores
é, portanto, identificada com a marca da defesa da tradição ou da conservação - “aqueles
que reduzem-se à aceitação consciente e à transmissão fiel da herança social ou dos
valores estabelecidos”. Constitui a bipartição do movimento educacional da décadas de 20
e 30, segundo o que entende ser característico dos períodos de crise social. O que está fora
das posições indicadas constitui a “zona de pensamento perigoso”, também típica dos
momentos de crise, que pode levar, se generalizada, a sociedade a sua desorganização150 e
não ao progresso.
É no modo como compreende o presente, como constitui uma tipologia - dos
grupos, dos embates e das reformas - que, Azevedo, dá significado para a crise do Brasil,
em seu “estado atual”, e busca suas causas no passado, assim como as suas tendências
futuras151. As “leis gerais”, verificadas “cientificamente” na Sociologia Educacional,
moldam a interpretação de Azevedo do presente e lançam as bases para a sua
reconstrução do passado - para o entendimento das transformações e das permanências
que constituem a cultura brasileira no momento da crise.
A reconstrução da evolução da cultura de um determinado organismo social, por
um lado, tem sua especificidade, sua peculiaridade, sua história. Por outro, está submetida
às leis gerais da evolução de qualquer sociedade, de qualquer cultura. O método científico
da Sociologia tem que açambarcar essas diferentes perspectivas do processo histórico. A
educação, portanto, é via de acesso segura para a análise e interpretação, por suas

150
Azevedo considera: “A zona de ‘pensamento perigoso’ que existe em qualquer sociedade e que, variando
conforme as épocas e os lugares, tende sempre a ampliar-se, nos períodos de crise, de mudança e de
transformações sociais. A zona de pensamento perigoso, estendendo-se, ameaçava abranger agora, dentro
das fronteiras, as aspirações da ‘escola nova’ e, de um modo geral, as novas idéias de educação. E mais
ainda, o próprio pensamento, o espírito crítico e a liberdade de juízo. (...) “O pensamento também, - o que
não se reconhece com a mesma facilidade, - ainda quando existe censura, é causa de transtornos e, em
determinadas condições, perigoso e subversivo. Com efeito, o pensamento é agente catalisador capaz de
desagregar a rotina, de desorganizar os costumes, de abalar a fé e propagar o ceptismo’”(Cf. Azevedo,1958:
tomoIII,180).
151
Para o Autor podem existir dois tipos de reformas educacionais: aquelas que se fazem de “cima para
baixo”, são promovidas por ação vitoriosa de grupos ou de grandes políticos, que chegando a uma ditadura
de minorias, ajusta a estrutura pedagógica - são reformas totais ou nacionais; ou aquelas que são parciais ou
gerais, locais ou nacionais, “cujo sucesso definitivo depende, porém, da adoção da política geral de que faz
parte e em que está contida esta nova política de educação.” (Cf. Azevedo,1954:153)
125
peculiaridades e suas funções dentro do organismo social, possibilitando ao investigador
apanhar as diferentes dimensões que devem constituir seu estudo.
A síntese possível é o produto da análise metódica que, a partir do específico,
apanha o que é geral, o que traduz a essência da evolução de uma cultura. É o retrato
possível de determinada sociedade, que mesmo sendo provisório, dada a possibilidade de
novas descobertas, traduz sua realidade objetiva e sua evolução.

126
As Fontes

“Trata-se de um livro de síntese,


enquadrando-se, portanto, dentro das
preocupações mais atuais do país. Com
efeito se, de uns anos para cá as
monografias se multiplicaram, sente-se,
ao mesmo tempo, necessidade de corrigi-
las por visões de conjunto”152 .

A proposta de fazer de A Cultura Brasileira uma obra que fosse “a um tempo


análise e interpretação social da cultura brasileira e um vigoroso trabalho de síntese”, “das
origens” ao seu “estado atual”, dentro de um programa científico, dependia, para
Azevedo, de um método “sólido” que permitisse as observações fundadas na objetividade.
A obra de síntese é definida, por Azevedo, como aquela que tem duplo objetivo:
“unificar os conhecimentos dispersos até hoje nos trabalhos de detalhe”; “abandonar tudo
o que é secundário, inexpressivo, acessório, para fixar o essencial e indicar as grandes
linhas do desenvolvimento”. (itálicos do Autor). Portanto, do método também depende a
possibilidade de avaliar objetivamente o que é o “principal” e o que o é “detalhe”, para
que a exposição não se “embarace” na “obscuridade” ou tome um “caráter de
superficialidade”. (Cf.Azevedo,1958:37)
A operação sintética que se faz processo de unificação dos trabalhos de detalhes se
dá sobre aquilo que já foi produzido por outros. As condições para a produção da síntese
se encontram, segundo o Autor, na profusão dos trabalhos de detalhes ou nas monografias
especializadas. Ao expor as dificuldades encontradas no processo de produção d’A
Cultura Brasileira, explica:
De todas as dificuldades em que esbarramos na elaboração dêste livro, não foi,
porém, a menor a insuficiência, em alguns casos, ou a absoluta falta, em outros,
de monografias especializadas. Fôssem numerosos os trabalhos de detalhes,
devidos a especialistas, que tornassem possível uma tentativa de síntese, e o autor
não teria por tarefa senão explorar os dados assim recolhidos para restaurar a
imagem verdadeira, a imagem profunda da história da cultura nacional em todos
os seus aspectos.(Azevedo,1958:37)

152
Roger Bastide. A Cultura Brasileira. Diário de S. Paulo, 1o de outubro de 1943.
127
Uma das tarefas do sociólogo é realizar a organização dos conhecimentos
específicos em grandes quadros gerais que reconstróem o real, que foi desconstruído pelas
ciências específicas e pelos trabalhos de detalhes153. Portanto, a síntese da cultura se faz
sobre o conhecimento produzido na Economia, na História, na Geografia etc., agrupados
em torno do exame de problemas ou de um tema, com um método específico que precede
a lógica da unificação. Para Azevedo,
não podem faltar a quem se proponha traçar uma síntese, um horizonte histórico
bastante largo, um sentido vigoroso dos grandes problemas e uma consciência
profunda da complexidade e interdependência dos fenômenos sociais, portanto, da
ligação estreita dos fatos e das atividades especìficamente culturais com os outros
fenômenos sociais de categorias diferentes. (Azevedo,1958:39)

A síntese de A Cultura Brasileira unifica as informações, reconstruindo a


totalidade da realidade social a partir dos problemas que são suscitados pela análise da
cultura e através do método que a conduz. Para o Autor, seu trabalho
não traz documentos inéditos, de origem direta, nem o autor se havia proposto a
vasculhar arquivos, para exumar do esquecimento velhas peças documentárias.
Mas, se nova não se pode considerá-la sob êsse aspecto, é um trabalho original,
quer pela concepção e unidade de plano, quer na sua construção que se ergue
sôbre a base sólida dos dados, e informações colhidas na mais larga investigação
de fontes primárias e da literatura histórica, como em toda a espécie de
monografias e trabalhos de detalhes, quer ainda na apresentação, coordenação e
explicação dos fatos, examinados à luz da observações pessoais e de leituras
longamente meditadas. (Azevedo,1958:17)
A síntese de Azevedo é, então, produzida a partir dos trabalhos de pesquisa de
outros autores que fornecem as informações e dados, cuja articulação é operada por ele,
construindo uma unidade ordenada pelo recorte temático, bem como, pelo método de
investigação.

153
Em Princípios de Sociologia, Azevedo considera que “na impossibilidade de abranger a totalidade da
realidade social e para se manterem nos limites dos fatos observáveis, e melhor poderem domina-los (limitar
para conhecer) os investigadores têm-se especializado cada vez mais, explorando de preferencia no vasto
campo dos estudos sociologicos um desses setores (fatos economicos, religiosos, juridicos, etc.), que
integram a ciencia social, e em cujos estudos respectivos sejam denominados sociologia economica
religiosa, juridica, etc., ou ciencias sociais particulares, aparece a unidade da sociologia, que é seu objeto.”
(Azevedo,1935:52)
128
As informações, segundo Azevedo, podem ser unificadas ou articuladas na síntese,
por serem fruto de trabalhos científicos, ou seja, sem ou quase sem subjetividade. O
estudioso que pretende articular a síntese tem como tarefa fundamental, justamente,
verificar a procedência dos dados e analisar se realmente são frutos de uma ciência
“sólida” e “segura”.
Segundo o Autor, a sua síntese, articuladora dos dados selecionados foi
empreendida “depois da recusa preliminar, mas refletida, de toda ou qualquer informação
de origem suspeita ou parcial, imputável de interesses ou paixões ou por perspectivas
deformadas por concepções ideológicas.” (Cf.Azevedo,1958:17). Que critérios Azevedo
utiliza para separar as informações apaixonadas das que são produzidas cientificamente?
Como Azevedo conduz a operação que desarticula a informação da interpretação original
para utilizá-la em sua análise?
A  hipótese  a  ser  explorada  é  de  que  Azevedo,  em  sua  síntese,  utiliza  os  fatos  
construídos   por   outros,   considerando-­‐os,   não   como   construções   a   partir   de   um  
determinado  ponto  de  vista,  mas  como  a  verdade  que  pode  ser  alcançada  por  meio  
de   um   método   científico   objetivo.   E   esse   método   está   nos   avanços   da   Sociologia,   por  
isso  Azevedo  pode  utilizar  dois  autores  com  pontos  de  vista  diferentes,  contanto  que  
os   fatos   (ou   dados)   sejam   diferenciados   das   análises   e   explicações   impregnadas   de  
“ideologia”   ou   “interesses”.   Para   legitimar   a   operação,   que   transforma   as   obras  
interpretativas   em   obras   informativas,   é   necessário   que   Azevedo   construa   um  
método   para   desentalar   as   informações   e   reorganizá-­‐las   (considerando   que   a  
operação   se   dá   dentro   de   seu   programa   científico).   Como   Azevedo   valida   essa  
operação?  
  O   universo   das   fontes   utilizadas   por   Azevedo   é   bastante   largo.   As   obras  
citadas   não   pertencem   a   uma   única   “escola”   de   pensamento   ou   mesmo   não   estão  
dirigidas  a  um  tema  ou  a  um  tipo  de  problema.  O  espectro  das  obras  é  bastante  largo  
e   o   Autor   serve-­‐se   de   fontes   que   aparentemente   não   se   compatibilizam,   tanto   do  
ponto   de   vista   teórico   como   do   ponto   de   vista   interpretativo.   A   suposição   de   que  
Azevedo  não  tem  a  intenção  de  construir  uma  síntese  a  partir  do  ecletismo  indica  a  
necessidade  de  verificar  a  lógica  pela  qual  organiza  suas  fontes.    
  Para   R.   Bastide,   a   originalidade   da   obra   de   Azevedo   é   total   pelo   modo   como   é  
encarado  o  problema  da  cultura  do  Brasil,  que,  para  ele,  é  novo.  Bastide,  em  artigo  
que  comenta  a  obra,  entende  que  
129
Há duas maneiras de fazer uma síntese: à primeira poder-se-ia chamar de
justaposição e consistiria em fazer uma classificação dos principais aspectos
culturais, tratando-os sucessivamente, sem uma idéia de conjunto; teríamos,
assim, uma sociografia da cultura. A outra maneira consiste em agrupar as
questões em torno de uma idéia, em examinar os problemas com um método
específico, com um espírito próprio: em resumo, sob um certo ponto de vista. Este
segundo método, a nosso ver, é o único merecedor do nome síntese, pois a síntese,
como o próprio nome indica, não é pois uma enumeração, mas uma unificação. A
originalidade profunda e essencial do livro de Fernando de Azevedo reside aí,
nesse poder de reconstrução e de unificação. (Bastide,1/10/1943)
Os interlocutores de Azevedo, como R. Bastide, consideravam a operação
metodológica do Autor não só legítima como necessária, destacando sua importância e
sua originalidade. Bastide não vê na unificação das obras utilizadas em A Cultura
Brasileira qualquer espécie de ecletismo que pudesse deslegitimar a cientificidade que a
ela imputa Azevedo. Indica-nos um caminho para o entendimento do método azevediano:
entender o modo como opera a unificação das fontes.
O trabalho com as fontes não tem o objetivo, de verificar o conteúdo das principais
obras que o Autor cita, mas de reconhecer os modos como articula e utiliza as obras - os
diferentes lugares que constrói, na lógica do texto, para a extensa bibliografia que o
compõe - os “pesos” e funções que a elas são conferidos pelo Autor, perquerindo, dentro
da sua própria perspectiva - da síntese articuladora das monografias e obras de detalhe - o
método que utiliza para produzir sua análise e interpretação da cultura e civilização
brasileira. A verificação do conteúdos das obras pode se tornar um caminho fértil para o
estudo da Sociologia proposta por Azevedo. Porém, essa espécie de estudo está muito
além das possibilidades desta dissertação. Em alguns casos, como o de Durkheim, que é
referência fundamental, alguns elementos da leitura operada por Azevedo são fornecidos.
Como o estudo também não pretende verificar se Azevedo procede uma leitura e
interpretação correta das obras utilizadas, não há qualquer espécie de crítica à apropriação
que efetuou. O estudo limita-se, portanto, a apresentar a lógica de utilização das obras no
texto154.

154
Fornecerei algumas informações sobre alguns dos nomes citados por Azevedo em Princípios de
Sociologia e em A Cultura Brasileira com o intuito de situar minimamente autores citados. Como nem
todos fazem parte do manual de Sociologia de Azevedo me limitei a dar as informações dos que ali estão.
130
Para que essa meta possa ser atingida é necessário verificar, na totalidade do
trabalho, os diferentes “tipos” de fontes e o modo como são citadas, os lugares onde
foram alocadas e quais os assuntos a que estão ligadas. A partir dessa verificação, as obras
são agrupadas segundo sua função, seu lugar no texto e os problemas que são analisados
por Azevedo, para os quais são “chamadas” a contribuir.
A Introdução é o capítulo em que o Autor define suas perspectivas, delineia a sua
investigação. As fontes, portanto, compõem a discussão teórica que confere a
cientificidade ao trabalho. As fontes, na discussão teórica, têm diferentes funções e
diferentes “pesos”:
- as que conformam o estudo do Autor e são colocadas em evidência;
- as que dialogam com suas opções teórico metodológicas - tanto as que o Autor
apresenta para defender o seu ponto de vista, como as que são alvo da discordância e da
crítica - e que têm um lugar menor no texto, na medida em que servem como porta-voz do
Autor, sem que suas teorias ou interpretações sejam apresentadas em seu corpo reflexivo.
Destaca-se da obra apenas a passagem em que o argumento ou a crítica são externados e,
portanto, demonstram a coincidência de críticas efetuadas pelo Autor e por outros;
- e as que são apresentadas apenas como força de argumentação, onde o conteúdo
da obra é desconsiderado, valendo apenas pelo tema, ou pelo campo em que cada uma
está inserida, formando em seu conjunto a zona de consenso teórica onde a perspectiva do
Autor é instalada.
- há ainda outro tipo de função estabelecida por Azevedo para as obras que cita em
seu texto: a de fonte de informação. Esse tipo é o mais recorrente e encontra-se em toda a
obra, com exceção da Introdução, cujo objeto da exposição é a teoria
A grande profusão de obras citadas, pela função e pelo peso que a elas é
concedido, revelam que o Autor não pretende usá-las indiscriminadamente, mas sua
organização é precedida por uma prática legitimadora da análise e da interpretação. Há
obras cuja presença demonstra a lógica da interpretação e delinea o método, os conceitos
e procedimentos; e há outras que demonstram a erudição do Autor, legitimando suas
opções teóricas e metodológicas - conhece um universo científico muito maior que a
teoria eleita e, por isso, sua escolha é consciente - e, ao mesmo tempo, essa profusão de
obras estabelece consensos teóricos que corroboram a legitimidade da análise. E há ainda
aquelas que utiliza apenas como fonte de informação sem se preocupar com seu conteúdo
teórico-metodológico.

131
Verifica-se que
- as obras conformadoras são da Escola de Sociologia Francesa e, portanto,
durkheimianas; estrangeiras servem para conformar a teoria e o método,
- as obras do consenso teórico, que vão constituir o terreno científico e da
interpretação, são predominantemente formadas por estrangeiros “desconhecidos”, com
raras excesões.
- as fontes informativas, que servem para fornecer as informações e
acontecimentos que são sintetizados na interpretação, são predominantemente obras de
autores brasileiros.

As Conformadoras

Na Introdução do trabalho, Azevedo define os conceitos, a estrutura e o modo pelo


qual pretende operar o exame de seu objeto. As fontes, neste capítulo, são articuladas para
servirem de urdume onde tece a análise e a interpretação. As fontes são trazidas para
informar o leitor das possíveis acepções que os principais conceitos - cultura e civilização
- possuem e quais dentre eles estão sendo utilizado na análise155. O principal objetivo do
Autor é diferenciar a acepção antropológica de cultura e civilização da acepção
sociológica. Serve-se das fontes para indicar as escolas às quais as acepções se filiam. Na
Antropologia: cita C.Wissler, E. B. Tylor e Balfour156; para a definição sociológica: cita:
Arbousse Bastide, A. Humboldt e Burckhardt157. Opta, ao final da discussão, pela
acepção sociológica, distinguindo sua análise de outras de caráter antropológico.
O conjunto de autores é trazido, por um lado, para subsidiar uma das questões
teóricas do trabalho que é, para o Autor, fundamental - da definição exata de seu
vocabulário depende a objetividade da ciência - e, por outro, para diferenciar o seu
programa de estudos de outros, a proposta de seu campo científico dos outros. Não
pretende, com a discussão, criticar os conceitos propostos pela Antropologia, mas

155
Cultura, para o Autor é “êsse estado moral, intelectual e artístico, ‘em que os homens souberam elevar-se
acima das simples considerações de utilidade social, compreendendo o estudo desinteressado das ciências e
das artes’” (Cf.Azevedo,1958:27). Civilização, para o Autor, é “a organização material, econômica, política
e social, os costumes e a vida espiritual de um povo”(Idem,1958:27)
156
Azevedo considera Balfour e E. B.Tylor colaboradores da escola Inglesa de Antropologia que se voltou
para o estudo da cultura e Wissler da Escola Americana de Antropologia. (Azevedo,1958:22-23; ver
também Idem1935:381,394)
157
Humboldt, segundo Azevedo pertencia a Escola do Determinismo Geográfico Alemã. Não há referências
de Burkhardt. (Azevedo,1935:335)
132
pretende determinar precisamente o objeto do ramo da ciência à qual se filia. Portanto,
deve diferenciá-lo dos objetos das ciências próximas à sua.
A definição do conceito é, na lógica do texto, a definição do objeto que o Autor
porá em exame158. As fontes, neste sentido, são apresentadas e articuladas para apoiar a
definição do objeto de estudo e para transformá-lo, ligando-o à realidade social, como
chave do conhecimento da evolução da sociedade. Concedem à definição e à articulação
dos conceitos, empreendida pelo Autor, a objetividade desejada. É a partir das definições
que explica a lógica de organização da obra. Porque é a partir da definição do objeto - da
delimitação do campo da investigação - que se constitui a possibilidade de construção do
método que se adapte à natureza peculiar dos fatos sociais. Portanto, é a partir da
constituição do objeto que se define a lógica de pesquisa e a lógica de exposição da obra.
(Cf.Azevedo,1985:267).
As fontes teóricas citadas não só são conformadoras de seu objeto, como também
da perspectiva científica em que o objeto, definido como tal, está inserido. Por um lado,
Azevedo as apresenta como sendo o seu próprio ponto de vista - definem por ele o objeto.
Por outro, o Autor parte das concepções das fontes - sobretudo E. Durkheim - para
construir através delas a perspectiva que pretende dar à sua obra - a necessidade de
estudar o Brasil dentro do próprio processo geral da civilização ocidental159. A própria
opção de partir da definição clara do objeto indica a fonte que delineia o programa
científico azevediano. A obra de Durkheim - definidora do método de investigação d’A
Cultura Brasileira, não só corrobora o ponto de vista do Autor, como também é a base na
qual está sustentado. O que Durkheim oferece a Azevedo é a lógica de sua investigação.
Para articular os conceitos de civilização e cultura, para introduzir o conceito de
educação e articulá-lo ao de cultura, assim como para demonstrar a fertilidade do estudo
da cultura realizado a partir da educação, Azevedo apoia-se em P. Fauconnet160, que
como Durkheim, desenha os contornos do programa metodológico de Azevedo.
Fauconnet, da mesma escola de Durkheim, como ele, delineia os preceitos científicos da
Sociologia, nos quais se apoia Azevedo.

158
Em Princípios de Sociologia, Azevedo, a partir de Durkheim, entende que: “nunca [o sociólogo] deve
tomar para objeto de pesquisa, senão um grupo de fenomenos anteriormente definidos por certos caracteres
comuns que apresentam um grau de objetividade.” (itálicos originais. Cf. Azevedo,1935:274)
159
Enquanto os outros autores produzem análises, Durkheim “ensina” e dá “lições” que devem ser seguidas.
Ver Azevedo,1958:33
160
Paul Fauconnet foi professor de Ciências, Educação e Sociologia na Sorbone. Era um dos principais
colaboradores de Durkheim.
133
Para reforçar as posições adotadas pelo Autor, outros pesquisadores vinculados à
escola Francesa de Sociologia são apresentados na sua argumentação como M. Mauss e
P. Arbousse Bastide161. É, portanto, a leitura de Durkheim e dos durkheimianos que
conduz as reflexões, conforma os conceitos e guia as operações metodológicas.
No primeiro capítulo da obra - Tomo I - que se caracteriza por enfocar as
descrições físicas do território e da “raça” que se estabeleceu no território, as fontes
conformadoras reaparecem, porém, com função crítica. Azevedo critica a teoria de Fr.
Ratzel162 através de Durkheim. Ratzel destaca a importância dos oceanos na formação da
civilização de um país, e é contraposto à Durkheim, que destaca a importância do
território e do modo como este é utilizado pela população, em detrimento dos oceanos.
Azevedo critica, portanto, as teorias que privilegiam o geográfico como fator
preponderante da civilização; e estende a crítica durkheimiana, com suas próprias
palavras, à teoria de J. Siegfried163, que também privilegia o território em detrimento da
cultura, como fator explicativo para as características de civilização da América Latina.
Partindo de Durkheim, Azevedo entende que “os fatos sociais não podem ser explicados
senão por fatos sociais”(Cf.Azevedo,1935: 276). Por isso, mesmo que o território e a raça
colaborem na explicação de uma determinada civilização, ainda assim os fatos sociais
devem se sobrepor a eles.164
A fundamentação teórica do primeiro capítulo limita-se a discussões das teorias
em torno da Sociologia e da História, onde Azevedo apresenta as fontes para marcar o
modo pelo qual delineia a sua interpretação - Durkheim é a fonte que lhe dá sustentação
na discussão, reiterando a perspectiva da Introdução.
Já no segundo capítulo, que trata da vida material que caracterizou o Brasil desde
suas origens e enfoca a evolução econômica do país, não há discussões teóricas. O único
indício de que as fontes conformadoras estão presentes, é o fato de o Autor inserir como
161
Marcel Mauss pertencia a Escola de Sociologia Francesa, sendo um dos principais colaboradores de
Durkheim. Era diretor da Revista da Escola, L’Année Sociologique. Publicou trabalhos com a participação
de René Hubert. Paul Arbousse Bastide era sociólogo da Escola durkheimiana. Veio para o Brasil com a
missão francessa da USP.
162
Fr. Ratzel, segundo Azevedo, pertencia a Escola do Determinismo Geográfico Francesa.
(Azevedo,1935:335)
163
Jules Siegfried foi professor da Escola Livre de Ciências Políticas e do Collège France. Escreveu no
domínio da Geografia Eleitoral. Tableau politique de la France de l’Quest sous la troisième République.
(1914)
164
Em Princípios de Sociologia, Azevedo opera a crítica as teorias deterministas a partir de Durkheim: “se
as representações coletivas transbordam a um tempo a biologia e a psicologia individual, não se pode
procurar a explicação dos fatos sociais, nem nos fatos puramente psíquicos, nem no fator etnico, que é de
ordem orgânico-psíquico: ‘os fatos sociais não podem ser explicados senão por fatos sociais’” (Cf.
Azevedo,1935:276)
134
alternativa analítica o método comparativo: estabelece comparações entre Brasil e EUA,
para discutir as diferenças de civilização entre os dois países, procedendo como havia
proposto Durkheim - “a experimentação indireta ou o metodo comparativo é o unico que
convem á sociologia”(Cf. Azevedo,1935:277 - ).
O capítulo seguinte, que se debruça sobre o problema das formações urbanas,
concentra um grande número de obras teóricas. Para introduzir a discussão sobre o fator
urbano como fundamental para o desenvolvimento cultural, na acepção empregada no
estudo, Azevedo retoma as teorias de Hansen e A. Weber, dando a elas uma unidade.
Porém, utiliza-se da teoria de Durkheim sobre a relação cidade/civilização para
estabelecê-las como complementares165. Mais adiante, em duas outras passagens do texto,
Azevedo cita L. Febvre e Vidal de la Blanche166 como porta-vozes de suas observações,
mais uma vez consolidadas por Durkheim. (Cf. Azevedo,1958:137-138)
É Durkheim que fornece, portanto, a base sólida na qual se consolidam as
observações de Azevedo; os outros autores acabam por ocupar outros lugares que, ao
serem comparados com o da Escola de Sociologia Francesa, ganham menor destaque e
importância, por serem articuladas por esta e não pelo que constituem em seu corpo
reflexivo.
No quarto capítulo, cujo tema é a evolução histórica e social do Brasil, a discussão
teórica enfoca o problema de produzir uma síntese das origens e da evolução das formas
de estrutura social e política da sociedade brasileira, dado que “os pequenos fatos podem
acabar por sobrepujar as tendências gerais.”(Cf.Azevedo,1958:148)
Para Azevedo,
se considerarmos a importância do papel que exercem os fatos físicos,
demográficos, econômicos e urbanos no processo da evolução social e política, as
grandes linhas desta síntese, tão útil se não necessária ao estudo de nossa
evolução cultural, já se destacam com uma tal nitidez que não será preciso mais

165
“Poderosos instrumentos de seleção social não só fazem atrair a si, como pensa Hansen, por uma seleção
por assim dizer mecânica, os melhores elementos do país, como também, além de selecioná-los, contribui
para fazer o seu valor, na observação de Weber, tornando atuais os méritos que eram senão virtuais e
‘superexcitando forças que, sem êsse estimulante, permaneceriam inativas e adormecidas. A civilização de
que elas são foco, não pode, escreve Durkheim, ser obtida por outro preço, e as cidades que determinam
essa superexcitação de energias, só pelo fato da concentração, não consomem, portanto, sem nada
produzirem: ‘o que custam à sociedade, é largamente compensado pelo que elas trazem.’” (Cf.
Azevedo,1958:116)
166
São considerados por Azevedo membros da Escola do Determinismo Geográfico Francesa.
(Azevedo,1935:33)
135
que desprendê-las dos fatos estudados, acompanhá-las no seu desenvolvimento e
apresentá-las com maior precisão, rigor e relevo.(Azevedo,1958:147-148)
Os acontecimentos políticos, nessa perspectiva, não devem sobrepujar as
tendências gerais e estas, por sua vez, devem ser traçadas pela evolução econômica,
demográfica e urbana. As sínteses produzidas pelos fatos ecconômicos, demográficos e
ubanos não oferecem a mesma dificuldade que os fatos políticos para serem produzidas.
A justificativa para essa observação, na qual apoia as escolhas dos fatos políticos e
sociais, é dada por A. Cournot167:
“Discernir no conjunto dos acontecimentos históricos fatos gerais dominantes,
que lhe formam como que a armadura ou a ossatura, mostrar como a êsses fatos
gerais e de primeira ordem se subordinam outros e assim em seguida até os fatos
de detalhe que podem oferecer um interêsse dramático, picar a nossa curiosidade,
mas não a nossa curiosidade filosófica.”(...) É êste também o nosso objetivo, ao
tentarmos definir, nos seus caracteres gerais e nas suas causas principais, o
movimento de nossa civilização. (Cf.Azevedo,1958:148)
É, então, sobre a fonte teórica, que Azevedo justifica a escolha, nas fontes de
autores brasileiros, dos fatos ou acontecimentos mais importantes. Por outro lado, são as
sínteses “facilitadas” dos fatos, econômicos, urbanos e demográficos que fornecem os
critérios para a produção da síntese dos fatos políticos e sociais. A lógica de organização
do Tomo I é fornecida, portanto, pela própria condição de produzir as diversas sínteses
que, no final, firmam a síntese geral: o território e a raça devem ser descritos para que se
possa compreender em que condições se deu o desenvolvimento da vida material do país;
a vida material, por sua vez, deve ser sintetizada para dar os contornos da síntese política
e social da sociedade em foco.
O sociólogo que produz a síntese, segundo Azevedo, deve levar em consideração
só os acontecimentos que “ajudam” a explicar as determinações dos fenômenos
presentes168. O sociólogo, quando dirige suas perguntas ao passado, o faz com o intuito de
buscar subsídios para as explicações dos fenômenos sociais que marcam a evolução de
167
Antoine Augustin Cournot, foi matemático, economista e filósofo francês. Escreveu Princípios
Matemáticos da Teoria da Riqueza, em 1838.
168
Para Azevedo, “Os fatos historicos, os acontecimentos, como a sagração de Clovis, em Reims, a batalha
de Waterloo, etc., são fatos de exemplar unico, estudados na circunstancia do tempo preciso, com o
concurso dos atores e das testemunhas, considerados eles mesmos como individuos distintos, ao passo que
as instituições, (o casamento, o ato de venda, etc.) são fatos multiplicados tirados em grande numero de
exemplares, comuns a um grupo social determinado e a todos os povos da terra e, portanto, vistos na sua
semelhança com outros.”(Cf. Azevedo,1935:165)
136
uma dada civilização. Considera, a partir de Durkheim, que “todas as vezes que de
quaisquer elementos, combinando-se, se desprendem, pelo fato da combinação,
fenômenos novos” é preciso conceber que “esses fenômenos são situados , não nos
elementos, mas no todo formado por sua união” (Cf. Azevedo,1935:269. italicos
originais). A História, nessa perspectiva, auxilia a identificar os elementos que estão se
combinando, fornecendo as pistas para que o sociógo produza a sua análise. Os
acontecimentos políticos, aqueles que não se repetem, devem ser estudados a partir dos
fenômenos econômicos, culturais, urbanos etc., quando se tornam elementos explicativos
das peculiares combinatórias daqueles fenômenos num dado estágio da civilização.
Para Azevedo, se a Sociologia procura nos fatos passados a determinação dos
fenômenos presentes, não o faz como a História:
a historia não só descreve os acontecimentos e os dispõe na sua ordem
cronologica, segundo as circunstancias de tempo e de lugar, estudadas, em
conjunção com os atores, “considerados como individuos distintos”, como
também procura explicá-los pelas causas e determinar-lhes os efeitos, no tempo e
no espaço; mas é a sociologia que procura obter a substancia do social, dada nos
fatos particulares considerados, elevando-se á enunciação de leis gerais e
tentando, portanto, a construção objetiva ou a expressão sintetica da realidade
social com os materiais dados na historia ou recolhidos pela observação direta.
Por outras palavras, a historia trata dos “acontecimentos” e a sociologia, de
“fenomenos”; um fato historico é um “acontecimento”, que não se reproduzirá de
novo, enquanto o fato social é um fato cientifico, um “fenomeno” que póde ser
reproduzido pela experimentação” .(negrito originais; Azevedo,1935:167)
A História, nessas condições, torna-se disciplina auxiliar da Sociologia,
produzindo os dados (acontecimentos) que serão analisados por esta. Os acontecimentos,
reordenados pelo método sociológico, transformam-se na síntese da evolução social de
uma determinada sociedade. Azevedo utiliza as fontes teóricas para diferenciar o objeto
da História do objeto da Sociologia, demarcando o campo de sua disciplina e o
diferenciando de outras. As observações inicias deste capítulo afirmam para o leitor a
exata diferença entre o que o Autor entende como um programa científico de estudar o
passado e um programa que, limitado por sua própria condição, pode apenas fornecer os
dados para a ciência.

137
Para o quinto e último capítulo do Tomo I, Azevedo reserva a discussão da
psicologia do povo brasileiro. Pela própria natureza polêmica do assunto, é o capítulo
onde mais se encontram referências teóricas. A discussão teórica se dá em torno das
possibilidades: de traçar o perfil psicológico de um povo; de verificar de que fatores esses
traços são fruto e qual é a constância dos traços averiguados. Os autores nos quais
Azevedo se apoia são Durkheim, Le Bras, Klineberg, Ribot e R. Hubert. Utiliza-os
para operar a crítica às teorias deterministas, principalmente a de Boutmy, e para afirmar
que os fatores sociais da civilização são fundamentais para conformação da psicologia de
um povo. Na mesma perspectiva, insiste na dificuldade de assinalar o caráter coletivo,
dada a variedade de influências que concorrem para modelá-lo. (Cf. Azevedo,1958: 189-
190).
Ainda sobre as obras teóricas utilizadas pelo Autor neste capítulo, é importante
observar que a discussão sobre o método e a possível produção de uma psicologia
coletiva, que se encontra entre as considerações finais, foram introduzidas na 2a versão da
obra. São elas, sobretudo, que tornam as características do povo brasileiro, descritas por
Azevedo, menos contundentes. A hipótese aqui levantada é a de que tais modificações
foram introduzidas com o propósito de “responder” a críticas de Leite169 à primeira
versão. Ao suavizar sua própria descrição e ao levantar o limite do método e, por
conseguinte da ciência, na produção de uma psicologia coletiva, esvaziaria às críticas de
Leite à sua operação sintética170.
A Escola de Sociologia Francesa exerce a função conformadora das discussões
teóricas operadas em A Cultura Brasileira; fornece também os conceitos principais e o
modo como devem ser articuladas. A síntese de Azevedo tem como guia metodológico a
escola durkheimiana e sobretudo Durkheim. É ela que marca a definição do objeto, o
procedimento científico e a forma expositiva do trabalho. As obras de Durkheim e de sua
escola são sempre apresentadas como balizadoras dos conceitos e justificadoras do
método. As obras teóricas também apresentadas em sua bibliografia são usadas para outra
função e, portanto, têm um “peso” menor perante as que conformam a obra.
Para R. Bastide, o que permitiu a Azevedo construir uma verdadeira síntese foi o
fato de seu livro ser um livro de Sociologia.

169
Ver capítulo I deste trabalho.
170
Um indicativo de que as alterações podem ter sido feitas em função das críticas de Leite é a nota 18 onde
Azevedo discute a teoria de Margareth Mead, fonte teórica de Leite. (Cf. Azevedo,1958:222)
138
É a sociologia que unifica e harmoniza a diversidade das questões examinadas. É
ela que fornece o plano do trabalho, que em cada parte, assegura a ordem na qual
os capítulos se dispõem, é ela que, no interior de cada capítulo cria a ligação das
idéias, o encadear do pensamento. Fiel ao método de Durkheim; porque só o
método sociológico seguindo as regras durkheimeanas podia fazer-nos passar da
filosofia à análise científica do problema.(Bastide,1/10/1943)
Bastide destaca a importância de Durkheim em A Cultura Brasileira, tanto como
concepção de análise da cultura, como para os procedimentos metodológicos que dão a
lógica e a unidade ao trabalho. A opção teórica de Azevedo, para Bastide, não é apenas
“profissão de fé” enunciada a cada início de seus capítulos, mas realmente embasa e
conforma os conceitos e procederes. Longe de ser uma construção eclética, a obra de
Azevedo é fruto de um método que conforma a análise à interpretação e o próprio modo
pelo qual o Autor concebe a articulação de suas fontes e a estrutura lógica de seu trabalho.
Um dos sinais da lógica expositiva constituída em A Cultura Brasileira é o fato
das fontes conformadoras se concentrarem no primeiro Tomo e estarem excluídas dos
outros. A teoria, na lógica da obra, acompanha os fatores da cultura, porém não
acompanha nem a descrição da cultura e nem a sua transmissão.

O Consenso

As fontes teóricas citadas em A Cultura Brasileira não têm apenas a função de


conformar a obra, qualificando-a conceitualmente. São “chamadas” por Azevedo para
cumprirem um outro papel: Azevedo introduz um grande número de obras no corpo de
seu texto que, articuladas à sua argumentação, demonstram a erudição do Autor,
reforçando sua argumentação, criando uma zona de consenso onde pode instalar seu
objeto e sua perspectiva interpretativa. A erudição é um artifício, uma estratégia de
comprovação de suas teorias e interpretações. Produz um efeito de autoridade,
neutralizando as possíveis críticas à obra, a medida que o Autor transita por um espectro
largo de autores e opta, a partir desse conhecimento, pelas “melhores” e mais “seguras”
interpretações, consolidando entre essas a sua.

139
Este “outro papel” é encontrado ao longo de toda a obra, porém é basicamente
recorrente no primeiro Tomo; por isso as considerações serão limitadas a este Tomo, o
que não significa, como no caso das fontes conformadoras, que se restrinjam a ele.
Retomando a Introdução d’A Cultura Brasileira, um dos problemas apresentados
por Azevedo é o de como a cultura - já definida - se articula ou aparece ou ainda é
influenciada pelos fatos sociais. Define no início da obra perspectiva pela qual tomara a
cultura como objeto de estudo. A. Niceforo é apresentado para justificar o método
articulador dos temas ou fenômenos que devem aparecer no estudo empreendido sobre a
sociedade e para servir de interlocutor na discussão empreendida pelo Autor, com outras
perspectivas de estudo do objeto171.
Três âmbitos do estudo são apresentados : a urbanização - como locus da produção
cultural, na medida em que é instrumento de seleção social; a sociedade brasileira - como
um fenômeno particular do processo de evolução da civilização em geral; a educação -
como recorte específico que dá acesso à compreensão do problema fundamental da
civilização brasileira em seu estado atual, ou seja, o descompasso civilização/ cultura.
Na primeira perspectiva, Azevedo apresenta diferentes teorias para demonstrar que
em qualquer uma delas, o resultado é o mesmo: a cidade é instrumento de seleção social
e, por isso, permite o desenvolvimento da cultura. Em sua argumentação, expõe:
As cidade, de fato, são poderosos instrumentos de seleção social, seja no sentido
de Hansen, para quem as cidades não fazem se não atrair, por uma seleção
mecânica, os melhores elementos do país, servindo para selecioná-los, sem
contribuírem, no entanto, para fazerem o seu valor; seja no ponto de vista de
Weber, que pensa, ao contrário, serem elas suscetíveis de tornar atuais os méritos
que não seriam senão virtuais172. (Azevedo,1958:31).

Seu interesse é o de expor o fato social, que considera ser a cidade; de construir o
fato social, que entende ser a urbanização. Para isso opera a articulação entre os autores
que lhe fornecerão o consenso. O consenso é produzido pelo que há em comum entre dois
autores, entre suas teorias ou interpretações - o que é exterior as teorias. O fato social não
pode depender das interpretações pessoais, portanto, se há um terreno comum entre os

171
Com a definição de “fatores correlatos”, apresentada através de Niceforo , Azevedo contrapõe-se à
perspectiva das causas únicas de Ratzel e a critica usando as palavras de J.Lossier. (Cf. Azevedo,1958:30)
172
Azevedo se refere a Adna-Ferrin Weber
140
autores é possível constituir o fato social173. Não se dispõe a discutir as teorias de Hansen
ou de Weber, como fez com as acepções de cultura e de civilização. Não adota qualquer
uma delas para definir a sua perspectiva, Azevedo atravessa as teorias, com a intenção de
demonstrar como o assunto tratado tem importância. Como já existe na ciência o
consenso para a existência de determinado tipo de objeto e para empreender um
determinado tipo de exame do objeto e, portanto, como a ciência já oferece uma definição
clara e segura para fato social que Azevedo pretende examinar na evolução da sociedade
brasileira
No trato da mesma temática - cidade, urbanização - Azevedo recorre a outro autor
para apresentar um conceito de civilização - que já havia definido no início da Introdução
- para fortalecer a idéia de que a urbanização é critério para o nível de civilização174. Não
pretende com essa operação enriquecer as discussões em torno do conceito de civilização,
pretende apenas agregar outra posição ao consenso anteriormente estabelecido com
Hansen e Weber, criando, portanto, uma zona de consenso científico na qual pode
legitimar a definição da urbanização como fato social e critério do grau de civilização.
Trazendo ao corpo do texto um grande número de obras e as articulando com sua
argumentação, Azevedo demonstra a sua erudição, reforçando com ela a sua
argumentação. Ao criar uma zona de consenso teórico, pode nela instalar seu objeto e sua
interpretação. A erudição torna-se no texto do Autor uma estratégia de comprovação de
suas teorias e interpretações. Produz um efeito de autoridade, neutralizando as possíveis
críticas à obra, na medida em que Azevedo transita por um grande número de obras, na
maioria pouco conhecidas, e opta a partir desse conhecimento, pelas mais “seguras” e
“melhores”, consolidando entre elas a sua obra.
No Prefácio à 3a edição, Azevedo considera que uma das condições de produção
da síntese é ter o pesquisador uma sólida formação científica,
um gosto seguro, adquirido numa longa e íntima comunhão com os mestres; um
conhecimento bastante profundo de todos os grandes problemas que o permita ir
direto ao essencial; um espírito bastante penetrante e largo para compreender as
obras mais diversas e bastante crítico ao mesmo tempo para julgá-las à luz da

173
Em Princípios de Sociologia, Azevedo, a partir de Durkheim, define o fato social como sendo exterior e
superior às consciências individuais. (Cf. Azevedo,1935:268)
174
“Se o termo civilização, como observa R. Lenoir, ‘corresponde ao conjunto das obras por meio das quais
os sêres humanos passam da animalidade à humanidade, pode parecer paradoxal aplicá-lo às sociedades
ditas primitivas. Não parecem elas ter por principal caráter o de não serem civis e não conhecerem as
cidades no seio das quais se fixam e se transmitem os atos e os conhecimentos ?’”(Cf. Azevedo,1958:31)
141
história e, conforme os casos, também da estética ou do princípio científico (...).
(Azevedo,1958:12). Grifos meus
A erudição diferencia os pesquisadores porque, para o Autor, ela é condição para a
produção da síntese. Os que são especialistas preparam as monografias e os dados para
aqueles que, sobre sólida ciência, podem unificar os dados, produzindo as mais largas
análises e interpretações (Azevedo,1958:37-38). O conhecimento de um vasto universo de
teorias e perspectivas científicas, o trânsito entre as várias teorias, permitem ao Autor que
as domina verificar qual ou quais são os pontos em que há consenso e, é o lugar fora das
paixões e das interpretações pessoais.
Esse mesmo tipo de operação que produz o consenso teórico aparece no capítulo I,
quando, para discutir a relação entre as migrações internas e a evolução da civilização,
chama Ratzel, que já havia criticado anteriormente, ou Siegfrid para comparar a América
Andina com o Brasil. No terceiro capítulo, Azevedo apresenta os autores Hansen e
Weber, L.Febvre e Vidal de la Blache com o mesmo objetivo (ver nota 15). Enquanto
Durkheim embasa as observações, os outros autores demonstram sua erudição e a sua
capacidade de transitar pelas diferentes teorias legitimando, a partir de seu vasto
conhecimento, as interpretações sobre o Brasil.
No quarto capítulo, também são introduzidas obras com essa função. Exemplo da
erudição do Autor se encontra na passagem na qual reitera a sua própria interpretação de
que o perigo consolida a nacionalidade: “A comunidade dos perigos corridos e, mais
tarde, a lembrança das grandes ações realizadas em comum, ‘eis por onde de ordinário,
observa L. Fébvre, se confirma e se exalta o sentimento nacional.’ ” (Cf.
Azevedo,1958:162)
Enquanto a teoria de M. Ostrogorsky é discutida e apresentada em seu corpo
reflexivo, L. Febvre tem seu nome citado apenas de “passagem”, sem que nem mesmo a
obra da qual a citação foi retirada apareça em notas ou na bibliografia do final do texto.
Portanto, não é concedida à obra de Febvre a mesma participação que a de Ostrogorsky.
Neste caso, a hipótese levantada é de que Azevedo priveligia o nome de Ostrogorsky pela
natureza de críticas que opera aos partidos políticos, com cujo conteúdo o Autor concorda
plenamente.175. L. Febvre, mesmo tendo maior projeção intelectual, é considerado por

175
Azevedo assume a crírica de Ostrogorsky aos partidos políticos: “as convenções políticas em que todos
os interrêsses são representados, menos os interêsse geral. estão nas mãos de manejadores de homens
profissionais, a que se refer Ostrogorsky e que empregam todos os meios para fazer prevalecer as vistas que
prèviamente fixaram.” (Cf. Azevedo, 1958:174. itálico do Autor)
142
Azevedo um geógrafo da escola determinista francesa, portanto, sua importância, para
Azevedo, parece ser a mesma dada a Ratzel ou Siegfrid.
O mesmo espaço que é concedido a Febvre é dado a Celestín Bouglé. Esse
tratamento causa estranhaza na medida em que C.Bouglé é membro da Escola Sociológica
Francesa e colaborador ativo de Durkheim.(Cf. Azevedo, 1958:159). Azevedo, em
Princípios de Sociologia apresenta Bouglé como um dos principais sociólogos que se
filiam à escola de Durkheim, “professor de história da economia social da Sorbonne (...) e
um dos mais fiéis colaboradores de Durkheim.(Cf. Azevedo,1935:280)
Outro exemplo do artifício de erudição utilizado por Azevedo é a passagem, no
quinto capítulo, na qual expõe o problema do nascimento do sentimento nacional:
“compreende-se também que, nos pequenos Estados, o patriotismo tenda a adquirir maior
intensidade, como na Grécia antiga, em que, na observação de A. Jardé. ‘êsse sentimento
foi, se não engendrado, ao menos desenvolvido pela medíocre extensão do território’ ”176.
(Azevedo,1958:213). A observação de A. Jardé no texto de Azevedo não é fundamental
na medida que, ao comentar o nacionalismo brasileiro, o Autor de A Cultura Brasileira
considera que apesar da grande extensão do terrítorio, é o nacionalismo uma de suas
características. Esvazia a própria informação que fornece aos leitores através de Jardé.
A idéia do consenso teórico indica a própria perspectiva de Azevedo, com relação
ao desenvolvimento das ciências e às contribuições que os especialistas podem dar ao seu
desenvolvimento geral. Essa perspectiva é definida pelo Autor na introdução dos
Princípios de Sociologia:
estudar a ação e o esforço dos grandes pensadores, antigos e modernos, sobre o
desenvolvimento do pensamento sociológico; desprender de cada autor o que
constitui sua originalidade e restabelecer o laço que o prende aos sociólogos
modernos ou imediatamente posteriores; examinar o conteúdo das principais
teorias e sua bases científicas e marcar-lhes o pontos de contato .
(...) Sem se pretender um denominador comum para as diversas doutrinas ou, por
outras palavras, sem nenhum intuito de ser eclético o que traduziria menos uma
atitude científica do que uma posição “filosófica” em face dos problemas,
procurou-se extremar, nas diferentes doutrinas estudadas, as hipóteses cientificas,
as hipóteses de trabalho e as verdades apuradas. (. Azevedo,1935:23-24)

176
Este capítulo é rico em exemplos de fontes utilizadas com essa função. (Ver Azevedo, 1958: 219, 221,
223)
143
A zona de consenso pode indicar, pela exterioridade das conclusões dos diversos
autores, os avanços da ciência ou, pelo menos, que o Autor está envolvido e tem
conhecimento de todo o tipo de investigação que acontece no campo das ciências
humanas. A preocupação do Autor é - ao mesmo tempo que define o seu objeto e seu
método - manter um diálogo com as diferentes teorias, criticá-las no que devem ser
criticadas, porém, procurar em suas diferentes lógicas a possibilidade do avanço
científico.
A opção por Durkheim, nessa perspectiva, se dá por Azevedo encontrar em seu
programa o ponto mais avançado do método científico, o que não exclui a possibilidade
de lidar com outras teorias ou outros resultados que sejam realmente científicos. Em
Princípios de Sociologia, ao comentar o “estado atual do problema metodológico” da
Sociologia, Azevedo afirma:
Mas se por um lado, a metodologia de uma ciencia nova, sobretudo, é destinada a
ser revista e reformulada: se a pesquisa social, como a investigação de qualquer
outra categoria de fenomenos, não é nem póde ser feita “de caminhos batidos”;
por outro lado, a falta de uma tecnica severa, de uma rigorosa disciplina, como a
que procurou estabelecer Durkheim, dá lugar a tentativas arbitrarias e tende a
levar o investigador comum, e ainda o mais habil, “a muitas explorações inuteis e
a becos sem saida”...(. Azevedo,1935:288)
A prática com este tipo de fonte - na maioria obras estrangeiras, de procedências,
em termos de escolas e métodos, diversas - indica a própria perspectiva de Azevedo do
que seja o desenvolvimento de uma ciência: apesar da necessidade do estabelecimento de
um método condutor e, portanto, de obras que conduzam teoricamente e
metodologicamente a investigação, é fundamental para o pesquisador estar em contato
direto com todo o universo da ciência, conhecendo quaisquer possíveis inovações de seu
campo, acompanhando os sinais de seu avanço e avaliando as verdadeiras consequências
dos novos programas propostos. A erudição, no entendimento do Autor, legitima a obra
como científica, pelo conhecimento que seu produtor possui, tanto do que já é conhecido,
como do que existe de mais “avançado”. Com esse conhecimento - “sólida ciência”- é
capaz de constituir seu caráter.
Por outro lado, o conhecimento dos avanços científicos possibilita ao Autor,
dentro de sua própria perspectiva de evolução de uma sociedade, verificar os sinais do

144
avanço da civilização, que engendra e é engendrada pelo desenvolvimento da cultura, tal
como definiu.
A hipótese que pode explicar o fato de todas as obras da zona de consenso teórico
citadas serem estrangeiras, é a de que Azevedo considera o grau de desenvolvimento da
cultura brasileira ainda aquém da produção teórica desejável, não podendo, portanto,
contribuir com uma discussão mais profunda, bem como com o avanço da ciência.

As Fontes Informativas

Outro tipo de função estabelecida por Azevedo para as obras que cita em seu texto
é a de fonte de informação. Esse tipo é o mais recorrente e encontra-se em toda a obra,
com exceção da Introdução, cujo objeto da exposição é a teoria. As fontes-informativas
são aquelas apresentadas como a fonte de seus dados e acontecimentos históricos, a partir
dos quais constrói sua análise e interpretação. São aquelas obras consideradas pelo Autor
como monografias especializadas ou trabalhos de detalhes, que devem ser unificados pela
obra de síntese. Aparecem, portanto, nos capítulos cujo objeto é a evolução da sociedade
brasileira.
As obras informativas, são organizadas a partir das “contribuições” que podem
oferecer aos temas e os períodos enfocados177. Cada capítulo é constituido por um
conjunto de autores que informam sobre os assuntos e períodos neles contidos. A lógica
de organização das monografias é conduzida pelo próprio método de “extração” dos
dados, as que são especializadas em economia estarão no capítulo sobre o trabalho
humano, como é o caso da obra se R. Simonsen; as que discutem as instituições religiosas
estarão no capítulo dedicado a esta questão, como é o caso do Pe Serafim Leite. O
mesmo se dá em relação aos períodos: Gilberto Freyre é colocado ao lado de Simonsen
nos período cujas discussões são coincidentes, não mais havendo coincidência de
períodos e temas, o conjunto se defaz e aparece outro em seu lugar.
Para clarear a operação de organização das obras segundo os temas e os períodos
enfocarei o Tomo III, por esse seguir a lógica dos outros e, além disso, ganhar nos
capítulos finais outra peculiaridade: o uso exclusivo dos autores “pertencentes” aos

177
Apesar das tabelas dos problemas ordenadores não cobrirem todos os autores citados por Azevedo (por
esses nem sempre constarem das notas de rodapé) são indicativo eficiente das fontes informativas usadas
por Azevedo conforme os temas ou assuntos que compõe A Cultura Brasileira. Ver Anexo.
145
Pioneiros da Educação Nova. Para devesvelar o modo pelo qual Azevedo processa a
extração das informações acompanho a organização das fontes no Tomo I, cuja
organização dos fatos facilita análise que é reiterada nos outros Tomos.
O capítulo I do Tomo III enfoca a obra dos jesuítas na colonização do Brasil, do
século XVI ao XVIII (que é marcado com a expulsão dos Jesuítas). O conjunto de obras
que informam o capítulo é formado principalmente por Pe Serafim Leite, Gilberto
Freyre, Antônio Sérgio e Viriato Correia178.
O Pe. Serafim Leite fornece a Azevedo os dados relativos ao sistema de educação
jesuítico, aos tipos de cursos, colégios e o sistema pedagógico (Cf. Azevedo,
1958:11,12,28,40,43,44). Gilberto Freyre contribui com as descrições da relação entre a
Igreja e a família patriarcal, os jesuítas e a catequização, comenta, também, o tipo de
política educacional que a metrópole implantou na colônia, enfocando, mais
especificamente, a questão do ensino superior(Cf. Azevedo,1958:17-23,52). Antônio
Sérgio dispõe as características do tipo de cultura encontrado em Portugal: humanística,
literária e livresca.(Cf. Azevedo,24,28) Já Viriato Correia informa sobre a expulsão dos
jesuítas e a decadência cultural do Brasil e de Portugal (Cf. Azevedo,1958:36-39). O
conjunto é formado, portanto, pelo tema “educação jesuítica” e pelo período do século
XVI ao XVIII.
O segundo capítulo cobre o período entre a expulsão dos jesuítas à chegada de D.
João VI no Brasil até o final do século XIX com o início da República.Um dos temas
enfocados é a permanência do tipo de educação imposta pelo jesuítas, por um lado e, por
outro, a fragmentação causada pela política pombalina. Utilizando Capistrano de Abreu,
Azevedo examina a continuidade das características da educação na família patriarcal e
nos colégios, até o século XIX. Gilberto Freyre contribui com o quadro fornecendo
informações sobre a disciplina nos colégios e seminários.(Cf. Azevedo, 1958:62,66,67)
Outro tema que compõe o capítulo é o das mudanças que ocorreram no início do
século XIX com a chega das “novas idéias européias”. As fontes que informam sobre essa
questão são: Pedro Calmon, que nos discorre sobre a entrada no Brasil das novas idéias
políticas, e Milton Rodrigues sobre a introdução das novas idéias pedagógicas com o
Seminário de Olinda. O conjunto de obras é acrescido por Gilberto Freyre e Oliveira

178
Outros autores compõe o conjunto como Pedro Calmon, Afrânio Peixoto, José Veríssimo e Humberto
Campos, porém, as obras de Gilberto Freyre e Serafim Leite são as mais citadas. (Cf. Azevedo, 1958:9 a 57)
146
Lima, ambos também comentando as inovações do seminário de Olinda. (Cf.
Azevedo,1958:63-67)
Para o período entre a chegada da Família Real e o II Império, os temas propostos
são os decretos governamentais e a distância desses da realidade e as instituições
escolares de diferentes níveis que se instalam no Brasil. Azevedo utiliza o próprio texto
dos decretos para enfocar a política educacional e discuti-la, mas é Azevedo Amaral quem
presta as informações sobre as características da política em geral (Cf.
Azevedo,1958:70,74,89,90). Pedro Calmon e Gilberto Freyre contribuem comentando as
instituições escolares de diferentes níveis.(Idem,1958:97-1000)
No final do capítulo Azevedo aborda a política educacional do início da
República. A partir desse período o conjunto das obras informativas passa a ser composto
quase que exclusivamente dos Pioneiros. O recorte temático é o problema das reformas
educacionais propostas pelo novo governo. As obras usadas para comentá-las são:
Afrânio Peixoto, Raja Gabaglia e Lourenço Filho (Cf. Idem,1958:108-109).
A partir do terceiro capítulo o conjunto anterior é substituido por outras fontes
informativas; outros autores que cobrem os temas e os períodos são apresentados em seus
lugares.
Para o terceiro capítulo Azevedo reserva o período entre o último quartel do século
XIX e a Revolução de 1930. Começa comentando as mudanças econômicas, políticas e
sociais que ocorrem no final do Século XIX através de Azevedo Amaral e Max Leclerc.
(Cf.Azevedo,1958:116-117,121,130). Juntamente com essas mudanças apresenta as
continuidades da vida cultural do Brasil - o mesmo espírito literário e livresco da Colônia
e do Império - informadas por José Maria Belo (Cf. Idem,1958:120-122).
O mote da primeira parte do capítulo é a intercalação das novos idéias e a
resistência das tradições com a sobreposição dessas em relação àquelas, sendo a discussão
conduzida por. Rui Barbosa, José Maria Belo, Azevedo Amaral, Pandiá Calógera e
Afrânio Peixoto(Cf. Azevedo,1958:122-123,127). Na segunda parte do capítulo, que se
inicia com a I Guerra Mundial, o tema principal são as “verdadeiras” transformações que
se iniciam na vida cultural do Brasil. O foco fecha-se sobre as transformações econômicas
e políticas e as reformas educacionais que se iniciam nos diferentes estados. Para
comentá-las Azevedo utiliza os seus próprios escritos, Lourenço Filho, Afrânio Peixoto,
Milton Rodrigues e Venâncio Filho.(Cf. Azevedo,1958:151,-160)

147
Os principais marcos de mudança são a I Guerra e o Inquérito da Instrução Pública
de São Paulo. (Cf. Azevedo,1958:155). As fontes de informação fornecidas pelos
documentos primários e pelos autores citados são intercaladas sem serem diferenciadas
por Azevedo.
No quarto capítulo, o período se estende de 1928 a 1940; Azevedo discute a
transformação cultural que ocorre no Brasil, caracterizando-a como um período de crise e
conflito. Para comentar as mudanças que ocorrem na educação chama Lourenço Filho, a
si próprio e a Venâncio Filho(Cf. Azevedo,1958:166-168). Portanto, a leitura desse
período, em contraste com os outros, é fundamentalmente marcada pelos Pioneiros. É
Azevedo - um “pioneiro” - que recorta as informações que são fornecidas por aqueles que,
na perspectiva do Autor, formam o seu grupo.
As informações ainda são reforçadas pelos comentários, em algumas passagens
como no caso da Reforma do Distrito Federal, pelos “opositores” católicos, corrobora
com o objetivo de ter as suas interpretações. Também complementa os dados com artigos
de jornais e revistas, atas, códigos de lei e discursos, fortalecendo o seu próprio
testemunho e a sua interpretação.(Cf. Azevedo,1958:176)
Além do tema das reformas na educação e da política educacional, Azevedo expõe
as inovações que ocorrem em outras áreas da cultura como os meios de comunicação, as
instituições culturais (como as bibliotecas) e a produção de informações (destaca o censo
de 1940). Para esses assuntos utiliza as informações produzidas pelo IBGE e artigos de
jornais e revistas. (Cf. Azevedo,1958:203-209)
No último capítulo do livro, Azevedo empreende um balanço de toda a
transmissão da cultura (das origens ao estado atual) para discutir o ponto mais avançado
da evolução da civilização brasileira: o desenvolvimento das universidades e do espírito
científico. Para o balanço retoma o conjunto das fontes informativas nas quais se apoiou
para construir as características da tradição cultural brasileira: Freyre, Peixoto, Sérgio e
Abreu (Cf. Azevedo,1958:220-223). Para os comentários do “estado atual” dispensa
outras fontes e utiliza-se de seus próprios escritos e de dados estatísticos (nem sempre
tirados do Censo) ou de artigos de jornal e revistas, ou ainda de informações cuja fonte
não indica. (Cf. Azevedo,1958:254-263)
Quanto a organização das fontes, nota-se que Azevedo utiliza as monografias
especializadas principalmente para os períodos mais “longínquos” da evolução da

148
civilização brasileira e o seu próprio testemunho e o de seus companheiros para realizar a
análise do “estado atual”.
Há um modo peculiar pelo qual Azevedo extrai as informações das fontes
informativas que se observa em todos os Tomos. Para deslindá-lo acompanho a
organização das fontes em alguns capítulos com o intuito de apanhar a operação
recorrente nos outros, para depois lançar algumas hipóteses explicativas da lógica de
organização desses tipos de fontes.
O primeiro capítulo é dividido em duas partes: a que descreve o território e a que
descreve as raças que o habitaram.
Na primeira parte do capítulo todas as fontes são apresentadas para a descrição do
território, portanto, são utilizadas como fonte de dados científicos. Wegener e Pickering
apresentam a formação do território, quando este se separa do continente africano;
Afrânio Peixoto é o porta-voz da descrição das paisagens amazônicas; Calógeras expõe a
importância do Atlântico sobre o Pacífico, para o território brasileiro; Capistrano de
Abreu explica a dificuldade de navegação de cabotagem pelas características físicas do
litoral.
Os autores são intercalados segundo os temas cobertos por suas obras trazendo,
portanto, informações complementares. Se o tema coberto por Wegener e Pickering é o
problema da formação geológica do território brasileiro e, tanto em um como em outro, as
informações são coincidentes, pode-se concluir, na perspectiva de Azevedo, a veracidade
da informação, que pode ser utilizada por outros sem que seja necessário verificar como
foram produzidas. A externalidade da informação garante a sua legitimidade.
A externalidade pode ser identificada pela comparação das obras. Se
independentemente dos modos como foram produzidas, coincidem, as informações são
consideradas externas ao que é pessoal na análise e na interpretação dos autores. A
operação, assim efetuada, se assemelha àquilo que propõe Durkheim em seu estudo sobre
o socialismo:
As indicações que se podem recolher a esse respeito [do socialismo nas teorias
socialistas] serão úteis sobretudo quando, em lugar de fechar-se em um sistema,
faz-se um estudo amplamente comparativo de todas as doutrinas. Porque aí há
mais chances de eliminar de todas essas aspirações o que elas necessariamente
têm de individual, de subjetivo, de contingente, de modo a separar e reter apenas

149
seus caracteres mais gerais, mais impessoais e, portanto, os mais objetivos.
(Durkheim. In: Fridman,1993:40)
O que propõe Durkheim é que as obras sejam comparadas para que delas sejam
extraídos os pontos em comum, aqueles que não dependem da construção específica dos
autores, estão estabelecidos além deles. A operação metodologica assim executada
neutralizaria qualquer tipo de imparcialidade decorrente da subjetividade inerente ao
estudioso. O método é a arma usada contra as imparcialidades. Em Princípios de
Sociologia, ao descrever as dificuldades que o sociólogo enfrenta ao estudar seu objeto,
Azevedo comenta, apoiado em Durkheim:
no estudo dos fatos, no seu estado atual, em relação aos quais somos não sómente
espectadores, mas atores, os nossos raciocineos são facilmente influenciados
pelos nossos desejos ou pelas respostas já feitas que nos fornece a tradição; no
segundo caso [observação dos fatos passados], são muitas vezes deformados pela
tendencia de encarar os fatos passados, não em si mesmos, objetivamente, mas em
função de ideias, preconceitos e sentimentos proprios de nosso tempo.(...) No
estudo de qualquer fenomeno ou grupo definido de fenomenos sociais, é
indispensavel, pois, não sómente manter o investigador essa “atitude objetiva”e
resguardar-se contra a interferencia dos sentimentos e dos preconceitos, na
apreciação dos fatos, como proceder a essa investigação com um ponto de vista
sociologico e pelos metodos sociologicos especiais que tornam possivel e eficaz o
tratamento cientifico desses fenomenos.(destaques originais. Azevedo,1935: 191-
192)
Para Azevedo, o único modo de encarar os fatos objetivamente é através do
método desenvolvido pela Sociologia. O método evita as apreciações pessoais do
investigador e, portanto, subjetivas; evita, também, as apreciações de outros que
testemunham os fatos no passado ou os colhem no passado. Para que os fatos sejam
encarados como “coisas” é indispensável o manejamento destes pelo método sociológico.
O métodos especiais da sociologia são, para o Autor, os métodos comparativos:
“que permite-nos completar, controlar e verificar as observações e distinguir das ‘relações
acidentais’ as ‘relações permanentes’ dos fatos ou da categoria de fatos estudados, em si
mesmos e nas suas relações recíprocas” (Azevedo,1935:188). Nesta perspectiva, o método
comparativo é válido não só para distinguir um fato de outro e as diversas relações deste
com outros como também para neutralizar as inferências indesejáveis dos diferentes
150
pesquisadores que debruçam-se sobre os estudos da sociedade. A zona de consenso dos
dados, como realizada por Azevedo, é fruto da operação metodológica característica da
Sociologia, a comparação.
Azevedo, ao percorrer os temas descritivos do território, organiza as fontes de
modo a extrair suas informações - através da comparação entre as diversas obras -, a partir
da constituição da zona de consenso dos dados; transformando a natureza analítica ou
interpretativa das obras, em obras-informativas.179 As fontes e, por conseguinte, os dados
que fornecem, são dispostos para demonstrar que a despeito de todas as dificuldades que o
território brasileiro apresentava - já que nenhum fator geográfico se revelou um incentivo
- a civilização se formou com características comuns em todo o território. A operação
sintética consiste em extrair os dados de sua origem e unificá-los segundo os problemas
propostos na análise.
Na segundo parte do capítulo, do mesmo modo como na primeira, Azevedo retira
das fontes apenas as informações para interpretá-las em seu conjunto. Para ele:
Parece-nos que já podemos concluir com J.F. de Almeida Prado, no seu trabalho
exaustivo sôbre os primeiros povoadores do Brasil, ter sido bem variada a
ascendência branca dos mestiços do litoral, e tanto Nina Rodrigues como Gilberto
Freyre, ao se ocuparem do tráfico africano, já demonstraram a variedade de
“nações” e de áreas de cultura, de que foram transportados os escravos negros,
que vão desde os elementos colhidos nas tribos selvagens do cafres até os negros
sudaneses, de cultura adiantada, predominantes na formação baiana.
(Azevedo,1958:60)
Ao colocar lado a lado Gilberto Freyre e Nina Rodrigues, desconsiderando as
diferentes interpretações e métodos de trabalho, assim como os campos científicos dos
quais provém, Azevedo pretende colher o que há em comum, transformando as diversas
interpretações em dados, constituindo a zona de consenso que lhe permite considerar os
dados “neutros” sem contaminação subjetiva. A operação é justificada por Azevedo:
considerando com Renan que “a verdade é um diálogo no qual a conclusão se
desprende dos pontos de vista opostos”, todos eles [dados] foram confrontados e

179
Exemplo típico do modo pelo qual organiza as fontes neste capítulo é a passagem: “Em todo o caso,
podem-se distinguir, segundo as classificações de Morize, Delgado de Carvalho e Afrânio Peixoto,
idênticas, em substância, - as três grandes zonas equatorial, tropical e temperada (...)”
(Cf.Azevedo,1958:51)
151
analisados, depois da recusa preliminar, mas refletida, de tôda e qualquer
informação de origem suspeita ou parcial (...) (Azevedo,1958:17)
É no exercício de extrair o dado ou a informação do corpo reflexivo de outros
autores, na sua confrontação, que se inscreve a possibilidade da unificação dos
conhecimentos parciais em uma síntese - ou seja, na zona de consenso informativo.180.
Na segunda parte do primeira capítulo, Azevedo organiza as fontes para debater o
determinismo da raças sobre a evolução da civilização. As teorias de Oliveira Viana são
criticadas com base nos dados fornecidos pelos estudos de Gilberto Freyre, Nina
Rodrigues e Artur Ramos. Na crítica que faz ao determinismo racial, Azevedo expõe, do
ponto de vista da Sociologia, os argumentos de Hubert, Colajanni, Baldus, Finot.
No segundo capítulo, que trata da vida material que caracterizou o Brasil desde
suas origens, enfoca a “evolução” econômica do país. As obras formam um conjunto do
qual são extraídos os dados da história econômica que compõe as descrição da evolução
da vida material do Brasil. Os autores são intercalados de modo a formar um texto
contínuo. As principais obras utilizadas no capítulo são, para o período entre os séculos
XVI e XVIII, Gilberto Freyre, Capistrano de Abreu, A.A. de Melo Franco, Roberto
Simonsen, Alberto Rangel. No período entre o século XVIII e o XX, a principal fonte de
informações é R. Simonsen. 181
As obras são coligidas a partir dos períodos por elas enfocados: nos períodos mais
estudados e, portanto, que concentram uma grade profusão de obras, o número de obras
citadas que compõe a zona de consenso é grande. Enquanto que nos período mais
próximo ao século XX, em que não existem praticamente trabalhos sobre o período,
Azevedo usa apenas, a obra de Simonsen. Nota-se que, quando o Autor amplia o período
coberto, para a 3a edição, os dados são colhidos nos folhetos institucionais das próprias
empresas em foco, ou ainda de artigos de jornais do ano da revisão. Portanto, o que

180
Em outra passagem Azevedo expõe: “A luz que projetam os documentos históricos, já amplamente
investigados por Nina Rodrigues, Gilberto Freyre, Artur Ramos, J.F. de Almeida Prado e outros, não chega
a esclarecer, senão no seu conjunto e em alguns de seus aspectos fundamentais, o quadro das origens
brasileiras (...)” (Cf. Azevedo,1958:60)
181
Azevedo constrói o texto de modo que cada um dos autores forneça um dado que compõe o todo: “(...)
Segundo os cálculos de R. Simonsen, ‘um volume de ouro equivalente a 50% de todo o ouro produzido no
mundo, nos três séculos anteriores, e igual a toda a produção apurada na América de 1493 a 1850!’. (...) Se
a exportação do ouro, em três séculos, calculada em 200 milhões de esterlinos, teve grande importância na
economia e nas finanças internacionais, a de diamantes foi tal que, segundo João Lúcio de Azevedo, ‘se
desequilibraram os preços internacionais da pedra’, por essa época em que a produção, em menos de um
século, ultrapassou, na estimativa de Calógeras, 600 quilos, num valor superior a 10 milhões de libras
esterlinas.”(Cf. Azevedo,1958:83)
152
interessa ao Autor nas obras citadas são os dados. Tal interesse é indício das escolhas
efetuadas pelo Autor bem como o nas obras que expõe182..
Para comparar os dados, quando compara a evolução da civilização brasileira com
outra, por exemplo ao Estados Unidos, efetua a mesma operação de extração das
informações, que faz com as obras sobre o Brasil, criando também, a zona de consenso183.
Mesmo as obras que critica, como é o caso de A. Siegfried, utiliza seus dados no
corpo de seu texto, desinpreguinando-os das interpretações que a partir deles é
estabelecida.
“A América Latina no século XIX era, escreve A. Siegfried, o grande centro
exportador de produtos brutos e de matérias-primas para a Europa. O velho
continente era a fábrica; nós, o campo. (...)” (Cf. Azevedo,1958:110)

No quinto capítulo, exemplo de seu método está na descrição da psicologia do


brasileiro, que é produzida através de Gilberto Freyre, Miran Latif, Milton Rodrigues e
Sérgio Buarque de Holanda. São colhidas nestes autores as principais características dos
brasileiros. A descrição é entremeada pelas comparações com os norte-americanos (utiliza
Boutmy) e pelas considerações teóricas que tem a função de “suavizar” a própria
descrição e constituir o terreno da cientificidade através do consenso, numa perspectiva de
se diferenciá-la daqueles autores que critica. Os dados são produzidos pela operação do
consenso e organizados para apoiar a crítica de Azevedo às teorias deterministas.
Os autores criticados através dos dados fornecidos pelo consenso das fontes-
informativas são Ronald de Carvalho, Paulo Prado e A. A. de Melo Franco. As criticas
são, sobre tudo, a herança permanente adivinda das raças que formaram o Brasil,
imputadas pelos autores.
Verifica-se que a operação metodológica de organização das fontes informativas
faz-se a partir dos períodos e temas cobertos pelas obras. Outra característica do conjunto
das obras utilizadas como fontes informativas é a não diferenciação das monografias
especializadas das fontes de “primeira mão”. As fontes se completam:
- quando não há informações disponíveis nas monografias especializadas as fontes
primárias fornecem os dados para completá-las;

182
Ver notas de rodapé 21, 22, 23, 24 e 25.
183
Baseia-se sobretudo em Roy Nash. (Cf. Azevedo,1958:88 e 99)
153
- em outros casos, as monografias especializadas e as outras fontes (primárias) são
intercaladas de modo a reforçarem uma determinada análise ou descrição, da mesma
forma como Azevedo opera com o conjunto de monografias especializadas.
Não há para o Autor, na operação metodológica que empreende, diferenciação
entre fontes primárias (podem ser dados estatísticos, relatos de viajantes de época, jornais
revistas, decretos, leis, atas etc.) e fontes secundárias na medida em que os dois tipos
servem para o mesmo fim: fornecer os dados, as informações e os acontecimentos para a
análise e interpretação do pesquisador.
Outro indício do método de extração das informações e dados operada por
Azevedo são os balanços que apresenta no início de algumas capítulos em relação a
disponibilidade de monografias especializadas ou obras que lhe fornecem o material para
a análise e interpretação. Um exemplo deste tipo de consideração está no quarto capítulo
do Tomo I:
A dificuldade da síntese, que não é senão a resultante da documentação fornecida
pelas monografias especializadas e trabalhos analíticos, não está apenas na
insuficiência da obras dessa ordem, de pesquisa e investigação, mas também na
tentação a que tantos costumam ceder, por gôsto ou excesso de cuidado, de não
negligenciar nenhum detalhe, embaraçando-se na multidão dos “pequenos
fatos”.(Azevedo,1958:148)
Azevedo especifica o tipo de fonte que lhe fornece os dados apresentando, a partir
destas características, o limite das análises e interpretações que pode realizar. A crítica às
monografias corresponde a um tipo de crítica “documental”, estabelecendo, neste sentido,
a correspondência que entende existir entre as monografias e as fontes primárias,
considerando que as informações podem ser colhidas tanto de uma como de outra,
dependendo da disponibilidade para cada um dos assuntos em foco184.
O método sociológico, na perspectiva de Azevedo, é capaz de igualar as
informações ou dados, tenham eles origem em trabalhos de outros autores, na estatística
ou nas fontes primárias. O trabalho do sociólogo não é produzir os dados:
a sociologia tem por objeto não a “forma exterior” que tomam, aos nossos olhos,
as transformações sociais, não as manifestações dadas da realidade social,
ligadas ás suas condições de tempo preciso e de lugar preciso, mas a propria

184
Outros exemplos desta espécie de balanço produzido pelo Autor estão na Introdução da obra e no
capítulo V do Tomo I. (Cf. Azevedo,1958)
154
realidade social, desprendida dos fatores e circunstancias que a produzem e a
condicionam. (Azevedo,1935:178)
O próprio programa científico em que Azevedo inscreve sua obra autoriza-o a
proceder dessa maneira - igualando as informações da diferentes procedências - e fornece
as condições para neutralizar as interferências subjetivas que podem estar acopladas aos
dados.
As obras informativas são predominantemente de brasileiros, por serem esses os
autores que versam sobre os problemas do país, portanto, os que podem fornecer os dados
e acontecimentos.

Considerações Finais

O modo peculiar de Azevedo “arrumar” as fontes para reconstruir o passado


delineia o programa científico adotado pelo Autor para o estudo de seu objeto. Esse modo
peculiar caracteriza-se pela função que o Autor concede às obras ao dispô-las no texto. As
funções características são:
1)- as que constituem os “pilares” teóricos do Autor, sobre os quais é constituída a
interpretação e são informados os conceitos e a análise, e sobre o qual justifica-se a
operação de manejo dos outros tipos de fontes. Os “pilares” teóricos são os autores da
Escola de Sociologia Francesa, sobretudo Durkheim e Fauconnet. É a partir da leitura que
faz de Durkheim, que Azevedo constrói seu método de análise e seus procedimentos com
as fontes. É a partir da leitura de Fauconnet, que estuda a Educação e a História da
Educação com o objetivo de elucidar os problemas da cultura postos pelo presente;
2) - as obras teóricas que em sí não são valorizadas, mas, formam um conjunto que
atesta a erudição do Autor, que demonstra seu conhecimento e sua capacidade de transitar
entre as diversas teorias e interpretações. É esse trânsito que lhe permite construir
consensos teóricos que, por sua vez, conferem autoridade científica para sua
interpretação. Tais consensos são apresentados como conquistas da Sociologia e, portanto,
do conhecimento científico - consolidam determinadas leis gerais e determinados objetos
de estudo. É, também, apoiado na erudição que Azevedo se serve das obras, para
constituir a interlocução crítica, extraindo delas os elementos ou argumentos para
diferenciar a sua perspectiva interpretativa de outras.

155
Para Azevedo, o sociólogo só é capaz de tratar os fatos sociais, sem lhes retirar
seus caracteres específicos, se possuir uma cultura especificamente sociológica. Através
da observação de Durkheim afirma:
O sentimento do que tem de especial a realidade social é mesmo de tal modo
necessario ao sociologo que só uma cultura especialmente sociologica póde
prepará-lo á inteligencia dos fatos sociais. (grifos originais. Azevedo,1935: 278)
A erudição é indispensável para que o sociólogo possa reconhecer os fatos e
melhor explicá-los, a partir dos mais avançados conhecimentos desenvolvidos pela
Sociologia e pelas ciências próximas a ela. Os autores assim funcionalizados são na
maioria estrangeiros. A hipótese levantada por mim é que Azevedo considera que a
Sociologia no Brasil não estaria suficientemente desenvolvida e, por isso, não teria ainda,
a possibilidade de contribuir com o avanço da Sociologia;
3) - as obras informativas - obras de detalhe e monografias - que fornecem os
dados e os acontecimentos históricos, os quais são reordenados a partir da interpretação
do Autor. As obras fornecem as informações e acontecimentos para os temas e os
períodos definidos para cada capítulo. São articuladas em uma determinada passagem ou
em outra, conforme as informações que podem conceder ao problema enfrentado. As
perspectivas teóricas ou interpretativas desse tipo de obras são desvalorizadas ao se por
em evidência os dados e as informações que elas contêm. Azevedo pode criticar
interpretações ou análises e, ao mesmo tempo, informar um período ou um tema com o
mesmo autor criticado.
A extração das informações é efetuada a partir da comparação entre as diferentes
obras que tratam do mesmo tema, ou de temas próximos, no mesmo período. As
interpretações pessoais são neutralizadas, fornecendo os dados reais na medida em que,
do confronto entre os autores, reste apenas aquilo que é comum e, portanto, que não
depende da lógica interpretativa de um ou outro autor.
Essa operação de extração das informações e acontecimentos históricos de
diversos autores, que nem sempre se compatilizam do ponto de vista teórico e
interpretativo - como é o caso de Gilberto Freyre e Oliveira Viana - dá margem para os
leitores de A Cultura Brasileira entenderem a obra e o Autor, como representante de
diferentes escolas teóricas ou compreendê-lo como porta-voz de diferentes concepções de
interpretação do Brasil. O entendimento da lógica de articulação das fontes de A Cultura
Brasileira pode esclarecer as suas reais filiações.
156
Apesar de Gilberto Freyre ser um dos autores mais citados em toda a obra, recebe
a função de obra informativa e não teórica. Ao contrário do que supôs Mota
(Cf.Mota,1980:81), Azevedo não é difusor das concepções de cultura de Freyre. A
interpretação de Freyre é submetida ao procedimento de extração dos dados e, por sua
vez, os dados são submetidos a uma nova organização interpretativa, que responde às
perguntas formuladas por Azevedo: - buscar o que a civilização brasileira tem de peculiar
no processo de civilização geral; - a partir das leis da evolução geral, verificar em que
estágio da civilização se encontra o Brasil, e quais são os possíveis caminhos para o seu
desenvolvimento. As perspectivas de Azevedo, tanto metodológica como a teórica de
evolução de uma determinada civilização, estão vinculados à Escola Sociológica
Francesa, principalmente Durkheim, e à leitura que este faz dela.
A obra de Freyre compõe, com outros autores, o conjunto de obras informativas e,
por isso mesmo, suas contribuições para A Cultura Brasileira sempre são acompanhadas
de outras tão importantes, na lógica do texto, quanto a dele. Para a psicologia do povo
brasileiro, Freyre é ligado fundamentalmente a Oliveira Viana; para a história econômica,
é ligado a Roberto Simonsen; para o tratamento do ensino jesuítico, compõe o conujnto
com Pe Serafim Leite185. Os dados ou fatos fornecidos por esses autores sofrem uma
espécie de distanciamento da interpretação original, quando passam a fazer parte da obra
de Azevedo. Isso relativiza o vínculo entre as concepções de Azevedo e as de Freyre.
Azevedo talvez seja “difusor” dos fatos produzidos por Freyre, porém, constrói uma
concepção própria da evolução da cultura brasileira, segundo os problemas que se propõe
resolver: da permanência e das mudanças das tradições que, no seu entender, caracterizam
a peculiar evolução do Brasil no processo geral de evolução das sociedades ocidentais.
Azevedo opera uma espécie de “naturalização” dos fatos, entendendo-os, não
como interpretações ou representações, mas como a própria realidade. Segundo Azevedo,
a partir da leitura de Durkheim,
para ter se chegado a pensar que se podia pesquisar o que eles [fatos sociais]
são, era preciso ter compreendido que eles são de um modo definitivo; que têm
uma maneira de ser constante, uma natureza que não depende do arbitrio
individual e donde derivam relações necessarias. (Azevedo,1935:271)

185
O fato de as obras de Freyre e Viana formarem um conjunto, informativo é bastante do que se quer
mostrar, pois Freyre é considerado por Mota um dos mais importantes críticos de Viana e de sua leitura-
explicativa do Brasil (Cf. Mota, 1980 e Cf. Azevedo,1958)
157
O procedimento articulador das fontes informativas operado por Azevedo, apesar
de estar justificado em suas fontes teóricas, nem sempre é eficaz, na medida que ao lidar
com os consensos como verdades e afastá-los de suas interpretações originais e da lógica
pela qual foram constituidos, acaba por produzir interpretações que nem sempre são
coerentes com as defesas teóricas que adota. Ao analisar a obra de Azevedo, Leite indica
problemas dessa natureza:
o autor pretende conciliar a tradição de uma ideologia do caráter nacional e as
concepções mais recentes da Sociologia; por isso sua descrição inevitavelmente
oscila, sem definir-se por um dos extremos teóricos. (Leite,1969:297)
Os autores que fornecem as informações ou dados da psicologia do povo brasileiro
- Oliveira Viana, Gilberto Freyre, Barros Latif etc. - não a produzem com a mesma
perspectiva teórica que Azevedo adota; o próprio consenso possível entre os autores -
dado “neutralizado” - nega a perspectiva de Azevedo, demonstrando a ineficácia, neste
caso, da operação metodológica de unificação dos dados. As “oscilações” apontadas por
Leite são fruto, em parte, do método de produção dos dados e da perspectiva teórica que
fundamenta essa operação metodológica - a possibilidade de colher o dado “neutro”.
O que Azevedo pretende construir em seu trabalho, através do método de extração
das informações, não é um trabalho eclético no qual justapõe diversas interpretações, mas
o de unificar os dados a partir dos problemas verificados no presente e explicáveis pelo
passado. Apesar de a operação nem sempre ser eficiente, do ponto de vista do que o Autor
quer comprovar ou demonstrar, é embasada em um programa Sociológico de
interpretação da realidade. Nele, o trabalho do sociólogo é o de analisar o presente,
definindo os fatos sociais que devem ser estudados e buscar suas explicações nos fatos
correlatos e no passado.(Cf. Azevedo,1935). Os dados com os quais o sociólogo lida,
devem, na perspectiva do Autor, ser produzidos pelas disciplinas auxiliares e, entre elas,
está a História que não se confunde, em hipótese alguma, com a Sociologia. Para o Autor,
enquanto a História deve perguntar
que aconteceu? quando? onde? Á sociologia compete indagar: Por que é que
certos fatos apareceram em tal lugar em um dado momento? Onde é que fatos
semelhantes apareceram e sob que condições? Quais os fatores e quais as forças
que produziram mudanças nas varias caracteristicas destes fatos.(Azevedo,
1935:166)

158
A síntese produzida por Azevedo, em A Cultura Brasileira, não está vinculada a
um programa da ciência da História, mas à Sociologia.. Estudar o passado, para o Autor, é
um recurso para o entendimento do presente e para iluminar os possíveis caminhos do
futuro. É essa perspectiva que faz com que Azevedo, como indica Cunha, esteja vinculado
ao presentismo A reconstituição que faz do passado é uma busca das causas que
produziram o estado de coisas do presente, é a busca dos fatores que produziram as
mudanças nas características dos fatos sociais do presente. A História, segundo a
observação de Azevedo apoiado em Durkheim, pode elucidar o presente porque “a causa
de um fato social deve ser procurada entre os fatos sociais antecedentes e não entre os
estados da consciencia individual” (Cf. Azevedo,1935:278). Ainda considera que:
se é certo que a historia, ensinando-nos como se formaram as instituições sociais
e como se transformaram, póde, mais de que nenhum outro metodo, esclarecer-
nos sobre o verdadeiro carater dos fatos sociais, não é menos exato que aquele
que trabalha para fazer da historia uma ciencia, levantando-se á enunciação de
leis verdadeiras, o que está fazendo é sociologia, ás vezes sem o saber, como Mr
Jourdain fazia prosa... (.Azevedo, 1935:166)
A proposta de Azevedo não é, em A Cultura Brasileira, produzir um estudo de
História, mas uma síntese sociológica da evolução da sociedade brasileira, a partir da
educação (essa é minha hipótese) que na perspectiva do Autor, por suas próprias
características - transmissora das tradições - permite averiguar as permanências e as
transformações que ocorreram nos fatos da cultura brasileira e, portanto, as suas
tendências.
A idéia de produzir uma síntese, que é apresentada em todo o trabalho, preside
tanto as operações metodológicas quanto a escolha dos recortes temáticos - por um lado,
porque Azevedo pode, em nome dela, dispensar aquilo que considera supérfluo ou
detalhe, operando suas escolhas a partir do que elege como as características essenciais do
presente, ou seja, justifica suas escolhas na definição da síntese; por outro lado, descreve a
educação como o fato social que traz em si a essência da cultura e, por isso, o espelho da
sociedade, já que sua função é de moldar os indivíduos para assegurar a coesão social
interna. A educação é, para o Autor, uma espécie de síntese da evolução da civilização;
estudá-la é via segura para a compreensão de toda a sociedade, ao mesmo tempo que pode
ser um parâmetro para as escolhas dos principais fatos que comporão a síntese da cultura
brasileira.
159
Se, por um lado, A Cultura Brasileira é o “coroamento” da obra de pensador -
Azevedo produz o que havia teorizado em Princípios de Sociologia e em Sociologia
Educacional - por outro, foi a oportunidade que teve de apresentar a sua versão dos
acontecimentos das décadas de 20 e 30 e da própria evolução da educação, colocando a si
e ao seu grupo como marcos fundamentais da história da educação brasileira. Azevedo
estabelece, em A Cultura Brasileira, a identidade de seu grupo e a identidade do grupo
oponente. Também estabelece as principais características de seu tempo, descrevendo-o
como fator ou condição para que seu grupo exista com tal identidade, constituindo, assim,
uma posição de renovação para si e para seu grupo, no cenário nacional daquele período.
A sua interpretaçõe é difundida e legitimada por estar vinculada ao Censo de 1940
e, por isso, estender-se a ela a objetividade que os números censitários possuiam. A obra
recebe o mesmo tipo de divulgação que o Censo, adquirindo, por essa condição, o status
de interpretação oficial, como eram reconhecidos os números censitários. Por ser
introdução do Censo, é comparada à obra de Oliveira Viana, Introdução do Censo de
1920 considerada um dos marcos de explicação da evolução da sociedade brasileira, e por
isso, A Cultura Brasileira possuindo as mesmas condições de produção e circulação que
aquela, recebe o mesmo status sendo admitida como patrimônio da cultura brasileira. A
condição de Introdução da obra Censitária, portanto, notabiliza a interpretação de
Azevedo e contribui para sua a legitimação e difusão.
Acrescenta-se a isto, o esforço do Autor em conduzir sua interpretação num
programa científico, ancorado por um grande número de obras, sejam elas conformadoras,
consensuais ou informativas; e em proceder escolhas dos fatos e dados, que são
analisados na obra, justificados “cientificamente”, seja ancorados no critério da definição
da obra como síntese, seja ela baseada na definição dos fatos pela Sociologia. A condição
“científica” da obra vai permitir que essa dispense, posteriormente, o próprio vínculo com
o Censo, para ser considerada, por ela mesma, importante marco da produção científica
no campo da cultura e da educação.
Outra dimensão que corrobora a legitimação e a difusão da história da educação
brasileira, escrita por Azevedo, é a sua própria condição de testemunha da história,
ressaltada por seus primeiros críticos e pelos estudiosos que, posteriormente, tomam o
Autor, o grupo do Autor, ou os movimentos educacionais das décadas de 20 e 30 como
objeto de estudo.

160
As três dimensões: o Censo, a cientificidade da obra e a sua participação como
sujeito histórico, permitiram a Azevedo construir uma história da educação brasileira,
cujo marco fundamental é sua atuação; e esvaziar o caráter político dos embates
empreendidos no movimento educacional, através da homogenização dos grupos que se
encontravam na contenda, estabelecendo suas identidades e os limites de suas atuações,
excluindo da história as derrotas políticas que sofreu.
A Cultura Brasileira é, ao mesmo tempo, escrito político e científico:
- escrito político, por Azevedo ter estabelecido uma determinada leitura da história que
lhe interessava, na medida em que firmara a identidade dos grupos em conflito, sua ação e
o modo como deveriam ser entendidos os acontecimentos - notabilizando a si mesmo e se
projetando como marco fundamental, num momento em que seu projeto político parecia
estar derrotado - excluindo, portanto, a “derrota” política dos embates no campo da
Educação;
- escrito científico por ser produzido dentro das regras propostas pelo programa teórico-
metodológico eleito pelo Autor.
As dimensões, tanto política como científica da obra, possibilitaram sua projeção
como fonte de referência fundamental da história da educação brasileira e a sua
transformação em memória.
O processo de transformação da obra em memória ainda não foi elucidado, porém,
algumas pistas podem levar às hipóteses a serem exploradas com esse intuito. As
considerações expostas são possíveis caminhos a serem trilhados com base neste estudo e
em outros que vêm sendo efetuados no âmbito da Historiografia da educação Brasileira.
O exame dos trabalhos expostos no primeiro capítulo nos indica a importância que
adquiriu a história da educação/história da cultura produzida por Azevedo. Por um lado o
Autor é personagem-testemunha dos acontecimentos - seus atos e seus escritos são
tomados como “documentos”, pistas para a reconstrução do passado. Por outro, a História
produzida por ele tem se perpetuado na historiografia da educação brasileira, como
memória - fonte dos fatos históricos, tal qual foram, que podem ser utilizados em
diferentes espécies de explicações do passado, mesmo por aqueles autores que criticam
suas posições teóricas.
Como Azevedo tem conseguido se manter nestas duas posições - personagem da
história e, ao mesmo tempo, criador de uma memória, que alicerça sua própria história?

161
ou seja por que os estudiosos que têm Azevedo como objeto acabam por repor sua
memória ? Onde está a eficácia da história produzida pelo Autor?
Reafirmo que este trabalho não tem a pretensão de responder a tais questões,
porém o estudo aqui apresentado pode fornecer algumas pistas que contribuam para o
desvendamento desta memória.
Um dos indícios da permanência na historiografia da educação brasileira do tipo
de História que Azevedo produziu e que deve ser explorado, é a estruturação lógica de
exposição d’A Cultura Brasileira. Tal estrutura se caracteriza por apresentar, em primeiro
lugar, os fatores da cultura - ou o contexto econômico, social, político - que a
determinam; seguido da descrição da cultura; e, por fim, examina a educação sob
determinados recortes temáticos. Tal estrutura parece assemelhar-se com a dos textos de
alguns autores examinados nesta dissertação, e com os trabalhos de uma das tendências
estudadas por Warde.
Ao balancear a produção das dissertações e teses da História da Educação
Brasileira, Warde aponta como uma das características, justamente o “tratamento
setorizado daquilo que é tomado por determinações econômicas, sociais e político-
ideológicas” (Cf. Warde,1984:4). As determinações são expostas separadamente do
objeto que se pretende estudar, isolando as diferentes causas segundo os diferentes “tipos”
de fatos: os econômicos, os políticos, os sociais e os culturais para, sobre este “pano de
fundo”, apresentarem seu objeto. Mesmo partindo de diferentes aportes teóricos, a lógica
de exposição dos trabalhos de história da educação brasileira permanece inalterada,
constituindo uma espécie de padrão. Esse “padrão” estabelecido na Historiografia da
Educação Brasileira, parece ter semelhanças com a estruturação da lógica de exposição
d’A Cultura Brasileira. A lógica de exposição proposta por Azevedo tem sua
fundamentação no programa sociológico de estudar o passado, no qual as causas ou os
fatos causais devem ser isolados e explicados separadamente do objeto.
Outro indício de permanência do modo sociológico, proposto por Azevedo para
estudar o passado, é a maneira como lida com os “acontecimentos” históricos para
constituir sua interpretação, colhendo-os em outros autores ou nas fontes informativas.
Para o Autor, isso é uma operação metodológica correta, na medida em que o trabalho dos
sociólogo não é produzir os acontecimentos, mas a partir deles, explicar as condições
gerais que propiciaram a sua existências.

162
Warde verifica, em relação a uma das tendências da historiografia da educação
brasileira, que
o trato das chamadas determinações contextuais é feito através da busca de apoio
a obras que nem sempre se compatibilizam entre si e nem sempre servem de
efetivo suporte às posições educacionais que se quer defender ou às críticas que
se quer elaborar a determinados rumos da educação, ou ainda, que não se
compatibilizam com obras que servem de apoio à caracterização da
educação.(Warde,1984:5)
As fontes, utilizadas pelos pesquisadores de uma das tendências da História da
Educação Brasileira, assemelham-se na forma à operação de Azevedo de colher nas fontes
- informativas os dados e os acontecimentos. A proposta desse programa de História da
Educação Brasileira não estaria mais interessada em buscar no passado a explicação
sociológica para o presente atribuindo à história uma função tal qual propôs Azevedo?186
Se assim for, Azevedo pode ter inaugurado um modo de fazer História da Educação
Brasileira no qual não há a preocupação em reconstruir os fatos históricos em si; o
passado contribui com a elucidação do presente. A historiografia pode ter herdado de
Azevedo não só a memória, mas as marcas conformadoras observadas por Warde
A História da Educação Brasileira carrega uma marca que lhe é conformadora: a
de ter nascido útil e para ter sua eficácia medida não pelo que é capaz de explicar
e interpretar dos processos históricos objetivos da Educação, mas pelo que
oferece de justificativas para o presente.(Warde, 1990:9)
Talvez um estudo mais aprofundado a partir dessas pistas indique que a história
escrita por Azevedo não só se perpetua como memória, mas também como procedimento,
como método - adotado pelos historiadores da educação, no modo como articulam suas
fontes (secundárias), no tipo de fontes documentais que utilizam e na função atribuída à
História187.
Essa hipótese, porém, pode indicar outro problema característico dessa tendência
histotriografia, que não pretende seguir os mesmos aportes teóricos de Azevedo e, por
vezes, criticá-lo: haveria uma diferença fundamental entre o procedimento de Azevedo no
lidar com as fontes e na maneira como estrutura a sua obra, e o que tem se produzido no

186
Ver sobre a questão da funcionalização da História por uma tendência da historiografia da educação
brasileira, em Warde, 1990:9). Ver também Bontempi e Toledo, 1994:14-15. (mimeo)
187
Ver Mirian J. Warde,1984; 1990a; 1990b; Carvalho e Nunes, 1993; Carvalho,1989; Nunes, 1992.
163
âmbito da historiografia da educação brasileira. Os procedimentos de Azevedo são
inscritos numa determinada perspectiva de perscrutar o passado; há uma lógica peculiar
no modo como “arruma” os diferentes autores e como justifica essa “arrumação”. O
método eleito pelo Autor consolida os procedimentos. Será que, para os pesquisadores da
História da Educação Brasileira, essa fusão das diferentes fontes, bem como sua
implicação tem sido consciente e justificada em seus aportes teóricos como o fez
Azevedo?
Por fim, outra questão relacionada a esta é a possível diferença que pode existir
entre o programa azevediano de buscar o passado e o programa que tem ancorado
algumas tendências da historiografia da educação brasileira. Azevedo opta
conscientemento por fazer Sociologia e não História e ainda, marcado por essa opção
submete o produto da História ao trato da Sociologia como única possibilidade de
produzir ciência com o estudo do passado.
Acredito que estas pistas poderão ser seguidas em outros trabalhos de
Historiografia, o que permitirá elucidar as implicações entre o modo inaugural de
Azevedo produzir História e a História da Educação Brasileira que tem sido produzida
nos programas de pós-graduação em Educação.

164
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168
Anexos

Tabela Geral dos Problemas Ordenadores

Tabela dos Problemas Ordenadores de A Cultura Brasileira

Modificações da Terceira Edição de A Cultura Brasileira

Bibliografia Geral das Obras de Azevedo

Bibliografia de A Cultura Brasleira

169
Sumário

INTRODUÇÃO 1

A CONTINUIDADE DO ESTUDO DA OBRA DE AZEVEDO 7

FERNANDO DE AZEVEDO COMO OBJETO DA HISTÓRIA 12

O CRIADOR: FERNANDO DE AZEVEDO COMO OBJETO DA HISTÓRIA 13


A MEMÓRIA: UMA HISTÓRIA COM LONGA DURAÇÃO 25
A CRIATURA: A CULTURA BRASILEIRA COMO OBJETO DA HISTÓRIA 37

AS AVENTURAS E DESVENTURAS DO CRIADOR 57

AS AVENTURAS 63
AS DESVENTURAS 71

A IMPORTÂNCIA DO CENSO COMO LOCUS DA OBRA 93

O PROJETO DO CENSO 95

A ARQUITETURA D’A CULTURA BRASILEIRA: DEFINIÇÃO, TEMA, PERÍODO E


FONTES 106

A CULTURA BRASILEIRA: UM BRASIL MAIS CONHECIDO DOS BRASILEIROS 106

AS FONTES 127

AS CONFORMADORAS 132
O CONSENSO 139
AS FONTES INFORMATIVAS 145

CONSIDERAÇÕES FINAIS 155

BIBLIOGRAFIA 165

ANEXOS

TABELA GERAL DOS PROBLEMAS ORDENADORES I


TABELA DOS PROBLEMAS ORDENADORES DE A CULTURA BRASILEIRA XXX
MODIFICAÇÕES DA TERCEIRA EDIÇÃO DE A CULTURA BRASILEIRA XLIV
BIBLIOGRAFIA GERAL DAS OBRAS DE AZEVEDO XLVI
BIBLIOGRAFIA DE A CULTURA BRASLEIRA XCVI

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