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Produzidos com rigor e

criticidade, os textos desta obra


coletiva se caracterizam por Halferd Carlos Ribeiro Junior

terem compromisso político, Professor da Universidade

além de problematizarem as Federal da Fronteira

concepções dicotõmicas que Sul/Campus Erechim (RS);


desvinculam a pesquisa do Licenciado/Bacharel (2004)

ensino, a teoria da prática. e Mestre (2008) em História

Na primeira seção, os autores pela Unesp-Franca; Doutor

analisam a BNCC e o seu em Educação pela Unicamp

processo de elaboração, (2015); pesquisador de

revelando múltiplos olhares pós-doutorado (2017) da

sobre a construção social Unicamp e da Universidade

do currículo, as perspectivas do Minho.lntegra o Mestrado

pedagógicas do referido Interdisciplinar em Ciências

documento e as possibilidades Humanas. Trabalha na área de

de atuação de professores, ensino de história.

estudantes e comunidades
escolares diante das atuais Mairon Escorsi Valério

tendências de configuração Professor da Universidade

curricular. Na segunda seção, Federal da Fronteira

os textos abarcam experiências Sul/Campus Erechim (RS);

de formação docente e de Coordenador do Curso de

práticas de ensino de História Licenciatura em História

no Brasil e em Portugal, (2016-2017). Doutor em

examinando seus limites e História Cultural pela Unicamp

potencialidades por meio (2012). Autor de Entre a cruz

de projetos que respeitam e a foice: O. Pedro Casa/dáliga

o princípio de autonomia e a significação religiosa do

dos sujeitos. Em suma, um Araguaia (Paco Editorial,

conjunto de textos que 2012).1ntegra o Mestrado

compartilham inquietações, Interdisciplinar em Ciências

um convite ao diálogo sobre Humanas e o Profissional em

educação e a construção de Educação.

sociedades efetivamente
plurais e democráticas.
HALFERD qARLOS RIBEIRO JÚNIOR
MAIRO N ESCORSI VALÉRIO
ORGANIZADORES

fN!liNO
Df Hl!lTORIA
"

f CURRÍCULO
REFLEXÕES SOBRE A
BASE NACIONAL
COMUM CURRICULAR,
FORMAÇÃO DE
PROFESSORES E
PRÁTICA DE ENSINO

PACO �EDITORIAL
Conselho Editorial

Prola. Dra. Andrea Doming u es Prola. Dra. ligia Ve rcelli


ProL Dr. Antônio Carlos Giuliani Prol. Dr. Luiz Fernando Gomes
ProL Dr. Antonio Cesar Galhardi Prol. Dr. Marco Morei
Prola. Dra. Benedita Cássia Sant'anna Profa. Dra. Milena Fernandes Oliveira
Prol. Dr. Carlos Bauer Prof. Dr. Narcs
i o Laranjeira Telles da Silva
Prola. Dra. Cristianne Famer Rocha ProL Dr. Ricardo André Ferreira Martins
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Prol. Ms. Gustavo H. C. Fe rr eira Profa. Dra . Thelma Lessa
Prof. Dr. Humberto Pereira da Silva Prol. Dr. Vantoir Roberto Brancher
ProL Dr. José Ricardo Caetano Costa Prol. Dr. Victor Hugo Veppo Burgardt

@2017 flalferd Carlos Ribeiro Júnior; Mairon Escorsi Valéria


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E59B

Ensino de Histór ia e Currículo: Reflexões sobre a Base Nacional Comum


Curricular. Formação de Professores e Prática de E ns ino I organizaçã o Hal­
lerd carlos Ribeiro Júnior e Mairon Escorsi Valéria J undiaí: Paco Editorial,
-

2017.
264 p.

Inclui bibliogr afia


ISBN: 978-85-462-0951-4

Ensino de História 2. Prática de Ensino. 3. Formação de Professores.


I. RIBEIRO JUNIOR, H. C, 11. VALÉRIO, M. E. 111. Título.

CDD 372.89

I'ACO � EntTORtAL

Av. Carlos Salles Block, 658


Ed. Altos do 1\nhangabaú, 2° Andar, Sala 21
Anhangabaú- Jundiaí-SP- 13208-100 Para Pedro, Gael e Marina, Samud c Bcnja111in, ( héo, Santiago, Lucas.
'

11 4521-6315 J24119-0740
cuntato@editorialpaco.com.br

Foi Feito Depósito Leg al


SUMÁRIO

PREFÁCIO 7

I. ENSINO OE HISTÓRIA E BASE NACIONAl. COMUM CURRICULAR:


DESAFIOS, INCERTEZAS E I'O k�)DADES 13
\ Katifl Mt�ritt Abud (Prf' C<

,2. ENSrNO DE HIS'fÓRIA E PASSADO PRA'nco: NCYfAS SOBRE A BNCC j 27


Niltrm Mullet Pereira; /v[ara Cristina de Matos Rodrigues (�l/f j,.,f
3. PARADOXOS ENTRE POLÍTICAS E A CONSTRUÇÃO DO COLETIVO:
CURRÍCULO E A HISTÓRIA ENSINADA 47
Mttr ia do Carmo Martins

4. Ü ENSINO DE HlSTÓIUA NA BNCC: PLURALISMO DE IDEI1\S


OU GUERRA DE NARRATfVASr 67
FMvitl Eloistl CtJimi; Sandra Regina Ferreira de 0/iveim

5. Ü I.AOIRINTO DAS IDENTIDADES NO BRASIL: CURRÍCULO(s)


DE HISTÓRIA PARA OS ANOS INICIAIS DO ENSINO FUNDAMENTAL 83
Renilson Rostl Ribeiro; Osvaldo Rodrigues Junior
•;'�·te._
l)c1o'l.'1 I'( d,
6. "Eu ACUSO", "EU COMPREENDO"- UMA NOTA DE CONTRIBUIÇÃO
AO DEBATE SOBRE LIBERDADE, IMPARCIALIDADE E
"NEUTRALIDADE" EM SALA DE AULA 113
GeriOn Egas Severo

7. fORMAÇÃO INICIAL DO PROFESSOR DE IIISTÓRIA E I'.S'Ii\GIO


SUPERVISIONADO: REFLEXÕES SOBRE A UNIVERSIDADE
FEDERAL DA FRONTEIRA SUL E A UNIVERSIDADE DO MINHO 125
Halferd Carlos Ribeiro ]tínior

8. A COMPREENSÃO 00 TEMPO PARA O DESENVOLVIMENTO DO


PENSAMENTO HISTÓRICO: UM ESTUDO COM ALUNOS
PORTUGUESES DO 1° CICLO DO ENSINO uASICO 141
Anabela Costa; Glória Solé
9. Ü UF:SENVOLVIMENTO UA C0l\·11'REENSÁO I-IISTÓRICA ATRAVÉS DE
PREFÁCIO
UMA AIIORI>AGEM DE APRENDIZAGEM COOPERATIVA: Ut\·1 PROJETO
163
É com grande sarisfàç..'io que aprcscnramos o livro Ensino de His­
COM ALUNOS PORTUGUESES DO 3° ANO DO ENSINO BÁSICO
Joana J>inumtr.l; Glória Soll
Reflexões sobre tl Base Nttcionttl Curriwlttr Comum,
tória e CurrícuLo:

I Ü. P RODU ÇÃ O DO SABER HISTÓRICO ESCO.t.AR NO ENSINO


Formarão de Professor es e Prática de Ensino. Essa coletânea de textos é

MUI.:I'ISSEIUAUO: RELATO DE EXPERIÊNCIA DOCENTE DO o resultado do li Seminário de História da UPPS/Erechim: Ensino


ESTÁGIO CURRICULAR SUPERVISIONADO DA GRADUAÇÃO EM de História e Currículo, realizado emre os dias 3 e 6 de ouwbro de
HISTÓRIA OA UFFSfERECHIM 183 2016, no qual contamos com a presença de importantes professores
!Jnma !Jaldin; Marreane Ctllia Santo/in Biscaro; Halferd Carlos Ribeiro]1ínior e pesquisadores do Ensino de História no Brasil, que discutiram a
principal pi:;blemátiavd�sino de Hi� conremeoran�­
11. ESTÁGIO SUl'ERVISIONJ\00: O FINAL DE UMA TRÍADE... 203
dade, �Üu[Uraçáo� urriculã!y do sistema de ensino. Ainda, in­
Daitma Paula VttrotlrJ; Hmritjltl! Antônio Trizoto
cluímos texros que atravessam as nossas preocupações cotidianas,

12. 0 ENSINO DA IIISTÓIUA ATRAVÉS DE f!t fOTIOIANOS


JETOS 221
a formação de professores e a pdtica de ensino. Os autores que
compõem a coletânea são os conferencistas do evento, professores e
Caroline Rippe de Mello Klein
��'!,Vl/"- M.<<''dw.·J pesquisadores convidados, os amigos do colegiado da Licenciatura
13. DESMISTIFICANDO O TAUU DO TOTEM: REFLEXÕES de História da UFFS/Erechim e alguns de nossos alunos que siste­
TEÓRICO-METODOLÓGICAS PARA O .E NSINO RELIGIOSO A matizaram a experiência docente do estágio. Deixamos registrado
PARTIR DE UMA ABORDAGEM HISTÓRJCA 235 o nosso agradecimento aos aurores, que viabilizaram a composição
Paulo}. S. !Jillencottrt dessas reflexões sobre o ensino de história e currículo.
O evento foi realizado em quatro noites e uma rarde. O primeiro
14. NA OFICINA DO LIVRO UIUÁ'I'ICO: ASPECTOS PARA A DISCUSSÃO DE
dia contou com a mesa "Ensino de História e a 13asc Nacional Co­
UM DOCUMENTO RELEVANTE f'ARA AS ANÁI.ISES DE ENSINO
mum Curricular: Desafios, Incertezas e Possibilidades", tendo como
UE HISTÓRIA 247
conferencistas a Prof. Ora. Kátia Maria Abud e o Prof. Dr. Nilton
Mairon Escorsi Valbio
Mullet Pereira; no segtmdo dia reservamos a noite para a realização
de oficinas, com o objetivo de discurir teoricamente e realizar prá­
ticas de ensino com os graduandos e professores da região, sendo
"Ensino de História e Literatura" ministrado pelos professores Hal­
fcrd Carlos Ribeiro Júnior e Renilson Rosa Ribeiro, "Cartografia e
Ensino de História" pelo Prof. Anderson Matos Teixeira, "Ensino
de História e Çtrl � pela Prof:l. Caroline Rippe, ��­
si�ria e C: � Io prof Mairon Escorsi V.1lério. No
terceiro dia do evento, à tarde, ocorreu a apresentação de trabalhos,
relatos e pesquisas que tiveram como principal enfoque a experiên­
cia docente; à noite ocorreu a mesa "Ensino de História c Memória:

7
IIA�.PI'R" CAlu.os l\•ur.111<1 JúNIOR I MAIRON Escnns• VALr.mo (onc:s.)
ENSINO OE H1STÓJUA E Cunufcut o

Currículo c Vida de Professores", em que os professores da "antiga"


pelos capímlos "Ensino de História e Base Nacional Comum Cur­
da região apresentaram a sua trajetória profissional e prática docente
ricular: Desafios, Incertezas e Possibilidades", de Katia Maria Abud;
tanto na Educação Básica quanto no Ensino Superior, �me�
"Ensino de História e Passado Prárico: Noras sobre a BNCC", de
paútict a �n sibilidade, e�Gesistênci� e -ª-c�� no en­
Nilton Mullet Pereira e Mara Cristina de Macos Rodrigues; "Pa­
sino de história como _impo� elemen��_formaçao mr_sgr!!5
radoxos entre Políticas e a Construção do Coletivo: Currículo e a
política do indivíduo face às "assombra_róes" em que viv�s . Essa
l listória Ensinada", de Maria do Carmo Martins; "O Ensino de
mesa foi organizada pela Profu. Ora. Isabel Rosa Gritti, tendo como
História na BNCC: Pluralismo de Ideias ou Guerra de Narrativas?",
conferencistas a l'rofa. Gládis Wolf,f Prof Ernesto Casso!, Pro(
ele Flávia Eloisa Caimi e Sandra Regina Ferreira de Oliveira; "O La­
Neivo Fabris e Prof. Enori Chiaparini. No quarto dia, a mesa de
birinto das Identidades no Brasil: Currículo[s] de História para os
encerramento, intitulada "Ensino de História c Currículo : Prática
Anos Iniciais do Ensino Fundamental", de Renilson Rosa R.ibeiro e
de Ensino, 'leoria e Pesquisá , foi formada pela Profa. Ora. Maria
'

Osvaldo Rodrigues Junior; e '"Eu Acuso', 'Eu Compreendo'- Uma


do Carmo Martins e pelo IJrof Dr. Renilson Rosa Ribeiro. A� dis­
nora de Contribuição ao Debate sobre Liberdade, Imparcialidade e
cussões foram profkuas e contribuíram com importantes reflexões
'Neutralidade' em Sala de Aula", de Gerson Egas Severo.
sobre currículo, formação de professores e prática de ensino .

A segunda seção apresenta os capítulos que têm como foco a te­


Concomitantemente às discussões no auditório da universida­
mática da Formação de Professores e Prática de Ensino, sendo "For­
de, ocorreu durante todo o evento a exposição "Direito à Memória
mação Inicial do Professor de História e Estágio Supervisionado:
c à Verdade- A Ditadura no Brasil: 1964 a 1985", da Secretaria Es­
Reflexões sobre a Universidade Federal da Fronteira Sul e a Universi­
pecial dos Direitos Humanos da Presidência da Repttblica, que teve
dade do Minho", de Halferd Carlos Ribeiro j(111ior; "A Compreensão
a sua primeira exibição na Câmara dos Deputados, em Brasília em
do Tempo para o Desenvolvimento do Pensamento Histórico: Um
2006; a organi1..açáo no âmbito local coube ao nosso amigo l1rof Dr.
Estudo com Alunos Portugueses do 1 ° Ciclo do Ensino Básico", de
Gérson Fraga, provocando um diálogo entre os debates no auditório
Anabela Costa e Glória Solé; "O Desenvolvimento da Compreensão
c a exposição no saguão, afinal, que ensino de hi stória desejamos?
Histórica através de uma Abordagem de Aprendizagem Cooperativa:
O evento foi realizado a partir do financiamento da Capes,
Um Projeto com Alunos Porrugueses do 3° Ano do Ensino Básico",
por meio do Prog n ma de Apoio a Evento no País (Pacp/Capes) e
de Joana Pimentel c G lória Solé; "Produção do Saber Histórico Es­
dos recursos de custeio da Universidade Federal da Fronteira Sul
colar no Ensino Multisseriado: Relato de Experiência Docente do
- Campus Erechim, em especial dos destinados ao Colegiado da
Estágio Curricular Supervisionado da Graduação em História da
Graduação em História e ao Programa de Pós-Graduação Inter­
UPFS/Erechim", de Bruna Baldin, Marceane Catia Santolin Biscaro
disciplinar em Ciências Humanas. A organização do evento coube
e Halferd Carlos Ribeiro Júnior; "Estágio Supervisionado: o Final de
aos professores Mairon Escorsi Valério (Coordenador do Curso de
uma Tríade ...", de Daiana Paula Varotto c Henrique Antônio Trizoto;
História) e Halferd Carlos Ribeiro Júnior (Coordenador Adjunto
"O Ensino da História através de Ohjccos Cotidianos", de Caroline
do Curso de História), uma parceria que também propiciou a cria­
Rippc de Mello Klein; "Desmistificando o T�bu do 'lotem: Reflexões
ção do grupo de pesquisa EHMI (Ensino de História: Historiograha,
Tc6rico-Metodológicas para o Ensino Religioso a partir de uma Abor­
Memória c Identidades).
dagem Histórica", de Paulo J. S. Bitrcncoun; e "Na Oficina do Livro
O livro está organizado em duas scç�, as discussões em tor­ Didático: Aspecros para a Discussão de um Documento Relevante
no do Currículo e da Base Nacional Comum Curricular, composta para as Análises de Ensino de História", de Mairon Escorsi Valéria.

8
9
I MAII«lN Esc:ons1 VAt.f.run (onc:s.)
ENsJNO uc III�TÓRIA e. CuunfctH o
I IAt.rrnn CAni.OS R'"r.•no JúNIOn

�'-- 17] )
� a como um fçnômeno � --
Na dinâmica histórica em que vivemos c as transformações no A consideração d
sistema de ensino e no currículo, mais uma vez as argtunentaçócs de per mi te-me consi derar as arenas naç quais a reforma
ocorre
Goodson (2013) e de Popkcwitz (1997) são bastante provocativas c, ao mesmo tempo, acompanhar questões s obre as di feren-
c elucidativas. Goodson, estudando a construção do Currículo Na­ tes relações entre a escolarizaç..1o c a sociedade ao longo do

cional na Inglaterra da década de 1980, afirmou ue em momentos tempo. Reforma é uma.p.al�gn.ificado varia cop­
forme a posição que ela o cupa, se dentro d tr:msformaçóe.'>
dc_dispums, por vezes, oco.r a anuten áo o tra icion ' o ar­ �
que têm ocorrido no ensino, na formação de professores, na�
gumento da mudança procura vincular a reorganização curricular
ciências da educação ou na teoria diLf.UJ:rÍculo a part i.!_.çlo
com a renovação e o progresso, no entanto, o retorno ao tradicional, final do..séQ!Io XIX Ela não possui um significado ou defini-
acaba por esconder os grupos sociais envolvidos na construção do ção essencial. N<;!!U!!llr-ouco significa � em qu;tl­
currículo, e os sem posicionamentos políticos. qucr sentido absoluto, mas im plica, sim, uma consideração
das relações sociais e de pod er. (Popkcwitz, 1997, p. 12)
A mobilização dos argumentos para construção de um Cur­
/ rkulo Nacional na Inglaterra nos anos 80 sob a política O processo de reorganização do sistema ele ensino e do currí­

tO1\.1�I}J�
� indica um retrocesso em r4!-ção ao a va nçQJlos culo em curso tem provocado o debate sobre o ensino de História,
� awumtcriu.res. c a reorg!lnização da escola para atender a :
_ o que ensinar? E como ensinar? Como formar os professores? Qual
tk.rp a ns!.a: doJncrcadu e de uma nova regulação social [ ..J sociedade estamos construindo? Com csrc livro, pretendemos lançar
Uma visão específrca c um segmento privilegiado da nação
reflexões sobre essas e outras questões, c contribuir com o debate
foram, purtanto, reintegrados e priorizados, e a legislação
sobre os rumos do sistema de ensino c do currículo de história que
considerada "nacional" era, na verdade, relevante apenas
está se constituindo no Brasil na conremporancidade.
Enfim, desejamos uma boa leitura! E pc1�0 aRo; provavel-
para essa visão e esse segmento. (Goodson, 20 13, p. 16)

mente o próximo rema do Ill Seminário de História da UFFS/Erc-
Popkcwirz compreende que uma rç(QIDla.educacional conuibuL chim (expectativa de ser realizado em 20 18) seja Ensino de História
p.!r_a uma �� sõéij), a ideia de reforma não se restringe c Resistência....

a uma reorganização curricular, mas tun movimento de reforma in­ --

clui a reorganização do sistema de ensino, criação de novos órgãos Erechim c São Paulo, abril de 2017.
na burocracia, regulamentações e também o ró rio currículo, de­
notando uma dinâmica entre a so "cda cs oi cõííhecime� c Mairon Escorsi Valéria
,�-:'Nas diversas arenas para definição do currículo e do sistema Halferd Carlos Ribeiro Júnior
de ensino, diversos sujeitos estão presentes, professores, pais, alunos,
políticos, intelectuais e burocratas. No entanto, procura dcsnatura- Referências
,-t'�(/' h'-lizar a ideia de reforma como sinônimo de progresso. Ainda, assim
8"v) lo mo Goodson, compreende a reforma como um amplo movuncn­ _ GOODSON, 1. E As Políticas de Currículo c de Escolarização. 2. ed.


\ to, sugerindo que após um momento de abertura e ampliaç.'ío so- Petrópolis: Vozes, 2013.

1: cial, é seguido por um momento de retrocesso. POPKEWlTZ, T. S. Reforma Educacional: Uma Política Sociolóbrica­
Poder e Conhecimento em Educação. Porto Alc.:grc: Artes Médicas, 1997.

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11
1

ENSINO DE HISTÓRIA E BASE NACIONAL


COMUM CURRICULAR: DESAFIOS,
INCERTEZAS E POSSIBILIDADES

Ktllia Jvlaria Abud


Fam!dt�de de Eductlçáo da Universidade de Siio Paulo

O ensino de História rem sido o campo de b:ualha predileto


para as o trovem ue se travam sobre o passado. Currículo, livros
didáticos e o ensino de História em geral constituem um campo de
intensa discusgg itl�à sobr�tso_Qo eassado nas sociedades
contemporâneas. Esse faro cria um ambieme que é ramo ameaçador
-

como estimulador para a didática da História. A�princip�is propos-


? .1J. 1q.v
tas cOÍlcei��tals'lpara o ensino da Hist _:ia, como Consciênci;'LHis-
tórica, História Cultural ou mesmo �Liter�istórica, têm cada
vez �ais
t
,J}�
que lidar com as sucessivas reformas que exercem papel �cf!':.Jl

transformador sobre currículos, livros didáticos c profissionais da � P;


educação. Como o ensino de História torna-sepropriedade públi.ça .. c�V" Q,

rem que enfrentar sua relação com a memória, om as memórias e 1r" ).P '

com as diferentes agências de memória desenvolvidas ao extremo , 't,t\r-�


na virada do século XX para o XXI. Tem também de se reposi-
cionar no campo amplo criado por estudos de história, de história
pública e dos esrudo_s_çJJiturais. E, principalmenre, em decorrência
da expansão cada vez maior da §§!_a secun� com as transfor-
mações que essa mesma expansão de ensino introduz, os currículos
assumem cada vez mais papel de importância nas formulações da
11�esco::Q (Repoussi; Tutiaux-Guillon, 2010, p. 154-170).
Por essas razões, com frequência o poder pítblico produz docu­
mentos educacionais que apresentam novas formas de organização
escolar, com renovadas estruturas curriculares, que s�p �
transformadoras do que poderíamos chamar dt: "núcleo duro" do
sistcm�ducacionai,
_ �Clo pelosol'}jCrivos, por métodos e
técnicas de ensino e por listagem de conrct'tdos das diversas disci-

13
I l.o\I,FF:RCJ CAnJ.oS Ruu�mo júNton I MAIIWN EscoRSI VAulmo (nn.c.s.) ENSINO "" HosTÓHIA r, CunnfcuLO

plinas a serem desenvolvidas no ambiente escolar. A olho nu, são dficos? Essa dicotomia, contudo, pode provocar conflitos à medida
os as�uhues...as faces mais representativas das _eolíticas que se procura conciliar as exigências cobradas pelos dois aspectos do
púb_licaula�a.e._ ducacion;U. SáQ..J;!mb ém o C<!...minho mais... .fácil currículo. O currículo maior, mais amplo, que abrange todos os vãos
P!!.!'a a�- �ffii
Cõ")p_s.duca.ÇJio, como resultado do sistema escolar, se localiza na origem dos currículos fragmentários
de pressões de grupos hegcmônicos da sociedade civil, por isso re­ das disciplinas c1ue dele decorrem (Kelly, 1981, passim).
formas curriculares não são furos incomuns entre nós. A cada troca A visibilidade transforma o currículo no ponto central do pro­
ide grupos em nossos órgãos de poder, a cada posse de novos líderes
políticos, surgem p�ostas de modificaçfuL
in.r_rodução de novos
.
métodQ§... .O.U_ .
de... sistcmas de ensino, a
implesmente troca de conteúdos,
cesso educacional, pois expressa com mais clareza as concepções e as
políticas públicas que provocaram sua elaboração. Graças a essa visi­
bilidade, ele pode ser entendido como o coração do processo educa­
espe�ialmente no ensino das Ciências Hmna.!!ª s· cional, "pois nele precisa pulsar o que de melhor existe em teorias e
Reconhece-se a importância da educação, mas ela é vista so­ experiências, em avanços do saber e sentimento de realidade vivida e
mente como um instrumento político. Mudanças governamentais conhecida" (MEC; CNE, 2013). Contudo, pode ser visto também
implicam em diferentes visões de mundo e configuram, no que se como as listagens de metodologias, objetivos, conteúdos das �íreas
refere às políticas educacionais, mn "corpus de representações e de de estudos em particular, para os quais se utiliza a expressão em sua
normas que fixam e prescrevem de antemão o que se deve e como versão adjetiva. "�opostas curriculares", "ot:M:.Ut.'1,Ç.ÓeS_9!Uifulai:çs",
se deve pensar, agir c sentir" (Chaui, 2016, p. 245-247). Por sua "parámetros c��! �são ex_E.!!ss.§.�S:J.Uf yfm_§!tPStituindo,�des:
.
vez, se traduzem em outras concepções de escola, do ensino c de . Q5
de ÕS 4!l.oil.2Z.O,.o. s! og ramas de ensíW',_g_l!ase semere elabora­
suas finalidades. Nas instituições do Estado, nas quais os represen­ do��los órgãos oficiais da educaç�.QS..Q.Ijo_cump.rimeJ1!�9Eri:.
tantes da elite atuam como intelectuais, aquelas idcias teriam nos gatq_rig_, .C:}TI pel���lOS_8.0_o/o_de ssu���eÚQO, d!!@ill.Ç,.!)....!!!!Q letiV..!1
documentos curriculares o veículo apropriado para sua difusão e No centro dessa discussão, mesmo que não seja citada a Histó­
implementação na sociedade. Teriam principalmente um papel im­ ria, essa disciplina escolar será sempre apontada, po[que o conheci­
portante na e!j.hiCrÇ:iO@TCà) pois é..a burocG�estatal que legisla, mcntMisrórico é a p�:in.dpal-fc�uiuiR'tta construção da çrrn�ciên­
�gwamcnta_e_�p-�.d.<!g2gLc.Q; Quando o discurso cia ��r!f.a,� a.rric:;!!la..Q_P.assado_
. g>l,ll.ill' prien.rações do P-l.!!:'!f.!.!.�
a � Y.Wido pelo poder político se pronuncia sobre a educação, define
l
c com as d�t�ções de se��� as q�ais o �gir lu�
r,:�b �tsentido, forma, finalidade e conteúdo (Chaui, 1980, p. 40-44). organiza ...suas inten_ç§.es �exeec�a.§.._Uo_fluxCLdo_tempo.. É nas
� � rCurrículo entre nós é um termo ICOtomico. Pode tanto se referir escolas qu:: se
.
.8:t@fiãl� e onde se cruzam de 111odo 5.9�
\t-"r �\..P\Yà concepção de currículo maior, que atinge todos os vãos do sistema metido o conhe�cimQH<?S,i��� !?-e !2. conllefim�nto escolar.
f\D
0�
�\"'
escolar e
' ' c: ' das
c o ponto d e partt"da para os curncuIos rragmentanos
.
Em torno da Hist<)r.�m os conhecimentos que n��permi­
t
disciplinas- que englo�am os objetivos, metodologia de ensino, con­ rem perceber o �rten�unento ao temr.o e local em Q!J,Ç....\'Ív:�os.
teúdos, atividades extraclassc, recursos didáticos, bibliogr�úia -, como A� concepções históricas com as quais travamos conhecimento na
pode indicar as formas mais amplas de organização da instituição es­ escola terão, certamente, papel importante na elaboração de nossas
colar. Se, atualmente, o conceito de currículo se tornou mais abran­ visões de mundo c dos conceitos que nos levarão a atitudes e com­
gente, ao atingir todos os aspectos escolares, e já que pode se estender prometimentos (ou ao descompromisso) em relação às transforma­
'li!iãlid lim!!!lli!R• essa maneira, por que não poderia adjetivar a �:ões do mundo em que vivemos. As listagens de comeúdos contêm
elaboração das atividades escolares relacionadas aos conte(tdos espe- :1s concepções a respeito das sociedades c de suas transformações,

14 15
ENSINO oF. HISTÓRIA E CuRnlcui.O

que revelam a valorização de conceitos, o peso atribuído à cronolo­ discurso ideológico, criaram também uma disciplina científica, da
gia, aos heróis e a fatos consagrados. qual decorreria uma matéria escolar (Bourdé; Martin, s/d, p. 109-
Mas nas listas de conteúdo estão presentes todos os elemen­ 1 12). Como consequência, uma boa parte da história ensinada se
tos que podem se constituir como componentes para o desenvol­ concentrou nas questões nacionais, especialmente nos temas da his­
vimento do ensino de História. No século XIX, período em que a tc'lria política, como formação e independências das nações, guerras
disciplina se organizou como forma de conhecimento, historiadores t' mudanças de regime (Symcox; Wllschut, 2009, p. 1-14).
ligados à corrente de pensamento que se identificava com o Positi­ Ao se terem como participantes da organização da escola seetmd�\­
vismo, a mais importante escola filosófica do Ocidente no período, t•ia, os historiadores levaram para ela seus valores e propuseram como
conhecida como Escola Metódica - Lavisse, Rambaud, Halphen, o mais importante objetivo da escolarização a formação política� dos
Sagnac, Monod, entre outros -, formularam programas de ensino filhos da ascendente burguesia, que constituíam o público escolar. Os
e elaboraram as obras de história destinadas aos alunos dos colégios manuais escolares foram redigidos por aqueles mesmos historiadores,
secundários e das escolas primárias francesas. que valorizaram a República, ajudaram a propagar os ideais naciona­
O surgimento da História como campo de conhecimento or­ listas ressaltando os grandes heróis da pátria e colocar�un em evidência
ganizado coincidiu com a criação das primeiras escolas secundárias, o Estado Nacional, compreendido como o sujeito das transformações.
que se voltaram para o atendimento dos jovens das camadas médias
Ao difundirem essa ideia, se tornaram importante apoio para a con­
urbanas, na realidade os únicos que seriam habilitados a frequentá­
quista colonial, na qual se empenhavam, no século XIX, os países eu­
-las .. Os jovens filhos da nascente burguesia francesa deveriam ser
ropeus, enquanto adquiriam o estatuto de estados nacionais.
preparados para assumir os encargos políticos da nação. Os pro­
A História ensinada é, portanto, produto de uma seleção, um
gramas de ensino pouco se distinguiam dos índices e sumários pu­
recorte histórico-temporal realizado a partir das "múltiplas leituras
blicados nas obras produzidas pelo viés da historiografia oficial e
c interpretação de sujeitos históricos situados socialmente" (Silva;
registravam os finos históricos a partir da cronologia. "Miniaturiza­
Fonseca, 2010, p. 13-33). As proposições curriculares são resultado
vam" os conteúdos, acreditando que assim seriam mais facilmente
de escolhas, de concepções e interpretações históricas de grupos ou
assimilados pelos aprendizes, mas mantinham e transmitiam uma
pessoas, nomeados, indicados, convidados pelas autoridades e/ou
concepção de história fortemente condicionada por objetivos políti­
órgãos educacionais.
cos. Assemelhavam-se a um resumo da produção historiográfica dos
Nos currículos e programas se articulam a escrita. e o ensino de
institutos nos quais se desenvolvia a pesquisa histórica, reportando­
História em "mna dimensão particular e específica de uso do passa­
-se a um "nacionalismo historiográfico e suas obras maiores, as cha­
do, o que implica igualmente pensar a dimensão política subjacente a
madas Histórias Gerais, cuja missão era a criação e divulgação de
uma consciência nacional [. .]" (Maestro González, 2002, p. 3-33).
.
essa forma de uso do passado" (Guimarães, 2009, p. 35-50). Por esse

Pretendia-se ressaltar as figuras dos heróis nacionais mais signi­ motivo, a História vem sendo apontada como a disciplina responsá­
ficativos, responsáveis pelas grandes transformações que ocorriam vel pela formação política dos estudantes, pois teria intrínseco ao seu
nas nações europeias, deixando de lado outros sujeitos históricos, aprendizado o desenvolvimento do pensamento político do alunado.
os grupos sociais menos favorecidos, que ficavam esquecidos como Uma leitura mais acurada dos programas de ensino permite que se
participantes do processo histórico. Ao mesmo tempo em que os vislumbrem outros objetivos que vão muito além das habilidades e
historiadores fundavam uma corrente de pensamento com um claro possibilidades de aprendizagem próprias do ambiente escolar.

16 17
1-fALFeno C.1nws Rwe1no JúNIOR I MAIRON Escons1 V.1LÉIUO (oncs.) ENSIN<l Uf. I (t!\t'ÓIHA E Cunnfcor.o

Este foi o elo da corrente que ligou quase que indissoluvelmente Qualquer relato histórico é a descrição de atos c de experiên­
a História ensinada à História dos historiadores, que seria a prin­ cias efetivadas por um determinado número de personagens, que
cipal referência do saber escolar. O ponto em comum é o fato de podem ser imaginários ou reais. Os personagens surgem em situa­
tanto a história ensinada como a acadêmica mobilizarem a mesma �·ócs de mudança ou reagem a transformações, que revelam aspectos
compreensão fenomenológica. ocultos da situação e deles mesmos, e engendram uma nova inda­
g:�çáo que, para ser resolvida, pede ajuda para o pensamento, para a
São ambas, objetos de uma elaboração, antes de serem apre­ aç:lo ou para os dois (Ricoeur, 1994, p. 15; 214).
sentadas sob a forma oficial de conteúdos de programas. A apreensão do sentido das narrativas tem também papel fun­
Esses saberes, nem completamente científicos, nem com­
damental na constituição de narrativas específicas ou narrativas
pletamente profanos são o produto de uma verdadeira cons­
c:�quemáticas. As narrativas específicas podem ser tratadas como
trução. Descontextualizados em relação à sua instância de
episódicas e, como sugere Werstch, devem ser tratadas nas suas
produção original, reformulados para serem simplificados,
[. . .] , propostos sob forma de sequências de ensino-aprend i­ "dimensões configuracionais", lembrando que possuem conjuntos
zagem nas salas de aula, eles são frutos de uma construção específicos, personagens e sequência de eventos. O autor considera
social. (Lau tier, 2011, p. 39-58) que a primeira dessas dimensões é a ordem cronológica e tempo­
r:tl, que caracteriza a história, na medida em que ela é constituída
O conhecimento histórico acadêmico é a principal referência do por eventos. A segunda dimensão é a que transforma uma série de
saber escolar, que não se configura como o saber científico simpli­ eventos em história, que ligam os detalhes da ação ou os incidentes
ficado, ensinado no âmbito da escola. O saber escolar se constitui históricos, navegando na multiplicidade de eventos para a unidade
sobre a base do conhecimento histórico em conjunção com outros de um conjunto temporal (Werstch, 2006, p. 49-62). Quando as
conhecimentos c nas relações com os saberes dos quais os alunos são narrativas específicas são produzidas por estados, geralmente, tra­
portadores. Desse modo, a História ensinada se configura como uma Iam da história política. Devido à tradição existente no ensino, este
intersecção entre algumas dimensões epistemológicas da História e padrão de narrativa é o que mais se aproxima da narrativa escolar c
as finalidades educativas de seu ensino, a partir de uma visão mais da confecção de programas e listagens de conteúdos.
histórica do que propriamente didática (Zavala, 2014, p. 1 1-40). As concepções de história predominantes no século XIX nas
Poderíamos listar aqui numerosas concepções de história c em
academias, a periodização por elas elaborada e o primado da cons-
todas teríamos clareza de sua relação com os sujeitos e suas ações
1 rução de um conhecimento positivo já se fizeram presentes nas pri­
no tempo. Marc Bloch chamou-a de "ciência dos homens", mas
meiras proposições da História como disciplina escolar, no Brasil.
considerou que era ainda vago demais, e acrescentou "no tempo".
Tinham como maior inspiração os programas das escolas france­
Alegava que o
sas, cujos manuais didáticos eram indicados ao final das listagens
de conteúdos, para serem adotados pela escola brasileira. Convém
historiador não apenas pensa "humano". A atmosfera em
que seu pensamento respira naturalmente é a categoria da lembrar que os programas se restringiam a indicar os temas sobre os
duração. [...], o tempo da história [...). é o próprio plasma quais alunos e pro fessores deveriam se debruçar ao se prepararem
em que se engastam os fenômenos e [...] o lugar de sua in­ para os exames do Colégio Pedro li, única instittúção brasileira au­
teligibilidade. (13loch, 2002, p. 55-56) torizada, até a criação dos gin�isios estaduais, já no regime republi-

18 19
I IALFCRLJ CAntOs RtnetRO JúNIOR I MAIRON EscoRSI VALÉRIO (oncs.)

cano, a fornecer o certificado de conclusão do curso secundário, o 11.1\ .1111 igas orientações que remontam ao final do século XIX, os
que correspondia ao diploma de bacharel. 1'1111\&amas C..'lnonizaram temas e personagens que há muito foram
Nas listagens dos conteúdos da disciplina podem ser desvenda­ !l�.,ndunados pelos pesquisadores, em favor de História centrada
das as concepções, a valorização de conceitos e o peso atribuídos à t'lll E11os sociais, culturais, econômicos, da mentalidade; com a

cronologia, aos heróis e furos consagrados. Os programas do Pedro ulull<lagcm sobre personagens comuns, deixando de lado os heróis
ll foram os alicerces da construç.. 'lo da disciplina escolar, imprimindo t' .wus grandes feitos para substituí-los pelos homens em suas vidas

na História ensinada as c..tracterísticas do seu tempo e permanecendo, 1nt idi:mas, pelas mulheres trabalhadoras, pelas crianças.
algumas ve-res com mais força, outras com menos, na disciplina quan­ Contudo, para as questões de ensino são variados os argumcn­
do ensinada em nossas escolas. É nessa perspectiva que se forjou a Jos (jUe defendem a manutenção da história política como nortea­
identidade nacional brasileira e se revela a importância dada à história dora dos programas de ensino de História. Desde alegações de que
escolar, considerada como principal aparato para a produção social da 1•la seria mais f.ícil para o aluno aprender, ao trabalhar com persona­
identidade nacional. Por essa perspectiva se elaboraram os primeiros Jil'IIS, situações e lugares concretos até o currículo universitário, que
programas e se organizou todo o ensino de História no Brasil. organiza basicamente as disciplinas dos cursos de Licenciatura de
É importante lembrar por que a passagem do tempo, apesar das 11wrJo com a orientação quadripartite, seja para a chamada História
mudanças de linguagem, mostra permanências indiscutíveis nos cur­ ( :era I (História Antiga, Medieval, Moderna e Contemporânea), seja
rículos e programas de História. Permanências que podem ser apon­ para a História do Brasil c da América (Período Colonial e Perío­
tadas mesmo nos documentos curriculares prodlrzidos recentemente. do Independente, este com as subdivisões de Império c República),
Com exceção de um período de, aproximadamente, um pouco mais sempre utili7..ando os marcos divisórios da história política.
de uma década, assistiu-se à tendência de elaboração de currículos A publicação da Base Nacional Comum Curricular (BNCC)
organiz.ados a parrir da História Temática e em alguns estados bra­ d:í, portanto, seguimento a uma já longa série de programas c pro­
sileiros foram elaboradas propostas com esse tipo de sistematização postas curriculares, que desde 1931 vem procurando regulamentar
que, no enranto, não se mantiveram. Entre essas propostas podem o ensino (e não somente a organização curricular) das disciplinas em

ser incluídas os Parâmetros Curriculares Nacionais, que mesclavam nossas escolas, por meio da introdução direta de temas e conteúdos,
o ensino temático aos aspectos cronológicos da História ensinada. objetivos e até métodos e técnicas de ensino, dependendo da orien­
Como não existe uma única visão correta do passado, nossas visões tação governamental responsável pela organização da Educação.
do passado são reconstruídas segundo nossos conhecimenros, posm­ Para os comentários que seguem, fez-se uso ela p_�blica�o da Base
ra políric.'l, classes sociais, destacando-se a pluralidade de explicações, Nacional Comum Curricular, na � da prOJZOSta prelimi­
que nos remetem a pensadores e filósofos da História. nar, publicada digitalmente em abril�j_<i, O que se propõe neste
A pluralidade, contudo, não atingiu o ensino de História. Oi­ momento é analisar a seleção de conteúdos c compará-los com as pri­
versameme da aceiraç.'ío entre os pesquisadores da Ciência Históri­ meiras edições de programas e de propostas para o ensino de História,
ca, na área do ensino ainda podem ser colocada.� algumas questões: partindo da hipótese da Eermanência da mesma concep..ç.io de Histó­
Há? somente uma História que vale a pena ensinar? Que História é ria, desde a elaboraçáo dos[ JTimeiros currículos1 0u seja, com peque- )('
essa? Na vida escolar, o "valer a pena" se liga a uma única História? nas mudanças de posição nos quadros organizativos dos documentos,
Se formos buscar as respostas na prática do ensino da disciplina se rep�os mesmos f-atos históricos e a mesma J2Criodi'laç.:1.o, que se
corrente em nossas escobs, elas só poderão ser positivas. Baseados apresentam desde o início do ensino de História no Brasil.

20 21
ENsiNO DF. HISTÓRIA e Cunnfcur.o
H.<tFERn CARI.OS luoEIRO JúNIOR I MAIRON Escons1 VAu\ruo (01\Gs.)

A primeira observação diz respeito ao uso da periodização clássi­ (mantida a grafia do documento)

ca, que por si só responde pela seleção de conteúdos e pela organiza­ (Vcchia, Ariclê; Lorenz, .Karl Michel (orgs.). Programas de ensina
ção básica dos mesmos nas diferentes séries do ensino fundamental. r/n i'Scola secundária brasileira 1850 - 1951. Curitiba, 1998, p. 214)

A parte relativa à disciplina, no segundo ciclo do ensino fundamen­


tal, é explicitada em dois itens: Conhecimentos Históricos e Lin­ Programa de Ensino para o ano de @2• Sér ie- 2 horas)

guagens e Procedimentos de Pesquisa. O primeiro é onde mais cla­ Idade Média Grega: os tempos homéricos
ramente se pe rcebem os contet'tdos propostos, embora eles estejam - Colonização: Esparta e Atenas primitivas.

presentes também entre os "objetivos" do segun do, pois nos dois - A organiza�'io política grega: monarquia, aristocracia, tirania

itens o trabalho é encaminhado por meio de verbos não conjuga­ c· democ ra c ia .

dos, como classificar, identificar, analisar, problematizar, estabelecer, - Esparta e o socialismo de Estado. Atenas e Democ rac ia .

compreender, comparar, conhecer e, reconhecer, usados indiscrimi­ - Guerras Greco-Pérsicas, imperi alismo ateniense, Guerra do

nadamente e seguidos por temas do contel1do da ds


i ciplina. Nos Pelopon eso; sua significaç.'ío para a vida política, social e econômica
dois itens, distribuídos por todas as séries, se d tinguem os temas i
s
dos gregos. [.. .]
históricos, respeitando a ordem cronológica dos acontecimentos. - A unidade cultural grega: Olimpia, Delfos c Dellos.

Há um consenso de que no ensino de História se deve iniciar pelo - Religião Grega: Religião da polis e religião agrária. A mística:
começo da mesma, pela Antiguidade, quando surgiram as primei­ orfism o .

ras civilizações e, apesar das orientações inovadoras, fundamentadas - O desenvolvimen to cultural grego: a época de Péricles.

na moderna Psicologia da Educação, que recomenda que se inicie (Vechia, Ariclê; Lorenz, .Karl Michel (orgs.). Programas de ensina

com o que é próximo do aluno, pois ele terá melhor compreensão, da escola secundária brasileim 1850 - 1951. Curitiba , 1998, p. 330)

há uma forte tendência contemporânea de se iniciar os estudos de


História na escola pelos conteúdos que abordam as sociedades mais Base Nacional CurricuJa � (6" Ano)
antigas, da chamada "civilização ocidental".
EF06HIOI �
Conhecer a história da Grécia antiga, com ênfase no proces­
Uma comparação entre programas produzidos em datas diferen­
tes nos permite avaliar como o conhecimento 'C'�ado de tradi cio/ so de surgimento da polis e da Pilosoha.
EF06HI02
nal se consolid�. Abaixo seguem trechos de programas de ensino
Reconhecer os conceitos de democracia c cidadania cons­
�produzidos sob diferentes le isla óes, que nos permitem
� o bse rvar guão arraigadas são a ermanências:
truídos na Grécia chí.ssica e, em particular, em Atenas.
EF06HI03

� fi_ Programa de Ensino para o ano de �4° ano- 3 horas)


Identificar a importância da mitologia grega e de suas repre­
sentações nas artes e na literatura, até os dias de hoje.
[. . .) - A Grecia: tempos heroicos, o paiz, o povo, a colonização, EFF06HI04
a religião. Conhecer o papel do Teatro (Tragédia) na Grécia em1uanto
- Sparta e Athenas. Lycurgo e Solon. Guerras medas, Guerras do forma de apropriação do espaço público.
Peloponeso, Hegemonia de Thebas. Decadencia d a Grec ia. EF06HI05
- A Macedonia, Felippe e Alexandre, Sciencias, letras e artes na Valorizar as contribuições do pensamento do pensamento
Grecia. [ . . . ] grego para a Matemática e para o conhecimento da natureza.

22 23
ENSINO nE. 1-hsn)RIA F. CuRni(:ur.o
IIALFI!Hn CAJH.<)S RmeJRo JúNIOR I MAJflON Escons• VALJÍRJO (oncs.)

(Base Nacional Comum Cwricular.2. ed. rev. Ministério da I :111\UI, M. Ideologia e educação. Educa�áo c l,esquisa, São Paulo, v. 42,
Educação I Consed I Undime, abr. 2016, p. 462-464) 11. I, p. 245-257. jan./mar. 2016.
__. O que é ideologia? São Paulo: Ed. Brasiliense, 1980. Coleção
e notável a_��de conteúdos relativos à História da 1'1 imciros Passos, 13, passim.
An..!! ga Grécia, que se consolidaram através de diferentes épocas, ( :UI MARÁES, M. L. S. Escrita da história e ensino da história: tensões e
espaço e temporalidade, utilizados no exemplo exposto. As mudanças pnradoxos. ln: ROCHA, H. A. B.; MAGALH.ÁES, M. de S.; GONT!JO,
de objetivos, de métodos e técnicas de ensino e mesmo as novas lt A escrita da história escolar: memória e histori<>grafia. Rio de Janeiro:
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foram assumidas como centralizadores para o ensino, quepermanece tlc História para o ensino secundário brasileiro. 1931-1 956. Rio de Ja­
fi@mma visão, há muito superada pela pesquisa, da supremacia lldro: lnep/Ministério da Educação, 1957, p. 18.
da hig_óri:t.P-olítica (entendida aqui no seu sentido tradici� �al). I<ELLY, A. V. O currículo: teoria e prática. São Paulo: Harper & Row do
A mesma organização do pensamento se dá em relação a outros 1\rnsil, 1981, passím.
personagens e períodos históricos. Mulheres, trabalhadores, mino­ I.AUTlER. N . Os Saberes Históricos em Situação Escolar: circulação,
rias culturais permanecem, tal como há um século, ignorados pela 11 :tllsÍormação c adaptação. Educa�áo c Realidade, Porto Alegre, v. 36, n.
história escolar. Afrodescendentes..e. .U �surgem em alg� tó­
1f!! I, p. 39-58, jan./abr. 201 1 .
picos,_ill!�i!.lüstóJ:ia.....q� é rec.!:!Eerada na perspectiva da socie.dade MAESTRO GONZALEZ, l� El modelo de las historias generales y la en­
domin�nte- a discussão e eventual combate a remas como racismo Ndhnza de la historia. Didactica de las Ciências Experimentais y Socia­
e exclusão social não se incluem entre os remas e objetivos do ensino lc.�. n. 16, p. 3-33, 2002.
de História. Encarada como conhecimento meramente formal, a MINlSTÉlUO DA EDUCAÇÃO. Base Nacional Comum Curricular.
H�perde sua ftlllÇáo.Jneai.s...exp.r ssÍ.\@...�_!:10 disciplina f�ma­ Proposta Preliminar. 2__:.Si rcv. Brasília,� Disponível em: <ht-
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-----
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25
24
HAo.rEIU) C11u.os RmEmo JúNIOR I MAIRON Esc.ons1 VAtúuo (onc;s.)

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C)uisras e perdas. Revista Brasüeira de História, São Paulo, v. 3 1 , n. 60,
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ZAVALA, Ana. Y entonces, �La Historia ensefiada qué es? Reflexiones en lutroduçáo
torna a las relaciones entre lo que sabemos y lo ensefiamos. Clio & Aso­
ciados, p. 18-19, 2014. O início das discussões em torno da primeira versão preliminar
clu Uase_ N�ionaLComum Curricular (BNCC) ensejou perguntar
�c deveríamos ter realmente uma base curricular comum nacional,
que pudesse estabelecer um determinado percentual de conteúdos a
,•lt'rcm ensinados no Brasil inteiro e, obviamente, quais seriam esses
1 ontcúdos. A resposta, em primeiro lugar cgativ' dizia respeito ao
lnto de os Parâmetros Curriculares Nacionais >CNs) já indicarem,
Nrm serem definitivos, caminhos �a o en;ino de História, inclusive
�os/as afrodescenden� Entretanto, em
p11ra a liiS'tÓria indi
Nt·gun do lugar, a resposta �;. uma vez que o próprio pro­
t 'rsso de discussão afirmou cada vé:Í mais a importância de termos
llllla base nacional, pois t:tfdiscussão reacendeu um interesse geral,
lucluindo professores/as, historiadores/as, associações, intelectuais,
Jornais e jornalistas, no ensino de História, no currículo da história
t'llsinada. Ter ou não ter uma base curricular nacional, mas, sobretu­
do, quais histórias estariam contempladas nessa base, foram objetos
de intensas e disputadas ·:guerrãs(ie narrat i�' (Laville, 2011), que
t•uvolveram muitos c variad.Qs segmentos da sociedade brasilein1.
l.�so indicava, ao menos, duas questões: uma, que os/as pesquisa­
dores/as, professores/as e estudantes, bem como outros setores da
,�ociedade, deveriam sim entrar nessa discussão e procurar garantir
< onquistas para os currículos de História, em termos do que narrar,

26 27
EN�JNO or. 1 -hsTótuA r. Cunn(r:uw
HAtFERD C:,,no.os Rmwto JóNJOII I MAJJ\ON Escons1 VAtÉRIO (ouGs.)

• ljlll"�l·mam, desde um simples gesto até o silenciamento sobre


do que selecionar e do que recortar, num jogo de novas aparições
.!1 H•r •ninado tema. No caso da BNCC, a lista dos conteúdos foi
e novos silenciamentos. A outra diz respeito a esse caráter político
" ••lriiiCIII.O manifesto em torno do qual as disputas se deram, mas
das guerras de narrativas, do quanto a escolha de um determinado
conteúdo, por exemplo, a�.Amig;!, em detrimento de. PQ.!:..;
•1 �os objetivos, teria que entrar no jogo das cs-
1 hiiiiC it

�mplo, da Grécia Antiga, fez acender disputas multo árduas e até


• nll11111 4lo/a profcs�r/ �m sua sala de aula, no modo de apresentar
1IIN t'lllllcttdos c tudo o mais que o !.gl
gzyvisbvel reserva para esse
pouco corteses entre jornalistas, defensores do movimento chamado
lnJ�HI, Entretanto, ainda que reconheçamos que a presença desses
Escola Sem Partido, associações telectuais, etc.
tlltl llH"IllOS não permita supor que esteja diante de nós um currículo,
o'�lli��U-������� 1 1111 n se de uma parte importante na construção dele.
mais visado de toda a Primeira Versão da Base. Perguntamos por
quais razões isto teria ocorrido e a resposta parecia ôbvia. O currí­
1•: foram, justamente, as opções feitas por aqueles/as que pensa­

culo de História é um produto de escolhas que estabelece um modo ''" " n organização daquela lista de conteúdos e objetivos que atin­

de recortar e de dizer o passado; de criar referências ao presente J\Itlllll em cheio interesses doL_ �� · do político e

e de estabelecer o que é necessário que se torne uma memória e, . 1!11. tcprcsentaçõ.es comoE_Oucas vezes se havia visto. Talvez se possa

consequentemente, com onha uma identidade para rodos/as os/as llilllctcr à reforma curricular no estado de São Paulo, nos anos 1980,

brasileiros/as. Ora, o currículo 1áo consiste aeenas em uma li-illl 1111111 disputa tão árdua que implicou manifestações da imprensa e de
de conteúdos, nem mesmo o se reduz a um conjunto de objeti� �c1111rcs que se sentiram não contemplados nas escolhas feiras'.
para o ensino, mas foi exatamente em relação a esses dois elementos
que constituem o currículo, ainda que não sejam o seu todo, que se A nrte do recorte e a aprendizagem histórica
deram os termos das disputas e dos conflitos.
Silva (20 10) já afirmava que o currículo é um campo de dispu­ A aprendizagem histórica tem a ver tanto com uma zona de
tas e, ao mesmo tempo, um campo de constitui áo de sub.etivida­ l11dctcrminação, que pode ser criada dependendo das escolhas cur-
des �� seja, o curnct o é pro utivo, no sentido em gue cria mqa 1lc:ulares que f-azemos, quanto com a arte do recorte, que consiste,
1
dos de o indivíduo olhar para si mesmo t;_j2ara._os_o.JJJms. De cerro Jusramente, na crença de ue ná< há idcntidad ure assad
que o alargamento do conceito implica pensá-lo como um processo bls16ria Uenkins, 2001; White, 20 14). De que o passado é um ex­
que se dá, inclusive, fora da escola, nos espaços onde relações de ' c•:�so em relação às narrativas (à história) que dele se faz. A confusão
poder constituem novos modos de ser e de estar no mundo. Mas, t•nt re passado e história tem colocado historiadores/as e professores/ ·
isso quer dizer também que o currículo nem é oculto, nem esconde

@
um segredo perverso que seria o de contribuir para a constituição I. Manife�taçáo do estado de São Paulo, de 1987, a respeito da Proposta Cur­

d :@
ue rna e apenas enseja um jogo que � lkul:tr da rede pública de São Paulo, iniciada em 1986, da qual participavam
,,��c�sores técnicos como Dea Fenelon, Pedro Paulo Funari e Marcos da Silva.
çóes de ode e d saber (Foucault, 1979) que são constitutivas de
''1... 1 a Proposta Curricular para o ensino de História (1" grau) [...] é vazada em
relações do indivíduo consigo mesmo e com os outros. Desse modo,
111oldcs tipj.çamcntC:marxista-leninista', com o objetivo mais do que evidente de
o currículo não se reduz, como se disse, à lista ou aos objetivos, ·,;,.,,cr a cabeça' das crian.Q_s�il enta 1 lo-as em função de ob"etivos Jolitic -
mas se alarga pelos ditos e pelos escritos em geral da sala de aula, ld.,ológico d.e�dos, naturalmente em total prejutzo e qualquer aprendizado
às relações entre alunos/as e professores/as, ao espaço da sala de t•lt•mentar que as s:tlvasse do aterrador fantasma do analfabeüsmo e da ignorância

aula e fora dela. Inclui, assim, rodas as relações e o modo com que 1 uidadosamente cultivada" (O Estado de S. Paulo, 27/08/1987).

29
28
HALFERD CAnLOs RJUfmOj(rNIOrt I MAIRON EscoRSI V.1tÉI\IO (Oot<:s.) ENSINO or. HISTÓRIA E Cunnkur.o

j as de História diante de uma situação constrangedora do ponto de


vista epistemológico, uma vez que tal identificação permite supor
1

, 1
l ll�t(ll·ia como uma disciplina que está vinculada à justiça signiii-
l ituras que se pode fazer dopassado estão limi­
1.1111hém, que <!_S ç
que o �o pode ele mesmo ser todo recolhido em uma História. t llhtN :ltlS consen�s gue nossa sociedade tem criado sobre a j�tiç.·\
Aqui preferimos considerar, de n1odo a não sucumbir a tal cons­ 1 m direitos J1Um�no!! por 9�plo. Trata-se de afirmar que não se
trangimento, o passado como o que passou ao esquecimento e que ptulr Nttpor um discurso que absolva o nazismo ou que desconsidere
náo E_ode mais s���� t t•xl.� l�ncia da tortura na época da Ditadura Civil-Militar, pois tan­
discurso ou como memória. Isso não quer dizer que o passado não to o ma quanto outra visão estáO�IlL claw_çgnfronto cofl'LQ§ direitos
aconteceu, ao contrário, quer dizer que, em que pese a sua efetiva h\IIJHIIIO�Ça. Nesse sentido, as leituras possíveis do
decorrência, ele nãopode ser "captado" em sua totalidade - algo elo 1 ltiNsndo propõem uma socie d�
e.tol�xância�d<hj.u�i.ç.a.
vivido se erde inevitavelmente- e os seus resquícios perml
;
; m-� ( ) p�do é o�!História,� A virtualidade do pas­
apenas uma afirmativa verdadeira, mas a a ertura a mais possibili­ �.ulo �stá no fato de que ele consiste exatamente no "em si" do tem­
dades de interpretações constr���!_tir do�en
!.o�se1 e � po, 11ma vez que recolhe o rodo das lembranças possíveis, sendo um

e�.9ue são elaborados o� i�tcrrogantes. :Uma elas possibilidades •�·pnsitório ontológico (Bcrgson, 2005) de tudo o que pode ser dito
- 1 visto. Mas, se no passado vivido se construíram sentidos, determi­
de recolher uma região do passado e dar-lhe o status de atualidade
llli<J•cs e formas de lidar com o tempo que são apenas parcialmente
é, justamente, a história. E essa, não sendo o próprio passado, nem
lt'l ttpcrávcis, isso é o que torna possível pensar que podemos dar a
o que passou, nem estabelecendo uma relação de identidade com o
t•lt• sempre J�ntcrpre � de acordo cot�s lutas políticas do
que passou, é um discurso que se cria sobre o passado para, justa­ � � --� --�� � --�----�----��
ptt·scntc c com os acordospossíveis do presente. Essa o
���--�
f rma de pen-
mente, entrar na �l���Q� se@SQ,hre_o_�!!,e aconteceu,_para
�''' as relações de sociedades com o seu próprio passado e o de outras,
atualizar o�ue aconteceu e fazerpolítica no-�nte.
•lltmlizado no presente de forma que seja utilizável nas lutas políti-
De certo que tal operação implica entrar num jogo político que
' us c simbólicas, pode ser traduzida pela categoria "paacJ&grjtico",
.
• cria �mas de �de ver o;�_:{�cord�c:_>��as d� 1 o11Íorme a apropriação ue dela fez Hayden White (2014). A His­
t {) i\_(
\ ,, eolíticas do pffiScllt�esse sentido, a História é uma disciplina S!te
tóri::t cor uma or ão de para criar sentido e dar�
J"' \ sq'2res.e_ao es��cimenro e à atualizaÇÉo, ao silenciamento e à voz e,
�,
- - - ,,,�·fto ara o resente. Ora, ogue se pode concluir é quf..SlHllirória é
\Í 1, '"' 'por fim, a�'eiro e à justi�a. Considerar a História como uma dis-
I '
IWtllpre uma ,rte c e recortar o passa criando novas relações entre
ciplina significa, primeiramente, que ela produz conhecimento atra-
\
l ·.

vés de processos teóricos e metodológicos discutidos e pensados ao


··�se mesmo passado e o presente, dando contornos determinados ao
tjllc passou c, sobretudo, criando visibilidades e determinando silen­
longo de centenas ou milhares de anos.2 Não se trata, portanto, de
l'la mentos; por vezes, deixando no esquecimento regiões inteiras, por
uma pr;itica aleatória. Ela conta com os benefícios c limites de uma
Vt''l.cs, fâzendõ emergir histórias ainda pouco reconhecíveis pelo pró­
pdtica intelectual que necessita de iniciação, ensino, aprendizagem
prio presente, de acordo com o jogo político em que c.�tá inserido/a
e erudição (relativa aos diferentes níveis culturais, geracionais, esco­
o/a historiador/a e o/a professor/a de História.
lares) para produzir os seus melhores frutos. Em seguida, considerar
A P�imcira Versão Preliminar da Base parece ter levado às úl­
2. Seguramente foi no século XIX que se fundou a "história ciência" de que so­ ti tn::ts conscquências a<gi·tc do recor!9 retomando uma profunda
mos herdeiros, contudo, muitos estudos histnriográficos retrocedem até os anti­ discussão entre historiadores/as desde início do século XX, ou seja,
gos (Tuddides, Heródoro etc.) para pensar os fundamemos da escrita da história. u indagação sobre em que consiste escolher uma região do passado

30 31
HALFERO Cuu.os RrUEIRO j(rNrOR I MAIRON EscoRsr VAu!ruo (ou<1s.)

para mrn:í-la história, para atualizá-la e passar a fazer pane da nossa


hl�11'1ria é uma obra de auroconsrituição, que significa construir um
vida, das nossas visões de mundo, das nossas escolhas no presente.
•u)l'ilo de política, de olhar e de intervenção social.
Os/as professores/as de História também se viram no mesmo deba-
Quando nos referimos ao aspecto estético, estamos referindo-nos
te, tão antigo e atual, de que História é
·� formas de exprimir o passado nas salas de aula de História. As nar­
��������
�� ��o�u�t�ra�s�-é=r�ie�d�e�d�e tc�:���9�es:������ut�l r,lllvas que transitam nas salas de aula não podem ser simplesmente
política e estética com
�t·quCncias factuais, à moda das crônicas de reis medievais. O que se
o conhecimento e com os estudantes, que é uma arte do recorte.
�upllc, novamente com White ( 1992) e a panir das contribuições da
Quando nos referimos ao aspecto ético, estamos filiando dos
vlt.tda linguísrica, é que as formas de expressão da verdade histórica
efeitos esperados do ensino da História. Uma vez que, ao se ensi­
ttllo estão apartadas do contet'Ido das verdades que expressa. Logo,
nar, se reaJiza iguaJmentc um recorre no passado e esse recorre se
111 lliz:�r uma forma de exprimir o que ocorreu quer di�er pensar num
dá, como afirmamos, em função das demandas e das urgências do
tnodo de inserir os jovens na dramaricidade do tempo, de modo a
presente, os objetos de ensino estão implicados num processo de
pc·rmitir problematizar sobre o quanto o passado é constituidor dos
representação que tem importantes efeitos no modo como as novas
111odos de criar nossas relações no presente. Mas, o mais interessante
gerações irão olhar para si mesmas, para o seu mundo e para os ou­
,t tptc as discussões sobre a Base não se deram por aspectos estéticos,
tros. O caráter ético do ensino de História está jusmmente no pro­
cesso de construção de si mesmo como sujeito de um olhar, como
11111s so�� e p'Qfft� . Po�er-se-ia �lizer. que as "guerras
de· narrativas" que envolveram o ensmo de I-hstóna, no momento
subjetividade marcada por se permitir realizar uma determinada in­
, k· discussão da Base, se deram por questões fac[Uais (Laville, 20 1 1 ),
terpretação do passado e do seu lugar no presente. A história, enrá�,
do mesmo modo que argumenta Laville sobre as clássicas guerras de
deve construir ess�possi�e de di.:_ er as coisas,_<k acordo C<tm
n.trrativas nos EUA, na Inglaterra ou no Canadá.
particularidades de uma �çáo, desde que esta respeite o direito
O que parece incomodar os críticos daquela Primeira Versão
das outras posições senarrarem. Nesse sentido, o estudo do passado
não significa ape1� Cõlocar o aJuno diante de um conteúdo disci­
l't climinar parece ter sido, em primeiro luga_r, �tam
, ;;::

�:;� �
llnpo
d.r� escolhas, �em seg mdo, as ra�es das escolhas; que.
plinado e frio (White, 2014, p. 9)3, mas diante de algo que desperta
1111 nosso ente� �enro estão relacionadas aos usos do passado no
um posicionamento ético e político, de indignação frente à injustiça

presente. Por rrás âãêrfêica da p�;. importância dada à Et;;-o_pa
e à violação dos direitos luunanos mais fundamentais e de um pro-
11:1 Base, estava, certamente, os usos que os passados recolhidos na
,J \'l' fundo envolvimento com o seu mundo e com a transformação da
lur ma de um currícuJo podem assumir no presente. Pareceu, desse
"1\ j �.V�/ sua realidade. Logo, o esrudo do passado, a escrita da História e do
111ndo, que a noção de "passado prático" poderia ser aprofundada
� setLensino..não são atitudes desinteressadas, mas voltadas ao presen-
p.ua compreendermos melhor as opções que esrrutmaram a elabo­
� �" te c ao futuro, de _t;gierâ�cia, de reconciliação com a justiça �
'·'\':ÍO da Primeira Versão da Base e as críticas a elas.
. implica pensar que ensinar a aprender
os cHrcitos-0 aspecto ético

3. Hayden Whitc f"3z essa contraposição emre um pa�� . ucilizável, A Primeira Versão da BNCC e o "passado prático"
resultado de uma inserção no calor dos debates presentes c de um passado histó­
rico, consrrufdo por hismriadores e que pode, tE_�iras vezes,eS(aulis.t;mciado..ill;. Retomemos a noção de "passado prático", de Hayden White,
��� �12!l!&m�tp�mre,, R ois tende a s�t�l nhjcro �r ptua pensar conceitualmente, sem desconsiderar o fato de que uma
..--- - - - - ----
es rudad
o "eor ele mesmo", como uma coisa em. si.
,•,colha na infinidade do passado é sempre uma escolha que se faz

32
33
ENSINO DE HaSl'ÓtuA �: Cunuku1 o

para a vida no presente. E isso tem tudo de político e de criador. Ma �e rnbora enFatizasse a importância dos portugueses, procurou
A nossa escolha, portanto, está associada às poss ibilidades abertas 1 nnferir algum equilíbrio - aquele possível no séctdo XIX- entre as

(e delimitadas) por de!landas identir.-írias e eolíticas, específicas a lt�stontribui óes ue ele considerava mais relcvanres ara a na ·o
certos-� e mesmo indivíduos, endereçada.� aos docu::­ l�tasileira - dos europeus, elos indíg@as e dos negros-, arnhagen
mentos c outros resquícios do passado disponíveis , aos conceitos, t•m minimizou os componentes in�-e�a:.fu.r:_
seguida,
i
que vão privileg ar esta ou aquela região para se tornar história. E é Juaç.ío nacionaP. As representações identitárias construídas a partir
aí que ele se torna prático, longe de um presentismo, trata-se de as­ de Va�hagen c pelos historiadores do lHGB, no seio da chamada
sumir o papel do passado na problematizaçáo do presente e na aber­ tctórica da nacionalidade, obtiveram longa permanência na memória
tu ca.. p araa 6•turo. E para se afastar ainda mais de tUna abordagem nacional, dessa maneira bem mais adequada às expectativas da elite
presentista, podemos sobrelevar a questão da forma pela qual uma polírica, econômica, escravocrata, masculina c branca do país.
lista de temas se configura em objetivos e práticas didáticas, consti­ Não é o caso de refazer aqui urna retrospectiva mais exaustiva das
tuindo-se como componente fundamental dos conteúdos/sentidos Identidades nacionais construídas pela historiograf1a e pelo ensino de
construídos em aula. Esta fiJrma, que se pretende como antídoto l listória. Os exemplos elencados são suficientes para se questionar se
r
pa a o prescnrismo, se constitui em pensar o e_assado �uanto tJL t•sta querela não esteve ainda replicando na BNCC e, portanto, teria
teridade e não somente como continuidade em relação ao prescms.:, uma história mais longa do que supomos. Os legados históricos de
Contu d� parece ter sido essa a preocupação dos principais w·upos sociais e culturais significativos para a nossa formação cultu­
debatedorcs da Primeira Versão da BNCC. Quase sempre se ques­ •�tl, especialmente de 6os c indí�s, nunca obtiveram, desde o
tionou a pertinência maior ou menor da Grécia Antiga, por exeJn­ n:1scimenro da História-Disciplina no Brasil, um espaço equivalenre
plo. ou da história da África e dos indígenas no rol dos conteúdgs, .10 que se verifica no presente. Mesmo assim, sua maior visibilidade
mas não como possibilidades de passados estranhos a problematizar paradoxalmente evidencia e possibilita denunciar a permanênc a da i
os delineamentos sociais, c ulturais c econôm icos do presente. Pelo \lia longa trajetória de invisibilidade nos textos que constituem o rc­
contrário, essas disputas se deram sobretudo no campo da legi timi­ pcrrório da historiografia nacional. Enr::io, é a parti r do presente, de
�c do legado de uma c de ptítra formas;ão histÓrig?para a cons­ t·xpcriências soci is relacionadas às políticas memoriais de reparação,
a

t itui<?�dcnt itária brasilci� isto é, a ênfase se deu just.'UTlente JES t omo as Leis 1 0.639/03 e 1 1.645/08 e ações afirmariv s que garan­
as ::�

continuidades supost;tmcntc estabelecida.> entre um_ Ea.�sado curo_p�· tem cotas mínimas para grupos étnicos (negros e indígenas) e sociais
ouafr cano ou indígena e o laço social na atualidade:.
i nas Universidades Federais - ou seja, de grupos inteiros tradicional-
A pergunra predominante (e subjacente) aos debates foi: �ais
dess;�� e constituem como mais relevantes para a história
IC�pau.â.ucia.t.pac.a...a.t:sa.i a-da.históJ"i:l do Urasil no século XJ2kver
Cnimaráes (2000).
do .Brasil? Sob essa ótica, não nos afastamos muito da operaç.ío his­ �. "Rcrórica da nacionalidade" fili uma expressão cunhada para delinear a opera­
toriográfica instituída no 11-IGB em meados do século XlX, quando ,·{!o historiográfica conduzida a partir do I I IGR no século XIX. A relação cnrre
se perguntava "Como se eleve escrever a história do Brasil?".1 Se Von Varnhagen e a história indígena foi discutida por Cezar (2007, p. 3 1 -32). En­
cptamo alguns aurores oimcentisras eram sensíveis :cos preccirns indianistas que
4. Capistrano de Abreu chegou a afirmar a necessidade de se "superar os (1uadros tc•,çsaltavam, mesmo que �icamente, a imporr:lncia daquele grupo étnico para
de ferro" que Varnhagen impunha à historiografia e ao ensino da hisl6ria nacio­ a li1rmação nacional, Varnhagen só lhes deu alguma rclcvânci quando�
iS\.
\
nal (Oliveira, 2015, p. 17). Sobre o concurso vencido por �Yon Martius no que eles descendiam c os amigos egípcios.
.,

34 35
I IAO.rFrut CAnr.m Rrnmrto Jrír<ron I MArRON Esconsr V.\LÉnro (OIIGS.) ENSINO ne HISTÓRIA t: Cunnlcut.O

mente exclufdos, esquecidos ou equivocadamente representados na ' it.tdo e.�se aspecto nessas discussões, parece convinceme considerar
memória nacional -, que partea �por uma representação 'I"''• mesmo sem revelar, muito se pensou nas adaptações, reconfi­
�pliada de legado histórico.d���a a(s) identidadc(s) � l'•"'·'�·ócs c rupturas que se dariam no âmbito das pesquisas desen­
oE_orsáo desenl1ada na Primeira Versão da BNCC é j!Jst!!,,
nação. A p.;:_ volvidas a partir da Universidade. Contudo, o more das discussões
cquilibradn.L.O que se cham�e �s
if-
Centrism y omo alternati­ mmbém passava por questionamentos constroem, nos cursos de li­
va para o eurocentrismo, contempla essas demandas? ' t•nciatura, nos cursos de licenciatura os conhecimentos c sentidos
Não nos cabe aqui o papel de juízes que adotam um posiciona­ lutporrantcs para embasar a formação dos/as cidadãos/ás no Ensino
mento definitivo sobre essa questão, ou mesmo náo nos cabe apre­ 1\.t�ico: Que cidadão/á é este/a? Qual é idenridadc que o currículo
sentar soluções mágicas e instantâneas. Importa mais compreender de· história pode performar em crianças e jovens?
os lineamentos c problemas subjacentes ao debate para contribuir É importante novamente baliz.arque nossa concepção de currículo
no sentido de seu melhor desenlace. Contudo, em que pese não 11.10 joga todas as suas fichas na questão das espacial idades e culturas
residir na lista de conteúdos o nó da questão do currículo, podemos •·�1udadas rara a construção da identidade cidadã. As perspectivas de
'ío da Primrira
avaliar que a founataç.. �a Base nos pareceu t'�llanhamento, ruptura, continuidade, problematiz.adas no escopo
melhor do que ::ts prcscri óes curriculares ue vêm sendo adotadas da abordagem temporal ela vida social, constituem papel não menos
até então Oll..9,Ue a d::t Se m a Versão a BNCC. Em se tratando de d!'cisivo que as espacialidacles c manifestações culturais estudadas.
�m.. ct:iãl�rod utivode identid�, consideramos que a in� Mnis importante ainda que os conteúdos (África, Grécia, Roma ou
_
são de � entro gcográfic ' Jro osta inicialmente poderia contribuir l�uropa Medieval), portanto, são as relações que se estabelece de
para compensar_ .ill_enciamentos e esqueGimentos,delong_!...dat:t_Q<'l ldcnridade/alreridade com uma dada cultura e de conrinuidade/
memória nac_ional. Pensamos também o quanto os desafios colo­ 111ptura com um dado tempo.7 Neste caso, os objetivos de aprendi­
cados por uma Base assim construída influenciariam as para as for­ t.tgcm da primeira versão da BNCC se constituíram um importante
mações iniciais c continuadas para os professores. E aqui nos parece delimitador das abordagens desejadas.
residir um pomo sensível, já que os embates mais fones se deram A aprendizagem histórica se dá exatamente nessa cesura, don­
não dentre os professores/as do Ensino Básico, mas sim demre os de se pode ver o passado e suas distintas experiênci<ts do rempo
professores/as e historiadores/as envolvidos com a formação inicial 1 omo um modo de problematizar o presente, não de recolher os
dos primeiros nos cursos de graduaçáo.6 Embora não se tenha expli- . 'cnridos do passado a uma cena lógica do presente, mas o de poder


G. V� ria. maniresraç6c.� príhlicas pa rtira m de grupos de hisLOriadorc.ç de Grupos hil.t"; "Manirestaçáo pítblica da Anpuh-Br sobre a BNCC"; "Nota da Anpuh-MS
de Tr�h:tlho (GT.�) c de scç6es regionais da Anpuh, a maioria no final do ano de •ohrc a I.INCC"; "Cana crítica da Anpuh-Rio à composição do cornponcnre curri­
2015, todas disponíveis n a web: "Nota do GT de história da Arrica da Anpuh ' ul:tr história na BNCC"; Manifesto pt'ahlico do semin:irio esradual realizado pela
uacional e da Associação de Est.udos Africanos sobre a proposta da BNCC para o Aupuh-I'R sobre a BNCC"; "Documenro da Anpuh-RS sohre a HNCC/MEC".
ensino de História"; "Parecer dos docentes do curso de história a UNIFAL-MG /. Vimos acim:l que a presença, em si, de conteúdos de hisrória indígt::na no Brasil
acerca do texto preliminar da BNCC"; "Nota do departamento de História do nhncentista não garantia uma abordagem que ll·tesse jus àquiln que se comprc­
Colégio Pedro l i "; Posiçflo do Departamento de História da USP sobre a proposta t'oHic hoje como o espaço adequado para o seu legado hist.órico-culrural para a
de BNCC''; "Nota dos professores do Curso de História da UFSJ"; "Carta aberta" u.o�·ão bra.çileira. Ao se europeiz:lr e domesticar as origens tios indígenas brasilci-
de proressores de v:írias insrituiç6es, datada de 25/11/2015; "Relatório do debate 10>, poderia se produzir mais distanciamento do 'l''e identidade enrre os diversos
sobre a BNCC, Anpuh-PB"; Relatório sobre o debate BN CC
-
-� Guara-
-
w1;mcnr:os culturais da "formação nacional".

36 37
I IAI-f�nn CAnws H1nr111n JúNIOR I MArnON Escons1 VALr.nro (oncs.) ENSINO uu I II.)TÓrHA ll Ctumf<;w o

questionar o prc.�eme desde a cxperiência com o passado; e donde 1l ai h 11 tdl"tll idad�em olhar para o que é� Uma resposLa
se podc ver o passado como uma abertura para o futuro, incerto e h a i c' ,, de que, se o eixo da idenridadc está constituído sobre
o
imprevisível, uma vez que a aprendizagem do passado ode ser uma !11 1 ti C 'c·llt rismo, o lado da áteridade ode assar ara
o estudo das
força de criar um encontro-com o outroJ com a experiência ainda I 'll l '"' 'dldadcs europeE.§.. Então, importa muito aqui a forma co�
não catalogada que temos no presente. Ti·ata-sc, portanto, de pensar • 1 � ' ' '"t n'Jdos são trabalhados, o espaço quantitativo
e simbólico
que a
-;p�dizagcm histórica se dá na hesitação diallle do próprio ·til• llu·s é dado. Se o objetivo é perfi)[)nar formas de convivê
ncia
presente, cnsejada pelo estudo do passado. lll•tl• clc·llulcráticas com a diversidade, para além da estrutur
aç.1o cur­
Nesse sentido, podemos afirmar novamente uc a Primeira Ver­ • h ultll diferenciada, é preciso investir na qualificação
das abordagens
são Preliminar da BNCC cvou às últimas consequências a ar te do a l a allft·�t·ll�·a. Importa não só constituir a idcntidade em ourros
pa­
� em alguma medi�a, desconsiderou as clássicas._e_euro­
recorte I ttta•llos, como também constituir novas
formas de perccher e con-
�� divisões da tempora íclade histórica:-Dcu um lugar que IVI't c 11111 a(s) alteridade(s). Nesse sentido, não se pode pensar
que
illf.i(!!llpara a Europa e ousou pen
não era ll s��a Lati�,.QL
" ··�t 11do da Europ�J-�ica poder pensar apenas a altcrida
1111 �111o modo que o estudo da África ou dospcwos �dígrua�
de, do
povos indígenas, os negros c a Áfri�. Isso permite pensar que não esd
�'"'"' "'c no âmbito de um reconhecimento de perrencimenro.
há conteúdos obrigatórios, canônicos, definitivos c, portanto, não
llnra estruturação "Brasil-Centris ta", "latino-americanista",
problem�íticos, na História.
'llul igcnist:i'e'ãfncamsrã'âo nosso currículo éJ?ropensa, mas
Com essa avaliação, estamos considerando que a aprendizagem .. não
·oa()'uec!'''S&brasileiro" sob omros par:1me­
,
II"''"''C, :lidentifi.
histórica pode se dar pela via do pertencimento c da identidade, isto
é, pela via do mesmo, o que justifi<?llia o chamado Brasii-Centrism
_Q,
lt m. As heranças negras e indígenas de nossa sociedade, devido '1
ltllp c vigência de tradições inrelectuais fortemente escorad
c o q�aproximaria o/a estudante de sua própria história. Contudo, as em
11111:1 perspectiva excludente, sempre poderão ser o centro
de um
o elemento do estranhamento e da alteridade é o que se perde, bem
dl.aMnósrico de arraso, por exemplo. Importa, portanto, "�s§l�
como a possibilidade de os/as estudantes aprenderem com a expe­
''" •n o aecnas a lista de conte(J.dos,_mas as�bordagens da�arrati­
" :í
riência alheia, ou seja, com o passado enquanto outm.R Poder-se-ia
vu.� c os objetivos do ensino de História.
argumentar que a alteílêGdõ>que se coloca n�rículo é o !!�O O ensino de História tem st: radicalizado desde o� anos
1980,
e o indígena, mas sabemos (c os objetivos de aprendizagem deixam propondo novas abordagens, novas possibilidades historio
gráficas
isso cla-ro) que a �nç.1o é justamente que esses grupos e atores so- ·
,,o repensar a independência do Brasil, o dcscobrimento,
enfim. A
dais sejam pensados como integrantes de uma identidade. Mesmo
l�
Pr imcira Versão da Base nos dá essa impressão: é possíve
assim, 1áo á ara re"citar com facilidade o "Brasil-Centrismo') se fc1ra da história <t§ariparr§::da continuidade e do eurocencrismo.
estivermos de acordo com o diagnóstico de que o estudo a antigui­ Além disso, essa Primeira Versão pensou que as novas geraçõe
s rêm
dade grega e romana- c também do medievo europeu-, ao longo do direitos de aprendizagem: direito a uma memória, direito
à justiça,
percurso da história disciplina escrita e ensinada no Brasil, tem se de­ direito a conhecer suas referências e seus perrencimentos, de
consti­
senvolvido mais na �_Q_c W,Cntifâri�..Q
que na de altcridade co� Juir mesmo uma história para si c para os seus. De reconhe
cer-se no
a cultura nacional. Mesmo assim, coloca-se outra questão: Como in1crior de uma história e também de uma memória. De
partilhar
lutas, vidas, práticas políticas e culturais. O direito de aprende
8. Referimo-nos aqui ao cmadn uo passado como mmno, outro 011 awilogo, con­ r so­
bre si mesmo e os omros, de aprender sobre sua ancestral idade,
forme Anhorn (2012) propõe a partir uc Paul Ricouer. suas

3R 39
I IAo.nmn CAno.ns Ronr.ORn JúNonnJ MAII\ON E�con.�• \1,\l.r.mo (onc.s.) EN!'IlNO UE HtS1'ÓtuA I' Cmwlc.�uc.o

identidades. Mas, nos parece imporrante que h;í. uma aprencüzagem do ensino de História, deixando de renovar tanro o campo teórico
de si que se dá também c necessariamente pela alteridade, que im­ d.t escrita da história quanto as competências intelectuais ou, ain­
plica estudar um passado c uma história estranha para aprender a d.t, a própria dimensão cidadã possível de ser explomda com diversos
pensar o nosso próprio presente a partir dela. O passado se torna umteúdos. A opção pela lista de contt:ltdos tornou a BNCC muito
prático exatamente nesse momento no qual o estranhamente é um Jli Óxima de uma história sem corpo e sem polírica, uma vez que
encontro com o outro, que permite uma expansão da vida, de modo 1'\l:tbclece C,!)nteúdos considerados "canônico�rigatórios ao
1 onhecimento dos estudantes e das novas gerações. Essa ideia supõe
que um encomro com o passado seja para problematizar o presente
e abrir o futuro em possibilidades de vida.9 ' l"c determinados conteuâos são indispensáveis, nas, ao mesmo -;
�t·mpo, não problemáticos e com pouco ou nenhum sentido em

do �t·lação ao tempo presente. O "indispensável", portamo, não passa


A Segunda Versão Preliminar e o abandono do "passa
l'"r um critério de seleção, mas esrá prcrensamenre ligado a uma
p rático" c·spécie de natureza do conhecimento histórico, subjacente a uma
\
c o.ncepção moderna de história que se pretende universal a partir de
r
A Segunda vesão Preliminar da BNCC, relativa ao componente
11111a experiência particular (Kosclleck, 2006). co
Preli­
curricuJar História, consiste, na relação com a Primeira Versão Embora afirme que "o componente curricular História não pre­
ue ex omos a seguir.
minar, em um trocesso por ao menos rc·uclc, por óbvio, abranger 'tudo o que ocorreu no passado" e que
A Primeira Versão apresentou eixos temáticos que dividiam os "n:ío há, a rigor, passado, presente ou futuro comum a toda a lm­
objetivos em 4 módulos, relativos ao tema da_.5.idadania,_das
tern­
manidade" (2" BNCC, . 155), a Segunda Versão supõe a cxistên­
currículo
pqralidatle� conceitos e d�esquisa, o que fazia o ' i:t de uma 'omin· ia da história o� ujo sentido unificado
"lista de
estar menos submisso ao que se convencionou chamar de C"ttgloba e unifica a diversidade de emias, culturas, grupos e atores
ências
conteúdos". A divisão nos eixos procurou trabalhar compet 'ociais. Sob o argumento de que é necessário que os estudantes co­
imento
intelectuais c questões relativas à especificidade do conhec nltcç:un as diferentes experiências humanas no rempo, a configura­
a e as tempor alidades . Pois
histórico, como os conceitos, a pesquis \ ·'o da Segunda Versão Preliminar da BNCC, a despeiro das preren­
retor­
bem, nota-se que a Segunda Versão optou por, j_ustame�, \6cs mencionadas acima, parte do princípio de que é possível, ramo
elatand o objetivo s "clássico s"
nar à ênfase na líSta de conteúdos, r�órica quanto quanritacivamente, ensinar "toda a história", ou seja,
o conjunto das experiências humanas. Tal concepção acaba por di­
c.� c a
9. Para Whitc (2011\, p. 14-15), uma ideia de história cr ccu ao lado e onrr a
história cicndlica dos historiadores no século XJX: tr:ua-sc do passado prático,
ficultar a compreensão da complexidade da escrita da história pelos
t·sr udanres, pois desconhece a arte a o 1tic.1 do recorr , coma...elc­
que (oi vivido por todos nós, mais ou menos individualmente c coletivamente, e

õ
11 u e serve como hasc para tipos de pcrccpçües de situações, soluç es de problemas IIICtltO � aboração dequalquer história e de gual��r-
e julgamentos de valor c mérito que precisamos fazer em situaçücs cotidianas, do
tipo que nunca foi expcricnciado pelos heróis da história. O au tor, portanto, não 10. Nos referimos aqui à concepção de história moderna que emergiu na Europa
se preocupa tauto com o jogo de idcntidade/alteridade entre passado e p resente 11 t o
par ir do sécul XVIII, eclipsando a noção da historitt mrtgistm vitae. Kosellcck
q
de que nos ocupamo.� a u i, entretanto, pensamos que essa discussão pode ser t
..-.�salta a singularizaç:ío da h is ória como um dos processos pelos quais passou-se

complementar à problcJnátic;t levantada por ele, já que f:tvorecc a construçflo de ''c onsidcrar por exemplo, "a liberdade" (burguesa) como suhsriruriva das "libcr­
,

p assados que sejam "utilizáveis'" por indivíduos e coletividades na resolução de ol.ulcs" medievais, relativas aos eHamentos e "a históri:t" progresso como a marcha

problemas do presente. du humanidade, no lugar das "histórias" legadas pela anriguidadc clássica.

40 41
HAI.rr.Rn CAni.05 Rmr.mn júNIOR I MAIRON E5C:Oit51 VALF.ItiO (oncs.)
E.N�INC) u�:. I II�TÔHIA 1! Cuunicuto

rículo. Desse modo, desconhece o caráter político de tais escolhas.


Vt:rsáo esse problema se imensifica, na medida em que se restring_e
Üu seja, a �na possibilidade de ensinar(tOa�· não
a tocar rarildamente no tema dos direitos das mulheres no Brasil
apenas supõe que os conteúdos não são problemáticos, resultado do
do século XXJJo oita.Y(>...fl0.0 do ensino b�ísico (2" BNCC, p. 475),
engenho político da pesquisa, como também não ensina sobre a arte
embora aparentemente se reconheça que, nos anos finais do Ensino
de pensar o passado como algo a ser selecionado com vistas a pensar
Fundamental, se intensificam as relações dos jovens "com os pares
as disputas sociais e políticas do próprio presente.
da mesma idade e as aprendizagens referentes à sexualidade e às re­
A Segunda Versão Preliminar BNCC, ap.aret�ente, des�
I:,Ç,óes de gênero, acelerando o )fOCes�i·ãéõí'"na ii1E
1�lêia"
� o recorte e a seleção dos conteúdos e das problematizaçõ� (2" BNCC, . 321). No que se refere aos objecivos e conteú os ele


f/úJ1ito
a serem realizadas no âmbito de u_ma... aula-d6--=listó@,
l mantendo história no �nsino Médio, se )revê de maneira •enérica a "sensib·-
a clássica e eurocênt.r.iGa-di.v.isiio da temporalidade histórica � lização e o estranhamente com diversas formas de desigualdade (so-
� Contudo, se a Europa continuou a ser a referência pa;:;t cioeconômica, racial e de gênero)" (2" BNCC, p. 628), mas quando --=::::.._...:
contar as his rória
s_de indígenas, ele africanos ou de asiáticos, não se se busca a distribuição de tópicos de história e objetivos de aprendi­
trata de � as de manutenção de uma concepç�> de zagem ao longo dos três anos, percebe-se que é somente no último
hjg<lria que é política, embora tenha passado boa parte do século ano, relacionados/as a processos muitos contemporâneos, portanto,
XIX e metade elo XX sem se assumir como tal, forjando para si ·� (2" BNCC, p. 645).
que aparecem a;Lmulheres e
l!!)Ja aearência de neutralidade. A Segunda Versão reverte o que a [sto é, há l.IID��invisibilidade das� enquanto
Primeira Versão havia estabelecido como o centro elo processo do agemes sociais e históricos, emergindo apenas quando conquistam
recorte e da seleção, que era alífuQria do B�elos ameríndios, elos direitos políticos. As Ol · id ·ntidades de genero, então, sequer
afrodescendentes. A opção política anterior pelos povos africano�, �arecem como possibilidades efetivas de i entlc ade, constituindo-
americanos e pelo Brasil como centro da problematização histórica -se como experiência humana de um "outro" a s.r anexa , mais do
foi redefinida pela divisão conhecida dQs conteúdos de históri.;
uutti­ que integrado à sociedade c à história.

ga,- medieval, moderna e contemporânea, tendo _como-eixo central a Em vista dos debates c das diferentes versões das BNCC, po­

.É�?U como se pode ver claram� no Enilit_n_Médig. de-se questionar se em algum momento a relação com o passado

'--sê' a renovação das identidades sociais se vê muito dificultada a deixa de ter o caráter prático assinalado por Hayden Whire. Com

partir da recusa na inversão da perspectiva eurocêntrica na Segunda as alterações propostas para a Segunda Versão da BNCC, não nos

Versão da base, o problema se torna ainda mais grave quando se parece que estejamos diante de um currículo que tenha abando­

trata das questões de gênero. Na Primeira Versão se encontrava uma nado um caráter prático do passado, relacionado aos interesses e

abordagem bastante tímida do tema, dispersa em alguns objetivos representações de grupos étnicos e sociais? Conclui-se que, apesar

de aprendizagem, não se configurando, entretanto, nenhuma pos­ de ter abdicado pela evidenciação mais clara de quais práticas pre­

sibilidade de conceber outras histórias possíveis pensadas e estru­ tende emular por uma história assim recortada, não é por isso que
o passado desenhado na Segunda Versão tenha caráter menos po­
turadas a partir de diferentes p�spectivas de g�ll Na Segunda
lítico e performático (prático) do que na Primeira. Quer dizer que
11. Lembramos aqui da conhecida apropriação que Joan Scntt (1992, p. 75) f:1z as escolhas realizadas e com chances de se Weferivar, nesse processo b<
da it!eia apresentada ironicamente por Virgínia \XIoolf, de que a histbria das mu­ de discussão e alteração da BNCC, parecem em sintonia com uma
lheres deveria ser acrescentada como um "suplemento" à história escrit:l :ué então.
sociedade cindida, que enfrenta na atttalidade as contradições entre

42
43
IIAI.rF.nn C••u.os RJnr.•�o Jli>IIOR l 1'v1AIHON EscOrt$1 VAJ.ÉIUO (onc;s.) ENSINO oe H•sTÓIUA ll Clll\lllcuto

o impulso de aprofundar mudanças sociais esboçadas nos últimos Referências


anos e o ressentimento de quem vinha perdendo poder político e
capital simbólico, mas busca retomá-lo para legitimar a manutenção 1\NHORN, C. l� G. 'Teoria da História, Did;í.tica da Histórica e narrativa:
de seu poder econômico. diálogos com Paul Ricoeur. Revista brasileira de história, São Paulo, v.
Do ponto de vista do grupo mais restrito de intelectuais uni­ 32, n. 64, p. 1 87-210, 2012.

versitários que interviram de forma intensa no debate, o efeito de 13ASE NACIONAL CUIUUCULAR COMUM - 13NCC. Primeira Versão
uma tal reestruturação dos currículos do Ensino Básico também
(tO 1 5) . Disponível em: dmps://goo.gl/313q322>. Acesso em: 20 dez. 20 16.
. Segunda Versão GO I 6). Disponível em:
não seria desprezível. O caráter prático (e político) do passado que
___ dmps://goo.gl/
se configurava na Primeira Versão da BNCC poderia impactar a ncLWlth . Acesso em: 20 dez. 2016.
médio e longo prazo a constituição de grupos e verbas para pesqui­
BERGSON, H. A evolução criallora. São Paulo: Martins Fontes, 2005.
sa, afetando, portanto, a posição de lideranças acadêmicas c de seus
"legados" para o campo. Em suma, há importantes desdobramentos BLOCH, M. A apologia da história: ou o ofício do historiador. Rio de
Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2002.
econômicos, políticos e simbólicos em jogo na estruturação dos cur­
rículos do Ensino Básico, já que a pesquisa universitária na área de CEZAR, T A retórica da nacionalidade de Varnhagen e o mundo amigo: o
história está indissociavelmente !ig:}da, JJa-ªJualidade, à formaÇ,ão de caso da origem dos tupis. In: GUIMARÃES, M. L. S. (org.). Estudos sobre
professores/as. Mesmo que esses fatores não tenham aflorado de ma­ a escrita da história. Rio de Janeiro: 7 Letras, 2007, p. 29-4 1 .
neira deliberada e consciente, parece muito viável afirmar que eles I�OUCAUI.:I: M . Microffsica do Poder. Rio d eJaneiro: Edições GraaJ, 1979.
influíram fortemente nas avaliações da Primeira Versão da BNCC. GUIMARÃES, M. L. S. História e natureza em von Martius: esquadri­
Conclui-se que essa Segunda Versão não se ocupa de apresentar o nhando o Brasil para construir a nação. História, Ciência, Saúde- Man­
passado comOíjJráti<..--a desnudando sua vinculação C.OOLO es�elho das gtúnhos, Rio de Janeiro, v. 7, n. 2, j ul./out. 2000.
identidades e do pertencimento, para apresentá-lo predominantcmç.nre HARTOG, E Regimes de historicidade: prcscntismo e experiências do
com�passado histórico", como continuidade ou repetiç.'io, náo proble­ tempo. Belo Horizonte: Ed. Autênrica, 2013.
matizadb, pacificado, no lugar daquele passado que se lê e se modifica a
JENKINS, K. A História repensada. Tradução de Mario Vilela. Revisão
partir de novas perguntas e derpandas do presente, como sonhava Marc Tecnica de Margarerh Rago. São Paulo: Conrcxro, 200 I .
Bloch (200 1).12 Consequentementc, além de dificultar a emergência de
KOSELLECK, R. História Magistra Virae - sobre a dissolução do ropos
renovada� identidades sociais a partir das dinâmicas do presente, acaba
na história moderna em movimento. fn: . Futuro Passado. Tra-
___

colocando cmpecill10s também para a superação das formas presentis­


dução de Wilma Patrícia Maas; Carlos Almeida Pereira. Rio de Janeiro:
tas de eX.periência do tempo, cada vez. mais dominantes.
Contrapomo: PUC- R.io, 2006, p. 4 1 -60.
LAVILLE, C. A Economia, a Religião, a Moral: novos terrenos das guerras
de história escolar. Educação & Realidade, Porto Alegre, v. 36, n. 1 , . p.
1 73-190, jan./abr. 20 1 1 .
12. Retomamos atlui a noç:ío de "p:•ssado histórico" conforme Hayden White,
OUVEIRA, M . da G. Apresentação a João Capistrano de Abreu. In: His­
mencionada na n ot a 3 deste texto, �quele tradicionalmente construido por histo­
tória e historiadores no Brasil: do fim do Império ao alvorecer da Repú­
riadores/as em suas pesquisas e poderíamos dizer t1ue tamhém por professores/as,
blica-c. 1870-1940. Porto Alegre: EdiPUCR.S, 2 0 1 5 , p. 13-32.
com seus alunos, em sala de aula.

45
f IAitl lllt CAtll "' f\1111,11111 Jt'tNI()tt l MAIIlON f:•c:ntt•• v.o.rnoo (IIIIGS.)

SCO'J"J; ) . Históri:l das mulheres. In: BURKE, f� A escrita tia ltistória:


novas perspectivas. 'Ji-adu<;áo de Magda Lopes. São Pau lo: EdUNESl�
3
1 9n. p. 63-96. PARADOXOS ENTRE POLÍTICAS E
SILVA, T T da. Documentos tfe Identidade: Uma Introdução às l eorias A CONSTRUÇÃO DO COLETIVO:
de Currículo. 3. ed. Editora Autêntica, 2010.
CURRÍCULO E A HISTÓRIA ENSINADA
WHITE, H. ·lrópicos do discurso: ensaios sobre a crítica da cultura. Tra­
dução de Alípio Correia de Franca Neto. São Paulo: Editora da Universi­
Maria do Carmo /vfarti!IS
dade de São Paulo, I991. Delart- FE- Unicamp
·
---
El contenido de la forma. Barcelona; B uenos Aire.�: Edicioncs
Paidfls Ib�rica, 1992. Ocorrências
---· 1ltc practic;Ú past. Evanston, Illinois: Northwcstern University
Prcss, 20 I 'Í. Durante os anos de 20 1 5 c 2016, pesquisadores e professores
de História debateram sob re a construção da Base Nacional Co­
mum Curricular - BNCC, que, ainda em versões provisórias, mas
já organizadas em seleções propostas por comunidades de especia­
listas, tiveram seus conteúdos abordados em seminários acadêmicos,
mesas-redondas, matérias em jornais e em grupos nas redes sociais.
Como era de se esperar, os debates náo foram realizados com
a costumeira calma dos simpósios acadêmicos de História, tendo
em vista a operação de construir consensos em territórios de dis­
putas. Havia conflitos de interesses sendo exposros, que resultavam
em acaloradas manifestações ou contundentes canas abertas. Em
disputa havia, basicamente, os sentidos sociais para o ensino da dis­
ciplina e os significados atribuídos ao saber histórico escolar, como
elemento constituinte da grande área das humanidades.
Após a primeira versão do texto da BNCC ser tOrnada pública,
a Associação Nacional de História (Anpuh) manifestou-se em uma
carta-aberta sobre a insatisfàção com o processo, considerado aligei­
rado pela associação, e questionando su::1s formas de organização, in­
cluindo a composição da comissão de especialistas. Segundo a carra,
apesar de a equipe de autores do texto contar com membros filiados
à associação, esses não haviam sido designados para representá-la1•
Além disso, apontava como problema intrínseco ao processo a vin-

I . Disponível em: <https://goo.gi/YMOCCA>.


I IAI 11RilU CAl!I 0'\ ltiiH lllll jÜNIOil l rvfAIItON Esconst VAJ.f.,nro {OR.GS.)

cubç!ío ctllrc a proposição da BNCC e os exames para avaliações situação da proposta de História apenas o explicitou, tendo em vista
do sistema de ensino. Alerta.va que a diversidade de perspectivas que a característica desse conteúdo das humanidades.
caracterizam a pesquisa e o ensino da História não era contempla­ A Base, garantida pelo Plano Nacional de Educação de 2014,
da nessa primeira versão, apresentada para apreciação em outubro era, segundo o Ministro da Educação, Prof. Renato Janine Ribeiro,
de 20 1 5. Colocava-se ainda como tUna interlocutora que havia sido atrelada ao direito constitucional à educação. Visando ao currículo
deixada de fora do processo e que, legitimamente, deveria ter sido escolar, a Base Nacional abriria dois rumos importantes para serem
convocada para ele. Ao final, solicitava uma audiência com o coor­ mais qualificados, que seriam a formação inicial/continuada de pro­
denador do processo no MEC adiantando que a Anpuh reivindicava fessores e os materiais educativos.
a reformul.açáo ou a ampliação da comissão de especialistas. Tal manifestação do ministro parece ter sido tomada de forma
A segunda versão do documento foi apresentada já refonnula­ consensual entre os historiadores, tendo em vista sua positivida­
da <;:m 2016, mas também imersa em conflitos. Ainda que a maior de declarada: a intenção de assegurar princípios como o direito à
parte dos membros da comissão antes questionada tenha pennane­ aprendizagem, para o qual a formação docente e os materiais educa­
cido em sua confecção, uma denúncia veiculada por alguns desses tivos são sempre um alvo declarado para intervenções. Visando atin­
membros, imediatamente após a divulgação do texto, apontava que gir a meta mais facilmente, propõe-se alterar as práticas educativas
a versão1 que se apresentara ao público fora modificada em relação realizadas por meios dos materiais e mediações dos docentes, que
podem ser redirecionados a partir de textos que afirmam sentidos
à que eles entregaram ao Ministério da Educação. Alegavam, por­
e objetivos quanto ao ensino e à aprendizagem. A Base, nesse caso,
tanto, que o documento a ser discutido não havia passado apenas
não é compreendida como o currículo cotmun, mas como um ele­
por revisões, mas sido profundamente alterado2• Após a denúncia e
mento norteador de demais políticas do Estado e não deveria ser to­
os primeiros ruídos sobre o assunto, a coordenadora da equipe de
mada como proposta curricular, embora devesse gerar tais propostas
História e mais alguns de seus membros anunciaram que estavam
a partir de elementos que seriam comuns a todo o país.
se desligando do processo, o que criou ainda mais elementos que
Para os historiadores e professores de história, entretanto, as
davam a perceber que a BNCC entrara em espiral de disputasl.
disputas ecoavam ainda outras premissas, tendo em vista os senti­
. O processo de construção de lUna Base Nacional Comum Cur­
dos da história ensinada e as formas de construir o documento que
ricular só poderia ser mesmo tun processo de muitos conflitos e, a
expressasse a disciplina em sua globalidade. Dentre os ecos, havia
aqueles que repercutiam o saber histórico escolar como mais colado
2. A5 duas versões foram escritas por "comissões de especialistas", mas isso não
quer dizer que fossem apenas especialistas acadêmicos. Havia nas equipes, além
aos objetivos do ensino, ou seja, definindo um projeto em que o
de historiadores, educ;�dores envolvidos com a formação de professores, profes­ ensino da Histôria estivesse a serviço da escola e da sociedade, como
sores da educação básica e gestores da educação. Cada nível de ensino tinha uma elemento de inclusão social. Outros reverberavam que a seleção/
coordenação geral. A instituição da comissão, de 116 pessoas, ocorreu em Didrio organização curricular escolar poderia ser conectada à configuração
Ojicinl, pela Portaria Ministerial n• 592, de 17 de junho de 2015. 1\.s equipes
do saber acadêmico e às estruturas básicas dos cursos de graduação,
foram nomeadas pela Secretariada Educação Básica do MEC, pebs Portarias n"
considerando, portanto, a escola como lugar da aprendizagem da
19 c 20, de 17 de julho de 2015.
3. As manifestações limtm publicadas em cartas e mensagens disponihilizadas no
Histôria e o currículo como elemento que tornaria possível alguns
Grupo de Trabalho Ensino de História e Educação da pr<Ípria Associação N acio­ consensos sobre esta aprendizagem. Havia ainda digressões sobre
nal de História - Anpuh. Disponível em: dmps://goo.gl/5sfnV4>. qual deveria ser a seleção dos conteúdos, e muitas manifestações

48
' '"' roHu C.Rcos RHIURO júNrort I MAIRON EscoH�r
VALÉRIO (OIIG�.) WSINn "" flrSTÓRIA P.Cunnlcuro

sobre a retirada ou o exce


sso de determinados temas de· que os tais documentos da Base deveriam nortear a elaboraç!io

(ou aborda­
gens), mas s mpr mantend � o a lógica do currículo com
o seleção de do:. currículos em suas distintas ambiências estaduais, municipais.
conteu' dos, smôntmo de pro
gramas escolares. ( ) f.·tto de o processo transcorrer em meio a grandes disputas ex­

O debar , tomado em sua com
plexidade, repercutia tam I Hcssou, também, o dissenso no qual a sociedade e as institwções
��
as pr cupaçoes de membro
s dessa comunidade de esp
bém
brasileiras estiveram imersas no período.

. ton ecia listas em
Hts a, po vezes apresentando
um paradoxo: optar-se-ia A finalidade deste capímlo é auxiliar a compreender por que o
� �
a manu en o de onteúdos
, � já considerados clássicos no
por fazer
debate, embora frurífero, esteve i nserido c conformado em uma prá­
ensino, tais
como htstona anttga e me
dieval por exemplo ou peI
� . _ .
'
a na propos.t-

tica reformista conservadora, corroborando um dos mais perversos
çao de movaçao curncular, ten
do em vista uma abordagetn

• que par- contextos de desqualificação do debate político da educação públi­
tiss.. e c1e uma htst . , .
ona mais brasileira/african
, alamert'nd·ta, rompendo C.1 brasileira. Com ele, rcapresento temas e problemas de abordagem
com conreudos sequenciai
s, cronologicamente agrupa

qu r uma das posições fazia
referências às discussões cur
dos? Qual- curricular, procurando colaborar com os debates, sempre necessários,

r:S
tcn� , ou à renov�çáo hisr
oriográlica de tempos rece
riculares an­ em relação à história c seu ensino4• Para analisar tal situação, tomarei
ntes, mas não

expltcttava a ena fili çáo � �
a isso, porque não se caracter
izava como
o currículo como construção social c artdàto cultural, que contém

um debate htStonografico. seleções, c essas são de distintas naturezas, mas que precisa ser anali­
Tratava-se da definição dos
. obj etivos d0
ensmo e de como artngtr esse

· ·
. · sado em seu contexto de construção, com uma abordagem relacional.
ob�ettvo com senso de resp
onsabilida-
de e manurençao da lógica
disciplinar.
. �� �
que esc toda a discussão
ter sido atenta aos princípi
Dos conflitos aos confrontos

disctp mares, e perceptíve
l que o processo transcorreu
ref
os


orç ando
uma logt.ca qu compreend A impossibilidade de uma Base nacional construir qualquer
e a Base Curricular Naciona
l como uma
fc>rma de seleciOnar contet'td tipo de consenso era considerada uma hipótese remota, tendo em
os c definir obJ'etivos para eles
u�� . _ ,
vts:w no mmimo restrita
de currículo, e considerand
, o que é
vista o grande engajamento de historiadores e educadores que se

. o a pres-
cnçao ofictal co o o espaço privilegiado encarregam da formação de professores e de produção de materiais
das demonstrações de for­
ça e guerras rernron.ats .
entre pesquisadores. didáticos. Entretanto, o que nos sobrou em diversidade de objetos c

Nesse entido, a BNCC exp
ressaria as preferências teór de concepções nas pesqwsas históricas, nos faltou em entendimento
� �
eto ológtcas, fosse da própria
historiografia, fosse do ens
icas e
sobre o lugar da Base como construtora da nação, em especial quan­
dldan , � � , J or exemplo, sendo que
tal dinâmica de discussões
ino ou da
do se trata de construi-la por elementos singulares.

çava a deta de issáo do� ensino escolar, mais do que
refor­
Cabe lembrar que as discussões entre os historiadores foram
� �
pree 1sao obre c •r •cul�: '
o.. como um elemento educati
alguma com­
mais acaloradas quando os documentos escritos seguiram para os
vo que não se
restnnge a prescnçao, mas
que se manifesta também debates públicos, frutos da própria dinâmica de sua legitimação
��
po ue é nela que a mobiliz
dessa forma

legmma ou rechaça uma polí


ação da comunidade de espe
tica educativa. Portanto, se
cialista � como documento escrito por uma comunidade de especialistas c

tomarmos
o que ocorreu na comunid 4·. Oriundo de uma apresentação oral, o capítulo prescrv:1 não somente a apro­
ade de historiadores e edu
cadores ximação em relação a essa apresentação, mas rambém a abordagem de temáticas
relação à BNCC História,
a Base, m:�s como um currícul
a Base não teria sido interpre
o mínimo comum, superan
tada co :: curriculares pua auxiliar, teórica e merodologic:�mentc, a refletir sobre a história
do a ideia c o ensino.

50 51
IIAo.rmo CARLOs Rooww JoiNIOot ) MAoRoN EscoRso VAO.áHJO (oRes.) EN�oNo nr. I hSTÓRIA F. Cvotnfc�uo.o

referendado por outros, na f.1se


de elaboração de pareceres sobre <orno eixo propositivo o atendimento específico de demandas de de­
o texto da BNCC História. Sem
leitores na lógica de uma construç.
pre editado e reapresemado aos terminado grupo social, que, articulado, advogava q,�obre os
'ío democrática, seguindo 0 cro­ currículos c as práticas docentes. E, ainda que tenham vetores distin­
?
no rama desde o Ministério da Edu
cação, as versões e os pareceres, los, do Estado para a Socicda& ou de tlffia parte da Sociedade para o
assim como roda a gama de man
ifestações, cartas abertas, opiniões Estado, os três processos não são apenas contemporâneos, como cor­
�os professores editadas na pági
na virtual construída para essa fina roboram as ideias de que o currículo assumiu cenrralidadc no que diz
­
lidade, proporcionam a um intér
prete das questões curriculares um respeito à formação inicial e continuada de professores, assim corno
privilegiado conjunto de fontes
documenmis5. em relação à indústria que produz materiais didáticos.
O processo, entretanto, não foi
tranquilo apenas em função Tornadas em conjunto, as três mudanças podem ser pensadas
da comunidade de especialistas
da História e suas idiossincrasias como medidas reformistas que interferem diretamente na cultura
mas mmbém em função de um conj
institucional do Estado, justamen
unto de fatores relativos à cris � da educação e no etbos docente. E, embora a Base tenha sido ini­
te no momento em que a BNCC ciada em um contexto democrático, suas discussões subsequenres
passava por sua fase de consulta públ
ica no ano de 2016 . foram mostrando o enraizamento da própria Base em estratégias
Em uma época em que a Presiden
ta da Rept'1blica sofreu impedi­ políticas e institucionais que precisam ser compreendidas na sua es­
mento de continuar o mandato para
o qual foi eleita, na qual governa­ pecificidade, com o país imerso em desesrabilizaçáo política e trocas
dores e parlamentares seguem send
o acusados de corrupção e 0 processo de ministros e de intelecwais assessores, no comando do processo,
das investiraçó
t:, es sobre isso ocorre de maneira susp
eita, com dent'mcias que não necessariamente resguardavam as instituições e as formas
gu! ��
de irre arid d , e no qual a "dela
ç.'io premiada" atingiu seu apogeu de participação democráticas.
como prau.ca Jundica .
e, em um período em que poderes
republicanos A� abordagens da reforma curricular como tuna construção so­
� ntraram em rota de colisão, apresenta
r a Base para discussões pt'1blicas, cial inserem as questões das políticas c das estratégias das reformas
Imersa em dent'mcias que questiona
m a normalidade democrática insti­ em foco, com o qual é possível perceber a relação sujeito - poder.
tucional, apenas amplificou os ruído
s e as manifestações. Por sua vez, ao pensarmos o currículo como um artefato cultural,
A Base foi ram ém en olida por deba
tes sobre a Escol Par- que produz e reproduz valores, normas, discursos, é possível apreen­
ri �
e a eforma do Ensino Médio. Ou,
pe o menos, reve qu� �er dê-lo, como relativo à "l . . ) subjetividade política - relação com o
redim . .

ensionada, pois sua construção é simu


ltânea às outras duas mu­ saber, sublinhando o lugar atribuído ao conhecimento escolar no
d�as no âmbito da escola: que tamb
controle sobre o currículo escolar.
ém passavam pela definição � processo de definição da especificidade do trabalho/oficio/pratica
A Base e a Reforma do Ensino Mé­ docente", como afirma Gabriel (20 15). Trabalharei aqui, portanto,
dio tiveram seu eixo propositivo
como políticas de Estado. A Esco em uma perspectiva polissêmica do currículo.
la
sem Partido, por sua vez, visava uma
medida reformisra, mas rendo Nesse sentido, para além da problematização dos acontecimen­
tos que moveram a comunidade dos historiadores envolvidos no
5. A página da liNCC está alocada no Ministério da Educ:tç�o c contém, além dos
debate, coloco o foco nos sentidos das reformas, que têm por supor­
documemos, uma :1prescnraçáo do.ç órgãos envolvidos na sua construção, a vincu­
lação da lbse ao Conselho Nacional de Educação, além de perfis dos técnicos e te o currículo, e destaco três aspectos que considero essenciais para
gestores envolvidos no processo. Por ser sempre atualizada, não h:í nela 0 registro compreendermos o processo que representa um dos mais expressivos
de alguns sujei ros que são traados
t nesrc rexto, rendo em visra a rroca de membros episódios da história da educação recente. São eles: a construção so­
da equipe no decorrer do processo. Disponível em: <hups://goo.gi/A31jbR>. cial como forma de entender a política curricular; o currículo como

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I IAI HRIJ ÜuUJs RloEIRO J•íNIOR I MAIRON EscoRSI VAuhuo (oRe
s .) ENSINO ue HISTÓRIA F. Cunnlc:IJI.O

artefato cultural em suas potencialidades; e a identidade disciplinar Contextos


como ferramenta para intervenção na ação docente.
Eles nos permitem reAetir sobre uma "crise" curricular como No sentido do currículo como uma constnJÇ<Ío social, é necessário
característica de uma política, e como ela expressa visões de mundo pensá-lo em meio à crise c aos conflitos, visando consolidar elementos
sobre o ensino; como tais políticas desviam o foco dos discursos políticos, expressando visões de mundo sobre o ensino e práticas sacio­
sobre a valorização do trabalho docente, contradizendo o poder dos culturais em decorrência delas. O currículo não pode ser compreendido
professores e, de que maneira as questões do currículo podem con­ ;1penas como uma declaração de intenções c uma seleção prévia de con­
tribuir para fortalecer a agenda de estudos sobre o ensino e a história teúdos a formatarem um percurso de aprendizagem estudantil.
em tempos atuais. Com tais reflexões, o que se espera é recolocar as Em uma provocativa apresentação no encontro da American
questões curriculares em um lugar que permita pensar estratégias Education Rese1·ch Association - Aera de 1999, Barry Franklin iden­
para que o ensino e a aprendizagem, inclusive da história, sejam tificava o "fim do currículo". Segundo Franklin, este fim se carac­
mais significativos. Parto de concepções que consideram as estrutu­ terizava pela pulverização de estudos e de abordagens. Havendo
ras constitutivas da relação sujeito/conhecimento, baseada em dinâ­ tamanha desarticulação entre estudos teóricos e práticos sobre o
micas de poder e pressupondo conHitos de interpretações. currículo, não mais se avistava um campo coerente de pesquisas e
Além disso, é importante ressaltar que a prescrição cmricular é
isso poderia ser danoso em termos políticos c culturais.
compreendida como uma das formas com que se fàz a política da dis­
O mesmo historiador americano escreveu artigos subscqucn­
ciplina, assim, a escrita do texto, como política produzida desde órgãos
tes nos quais apontava que os standares, as avaliações sistêmicas, as
do Esrado, na prcsenç..1 da comunidade disciplinar, tem por pressuposto
políticas de inclusão e exclusão social, utilizando-se da dinâmica
que os analistas simbólicos, ou seja, membros de uma comunidade que
de escolarização, da definição das práticas e os embates políticos­
mantém ativa a relaç..
'ío entre o conhecimento e o poder, ao tomarem-se
-culturais sobre a seleção dos conteúdos para o ensino, provoca­
intelectuais refiHmadores, passarão, especialmente, a reproduzir nesses
ram um ocaso das questões curriculares, tornando-o um objeto
rextos as condições para efetivar políricas públicas que tenham durações
obsoleto, especialmente devido ao avanço do controle curricular so­
maiores do que gestões governamenrais e que renham, também, a capa­
bre a atividade docente. Ou seja, o cmrículo entrara em crise quan­
cidade de traduzir, em discmsos políticos e em ações, suas visões acerca
do também a docência passara a ser tecnicamente e politicamente
dos sistemas de ensino (Braslavski; Cosse, 2006).
Uma Base, portanto, nunca é apenas um ponro de partida, mais controlada.

embora se queira atribuir a ela tal função, em especial, quando se Assim, o tom catastrofista de Franklin em nada queria cli7,cr o

pensam os demais elementos que a tomarão como referência para fim dos estudos curriculares, mas podia ser interpretado como uma

avaliações do sistema educativo, investimento financeiro em ma­ chamada de atenção para o fato de o currículo ter se constituído
teriais didáticos pelos estados, processos de progressão por exames como um dos mais importantes elementos da formação docente e
nacionais etc. Mas é uma forma de esses analistas simbólicos e dos um dos mais desejados objetos na construção política recente. Ao
intelectuais assessores manterem vivas suas proposições para a cons­ contrário de ser extinto como artefato sociocultural, o currículo
trução de políticas de Estado. passara, portanto, a ocupar outro lugar que não o de organizar os
percursos do conhecimento, mas o de ser o cmnpo no qual trans­
correm as batalhas pelo controle, formação e produção de insumos

54 ss
l iA! F�I<U c:.-....u. luuemo }ÚNIOU I MAIIION EscoRSI VALéruo (onGs.) ENSINO "" I hs1·ón1A F. CunnlC:III o

educacionais voltados ao professor e ao aluno. Por ser um lugar po­ didáticos e softwares educacionais6. A vinculação da Base aos movi­
lítico, a potencialidade do currículo se mostra, em especial quando mentos sociais, tal como aparece no documento inicial da BNCC,
os estudos vinculam teorias e práticas. não é claramente explicada, embora seja citada, mas percebe-se que
Devido ao Faro de as reflexões de Franklin se direcionarem a esse Movimento pela Base se considera o propulsor c o impulsiona­
uma plareia de especialistas em estudos curriculares e do conrexro dor das ações que resultaram na mobilização do Ministério para a
acadêmico a que se referia se enraizar na cultura norte-america­ elaboração do documento e que o grupo - não coeso, mas organi­
na, suas advertências me vieram à lembrança justamente quando zado em torno de produzir uma política de de Estado - forma um
passei a perceber os conflitos tornando-se confrontos no caso da expressivo conjunto de analistas simbólicos.
Base, ainda que pautados no ideal de consenso sobre a organi­ O Movimento pela Base atuou durante todos os anos em que a
zação do trab:tlho docente. O argumento de que já existe uma BNCC esteve em discussão, e segue atuando ainda porque entende que
cultura comum curricular e que ela está sendo definida desde o o a "implementaç.
'ío" do currículo prescrito para ser a Base é a etapa ftm­
mercado editorial ou do setor privado da formação docente é o damental da realização da política de Estado. Mesmo depois que Minis­
ponto forre na dt:fesa para a Base, e o que mobilizou a maior pane tério da Educação parou de divulgar novos dados sobre suas medidas,
dos especialistas das disciplinas. Porém, sua construção deixou o Movimento pela Base continuou seu protagonismo, apontando para
transparecer que a criação da Base em nenhum momento elimi­ os problemas da segtmda versáo7• E
�sc grupo seguiu articulando nacio­
nou esses riscos. Cabe, pois, nesse aparente consenso, algum tipo
nalmente a defesa da Base e solicitando pareceres a outros especialistas
de questionamento. Ainda, se considerarmos o contexto brasilei­
internacionais, tais como a organi7.açáo brit:\nica, Cwriculum Founda­
ro recente, veremos que rodas as mudanças propostas para a área
tion - cuja principal ação é de consultorias para a criação de currículos
da educação têm sido apresentadas como assentadas em mudan­
nacionais sob medida -, bem como assessores australianos c chilenos,
ças curriculares, todas elas definindo o direito à aprendizagem
considerados bem-sucedidos em promover os currículos nacionais em
como uma premissa orientadora para as prescrições (proposirivas
seus paises. Isso implica que, em um período de aproximadamente qua­
o u reguladoras).
tro meses, de agosto a dezembro de 20 16, a Base deixou de ser noticiada
Balizando, enrreranto, a BNCC como política de Esrado, está
a partir de seu órgão promotor, estatal, mas continuou a ser analisada,
um grupo social, criado em 2013 e organizado no Movimento pela
refletida e repercutida a partir desse movimento.
Base Nacional Comum, composto por "mais de 60 membros", dis­
tintos representantes de diferentes setores sociais, o que inclui de 6. A págin� virtual do movimento explica que o grupo se reuniu para propor uma
professores universitários à educação básica, depurados federais, Base para o p�ís e assume seu protagonismo na criação de uma poHtica de Estado

conselheiros de educação, gestores dos setores pítblico c privado, or­ e n:ío de governo para a educação. Membros integmmes do movimento - pouco
mais de 60 pessoas- estão vinculados à construção do documenro e do processo de
ganizações não governamentais interessadas em educação, algumas
sistematização dos dados. Por sua vez, alguns membros como as Prof:ts. Maria Inês
delas já denunciadas por relações deletérias com o setor pt'tblico, e
Fini e Maria Helena Guimarães de Castro passaram a ocupar cargos no Ministério
fundações privadas como a Lemann, a Somos Mestres SM, o Insti­ da Educação após a Base já estar em construção, compondo :1 Clp!ipe do Ministro
tuto Airton Senna, o Instituto Singularidades, cujo.� intcre.�ses esrão José Mendonça Bezerra Filho, que assumiu a pasw em meio ra crise política.
na oferta de educação privada, presencial c a dist�uci:a, n:a formação 7. Ainda em dezembro de 2016, a página virtual do movimento divulgou entre­
vista com David Peck sobre a Base e também um parecer encomendado a essa
de professores em nível superior, assim como na oli·n:a de materiais
fundação americana, conforme pode ser visto em: dtups://goo.gi/XNvGj5>.

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II......ERO C:Aiu.os Ruwono ]ÚNJOu I MAJRON EscoRs• VAcÉRJO (oucs.) ENSINO mt I hsTÓAJA r, C:vnnlc:ow

.Em julho de 20 16, acompanhando a fàse dos trabalhos referen­ cs..�e processo. Mas náo apenas isso: é necessário pensar como se articu­
tes à consuha pública sobre o documento em sua segunda versão, o lam as equipes assessoras com os gestores da política de Estado. Porque
MEC instituiu o Comitê Gestor da Base Nacional Comum Curricu­ as questões sobre o controle, as avaliações do sistema e as políticas de
lar e da Reforma do Ensino Médio, juntando, portanto, as duas mu­ qualidade têm sido balizadoras para reorganizar o currículo nacional.
danç.-'ls em um único processo reformista. Esta comissão foi composta Desse modo, em momentos significativos como o das redef1ni­
por sete membros, todos assessores que ocupavam as secretarias do ções de "bases" curriculares, das reformas do ensino c das políticas
MEC. Dentre eles destacam-se três membros, que passaram a ocupar que incidem sobre materiais educativos c formaç..
'io docente, a abor­
tais cargos no Ministério, quando já participavam também do Mo­ dagem construcionista social, devidamente limpa dos fundamema­
vimento pela Base, o que efetivamente tornou ainda mais explícita a lismos e da ortodoxia teórica, c profundamente atenta à operação
vinculação entre o Ministério e o grupo que organizava o movimento. historiográfi.ca, nos fornece excelentes elementos para compreender­
Para compreender, portanto, o conflito que envolveu os historia­ mos o ensino de História, os objetivos que estão sendo indexados a
dores, considera-se necessário privilegiar como se afinam ou são des­ ele c, em especial, por que movimenta diferentes grupos. O proces­
cartadas determinadas contribuições em relação à política que frutifi­ so precisa, portanto, ser an:�lisado no interior das leituras sobre as
cará a partir da Base. Tal concepção está ancorada na abordagem de comunidades de espccialist:�s c não vinculados somente ao apoio ou
problemas das políticas educacionais, das políticas acadêmicas e cien­ à neg:�ção da seleção de conteúdos, porque a construção social do
tíficas ou mesmo nos conflitos sobre economia dos sistemas de ensino, currículo não separa, em suas análises, propostas c princípios.
quando tais a$Suntos se colocam em primeiro plano, corno é o caso Com tal concepção devemos também decompor c recompor o
das reformas. Tomar o currículo por uma construção social permite, processo de fabricação dos currículos, de forma que venham à tona
portanto, visualizar uma enorme gama de conflitos emre sujeitos, per­ distintas opções e os interesses, por vezes, igualmente distintos c

cebendo-os como diferentes em suas ações e em seus espaços de luta em disputas, que estão subjacentes a esse processo de definiç..í.o dos
e de confrontos. A�sim, os vemos na arena política, de maneir.1 que a planos de estudos das disciplinas.
construção social do currículo se enlaça à história social da educação8• Goodson (2005) reitera que o currículo deve ser entendido
Com a inspiraç.-1o de lvor Goodson ( 1995; 2008), reitero que, nes­ rambém como um artefato que se enraíza no social. Para enten­
tes casos, nos cabe, como pesquisadores, estar atentos às disparidades dê-lo, deve-se focar em sua ambientação, pois ele é um elemento
itimar
entre as mensagens políticas e filosóficas que buscam sempre leg fabricado para o uso em sala de aula em ambiente escolar. Desse
a tradição acadêmica e, em especial, assumir uma postura de maior modo, na contextualização social c histórica desse artefato, o fato de
atenção sobre as políticas curricuhres em momentos de reforma e de o currículo ser produto c, ao mesmo tempo, produtor de culturas
estruturas de opommidadcs para que tais mudanças ocorram. (científicas/ acadêmicas, antropológica e política) c de ser capaz de
Assim, perguntar-se sobre o papel dos intelectuais assessores, a zida em contextos so­
explicitar, publicamente uma retórica produ
quem representam, que diversidade expressam, pode ajudar a pensar ciais, devem compor o horizonte do pesquisador. Há que investigar
também as dinâmicas informais c relacionais que definem modos
8. l\1ra chegar no espaço onde se realizam as práticas do ensino, focando os sen­
distintos de aplicar, na prática, as deliberações formais.
tidos da prescrição, podemos perceber também a reconrextualizaçáo do texto
curricular. Nesse caso, as fomes da pesquisa são os materiais didáticos, os planos
Passados alguns meses desde que a Base teve seu início, Freitas
de aula dns docemes, as emrevistas com professores e com alunos, que nos possi­ (20 15) escreveu um emblemático artigo afirmando que não havia
bilitariam pensar suas apropriações. base para construção da Base. Afirmava isso tendo em vista duas

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l i AI r.enu c:..utO> luoBIRO }IÍNIOR I MAIRON EsCORSI VALÉR!O (OIIGS.) ENSINO nF. I hsTÓAIA F. Cunnh:111.0

questões importantes: uma delas era o fato de haver sido tomada Como nos explica Popkewitz (20 1 1), a história do presente re­
como referência para o ensino, como afirmou Manuel Palácios, en­ <tucr a capacidade de refletir o presente com estranhamento, tendo
tão secretário de educação básica do MEC e figura-chave no pro­ em vista problematizar o passado c as lógicas que nos constituem
cesso. O outro elemento, bem alertava o autor do artigo, era o furo c nos constituíram subjetivamente. Atento aos modos como a ló­
de não haver um projeto de sociedade que pudesse fazer valer a gica da exclusão se entranha nos sujeitos, assim como preocupado
construção coletiva geradora do consenso para a Base. com as formas como ocorrem os processos de adesão a determinadas
formas da política, o autor nos indica a necessidade de estudar as
Identidades reformas no atributo da cultura.
Suas concepções são pertinentes para o caso da BNCC c, em
A imerpreração para o chamado projeto de sociedade foi rema especial, para o caso da história que não conseguiu e não pretendeu
especialmente delicado na disciplina histórica escolar. Disciplina eliminar as contradições de seu processo de construção, devido ao
vulnerável ao ide:lrio político, mobilizada constantemente na tenta­ fato de mostrar como a política curricular pode partir de uma nor­
tiva de construir um projeto de nação e permanentemente atacada matização, para construir uma normalização que não leva em conta
quando projetos antagônicos são colocados em embate, ela acaba as resistências e as alquimias dos saberes, mas expõe os sujeitos em
por ser expressiva, embora não possa ser considerada representante relação aos manuseios das estratégias de poder c disputas.
da pouca possibilidade de chegar ao consenso nessa direção. No caso da história, isso foi mais perceptível porque a diversi­
Vejamos em relação aos objetivos. Em direção à construç..'io e dade de abordagens c de objetos históricos tornou-se constituinte
ou valorização de identidades e coletivos agigantados como "os jo- da disciplina. Desde a Nova História, ninguém mais consegue de­
"
·
vens " , as "mu 111eres e o "povo brast· retro , h,a que se defi nir um tipo
, finir "wna" história como válida c legítima. Assim como, desde a
de história a ser ensinada e um conjunto de objetivos igualmente retomada dos estudos biográficos e do humanismo radical com os
grandiosos, tais como cidadania e nação ou "consciência histórica", documentos de vida, ninguém mais conseguiu justificar a produção
que, acoplados a um modo de pensar o ensino de forma tutorial, de identidades dominantes. O que então justificaria uma prescrição
podem ser prescritos. Mas isso só é assegurado no âmbito prescriti­ estrita? Certamente a resposta não está nos tópicos de conteúdos
vo, se, de faro, a Base definir-se como um currículo. Para fuzer um elencados, mas nas maneiras como podem ser produzidos os lugares
texto d e Base, cuja dinâmica seja mais curricular do que seletiva de de legitimação das propostas e, nesse caso, nas concepções que se
conteúdos do ensino, seria necessário superar o debate disciplinar estabelecem sobre o papel do saber acadêmico em relação ao que se
que colocava em questão o que ficaria e o que seria tirado dos con­ projeta para a missão da história na escola.
tet.'tdos. Para atingir tais princípios, não seria possível descolar-se do A História acadêmica é hoje muito mais plural do que consen­
saber-fazer cotidiano docente e discente, e da experiência de com­ sual, muito mais diversa do que unificadora c muito mais confliti­
preender determinadas sensibilidades sociais. va do que pacificadora. Essa marca disciplinar foi uma construção
O processo da l3ase no caso da história mostrou que, para isso, a longa e marcada por disrupturas entre os historiadores. A disciplina
disciplina deveria voltar-se aos objetivos educacionais para a apren­ histórica escolar, por sua vez, é tatuada com formas pedagógicas,
dizagem histórica sobre o social. Assim, não seria exatamente o lu­ mais assentada em ferramentas de comunicação, muito mais mar­
gar da prescrição curricular, entendida como texto final, o que mais cada por questões da justiça social e inclusão, como é próprio do
geraria vantagens acadêmicas nessas disputas presentes. ambiente escolar, está mais atenta à cmocionalidadc da vida pública,

60 61
I IALI'I!IU> CAuLOs Ruu;mo júN1ou I MAIRON Escon;• VALERIO (n�<c;s.) ENSINO or. H1s1ún•A r. Cunnlc.u1.0

c à subjccividade docente e discente em relação às experiências do t aso, é importante apontar que estarmos atentos aos conteúdos da
saber, tendo em vista a presença da psicologia social na organização história, às suas abordagens temáticas ou às formas como são tratadas
do trabalho escolar. De modo que, procurar imprimir uma identi­ as aulas (assuntos, elementos de problematiz.ação, linguagens utili7.a­
dade disciplinar dominanre, mais do que um esforço de hegemonia, das) fiz muita diferença. Se vamos tratar das questões da racialidade
expressa o que Franldin denuncia como a desvinculação ou des­ ou de gênero, por exemplo, por teorias baseadas em questões econô­
conexão entre teorias e as práticas. Não empobrece ou censura os micas, ou pelo marxismo, ou se vamos tratar dando visualidade aos
conret'1dos de ensino, mas empobrece as visões de mundo. Lemas da cultura, com questões sobre alteridade, diferenças, ao invés
Operando de forma crítica em relação ao processo, podemos de focar nas questões de classes sociais, na representação cultural, na
abrir as portas para pensar por que estamos, neste momenro, tão experiência do saber-fàzer. Portanto, no espaço de disputa do currí­
vulneráveis em relação às políticas curriculares e por que questões culo como artefato cultural é que transcorreram as apaixonadas ou
ideológicas envolvendo o ensino das humanidades se colocam, mais enfáticas manifestações sobre os sentidos da história ensinada.
uma vr:z de forma trágica, no horizonte das reformas brasileiras, Quando sinalizamos aos professores abordagens distintas, outro
desafiando os intelectuais a produzirem discursos politicamente efi­ conjunto de valores é mobilizado para o tratamento dado às fontes.
cazes para combaterem o ressurgimento de tun cognitivismo indi­ Stuart Hall nos esclarece que a cultura não pode ser interpretada
vidualista - que coloca em risco o pensamento social por ordem da como monolítica, c que ela se produz apropriando-se de práticas e
sociedade do conhecimento, do aprender a aprender e do lifelong rituais da vida cotidiana. Deste modo, abarcar a diversidade de com­
learning - e contra a meritocracia excludente. portamentos dos mais distintos grupos sociais significa compreender
ainda mais a cultura como produto das relações humanas.
Culturas Apegado à condecoração de discursos e práticas, uma propos­
ta curricular sempre deve ser lida com instrumentos transversais,
Por outro lado, como já salientado, o currículo é um artefa­ analisando-a discursivamcntc e em seu formato, em sua simbolo­
to culrural, que se produz discursivamente em uma ação contínua, gia e seus códigos, hegemonias, silcnciamenros. Me parece que esse
pois, epistemologicamente, é um saber progressivo e inacabado. deve ser o principal efeito de uma concepção culturalista: prover os
Como tal, ele não pode ser compreendido sem uma análise das re­ leitores dos textos curriculares em suas múltiplas formas: propostas,
lações de poder que o fnzcm possível, mas tomado como anefaro da normatizações, matérias didáticas, de ferramentas que en&tizem a
cultura, ele deve ser interpretado simbolicamente. Sendo um espa­ sua autoria e as suas apropriações, para refletir sobre a sua própria
ço, um campo de produção e criação de significados, tal concepção prática curricular, suas missões, seus valores c C$ses em relação aos
proclama a atenção sobre os silenciamentos, os grupos minoritá­ seus alunos c demais colegas.
rios c se espera, com isso, que se façam presentes os interesses das Por outro lado, considero que descolar-se do saber-fazer docen­
diversas manifestações sociais, contribuindo com a valorização dos te cotidiano e atribuir um reavivamento das práticas do ensino sob
grupos e das diversas identidades no processo educativo. a égide tutorial, tomando a didática uma ferramenta a serviço da
Assim, os estudos curriculares acabam por trazer apoio a uma reforma c o currículo o legitimador para intenções de normalização
agenda de diversidade e de inclusão, modificando as formas como e controle, só poderia mesmo mostrar a fragilidade do processo de
lidam com as relações de poder e construindo outras estratégias para construção democrática, em país cuja vivência dessa ordem é tão
afirmação dos grupos invisibilizados, silenciados, expropriados. Neste marcada por conflitos. Ao mesmo tempo rcaviva o debate sobre o

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l lALI'HHu CAIU.os l{nuJIRO JtíNIOH I MAu\ON EscoRs• VAtiÍRIO (oncs.) EN�INO ov.l hS1ómA F. Ctmnfcvw

e à subjetividade docente e discente em relação às experiências do t aso, é importante apontar que estarmos atentos aos conteúdos da
saber, tendo em vista a presença da psicologia social na organização história, às suas abordagens temáticas ou às formas como são tratadas
do trabalho escolar. De modo que, procurar imprimir uma identi­ .1s aulas (assuntos, elementos de problematização, linguagens utiliza­
dade disciplinar dominante, mais do que um esforço de hegemonia, tbs) Eu. muita diferença. Se vamos tratar das questões da racialidade
expressa o que Franldin denuncia como a desvinculação ou des­ ou de gênero, por exemplo, por teorias baseadas em questões econô­
conexão entre teorias c as práticas. Não empobrece ou censura os micas, ou pelo marxismo, ou se vamos tratar dando visualidade aos
contettdos de ensino, mas empobrece as visões de mundo. temas da cultura, com quc.�tóes sobre alteridade, diferenças, ao invés
Operando de forma crítica em relação ao processo, podemos de focar nas questões de classes sociais, na rcpresentaç.:1.o cultural, na
abrir as portas para pensar por que estamos, neste momento, tão experiência do saber-fàzcr. Portanto, no espaço de disputa do currí­
vulneráveis em relação às políticas curriculares e por que questões culo como artefàto cultural é que transcorreram as apaixonadas ou
ideológicas envolvendo o ensino das humanidades se colocam, mais enfáticas manifestaçóc.� sobre os sentidos da história ensinada.
uma vez de forma trágica, no horizonte das reformas brasileiras, Quando sinalizamos aos professores abordagens distintas, outro
desafiando os incelectuais a produzirem discursos politicamente efi­ conjunto de valores é mobilizado para o tratamento dado às fontes.
cazes para combaterem o ressurgimento de tun cognitivismo indi­ Stuart Hall nos esclarece que a cultura não pode ser interpretada
vidualista - gue coloca em risco o pensamento social por ordem da como monolítica, c que ela se produz apropriando-se de práticas c

sociedade do conhecimento, do aprender a aprender e do iifelong rituais da vida cotidiana. Deste modo, abarcar a diversidade de com­
learning - e contra a meritocracia excludente. portamentos dos mais distintos grupos sociais significa compreender
ainda mais a cultura como produto das relações humanas.
Culturas Apegado à condecoração de discursos e práticas, uma propos­
ta curricular sempre deve ser lida com instrumentos transversais,
Por outro lado, como já salientado, o currículo é um arrefà­ analisando-a discursivamente e em seu formato, em sua simbolo­
ro cultural, que se produz discursivamente em uma ação contínua, gia e seus códigos, hegemonias, silenciamentos. Me parece que esse
pois, epistemologicamente, é um saber progressivo e inacabado. deve ser o principal efeito de uma concepção culturalista: prover os
Como tal, ele não pode ser compreendido sem uma análise das re­ leitores dos textos curriculares em suas múltiplas formas: propostas,
lações de poder que o fàzem possível, mas romado como artefato da normatizações, matérias didáticas, de ferramentas que en&tizem a
cultura, ele deve ser interpretado simbolicamente. Sendo um espa­ sua autoria e as suas apropriações, para refletir sobre a sua própria
ço, um campo de produção e criação de significados, tal concepção prática curricular, suas missões, seus valores c esses em relação aos
proclama a atenção sobre os silenciamentos, os grupos minoritá­ seus alunos e demais colegas.
rios e se espera, com isso, que se fuçam presentes os interesses das Por outro lado, considero que descolar-se do saber-f.ner docen­
diversas manifestações sociais, contribuindo com a valorização dos te cotidiano e atribuir um reavivamcnto das práticas do ensino sob
grupos e das diversas identidades no processo educativo. a égide tutorial, tornando a didática uma ferramenta a serviço da
Assim, os estudos curriculares acabam por trazer apoio a uma reforma e o currículo o legitimador para intenções de normalização
agenda de diversidade e de inclusão, modificando as formas como e controle, só poderia mesmo mostrar a fragilidade do processo de
lidam com as relações de poder e construindo outras estratégias para construção democrática, em país cuja vivência dessa ordem é tão
afirmação dos grupos invisibilizados, silenciados, expropriados. Neste marcada por conflitos. Ao mesmo tempo rcaviva o debate sobre o

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GJ
l i•• reRO C.t<LO> lltnEtRO jíJNtOR M•tRON EscoRSt V••-énto (oRes.) EN:siNO oe l li:,·tóUIA E Cuuurcuu)
I

historicismo e as missões nacionais da história, o que parece ter sido FRANKLLN, B. Curriculum Studi es: State of rhe art, 1990s. Trabalho

contraproducente no processo. apresentado na Reunião Anual da AI:::RA, Canadá, 1999 (mimeo).

Assim, chego ao final, chamando a atenção para a instrumen­ FREITAS, L. C. Não há base para discutir a bast:. In: Avaliafáo Educa­
talização da Base na formação inicial/continuada de professores. cional - Ulog do Freitas, 18/10/20 15. Disponível em: dmps://goo.gl/
Refiro-me ao desafio do presente, no que range ao empoderamento k2EkAB>. Acesso em: 9 jan_ 2017.
docente para lidar com as prescrições e a profissão, e não apenas a va­ GABRIEL, C.T Docência, demanda e conhecimenro escolar: articulações
lorização do trabalho docente, que é tópico importante das políticas em tempos de crise. Currículo sem fronteiras, v. 15. n. 2, p. 425-444, mai./
de contratação e permanência deles no magistério. A distinção não ago. 2015. Disponível em: dmps://goo.gl/vw8QYr>. Acesso em: 9 jan. 2017.
é semântica neste caso. Ela é profundamente marcada pela maneira
GOOD.SON, I. E Historia dei curriculum - la construción social de las
como lidamos com o furo de reconhecer a agência como forma de
disciplinas escolares. Barcelona: Ediciones Pomares-Corredor, 1995.
pautar o pode r junto com os professores. A valorização do trabalho
___ . ·luward a social constructionisr perspecrivc. In: Learning, Cur­
docente pode ser uma via social de eleger o trabalho, mas o empode­
riculum and Life Politics - rhe �dected works of lvor E Guodson. UK:
ramenro é atualmente o que faz toda a diferença, quando considera­
Rourlcdgc · ntylor & FrancisGroup. 2005. p. 133-148.
mos as submissões às quais estão expostos os professores nas escolas e
nas universidades. Como combater a meritocracia vaza
i meramente ,
___ . A crise das mudanças dos currículos. In: GOODSON, I. As po­
competitiva e criar coletivos educativos, se os professores não se sen­ líticas de currículo e de escolarização. Petropolis: Vozes, 2008, p. 21- 40.
tirem parte do grupo, colocando suas missões a serviço do público? POPKWITZ. T S. Curriculum hiswry, schouling and the history of prc­
Gabriel (2015) aborda justamente sua preocupação em lida r sent. In: l lisrory ofEducarion. Routlcdge, UK. v. 40, n. 1 , p. 1-9. jan. 20 1 1 .
com a formação política na docência. Numa época de escola sem
partido, em que polít ica é reduúda à agenda ideológica, a formaç.'ío
política se fuz mais importante ainda. Em um a época de pedagogi­
zação da cultura, entender o pedagógico como político se .fàz ainda
mais importante. Em época em que os currículos são recolocados
a serviço do controle e avaliação, torna-se mais importante a valo­
rização do político em seu entendimento. Deste modo, também a
história pode reposicionar-se, mas levando em conta questões que
desafiam os historiadores e pensarem o que construir com esse saber
na escola e não apenas o que deve ser ensinado com ele.

Referências

BRASLAY.SKY. C.; CO.SSE, G. Las actuales reformas educativas em Ame­


rica Latina: cuatro actorcs, três logicas y ocho tensiones. REICE- Revista
ElcL-rrónica Latinoamericana sobre Calidad, Eficacia y Cambio em Edu­
cación, Madrid, v. 4, n. 2e, 2006. Disponível em: dmps://goo.gl/yheLNs>.

6S
4

O ENSINO DE HISTÓRIA NA BNCC:


PLURALISMO DE IDEIAS OU GUERRA DE
NARR ATIVAS?•

Flávia Boisa Caimi


Universidflde de Pmso Fundo (UPFIRS)

Sandra Regina Ferreira de Oliveim


Universiclacle Estacltta! de Londrina (UELIPR)

É impossível compreender seu tempo para <1uem ignora


todo o passado; ser uma pessoa contemporânea é também
ter consciência das heranças, consentidas ou contestadas.
(Rémond, 1988, p. 30)

A escrita deste texto é marcada por um misto de conforto e des­


conforto. A sensação de conforto se deve ao faro de que nos associa­

I I
mos a um conjunto amplo de profissionais que não se contrapõem à
exigência, já consolidada nos documentos educacionais há mais de
duas décadas, da construção de uma Base Nacional Comum Curricu­
lar (BNCC). Isso porque, como já manifestado anteriormente (Cai­
mi, 2015), acreditamos na necessidade e na possibilidade de estabele­
cer uma polírica educativa que contemple um projeto de nação, por
meio de tUna base curricular que indique objetivos de aprendizagem e
defina as chamadas competências básicas para o século XXI, saberes e
habilidades a que todos os cidadãos têm direito para viver e participar
ativamente nas/das sociedades da informação c do conhecimento.
Nossa experiência como pesquisadoras do campo do ensino de
História nos últimos vinte anos tem mostrado que, na ausência de
um projeto curricular nacional, são os livros didáticos e os sistemas
apostilados (e, porranto, o mercado editorial) que têm estabelecido

1. Urna versão bastante reduzida desse texto csrá publicada na Revista doLHIS­
TE- Laboratório de Ensino de História e Educação da UfRCS, v. 3, n. 4, 2016.

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IIAI.Ft:nu C.Anr.os Flummo jÚNH)n I rvf.o\tRON E.sconst VAtf:RIO (ORGS.) ENSINO oe. HISTÓruA e Cuttni'cuLo

os programas referentes ao conhecimento histórico escolar. A despei­ s6 pode ser realizada considerando um espa��o de liberdade para a
to de não termos tido, nos últimos trinta anos, um "currículo míni­ organi7_açáo de outros tantos conteúdos, conforme a demanda local.
mo", temos consubstanciado os processos de ensino e aprendizagem Esse princípio encontra respaldo nos estudos de Sacristán
da História nas escolas com os mesmos conteúdos, de norte a sul (2005), que nos provoca a pensar sobre a solidez do que se perpe­
do pafs. Uma clara evidência dessa situação pode ser visualizada nos tua décadas após décadas sob a alcunha de "conteúdos" organizados
resultados do Programa Nacional do Livro DicL-ítico, cujos dados pu­ em determinadas disciplinas e o quanto nos afastamos de uma
blicados nos Guias de Livros Didáticos mostram que as 32 coleções reflexão sobre a possibilidade de outros conhecimentos pululantes
destinadas aos Anos Iniciais (17 para o 2° e 3° anos e 1 5 para o 4° e na sociedade adentrarem o espaço escolar. O formato proposto
5° anos), as 1 5 coleções didáticas de História para os anos finais do no documento preliminar da BNCC denota certo equilíbrio
Ensino Fundamental e as 19 coleções para o Ensino Médio2 pautam entre unidade e diversidade e viabiliza a formulação de programas
os programas escolares e estabelecem uma matriz de conteúdos que curriculares que articulem as várias dimensões dos saberes.
se reproduzem de modo muito semelhante nas diversas coleções, a O desconforto a que aludimos anteriormente, por sua vez, con­
despeito de serem produzidas por diferentes autores ou equipes edi­ tém um rol amplo de argumentos, que passamos a apresentar. Em
toriais. Assim se configura uma espécie de "currículo editado" (Beni­ países federativos como o Brasil, como j;i anunciado, de grande

to, 2006), que não é o currículo prescrito/normativo propriamente dimensão territorial e de enorme diversidade regional e cultural,

dito, mas uma versão impressa da sua vulgaa


t em cada época e lugar, sabemos como são difíceis os consensos e como são complexas as

pela qual se difunde a língua nacional, os símbolos e valores pátrios, tomadas de decisões acerca de uma estrutura curricular comum. A
complexidade toma proporções ainda maiores se considerarmos o
enfim, os códigos fundantes da nação. Assim, consideramos perti­
momento de profunda polarização política que vivemos ' no país,
nente e necessário discutir o processo de elaboração da BNCC, com
aliado a graves desigualdades econômicas e sociais que vêm sendo
os pares (professores, pesquisadores) e com a sociedade em geral.
enfrentadas. Sem espaço para adentrar em uma análise de conjun­
Também nos confere conforto o futo de que, ao admitir a ne­
tura, é preciso ao menos registrar algumas (tristes) cenas da nossa
cessidade de estabelecer uma base curricular para o país, não se está
época, como o processo de impeachment da Presidente da Repú­
ferindo de forma alguma outro princípio pedagógico que nos é muito
blica, destituição de presidentes das casas legislativas, prisões de
caro: a possibilidade de wna composição curricular que considere as
senadores da República, corrupção desenfreada e escancarada nos
especificidades locais. Esse quesito é garantido na proposta da BNCC
mais variados âmbitos da gestão pública, reações conservadoras de
ao estipular tun percentual de 40% de conteúdos para a parte diversi­
roda a ordem, retrocessos nos debates e conquistas sociais, trágico
ficada e de 60% para uma base comtun. É fato posto que as relações crescimento de movimentos como Escola sem Partido e Escola Li­
estabelecidas com o entorno são fundamentais para o processo de
vre, tentativas de cerceamento e até mesmo de criminalizaç.1o do
construção do conhecimento c para a formação de um sujeito capaz
exercício da docência, dentre tantas outras situações. Em 2016, no
de agir no seu meio. Em um país de dimensão continental como o pleito eleitoral municipal, por exemplo, constatamos que as bandei­
nosso, a diversidade dos temas cotidianos que podem ser alçados à ras erguidas por movimentos ultraconservadores transformaram-se
categoria de saber a ser trabalhado na escola é vasta c essa seleção
em plataformas políticas e candidatos foram eleitos defendendo a

2. Confclrme dados constantes nos Guias do PNLD História 2015 - Ensino Mé­ exclusão radical de qualquer abordagem sobre gênero nas escolas,
dio; 2016 - Anos Iniciais e 2017 - Anos Finais. pois, segundo panfleto distribuído na cidade de Londrina, tais cnsi-

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namcntos são contraditórios "à família c à verdade científica". Todas na Revista Brasileira de Hist6ria, cuja atualidade para nosso momen­
essas situações, na mesma medida em que nos constrangem, tam­ to político é incontestável. Este auror problemariza experiências de ·
bém nos impulsionam ao debate público e à luta coletiva. rcformulaçáo curricular ocorridas em iníuneros países, nas mais di­
versas conjunturas históricas (ascensão ou queda de governos totali­
O currículo como arena política tários, autoritários, proletários, de esquerda, de direita, de centro),
mostrando que o ensino de História sempre é alvo de críticas ou
Essas cenas mostram o contexto de gravidade e acirramento denímcias, não porque as pessoas se preocupem com o alcance dos
em que se dá o processo de construção da Base Nacional, tarcf:-. objetivos propostos, e sim pelos contct'tdos factuais que são retira­
que por si só já é bastante polêmica e complexa. As tradições cur­ dos ou acrescentados nos programas escolares, "como se o ensino da
riculares críticas c pós-críticas (Silva; Moreira, 1995; Silva, 1999) história continuasse sendo o veículo de uma narração exclusiva que
nos ensinam que o currículo enseja formas particulares de conheci­ precisa ser assimilada, custe o que custar" (Lwille, 1999, p. 127). A:.
mento e de saber, e pode provocar dolorosas divisões e antagonis­ mudanças curriculares ocorrem, nessas diferentes experiências histó­
mos culturais e sociais. Nas perspectivas mais recentes, vemos que ricas narradas por Laville, para dar coma de interesses e necessidades
o currículo também produz e reposiciona identidades culturais, de diversas, como manter a ordem estabelecida, perpetuar uma deter­
gênero, religiosas, étnico-raciais, sexuais. Conhecimento c currículo minada tradição, recontar a história a partir da ôtica dos novos "do­
podem ser entendidos, então, como "campos sujeitos à disputa e à nos do poder", instaurar uma nova identidade nacional, lutar contra
interpretação, nos quais diferentes grupos tentam estabelecer sua o poder do Estado, fortalecer ou legitimar a tomada do poder, definir
hegemonia" (Silva, 1999, p. 135) e, por isso, exercem o papel de po­ un1a idenridade supranacional etc. Nesse sentido, af1rma o auror:
der regulador onde se confrontam opções e se produzem consensos
possíveis (Sacristán, 20 13). A História é um campo privilegiado em É interessante notar quanto inrcresse, <JUanra vigihlncia c
que as discussões curriculares incidem fortemente sobre as deman­ <JUantas intervenções o ensino de história suscita nos mais
das sociais, uma vez que se trata de disputas pela memória coletiva, altos níveis. A história é cerramenre a t'mica d iscip li na csco·
de operações históricas que dão visibilidade a diferentes posições lar que recebe intervenções diretas dos altos dirigentes e a
enunciativas c polllos de vista sobre o passado e, consequcntcmcnte, consideração ativa dos parlamentos. Isso mostra quão im·

sobre o tempo presente. Com isso, temos de reconhecer o campo portante é ela para o poder. (Lavillc, 1999. p. 130)
da história, notadamente a história escolar, como um locus de con­
tradições, ele pluralismo ele ideias, de provisoriedade explicativa e de Um outro aspecto apontado por Laville diz respeito às ilusões
dinâmica interpretativa acerca da experiência humana no tempo. A sobre os efeitos possíveis da história ensinada, levando-nos a reco­
tarefa de construir uma base curricular comum para o conhecimen­ nhecer que há uma distância considedvel enrre o plano normativo/
to histórico escolar implica trazer, ao âmbito do debate pt'tblico, as prescritivo das políticas pt'tblicas e o plano concrem/interativo dos
disputas em torno de ideias quanto ao que, do passado, é válido c processos escolares de ensino-aprendizagem. O autor adverte que
legítimo ensinar às novas gerações (Caimi, 20 15). seria uma ingenuidade acreditar no poder de regular as consciências
Em meio às divergentes e polêmicas discussões instauradas em e os comportamentos por meio do ensino da História c, nessa di­
torno do componente História na BNCC, reportamo-nos a um ar­ reção, quaisquer esforços para controlar os conteúdos do ensino da
tigo de Chrislian Laville (1999) publicado há mais de quinze anos História estariam, de certo modo, alicerçaclos numa ilusão.

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IIAll'l'.lll l CAnl o< f\'"""'" jíJNIOn I MMRON Esconsr VAr.r\ruo (oru;s.) ENSINO ut.: I (,�·l'ÓIUA 11 Cunnfcu1 o

Neste fim de século, é possível que a narrativa histórica não quais as reverberações desses aconrecimencos nos conteúdos e nos
tenha mais tanto poder, que a família, o meio ao qual se modos de ensinar e aprender dentro das escolas. O <�no de 20 1 1 foi
pertence, circunsttmcia.� marcantes no ambiente em que
marcado pelo desencadeamento de inúmeros movimentos sociais
se vive, ma.� sobretudo os meios de comunicação, tenh;un
em diversas partes do mundo. Segundo Henrique Soares Carneiro
muito mais influência. O que deveria nos levar a não perder
(20 12, p. 8), "urna onda de mobilizações e prorestos sociais romou a
de vista a função social geralmente declarada hoje a respei­
dimensão de um movimento global". Safarle (2012, p. 47), por sua
to do ens ino da história: formar indivíduos autônomos e
vez, ao escrever sobre esse período, destaca a força que as ideias cole­
críticos e lev;\-los a desenvolver as capacidades intelectuais
c afet ivas adequadas, fazendo com que trabalhem com con­ tivas produzem e o modo potente como elas "explodem contextos,
teúdos históricos abertos e variados, e não com conteúdos dão novas configurações para uma relação".
fechados e determinados como ainda são com frequência Ainda que o cenário mundial de profundas transformações,
as narrativas que provocam disputa.�. Senão, essas gueras
r vislumbrado por esses autores para o período pós-20 1 1 , não renha
de narrativas desencadeadas em todo o mundo vão acabar se concretizado plenamente, haja vista, conforme já tratado neste
gerando somente perdedores, tanto no que diz respeito à texto, a onda neoconservadora que vem se disseminando global­
identidade nacional quanto em relação à vida democnític.:a. mente, é f.·tto que o cenário configurado pelo chamado "povo exige"
(Laville, 1999, p. 137) (Safàtle, 2012, p. 47) circulou c mobilizou, mesmo que, em alguns
casos, por metas questionáveis, a ida para as mas e o movimento
Parece que o experiente pesquisador está nos apontando duas ques­ de ocupações. No cenário brasileiro, as manifestações de julho de
tões essenciais. Uma é o caráter p tblico
t da História e a concorrência 2013, algumas solicitações de retorno da Ditadura Militar e o triste
da história escolar com os diversos espaços de memória, notadamente "basta de Paulo Freire" em 20 15, a ocupação das escolas paulistas no
a força da grande mídia, na atualidade. A outra questão nos fuz pensar primeiro semestre de 2016 e a ampliação das ocupações em escolas
que o currículo prescrito é apenas um dos tantos agemes mediadores de rodo país, assim como nas universidades, no segundo semestre
externos que incidem sobre os processos educativos escolares, como as de 2016, nos colocam frente a outras questões que precisam ser
políticas educacionais públicas, os paradigmas educativos vigentes em pensadas ao tratar do que ensinar nas escolas. Ainda há muito o que
cada época, os sistem:�s de av:�li:�ção em larga escala, o próprio mercado compreender acerca de todos esses acontecimentos recentes.
editorial (materiais de ensino, livros didáticos e sistemas apostilados), No rocame às ocupações das escolas, em especial, foram forre­
dentre ouLros. Concorrendo com esses mediadores externos, há um mente questionados os aspectos relativos ao que se ensina, ao como
agente mediador decisivo: o professor. Nesse sentido, o que as escol:�s c se ensina e ao que os alunos almejam aprender. 'H1mbém projetou-se
os professores ensinam "é o resultado de wn ss
i tema complexo no qual uma outra escola, sonhada a partir das ocupações; fomenrou-se a
decisões, pensamentos, relações e condições se entrecruzam para lidar ideia de aurogestáo; indagou-se sobre a possibilidade de outra con­
com a gestão do saber" (Acosta, 2013, p. 203). figuração de espaço e tempo dentro da escola; nutriram-se expecta­
Na confluênci::t de todos esses agentes mediadores, os <�dolesccn­ tivas sobre outras composições de saberes. Perguntamo-nos: O que
tes c jovens de nosso país vão se formando, elaborando leiwras do aprendemos com tudo isso c como essas qucsrõcs podem contribuir
mundo, construindo conhecimentos e fàzendo a história. Há muito para a construção de um documento como a BNCC e outros que
o que pestiuisar e aprender com os acontecimentos recentes e, consi­ virão? São questões que deixamos em aberto juntamente com o de­
derando a área para a qual nos dedicamos, é imprescindJvel analisar sejo de que muitos pesquisadores se interessem pelas mesmas.

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11."''1f'Hu CAI\I,()� Rrr\r.1no Jt'INIOrt l fv1AJnoN Escnn.s1 VAr.F.nrn (oncs.)
ENSINO nc liiSTÓiltA I! Cunulcw o

As narrativas que compõem essa guerra rao. Como não poderia deixar de ser, a relação passado, presente c
lin uro é destacada como ponto elementar para a reflexão sobre os
Feitas essas reflexões sobre o significado/alcance dos currículos usos do passado. Munila-se a abordagem indicando a importância
nacionais em meio a um mundo em ebulição, sobre as diversas nar­ do conhecimento histórico para a compreensão e problematizaçáo
rativas que compõem o debate (ou a guerra?) e, em aJguma medi­ das diversas questões postas nas diferenres mídias. A aprendizagem
da, sobre o contextO de produção da atual BNCC, o que dizer do histórica é compreendida no documento a parrir de três princípios
documcmo em si? O que dizer de um doctUnento que está sendo básicos, a saber: o aprendizado das virtudes éticas, dos procedimen­
elaborado em tão difíceis condições? No período de setembro de tOs de pesquisa e da representação do passado (Oliveira, 20 15).
20 1 5 a março de 2016, o conjtmto da sociedade brasileira teve a A abordagem proposta para cada fase da escolaridade é apre­
oportunidade de se manifestar sobre a primeira versão da BNCC, sentada com destaques para as possíveis articulações entre os anos
fruto do árduo trabalho de um grupo constituído por doze profis­ iniciais c finais do Ensino Fundamental e do Ensino Médio. Para
sionais, pesquisadores c professores do campo da História e do Ensi­ os anos iniciais, assume-se o estudo com fontes e documentos, no­
no da História, representantes de diversas instituições educacionais, ções de tempo, sujeitos, permanências c mudanças para fomentar
I

associações
:
profissionais, estados e regiões do país. o desenvolvimento de conhecimentos em direção à compreensão
• !
Na análise que fizemos do documento prcliminar3 (Caimi, contínua de processos históricos cada vez mais complexos. Nos anos
201 5; Oliveira, 20 15), reconhecemos ali o esforço de sistematiza­ finais, o destaque é para a História do Brasil abordada a partir do
ção c de opcracionalização de algumas das principais concepções estabelecimento de nexos com a história de outras partes do planeta:
teóricas, historiográflcas e metodológicas que os pesquisadores do as Áfricas, as Américas e os mundos europeus. O uso do plural na
campo têm defendido, em âmbito nacional e mundial, nas últimas referência a esses lugares indica que a proposta aponra para o respei­
três décadas. Os colegas que capitanearam a elaboração da propos­ to à diversidade existente em cada um deles. No Ensino Médio, o
ta confrontaram uma forre tradição baseada no entendimento da estudo da História do Brasil é aprofundado estabelecendo intcr-re­
história escolar como um simples processo de transmissão de con­ laçóes com as Áfricas, as Américas e os mundos europcus e asiáticos
teúdos f..'lctuais e verbalistas. Tradição essa que cstimuJa crianças c (Oliveira, 20 1 5). Os quatro eixos eleitos para tratar da progressão
jovens a tomarem o passado como dado, ao invés de serem instiga­ formativa ao longo dos doze anos da Educação Básica são: procedi­
dos a se perguntar como nós sabemos sobre o passado e de serem mentos de pesquisa; reprcsentaçõcs do Lcrnpo; categorias, noções e
preparados para formular perguntas e elaborar respostas cada vez conceitos; dimensões político-cidadãs (Oliveira, 20 15).
mais complexas acerca dele. Destaca-se o novo enfoque para o trato com as datas comcmora­
Com relação à apresentação do componente curricular Histó­ tivas, que é uma questão importante para os anos iniciais. Soube-se,
ria, o texto é composto por uma visão geral da história, suas fun­ na proposta, agregar al
t tem<1tica de forma a valorizar o conhecimento

ções c objetivos no ensino escolar. Compreender e problematizar histórico. Outro destaque diz respeito à questão das mídias, do consu­
mo e da educação financeira, ainda que esta última não ganhe muito
os saberes e f.'lzeres dê:: pessoas de diferentes tempos e lugares é in­
realce no desenvolvimento da proposta de História (Oliveira, 20 15).
dicado como objetivo a ser viabilizado pelo componente em ques-
Tratando-se de uma primeira versão da Base Nacional, o docu­
3. Cada aurnra rcali'l.ou crn separado, a convire do MEC. a análise do documcmo mento não se mostrou isento de lacunas e inconsistências, aspecto
em sua primeira versão. quc foi claramente assumido pelos seus autores e também ensejou

74 75
1 1AJ.I'I'.rm c,,nr.os R111r.rno júNron I MAIRON Escorua VAtrl.ruo (onG•.) ENSINO ut l lroTónrA E CunnicuLo

um largo período de consulta pública daquela primeira versão. Não uma t'mica professora ou professor, em regime de unidocência. Em
obscame essas naturais dificuldades, a proposta então apresentada decorrência, os objetivos de aprendiz..'lgem, a partir do componente
mostrava avanços ao romper com modelos explicativos pautados l lisrória, pouco estabelecem inter-relações com os demais compo­
num código disciplinar centenário, que já não responde às demandas nentes curriculares que integram a área, o c1ue poderia ser efetivado
c desafios que se apresentam à sociedade brasileira na contcmpora­ se a opç.1o fosse apresentar os objetivos de aprendizagem dos compo­
neidade; ao propor a anáJisc histórica a partir de diferentes escalas nentes curriculares organizados, conjuntamente, em corno de eixos
espaço-�emporais c de diversos pontos de observação, deslocando o temáticos que comportassem os objetivos de aprendizagem de His­
olhar de uma perspectiva essencialmente eurocêntrica c da ambiç.'ío tória, Geografia e Ensino Religioso (Oliveira, 2015).
de csmdar "roda a história"; ao superar a periodização quadripartite Registramos que a especificidade de cada componente é funda­
da história europeia, eivada de uma ótica temporal totalizantc c de mental para a aprendi-agem e para o domínio do conhecimenro cien­
uma ortodoxia cronológica, pautada pela ideia de progresso linear; ao tífico. Porém, para se construir uma aprendizagem mais significativa
propor a história do Brasil como força mobilizadora da análise histó­ dos saberes que perfazem cada componente curricular, é preciso in­
ric::t, dando centralidade à noção de sujeito e à formação da consciên­ vestir na articulação entre tais saberes. Compreendemos que uma das
cia histórica, ao mesmo tempo em que estabelece nexos e aniculações Gses mais propícias para se efetivar tal integração de saberes na vida
com as histórias africanas, americanas, asiáticas e europeias; ao prio­ escolar é justamente a dos anos iniciais do Ensino Fundamental, em
rizar o tratamento das diversidades étnicas e culturais, notadamente virtude da forma como a mesma é estruturada em nosso país. Por isso,
as que dizem respeito às Leis 10.639/2003 e 1 1.645/2008; ao propor seria muito importante realizar leituras cruzadas entre os especialis­
a mobilização de procedjmentos Je investigação c problcmatização tas das diferentes equipes que, junramenre com os pedagogos, pode­
histórica, em detrimento de práticas vcrbalistas e de memorização, riam apontar no próprio documento o que é comum aos diferentes
pautadas em aulas expositivas c na ccntralidadc do professor como componentes e áreas. Registramos, ainda, que há uma lacuna entre a
protagonista dos processos de ensinar c aprender (C·limi, 20 15). proposta voltada para a Educaç.1o Infantil e aquela apresentada para
A opção por construir uma proposta por área, como já destaca­ o F.nsino Fundamental, visto que não há espaço no documento para
do, considera os resultados de diversos estudos realizados em clile­ as especificidades dos anos iniciais como etapa de transição enrrc um
rcntcs partes do mundo, quo apontam para a necessidade de romper formato e outro. No texto imrodutório da área de Ciências Humanas,
com uma concepção de ensino c aprendizagem ancorada na frag­ há referência à passagem dos anos iniciais para os finais do Ensino
mentação do saber. Para os anos iniciais, entendemos que seria muito Fundamental, mas essa articulação não é idenrificada na proposta dos
importante investir em uma construção mais horizontal dos objeti­ objetivos no documento de História (Oliveira, 20 15).
vos relacionados a cada componente, assim como na forma como Outro tópico a ser destacado refere-se à inregraç.1o entre as dife­
são construídos os textos de cada um deles. Não obstante, ainda que remes áreas que, conforme consta no documento da BNCC em sua
a área de Ciências Humanas seja apresentada como agrcgadora dos primeira versão, será estabelecida pelos temas integradores, a saber:
componentes curriculares História, Geografia e Ensino Religioso, tal consumo e educação financeira; ética, direitos humanos e cidadania;
articulação é comprometid::� pela opção de construir, ainda que com sustentabilidade; tecnologias digitais c culturas africanas e indígenas.
avanços, um documento dividido por componente curricular p:ua Registramos que não esd claro no rexto introdut6rio do componen­
o ensino da História para crianças em tuna fàse da escolaridade bá­ te História qual será o trato com tais remas integradores (que não
sica na qual, na maior pane do país, em cada série/sala de aula atua constam também no texto ele introdução da área de Ciências Hu-

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IIAI.I'I'Im CAnl.m Rmt•no JúNIOR I MAIRON Escons1 VAI.ÉRIO (oRes.) ENSINO uE I llsTômA E CtuutkUI.ú

manas). É fato que, no portal� onde o documento da Base foi dispo­ entre o passado, presente e fururo, mas sem grandes investimenros
nibilizado, há opção para organizar os objetivos de aprendizagem a no rocante a explicitar que "próximo", em História, não significa
partir dos temas integradores, mas a mera repetição de tais objetivos presente nem local.
não auxilia o leitor a compreender o que se espera, no caso específico Entende-se que a opção é justificada devido ao lugar que tais
das Ciências Humanas e da História, no trabalho com tais temas. conteúdos ocupam na tradição escolar quanto ao ensino de História
Analisando o que foi vivenciado na elaboração e efetivação dos Parâ­ para crianças. Conforme anunciado no texto geral da Base, uma
metros Curriculares Nacionais (PCN, 1 998), no tocante aos Temas ampla pesquisa foi realizada nos documentos dos estados e houve o
Transversais, registramos que a opção por trabalhar em paralelo com cuidado de disponibilizá-los no site. Uma breve leitura de tais docu­
temas tão importantes para a sociedade contemporânea não produz mentos atesta o que as pesquisas na área têm apresentado, a manu­
resultados satisfàtórios. Em síntese, se tais temas são importantes na tenção dos conteúdos. Porém, é notório também que, nos úlrimos
proposta, seria pertinente abord;i-los de forma direta tanto nos textos anos, os municípios estão investindo na elaboração de propostas
introdutórios como nos objetivos de aprendizagem. curriculares próprias c é visível o esforço para a concretização de
Entendemos também que, na proposta de História para os anos abordagens temáticas para os anos iniciais.
iniciais, é pouco destacado c valorizado o estudo de diferentes luga­ Questiona-se a manutenção de tais conteúdos na proposta
res, incluindo aqui os movimentos de saída da escola para atividades preliminar de História da BNCC, pois o foco recai no "cu" (meu
de estudo do meio, indicados como um procedimento central de nome, minha família, minha história, minha cidade) e são várias as
pesquisa. Seria contundente e eficaz para a aprendizagem da História instâncias fora da escola que promovem esse tipo de aprendizagem.
Considera-se ser mais potente trazer "os outros" (pessoas, tempos e
c, em decorrência, para compor uma leitura de mundo e das pessoas
lugares) para a sala de aula e para o ensino da História e, em parale­
de forma mais diversa, conforme estabelecido como objetivo para o
lo, construir aprendizagens sobre o "eu".
ensino de História, que o documento assumisse de forma categórica
É f.'l w que o exposto no documento não exclui essa possibili­
a cidade como espaço educativo, indicando as saídas da escola e
dade (e ainda há a parre diversificada), mas é preciso assumir que
a exploração do entorno como elementos basilares da proposta de
o constante no texto em análise referenda uma tradição curricular
Hi.st<'>ria. Nesse sentido, os espaços a serem explorados ampliam-se
que não encontra respaldo nas pesquisas realizadas sobre o ensino de
para além dos museus e outros pontos assinalados como lugares de
História para crianças, nos diversos estados do país. Teoricamente,
memória, alastrando-se para todos os espaços. Compreendemos que
sabe-se que as crianças têm condições cognitivas para estudar qual­
teríamos, assim, uma ponte entre a proposta para todos (BNCC)
quer tempo e qualquer espaço, desde que haja efetiva mobilização e
dialogando com as especificidades que cada escola e cada professor
interesse em torno de ral aprendizagem.
encontrará em seu contexto de atuação.
N� geral, a seleção de saberes para compor a proposta para os
_ _

(In) Conclusões
anos iniciais recai na chissica abordagem dos círculos concêntricos,
do próximo para o distante, pautada no quesito espacial: criança,
O que resultou do amplo debate público, após seis meses de con­
família, escola, bairro, município, estado, país. Quanto ;\ questão
sulta e manifestações em torno do documento preliminar da BNCC
temporal, há indicações da importância de propor deslocamentos
no site do Ministério da Educação, não foi a produção de um docu­
4. Disponível em: dlctps://goo.gllmzmylll-1>. mento mais rico, aprofundado e diversificado em seus fundamentos

78 79
ENSINO ur. l lls'l'6n1A 1� Cunulcuc.o

CARNEIRO. H. S. Rebeliões e ocupações de 20 1 1. In: HARVEY. 0.; cr


basilares, como se esperava. Ao contrário disso, a comissão de doze
profissionais que produziu a primeira versão da BNCC História foi
ai. Occupy. São Paulo: Boirempo, 20 12, p. 7-14.
em torno tio ensino
dissolvidae, em seu lugar, constituída nova comissão, integrada pre­ LAVILLE, C. A guerra das narmtivas: debates c ilusões
Paulo, v. 19, n. 38, P· 125-
dominantemente por profissionais vinculados a wna única Institui­ Je História. Revista Brasileira de História, São
ção de Ensino Superior, cujas t rajetórias de estudos e investigação 138. 1999.
não se mostram efetivamente vincuJadas ao Gunpo do ensino da OLIVEIRA, S. R. Base Nacional Comum Curricular. l,arcccr sobre o
F.
História. Para além desse futo, o documento apresentado como uma documento de História. 2015. Disponível em: <https:l/goo.gl/w5i1Vv>.
segunda versão não guarda relações de continuidade com a primeira,
RÉMOND. R. Introdução à História do nosso tempo. Lisboa: Gradiva,
versão, razão que nos faz reconhecer nele wn outro documento, com
1988.
pressupostos e proposições bastante distintos daqueles que orienta­
ram a produç.'io inicial da 13NCC História. Trata-se de uma proposta SACIUSf"AN, J. G. O aluno como inven�o. Porco Alegre: AruneJ, 2005.
que se refugia nos conteúdos convencionais e canônicos, tomando ___ (org.). Saberes e inccrte-.tas sobre o currículo. Porto Alegre: Penso,
a cronologia linear como eixo central do discurso histórico, ou seja, 2013.
desconsidera os postulados, princípios e proposições oriundos da SAFATLE, V. Amar uma ideia. In: HARVEY. D; cr ai. Occupy. São Paulo.
pesquisa acadêmica nacional e estrangeira dos últimos trinta anos, Boitempo, 2012, p. 45-55.
representando um flagrante c lamentável retrocesso.
SILVA, T. T; MORElRA, A. E 13. (orgs.). Territórios
contestallos: o cur-
A expectativa é que esse processo tortuoso de elaboração da Base , .
I · '
erropoli · V.ozcs, 1995
s. ·

rículo e os novos mapas pol1ucos e cu rura1s. 1)


·

Nacional Comum Curricular possa extrapolar os limites da guer­


introdução às teo­
ra de narrativas (Laville, L 999) c ins tau ra r uma cultura de debate SILVA, T. Tadeu da. Documentos de identidade: uma
público acerca da escola, do currículo escolar, da formação docen­ rias do currículo. Belo Horiwnte: Autêntica, 1999.
te, dos materiais didáticos, da aprendjzagem, da avaliaçáo em larga
escala, dentre outros temas tão relevantes nos cenários educativos c
sociais . Que o debate em curso prime pelo pl uralismo de ideias e se
mostre aberto à construção do novo!

Referências

ACOSTA, J. J. O currículo interpretado: o que as escolas, os professores e


as professoras ensinam? ln: SACRJSTÁN, J. G. (org.). Saberes e incerte­
zas sobre o currículo. Pono Alegre: Penso, 2013.
BENITO, A. E. (ed.). Currículum editado y sociedade dcl conocimicn­
to: texto, multirnedialidad y culwra de la cscuela. V<tlencia: Editorial Ti­
rant Lo Blanch, 2006.

CAlMI, E E. Base Nacional Connun Curricular. Parecer sobre o do­


cwncnto de História. 2015. Disponível em: <https://goo.gi/9G8iNh>.

RI
80
5

O LABIRINTO DAS IDENTIDADES NO


BRASIL: CURRÍCULO(S) DE HISTÓRIA
PARA OS ANOS INICIAIS DO ENSINO
FUNDAMENTAL

Renilson Rosa Ribeiro


Universidade F
ederalde Mato Grosso (UFMT)

Osvaldo RodriguesJunior
Universid.tde Federal de Mato Grosso (UFMT)

Os currículos constituem o instrumento mais significativo da


intervenção do Estado no ensino, o que implica sua interferência, em
última anáJise, na formação intelectual da clientela que frequenta os
bancos escolares para a prática da cidadania, no sentido que interessa
aos que se encontram representados no poder (Abud, 1998, p. 28).
Ao analisar os currículos escolares, devemos ter em mente que
esses, no interior de seu texto, nos revelam um contexto social,
econômico, cultural e político. Dessa forma, "despojando-o(s) do
cadter neutro ligado a uma visão, que o(s) percebia(m) como um
mero veículo de transmissão desinteressada do conhecimento so­
cial" (Gasparcllo, 1999, p. 29).
Esse conhecimento, portanto, não pode apenas ser analisado como
algo estático e naturalizado como um conjunto de informações e ma­
teriais para ser absorvido por professores e alunos de maneira passiva.
Desse modo, uma análise do currículo não pode cair aos en­
cantos de enxergar o processo de seleção e organiz.."lçáo do conhe­
cimento escolar como tão somente um "inocente" processo episte­
mológico em que intelectuais, acadêmicos, cientistas e educadores
"desinteressados" e "imparciais" ditam, por ato de dedução lógica c
filosófica, aquilo que melhor convém ser ensinado às crianças, jo­
vens c adultos nas escolas e universidades.

83
ENSINO uP. HISTÓRIA F Cunnlcuo.n
IIAI I•tillu CAiu.(JS ltlumno JtíNion l MAH<ON Escons1 VAI.ÉRIO (or<cs.)

Precisamos pensar qut: o currículo de História ou de qualquer l listórias do ensino de História no Brasil
outra disciplina rem seus auwres; existem sujeitos por detrás deles que
vão além da expressão "generalizante" e "homogeneizadora" de Esta­ A História como disciplina escolar constituiu-se em 1837, com
do. Seria muito simples desenvolver uma análise usando a ideia de um a criação do Colégio Pedro 11, a primeira escola secundária do Bra­
poder cenrral e (mico que determinasse as maneiras de agir e pensar sil que, embora fosse pública, era paga c destinada à formação das
dos indivíduos. Depois das proposições lançadas por Michel Foucault
dites. A história proposta pela instituição escolar, em larga medida,
acompanhava as resoluções e determinações do Instituto Histórico
(2000). tal "estratégia de análise" não se sustenta com tanta firmeza.
c Geográfico Brasileiro (IGHB), fundado em 1838, lócus privilegia­
Mesmo com rodas as possíveis críticas que possamos f.1zer aos
do de produção da memória histórica nacional na época. Os "len­
currículos, não podemos negligenciar ou marginalizar esses textos
tes" (professores) do Colégio Pedro li eram sócios do lHGB, como
nas discussões sobre o ensino de História no Brasil, pois eles repre­
por exemplo, Joaquim Manuel de Macedo ( 1 820-1882) e João Ca­
sentam uma forma de produção do conhecimento que será acessível
pistrano de Abreu ( 1 853-1927) (cf. Gasparcllo, 2004; Guimarães,
à maioria da população escolarizada no nível fundamental e médio.
1988, Mendes, 20 1 1).
Pois, como nos lembra Tomaz ]àdeu da Silva (2002, p. 150),
Nas palavras de IGtia Maria Abud, as duas instituições "repre­
sentavam, na segunda metade do século XlX, as insrincias de pro­
l... ] n5o podemos mais olhar para o currículo com a mesma
duç.'ío de um determinado conhecimento histórico, com o mesmo
inocência de antes. O currículo rem significados que vão
arcabouço conceitual e problematização" (Abud, 1998, p. 30).
além da<tucles aos quais as teorias tradicionais nos confir­
maram. O cu rrículo é lugar, espaço, território. O currículo Com a regulamentação da disciplina, esta seguiu o modelo fran­
é trajetória, viagem, percurso. O currículo é autobiografia, cês, a História Universal predominou no currículo, mas mantive­
nossa vida, curriculum vitae: no currículo se forja nossa ram-se, por muito tempo, os elementos c ensinamentos da História
identidade. O cmrículo é texto, discurso, documento. O Sagrada. Segundo Circe Bittencourt (2008, p. 1 1 2),
currículo é documento de identidade.

A cultura histórica ace..'isível á maioria da população era


Diante do exposto, no presente ensaio abordaremos os cami­ marcada pelos ensinamentos da História Sagrada, forne­
nhos da história ensinada na escola, rendo como material empírico cedora de lendas, de dramas, epopeias com heróis lJUe se
privilegiado os currículos de História para os anos iniciais do Ensino difundiam e eram transmiticlos oralmente pela Igreja Cató­

Fundamental. O objetivo deste texto será analisar e compreender, lica. Essa memória histórica passou a ser sistematizada pelos
de maneira comparativa, as noções de identidades propostas pelos programas escolares e, mais detalhadamente, pelos livros

Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN) de História, de 1997, e didáticos especialmente confeccion:Kios para o ensino insti­

pela Base Nacional Comum Curricular (BNCC) - nas suas duas tucional. Neles podemos encontrar um plano elaborado sob

primeiras versões, elaboradas entre 2015 e 2016, em processo de determinada concepção pedagógica, buscando uma comu­

discussão. Para cal intento, tomamos como referencial teórico­ nicação narrativa adequada a crianças e jovens.

-metodológico da análise de conteúdo a obra de Laurence Bardin


(2000) e as disclL�sões sobre os conceitos de idenridade de Stuart No ensino secundário, a História do l3rasil fui incorporada só a par­
Hall (2005) e Zygmunt Bauman (2005). tir da década de 1850. Entretanto, ao lado da História Nacional, a His-

85
84
ENSINO "' H ISTÓRIA F. CunnfcUI.o
HALFEl<D CAnco s RmEIIH> júNIOH I MAIRON Escons1 VAtÉRIO (onGs.)

Quanto ao currículo escolar, os embates em torno das discipli­


tória Sagrada também apareceu no programa das escolas elementares
nas escolares dividiram os que desejavam as disciplinas mais científi­
- de primeiras letras- como conteúdo de educação mora] e religiosa.
cas daqueles que defendiam as disciplinas literárias. Como resultado
Por volta de 1 870, sob influência das concepções cienrificistas,
dessa disputa, as disciplinas alcançaram maior autonomia, consti­
a História Sagrada foi perdendo espaço e força dentro do currículo.
tuindo objetivos, saberes e métodos pedagógicos próprios. A Histó­
Tanto que, no final dessa década, foram feitas reformuJações dos
ria passou a ocupar, no currículo, função civilizatória e patriótica.
currículos das escolas primárias visando criar um programa de his­
Para Elza Nadai (1988, p. 235), a instituição escolar deveria formar:
tória laico mais extenso, reduzindo o espaço para a História Sagrada.
Embora, do ponto de vista do programa curricular, a História
[...] aquela categoria social que fica entre o povo e os diri­
no Império tivesse feito a divisão, o mesmo não se concretizou na
gentes do p<lÍS, tanto na política como na ciência. As ideias,
história ensinada, pois os programas e aulas de História do Brasil
por meio deles, filtram-se, descendo continuamente das
nas escolas adotavam o modelo consagrado pela História Sagrada. camadas superiores até os mais humildes: são eles que man­
As narrativas morais sobre a vida dos santos eram substituídas pelos têm coeso o corpo da nação.
feitos históricos dos "heróis" considerados construtores da nação,
com destaque para os governantes (reis, imperadores, militares, líde­ Para legitimar o afastamento entre o laico e o sagrado no dis­
res religiosos, entre outros). No lugar do altar religioso, constituiu­ curso histórico, a História da Civilização substituiu a História Uni­
-se o panteão da nação com seus mártires. versal. O motor dos acontecimentos, antes preso à religião, passou
para o "processo civilizatório", identificado com os próprios desejos
A ordem dos fatos era articulada pela sucessão de reis e
divinos - tendo em vista as ligações entre religião e política.
pelaslutas comra os invasores estrangeiros, de tal maneira
O Estado nacional passava a ser visto como o principal sujeito
que a história culminava com os grandes eventos da Inde­
pendência e da Constitu ição do Estado Nacional. histórico, condutor das sociedades ao progresso e à civilização1• Em
Os métodos de ensino adotados nas aulas eram basea­ outras palavras,
dos na memorização e na repetição oral dos textos escritos.
Os materiais didáticos eram escassos, limitando-se à fala do [. ..] a ideia de nação, no contexto intelectual e político do
professor e aos poucos livros didáticos compostos segundo o século XIX, enlaçada à de cidadania, se embasava na crença
modelo dos catecismos com perguntas e respostas, facilitan­ de uma identidade comum dos indivíduos de variados gru­
do as arguições. (PCN, História e Geografia, 1997. p. 20) pos étnicos e/ou classes sociais. A história dos grupos domi­
nantes, política e economicamente, seria necessariamente a

Em virtude dos eventos da abolição da escravidão, da procla­ mesma daqueles que eram por eles governados. Aliava-se
mação da República, da racionalização das relações de trabalho e ainda à concepção de história dominante a narrativa dos fei­
tos daquela classe, comprovados pelos documentos (únicas
da imigração, emergiram novos desafios para a sociedade em ge­
ral. A partir do final do século XIX, tomaram impulso as propostas
l. Segundo Christian Laville (1999, p. 126), a finalidade maior da história era
que apostavam na educação para realizar a transformação do país, confirmar a nação no Estado em que se encontrava no momento, justificar sua
principalmente aquelas que almejavam a alfabetização da população ordem social c política, e ao mesmo tempo seus dirigentes, e criar nos membros
como um rodo (cf Bittencourr, 2004, p. 62-63; Nadai, 1993). da nação o sentimento de pertencimento, respeito e dedicação para servi-la.

1!6 87
ENSINO "" Hr�TÓHIA E CunnfcuLO
HALFERD c,,RLOS RloErRojúNrOH I MAmON Escor151 \1,\I.JÍRro (oncs.)

fontes admitidas) que os mesmos protagonistas produziam. stãs de senhores que concediam alforria a seus filhos
ações cri

(Abud, 20 l i , p. 166-167) nascidos nas senzalas, entre outras características da vida na


época da escravidão, forneciam os elementos para provar a
democracia racial entre nós.
A História da Pátria era entendida como base na "pedagogia do ci­
dadão" e seus conteúdos deveriam destacar as tracüçóes de um passado
homogêneo - centradas nas questões políticas, no culto aos "grandes Da Segunda Guerra Mundial até o final dos anos 1 970, foi
homens", na defesa do território e na "valorização da ideia de unidade um período ele lutas pela especificidade ela História e do avanço
nacional", formando a identidade de povo (Fonseca, 2001, p. 93). dos Estudos Sociais no currículo escolar brasileiro - com destaque
Nas primeiras décadas do século passado, os governos republi­ para a educação elementar. Podemos identificar nesse processo dois
canos fizeram sucessivas reformas, mas pouco realizaram, na prática, momentos significativos: o primeiro ocorreu no contexto da clemo­
cratiz.açáo do país, após o fim da ditadura Vargas ( 194 5-1 964) e o
para mudar a face da escola pública (cf. Bittencourt, 1 990).
segundo, durante o governo militar, entre 1964 c 1985 (c( Nadai,
Duas reformas educacionais sucessivas durante a era V.'lrgas - a
1988). Nesse contexto, a disciplina passou a ser objeto de debates
Francisco Campos, em 1931, e a Gustavo Capancma, em 1942 -
em relação aos seus objetivos e à sua relevância social e política,
prescreveram com maior precisão as diretrizes do ensino de História
questionando-se seu viés nacionalista e moralizante.
do Brasil, por meio da implantação dos programas elaborados pelo
Nos anos 1950 e 1960, durante as turbulências da Guerra Fria,
recém-criado Ministério da Educação. A primeira reforma educa­
na conjuntura das "reformas de base" e do estudo da realidade brasi­
cional preocupava-se com a educação política do adolescente e a
leira, assistimos ao que Jaime Pinsky caracterizou como emergência
segunda ampliava essa educação para a formação de um sentimento
da chamada "história engajada". Segundo o autor,
patriótico. A Reforma de 1 942 concluiu o processo de separação
entre a História Geral e a do Brasil e aumentou a carga horária da [...] a história positivista ensinada nas escolas era conside­
disciplina na escola secundária (Abud, 1998, p. 33). rada (não sem razão), uma visão reacionária da sociedade e
Neste período, ganhou projeção na educação a influência das os melhores estudantes faziam grupos de estudos onde Caio
propostas da Escola Nova, inspirada na pedagogia norte-americana, Prado Júnior, Karl Marx, Celso Furtado e outros funcio­
navam como ponto de partida para uma tentativa de auto­
que propunha a introdução dos Estudos Sociais no luf:,>ar de História
compreensão como seres históricos. (Pinsky, 1994, p. 18)
e Geografia no currículo escolar, especialmente no ensino primário.
Ao pensar o povo brasileiro na história nacional, os programas e
Diante do subdesenvolvimento do país, a sua vocação agrícola
livros didáticos incorporaram a tese da "democracia racial", que de­
voltada para a exportação foi questionada e procurou-se construir
fendia a ausência de preconceitos raciais e étnicos no país. Segundo
um discurso de valorização da industrialização como via para o de­
Bittencourt (2003, p. 200),
senvolvimento da sua economia. Os livros didáticos de História do
Brasil desse período passaram a enfutizar os ciclos econômicos e sua
A teoria da iniciada pelo [ . ] livro Por
democracia racial, . .

[de Affonso Celso], consolidou-se evolução linear: pau-brasil � cana-de-açúcar � mineração � ca­
que me ufimo de meu país
nesse período. As interpretações da obra de Gilherro Freire, feicultura � indústria.
Casa Grand� e Senzala, passaram a ser introduzidas no ensi­ A industrialização era o destino manifesto para a inclusão do
no de História. A miscigenação enrre senhores e escrava.�, as Brasil entre as grandes potências como uma nação moderna. Nesse

88 89
EN�INO oF. HISTÓRIA F. CuMfCUI o
ll•••·rRn CARLOS RIBI!IRO júNIOI! j MAIRON Escoa" V••-fiRIO (ouc>.)

cenário, os Estados Unidos assumiram lugar de destaque no conti­ cursos de Licenciatura Curta e Plena em Estudos Sociais por meio de

nente americano como símbolo de desenvolvimento e modernidade. encontros c manifestações escritas e públicas (Nadai, 1988, p. 13).

A consolidação dos Estudos Sociais em substituição à História Com o processo de democratização dos anos 1980, os saberes
escolares foram questionados c redefinidos por propostas de refor­
e à Geografta deu-se durante o governo ditatorial civil-militar pós-
1964, após serem adotados em algtunas escolas experimentais ou mas curriculares. Ao mesmo tempo, as mudanças da clientela com­

vocacionais nos anos 1950 e 1960. Os Estudos Sociais, depois da posta por diversos grupos sociais também forçaram alterações no

reforma educacional de 1971, foram introduzidos em todo o siste­ sistema educacional:

ma de ensino - denominado de primeiro grau. Ao lado de Educação


Grupos sochús oriundos das claJ>ses trabalhadoras começaram
Moral e Cívica (EMC), a disciplina ofereceu os fundamentos dos
a ocupar os bancos das escolas que, até então, haviam sido
estudos históricos, mesclados por temas de Geografia cenrrados nos
pensadas e organizadas para setores privilegiados ou da classe
círculos concêntricos. De acordo com Bittencourt (2004, p. 73),
média endente. A entrada de alunos de diversas idades e
asc

experiência.�. portadores de diferentes culturas e vivências, em


O princípio bá.�ico dos Estudos Sociais, inspirado em
crise de identidade pela chegada improvisada e forçada a cen­
escolas norte-americanas, visava à integração do indivfduo
tros urbanos, dentro do intenso processo migratório do cam­
na sociedade, devendo os conrc::l1dos dessa ;\rea auxiliar a
po p;ua a cidade c en tre e.�tados - pri ncipaJrncntc do Nordes­
inserção do aluno, de forma mais adequada possfvcl, em sua
comunidade. Os programas de Estudos Sociais fundamen­ te para o Sul -, colocaram em xeque a estrutura escolar e o

taram-se nos estudos da psicologia cognitiva, que se desen­ conhecimento que ela tradicionalmente vinha produzindo e

volveu sobretudo a partir dos anos [ 1 9]30 e aperfeiçoou-se transmitindo. (Bittencourt, 1998, p. 13-11)
nos anos l l 9]50, pelos estudos pedagógicos.
Essa fundamentação psicológica apresentava os Estudos Com o "retorno" das disciplinas História c Geografia aos proga­
r
Sociais para as crianças de forma progressiva, introdu:dndo mas curriculares da.� escolas desde as séries iniciais do primeiro grau,
os alunos nos temas da sociedade, de acordo com a faixa
ocorreu uma explosão de novas propostas curriculares de História em
etária. Propunha que os estudos fi1ssem iniciados com base
todos os estados e nas redes municipais, na tentativa de concretizar a
nas realidades próximas das crianças, tanto no rempo como
readequaçáo dos programas curriculares com o objetivo de redirecio­
no espaço. Nessa perspectiva, o passado mais próximo era,
antes de tudo, o imediato: o f:1miliar, o local, o escolar.
nar as disciplinas ao ensino de 1" e 2" graus (Bittencourt, 1998, p. 13).
Para Nadai, as propostas curriculares elaboradas a partir dos

Com rclaç.'ío a essa medida e outras tomadas pelo governo fede­ anos 1980, na sua totalidade, apresentavam-se de maneira

ral, houve uma série de iniciativas institucionais e pressões contrárias


[... ] variada, complexa e diferenciada quanto ao conteúdo, mé­
dos setores educacionais no país, num processo de resistência direta
todo ou estratégias de ensino. Alguma� .�e caracterizam por sua
ou indireta. No decorrer da década de 1970, os professores e os es­
nature'la inovadora e progressista, outras pelo tom repetitivo
tudantes de História e Geografia começaram, a partir das escolas e
e conservador. Ttld<t�. enfim, anseiam por superar a ficção da
universidades, dentro das próprias condições regionais e por meio
c.�colaridade obrigatória de oito anos. (Nadai, I �93, p. 158)
das associações e entidades representativas, a lutar pelo retorno do
ensino de História e Geografia aos currículos e pela extinção dos

90 91
I IAI PERO CARLOS RIHEIRO JúNIOR I MAmON EscoRSI VALéRIO (oncs.) EN�INO uF HISTÓRIA E Cun•fcuro

Nesse momento, à guisa de ilustração, introduziu-se nas pro­ tio conhecimento. Uma perspectiva que, para o ensino de Histó-
postas curriculares a preocupação de fazer os professores desenvol­ 1 ia, representou a valoriz.aç.'io das atitudes ativas do sujeito como
verem, com os alunos, procedimentos básicos de pesquisa histórica "construtor" de sua história, em consonância com a visão de alguns
na sala de aula e atitudes inrclecruais de desmistificaçáo de ideolo­ educadores sobre as propostas pedagógicas construtivisras. Segundo
gias, das imagens de "heróis nacionais", da sociedade de consumo e Marília Beatriz Cruz ( 1 999, p. 75),
dos meios de comunicação. Um canteiro de possibilidades emergia
diante do horizonte de professores e alunos nas aulas de História. t...J uma nova concepção de ensino fundamentada prin­
cipalmente nas teorias de Piaget e Vygorsky. a concepção

Currículo de História nos Anos Iniciais do Ensino construtivista fornece subsídios para a superação das·aulas ex­
positivas como metodologia exclusiva, apontando caminhos
Fundamental
para um ensino que estimule o desenvolvimento cognitivo
dos alunos em direção a níveis qualitativameme superiores.
O ensino de História nos anos iniciais do Ensino Fundamental
A contribuição de Vygotsky, no que se refere à aprendi­
tem sido objero de reflexão e de profundas mudanças desde a sua zagem dos conceitos científicos e sua relação com os chama­
desvinculação com a disciplina de Geografia, a partir das reformas dos conceitos espontllneos, já se constitui numa referência
curriculares propostas em meados dos anos 1980 no B asil.
r Dentro para a renovação do ensino de História. Interpretar o ensino
desta perspectiva, aquela visão tradicional d a disciplina e seu ensi­ de História como fornecedor de conceitos que facilitam a
no como reduto de memorização de datas e fatos do passado, bem compreensão do mundo c que contribuem para construção
como a celebração dos heróis nacionais vem sendo questionada e
de estruturas complexas pode ser considerado uma verda­

novas abordagens temáticas, teóricas e metodológicas têm ocupado


deira revolução paradigmática, pois cria um novo modelo
de ensino no qual já não cabem os nomes e datas para se­
espaço significativo na prática da sala de aula.
rem decorados, nem fatos fragmentados que em nada con­
As propostas curriculares produzidas nesse período passaram a
tribuem para a compreensão dos complexos problemas da
sofrer as influências do debate das tendências historiográficas emer­
vida do homem em sociedade.
gentes a partir do final dos anos 1970. Os pesquisadores e professo­
res de Hütória voltaram seus olhares para o estudo de novos proble­
Pautados por essas novas concepções pedagógicas, os currículos
mas, novos objetos e novas abordagens, influenciados por questões
foram ampliados com conteúdos de História a partir das escolas de
ligadas à história social, cultural e do cotidiano, apresentando ma­
Educ.'lçáo Infantil c nos primeiros anos do ensino de 1" grau. Os
neiras possíveis de rever o formalismo de abordagens históricas sus­
conteúdos passaram a ser avaliados quanto às necessidades de aten­
tentadas nos fatos políticos e administrativos dos estados ou nas
der a um público ligado a um "presentismo" intenso, voltado para
análises estritamente economicistas (cf. Rago, 1999, p. 73-96).
ideias de transformações constantes do novo cotidiano tecnológico.
Paralelamente às análises historiográficas, surgiram novas pes­
Dialogando com esses referenciais, temos, desde o final dos anos
quisas no âmbito das ciências pedagógicas, especialmente no cam­
1990, a presença dos Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN)
po da psicologia social e cognitiva. Difundiram-se estudos no Bra­
para Ensino Fundamental, proposta curricular que tem sido o pon­
sil sobre o processo de ensino-aprendizagem nos quais os alunos
to de partida para a construção das atividades de ensino e aprendi­
eram considerados participantes ativos do proct:sso de construção
zagem na escola básica brasileira.

?3
HAtrEJm CAnws Rooemo JúNIOR I MAmON Esconsi VAI.ÉIHO (ORGs.) EI'SINO oF. HISTÓniA v. Cunnfcuw

O primeiro aspecto que chama atenção nessa proposta é a defesa entre individual c coletivo, diferenças e semelhanças, permanências
do ensino da disciplina História desde os anos iniciais, rompendo c transformações e dierentes
f noções de temporalidade.
com a imagem estabelecida de que as crianças não poderiam apren­ O texto dos PCN salienta que a sociedade bra.�ileira atual exige
der história. Para Gisclc Della Cruz (2003, p. 2), que a noção de identidade torne-se uma temática de dimensões abran­
gentes, uma vez que o país vivenda um extenso e complexo processo
Estudar Histbria e Geografia na Educação Infantil e no En­ migratório que, nas últimas décadas, rem desestruturado as formas tra­
sino Fundamental resulta em uma grande contribuição so­ dicionais de relações sociais e culturais. Em outras palavras, o ensino de
cial. O ensino da História e da Geografia pode dar ao aluno História procura desempenhar um papel mais significnivo na forma­
subsídios para que ele compreenda, de forma mais ampla, ção da cidadania, "envolvendo a reflexão sobre a atuaç.'ío do indivíduo
a realidade na qual está inserido e nela interfira de forma
em suas relações pessoais com o grupo de convívio, suas afetividades e
consciente e propositiva.
sua participação no coletivo" (PCN, História, 1998, p. 32).
A constituição da identidade social do aluno, nessa linha de
O segundo aspecto presente nos PCN para a área de História,
que passa a ocupar a agenda do professor, é o compromisso de va­ pensamento, tornou-se um desafio para as propostas educacionais
lorização da própria história de vida da criança. O mundo do aluno para a disciplina História na escola. Essa questão, segundo os au­
é ponto de partida para se ensinar história - fazendo articulações tores dos PCN, necessitaria de uma abordagem que considerasse
com o local e mundos em suas diferentes escalas. Segundo Ernesta "a relação entre o particular c o geral, quer se trate do indivíduo,
Zamboni (1993, p. 7), sua ação c seu papel na localidade e cultura, quer se trate das rela­
ções entre a localidade específica, a sociedade nacional e o mundo"
o processo de construção da história de vida do aluno, de (PCN, História, 1998, p. 32).
suas relações sociais, situado em contextos mais amplos, O quarto aspecto que emerge desta discussão é o da história-pro­
contribui para situá-lo historicamc:nte, em sua formação blema c da análise histórica. A partir da sua própria história de vida,
intelectual e social, a fim de que seu crescimento social e
o aluno avança para o estudo comparado de diferentes realidades a
afetivo desenvolva-lhe o sentido de pertença.
partir de uma perspectiva espaço-temporal. Aqui, professor e alu­
nos assumem a condição de sujeitos produtores de conhecimento
No campo da produção do conhecimento histórico, os PCN
histórico e não mais meros reprodutores de saberes produzidos em
identificam que este, nas últimas décadas, foi ampliado por pesqui­
outros espaços, como a universidade. De acordo com Selva Guima­
sas que têm realizado transformações significativas no olhar do his­
rães Fonseca (2003, p. 94),
toriador, do professor e dos alunos. Essas pesquisas têm apresentado
questionamentos relativos aos agentes condutores da história (indi­
A proposta de metodologia de ensino de história que valori­
víduos e grupos), aos povos nos quais os estudos históricos devem za a problematizaçáo, a análise crítica da realidade, concebe
ou podem lançar sctL� olhares, às fontes documentais que devem ou ;1l unos e professores como sujeitos que produ1.em história e

podem ser utilizadas pelos historiadores e às ordenações de tempo conhecimento em sala de aula. Logo, são pessoas, sujeitos
que devem ou podem prevalecer. históricos, tiue cotidianamente atuam, transformam, lutam
Neste sentido, um terceim aspecto passa a ter relevância no en­ e resistem nos diversos espaços de vivências: em casa, no
sino da História: a questão da identidade, lidando com as relações trabalho, na escola, etc. Essa concepção de ensino e apren-

94 95
I IAI •enu ÚHLOS R'"�"'" )t'INIOH I MAtRON EscoRSI VAtêtuo (onc;s.) ENSINO na l l!>'t'ÓIUA I! Cuuufc111 o

diwgem facilita a revisão do conceito de cidadania, abstra­ 1cm como objetivo apresenrar os conhecimentos básicos necessá­
ta, pois da nem é apenas herdada via nacionalidade, nem ' ios a todos os estudantes brasileiros na sua formação escolar, da
liga-se a um único caminho de transformação política. Ao Educação Infantil ao Ensino Médio. A partir da BNCC, os siste­
contrário de restringir a condição de cidadão a de mero rra­ mas educacionais, escolas e professores poderão construir as suas
b:Jhador e consumidor, a cidadania possui um caráter hu­ propostas curriculares levando em consideração as particularidades
mano e construtivo, em condições concretas de existência.
conrextuais e as famílias poderão parricipar da vida escolar dos jo­
vens alunos brasileiros.
Essa nova percepção da história, presente nos currículos atuais, De acordo com o Ministério da Educação (MEC), a BNCC é
rem permitido pensar que o seu ensino envolve relações e compro­
resultado do trabalho coletivo de diversos agemes do contexro edu­
missos com o conhecimento histórico, de cunho científico, com as
cacionaL Para isso, foi constituído um comitê de assessores que tra­
reflexões que se desenvolvem no âmbito pedagógico e com a cons­
balhou na produção de uma proposta preliminar com a contribuição
trução de uma identidade social pelo aluno, relacionada às comple­
de uma comissão de L L 6 especialistas, divididos em comissões por
xidades inerentes à sua realidade.
área/componente curricular/etapa da educação básica. Dentre os es­
pecialistas estão representantes de 35 universidades e dois Institutos
Os desafios e impasses do Ensino de História pal'a as Federais de Educação; professores das redes públicas estaduais de to­
crianças na BNCC dos os estados e do Distrito Federal; c geston:s das redes p(ablicas es­
taduais, os dois últimos grupos indicados pelas secretarias estaduais.
Atualmente, os PCN ainda são o texto curricular norreador das Por meio de reuniões organizadas pela Secretaria de Educação
propostas curriculares estaduais e municipais por todo o Brasil. Po­ Básica com órgãos representativos, como o Conselho Nacional de
rém, desde 2010, na Conferência Nacional de Educação (Conae), Secretários de Educação (Consed); União Nacional dos Dirigentes
especialistas indicaram a necessidade de consrrução de uma Base Na­ Municipais de Educação (Undime); Fórum Nacional dos Conse­
cional Comum Curricular como parte do Plano Nacional de Educa­ lhos Estaduais de Educação (FNCE); União Nacional dos Con­

ção (PNE). Apesar disso, somente em 2014 a Lei n° 13.005, de 25 selhos Municipais de Educaç.'io (UNCME); União Brasileira dos

de junho, regulamentou o Plano Nacional de Educação (PNE), com Eswdames Secundaristas (Ubes) e o fórum Nacional de Educação

vigência de dez anos, e determinou na meta 7, Estratégia 7.1, (FNE), além de seminários e fóruns realizados em diferentes espa­
ços, foi produzida a 13 versão preliminar da BNCC disponibilizada
esrabcleccr e implantar, mediante pactuação interfederati­ em setembro de 2015.

v;J, diretrizes pedagógicas para a educação básica e a base No documento, são apresentados os princípios norteadores da

nacional comum dos currículos, com direitos e objetivos de BNCC. Abaixo destacamos alguns deles:
ap rend izagem e desenvolvimento dos (as) alunos (as) para
cada ano do ensino fundamental e médio, respeitada a di­ • Desenvolver, aperfeiçoar, reconhecer e va lori�.ar suas pró­
versidade regiona l , estadual e local. (Brasil, 20 l'Í) prias qualidades, prezar e cultivar o convívio afetivo e social,
fazer-se respeitar e promover o rcspcii'O ao outro, para que
Assim, a Base Nacional Comum CurriCLLiar (BNCC) vem sen­ sejam apreciados sem discriminação por em ia, origem, ida­
de, gênero, condição física ou social, convicções ou credos;
do discutida enquanto uma ferramenta de orientaç.'ío curricular que

?6 97
I IAr.Hlrur CAnws RrriP.IRO JúNIOR I MArRON Esconsr VAr.r\nro (onc;s.)

• Situar sua família, comunidade e nação relativarncntc a cipaçóes em diferentes grupos sociais, a partir do reeonlu:
eventos históricos recentes e passados, localizar seus espaços cimento e da valorização da diversidade humana e cultural.
de vida e de origem, em escala local, regional, continen tal (BNCC, 2015. p. 238)
c global, assim como cotejar as características econômicas

e culwrais regionais e brasileiras com as do conjunto da�


Ainda dentre os objetivos da área no Ensino Fundamental, des­
demais nações;
tacamos:
• Identi ficar suas potencial idades possibilidades, perspecti­
vas e preferências, reconhecendo c buscando superar limi­
• (Re)conheccr identidades c urgani:t.açócs na vida em so­
tações próprias e de seu contexto, para dar reali7.ada a sua
ciedade em difcrcnres tempos e espaços, percebendo e aco­
vocação na elaboração e consecução de seu projeto de vida
lhendo semelhanças e d iferenças.
pessoal e comunitária;
• Conhecer c desenvolver proccdimenros de esmdo e de
• Participar ativamente da vida social, cultural c polícic:1,
investigação, usando múltiplas li nguagens para expressar
ele forma solidária, crítica e propositiva, reco nhecendo d i­
saberes, sentimenros, crenças e dúvidas na descoberta de
reitos c dt:vcres, identificando e combatendo injustiças, c
si mesmo e na relação com outras pessoas nas sociedades.
se Jispon<.lo a enfrentar ou mediar eticamente conflitos de
(BNCC, 2015, p. 239)
interesse. (BNCC, 2015, p. 7-8)

Dessa forma, observa-se, desde a caracrcrizaç..'ío geral da área de


Esses pri ncípi os concebidos como direitos "fundamentam as ar­
Ciências Humanas na BNCC, uma preocupação com o reconhe­
ticulações entre as �ireas do conhecimento e etapas de escolarização
cimento e desenvolvimento das identidades, com maior ênfase no
na definição dos objetivos da educação básica" (BNCC, 2015, p.
Ensino Fundamental.
1 O) c colocam, no centro do debate, a constituição e o desenvolvi­
No caso específico do componente curricubr 1-listória, o docu­
mento das identidades pur meio dos processos de reconhecimcmo, mento apresenta como objetivo possibil itar o entendimento e a pro­
valorização, identificação e participaç.
'io. blematização dos valores, saberes e f:neres, em dimensões individuais c
O documento está estruturado em quatro áreas: Linguagens, coletivas, contribuindo para o processo formativo dos jovens alunos c
Matemática, Ciências da Natureza e Ciências Humanas. A área de permitindo o exercício da cidadania. O documento ainda destaca que
Ciências Humanas é composta pela História, Geografia, Sociologia,
Filosofia c Ensino Religioso. De acordo com o documento, o funda­ o componente curricular História, portanto, tern papel rele­
mento principal desta área é a compreensão de que o homem é pro­ vante n aproblemarizaçáo das questões idenrirárias que são
tagonista da sua existência. Sobre isso, o documento destaca que: tematizaclas pelas redes sociais, pela TV, pelo cinema, pelo
rádio e por roda a série de meios potencializados ou inven­
A <Írea de Ciencias Humanas, no Ensino Fundamental, tados com o advento da revolução tecnológica do século
reh1dona e art icula vivências e experiências dos/as estu­ XX. (BNCC, 2015, p. 241).
dantes às situações cotidianas em seus aspectos políticos,
sociais, culturais e econômico-s, promovendo atitudes, Na tentativa de contribuir para o desenvolvimento das identi­
procedimentos e elaborações conceituais que porenciali­ dades, a BNCC apresenta uma perspectiva diversa ao dar ênfase à
:t.em o desenvolvimento ele suas identidades e de suas parti- História do Brasil, sem excluir as relações dessa com outras histó-
IIAU'Eno CM\1.05 ltmEIIto Jl)NIOI\ I MAlHO" EstOIL�I VAI.P.mo (oncs.) ENSINO nr, 1-hsTÓIUA E CunRicULO

rias. Essa opção é justificada por quatro fundamentos. O primeiro • CHI-IJ3FOA029 Estabd ecer nexos emre Ettos históricos
de que esse "saber signiL-icativo" permite aos alunos conhecer a traje­ e transformações na comunidade em que vive, percebendo
tória do seu país e, consequentemente, a sua individual. O segundo relações de causalidade.
de que o conhecimento histórico deve promover o interesse cientí­ 5° ANO/EF
fico pela História do Brasil. O terceiro da possibilidade de acesso a P ROCEDIMENTOS DE PESQUISA
• CHH T5FOA049 Pesquisa as origens de seu grupo familiar
fontes e documentos. E o quarto de necessidade de compreensão da
considerando os grupos que constituíram o povo brasileiro
História do Brasil em perspectiva local, regional e nacional.
e os predominantes na região em que vive.
1 Dentre os enfoques predominantes, destacamos os das séries CATEGORIAS, NOÇÓES E CONCEITOS
iniciais do Ensino Fundamental: • CHHI5FOA054 Reconhecer, em manifcsraçóes culrurais
e narrativas orais, ideias e representações sobre o Brasil e os
1o ano - Sujeitos c G rupos Sociais. brasileiros em diferentes temporalidades.
zo ano - Grupos Sociais e Comunidades. • CHHT5FOA055 Expressar, por meio de múl tiplas lingua­
3o ano - Comunidades e outros lugares de vivências. gens, o que é ser brasileiro, desnaturalizando os estereótipos
4o ano - Lugares de vivências e relações sociais. e contextualizando as diferenças.
5° ano - Mundos brasileiros. (BNCC, 2015, p. 213) DIMENSÃO POLÍTICO-CIDADÃ
• CI-11-IT5FOA058 fdcnrificar c valorizar suas origens em
Os objetivos de aprendizagem estão divididos em quatro dimen­ relação aos grupos que constituíram o povo brasileiro.
sões: procedimentos de pesquisa, representações do tempo, categorias, (BNCC, 2 0 1 5 , p. 244-250)
noções e conceitos c dimensão político-cidadã. Abaixo, destacamos
a1guns desses objetivos que nos permitem observar a preocupação do Diante do destacado, essa versão preliminar da BNCC assume o
documento com o desenvolvimento das identidades: desenvolvimento das identidades como elemento cenrral para a for­
mação cidadã, investindo em uma perspectiva voltada às identidades
Jo ANO/EF
brasileiras que, ao romper com uma "tradição" eurocenrrada - espa­
CATEGOlUAS, NOÇÕES E CONCEITOS cial e temporal - e potencializar aquilo que as Leis n° 1 0.639/032 e
• Cl:-1 H I POAOOG ld. emi licar o nome e o sobrenome co1110
2. Para Anderson Oliva, 'l questão da idemidade nacional na primeira década
elementos de constwção da identidade, reconhecendo-se pós- implantação da Lei n° 10.639/03 obteve debates imensos e enriquecedores
como membro de um grupo social que tem urna história que extrapolaram llS limites dos meios acadêmicos c ganharam espaço na própria
constituída e reconstituída nas relações sociais. mídia (por vezes de forma sensacionalista e pulverizada). O autor, em que pese a
•CHH l FOAOOS Construir a HOçáo de pertencimemo a maneira ainda muito superficial e pouco problematizada das abordagens, sugere

diferentes grupos sociais (família, escola c comunidade), c1ue parte significativa da sociedade brasileira passou a reAetit e posicionar-se so­
bre os mitos fundadores da identidade nacional c sobre as nossas mldtipla� identi­
entendendo seu prutagonismo e seu papel social nas mais
dades: "Observamos, na realidade, o continuar das experiências de fabricação da
diferentes fi.mnas de manifcstaçües e interações estabeleci­
Identidade Nacional, talvez tão impactantes quanto aquelas iniciadas na segunda
das em cada grupo e contexto sociuculrur:1L
metade do século XIX (caracrerizadas pela negação da pluralidade étnica, pela
3° ANO/EF valorização de nossa suposra eurodescendência e pelos referenciais teóricos do
CATEGORIAS, NOÇÕES E CONCEITOS Dererminismo Racial) e na década de 1930 (com a defesa de uma suposta cultura

100 101
Konsr VM.F.I\ICJ (OnGs.)
HAr.FP.I\0 C•nr.os ltrnmt<> jr'rNrOn I MArno� E.
ENSINO OE HtsTÓI\J,\ E Cunuícw.o

1 1.645/08 estabelecem para o ensino da História e Cultua


r Africa­ por se julgar que certos elementos estariam ausentes e que
na, Afro-Brasileira e Indígena, abre wn novo patamar para o debate outros estariam sendo ensinados em lugar de coisa melhor,
curricular, respondendo as demandas de acadêmicos, pesquisadores e como se o ensino da história continuasse sendo o veículo de
movimentos sociais comprometidos com a temática - lógico que sem uma narração exclusiva que precisa ser assimilada custe o
um consenso, porque f.'lzer essas escolhas implica em mudanças em que custar. (Laville, 1999, p. 127)
regimes de pensamento, escrita e ens ino Significa romper com aquilo
.

que se entende como natural ou verdade na narrativa histórica em Em comum, os dois textos são marcados pela crítica à BNCC
suas diferentes linguagens (cf. Santos, Ribeiro, 20 16; Gomes, 20 12). enquanto texto ideológico e panAetário que representaria um pro­
A versã o preliminar ficou aberta para consulta pública por seis jeto de poder. Destarte o "pano de fundo" político, as críticas repre­
meses, entre setembro de 20 1 5 e março de 20 16. O texto recebeu sentam justamente o confronto entre uma "tradição" constituída
mais de 12 milhões de contribuições, sendo mais de dois milhões e por uma narrativa nacional, que propõe explicar o Brasil a partir da
500 mil apenas para a área de Ciências Humanas. Além das contri­
"teoria das três raças", fundada por Karl l� von Martius e reafirmada
por Francisco Adolfo de Varnhagen, o visconde de Porto Seguro,
buições, foram produzidos pareceres críticos por parte de especialis­
e a perspectiva "pós-colonial", que propõe a superação da ideia do
tas das diferentes áreas.
protagonismo europeu, invertendo a ordem social para os sujeitos
O debate foi bastante "acalorado" entre os intelectuais das áreas
que flzeram e fuzem o Brasil (cf. Ribeiro, 2016). São duas propostas
de Ciências Humanas. Destacamos duas colunas publicadas pelo
de identidades nacionais bastante distintas e demarcadas.
jornal O Globo. Na primeira, Demétrio Magnoli e El.aine Senise
Diame das contribuições, pareceres críticos e mesmo da "his­
Barbosa (2015) criticaram a ausência de temporalidade e a inexis­
teria" de alguns intelectuais, em maio de 20 1 6 foi disponibilizada
tência de conteúdos básicos da História Ocidental. Enquanto na se­
a 2a versão revista da BNCC. Essa segunda versão sofreu diversas
gunda, Marco Antônio Villa (2016) foi ainda mais longe ao afirmar
alterações, como, por exemplo, a transformação dos princípios fun­
que o docwnento fazia parte de uma Revolução Cultural pretendida
damentais em direitos de aprendizagem e desenvolvimento.
pelo Partido dos Trabalhadores - PT, à época no comando do poder
Na Educação lnf.'lntil, destaca-se, dentre esses direitos, o de
executivo, à moda de Mao 'Eé-Tung na China.
Essa ideia de história pautada na mera compilação de furos e recor­
conhecer-se e construir sua identidade pessoal, social e cul­
tes temporais "fi:chados" se desdobra na percepção conteudista do seu tural, constituindo uma imagem positiva de si e de seus
ensino na escola, conforme observa Christian Laville (1999, p. 127): grupos de pertencimento, nas diversas experiências de cui­
dados, interações e brincadeiras vivenciadas na instituição
Quando o ensino da história é criticado ou acusado, quan­ de Educação Infantil. (BNCC, 2016, p. 62)
do provoca debates, não é porque as pessoas se inquietam
com o alcance dos objetivos de formação que lhe são ofi­
Dentre os campos de experiência, construídos com a intenção
cialmente atribuídos, mas em razão dos conteúdos fatuais,
de contribuir para a organização curricular, destaca-se "O cu, o outro
c o nós" (BNCC, 2016, p. 64). Sobre ele, o documento indica que:
nacional hnmogeneiz:tdora c embebida na ideia da miscigenação c da 'democra­
cia racial'). O atual momento, iniciado há pelo menos quarenta anos, refunda
algumas de nossas velhas crenças rcJcfini ndo a Identidade N:tcional a panir Ja [. ..] o contato com outros grupos sociais e culturais, ou­
combinação ou coexistência Je outras identidades" (Oliva, 21)12, p. 30). tros modos de vida, diferentes atitudes, técnicas e rituais

102 103
J r....."" CMn.o< RlllF,II\0 JúNIOR J .'viAIRON Esconso VAo.F.noo (ORGS.)

de cuidados pessoais <: do grupo, costumes, cclcbraçõc.� c


sentimento de perrencimento, para que a criança possa posterior­
narrativas, ;unplia u mudo de a criança perceber a si c ao
mente passar à escala da cidade e, emáo, ao conhecimento histórico.
outro, levando-a a não assumir preconceitos, garantindo o
dhilogo, a valori7.açáo de sua identidade c o reconhecimento
Dentre os objetivos gerais de formação da área de Ciências Hu­
e o respeito as diferenças que nos co nstituem como seres manas para os anos iniciais do Ensino Fundamental, alterados nesta
humanos. (UNCC, 2016, p. 67) segunda versão, destacamos "(EFF 1 CHO 1) (Re)conhecer identida­
des e organizações da vida em sociedade em diferentes tempos e
Dessa forma, a segunda versão do documento torna ainda mais espaços, perceben do, acolhendo e valoriza ndo semelha nças e dife­
renças culturais" (BNCC, 2016, p. 298).
"p rematura" a centralidade da constr ução desenvolvimen to das c

identidades, enquanto objetivo central do ensino c da aprendiza­


Identidade(s) do Brasil nos currículos para as crianças do
gem escolar.
No trecho do documento dedicado às Ciências Humanas, indi­ tempo presente
ca-se, a partir da ideia de pertencimento, o reforço da importtincia
De acordo com Stuart Hall (2005), a questão da identidade
das identidades nos anos iniciais do Ensino FundamenraJ:
vem sendo discutida com grande interesse pela teoria social. Esse
interesse pode ser expl icado pela chamada "crise de identidade",
rlànto a l listoria quanto a Geografia, nos anos iniciais do
entendida enquanto um processo de fragmentação do indivíduo
Ensino Fundamental, trabalham o sentimento de pertenci­
moderno e surgimento de diferentes identidades. Assim, "as iden­
mento do/da estudante a vida comunitária e local c, progres­
sivamente, ao longo dos anos finais, desdobram o ensino em
tidades modernas estão sendo 'dcsccnrradas', isto é, deslocadas ou
uma perspectiva (JUe se amplia, permitindo olhar o mundo, fragmentadas" (Hall, 2005, p. 8).
espaços e paisagens além de seu entorno e outras sociedades Esse processo de "descentraçáo" d<ts iclenr icladcs decorre de di­
e temporaJidades histórica.�. (UNCC, 2016, p. 153) ferentes farores. Hall (2005) destaca as mudanças na concepção de
sujeito do modelo cartesiano aré a pós-modernidade; os avanços
Na caractcrizaç.'lo da disciplina de História, observa-se que o nas teorias sociais e o fenômeno da glohalizaçáo. Dessa forma, as
identidades nacionais passaram a ser questionadas, emergindo di­
estudo da Historia deve contribuir para a consciência de si c ferentes identidades "contraditórias" relacionadas à classe social, et­
do outro, de modo que as identidade$ sociais possam, com­ nia e gênero. Ou seja, Sruart Hall clcfcncle a não existência de uma
preensivamente, se constituir na relação com outras, dadas "identidade-mestra" no contexto da pós-modernidade.
ern diferentes tempos c espaços sociais, e com elas conviver. Na mes ma direção, Zygmu nr Bauman (2005) defende que a
(BNCC, 2016, p. 155) globalizaçáo provocou a perda do poder do Estado de manter a coe­
são d a nação. Assim, na época líquido-moderna c.1.racrerizada por
.Em outro trecho, o documento reroma a ideia de problcma­ relações l iqu idas, ou seja, não duradoras ou efêmeras,
tização das questões identitárias apresentadas pela mídia, presente
Tornamo-nos conscientes de que o "pcrtcncimcnto" c a
na primeira versão da BNCC. Sobre o papel da disciplina nos anos
"identidade" não têm a solidc-L de uma rocha, não são ga­
inicias, o documento volta a indicar a necessidade de construção do
rantidos para toda a vida, são hasrante negociáveis e:: revo-

I o-I
1115
HAt.F�RO CAnws Rmr.mo júNtOn I MAtR<N EscoRSt V.\1 P.mo (onGs.) ENSINO ue. l lr!J.TC\HJA E Cmmfc�uto

gáveis, e de que as decisões que o próprio indivíduo toma, cidadania. Essa função da disciplina escolar de História advém de
os caminhos que percorre, a rmmeira como age - e determi­ toda uma tradição escolar iniciada com a implantação da disciplina
nação de se mamer firme a tudo isso - são fatores cruciais
no Colégio D. Pedro 11.
tanto para o "penencimento" lLUanto para a "identidade".
Nesse con texto, a referida aurora observa que no rexto oficial:
(Bauman, 2005, p. 17)

L. ..] o estudo da noção de identidade passa pda discussão


Nessa perspecliva de abordagem, segundo Ângela de Castro do caráter brasileiro e é visível pelo processo de comparação,
Gomes, é importante ter em dimensão que: destacando as semelhanças e as diferenças existentes enrrc
os grupos étnicos como hrancos, negros, índios, mestiços
Processos de construção de identidade, como se sabe, al�m e ourros. A identidade nacional é construída e perceptível
de inconclusos e permanentes, remetem sempre a dimen­ via as representações simbólicas como a bandeim nacional,
sões simbólicas, envolvendo a invenç.
'io, a divulgação, a im­ as moedas, os selos, os hinos e os rituais presentes nas fc.�­
posição c a adesão de um grupo a idc;lis, v;Liores, crenças, ras cívicas, populares, em jogos esportivos, nos funerais de
ideologias, etc., que são operacionalizados e/ou materializa­ pessoas que se destacaram no cenário nacional, como o do
dos em instituições, rituais, festas, símbolos, etc. Uma das corredor Ayrton Senna. (Zamlwni, 2003, p. 372-373)
dimensões particularmente caras à análise do historiador,
nesse complexo processo, é produção de um "passado co­
Apesar dessa tentativa de propor uma "identidade nacional"
mum" ao grupo: a constituição de referenciais que lhe as­
mais plural, o texto peca pela ausência de aprofundamento de ques­
segurem uma "origem" c lhe garantam "continuidade" no
róes fundamentais, principalmente no que tange à questão étnica.
tempo, a despeito das transformações que possa ter efetiva­
mente sofrido. (Gomes, 2009, p. 29-30) Ao fixar-se em símbolos como a bandeira e o hino nacional, o do­
cumento curricular acaba por comribuir para manter a "tradição
Tomando o debate proposto pelos autores c a metodologia de inventada" (cf. Hobsbawm; lhnger, 1984) de uma "identidade
análise de conteúdo entendida como "um conjunto de instrumentos nacional" enquanto "identidade mestra", conforme entendida por
metodológicos cada vez mais sutis em constante aperfeiçoamento, nau man (2005). Cabe compreender que "[ . . . 1 as identidades nacio­
que se aplicam a 'discursos' (conteúdos c continentes) extremamente nais não são coisas com as quais nós nascemos, mas são formadas e
diversificados" (Bardin, 20 1 1 , p. 16), procuramos analisar de manei­ transformadas no interior da representação" (Hall, 2005, p. 48). O
ra comparativa os textos dos Parâmetros Curriculares Nacionais de que fazem os PCN, nessa linha de raciocínio, é justamente reforçar
História (PCN) e da Base Nacional Comwn Curricular (BNCC). essa perspectiva identit:íria nacional de forma a não considerar o
Inicialmente procuramos identificar nos textos a categoria iden­ processo de "descentraçáo" (Hall, 2005) dos sujeitos ocorrido na
tidade buscando observar a sua ocorrência. Em ambos os textos, a modernidade líquida ( Bauman , 2005).
categoria está presente em diferen tes passagens, o que demonstra a O texto da BNCC parece considerar de maneira mais consisten­
viabilidade da análise �roposta neste texto. re o diagnóstico de Hall (2005) e Bauman (2005) ao propor identi­
Conforme destaca Erncsta Zamboni (2003), no texto dos PCN dades nacionais relacionadas ao sentimento de pertencimento, mas
a categoria "identidade nacional" é tratada no tema transversal "plu­ também as diferentes características sociais e étnicas. Além disso,
ralidade cultural" com a intenção de promover a formação pa ra a cabe destacar a impo rr5ncia dada às identidades sociais construídas

106 107
I

I IAI.FP.no C,,nws Rrnr.rn() j(INIOu I lv!AII\ON Escons1 VAI.F,I\10 (tmc;s.) ENSINO ue. I IJs'rc\HJA �� Cunnlc.;m o

pelas redes sociais, pela TV e pelas mídias em geral. Tal elemento dê liberdade para esse profissional "cortar, desmontar, decompor",
permite, por exemplo, discutirmos com os alunos as permanências a fim de que ele possa "compreender as formas particulares de co­
do racismo na distribuição de papéis na telcdramaturgia brasileira. nhecimento que ele(s) contempla(m), as relações de poder que as
Além disso, ao enfatizar a História do Brasil em uma perspectiva sustentam, enfim os disciplinamemos do pensar, f.1lar, sentir que
"pós-colonial", a BNCC propõe o rompimento com a "identidade na­ impõe a todos nós" (Stephanou, 1998, p. 36). Dessa maneira, ao
cional" enquanto "identidade mestra" constnúda no século XIX, permi­ professor reservará a responsabilidade e o compromisso de criar suas
tindo wna profunda reflexão e ressignificaçáo da etnicidade no Brasil. maneiras de ensinar - produzir e difundir o conhecimento na sala
Contudo, os dois textos pecam ao não tocarem na questão de gê­ de aula.
nero de maneira mais consistente. Se, no textO dos PCN, a categoria
é tratada em poucas linhas no tema transversal "Orientação sexual", Referências
na 13NCC, o debate carece ainda de amadurecimento. Esse "silencia­
ment6" não permite uma rcAcxão mais profunda sobre as identidades ABUD, K. M. A guardiã das tradiçôes: A História e seu código curricular.
de gênero, tema urgente em um contexto de avanço da intolerância e Educar, Curiciba, n. 42, p. 163-171, our./de:t.. 201 1 .
ela violência contra mulheres, lésbicas, gays e transexuais. __ . Currículos de História e políticas públicas: os programas de Histó­
Em síntese, ao analisarmos os PCN e a 13NCC, observamos que ria do Brasil na escola secundária. In: BrlTERNCOURT, C. M. E (org.).
ao caminharmos no labirinto das identidades ainda não é possível O saber histórico na sala de aula. 2. ed. São Paulo: Comexto, 1998, p.
encontrar a saída que compreende as mudanças dos sujeitos na mo­ 28-4 1 .
dernidade líquida, que proporcionaram o seu movimento de descen­
BAUMAN, Z. Identidade. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2005.
traç�o c a consequente emergência de diferentes identidades, muitas
BARDIN, L. Análise de conteúdo. São Paulo: Edições 70, 20 1 1 .
vezes contraditórias (Hall, 2005). Apesar cUsso, cabe destacar que ca­
minhamos para essa saída dos PCN para a BNCC, porém carecemos BITTENCOURT, C. M. E Capitalismo e cidadania nas atuais propostas
ainda de wn processo de maturidade dos currículos que nos permita curriculares de História. In: O saber histórico na sala de aula. 2. ed. São
encontrar a luz da igualdade e da justiça social ao final do labirinto. Paulo: Contexto, 1 998, p. 1 1 -27.
A BNCC, assim como qualquer proposta curricular, procura __ . Ensino ,fe História: fundamentos e métodos. São Paulo: Corrcz,
representar a constituição de um "novo" discurso sobre o papel da 2004.
educação, da escola, do professor, do aluno e, principalmente, da
__ . Idenridade nacional e ensino de História do Brasil. In: KARNAL.
história. Instituem-se, por meio dessa linguagem normativa e "pro­ L (org.). História na sala de aula: conceitos, pdricas e propostas. São
positiva", "novos" modelos para a sociedade, modelos que, mais do Paulo: Contexto, 2003, p. 1 85-20-1.
que inclusões, realizarão também exclusões. Entram "novos" perso­
__ . Livro didático e saber escolar (1810-1910). Belo Horizonre: Au­
nagens nessa história, "outros" saem, "alguns" ficam escondidos, no
têntica, 2008.
subentendido, ou melhor, nas entrelinhas.
Contudo, vale sempre observarmos que um currículo, um livro, __ . Pátria, civilização e trabalho. O Ensino de Hisr6ria nas Escolas

um manual didático ou outra fonte qualquer que auxilie o trabalho Paulistas - 1 9 1 7-1 939. São Paulo: Edições Loyola, 1 990.

elo professor de História somente será um importante aliado ou ins­ BRASIL. Base Nacional Comum Curricular (1 versão). Brasília: MEC/ a

trumento a partir do momento que se constituir uma cultura que SEB, 2015.

108 109
l-IAT.r:rmn CARI.OS Rummo jlrNI(Ht I fvf.o\IUON E.'\<':On.scVAu�ltln (01u�s.) ENSINO ne HISTÓUCA E C\n�nícuto

___ . Base Nacional Comum Cwriculu (23 versão). Brasília: MEC/ HOBSBAWM, E. J.; RANGER, T. (org.). A invenção das tradições. Rio
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___ ' . l1arâmetros Curriculares Nacionais (1 a e 4a séries): história e LAVI LLE, C. A guerra das narrativas: debates e ilusões em torno do ensino
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110 111
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Paulo: SEE/CENl� 1993.
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__ . Projeto pedagógico dos Parâmetros Curriculares Nacionais: iden­ nossa, pode ter acesso a qualquer tipo de discurso; sabemos,
tidade nacional c consci�ncia histórica. Caderno Cede.�, Campin;1s, v. 23, no entanto que, na sua distribuiçiío, naquilo que permite e
n. 6 1 , p. 367-377, dez. 2003. naquilo que impede, ela segue as linhas que são marcadas
pelas distâncias, pelas oposições e pelas lut;Js sociais. liJdo o
sistema de educação é uma maneira política de manter ou
modificar a apropriação dos discursos, com os saberes e os
poderes que estes trazem consigo."
(Michel Foucault, A ordem do discurso)

"2016
teve um pouco de 64
e um pouco de 68
Como é que pode ser?
'leve até quem sabe faz a hora
não espera acontecer!"
(Gerson Egas Severo)

Este breve trabalho tem o intuito de constituir uma nota de con­


tribuição ao debate sobre liberdade, imparcialidade e "neutralidade"
em sala de aula, motivado pelas ideias c proposições contidas na
proposta que ficou amplamente conhecida como Programa Escola
Sem Partido. Além disso, baseia-se também na miríade de textos, de
natureza diversa, produzidos sobre o Programa e em torno das bases
ideológicas de sua própria raziío de ser (apesar de se pretender um

112 113
I l M "''"' CA1u "" Huu 1110 jiÍN>OR I MAuiON EscoRS> VAuliUO (oRes.) ENsiNO "" H1STÓJUA F CuRRICJJI.O

Pwg1.una "não ideológico"1), bem como sobre elementos que o po­ de professor (estamos nos referindo especialmente, mas não s6, :\
sicionam como uma peça no mosaico - uma peça pedagógica - d:1 :unbiência das Ciências Humanas): poderíamos, por fàlta ainda de
"guin:Jcl:t fi direita" que o Brasil sofreu após o Golpe Parlamentar, ou outros termos - e aproveitando categorias criadas por Jurcmir Ma­
Jurídico-Parlamentar, que se consumou em 2016. chado da Silva2 para tipi icar
f intelectuais em geral c suas disposições
O que estamos denominando uma "nora de conrribuiçáo ao de espírito -, denominá-los "Professor do cipo 'eu acuso"' c "Profes­
debate" diz respeito a um aspecto da quesráo: em um ambiente de sor do tipo 'eu compreendo"'.
liberdade sem restrições c de responsabilidade pedagógica em sala O professor do tipo "Eu acuso" (que, como intelectual, seria
de aula como o que se deseja, e que deve ser apoiado pela legisla­ inspirado no escritor francês Émile Zola c em sua atuação no cé­
ção e culcivado e desenvolvido amplamente nas escolas, há diversos lebre "Caso Drcyfus") tenderia, em sala de aula, a mais ou menos
modelos de docência reconhecíveis no que se refere à abordagem imediatamente aderir a uma determinada causa, ou a um complexo
de remas políticos (ou p01encialmeme políticos, ou mais evidente­ de causas, fàzendo a sua visão acerca de um determinado conteúdo
mente políticos, porque em sentido amplo todos o são) - remas cuja prevalecer (o mais das vezes, mas não necessariamente) sobre outras
presença em sala de aula é certamente objeto da preocupação c ela visões possíveis, mas de estrato matricial ideológico diverso.
intenção ele censura do Programa Escola Sem Partido. Basicamente, sua postura em sala de auJa possui wna virtude e tun
Nossa proposta é a de aproveitar o dcbare mais geral para reali­ risco (às vezes calculado, às ve:res não): a virtude de fuzer com que sem­
zar uma rent..1.tiva de (começar a) ripificar esses moddos de docences pre esteja clara a sua posição relativa diante de wna determinada ideia,
quanto às maneiras diferentes com que, em sala de aula, abordam re­ realidade ou discussão, escapando a wna "neutralidade", a um "em­
mas que mobilizam sua cidadania e cosmovisáo e os convocam a posi­ -cima-do-murismo" estéreis e que só servem ao "sistcmá' (afinal, dar
cionar-se politicamente. Compreender esses modelos, essas maneiras ciência à classe sobre seu posicionamemo político a respeito de uma
diferentes de lidar com a questão, é útil em qualquer circunstância questão qualquer pode ser parte do processo educativo que o professor
- seja agora, em meio a um debate que deve ser vencido e transcen­ põe em curso3); e o risco de omitir interpretações alternativas ou con-
dido sem ambiguidades, seja em qualquer outro momento em que
estejamos envolvidos no esforço coruínuo, sempre em aberto, sempre 2. Silva, Juremir Machado da. Opouco qur: nprmdi 1u1 vidA. Porto Alegre, 15 abr.
2012. Disponível em: dmps://goo.gl!qnYkcf>. Acesso em: 15 abr. 2012. lllog:
em progresso, de compreendermos a nós mesmos e ao fazer docente.
Juremir Machado.
A hipótese é a de que os problemas c questões envolvidos na 3. 2016 foi um ano marcado pelo fent1meno das Ocupações em escolas c univer­
problemática que aqui trazemos, e para os quais oferecemos ttma an­ sidade, marcadamcmc contra ;t Proposta de Emenda Constitucional 21j7, depois
gulaçáo específica, podem ter uma resolução c um encaminhamento 55 (a i'EC do "teto dos gastos"), c contra a Medida Provisória 746 (relacionada à
metodológicos relativamente simples, como veremos a seguir. reforma do Ensino Médio), ambas eventualmente aprovadas - mas, de um modo
geral, em protesto contra a alegada ilegitimidade do governo Michel Temer. As
"Eu acuso" Ocupações, além de trazerem um grau de politi7.ação elevado ao ambiente de es­
cobs c universidade- c talvC'l. inédito no que diz respeito a escolas -, estiío a exi­
gir urna resposta à altura, igualmente politizada (em sentido estrito c amplo) de
Se repararmos bem, veremos que existem basicameme dois ti­ professoras c professores. Se você é um daqueles/daquelas que ensinou, ensinou,
pos, ambos certamente legítimos e de certo modo intercambiáveis, passou uma vida ensinando c agora, mediante uma necessária e sinccr:1 autocrfti­
ca, mais ou menm esqueceu como é que se aprende, verá que bá muitos mestres
I . Como pode ser lido no sire: dutps://goo.gl/llJ UCjlh.
que brotaram paulo-frcirianamente do chão das escolas, das universidades- uma

1 14 1 15
EN�INO oP. HrsTóntA F. Cvnnrc:ua o
IIALFERO C:Aut<>s RmEoRo J•''"'o" l MAlRON Escoouo v.,�Roo (oncs.)

correntes, ou, o que é talve-l pior, de apresentar uma versão barateada, aprisionamento dos estudames na "bolha discursiva''5 do professor.
caricaturada, dessas outras abordagens eventualmente existentes. Ou 'Ji·ata-se, esse, de um dos muitos fios de navalha do trabalho docente.
seja, versões apresentadas de modo a que "saiam perdendo". O autor dessa nota fez parte do grupo docente de uma escola
Pense em uma turma de crianças ou de adolescentes - ou mes­ em que houve um conAito sério entre uma professora de Geografia e
mo, no limite, de adultos -intelectualmente "desarmados" (o que uma turma de estudantes do terceiro ano do Ensino Médio, que teve
nem sempre é o caso, é verdade): eles poderão passar a meramente desdobramentos para além da sala de aula - o relam servirá como
reproduzir as ideias e o jargão correspondente utilizados pelo pro­ exemplo. Em uma aula em que o tema do Aquecimento Global so­
fessor, ou, por ourro lado, poderão rechaçar irracionalmente aquelas breveio, a docente trouxe a informação de que o lPCC, o Painel In­
ideias e jargão simplesmente por "não baterem bem" com sua visão rergovernamental de Mudanças Climáticas, da ONU, garantia, com
de mundo. Em ambos os casos - e este é propriamente o risco -, o 95'Vo de certeza, que o aquecimento global tem como causa principal
professor "perde a mão", e a educação em termos de promoção de a ação humana, sobretudo desde o processo histórico da Revolução
autonomia intelectual4 passa longe, uma vr::z. que o pensamento "cor­ Industrial do século XVIll. Assim, seguiu-se uma aula com base em
rem" sobre tal ou qual discussão, realidade ou ideia já foi "passado" prescrições ecológicas do tipo "Coisas que podemos fazer para salvar
aprioristicamente, na própria concepção da aula. Em vez da liberda­ 0 planeta". Ou seja, a princípio nenhum problema: o objetivo da
de a que a educação almeja, ou pode almejar, estaríamos diante do aula era claro, parecia estar tudo certo com as fontes consultadas c
com a bibliografia, a idcia toda era adequada do ponto de vista peda­
verdadeira mandala de mestres inspirados, conscientes, comprometidos. Seria gógico e no que dizia respeito ao plano de ensino, etc.
bem o momento de respirarmos fundo, esvaziarmo-nos, colocarmos em suspenso
Ocorre, entretanto, que a informação fundamental - aquela do
nossos saberes, deixar de lado diversos preconceitos que :.tinda rondam nossas
concepções c práticas, e nos colocarmo.ç na posição de aprender - em muitos IPCC- que embasava a aula, ainda que constante de um documen­
casos, j:í nán é sem tempo! to do IPCC, havia sido trazida pela professora de um programa de
4. Toda educação, formal ou não, diz respeito a uma coisa só: um aprender :1 ler televisão - o "Fantástico", da Rede Globo - transmitido na noite
de modo progressivamente m:tis sofisticado e qualificado - aprender a ler em anterior c assistido por boa parte dos estudantes. Um grupo de estu­
sentido estrito (o "rexro", seja um poema, um discurso político ou uma equação
dantes, então, interpelou a docente sobre o "resto da história": c os
matemática) e em sentido lato, amplo (a "leitura do mundo"). Trara-se sempre,
em última instância, de um aprender a ler- e de um "di:t-er-se" e dizer o mundo. outros 5%, os que acreditam que o aquecimento global não se deve
E esse "dizer" é individual e é social, e é "cultural". Cada pessoa e c:1da geração à ação humana? E os que defendem que não há um aquecimento
reinrerrog�m o que já foi dito comn parte do processo de dizer de si mesmos c global em curso? E, entre esses, os que acreditam que, ao contrário,
do mundo. A escola (a escola inteira, seu currículo c mérodos também) só justi­
estaríamos vivendo o início de uma nova Era do Gelo - ou seja,
fica sua exisrência se oferecer os meios hábeis para que os primeiros passos neste
estaríamos em meio a um resfriamento global?
aprender a ler e neste aprender a dizer de si e do mundo sejam passos seguros. É
que se rrara de autonomia (a tua voz é a rua voz, mas ela rem de ser conquistada) Tudo isso havia sido objeto da matéria do programa de televi­
e de aprender a viver (a vida c o mundo têm o tamanho de tua capacidade de são, e a parte mais e melhor informada da turma de estudantes - e
leitura, de mobilizar linguagem - podem ser ricos, desmedidamente grandes, a seguir a turma inteira - exigiu "o resto da história". Não examina-
mas...). São reflexões, para o propósito do presente :•rgumento, inteiramente em
consonância com as teses gerais expostas por )laulo Freire em sua Pedagogia da to aqui construído,
5. A noção de bolhas discursivas, usadas para fins do argumen
foi tomada de empréstimo do Lama Padma Samten, em "Medita
autonomia, e na própria trilogia das pedagogias - para n5o f.'llar em sua ohra
mlo a vida" - ver
como um tudo. bibliografia.

116 117
IIAL••no ÚRws Rllleuto )ÍINIOR I MAIRON EscoRSo VAoéRoo (ooocs.) ENSINO nF. �hsTónoA P- CunnlciJJJ)

remos aqui aspectos outros como uma eventual prevenção, seja que t
cionou a subsância denominada ocitocina - hormônio que, entre
natureza tivesse, e se tivesse, da turma contra a professora. Ficare­ outras funções fisiológicas, estaria presente no desenvolvimento da
mos com a coisa em si. O fàto é que ela "fincou pé" na "tese" de sua ligação entre mãe e filho na espécie humana (outras espécies não esta­
aula c levantou a bandeira de que "o aquecimento global é causado vam em pauta). Um estudante fez a observação de que a maternidade
pela ação humana", argumentando, mais tarde e em outros espaços, é uma "invenção" do século XVlll, e passou a argumentar dentro do
que isso, "na prática", levaria a uma maior consciência ecológica conjunto de referenciais da História Cultural. Seguiu-se um debate
e que "nenhum mal, ao contrário, só coisas boas" poderiam advir Natureza versus Cultura, ou Ciência versus Ciências Humanas, ou
desse posicionamento, um posicionamento "mais pé-no-chão". A ainda o de uma visão mais convencional, ou que considera a Ciência,
discussão tomou proporções tiue a levara para fora da sala de aula e da História, da Arqueologia e da Pré-História, versus a tendência a
a turma, esgrimindo os argumentos do "resro da história", "declarou um "tudo é construção social" de um certo discurso (legítimo, bem
guerra", de modo que, a partir daquele momento, a relação com a embasado) da História c das demais Ciências Humanas.
docente foi de mal a pior - até que ela deixou a turma e, eventual­ E ali, o que se perdeu? A oportunidade, talvez, de se migrar para
mente (com essa e outras razões), a própria escola. um lugar epistemológico mais recuado (de que falaremos c a respei­
O que se havia perdido irremediavelmente ali? A oportunidade to do qual argumentaremos a seguir) c observar não apenas as duas
não só de esclarecer os estudantes sobre a complexidade do assun­ "bolhas" discursivas em questão, mas as próprias referências com
w, como a própria oportunidade de mostrar como a ciência fun­ base nas quais elas se crigiram, e as própri:ts condições de produção
ciona, para além da conclusão dos 95%. O que é consenso? O que desses referenciais - isso para não falar da própria história desses
é consenso científico? Como se formam os consensos ciemíficos? O diversos debates e de seus termos. Em vez disso, permaneceu-se em
quanto os consensos científicos são realmente científicos, e o quanto posições entrincheiradas, não dialogantcs.
há de políLica e mesmo de propaganda neles? E, afinal de contas, o
que é ciência? Quer dizer: estamos, nós docemes, constamementc "Eu compreendo"
reclamando de que "não é possível" trabalhar temas mais profundos,
subjaccnres à informação "em estado puro" - no caso, aqui, remas de O professor do tipo "Eu compreendo" (que. como intelectual,
filosofia da ciência, remas epistemológicos e remas afeitos às relações seria inspirado em Edgar Morin e em suas "teses para a educação no
emre ciência e política -, mas, quando a oponunidade se apresenta novo milênio" - e, na verdade, em toda a obra do intelectual francês)
- e, o que é raro, no caso, vinda dos próprios estudantes -, muitas tenderia, ao contrário, não a um:� neutralidade de resto impossível,
vezes nos vemos atrapalhados, sem saber o que fazer e como faremos mas à busca (utópica, provavelmente) de uma espécie de "imparcia­
para explorar pedagogicamente o que a situação nos apresenta. Quer lidade para início de conversà'6. Pondo em "stand by" sua própria
dizer: não dispomos, em muitos casos, dos meios hábeis- inclusive posição particular sobre o que quer que esteja em pauta, sobre rigoro-
emocionais - necessários para lidar com aquilo que está fora de nos­
6. Seria de imens:1 utilidaue, em sala de aula, que nós docentes fizéssemos uma
sos planos de ensino e de aula; aquilo que é inteiramenre imprevisto.
diferenciação simples emrc imparcialidade c neutr:11idadc - a ideia da impossi·
Um outro caso ilustrativo (entre muitos, todos anotados) que
bilidadc c ingenuidade da neutralidade; c a idci:1 d:1 "imparcialidade mcnSdica",
chegou ao conhecimenro do autor dessa nota: em uma aula de Ar­ possível desde que se reconheça os seus limites. É que usar essas palavras indistin­
queologia e Pré-História, na F.:tculdade de História de certa Univer­ tamente, como "sinônimos", como em muiws casos se f.'lz, tem criado problemas
sidade, o professor, F.:t.lando a respeito de Evolução em geral, men- de Jcbate e discussão demais...

IIH 119
I I .r""'"' CA1uos ltiiiEII\O júNIOII I MAifiON �scous1 VALÉiuo (mt<;s.)

O autor dessa nota oferece, aqui, um exemplo advindo de sua


samente qualquer tema, sua intenção pedagógica seria a de reali1�11 ,1
p1 ópria prática docente - neste caso, no Ensino Superior. Trabalhan­
aula de modo a que os estudantes fossem exposros aos vários pomo.,
. do, em uma cadeira de História do Brasil IV, o período pós-redemo­
de vtsra que porventura tenham se constiruído em rorno de derermí
tratizaçáo, e mais especificamente os governos Fernando Collor de
n�do assunto, examinando as lógicas que sustentam esses ponros dt·
Mello e Fernando Henrique Cardoso, tratávamos o tema na pers·
vtsta, sua oonsti�uição histórica e assim por diante, de modo a pro
pcctiva do fim da "Era Var�s" (como o próprio Fernando Henrique
mover o esclarectmento - esclarecimento entendido como necessaria·
Cardoso havia anunciado no discurso de posse de seu primeiro man­
.

mente prév o à tomada de posição - dos estudantes frente à questão.
dato, em 1 de janeiro de 1995) e do Ncolibcralísmo. Em certa aula,
VeJa: nao é que esse professor não tenha uma posição (vir a pare­
trabalhava-se, especificamente, o rema das privatiz.açóes de empresas
_ tem, apesar de tudo, é o risco desse tipo); é que ele enten­
cer que nao
públicas (ou "processo de descstatizaçáo", conforme a linguagem da­
de que a sua posição particular possui relativa desimportância em
· "
queles governos), um dos pilares da década de 1990 no Brasil.
'
sala de aula; que aderir a uma "verdade" · a tttn •
a "boll1a d'tscurstva Para conferir à aula consistência em termos de História Econô­
pode inclusive determinar o fracasso de sua aula, já que o essencial : mica, procedemos a ligações conceituais entre o tema em questão e
para que a educação aconteça, seria f:-!Zer o exercício de, diante de
(1) a reemergência histórica do Liberalismo, na passagem da década
m�titas visóe� alternativas ou concorrentes, tentar alcançar um lugar
de 1980 para a de 1990; (2) a reemergência teórica do Liberalismo
eptstem�lógtco recuado em relação a elas, a partir do qual poderiam
ainda na década de 1930, pouco depois da publicação da "Teo­
ser exammadas as próprias condições de produção e emergência his­
ria Geral do Emprego, do Juro e da Moeda", em 1936, por John
tórica de rodas elas, bem como os termos de sua complexidade c ex­
Maynard Keyncs (o keynesianismo, nos anos 1990, apresentava-se
p�·�ssáo presentes - o que, isto sim, poderia promover um genuíno
- após a Queda do Muro de Berlim e o fim do chamado socialismo
dtalogo, uma negociação em sentido forre, habermaseano, entre as real - como o grande inimigo do novo liberalismo); (3) as obras, au­
muitas hipóteses que estejam se candidatando à verdade "verdadei­ tores e ideais do Liberalismo Neoclássico, do fim do século XIX até
"
ra ,
ainda que provisória7. a crise de 1929; c (4) as obras, autores c ideias, sobretudo de Adam
· ' ·
7. Levar cswdanres, sobrewdo de Ensino Médio, mas rambe'rn umversuartos,
· a Smith, do Liberalismo Clássioo.
uma compreensão desse tipo é uma empresa pedagógica necess:íria, mas exrre� O objetivo dessa auJa, ou desse arco de aulas, era o de compreen­
:
mamen�e di ícil É preciso, muitas vezes, "desconsrruir" (aqui n:io no senrido
.
der o fenômeno das privatizações, c o discurso que o apoiava, desde
de Demcla) tnformações e elemenros de informação trazidos par 3 s:da de aula, a dentro da perspectiva liberal, ou ncolibcral. isso seria contestado em
s�l�remdo em um momento em que não apenas a grande mídia, mas as redes 50•
C t a ts
- e cada VC"l mais as redes sociais - estão a nutrir os estudantes (assim corno
uma segunda aula, ou em um segundo arco de aulas, quando seria
os d�lccntcs) de rodo tipo de "discurso". Nurrir-nos de informação pela grande
,
reapresentado o mesmo tema segundo a ótica de seus críticos - em
.
m1d1a parece detx:•r-nos com uma visão de mundo torca, ou mais precisamente resumo, segundo a ótica de todo o espectro à esquerda de Collor e de
cntorwda, em raz:ío das escolhas e recortes editoriais ideologicamente orientados Fernando Henrique naquele momento - c seguindo o mesmo pro­
� ��
\IUC sn�< suhmcridns. De nutro lado, nutrir-nos de informação pela mídia
cedimento de traçar o percurso histórico da ordem de argumentos.
alternativa e pelas redes sociais pode deixar-nos com uma vis:ín de mu ndo reta
demais, em nt·táo das escolhas e recortes que fnernos tendendo an célehre "v'1és Um grupo de estudantes, ao fim da aula, no entanto, antecipou­
de confirmaÇáo" - ·• , te monta um prato que
, gen . "fecha, com nossa.� convicçôes e -se, e se disse insatisfeito e desconcertado porque "jamais esperava"
• •
tdcnudade, que vão se enrijecendo submetidas a uma muitas vezes f: • � . 1 m.uor
·,ls·· ,·
, " que o autor desta nota "defendesse o capitalismo" (o que, para fins
d' : ' �
· : t.ver t'dade É urg nte �ue esse tipo de discussão chegue às salas de aula. O que
"· ,
do argumento aqui exposto, dispensa comentários ... ).
f.net . A resposla nao é sunples, mas c preciso começar a compô-la.

121
120
HALFERIJ CARLOS RJU�IIlO júNIOI\ I MAIRO" E:.CORSI VAt�IUO (ORGS.)

io do futuro .
· a educarl
' nos ' .- I I. ed.
necessa
MOIUN, E. Os sete saberes
Dois parágrafos à maneira de conclusão
São Paulo: Conez, 2006.
io de
. A religaçáo dos saberes:
o desafio do século XXI. 7. ed. R
Gostaríamos de pedir licença e dizer, aos que discutiram e dis­
curem com boa qualidade a questão do Escola Sem Parrido c ques­ Janeiro: l\crtrand Brasil, 20 I O.
ento.
tões correlatas, o seguinte: Sabem quando a moldura melhora um . A cabeça bem-feita: repe
nsar a reforma, reformar o pensam
quadro? Pois é: o projeco serviu como pretexto para muitos debates � Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 201
O.

re: Su-
de excelente qualidade, mas já é hora de rechaçá-lo sem hesitação complexo. 4. ed. Porto Aleg
-
· Introdução ao pensamento
e de uma Vtl por rodas - bem como à atmosfera política em meio lina, 201 1.
à qual ele vingou -, e deslocar o debate, f.nê-lo migrar (dando ao Porto Alegre: Artmed, 2009.
Pl NZAN l , A. Habermas.
quadro uma outra moldura) para um lugar epstemológico menos i
ópolis, 2001.
SAMTEN, P. Medita ndo a vida. São Paulo: Peir
venenoso, menos "ovo da serpente ... E, então, seguir a conversação
"

· 1a. 1'o rto Alegre 1 5 abr. 201


2.
I.t na Vtl
com mais serenidade conceitual e pedagógica. SILVA, J. M. O pouco que aprelll . '
201 7. Bl ,.
og.
nYkcf>. Acesso em: 1 0 Jan.
Não se trata, aqui, de propor "ti pos ideais" weberianos, e nem Dispun ivcl em: dmps://gou.gllq
de esquecer que além dos dois tipos examinados há ourros, muitos Juremir Machado da Silva.
re:
A verdade em marcha. Porto Aleg
outros- e, fundamentalmente, é cla­ ZOLA, É. J'accuse! (Eu acuso)
-
outros, virtualmente in1nitos
1
ro que essas tipificações são, em última análise, redutoras. Mas que L&PM. 2012.
nos são t'1teis, ah!, isso são. Especialmente para termos elementos
que lancem luzes sobre o debate acerca da liberdade, imparcialidade
e "neutralidade" em sala de aula para além do que comumente se
escreve e se diz - e, principalmente, para além do escopo medíocre
do Programa Escola Sem Partido. Que o leitor/leitora desta nora dê
uma boa olhada à sua volta e diga se não ...

Referências

fOUCAUD: M. A ordem do discurso: aula inaugural no Collcge de


Prance, pronunciada em 2 de dezembro de 1970. 1 1 . ed. São Paulo: Loyo­
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entender o impeachment e a crise política no Brasil. São Paulo: Boirempo
Editorial, 2016.
MORJN, E.; KERN, A. B. Terra Pátria. Porco Alegre: Sulina, 2005.

123
122
7
FORMAÇÃO INICIAL D O PROFESSOR DE
HISTÓRIA E ESTÁGIO SUPERVISIONADO:
REFLEXÕES SOBRE A UNIVERSIDADE
FEDERAL DA FRONTEIRA SUL E A
UNIVERSIDADE D O MINHO

Halferd Carlos Rib�iro Júnior


Universidade Federal da Fronteira Sul- Campus Erec/Jim

Atualmente vivemos um amplo processo de mudanças. Dimi­


nuição dos investimentos na economia pelo Estado, da arrecadação
de impostos; o desemprego; a recessão econômica. Paralelamente, a
prcsidenta eleita e o seu impeachment, colocando em prova a estrutu­
ra legal do país, evidenciando a fr:�gilidade d:t democracia brasileira.
Diante desse cenário, o Brasil volta a olhar para si mesmo, para a
(re)coufiguração da sua memória, da seleção dos conteúdos conside­
rados socialmente válidos a serem transmitidos na Educação Básica, e
para a política de formação de professores. Na Educaç.'ío Básica, o cur­
rículo está sendo amplamente discutido, a partir da proposta da Base
Nacional Comum Curricular, da Escola sem Partido, da Reforma do
Ensino Médio; no Ensino Superior, as universidades devem adequar
as licenciaturas ao Parecer n" 02, do Conselho Nacional de Educação,
aprovado em 9 de julho de 2015. Assim sendo, vivemos um :tmplo
debate sobre a escola, o currículo c a fOrmação de professores.
Compreendemos que o currículo é lugar de disputa social, as
escolhas presentes em uma proposta refletem a luta pelo poder e in­
teresses de grupos, o que inclui a comunidade de especialist.1s, c que
tal poder estabelece o direito à memória social. Nessa disputa, temas
são selecionados, estratégias metodológicas são sugeridas, para que o
estudante tenha acesso a determinados saberes c prátic.<s educativas
que contribuam para sua compreensão e ação social, f.worecendo a

125
ENSINO uP. l llsTÓIIIA F. CuRRicuw

construção de determinados laços de perrencimenro identitários e Uruguai, localizada no Noroeste do estado do Rio Grande do Sul,
de posturas pessoais na dinâmica social. em zona de fronteira com o estado de Santa Catarina.
Diante dessa dinâmica, o presente texto pretende apresentar re­ Os relatos dos alunos descreveram que o ensino de História des­
flexões sobre a formação de professores, e especialmente da área de sa região é marcado pelo uso do livro didático como o principal, c

História, do Brasil c de Portugal, o currículo pensado e praticado, so­ às vezes o único, recurso didático adotado pelos professores, tendo
bretudo do aspecto fundamental para a constituição do ser docente, como estratégia metodológica a realização da leitura, de maneira
os estágios supervisionados; ainda, trabalha com dois projetos espe­ individual ou coletiva (em que cada aluno faz a leitura em voz alta
cíficos para formação de professores de História, o da Universidade de um parágrafo do texto), a cópia ou anotações dos textos c a reso­
Federal da Fronteira Sul, campm Erechim, e o da Universidade do lução dos exercícios. As aulas expositivas furam consideradas inova­
Minho, em Braga. Para a realização desse objetivo específico, reali- doras, c raros foram os professores lembrados de maneira positiva,
7.amos estudos da legislação, dos projetos políticos pedagógicos dos devido à estratégia metodológka adotada e aos conteúdos históricos
cursos, mobilizando esse conjunto de informações para fundamentar trabalhados. A principal lembra11ça referenciada foi a estratégia me­
a comparação dos estágios supervisionados nos dois países. todológica pautada no uso do livro didático, e paradoxalmente a
A minha preocupação acadêmica com a relação entre a forma­ ausência de lembranças sobre os conteúdos históricos abordados.
ção de professores e o estágio ocorreu a partir de 20 13, ao ser no­ Para compreender a dinâmica do ensino de História na con­
meado para assumir o cargo de Professor do Magistério Superior temporaneidadc, os relatórios e os momentos de exposiç.'io da expe­
na Universidade Federal da Fronteira Sul (UFFS). Apresentavam­ riência dos estágios foram as nossas referências. De acordo com os
-se diante de mim alguns desafios para a fundamentação da minha relatos, a estratégia metodológica do uso do livro didático é prepon­
prática em sala de aula: Em qual realidade escolar a UFFS esta­ derantemente adotada pelos professores, argumentando que a aula
va inserida? E, especificamente, como era a postura recorrente dos de história é praticamente sinônimo do uso do livro didático. Não
professores de história da Educação Básica dessa região? Qual era a podemos compreender essa dinâmica sem reconhecer a situaç.
'io da
memória escolar dos graduandos sobre o ensino de História de sua carga horária docente, o professor de História atua em uma grande
trajetória escolar? Diante dessa dinâmica, como comribuir para a quantidade de turmas, e não raro nos períodos: manhã, tarde c noite.
formação do professor de História? Qual o papel que o esdgio deve Os impactos dessa estratégia metodológica de ensino têm surti­
desempenhar diante dessa realidade? do pouco efeito na formação social e cidadã do indivíduo, pois não
Para compreender a realidade escolar dessa região em relação à deixaram lembranças significativas na memória escolar dos alunos
Educação Básica sobre o ensino de História, realizamos atividades que mencionamos, eles recordam da estratégia metodológica adota­
em que os acadêmicos registravam e expressavam oralmente a sua da, mas não dos conteúdos trabalhados e apreendidos. Paradoxal­
memória escolar. Para execuç.'io dessa proposta, foram realizadas ro­ mente, nos debates acadêmicos sobre o ensino de História, a postu­
das de conversa em que os àlunos possuíam liberdade para expressar ra do professor e o ensino de História idealizado tem como foco a
a sua experiência escolar, tal atividade foi realizada entre junho de construção de uma estratégia metodológica em que seja produzido
2013 e agosto de 2016, com duas turmas da Licenciatura em Pe­ o saber histórico em sala de aula, situação distinta da real.idade esco­
dagogia e seis turmas da Licenciatura em História, contando com lar da Educaç.
'io Básica em que a UFFS está inserida, o que amplia
aproximadamente 250 alunos, provenientes da Microrregião Ere­ os desafios e demandas para a formação inicial do professor, c mais
chim. Tal região é composta por 30 municípios da Região do Alto especificamente para o estágio.

126 127
• •••FERD UklO> RIREIRO JúNIOil l MAIION ÚCORSI VALÉIUO (ORGS.)
ENMNO uE I J1s'1ÓUIA I! Cuuukuu)

A publicação de artigos sobre a formação do professor de Histó­


tória, professores c pesquisadores articularam o construtivismo com
ria no Brasil tem demonstrado que, ao longo dos anos, há uma sepa­
diferentes correntes historiográficas, elaborando outras propostas
ração entre a formação do historiador c a do professor, desse modo,
para o ensino de História.
o professor é compreendido apenas como facilitador da transmissão
Diferentemente de começar as aulas de História com os heróis
de saberes, e não produtor de conhecimento. No entanto, tem se
mais remotos da antiguidade, propunha-se partir da história de viela
empreendido uma política de formação de professores, que procura
dos alunos; em vez de seguir religiosamente a cronologia, discutia-se
articular a docência com a pesquisa.
o uso de temas significativos para os alunos, partindo do preseme
O livro intitulado Espaços de Fonnaçáo do Professor de Histó­ para depois relacionar com outros momcncos históricos e espaços
ria, organizado por Emesta Zamboni e Selva Guimarães Fonseca, é
geográficos distintos.
composto por artigos que discutem a formação inicial e continuada
Desse modo, os remas e as formas de se ensinar História se
de professores de História, apresentando reflexões sobre o Brasil,
muldplicaram, valorizando a utilização de documentos históricos,
Portugal, Espanha e Argentina. O artigo de autoria de Ernesta Zam­
entrevistas e imagens como recursos de informação, para os profes­
boni e Illo Miglio de Mesquita aponta que, no Brasil, a principal
sores e os alunos não ficarem restritos ao uso dos livros didáticos;
preocupação das graduações em História era a transmissão dos sabe­
muiros professores produziram o seu próprio material didático, pois
res da ciência de referência em detrimento da formação pedagógica
estavam preocupados com a qualidade de ensino e com uma nova
do professor nos anos 70 do século XX. A formação do ser docente prática pedagógica.
restringia-se ao estágio c às disciplinas pedagógicas que eram realiza­ No bojo dessas discussões, os alunos deixaram de ser um agente
dos na Faculdade de Educação, e não na própria graduação em His­ passivo no processo de ensino e/ou aprendizagem, ao mesmo tem­
tória. Configurava-se, assim, a situação d e 3 ou 4 anos d e estudos po em que foram considerados sujeitos históricos. Novos objetos e
de conhecimento específico, e mais 1 ano de estudo de disciplinas novas ahordagcns foram discutidos para ingressarem no currículo
pedagógicas para a formação do professor. escolar, como a história dos excluídos e ela classe operária. Assim
sendo, o ensino de História foi transformado para atender a neces­
Predominava a concepção de cursos de licenciatura basea­ sid:tde de construção da sociedade democrática.
dos na transmissão de conhecimentos históricos e em téc­ As discussões sobre o ensino de História não ficaram resLriras à
nicas pedagógicas trabalhadas pelas didáticas e no estágio transformação da prática pedagógica, mas diversos eswdos foram
supervisionado [. ..J o saber-fazer prático é submetido hie­ construídos com o inwiro de pensar o sistema ofici:1l de ensino e
rarquicamente ao como fazer da ciência, pois o professor
seus recursos didáticos e pedagógicos. Na década de 1990, a preocu­
formador ensinava o futuro professor a trabalhar com as
pação não era mais criticar o sistema de ensino, mas, sim, construir
ferramentas mais usuais: livro, quadro e giz. (Zamhoni;
uma nova escola de qu:tlidade, grantita, p:tr:t todos e, principalmen­
Mesquita, 2008, p. 133)
te, adequada para a sociedade democrática.
Nesse sentido, novas reflexões foram estimuladas c formuladas
1àl proposta fundamentava uma formação docente e uma prá­
com o inttúto de inovaç.'ío do conhecimento histórico, aprofundan­
tica pedagógica que estava preocupada apenas com a transmissão
do as discussões dos anos 1980. As propostas, ames marginalizadas e
de conhecimentos para os alunos, na memorização de fatos, datas e
consideradas sem envolvimenro direto com a luta pela melhoria da so­
heróis. Com o objetivo de deslocar essa proposta do ensino de His-
ciedade, ganharam mais espaço no debate ac1dêmico, o saber histórico

128
129
I IAI.rMII CAIU,os H1nr.1110 JúNIOJ\ I MAIIION E.
�COJ\SI VAJ.f.lll<) (on<Js,) ENSINO DF. I llsTóniA I! Cuuulc111 o

escolar teve suas abordagens rediscutidas, sua concepção de história, História, a preocupação central incide na formação do his­
de tempo, de acontecimento, de sujeito histórico e de seus conteúdos. toriador. A ausência, a omissão é a formação de profe.�sores
Assim sendo, a partir da década de 1980, no Brasil, o ensino de de história. Com relação a uma formação do historiador­
História passou por longos debates, que promoveram a transforma­ -professor para um mundo multicuhural, o documento
ção Ja concepção de ensinar História; em vez da prática ped:lgógica também silencia. (Fonseca; Couro, 2008, p. 108)
pautada na transmissão de saberes c na memorização, construiu­
-se a concepção de produção do saber histórico em sala de aula, Ainda, em maio de 2000, o Ministério da Educação encami­
implicando no questionamento da formação inicial do professor nhou para o Conselho Nacional de Educação uma proposta para a
de História. Diante desse cenário, após a Lei de Diretrizes c Bases construção das diretrizes para a formação do professor; o Conselho
da EduCiçáu n° 9394/96, era necessária a elaboraç.1o de urna nova Nacional de Educação monrou uma comissão com representantes
proposta curricular para a formação inicial do professor de História das câmaras da Educação Básica c do Ensino Superior, para analisar
que estivesse de acordo com as mudanças instituídas pela lei c pelas tal proposta. De acordo com Fonseca c Couto,
reOexóes sobre o ensino.
O artigo de Selva Guimarães Fonseca e Regina Célia do Cou­ A proposta de diretrizes também foi suhmcrida à apreciação
da comunidade educacional em cinco aud iências pllblicas
to, publicado no livro E s paços de Forrna�áo do Professor de História,
regionais, uma reunião insdrucional, uma reunião técnica e
discute o processo de formação do professor de História no Brnsil a
uma audiência pública nacional. Em 8/5/200 I, a Câmara
partir dos anos J 970 do século XX, e os dilemas c desafios do início
de Educação Superior aprovou as Oirel 'fi'Les Curriculares
do século XXI. Argumentam que, logo após a Lei de Diretrizes c Nacionais para a Formação de Professores da Educação Bá­
Bases da Educação n° 9394/96, em 4 de dezembro 1997, o Minis­ sica, em nível superior, curso de:: licenciatura, de graduação
tério da Educação lançou o Edital n° 4 convocando as instituições plena. (Ponseca; Couro, 2008, p. 1 1 1 )
de ensino superior para a construção de propostas de rcformulação
das graduações. Entre junho c novembro de 1998, a Comissão de Dessa forma, institucionalizava que a formação do professor
Especialistas de História do MEC, com representantes da Anpuh deveria ocorrer por meio de licenciatura plena, em conformidade
(Associação Nacional de História), reuniu-se para a elaboração das com a Lei de Diretrizes e Bases da Educação aprovada em 1996,
dirctri7.CS para as graduações em História. Em 3 de abril de 200 l , alterando definitivamenre a concepção de licenciatura curta para
a Câmara de Educação Superior aprovou por unanimidade as Di­ a formação de professores que foi construída durante a Ditadura
retrizes Curriculares Nacionais dos Cursos de História. Segundo as Militar no Brasil. Ainda, as Diretrizes Curriculares Nacionais para a
autoras, esse documento tem como objetivo central a formação do Formação de Professores da Educação Básica pressupõem a constru­
historiador em detrimento do professor de História. ção do professor-pesquisador, capaz de compreender a realidade que
o cerca, com domínio dos conhecimentos da ciência de referência,
O texto enfatiza a formação de um profissional qualificado aproprie-se do uso das tecnologias, c seja capaz de desenvolver estra­
para o exercício da pesquisa, em consonância com as no­ tégias metodológicas eficazes de ensino, articulando, assim, saberes
vas tecnologias, que domina a competên cias c habilidades
práticos, específicos, pedagógicos, psicológicos.
para o exerdcio da profissão de historiador c seja capaz de
As Diretrizes Curriculares Nacionais para os Cursos de História
atuar no mundo glubalizadu. Nas D iretrizes dos Cursos de
c as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Formação de Profcs-

130 131
I IAr.o•omn CAJu.m l\1nr.mo júNoo� I MAo �oN Elconso VAo.F.noo (onGs.)
Es:>INO ue. l las'L ÓUIA l! CunutClll o

sores da Ed ucação Básica definem os fundamentos, a carga hod­


histórico. Por fim, o Estágio Curricular Supervisionado IV é divido
ria mínima para as disciplinas de domínio específico, de formação
em 30 horas de aulas teóricas, 1 5 horas de preparação de aulas para
integra] do cidadão, dos fundamentos da didática, das atividades
o Ensino Médio, 15 horas de regência no Ensino Médio, 30 horas
curricu lares complementares e dos estágios curriculares obriga tó­
para o desenvolvimento do projero de pesquisa e intervenção, e 30
rios. Cabe, a cada instituiç.�o de ensino superior, elaborar o Projeto
horas para elaboração do relatório de pesquisa didático histórico.
Político Pedagógico dos cursos, que são avaJiados periodicamente
Para organização dos estágios em que tenho amado, adorei a
pelo Ministério da Educação.
perspectiva de que o estágio de observação deve dar subsídios à
compreensão da realidade em que os alunos csrão inseridos para a
Universidade Federal d a Fronteira Sul
fundamentação da prática pedagógica do esrágio de regência. Nesse
sentido, as reflexões de Conceição (20 1 O), Lim a (20 13) e André
Atualmente, a Licenciatura em História da UFFS do campus
(2005) são mobilizadas para a compreensão da realidade escolar e da
Ercch im é organizada por meio da sua Matriz Curricular aprovada
relação da juventude com a cultura contemporânea.
em 2012. A graduação é composta por uma carga horária de 3 mil
A dissertação de mestrado de Juliana Pirola da Conceição,
horas, dividida entre disciplinas do domínio específico, conexo e
defendida em 2010 na Universidade Federal de Santa Catarina
comum, ainda no interior dessa carga horária estão distribuídas 480
(UFSC), investigou a consciência histórica latino-americana dos
horas de estágio, 240 horas de atividade curricular complementar e
alunos do Colégio de Aplicação da UPSC que cursavam a discipli­
400 horas de prática como componente curricular, distribuídos em
na Esrudos Latino-Americanos na 7" série em 2009. Para execução
9 semestres. O estágio curricular supervisionado é cUstribuído em 4 dessa pesquisa, aplicou um questionário sociocconômico-cultural
disciplinas de 8 créditos, o que corresponde a 120 horas-aula para de tipo survey a fim de mapear o perfil e as áreas de interesses dos
cada disciplina, a partir do sexto semestre.
alunos, observou as aulas durante o período letivo 2009, e aplicou
O Estágio Curricular Supervisionado I é composto por 30 horas atividades para os alunos elaborarem narrarivas sobre os países c a
de aulas teóricas, I O horas de observação geral da escola, 30 horas de
cultura latino-americana, que serviram de b:�sc docu me ntal para a
observação de aulas do Ensino Fundamental, 20 h oras para elabora­
análise de sua interp retação. O ta r bal ho de Conceição serviu como
ção do projeto de pesquisa e i n tervenção em ensino de História c 30
lastro para a observação, coleta de dados, análises e imcrpretações
horas para elaboração do relatório de pesquisa didático histórico. As da realidade escolar a fim de possibilitar a consrrução do projew
120 horas do Estágio Curricular Supervisi onado 11 são distribuídas de intervenção pedagógica, bem como :1 organização e metodologia
em: 30 horas de aulas teóricas, 1 5 horas de preparação de aulas para das aulas que seriam ministradas durante o estágio .

o Ensino fundamemal, 1 5 horas de regência, 30 hora.� de desen­ A re.�e de dourorado de Elaine Aparecida Barreto Gomes de Lima,
volvimentO do projew de pesquisa e intervenção, e 30 horas para defendida em 2013 na Universidade E..� radual de Campinas (UNI­
elaboração do relatório de pesquisa didático histórico.
CAMP), teve como objetivo estudar a rebç.áo dos alunos e professores
A carga horária do Estágio Curricular Supervisionado l l l é com­ com os artef.·uos da cultura contemporânea e a interrex[Ualidade da
posta por 30 ho ras de aulas teóricas, 1 O horas de observação geral da aula de História. Para a reali·L.açiío dessa pesquisa Lima aplicou ques­
,

escob, 30 horns de observação de aulas do Ensino Médio, 20 horas tionário socioeconômico, observou as :mbs de l listória c entrevistou
para elabo mção do projeto de pesquisa e intervenção em ensino de professores, em duas escolas da Rede Municipal de l tatiba, região me­
História, e 30 horas de elaboração do relatório de pesquisa did�í.tico tropolitana de Campinas, no est:1do de São Paulo. Os resultados pro-

132
LB
liAI ri'.RII CAiu os ltJUf.Jflo júNJC)II I MAIItnN EsconSJ VAJ.�IliO (nnc:s.)
EN>INO or I IJ:>LÓIIIA E Cun•íc;liLú

duzidos por Lima demonstraram que a televisão, o cinema (filme


�).
No âmbito do Processo de Bolonha e::m Portugal, foram
a internet, principalmente as rede� sociais e para a comunicação, sáu
e::xtinras as lice::nciaturas t:m ensino de 4 ou 5 anos que:: con­
os principais anef.
nos utilizados pelos alunos e professores, no entan­
feriam habilitação para a docência e foram criados os mes­
to, dificilmente foi perceptível um impacto significativo nas aulas de
tmdos em ensino, com a duração de 1 a 2 anos (60 a 120
História observadas pela pesquisadora; tal circw1stância instigou os ECfS), em curso desde 2008/2009. A formação inicial de
estagiários a olhar essa dinámica para o planejamento das atividades educadores e pwfessores passou a conferir o grau de mes­
que seriam desenvolvidas com os alunos. tre, sendo que o acesso a estes novos cursos exige formação
A aplicação do sutvey, a produção de dados quantitativos sobre académica anterior nos domínios de docência, obrida em li­
o perfil dos alunos, é cotejada com a observação da comunidade, da cenciaturas de:: 3 anos. A formação educacional e a iniciação
escola e dos alunos em ambienrcs formais e não formais de ensino, a à prática profissional passam a ocorrer sobretudo uo mes­

relação dos alunos com os artefatos da cultura contemporânea, com trado, contrariamente ao que acontecia no âmbito das an­
teriores licenciatums em ensino, que proporcionavam uma
base nas reflexões da etnografia da prática escolar. A produção desses
formação integrada nas diversas componente.� disciplinares
conhecimentos é fundamental para o estágio de regênci<�, a fi m de
e educacionais. (Vieira e1 ai., 2013, p. 2.64 1 )
fundamentar a construção das scquências did�l.ticas.
No estágio de regência, as discussões teóricas relacionam-se com
A alteração d a política d e formação de professores deslocou o
a organização das sequências didáticas que devem ser ministradas
processo específico de preparação para docência, em vez de um cur­
pelos acadêmicos, tendo como pressuposto que o ensino de História
so de graduação que integra à ciência de referência com a docência,
deve pautar-se pela utilização dos documentos históricos em sala
a graduação restringe-se a ciência de referência, e em estudo de pós­
de aula para produção do saber histórico escolar. São priorizadas
-graduação é que ocorre a formação do professor.
as temáticas, o ensino de História e a cultura material, documen­
tos escritos, museus, música, literatura, cinema, fotografia. Ainda,
O pressuposto para a construção do mestrado em ensino é a pes­
são realizados debates sobre os Parâmeros Curriculares Nacionais, as
quisa como fundamento ela prática docente. Desse m o, os sab r �� ��
,
específicos devem ser articulados com os saberes ped:�gogJcos e a p!atl­
Diretrizes Curriculares para a Educação Básica, a inserção no currí­
cu.lo da cultura afro-brasileira c indígena e estratégias de avaliação. ca científica, a fim de fimdamenrar a compreensão da realidade escolar

Desse modo, os alunos têm acesso aos debates sobre a incorporação em que os futuros professores atuarão, promovendo a consu·ução de

de diversas linguagens no ensino de História. estratégias metodológicas adequadas às demandas de seu púhlic . �
Além da carga horária obrigatória do mestrado em ensmo, o
Universidade do Minho mestrando deve apresentar e defender em sessão pública o relatório
de estágio, composto pelo estudo da realidade es col ar e o relato da

. A Universidade do Minho foi fundada em 1 973 na cidade de experiência da prática de ensino.

Braga, em Portugal. Atualmente, a formação do professor de Histó­


Este cenário legislativo induz uma nova forma de perspec­
ria ocorre por meio da implantação do Decreto-Lei n° 43/2007, a
tivar 0 estágio, nomeadamente pela valori'lação da relação
partir do Tratado de Bolonha, que redefiniu a política de formação
entre ensino c investigação c pela obrigaroriedade de produ­
de professores.
ção de um rclat6rio a defender em provas públicas. Perante
a necessidade de desenhar um novo modelo de est:ígio, as

135
l iA• •r.nn CAnl.os R'"""" 1""'"" I MAinor; Escons• VAt.F.niO (oncs.)

instituiçúcs de formação confrontar;un-se com vários desa­ rervençáo concebidos por referência a uma visão democrá­
fios [ . . . j. (Vidra ct aJ., 2013, p. 2642) tica da educação escolar [ . . . ] . (Vic::ira, et ai., 2013, p. 2.644)

Vieira aponta dois desafios para a elaboração dessa proposta de Essa experiência, desenvolvida a partir de 2008, que tem uma
estágio: I) a confecç:1o de um modelo de estágio, em uma cultura relação direta entre a formaçiio inicial do professor e a prática peda­
escolar tradicionalmenle sem modelo de estágio; c 2) a fundamen­ gógica da Educação Básica, articulou a pesquisa com a construção
tação de uma epistemologia da práxis pautada na articulaç.ío do da intervenção pedagógica. Tal princípio rem sido adorado e per­
ensino c da pesquisa. O encaminhamento de reflexões a panir des­ seguido para o estágio c a formaçiio de História da Universidade
ses des<lfios possibilitou a formatação do estágio curricular supervi­ Federal da Fronteira Sul.
sionado do mestrado em ensino, tendo como pressuposto "educar São evidentes as diferenças entre os dois sistemas de ensino, no
investigando e investigar educando". Em síntese: Brasil tradicionalmente há uma separação entre a formação do his­
toriador e a do professor de História, ficnndo em segundo plano a
No caso da Univcrsidade do Minho, os dois desafios foram docência, e é valorizado positivamcnrc o historiador em detrimento
cquacio nados aquando do desenho do modelo de estágio, do professor de História, como percebemos a partir da bibliografia
procurando-se;: criar condições para que a investigação pu­ apresentada. Para superação dessa dicotomia, no Brasil, foi adotada
desse ocupar um lugar de relevo na prática c na elabora­ uma política de formação que articula o pesquisador com o profes­
ção do rci:HÚri(>, no qu;1dro de uma formação reflexiva. sor, a graduação em História da Universidade Federal da Fronteira
Foi poss ível consensualizar um mo delo comum a todos Sul é fruto dessa política e desse debate.
os mestrados em ensino, onde se ex plicitam pressupostos Em Portugal, a questão da formaçiio do professor de História
e pri ncípios de orientação reflexiva, e onde se prevê uma ou do historiador foi resolvida de outra maneira, com a formação
articulação estreita entre a prática pedagógica e o relatório inicial de historiador, discutindo os principais temas da ciência de
final, ambos focados num "projeto de intervenção pedagó­ referência com duração de 3 anos, c a formação do professor ocorre
gica supervisionada" yue articula investigação e ensino. O por meio do mestrado de ensino, com duração de 2 anos, rendo
modelo pretende conferir à prática pedagógica uma natu­ como princípio a pesquisa e a docência, em estudos de pós-gradua­
reza transformadora e emancipatória e podemos dizer que çiio, conferindo mais prestígio social para o docente.
se aproxima da criação de um "terceiro espaço" {Zeichner,
O aprofundamenro dessas questões deve ocorrer por meio da
20 10), de nature-La. multidisciplinar c tcórico-pr:itica, onde
participação das atividades de estágio c do acompanhamenro das
os futuros ed ucadores e professores devem educar investi­
aulas do mcstrando em ensino em Portugal, a fim de perceber o
gando e investigar educando, e onde a ação educativa en­
funcionamenro dessa proposta de formação do professor. .Estudar a
volve a cuuflut:ncia de saberes disciplinares e educacionais,
cxperienciais e teóricos, substantivos e processuais. Nesta mesma problem;ítica para a formação do professor de História, no
perspctiva, o estagiário é entend ido como um consumidor
Brasil e em Portugal, contribuirá com a construção de reflexões im­
crítico c produtor criativo do conhecimento c a supervi­ portantes para o enriquecimcnro do principal debate que o sistema
são pedagógica deverá assentar nos pri ncípim da i ndagação de ensino brasileiro enfrenta na acualidade, a organização curricular
crítica, intervenção crítica, democraticidadc, participação c da Educação Básica e a reesrruntraçiio das licenciaturas.
emancipação, apoiando o desenvolvimento de planos de in-

136 l;l7
l iA� ' ''"" CA�u .os R1111'.1110 jtiNI<)It J l'viAIIlON E
sconsr VAr.t.nro (oncos.)
EN�INO u 1:. l (J�TÓIHA u Cunu(C\11 o

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138 139
8

A COMPREENSÃO DO TEMPO PARA O


DESENVOLVIMENTO DO PENSAMENTO
HISTÓRICO: UM ESTUDO COM ALUNOS
PORTUGUESES DO 1o CICLO DO ENSINO
BÁSICO•

Anabela Costa
Instituto ele t'tluctlftÍO, Univenidade do Nfinho

Clâria Solé
lmtitulo de l:'dtWI(iill, Universidade do Minho

Introdução

A investigação que se apresenra resulta da implementação de um


projeto investigativo de intervenção pedagógica supervisionada, que
se desenvolveu no âmbiro do pla no de estudos do Mestrado em En­
sino do 1 o c 2° Ciclo do Ensino Básico da Univc::rsidade do Minho.
Procurou-se, com a concrcrizaç.'io do projeto, comprccnder de que
modo as crianças desenvolvem noções de temporalidadc, que dificul­
dades evidenciam e em que medida a urilizaç.'io de estratégias diversi­
ficadas e atividades desafiadoras promove o desenvolvimenro da com­
preensão temporal e, consequenremenre, do pensamenro histórico.
O projew foi desenvolvido numa escola do 1 o Ciclo do Ensino
Básico e numa turma constituída por 1 9 alunos do 2° ano de esco­
laridade, com idades compreendidas entre os 6 e os 8 anos.
A necessidade:: que se constatou da realização de atividades que
incitassem o desenvolvimento de conceitos de tempo junto das
crianças da turma participante foi notória, de/ide o período de ob­
servação que antecedeu a implementaçáo do projeto. Verificamos,

I . 1l1is work is fundcd by CI Ed - Rcs�:m.:h C:cmrc 011 Educarinn, l11srituto de


Educação, UMinho, rhrough narional fu11ds, of PCT/MCTES-PT.

141
flrnFJnn júNTOI\ I tvfAJRON :.scon.s1 �\LF,IUO (nnG�.)
EN;�NO "� llrnóm• 11 Cunnlcur.o
ll.�r,IIJifUJ CAnto�

em vnrios momentos de diálogo entre a turma e a professora coope­


Enquadramento Teórico
raJlte, que os alunos evidenciavam dificuldades relativamente à lo­
calização temporal e demonstravam um conhecimento pouco con­
O conceito de tempo é atualmente indispensável à vida em so­
solidado de noções temporais, nomeadamente tmidades de medida
ciedade, no entanto, o seu caráter plurissignific.1tivo c polissêmico
de tempo. Paralelamente a essas constatações, atendeu-se ao c.'trátcr
acentua a dificuldade em defini-lo, pois csre pode ser entendido de
primordial do conceito de tempo no ensino d a História e, simulta­
acordo com várias perspectivas, segundo a époc.1, a sociedade ou a
ne:unente, à naturez:t integradora da área curricuJar de Estudo do
área de conhecimentos, como afirmam Pagês e Sanristeban (2010,
Meio, que integra várias disciplinas cienúficas, permitindo a adoção
p. 282), "no existe una única percepción del tiempo, sino una gran
de uma prática de cariz interdisciplinar inerente à metodologia do
divcrsidad de experiencias y de represenracioncs".
presente projeto. Salienta-se, ainda, a presença do conceito de tem­
Rüsen (2007) entende o conceito de tempo no âmbiro do estu­
po nos documentos que definem o currículo e orientam a pdtica
do da sua relação com a humanidade, permitindo uma compreen­
pedag6gic:�, como o Programa de Estudo do Meio (ME, 200'Í), o
são intcrgeracional da vida. De :�cordo com Riisen (20 16a, p. 26),
Currículo N:1ci0n:1l do Ensino Básico e Competências Essenciais
a aprendizagem histórica é "um processo mental de adctuirir com­
(200 1 ) e o Programa de Matemática (MEC, 20 13).
petências histórica através do processamcnro da experiência da mu­
O projeto integra uma componente investigativa, através da qual d:�nça temporal do mundo humano no passado". Associa a aprendi­
se procurou dar resposta às seguintes questões: 1) Como constroem
zagem histórica a "aprender a temporalizar a humanidade" (p. 20),
os alunos noções de tempo físico ao nível do sistema convencional
mas também a temporalizar-se em relação ao mundo. Para esse au­
de medição do tempo? 2) Que concessões de mudança evidenciam
tor, a interpretação do passado é feira à luz da rcmcmoraçáo históri­
os alunos perante atividades de sequencialização de acontecimentos
ca, associada à memória histórica no espaço pÍiblico. Neste sentido,
históricos (linhas de tempo; ordenação de imagens)? 3) Que com­
o autor considera que as instituições como a universidade, o museu,
petências desenvolveram os alunos ao nível da compreensão da tcm­
a escola e as mídias permitem uma aproximação inter-relacionada e
poralidade a partir de atividades desafiadoras? comum do passado, através das quais podemos rememorar (Rüsen,
A par da componente investigativa, desenvolveu-se wna prática
20 16b). A rememoração não é uma simples recordação do passado,
pedagógica através da implementação de diversas atividades desafia­
ela torna o passado presente porque lhe d:í atualidade, ou seja, con­
doras. Neste sentido, ao longo de sete sessões foram trabalhados di­
voca o passado ao tempo presente de forma a tornar esse passado
ferentes construtos associados ao conceito de tempo, como as unida­
histórico e é nesra inter-relação que se perspectiva o futuro.
des de medida de tempo, o tempo do relógio, o tempo do calendário A rememoraçáo histórica pode realizar-se num âmbito muito
e o tempo associado ao conceito de mudanç
a. O presente texto in­
pessoal, referindo-se ao indivíduo que recorda o seu passado (me­
cid e uesse tlltimo construto - o tempo como mudança (progressos c mória amobiográfica), mas, para ser considerada memória histórica,
_
permanências) - relativamente ao passado pessoal c ao passado mais é condição determinante que a rcmemoraçáo ultrapasse o limite da
distante, que se remeteu neste estudo ao pass:�do dos pais e dos avós. nossa existência individual (no sentido de retrocesso), permitindo
interpretar a realidade atual e perspectiva r o futuro.
Para Rüsen (2007), a narrativa é a opemção fundamental do
pensamento histórico, é através dela que se interligam os vários
tempos (presentes na consciência histórica). Através ela narrativa, a

142 14J
E'.NSJNO uF. I hs1'ônrA H Cunnfc:u1,n

rnemc humana consegue dominar as incoerências temporais, dando de escolaridade f:u.cm distinções temporais c tendem a aprcscm:u UHI

significado a uma sequência temporal de eventos que ocorrem nas cessões de passado deficitário comparando-o com o presente, desctc�
mudanças do mundo. vendo-o em relação aos materiais e tecnologia que ainda não existia.
O estudo do conceito de tempo associado ao ensino da História A investigação conduzida por Hodkinson (2003) mostrou que
desenvolveu-se ao longo das últimas décadas. Uma das primeiras o desenvolvimento de conceitos de tempo histórico está diretamente
investigações, com grande alcance entre educadores c investigadores relacionado com a prática de um ensino sistemático, direto c acu­
da década de 1970, foi assumida por Piaget, que se debruçou no mulativo e que esse não depende de variáveis como a inteligência, o
desenvolvimento da ideia de tempo nas crianças. As suas investi­ contexto social, o gênero e a linguagem. No entanto, o seu estudo re­
gações cstiver::�m, em parte, na origem da contestação do ensino da vela que o domínio matemático interfere na aprendizagem temporal.
História nos primeiros níveis de ensino e nem sempre foram bem Vários autores consideram que a aprendizagem do conceito de
interpretadas, tendo-se gerado a idcia de que crianças pequenas não tempo se realiza de forma gradual (Hodkinson, 1995; Jahoda, 1963;
têm desenvolvidas as capacidades que permitam uma aprendizagem Proença, 1990) e que progride de forma qualitativa e quantitativa
histórica, pois partem do pressuposto de que o desenvolvimento (Patrh�rca; Alleman, 1987). Apesar da aprendizagem de conceitos de
de noções temporais depende do nível de maturação da criança. tempo ser complexa, as crianças começam a construir noções tem­
V:i�·\os investigadores, concordantes com o pensamento piagetiano, porais antes de iniciarem o ensino básico, primeiramente relacio­
consideravam que os alunos necessitavam atingir um certo nível de nadas com a sua rotina diária, mas que progrcssiv�unentc incluem
desenvolvimento cognitivo para aprender conceitos históricos (Hal­ noções relativas ao tempo do relógio, do calendário e do tempo
lam, 1 970; Jahoda, 1963). histórico. É sob essas concessões que se desenvolverão os conceitos
A investigação mais recente, contrariando as premissas da teoria mais complexos relacionados à aprendizagem temporal (Carretero;
piagctiana, veio demonstrar que a aprendizagem do tempo histórico Pozo; Asensio, 1989; Pages, 1 999; Vukelich; Thornton, 1990). Nes­
não está somente associada ao nível de cognição das crianç:ts c que te sentido, as atividades que se propõem aos alw10s, relacionadas
essas são capazes de aprender conceitos complexos. Demonstra que com conceitos de tempo, devem partir das noções de tcmporaJidade
um ensino explícito do tempo fàvorece c antecipa a compreensão já existentes, uma vez que serão a base a partir da qual se construirá
temporal das crianças (Barton, 2008; Cooper, 2002; Hodkinson, novo conhecimento, e devem ser desafiadoras c diversificadas, pro­
2003; Procnç.1, 1990; Solé, 2009). movendo o desenvolvimento desses conceitos.
A investigação de Barton (2008), com crianças dos 6 aos 1 2 Pages (2009) defende que, na aprendizagem da História, os
anos, revelou que mesmo as crianças menores são capazes de fazer alunos devem sentir-se protagonistas da própria História, para que
distinções básicas relativamente ao tempo histórico c que essa com­ compreendam que a mesma está viva e que eles também fazem parte
petência progride com a idade. Uma das conclusões mais relevantes dela, entendendo as mudanças como forma de a sociedade evoluir.
do seu estudo foi a de que as crianças desenvolvem alguma com­ É também importante que as crianças realizem atividades que pro­
preensão histórica mesmo antes de saberem datas e de serem capazes movam a empatia histórica, isto é, a capacidade de ver o passado na
de utili1.ar compreensivamente conceitos temporais. perspectiva das pessoas que viveram na altura c, deste modo, enten­
O estudo de Solé (2009) demonstrou que o ensino de conceitos der o seu modo de vida, as atividades, os materiais e a tecnologia
temporais pode ter início logo nos primeiros anos de escolaridade c como adaptações do tempo. A empatia histórica ajuda a combater
que F.:tvorcce a compreensão temporal. As cria11ças dos primeiros anos o prescntismo, pois muir..1s vezes as crianças têm uma forte relação

144 115
I l"' '''"o C.Rtos RJuE'"o júr<IOR I MAIRON E.sco•s• VAliRIO (oRes.) E.Ns1Nn nr. I hSTÓRIA CuRRÍCUI.U
F

com as idt:ias do presente e não estabelecem relaçõe


s com o pas • Desenvolver na sala de aula uma prática de ensino que
sado nem com o fi.tturo (Pages , 2009). A valorização do prescn visa expandir a compreensão temporal do tempo físico c
tl'
manifesta-se sobretudo ao nível da tecnologia, consideada
r obsoleta histórico (cronologia c mudança);
face à tecnologia de que hoje dispomos. Neste sentido, é importante , Promover metodologias c estratégias que visam de­
que o ensino de conceitos temporais possa interligar os senvolver a compreensão temporal: linhas de tempo, locali­
diferentes
tempos que se cruzam na nossa vivência (passado, presente zação e sequencializaçãu de acontecimentos, exploração de
c futu­
ro), pois o passado ajuda a entender o presente e a perspecrivaçá objetos relativos ao passado pessoal c pa.�sado longínquo;
o
• Avaliar concessões de mudança (progres.�o linear/diver­
do futuro é e_�sencial à formação de cidadãos críticos e ativos
, que sidade na mudança) dos alunos;
possam participar e agir na sociedade. Essa é
uma das principais , Identificar e justificar os maiores obstáculos/dificuldades
finalidades da educação básica.
na compreensão do tempo c do tempo histórico pelos alunos;
, Avaliar competências desenvolvidas pelos alunos ao
Metodologia nível da tempuralidade a partir de atividades realizadas no
âmbito do projeto.
O projeto desenvolvido sustenta-se numa metodologia de in­
vestigação-ação com o objetivo de melhorar a qualidade da prática Do ponto de vista investigativo, através do qual se procuro�l dar
pedagógica através da reflexão e da investigação. Esta metodologia resposta às questões de investigação colocadas, de modo a avaliar as
noções de temporalidade dos alunos, foram adotadas algumas tec­ ,
foi conjugada com uma abordagem construrivisra da aprendizagem,
seguindo os propostos de Fosnot (1999), através da qual se procurou nicas e instrwnenros de recolha de dados, como a observação direta
e participante, notas de campo e di�írios de aula rcAexivos. Relati­
dotar os a!tmos de autonomia, no sentido de assumirem o papel de
vamente aos instrumentos de recolha de dados, no que conccrne
hisroriadores e investigadores do passado pessoal e do passado mais
à abordagem do conceito de tempo como mudanç.-t (progresso c
distante, possibilitando a construção de aprendizagens significativas.
permanências), foram aplicados os seguintes instrumentos:
Este projeto, de caráter consrrutivista, foi operacionalizado através
do modelo de aula-oftcina (Barca, 2004), que concebe a :nda com
Ficha de avaliação diagnóstica (instrumento a);
ênfuse no levantamento das ideias dos alw1os. A colocação de ques­ • Questionário sobre o passado pessoal (instrumento b);
tões que se constituem como desafios cognirivos e que implicam a • Linha de tempo pessoal (instrumento c);
mobilização de conhecimentos é também relevante, assim como a • Desenhos comparativos entre o pa.ssado dos pais e avós
avaliaç.'io sistem:.írica das aprendizagens com o objetivo de se avaliar a c a atualidade (instrumento d);

progressão das idcias dos alunos. A�sim, foram aplicados insrrumen­ • Ficha de avaliação das aprendizagens (instrumento c).
ros de recolha de dados em várias fuses do projeto.
Procurou-se, ao longo das sessões, concretizar os seguintes ob­ Atividades desenvolvidas
jetivos:
Na quinta sessão do projeto foi abordado o tema "Pass::.do es­

• Analisar como constroem os alunos noções temporais soal", no qual se pretendia que os alunos desenvolvessem a conscten­.
associadas ao sistema convencional de m�diçáo do tempo; cia acerca do seu passado, localizassem datas c futos significativos da

146 117
ENSINn u n I l1�tt'\1t1A 1\ l:uu11h t11 u
I IAL FEI\lJ ÜI<LO.\ HmEmo júNIOR I MAIRON Esco"�' VAl.ÉRIO (oncs.)

sua vida e construíssem conhecimento relativo ao passado pessoal a 1 issemque os alunos construíssem conhecimenw :-;ollll' 11 11'111 1 11' ' 111

partir da análise de forografias, objetos e documentos pessoais. que os pais ou avós eram crianças c identificassem as mudnn�.�� 111111�

Os primeiros momentos da sessão destinaram-se à exploração significativas entre esse tempo c a atualidade. Neste sentido, no pai
meiro momento da sessão os alunos realizaram wna entrevis
ta à
de duas linhas de tempo pessoais (a primeira de uma criança de 9
e
anos e a segunda da minha linha de tempo), e simultaneamente de avó de um aluno, durante a qual a turma pôde colocar questões
s
objetos e documentos característicos de vários momentos assinala­ esclarecer algumas das suas dúvidas sobre a infància dos familiare
adultos. Os alunos mostraram-se muito participa tivos, tendo sido
dos nas linhas de tempo, relativos a diferentes idades. Em se
guida,
colocadas várias questões acerca do funcionamento da escola, das
foram explorados objetos do passado dos alunos e os mesmos tive­
ram oportunidade de partilhar com os colegas memórias associadas brincadeiras e jogos que faziam e dos brinquedos que tinham.
Em seguida, como ponto de partida para a exploração de objetos
a brinquedos, roupas e objetos de bebê que levaram para a sessão,
antigos, referentes ao passado dos pais e avós, procedeu-se à leitura
indicando também a idade que teriam quando utilizavam os objetos
da história Quando a mãe era pequena, da autoria de Joana Cabral,
mencionados (figuras 1, 2, 3 e 4).
que descreve vários objetos que caíram em desuso, como o telefone
de disco, o disco de vinil, os postais, as fitas cassetes, a televisão a
preto e branco e a enciclopédia, por exemplo. .Alguns exemplares
desses objeros foram levados para a sala, para além de outros como
o rádio de fita cassete, a boneca de porcelana c serapilhcira, o ferro
a carvão e um disquete. Nesse momento, os alunos exploraram os
Fib>uras 1, 2, 3 e 4. Imagens de alguns objetos do passaclo dos objetos (figuras 5 e 6), compararam-nos com os existentes na atuali­
alw1os levados para a sessão dade e identificaram as vantagens e desvantagens de cada um deles.
Como instrumento de recolha de dados, no final da sessão, os
Nos momentos seguintes, foram aplicados instrumentos de re­ alunos fizeram dois desenhos comparativos entre o passado dos pais
colha de dados que permitiram, do ponto de vista pedagógico, reHe­ e avós e a atualidade.
tir sobre o passado pessoal e sobre as mudanças e permanências que
se cferuaram ao longo da sua vida. Desce modo, em primeiro lugar,
os alunos deram resposta a um questionário relativo a dados pessoais,
gostos e preferências, para que comparassem um momento em que
eram crianças menores e outro na atualidade. Em seguida, construí­
ram uma linl1a de tempo pessoal, recorrendo a fotografias relativas a
diversos momentos da sua vida, disponibilizadas pelos encarregados
de educação c a uma lista de momentos relevantes da vivência das
crianças, construída pelos alunos com o auxílio de f1miliarcs.
Na scxca sessão, pretendeu-se que os alunos desenvolvessem o
seu conhecimento relativamente a um passado mais distante do que
o passado pessoal, pelo que foram propostas atividades que permi-

149
148
IIAI>tllU c.••os RlBEIRO }IÍNIOil I MAIRON E.sCOR>I v••fRIO (ORCS.) ENsoNo oF. Ilo�,,·,..,. F. CuRRfcuo o

Análise e discussão de alguns dados

Os dados rccoUúdos e analisados, relativamente ao construto "Tem­


po como mudança", remetem para duas temáticas: o passado pessoal e
o passado mais longÍJ1quo, de acordo com as atividades desenvolvidas.
Num momento prévio à implementação do projeto, aplicou-se
uma ficha de avaliação diagnóst ica (i1lstr�tme1lto a), cujo objetivo
era o de aferir os conhecimentos dos alunos ao nível da tcmporali­
Jade. A questão 7, com a demanda: Desenhe um t·etmto teu com 2
ttJws, com tt idade que tens atualmente e em flduLto com a profissão que
gostarias de ter, relaciona-se com o tempo pessoal e psicológico. Os
desenhos revelaram que os alunos têm consciência das mudanças
inerentes à passagem do tempo e fazem distinção dos três tempos
enunciados (presente, passado c futuro) através da representação

Figura 5. Exploração de objetos (boneca) dos sujeitos com um progressivo atunento de altura e com objetos
que caracterizam a faixa et.-iria, por exemplo, objetos ca racterísticos
de uma profissão no desenho do sujeito adulto.
Na quinta sessão, foi aplicado um questionário acerca das infor­
mações pessoais (imtrume1lto b), através do qual se pretendeu co­
nhecer as concessões de mudança entre a faixa etária dos 4-5 anos e
a idade atual. As questões 1 c 2 versavam no registo de informações
em cartões relativas às duas idades identificadas como passatempos,
brinquedos, desenhos animados e comida fuvorita no passado e na
atualidade e na camterização física nesses dois momentos. A questão
3 envolvia as questões anteriores, Comptlre as informações dos dos
i
cartões e as caraterizaçóesfí
sicas que elaboraste. Que mudanças encon­
tras entre estes dois momentos? Será que alguma coisa permanece igual?
Registre as tuas respostas.
As respost..1S ao questionário demonstraram que os alunos têm
consciência de que a passagem do tempo envolve mudanças, mas
pode também incluir permanências. Relativamente às mudanças,
Figura 6. Expl ora ção de o bjetos (cassete)
referem majoritariamente alterações a nível físico como: "Mudou o
cflbelo e ficou tudo mflior porque eu cresci" (A14)Z, "Mudei de aspeto e

2. A identidade dos alunos será Joravame repre.�entada pela letra "A" seguida Ju
número do aluno.

150 151
IIALI·�uu CAut.oS 1\ltii!IRO júNton I MAmON E;.const VAténto (oucs.) EN�INO u1� I h�'lc'uttA t1 <.:uuulc w u

antes tinha camcóis. Mudei de peso e de altura" (A 18) e mudanças rcb


rivas aos seus gostos e preferências, como: "Mudou a comida, mudou 11 A minha llotla de tenlpO
desenho animado, mudou a brincadeira e mudmt o passatempofovoriu/'
(A20), ". . . jd nãogosto de brinqueCÚJs de bebês"(A12). No que concer
ne às permanências, identificam sobretudo caraterísticas físicas como:
"Não mudei a cor dos olhos, a Jonna da boca, a jom1a CÚJ nariz e das
orelhm" (A3), "Não mudei a cor dos olhos nem do cabelo" (Al8).
A consrruç.'io da linha de tempo (i11strmmmto c) com foto­
grafias f.1culradas pelos encarregados de educação implicou, numa
primeira f-ase, na ordenação das mesmas. De modo geral, os alunos
ordenaram corretamente as fotografias, associando-as a momentos
festivos, recordações ou histórias contadas por familiares, como re­
fúe uma aluna,

Quando eu empequenina ertJ muito gordinha, fiti com os meus


Figura 8. Linha de tempo pessoal (AIO)
pais pam tl prai,z (referindo-se a uma ji1to em que ert.l bebê),
estrljotogmjirtji1i timda no carnaval (fiuogmjia na qual a alu­ Através dos di;Hogos que cruzamos com os alunos ao longo da
nn surge vestida de cozinheira), a minha mãe disse-me que eu construção da linha de tempo (figuras 7 e 8), reparamos que os alu­
gostttvtl d.e brincar às cozinheiras. (AI 8)
nos oriundos de outros países destacaram como momento mais re­
levante a vinda do seu país de origem para PonugaJ, nomeadamente
os de nacionalidade ucraniana c brasileira.
De modo a averiguar a progressão das ideias dos alunos, rela­
tivas ao passado pessoal, na f.1se final do projeto foi aplicada uma
ficha de avaliação das aprendizagens (itzstrttmento e).
•• J.. A questão 8 do itzstrumento e, Desenhe um acontecimento que
' • ·· !.r.'
JOIO ,.J�l 1 �o� 1 JOU consideres importante na tua vida, confirma wna vez mais que os
alunos fazem distinção entre o passado pessoal e o presente e são ca­
pazes de identificar momentos relevantes da sua vida. Os momentos
que os discentes consideraram importantes dizem respeito ao nasci­
"' ..
,
mento de um familiar (2 ocorrências), à comemoração do seu ani­
,�.�� ...t.
...
t'"" ,"' "'�)'
versário (3 ocorrências), à comemoração do Natal (2 ocorrências),
'-1!1 I

à entrada para o primeiro ou segundo ano escolar (2 ocorrências)


e a outros acontecimentos marcantes como a festa de finalistas e a
Figura 7. Linha de tempo pessoal (AIS) chegada a Portugal, entre outros (IJ ocorrências) .

152 153
E.NSINO DE HJSTÚJUA t! CtHlRÍCUI.C)
HALFEIIU URLOS RJUHIRO júNIOit I MAIRON El.COR>I VAL�IUO (ORGS.)

Na sexta sessão, foi abordado o passado mais longínquo, IH'\II

caso, relativo à infância dos pais e/ou avós. De modo a avalia1 ,1,

concessões de mudança dos alunos relativamente a um tempn pu.�


sado e ao tempo atual, após a realização de atividades que incimr:11u
a realização de deduções e inferências acerca do passado dos sc11�
familiares (pai e avós), foi pedjdo aos alunos que elaborassem dnh
desenhos (instrumento ti), um sobre a viela cotidiana no passado
e outro acerca dos dias de hoje, dando um título e escrevendo 11111 Figtua 9. Desenhos comparativos entre o passado e a
texto explicativo para cada um deles. atualidade (Al3)
Relativamente ao desenho referente ao tempo passado dos pais
e avós, as temáticas representadas nos desenhos e nos texros foram São exemplos de desenhos que remetem para a conversa com a
organizadas por categorias, como consta na T<tbela 1 . avó de um aluno aqueles nos quais é representado o tema da esco­
la, como referem os alunos nas descrições dos desenhos: /! avó do
Categorias I Número de ocorrências Nelson a entrar pa1-a a aula, o quadro em preto e usava giz" (A7), './1
Representação da escola 5 minha avó na escola: a turma era só de meninas. Usava uma lousa"
-----+------�------� (Al5). Relativamente aos objetos amigos, são conjugados objetos
Representação de o bjetos antigos 6
--��------�------� explorados na sessão com outros que os alunos conhecem através de
Representação de brincadeiras 7
L- --
--
-- -- -- � -- -- --
-- �
diálogos com familiares, como é exemplo o desenho intitulado './1
Tabela I . Categorizaçáo temática dos desenl10s acerca do
mtlquina dejotogrt!fias" (Figura 1 O), cujo obj eto é uma máquina de
passado do instrumento d (N•> 18)
fowgrafur instantânea e tem descrito o seguinte texto: "O avô tirou

Os desenhos remetem às aprendizagens construídas durante a


umafoto à fi!JJa Isabel, afoto sniu Logo da mríquina, era antiga " (A 12).
Alguns alunos fuzem referência apenas aos objetos explorados na
se.�sáo, representando os temas nela abordados. Alguns desenhos
sessão, descrevendo: "Quando a minha avó era pequena usava um
relacionam-se com os conhecimentos partilhados pela avó de um
telefime muito velho, um disco de vinil e um ferro a carviio" (Al3),
aluno com a turma, enquanto outros se direcionam para a ex­
'.11 minha mtie . . . usaM um telefone de teclas e ouvia música com um
ploração do livro "Quando a mãe era pequena" e de objetos antigos
(Figura 9). disco de vinil" (A4), "É a avó do Nelson a brincar com uma boneca de
forrnpos, está na rua" (A18). As brincadeiras representadas centram­
-se no jogo da macaca, referido durante o diálogo c a leitura do livro
c localizam-se espacialmente na rua.

155
154
H Ao flmn CARLO> HlltEIRO }ÚNIOI< I MAIRON E>cons1 y., �.ouo (onc:s.) ENSINO DE I hs�óRIA e CuRulcuto

�..
I, .dunos representam jogos que fazem atualmente, predominando o
jogo da macaca, sobretudo referido pelas meninas. Registam-se os
seguintes exemplos, "Eu a jogar à macaca e a patela está no nr/mero
I " (A4), "Sou eu ajogar à bola com o meu primo" (AlO).

Figura 10. Desenho compardtivo entre o y.wad


o ca
��
atualidacle (Al2)

Nos desenhos relacionados com o tempo presente, atendeu-se


.
tgualmcnte à temática representada. A catcgorizaç5o apresenta-se na
Tabela 2.
Figura 11. Desenhos comparativos do passado e da atualidade
(AIS)
Categorias
I Número de ocorrências
Tecnologia 7
Nas mudanças relativas ao edificado, salientamos a referência a
Brincadeiras 7 casas e supermercados grandes. Dois alunos desenham no espaço do
Mudanças relativas ao edificado 2 tempo presente momentos marcantes da sua vida, como a visita a
Outros 2 um jardim zoológico c a representaç.'io da avó a contar histórias ela
r
. , .
Tabela 2. Categonzaç ao terna, ttca dos desenhos acerca do sua infância ao neto.
presente do instrumento d (No 18) De modo a avaliar as ideias dos alunos acerca do passado mais
longínquo, na ficha de avaliaç."ío das aprendizagens (instrumellto
Através do desenho do tempo presente, os aluno
s evidenciam
e}, colocou-se a questão 6, Rodeie a vermelho os objetos que eram
concessões de mudança, contrapondo uma usados no tempo em que os teus pais ou avós eram crianças e a azul os
reduzida utilizaç.1o de
aparelhos tecnológicos num tempo passado
com 0 domínio da tec­ objetos utiliZIIdos hoje em dia, sendo apresentados os objetos: rádio
nologia no tempo presente c concessões de perm com leitor de cassete, computador portátil, ferro a carvão, telemóvcl
anência, através da
represenraç.'io do jogo da macaca como brinca com ccrã tátil, brinquedos (helicóptero tdecomandado c boneca),
deira que se manteve
ao longo do tempo. disquete, cassete e telefone de disco. Os alunos identificaram
Relativamente à tecnologia, esta é representad corretamente a maioria dos objetos num dos tempos, tendo o rádio
a através de brin­

quedos u aparelhos, como podemos constatar
nos seguintes enun­
com leitor de cassete suscitado mais dúvidas, possivelmente porque
.
ctados: 'Eu estou ajogar telefone na sala e a ver V não o reconheceram na imagem apresentada.
ioletta numa televisão
n cores e num computadorportdtil" (A Como pudemos comprovar, os alunos compreendem a exis­
12), "Sou eu, estou a comerpipo­
cas e a ver videojogos" (Al7), "Eu brinco com os tência de um tempo passado associado, não só a mudanças, mas
brinquedos e um carro
teleconumdado" (AI 5) (Figura 1 1 ) · Com relaça também a permanências. Os discentes manifestaram saberes sobre o
··o a' s b Imca
·· deiras,

· os

I Sll 157
I IA1.n:�n C.RLDS RutPIRO }I
ÍNIOR I MAIRON &coR., VAu!RI<l (o•cs.) l!.Ns•No ur. I hsrómA R Ct'nnfcur..o

passado distanre através de conhecimenros transmitidos pelos pai� �1cns mais complexas, como defendem vários investigadores (Carre­
e fàmiliares, o que demonstra que a aprendi�agcm sobre o tempo tcro; Pozo; Ascnsio, 1989; Pages, 1999, Vukclich; Thornton, 1990).
invoca muitos saberes adquiridos pela educação não formal. As mudanças identificadas pelos alunos registram-se sobretudo
em relação ao espaço, aos objetos, aos comportamentos, �1s brinca­
Conclusões deiras e até ao modo de funcionamento da escola. Esses resultados
vão ao encontro do que Barton (2008) constatou relativamente à
O projeto desenvolvido com alunos do 2° ano de escolaridade, identificação das mudanças basear-se em detalhes da vida social e
através do qual pretendíamos avaliar as noções de temporalidade material. No que respeita ao tempo presente, destacam sobretudo a

e compreender o modo como é construído o seu conhecimenro, tecnologia existente atualmente e os brinquedos e brincadeiras que

permitiu concluir que, relativamente à concessão de tempo como utilizam hoje em dia, à semelhança do que Solé (2009) constatou
em seu estudo, os alw1os demonstram possuir uma concessão de
mudança (progresso e permanências), os alunos têm consciência de
passado deficitário, baseada nos objetos que não existiam no passa­
um passado pessoal e social e são capazes de distinguir o passado da
do c que são comuns atualmente, sobretudo ao nível da tecnologia.
atualidade, comparando-os e idenrificando as mudanças e perma­
nências ao longo do tempo.
Referências
No que concerne ao tempo pessoal, os alunos têm consciência
do seu passado através das suas recordações, de conversas com fami­
13ARCA, I. Aula Oficina: Do Projeto à Avaliação. In: BARCA, I. (org.).
liares c da realização de inferências que partem de objeros pessoais, Actas das IV Jornadas Internacionais de Educas:ão Histórica: Para uma
nomeadamente as forografias. À semelhança das conclusões apre­ Educação Histórica de Qualidade. Braga: ClEd. Univesidader do Minho:
sentadas no estudo realizado por Solé (2009), constatamos que as Instituto de Educação e Psicologia, 2004, p. 1 3 1 -144.
crianças, dessa fàixa etária, conseguem ordenar cronologicamente as IJAKfON, K. Back when God was around and everything: Elcmcntary
suas fotografias e fàzer referência ao momento em que as mesmas child rcn s understanding ofhistorical time. In: LEVSTJK, L; BARTON,
'

foram tiradas, recorrendo a recordações. Esses alunos identificam K. (org.). Rcsearching History Education. New York: Ruutledge, 2008,
mudanças, em relaç.'ío a si próprios, ao nível físico, como o cabelo, a p. 1 55-202.
altura c o peso e mudanças relativas ao seu comportamento e gostos CAR.RETERO, M.; POZO, ).; SENSIO, M. La enseííanza de las Cien­
pessoais, quando se comparam atualmenre c quando eram bebês. cias Socialcs. Madrid: Visur, 1989.
Referem também permanências, geralmente a nível físico, como a COOPER, H. Didáctica de la historia en la cducación infantil y prima­
cor dos oUtos e do cabelo. ria. Madrid: Edicioncs Morata, 2002.
Os alunos são capazes de identificar mudanç.'lS entre a atualidade FOSN01� C. Constructivismo e Educafáo. Teoria, perspectivas e prá­
e um tempo mais longínquo, como o fizeram em relação ao passado ticas. Lisboa: Instituto l'iaget 1996.
,

dos pais e avós, com base na exploraç.'ío de objetos antigos e nos diá­ HODKINSON, A. Historical time anel thc national curriculum. Tea­
logos que têm com funiliares, o que demonstra, como referem Pa­ ching History, n. 79, p. 18-20, 1 995.
gês e Santisteban (20 10), que o desenvolvimento da temporalidade
___ . Childrcn's devcloping conceptions of historicaJ time: analy­
ultrapassa a aprendizagem escolar, pelo que cabe à escola valorizar o
sing approaches to teaching learning and research. Unpublished PhD the­
,

sis. Edgc Hill: Universiry uf L1.ncaster, 2003.


conhecimento dos alunos e partir dele para a realização de aprendiz.'!-

158
159
ENSINO uE Hos1'ÓIIIA n Cuuulcuw
l i AI PrJ\n CARLOS Rw�mo J<ÍNJon l MAII\ON Esconso VA<.énuJ (onGs.)

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161
160
9
O DESENVOLVIMENTO DA
COMPREENSÃO HISTÓRICA ATRAVÉS DE
UMA ABORDAGEM DE APRENDIZAGEM
COOPERATIVA: UM PROJETO COM
ALUNOS PORTUGUESES DO 3 o ANO DO
ENSINO BÁSICO•

joamt Pimentel
Instituto de Educarão, Universidade do Minho

Cltiritt Solé
liwituto de .tazmJçáo, Universidade do Minho

Introdução

O presente trabalho pretende dar a conhecer um projero que se


insere na área de investigação em Educação Histórica, realizado no
âmbito da prática de Ensino Supervisionada do Mestrado em Educa­
ção Pré-Escolar e Ensino do 1 o Ciclo do Ensino Básico, sob a super­
visão da Doutora Glória Solé (Universidade do Minho, Portugal),
com o tema "O desenvolvimento de compreensão histórica através
de uma abordagem de aprendizagem cooperativa: um projeto com
alunos do 3° ano do 1" Ciclo do Ensino Básico" (Pimenrel, 20 13).
O desenvolvimento deste projeto de investigação desenrolou-se em
conrexro real de aprendizagem no 1° Ciclo do Ensino Básico, numa
turma do 3° ano de escolaridade, numa escola da periferia de Braga
(Portugal). Com base nas observações das primeiras semanas da prá­
tica de ensino supervisionado, verificou-se que a maioria dos alunos
possuía fracas competências ao nível da relação com os outros e no

I. ·n.is work is fu ndcd by C!Ed- Rc)car...h Centre ou Educarion, lmicuro de Edu­


cação, UMinho, chrough national funtls, ofFCT/MCTES-PT.

163
I IA• rrnn CARI.O� 1\rnF.rno JúNIOR I MMRON Escnnsr V.\I,FRIO (oncs.)

trabalho cooperativo. Da mesma forma, foi visível como os aluno�


O pensamento histórico e reflexivo é, cbramcn1c, loeeH'IIt.Hlll
dessa turma estavam pouco habituados à construção do seu próprio
através da exploração de fontes, uma vez que proporcion�l aos :dn
conhecimento, revelando serem pouco críticos e reflexivos em rc
nos um maior conhecimento do seu passado próximo e/ou longín­
bçáo a qualquer conteúdo/temática a ser trabalhada, visando este
quo (Cooper, 1995; 2012; Solé, 2009). Isto porque alicia a per­
projeto promover nesses altmos o pensamento histórico e avaliar as
cussão de diversas questões que permitem a entrada, mais formal,
suas ideias à luz da investigação em cognição histórica.
da História no currículo e possibilita a iniciação do pensamento
Posto isto, escolheu-se a temática de investigação referida, uma
histórico estruturado.
vez que colocaria particular ênfase no papel dos alunos no proces­ Assim sendo, a interpretação de fontes históricas, nomeada­
so de construção do conhecimento histórico e da sua compreensão mente icônicas, representa uma extrema importância para a análise
(Fosnot, 1999; Barca, 2004; 2011), integrando a área curricular do do tipo de evidências históricas que os alunos constroem quando
Estudo do Meio (nas Ciências Sociais, com destaque para a Histó­ usam e exploram diversas fimres (Ashby, 2003). Segundo Cooper
ria) c tendo em conta a abordagem de aprendizagem cooperativa (20 12), "o que caracteri·a as fontes como intrigantes é que elas não
(Freitas; Freitas, 2002). revelam seus segredos facilmente. Nós geralmente remos que 'adi­
vinhar' o que elas podem estar falando, baseados no que mais nós
Enttuadramento teórico podemos saber" (p. 21), de um mesmo modo possibilitam "fazer
inferências . . . escutar o ponto de vista de outros, esrar preparado
Y�írios estudos em Educação Histórica têm demonstrado que para mudar a sua mente, ou para aceitar que frequentemente não há

crianças mais novas podem aprender História. Alguns desses estudos resposta única, correra" (p. 25).

analisam o desenvolvimento de conceito de tempo e do pensamento Dada a sua natureza de evidência hisrórica, a exploração de

histórico das crianças, através de entrevistas, utilizando fontes icô­ fonres cativa as crianças porque, além de serem uma evidência do
passado, permite-lhes imaginar formas de vida que não esd ao seu
nicas (Barton; Lcvstik, 1996; I-foge; Foster, 2002; Solé, 2009). Ou­
alcance experienciar (Ashby, 2003, Coopcr, 1995; 2005). A ima­
tros estudos referendam c analisam as potencialidades de algumas
ginação e as comparações com as atuais formas de viver tornam-se
estratégias c contextos de ensino e aprendizagem, para promover o
inevitáveis, resultando, algumas VC"Les, em comentários mais ou me­
desenvolvimcnro do pensamento histórico, nomeadamente através
nos engraçados e/ou pertinentes. Torna-se, por isso, fundamemal
de uma abordagem da História mais centrada nos aspetos sociais c
que as crianças sejam incentivadas a desenvolver as suas capacidades
da vida do cotidiano (Cooper, 1995; Harnett, 1993; Hodkinson,
e competências cognitivas através de exercícios de inferências, a par­
2003; Hoodless, 1998; Levstik; Barton, 1996).
rir de evidências (Cooper, 2005).
Assim, a implementação de qualquer projeto que coloque par­
Sendo a História "a dialéctica da mudança" (Bioch, 1 976), a
ticular êuf:1se na constmção do conhecimento e desenvolvimento
compreensão da mudança através dos tempos torna-se imperativa.
de competências de aprendizagem, tendo por base o uso de fontes
O conceito de mudança ao longo dos tempos, tal como o de evidên­
históricas diversas, a partir da área curricular de Estudo do Meio,
cia histórica, constitui um elemento cstrurmante e f�mclamental elo
enf.·uizando o ensino da História, é, com certeza, um benefício
conhecimento histórico e da compreensão histórica.
maior que contribui, segura e eficazmente, para a formação pessoal,
Barca (20 1 1 ) refere que, em qualquer país, é urgeme favorecer a
intelectual, cívica e social dos alunos.
compreensão de relações complt:xas na mudança da diversidade em

164 165
HAO.rrno CAOu.n� l\onr.11to jüNocm I MAIRON E.�cool<l VAO o\no<J (onc:�.) ENSINO n& I (1!\·u'\niA E CunufcuLO

simultâneo, dos vários rirmos evolutivos, das principais causalidades Metodologia


e diferenrcs consequências dos fenômenos, conforme os scrores e as
dimensões da sociedade específicas. Será este um dos caminhos no O projeto de intervenção apresentado baseou-se numa aborda­
o
sentido de contribuir para estimular a construção (pelos jovens e gem metodológica com contornos de investigação-ação, integrad
process os
pelos menos jovens) de novas hipóteses de um futuro melhor para numa perspectiva interpretativa aplicada ao estudo dos
os seres humanos. o de sala de aula e em confor­
de ensino e aprendizagem em context
on, 200 1).
A implementação deste projeto visou ao ensino da História, cen­ midade com os intervenientes (Cohen; Manion; Morriss
qualitativa
trado nos conceitos estruturais de mudança c evidência, através de Trara-se de um estudo de caso exploratório de natureza
de
uma abordagem cooperativa. Esta abordagem prevê a construção do (Yin, 2003), implemenrado numa turma do 3° ano ( 1 6 alunos)
supervi­
conhecimento por parte dos alunos num trabalho contínuo em grupo. uma escola da periferia de Braga (Portugal), no contexro de
e ensino do
A aprendizagem cooperativa é capaz de responder, adequada­ são pedagógica do Mestrado em Educação Pré-Escolar
mente, às exigências que são contidas em contextos heterogêneos l " Ciclo do Ensino Básico.
diversos, além de permitir alcançar os objetivos educativos concep­ É um estudo qualitativo interpretativo, que visa analisar o
c

rmenre, a
tuais e não conceptuais, como a tolerância e a solidariedade (Díaz­ desenvolvimento da compreensão histórica e, posrcrio
Essa
-Aguado, 1996). A permanência numa metodologia tradicional, reflexão/avaliação das estratégias abordadas na prática de ensino.
amente
focada, quase exclusivamente, nas aprendizagens conceituais, acar­ abordagem de investibração-açáo permitiu modelar continu
e resultados
reta, como consequência, o individualismo, a competição entre os todo 0 processo de ensino, tendo em conta os efi:iros
alunos, reforçando a exclusão social e a inadaptaçáo dos alunos me­ de uma
apresentados, na medida em que esse método visa "o estudo
decorre "
nos capazes, não preparando as crianças para os exigentes desafios situação social para melhorar a qualidade da acção que nela
sentido, a
colocados pela sociedade e cultura atuais (Lopes; Silva, 2009). (Elliott, 1991 apud M:íximo-Esreves, 2008, p. 18). Neste
respons abi­
Somos, então, conduzidos a reconhecer as potencialidades edu­ investigação-ação exige ao professor investigador inúmeras
s constantes
cativas da aprendizagem cooperativa como alternativa à competição lidades e uma série de procedimentos e tomadas de decisõe
va, como o rumo
c individualismo já referidos. A abordagem cooperativa surge como que poderão determinar não só a sua prática educati
c uma forma
fator de desenvolvimento de competências cívicas
I
sociais a par da investigação, em que esta metodologia se assume como
da realização das aprendi1.agens cognitivas. Trata-se, então, de um . o (Cohen; Manion; Morris
de investigar para a cducaç.'í son, 200 1).
modelo de ensino no qual os alunos trabalham em pequenas equi­ Procurou-se, ainda, compreender como se processava o desenvol­
pes, grupos (três/quatro/cinco elementos), heterogêneos, ajudando­ vimento da compreensão histórica dos altmos, mediante urna abor­
-se mutuamente na aprendizagem e construção de conceitos, cujo dagem cooperativa de ensino, refletindo e avaliando as estratégias
objetivo primário é fitcilitar o desenvolver de uma sociedade efetiva­ implementadas e todos os proccdimemos, para melhorar a qualidade
mente cooperativa e democrática. do processo ele aprendizagem desses alunos. Essa abcmlagem permi­
Vários autores (Bcssa; Fontaine, 2002; Johnson; Johnson, 1999; tiu modelar continuamente o processo de ensino rendo em conta os
Freitas; Freitas, 2002) sustentam que a aprendizagem cooperativa é efeitos e resultados apresentados, visando ao desenvolvi memo da com­
uma das técnicas mais eficientes para a promoção do desenvolvimento preensão das diversas matérias por parte dos alunos. Através de estra­
pessoal c social, contribuindo para promover o desenvolvimento de tégias reflexivas, foi possível uma análise interpretativa e crítica dos da­
competências de trabalho em equipe c de relacionamento interpessoal. dos a fim de modelar c reformular o processo de ensino-aprendizagem.

1(.6 167
ENSINO DE HosTÓIUA c Cunnlcuw

I o

Todo o processo educativo assentou, igualmente, numa pers� pelos alunos (fichas de trabalho e de regulação das aprendizagens) c
pecdva construtivista da aprendizagem, segundo a qual o aluno entrevistas informais para melhor aferição das repostas dos alunos.
possui um papel ativo em todo o processo de construção do seu No trabalho com os alunos, foram utilizadas diferentes estraté­
saber (Fosnot, 1999). Na perspectiva do socioconstrutivismo, no gias promovidas numa abordagem cooperativa, tais como: tarefas de
ensino da História surge o modelo da aula-oficina (Barca, 2004). papel c lápis previamente preparadas - fichas de trabalho orientadas
As aulas iniciam-se por meio de questões-chave, a fim de detectar as para tarefus de pesquisa e recolha de informação sobre o tema e os
concessões e ideias iniciais que os alunos possuem sobre determina­ subtemas que estavam a ser trabalhados da área de Estudo do Meio
do tema. Mediante a análise dessas respostas, foi possível selecionar -; o comércio e sua evolução ao longo do tempo; interpretação de
quais os recursos e fontes documentais mais apropriadas e eficientes fontes diversas (icônicas e textuais); atividades que promoveram a
I
para o debate e construção de conceitos significativos. Desta for- produção de textos escritos (narrarivas); desenhos (ilustrações e ban­
ma, o professor molda a investigação, tendo em conta as discussões da desenhada); construções de linhas de tempo; e todas as atividades
apresentadas pelos alunos, das ideias e conhecimentos evidenciados que incluíram a participação da turma e da comunidade - constru­
sobre a temática em estudo. Este modelo reserva o papel principal ção da feira "A evolução dos mercados e feiras ao longo dos tempos".
ao aluno na construção das suas aprendizagens, uma vez que vai A an;ilise deste projeto será, ainda assim, holística e não exaustiva.
desmistificando e reconstruindo conceitos mais completos e cor­
rctds: mas sempre tendo em conta as suas ideias iniciais. Por fim, Questões de investigação
recorreu-se a um momento de avaliação/sistematização das aprendi­
zagens alcançadas. Esses momentos são muito importantes, uma vez Quando do início do projeto, foi formulada a questão de in­
que permitem, tanto ao professor como aos alunos, refletir sobre a vesrigação:
estratégia adotada e sobre os processos cognitivos na construção do
conhecimento c pensamento histórico dos alunos. "Como constroem os alunos o conhecimento histórico e desen­
Tendo em conta a importância do socioconstrutivismo, a apro­ volvem competências de aprendizagem, através de uma abordagem
priaÇão dessa metodologia tornou-se evidente no âmbito da imple­ cooperativa de ensino centrada no modelo de aula oficina?"
mentação deste projeto. A possibilidade de serem os alunos a cons­
truírem os seus próprios conhecimentos permite, ainda, que esses Ao longo do mesmo, outras questões foram sendo desconina­
desenvolvam o seu espírito crítico c reflexivo e adotem uma postura das intrinsecamente ligadas à primeira:
mais ativa, tendo sempre em conta as suas experiências passadas,
tornando todo o novo saber significativo. "Que papel deverá o professor desempenhar nessa prática de
ensino?"; ·

Esb;atégias pedagógicas, técnicas e inst1·u.mentos de 1·ecolha "E os alunos?";


de dados "Como conseguir envolver a turma num ambiente de trabalho
cooperativo?";
Durante todo este projeto foram utilizados diversos métodos e "Como motivar os alunos para a aprendizagem do Estudo do
técnicas de recoU1a de dados: observação direta, sistemática e partici­ Meio Social (centrado na História)?".
pante; notas de campo; diários de aula reflexivos; trabalhos efetuados

IGR 169
I IAI.FFRU CARI.O� 1\uu:lllO JúNIC)R I I\IAIRON E.�con.�l v••.�.lliO (onc�.) EN>!NO uE I llsTÓRIA � CunnlcuLO

Objetivos dades dos alunos e em determinadas situações geravam-se conflitos.


Pretendeu-se que os pequenos grupos agissem de modo diferente
lendo em conta as observações iniciais, a temática, as estraté­ de qualquer um dos seus elementos considerados individualmen­
gias pedagógicas e as questões de base que o projeto pretendeu ver re, criando uma consciência coletiva que fosse além da soma das
respot}c�idas, o mesmo teve como principais objetivos:
consciências individuais. O fundamento para o grupo é a confiança
I

:
a) Implementar n:� sab de aula uma prática de ensino da Histó­
inrerpessoal e a motivação para a realização de uma taref.'l comum.
Numa segunda fase, houve a necessidade de compreender quais
ria alicerçada numa abordagem de aprendizagem cooperJtiva;
I
eram os conceitos prévios dos alunos relativamente ao rema e aos
b) Compreender c descrever, no contexto dessa prática, al-
guns processos <tne estimulam e promovem a construção de subtemas que viriam a ser estudados- o comércio e a sua evolução.

conhecimento histórico e a compreensão histórica sob urna Com a realização de um debate inicial e a resolução de uma ficha
perspetiva socioconst rutivist ; a de trabalho em grupo (respeitando os grupos formados anterior­
1 q) Proporcionar a pesquisa autônoma, a seleção e a explora­ mente e rodas as indicações revistas tendo em co1Ha a metodologia
JÍo de fontes diversas através da abortbgem de aprendiza- de abordagem cooperativa), foi possível concluir guc os alunos da
1 gem cooperativa;
r ,�, 1) Desenvol er o trabalho cooperativo tendo em conta um
turma possuíam algumas idcias aproximadas relativ:Js aos conceitos
v
associados ao comércio, cmhora um pouco incipientes.
1 , ! opjetivo final cornurn; Essa atividade foi essencial para melhor preparar e construir os
c) Explorar o pensamento histórico dos alunos numa abor­
materiais que viriam a ser utilizados na exploração da temática em
dagem de aprendizagem cooperativa centrada nos conceitos
de mudança c evidência histórica; questão. Esses instrumentos pretendiam tirar um maior parrido das

f) Desenvolver o espírito crítico, de reflexão e dt: construção ideias iniciais apresentadas pela turma, para que as fururas aprendi­
de conhecimento h istórico. zagens construídas se tornassem coerentes e significativas.
A terceira, quarr:J e quinta Etses seguintes do projero preten­
Implementação e descrição das atividades deram explorar, avaliar c sistematizar os conceitos fulcrais para a
I
compreensão da temática do projeto. Foram construídfls atividades
Todo o projeto foi desenvolvido ao longo de seis f.1ses princi­ de grande grupo (como um brainstm·ming ini cial; debates analíticos
pais. Estes momentos foram planificados de acordo com as avalia­ a partir da observação de forografias; exploração de fontes diversas,
ções que iam sendo realizadas para garantir a construção de conhe­ como por exemplo, icônicas - pinruras e gravuras - e construções
cimentos críúcos e significativos pelos alunos. de linhas de tempo); de pequenos grupos de trabalho (execução de
A reestruturação dos grupos de trabalho, seguindo critérios es­ fichas de trabalho e tarefas diversas com apoios pedagógicos distin­
pecíficos e comuns, revistos na contexrualização teórica, foi o pri­ tos - manual, dicionários, rextos descritivos e empíricos; elaboração
meiro e o passo fulcral para o desenvolvimento de um projeto de de linhas de tempo), criadas oportunidades de sisremat.ização/ava­
investigação acerca da abordagem de aprendi7..agcm cooperativa liação dos conhecimentos construídos (jogo de tabuleiro; mímicas;
(Freitas; Freitas, 2002). I- Louve essa necessidade de reestruturação, dramatizações, questões orais; palavras mistério); e elaboradas tare­
pois, apesar dos alunos já terem trabalhado em grupo, esses não fas individuais (criação de uma banda desenhada tem:Ílica; idealiza­
funcionavam da melhor forma, não respondiam a rodas as necessi- dos e concretizados marcadores de livros).

170 171
IIAIITRU C.. ni.C)S RIMIIIO júNIOnj I>IAIRON f..'iCORSI VAI�RIO (OnGs.) ENMNO o� I Jr.,óRIA E Cunulcuw

Nessas fases, abordaram-se os concciros essenciais à construçiín maior entendimento da evolução temporal e da perspectiva históri­
de conhecimentos significativos relativamencc ao comércio e à sur1 ca subjacente a qualquer conteúdo program�\tico.
evolução - a mmprecnsáo de todo o circuito comercial, desde a A fase final do projeto desenrolou-se durante algumas semanas

o igem do produto até ao momento de venda ao constunidor; as e precisou do envolvimento de toda comunidade educativa. Poi pre­

dtfc cnças entre o comercio tradicional e o grande comércio; e foi parada e realizada uma feira reprcsent:triva da evolução dos merca­
cructal despertar nos alunos as evidentes d iferenças entre 0 comércio dos e feiras ao longo do tempo.
do passado e do presente. Do mesmo modo, foi essencial permitir Durante várias semanas, os alunos envolveram-se na preparação
�uc estas diferenças fo.�scrn constatadas através da observação c amí­ e construção do conjunto dos mercados c feiras representativas da
ltse de fontes icônicas (conceito de evidência c mudança). Os alunos evolução do comércio, desde o passado até o presente. Nessa fase de
puderam comparar e, consequentemente, perccpcionar as mudanças preparação, selecionaram-se os períodos históricos sobre os quais
do comércio (evolução) ao longo dos tempos c as suas permanên­ a feira iria retratar; realizaram-se pesquisas sobre os produtos a ser
Cia � �
_ . A� esquisas
efetuadas pretenderam desenvolver competências representados, a moeda e as principais características temporais da
de mvcstJgação, pesquisa c de consolidação de conhecimentos. altura; selecionou-se informação; construíram-se os materiais que
se venderiam posteriormente; analisou-se o vestuário a usar; ela­
, F,oram desenvolvidas atividades que consistiram na análise crí­
boraram-se panfletos informativos que estiveram expostos na feira;
tica ,de algumas fomes icônicas: fotografias c pintmas de mercados
elaboraram-se os convites (e respectiva cstru[Ura textual); os pedidos
e feiras de diversas épocas (Mercado Romano; Feira Medieval; Feira
de autorização para a realh.ação do evento, enrrc outros.
d o Séc. XVl i ; Feira d o Séc XIX; Feira dos anos 1950 e Feira atual).
.

Durante roda essa atividade, os alunos encarnaram completa­


Os aluno.� interpretaram essas fontes icônicas e, a partir delas, pro­
mente o papel cooperativo. Todas as atividades foram desenvolvidas
movera � debates e realizaram atividades de scguencialização. A�
tendo em conta a estratégia cooperativa e organizadas em grupo.
fontes loram colocadas por ordem, da mais antiga até a mais re­
Durante a preparação da feira, roda a turma se manteve envolvida

cente, c foi ustificado o posicionamento das mesmas, explicando
. na construção, pesquisa e partilha de informação. Como cada grupo
porquc constdcraram a mais aÍ: 1Stada, a da esquerda, como a mais
esteve p rincipalmen te envolvido na preparação de uma época his­
_ c a da direita como a m:tis recente.
anttga
tórica a representar, a comunicação entre a turma foi fundamental
durante todo o processo. Essa preparação envolveu os grupos num
,.�
,._
trabalho cooperativo efetivo e o resultado final comprovou por si o
rrabalho de equipe que foi conseguido pela turma.

Figura I. Sequencia1ização de imagens de feiras e mercados

Após o conjunto das diversas atividades, estratégias c motiva­


ções, a perspectiva temporal de evolução/progresso/permanência do
comércio foi compreendida pela turma e pelos grupos de trabalho.
Prcfercncialmcme, a continuidade dessas estratégias levaria a um

172 173
I IAl flP.Hu ç,,l\10� Rrufl.1no ]tÍNIOn I MArn<lN E.scort�r VAr.F.mo (onGs.)
ENSINO OE 1 (J�TÕIUA I! Cunnf<:tn o

Figura 2. Reconstituição de feiras e mercados de várias épocas


(Romana, Medieval, Mo<lcrna, Contemporânea)

174 175
liAI I'�"" CMu os RwP.mo júNIOI\ I MAIHON Esco1\SI VA1.F.mn (n�tc.s.)

Discussão dos resultados O pensamento da criança evolui com as suas aprcndiza�cm. ( >
ser social, que existe em cada uma, evolui com as vivências do par­

No final do projeto, foram analisadas as várias tarcrns realizadas tilhar e do viver em comunidade. Ser grupo é ser capaz de ouvir e

em grupo, com ênfàsc nas tarefàs que consistiram na comparação do aprender com os outros, é ser capaz de dar aquilo que se tem para
comércio no passado e no presente: a análise c discussão da imagem pôr ao serviço dos outros. Dessa experiência resultou a crença que
de uma feira antiga, rcali1.ada em grande grupo, geraram contributos as crianças aprendem partilhando c são seres mais cooperantes se
interessantes, demonstrando que os alunos são capazes de inferir c forem levadas a agir como seres cooperantes. Valori-.t.ando-se o saber
proceder a deduções em ambientes que promovam a discussão e o do qual o aluno é portador c sendo-lhe facultadas oportwlidades
diálogo, gerador:-�s e potenciadoras de ideias e de pensamento histó­ para usufruir experiências educativas diversificadas, a criança evolui
rico nos alunos; a t:.uefa de ordenação das imagens relacionadas com no ser e no saber em contextos facilitadores de interações sociais,
feiras e mercados de v�\rias épocas, realizada em grupo, permitiu ve­ quer com os seus pares, quer com os adultos, favorecedoras de tuna
rificar que os alunos atenderam mais ao suporte material da fonte do intervenção ativa no seu próprio desenvolvimento/aprendizagem e
que à análise do conteúdo - colocaram, majoritariamente, primeiro no processo de desenvolvimcnto/aprendiz.agcm dos outros.
as fotografias a preto c branco como mais antigas c só posteriormente A�sim, cabe aqui refletir sobre as questões orientadoras a que este
as pimuras e as fotografias a cores. Um dos grupos, apesar de focalizar projeto pretendia responder c, respondendo à primeira questão coloca­
aspectos técnicos da fonte (serem a cores ou a preto e branco), referiu da quando do início deste projeto, podemos concluir que a abordagem
outros indicadores, relacionados com a cultura material (vestuário cooperativa fuvorece a construção do conhecimento histórico. Isto por­
das pessoas) c aspectos sociais ("parecem ser príncipes e princesas", que as estratégias cooperativas dão preferência aos debates e discussão
"camponeses"). Os resultados obtidos tenderam a alertar para cuida­
de ideias e essas auxiliam o desenvolvimento de inferências na explora­
dos que se deve ter na seleção das imagens, tal como é salientado por
ção de fontes, permitindo a construção do conhecimento e pensamento
v;Írios investigadores como Barton (200 1 ; 2002), Hodkinson (2003)
histórico. A interpretação de fontes icônicas tornou-se algo de suma
e Solé (2009). Deve-se evitar usar numa mesma tarefa im:�gcns a
importância para o desenvolver do sentido crítico e reflexivo. A atenção
cores e imagens a preto e branco, o que leva a um maior enfoque no
aos pormenores e as inferências essenciais sobre os mesmos rornaram-se
suporte material da evidência, em vez da interpretação do conteúdo
o primeiro futor no desenvolver dessas competências.
ao nível da cultura material (vestuário, habitação, transporrcs, etc.);
A turma em questão, que inicialmente se caracterizava "com
muna outra tarefà, cada grupo comparou a mesma atividade comer­
falta de sentido crítico c reflexivo, assim como, com falta de auto­
cial no passado c no presente (padaria, peixaria, talho, loja de roupa)
nomia", evoluiu. Foram observados diversos alunos a colocar ques­
com o objetivo de analisar que inferências e deduções produzem em
tões pertinentes e significativas para a aprendizagem de todos. Os
contato com fontes icônicas de épocas diferentes (pintura c fotogra­
debates e discussões de ideias entre a turma, sobre os mais diversos
fia) relacionadas com a mesma atividade econômica, identificando
assuntos, permitiram a exploração da partilha enquanto método de
mudanças (pennanência/alteraçóes). Verificou-se que a análise das
fontes é predomimHllemente descritiva, sendo que os alunos enume­ aprendizagem e motivação para a compreensão do outro.

raram o que viram n:.Js fontes, inferindo qual era a atividade comer­ Foi, no entanto, necessário que a professora-investigadora co­

cial represenu1da, e dois dos grupos introduziram nas suas respostas nhecesse a verdadeira essência da abordagem cooperativa c, comple­

referenciais temporais (passado/presente, desse tempo/antigamente) mentarmente, compreendesse o modelo da aula oficina, enquanto

tjuando as comparam. metodologia englobada no socioconstrutivismo. O conhecimento

176 177
HAc•t•n CAntos ltwErRo Jt
lNIOit I MAIItc>N �sconsr YAr.énro (onr:s.) EN�INO nn l lrsTóRrA r. CuonkUL.O

� �
teór co fu cionou como base
de uma boa planificação e
na con� nos mostram pelo conhecer as suas raízes; o seu passado, enquanto
rruçao de mstrumentos adeq
uados à promoção do desenvo indivíduo e enquanto comunidade. Uma vez questionados pelo seu
lvimento
desse conhecimento: quer f
ossem realiwdos 1·nd'tvt·0 ua1 passado, e pelo passado em geral, os alunos tendem a procurar saber
� rupo. Neste projeto, o foco
mente ou em
da aprendizagem dava relevânc c compreender a hstória
i por trás do presente através da investigação,
ia à n:a
ltzação de tarefas em grupo,
o que veio a favorecer uma
interação da exploração e interprctaç.1.o das fontes e posterior panilha de idcias
entre os alunos no processo
de aprendizagem. Por isso, construídas sobre o passado. Dos procedimentos metodológicos his­
?�
é imponantc
realçar apel do professor nesse proc
esso, pois cabe a ele não s6 tóricos, os alunos valorizam o papel das fontes como essenciais para a
construtr mstrumenros ade
quados' como rambe'm saber · ·
construção do seu conhecimento e da compreensão histórica.
� � .
genr as st-
tuaçoes nao prevtstas, para
que os mesmos, constituam Embora não houvesse tempo para ajustar as práticas desenvol­
momenros
de aprendizagens significativas. vidas c dar continuidade ao projeto, construiu-se uma sequência de
Por sua vez, �s
alunos, uma vez envolvidos
nestas prancas, aprendizagem baseada na observação, na planificação, na ação, e na
devem cna _

r strategt.a� entre si de form
a a debater, compreender, avaliação c reflexão dessa ação. Foram reforçadas as idcias precon­
explorar, parulhar e evoluir
em conjunto, num crescim cebidas sobre a importância da reflexão c avaliação - essas etapas
ento global
da turma, teórico e cívico. Sen
do que, para isso, impona foram fundamentais para a ponderação dos erros cometidos e refor­
que, 110
comexw de sala de aula, exis
ta um verdadeiro ambiente mulaçáo das interações.
_ de trabalho
cooperanvo e acima de tudo, a compre
: ensão de que essa panilha Ajudar as crianças a desenvolver competências no saber ser, sa­
comun1 pc:rmtte um maior
crescimento pessoal. A evo ber estar, saber aprender, era um objetivo. A turma tornou-se mais
_ , _ lução do sen­
ndo cnu co dos alunos e o seu envolvi
mcnro e partilha nos rr.1balho turma e o egocentrismo que mtútas crianças manifestavam foi-se
s
de grupos sofreram uma evol
ução notória. diluindo com o aprender a cooperar.
l)odemos afirmar, partindo dos resultados obtidos com este pro­
Considerações finais jeto, que é importante criar atividades apelativas e envolventes, para
que as crianças se sintam elementos ativos na sua aprendizagem. O
Esrc projeto veio concretizar
que as crianças, através de ambiente na sala de aula torna-se mais dinâmico, c o trabalho mui­
uma
abordagem cooperativa, cres
cem e aprendem enquanto to mais consistente se a criança. interagir com convicção e segundo
seres huma­
nos e enquanto alunos. Tal
como os estudos já referidos os seus interesses. De uma forma genérica, pôde-se concluir que a
:
ram também este r oje o perm : �
demonstra­
itiu concluir que uma esrratég abordagem cooperativa se mostrou como algo importante, uma vez

abordag m cooperauva e uma
mais-valia, embora, muitas
ia de
que motiva a partilha, o debate de idcias, a discussão, promovendo
ve7.es, seja
subvalonzada uando com �parada aos simples trabalho aprendizagens significativas mais complexas e abrangentes. Permitiu,
��
O pa l reflcxtvo que essas abordag
s de grupo.
ens metodológicas envolveram ainda, captar as ideias históricas dos alunos acerca da mudança em

pcrmmu a co tstrução de um
conhecimento histórico com história e da evidência histórica. O trabalho cooperativo fomentou
�� �
c r pl xo, asstm como o dese
nvolvimento de valores mor
pleto e
nos alw1os o pensamento histórico e uma melhor compreensão his­
���
a ·t s a construção do ser hum
ano dvico - objetivos que
ais neces­
tórica do passado, do presente c prospecção da construção do futuro.
estavam
rructalmentc propostos.
A motivação para a aprendiz
agem do Estudo do Meio
Social
centrado na História, deve part
ir da curiosidade natural que
os alu �
17H 179
I IALfERO C.uu>s Rme1nOjiÍNIOR 1 MAIRON Escon;1 VAIt1110 (o•cs.) ENSINO "" I hsTÓI\IA P. Cunnfc:uo n

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180 IRI
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N Esconsr v...�UI() (oncs.)

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preensão histórica atruv�• 10
de uma abordagem de aprendiz
agem cooperativa: um projcro
com alu PRODUÇÃO D O SABER HISTÓRICO
nos do 3o ano do Ensino Básico.
Relatório de Estag
' •io do Mes.trado em
Ed ucaçao
- Pré-l .�co
:. .. lar e Ensinu do 1" Ciclo ESCOLAR NO ENSINO MULTISSERIADO:
do Ensino B:ísJ·co. Braga. Ulll•
versJ'dade do Minho, 2013 . . ,
RELATO DE EXPERIÊNCIA DOCENTE DO
SOLÉ, G. A História no I,o Cicl
o do Ensino Básico: a Con
cepção do ESTÁGIO CURRICULAR SUPERVISIONADO
Tempo e a Compreensão Histórica
das crianças e os Contextos para
. o seu
Desenvolvime nto. 2009. Tese de Doutoramento DA GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA DA UFFS/
· - Ramo de Esrudru dn
.
Cnan ça' Arca de Estudo·s d0 Melo
· soct·a1 nraga: Universidade do Min
·
.
Instituto de Estudos da Criança.
ho, ERECHIM
YlN , R Case Study Researclt
: Design an Methodolo.- Bruna Baldin
oy
• · 2 ed. London· ·
·
Sage Publications, 2003. Mnrcetme Cntia Santo/in Biscnro
1 !alferd Carlos Ribeiro júni()r
Universidade Federal dn Fronteira Sul- UFFS - Campus Erec/;im

Este capítulo aborda a experiência docente reali1.ada no perío­


do de 3 de maio a 9 de junho de 2016, com alunos do 6° e 8°
anos do Ensino Fundamental na Escola Estadual Vista Alegre, si­
tuada no município de São Valentim-R$, escola do campo. A par­
tir dos dados colctados no questionário socioeconômico e cultural
c a observação da comunidade escolar, foi possível compreender a
realidade que a escola está inserida c projetar uma proposra de in­
tervenção pedagógica, aliada às práticas cotidianas ao processo de
ensino-aprendi1.agem. Iendo como pressuposto a superação de uma
estratégia metodológica em que utiliza apenas o livro didático para
o processo de cnsino-aprendiL.agcm, o presente relato teve como
proposta pedagógica a temática dos meios de comunicação e a dis­
cussão do que é História. O que ela estuda? E como são construídos
os sujeitos históricos? As aulas foram organizadas com base no uso
de doctunentos em sala de aula, atividades aparentemente simples,
sobre os meios de comunicação c as formas de representar c conser­
var a história. Procuramos trabalhar de forma interdisciplinar, na
busca por uma globalizaçáo do conhecimento.

183
182
I IAI.I'''"" Clnws Ru•Emo J•'INI(>n I MAIRON EoCORSJ VALÉHIO (oncs.)

Compreendendo a Realidade Escolar e o Perfil dos Alunos A escola possui um terreno de 40 mil metros quadrados, equiva­
lente a 4 hectares, dividido em diversos setores, tais como, horticul­
O estágio iniciou-se no dia 3 de maio de 2016 e terminou no tura, fruticultura, horto de plantas medicinais, jardinagem, espaço
dia 9 de junho de 2016, sendo 15 horas para a preparação de aulas, para lavouras onde são desenvolvidas as aula�, atividades práticas,
15 horas de regência, 30 horas para o desenvolvimento do Projeto palestras e reuniões. Possui seis salas de aula, biblioteca, área coberta,
de Pesquisa e intervenção, bem como para a aplicação do questioná­ onde os alunos podem realizar diversa� atividades, cozinha, refeitó­
rio e 30 horas para a Elaboração do Relatório de Pesquisa. As aulas rio, banheiro para os professores e para os alunos, sala dos profes­
eram ministradas nas terças-feiras, das 9h15min até as IOh, e nas sores e direção, encontrando-se essas salas em 6timas condições de
quintas-feiras das 7h40min até as 9h lSmin. A seleção das turmas uso. A escola conta com a participação efetiva dos pais c de toda a
trabalhadas incluiu alunos do sexto e oitavo ano (6° e 8°), ambas as comunidade na� diversas atividades realizadas na escola. No total, a
turmas são alojadas na mesma sala de aula, sendo esta considerada escola recebe 52 alunos da 1a a 9" séries, sendo 25 de l 0 ao 5° ano do
mulrisseriada, assunto que abordaremos no decorrer deste trabalho. Ensino Fundamental c 28 da 5" e 8• séries do Ensino Fundamental.
Para conhecer a realidade socioeconômica c cultural dos alunos, No Brasil, embora se evoquem políticas públicas igualitárias c
aplicamos um questionário e observamos o cotidiano escolar. tenha sido moldados para avanços em prol de uma pátria educado­
A .Escola Estadual de Ensino Fundamental Vista Alegre está si­ ra, há inúmeras diferenças no sistem:� de ensino. Em tese, trata-se da
tuada na área rural na localidade de Vista Alegre, município de São realidade vivenciada e existência, em grande escala, de escolas mul­
V.1lentim, es1ado do Rio Grande do Sul. A EEEF Visra Alegre foi tisseriadas, sobretudo em espaços rurais do país, a exemplo da região
criada em 7 de novembro de 1960, pelo Decreto n° 1 1.767, como em análise, ou seja, escolas que necessitam da junção de alunos que
escola rural isolada em Vista Alegre; em 1979 passa de escola rural perpassam diferentes níveis de aprendizagem em uma mesma sala
para Escola de I 0 Grau Incompleto; em 3 1 de março de 1995, passa de aula, e a prática de ensino trabalhada por um único professor.
a ser Escola de I 0 Grau; c em 21 de detembro de 2000, para Escola Segundo o Manual de Orientações Pedag6gicas para Formação de
Estadual de Ensino Fundamental Visra Alegre, atendendo os alunos Educadora� e Educadores do Minjstério da Educação, MEC- MOP­
de todas as modalidades do Ensino Fundamental e Educação Infan­ FEE, "passou a ser conhecida como mulrisseriada para caracterizar
til em parceria com a Secretaria Municipal de Educação. um modelo de escola do campo que reúne em um mesmo espaço
A escola possui dois turnos de funcionamento, das 7h30min às um conjunto de séries do ensino fundamental" (MEC, 2009, p. 23).
11 hSOmin, e das 13h às 17h, recebendo alunos de 1° ao 9o anos, Diante dessa assertiva, percebemos que a sala de aula multisseriada é
sendo esses provenientes de f:1 mílias perrencenres a localidades pró­ o modelo que define a organizaç.'io mais típica da escola do campo.
ximas da escola, como Vista Alegre, São João, Linha Canarinho, A Lei de Diretrizes e Bases da Educação n° 9394, de 19%, pro­
Resvalante e Lije3do Tombo, a maior parre dos pais dos alunos é for­ põe modificações políticas para a cduc:tção rural. O Artigo 23, §2°,
mada por pequenos agricultores. A escola localiza-se dentro do meio menciona que "a educação rural deverá adequar-se às particularida­
rural, em que desenvolve um Projeto Agrícola que tem como objeti­ des locais, inclusive climáticas e econômicas, a critério do respectivo
vo principal dar subsídios para a agricultura familiar, desenvolvendo, sistema de ensino, sem com isso reduzir o número de aulas previsto
assim, conhecimentos b:hicos de agricultura, dando ênfuse maior na nesta lei". Destacamos que, ap6s essa lei, a estrutura do currículo
permanência do homem no campo. O acompanhamento dessas ati­ deve adaptar-se à realidade Ja educação do campo, mas essa reali-
vidades é supervisionado pelo professor de técnic.'ls agrícolas.

IR5
l iA� o o "" <:..., •h lloowmo JíoNoou I MAor<oN Esco"" v., t11uo (oucs.) E.NSIN<> uP. l lls1ô1uA E Cu!lllfcui.O

d.tde desencadeia problemas, sobretudo na formação do professor, juntura, Hage (2003) aponta para a construç.'io do Projeto Escola
que é preparado para aruar em salas seriadas e ripicamcnre urbanas. Ativa, a construção de uma estratégia metodológica adequada para
A EEEF Visra Alegre está inserida nessa dinâmica apontada aci­ as classes multisseriadas.
ma, a fim de compreender de maneira qualificada a sua realidade A partir da aplicação do questionário socioeconômico c cultural
escolar para fundamentar a prática pedagógica do Estágio Curricular que ocorreu no dia 3 de maio de 2016, elaborado a partir das re­
Supervisionado l l da graduação em História da Universidade Federal Hexóes da dissertação de Conceição (2010), com os alunos do 6° e
da Ponteira Sul, abordamos a experiência desenvolvida nos 6o e so 8° ano, tendo 29 questôcs objetivas e 2 descritivas, analisou-se um
anos, uma sala de aula multisseriada. A necessidade de se instalar total de 13 alunos participantes que possuem de 1 1 a 14 anos, sendo
as classes multisseriadas é dada por diferentes f.·uores, no que se re­ 6 do sexo feminino e 7 do sexo masculino.
fere à escola em quest�o. o principal motivo da opção pelo ensino Sobre o local em que residem, todos afirmam ser no mwúcípio
multisseriado é o nt'uncro de alunos matriculados, o 6o e o 8" a no, de São Valentim, 1 2 deles residem com a família em uma casa ou
contemplam um total de 4 c 9 alunos marricuJados respectivamente. apartamento e apenas l mencionou residir com outras pessoas. De
Não menos importante é a escassez de estudos que tratem do forma unânime, todos mencionaram que residem em casa própria,
assunto e, sobretudo, da inferiorização em que este sistema educacio­ l O com o pai e a mãe c apenas 3 com outras pessoas. No item que
nal é taxado. Assunto que desperta curiosidade e carece de estudos a relaciona os bens que possuem em casa, no total são 17 televisores e
partir da interrogação de como este sistema interfere no aprendizado 17 rádios (mais que wna unidade em cada residência, imaginando ser
do aluno e quais seriam as dificuldades enfrentadas. Mas, o grande esses grandes ferramentas de acessos pelas fàmílias); 4 computadores;
desafio é preparar o professor para lidar com C.'>Sa realidade e atuar 16 geladeiras; 4 telefones fixos; 27 celulares; 6 aparelhos de DVDs; 2
em sala d e aula sem que se prejudique o ensino e a aprendizagem, aquecedores e nenhuma presença de ar-condicionado.
trazendo consigo materiais didáticos que embasem sua atuação. No que se refere à assistência médica, 7 mencionaram ter plano
Em sua tese, Azevedo apresenta as dificuldades dos professores de sat'1de e 6 não. Chama-nos atenção a questão da TV por assinatura,
que trabalham em escolas multisseriadas: pois muitos afirmam ter em sua casa, mas, segtmdo questionamentos e
comentários feitos por eles mesmos durante a aplicação do questioná­
[ ... ] precariedade de infra-estrutura física das escolas, as rio, trata-se de algo "não lcgaJizado", 9 afirmam ter esse sistema em sua
limitações materiais e pedagógicas, a falta de condições casa e apenas 4 não o possuem. Como meio de transporte, 12 afirmam
apropriadas para a realização do trabalho docenre nessas utilizar automóvel próprio c apenas 1 utiliza transporte coletivo.
rurmas e a falta de um projeto político-pedagógico que Com relação à renda, 9 afirmam que seus gastos são custeados,
orienrasse pr:íricas condizentes à identidade e particulari­ 1 trabalha e é independente c 3 trabalham, mas são dependentes fi­
dades dos que vivem, trabalham e estudam no meio rural. nanceiramente. Com relação à renda familiar, 1 afirma ser ele ou ela
(Azevedo, 20 I O, p. 163) a pc..�soa que mais contribui, 2 dizem ser o pai, 1 a mãe, 6 afirmam
ser o pai e a mãe e 3 outra pessoa. Ainda, no que se refere à renda,
Segundo a LDB no Artigo 4°, é dever e obrigação do Estado 8 mencionam ser de até três salários mínimos, 4 até cinco salários
ofertar Ensino Fundamental público e de forma gratuita. Por tratar­ mínimos, 1 mencionou ser de cinco a oito salários mínimos.
-se de um ensino diferenciado, ou seja, multisseriado, é oportuna Dos 13 altmos analisados, 12 mencionam que os pais biológicos
a implantação de sistemas com programas específicos. Nesta con- vivem jlllltoS e apenas 1 que são separados; 1 1 afirmam que o pai

186 187
li AltERO C.. r
u O• lhoerRO júNro• I MArRON f:.scoasr VALÉRro (o•cs.) EN�INO or. l lrSTÔAIA r CURI\Ic:ur n

possui Ensino Fundamental incomplew e quanto à a mãe são I O; Ao tratar-se do acesso à internet, do total, 6, ou seja, ti6, I ',%,
no Ensino Fundamemal completo são apenas 2 mães; com Ensino afirmam acessar de casa; 3 (23,07%) da lan-hotL�c; 2 ( l 5,38'Yc') da
Médio completo l pai e 1 mãe; e outra escolaridade, foi citado 1 pai. escola c os outros 1 5,38%, mais 2 alunos, de outro lug�u. Desses, 7
Quanto à profissão ou forma de trabalho, 1 1 alunos afirmaram que aJirmarn que ncnluun adulto acompanha os acessos; quando se tem
o pai trabalha na agricultura, 4 mães têm a mesma ocupação e outras algw11 acompanhamento, 5 citaram tê-lo e com frequência, ape­
4 são donas de casa; 1 aluno afirma que a mãe trahalha na indtJstria; nas 1. Dos alunos analisados, 28,6% afirmam utilizar o computa­
1 pai el mãe no comércio e mais 1 pai e 3 mães em outra ocupação. dor para pesquisar na internet; 23,8% para conversar com amigos;
Os resultados da pesquisa atestam que os 1 3 alunos passam 1 9,04% para jogar c outros 1 9,04% para visitar sites c blogs e ainda
mais de cinco horas com a família. 9 apontam que passam de três 9,52% para outros fins. Ainda sobre estar ligado aos meios midiáti­
a cinco horas com os amigos durante o dia e 4 passam mais de cin­ cos, 1 7,64% mais 17,64% passam até 3 horas por dia ouvindo rádio
co horas. Quanto à realização de atividades paralelas, excraclasse, 3 e mtJsica; os demais se dividem em ler, ver TV e ficar em frente ao
afirmam não ter parricipaç. 'í o alguma; 4 afirmam participar de ativi­ computador; no irem até cinco horas, 70% passam vendo TV; até
dades artística.s/culturais/arresanaco; I de movimentos religiosos, 1 dez ou mais horas, 30% apontaram a atividade.
em movimentos estudantis; e 4 de atividades esportivas. Em um primeiro contato, na própria aplicação do questionário,
Como fim te de informações, tendo várias opções para serem enu­ fizeram-se necessárias orientações para a compreensão da proposta.
meradas, sendo que o número I representava a principal, 2 a secundária Havendo solicitação por parte dos alunos, fez-se o preenchimento
e assim por diante; 8 alunos mencionaram ser utili7.ada a inrerner e 8 mediante a leitura das acadêmicas c explicações para que cada um pu­

rambé1 mencionaram ser através dos professores; no irem livros, ape­ desse escolher as suas alternativas, não ficando claro para eles (alunos)
nas 2 afirmaram ser utilizados; 3 marcaram amigos; e 6 mencionaram o que deveria ser preenchido. De forma imparcial, acompanhou-se
fàmiliares. Como meio de informações, a TV aparece como mais uti­ o preenchimento sem tendcnciá-los para não prejudicar o resultado.
liz...1da, sendo priorizada por 1 0 dos 1 3 participantes, seguida do rádio, Neste sentido, sentiu-se uma grande necessidade da participação do
apontado por 7 participantes, 2 utilizam a internet e I o jornal. professor ou, neste caso da regência, em panicipar do processo de
Ao analisar de forma percentual o critério da leitura citando ensino-aprendizagem, sendo este um primeiro tato da importância
livros de literatura, 40% afirmam ler diariamente; 40% de vez em do professor na sala de aula para conduzir o aprendizado.
quando e 20% nunca Icem; no irem jornal, nenhum lê diariamente e Com base na tabulação dos dados do questionário socioeco­
35% nunca leram, os demais dividem-se em 35% de vez em qwmdo nômico e cultural, constatamos a utilização do rádio como uma
e 30% raramente; no i1ern revisra, o volume maior de respostas está fonte de informação e até mesmo como ferramenta de trabalho pre­
em raramenre com 70%; e 30% leem outros materiais diariamente. sente no cotidiano das famílias, desse modo, a temática dos meios
Com relação aos programas de 1 V mais assistidos e sua maior fre­ de comunicação de massa, especialmente o rádio, é uma demanda
guência, destacam-se: diariamente dos 1 3 alunos, 7 assistem l11mcs; dessa comunidade escolar, potenciali7_ando o trabalho pedagógico
d e vez em quando 9 afirmam assistir seriados; raramente 2 assistem em sala de aula. O aces.�o à internet, embora pareça eslar u m pouco
seriados e, no quesito nunca, 5 responderam nunca assisrir desenhos distante de localidades que não sejam os centros urbanos, invade
animados. Em percentual, 36,05% afirmam assistir filmes de ação; todo c qualquer lugar na contemporaneidade. Destacamos a pre­
35,74% filmes de terror; 1 1,6% filmes históricos; 9,71% comédias; sença desse recurso em grande parte das famílias analisadas, sendo
6,64% outros c l % romance. esse um instrumento inserido na rotina de crianças, adolescentes

IRH 189
11" .. " " c """' 1(1111 111() jt'INIOit I MAIRON f'->COR>I VALÁIUO (OitGS.)

• uluhm . E, :.c utilizado de forma asseniva, é


peça relevanrc I'·"·' tados nesta sociedade que se modifica a cada passo, e sobrcwdu que
• •11ulm c· pesquisas e é neste sentido que se busco
u a utilizaç.'io d1., se sintam sujeitos nesse processo histórico.
'·' ll'namcnta como forma
de estudo para elaboração de atividadc•N De acordo com Monteiro (2007), o ensino de História, o en­
solicitadas. Para sanar a problemática de sino de conteúdos, é uma tarefa aparentemente simples, porém, ao
alunos que não esrcj:uu
contemplados com o acesso, a divisão por associar esse ensino da educação básica com o trabalho do historia­
grupos de estudos fucili1•1
o compartilhamento do material pesquisado dor, essa tarefa torna-se bastante complexa.
, além de ter a própt ia
escola como conexão com a rede, possibilitan
do em horário exrra
classe as condições para pesquisa. Tornar acessível aos alunos o conhecimento constituído
Ainda que as informações sobre a rendn
das f:1mílias tenham sobre as sociedades e ações humanas do passado, passado
sido prejudicadas, pois os alunos não conhe
cem de fato a renda dos recomposto pelos historiadores a partir de documentos
pais, inferimos que as condições financeiras
das fu.mílias apontam
constituídos como fontes; possibilitar a leitura de textos e
para uma condição digna, já que todos possu imagens, a escrita de suas apropriações, aprendizagens, a
em moradia própri:l,

t ansponc particular e aparentemente, segun
do remuneração, ima­
(re) construção de representações, selecionar quais saberes,

gt amos que possam sanar as necessidades
de maneira digna com
quais narrativas, quais poderes legitimar ou questionar, são
.
saude, altme nração adequada, educação pública, entre al guns ele seus desafios. (Monteiro, 2007, p. 76-77)
outros.
A partir dos dados do consumo de mídias,
é inreressame explo­
� �
rar o us da mídias como ferramenta educ
:uiva. Não menos impor­
É possível compreender a partir disso, afirma Monteiro, que a
tame d tscunr o ; meeirohistória, sobretudo História é wn termo complexo que por vezes trata das vivências, dos
a partir das respostas
_
produztdas sobre ;Por que devemos estudá-la?", não distan processos sociais de tempo, das ações humanas, bem como a partir
ciando-a
do papel relacionado com a identidade e de novas descobertas, novas evidências e produções recompostas por
cidadania.
historiadores que solidificam tais mudanças por meio de documentos,
A Intervenção Pedagógica chamados de fontes. O pensamento de Monteiro (2007) traz mais
pontos que contribuem para wna reflexão acerca do ensinar e refere­
A constante aceleração de meios que possibilitem 0 acesso a -se ao papel do professor, que tem como responsabilidade dar sen­
tudo, a todo o tempo, determina uma sociedade em constante aper­ tido à História e nortear o conhecimenro escolar. O seu papel não
.
fetçoamenro no que se refere ao conhecimenco. Não diferente disto eleve prender-se e seguir um modelo existente, predeterminado, que
:xige um profissional no meio da educação ou em qualquer outr � limite a exploração de conteúdos c a didática em sala de aula.
arca cada vez mais qualificado, um professor de História capaz de Bittencourt (2002) argwnenta que é uma tarefa muito com­
ser um produtor de saberes, com capacidades de se comprometer plexa o cotidiano do professor, que necessita enfrentar um presente
com o ensino e vê-lo como produçáo, reflexão, investigação e en­ repleto de contradições, um futuro incerto e um passado cheio de
_
volvtdo em constantes descobertas que possam despertar nos alunos fragmentos, decorrentes de uma vasta fonte de informações por ve­
competências ligadas à natureza da história (Fonseca, 2005). O pro­ 'l..es oriunda da escola, dos meios de comunicação de massa c até
fessor preocupado com esta aceleração de transformações e centrado mesmo pela história de vida.
nos fundamentos da ciência histórica será capaz de proporcionar, a A interdisciplinaridadc é wna porta capaz de proporcionar mui­
seus alunos, condições necessárias para que estejam situados e orien- tas alternativas diferenrcs para desenvolver práticas coletivas entre

190 191
I I A I I I "" CAtu O> H""""" }IÍNIOn I MAIRON Escons1 VA1.1m1o (onc.s.)
ENSINO oe HISTÓRIA e CunRicm.o

••� disllnws disciplinas escolares. Prender a atenção de adolcsl'l'lll • �


discussões que inquietam o presente, que ela se constrói. Atualmen­
1 l 1dos de energia não é tarefu 1-:-ícil, provavelmente a proposl.l d1
te, qual o aluno que não se vê rodeado por meios de comunicação
unir diferentes temáticas torne a aula mais dinâmica, assim ro11111
que a todo momento disseminam informações, manifestam fi)rmas
aponta Barbosa (1993):
de pensamento, constroem estereótipos que viram tendência e se
reinventam a cada passo?
[...] sua prática depende da atitude que cada educador deve
Na prática de sala de aula, a problemática acerca de um objeto
tomar freme ao conhecimemo, despindo-se de toda postura
de estudo pode ser construída a partir de questões colocadas pelos
positivista que o tem caracterizado neste século [...] o conhe­
cimento interdisciplinar não se restringe a sala de aula mas ul­ historiadores ou das que fazem parte das representações dos alu­
trapassa os limites do saber escolar e se fortalece na medida em nos, de fi>rma tal que eles encontrem significado no conteúdo que
que ganha a amplitude da vida social. {Barbosa, 1993, p. 65) aprendem. " [...] É preciso que se leve em consideração o faro de que
a História suscita questões que ela própria não consegue responder
Mediante esses apontamentos de estudiosos e analistas sobre en­ e de que há inúmeras interpretações possíveis dos h1tos históricos
sino/aprendizagem, indagamos: O que esperar do professor de His­ l. ..]" (Shmidt, 2002, p. 1 21 ) .
tória? Quais seriam as alternativas para driblar tamanha conjumura Abordar a temática dos meios de comunicação em sala de aula
cultural e ruptura de um sistema, redudantemente, denominando proporciona aos alunos uma maior compreensão sobre os sujeitos
"sistemático"? Desta fimna entende-se que a sala de aula é um espaço históricos, bem como sobre as realidades e formações sociais que es­
em que professores e alunos podem travar debates construtivos, o tão ocorrendo em determinado tempo c espaço, fazendo com que o
professor, além de apresentar os conteúdos, pode também considerar aluno confronte sua visão crítica, visão de análise e visão comparati­
as ideias de seus alunos. O professor de História, segundo Schimdt va entre os documentos, produzindo sua própria conclusão a respei­
(2002), deve promover condições para que o alw1o participe do pro­ to de determinado assunto. No entanto, para que esse planejamento
cesso de fazer e de construir História e da construção de sentidos. transcorra da melhor maneira possível, é necessária a atenção por
Nesta perspectiva, de quebra de paradigmas da tradicional cro­ parre dos educadores em um ponto relevante no que diz respeito
nologia, o ideal é propor novas alternativas e práticas em sala de aos cuidados que se deve ter em manusear um documento em sala
aula, no intuito de incentivar o envolvimento das mais diferentes de aula. Circe Bittencourt ressalta a atenção para esse ponto, faz-se
séries do Ensino Fundamental em uma gama de acontecimentos e necessário que a professora tenha clareza na execução de suas rarefas
discussões que façam o indivíduo refletir sobre a invenção, existên­ didáticas, estabelecendo os seus objetivos para que a aula, o aluno, o
cia, evolução e reflexos dos meios de comunicação no cotidiano e documento e o professor estejam todos ligados. É importante sele­
sobre os mais variados acomecimentos históricos que representaram cionar os documentos com os quais se irá se trabalhar, propondo ao
grandes fatos e que podem trazer reflexões c abordagens dentro da aluno algumas noções de como manuseá-los.
sala de aula com temas contemporâneos, propondo uma espécie de Os meios de comunicação, a exemplo do rádio e documentos
transposição da didática dentro do procedimento histórico. pessoais, foram, até agora, parte da escolha do tema a ser discutido
Não há como trabalhar a História distante do universo em que e trabalhado em sala de aula, mas por fim c não menos importantes
o aluno está inserido, ela é viva e está presente em todos os momen­ são as imagens e sobretudo o extremo papel dos museus que possibi­
tos da vida e é através de interrogações sobre o passado, a partir de litam a preservação de objetos e formas representativas que mamêm
vivo na memória o passado.

192
1?3
I IAI .,.... c.....n, HonURO júNIOII I �IAIR()N E.•con." v•• �1\10 (ORGS.)
EN>�NO OE Ho�TÓIUA I! CuouúcuLO

A importânci� de observar imagens, desenhos, fotografias, ma­


os quinze primeiros minutos de aula são destinados para a leitura c
pas e outros recursos visuais torna-se agradável em sala de aula, sain­
esses rambém fizeram parte dessa prática de regência, por se consi­
do da rotina habitu�l. Trabalh�r com esses recursos proporcion� aos
derar a atividade enriquecedora para o aprendizado.
alunos um pensamento de observação e percepção. Ao apresentar
Parrindo desse pressuposto, o objetivo central do projero foi
um� imagem ao aluno, ele, de imediato, associará ao conteúdo estu­
realizar as atividades com um olhar nas fontes históricas, analisando
dado anteriormente, contando com seus conhecimentos para auxi­
seu contexto na evolução da História, a leitura dos mais diversos
liá-lo na hora de escrever e trabalhar com essa imagem, disúnguindo
documentos, fotografias, imagens, por meio de música, trazendo
o momento que isso aconteceu, em seu espaço de tempo. Também
para o alnno um contato mais prático com essas ferramentas, des­
aqui se faz. necessário reforçar o cuidado na hora de selecionar as
perrando uma visão crítica de análise e comenrários, fazendo com
imagens, pois tudo isso rcmo1W1 conhecimento e aprendizagem, e
que eles contextualiz.assem suas ideias sobre determinado assunto
faz com que o aJuno explore os pontos-chave de pesquisa, interpre­
com o conhecimento já adquirido na fase de sua trajetória escolar,
tação c discussão, fazendo análise da época, o que acontecia neste
em um espaço de tempo e lugar.
espaço de tempo e em que lugar isso aconteceu, de forma a lrabalhar
essas semelhanças entre uma imagem e outra.
DATA ATIVIDADE CARGA
O uso de imagens hoje em sala de aula traz uma riqueza de infor­
mações c detalhes importantes, que tornam a aula atraúva e dinâmica,
03/05
I Apresentação dos alunos. Dinâmicas e
HORÁRIA
1 h35min
sendo, desta maneira, uma óúma ferramenta de pesquisa para o en­
jogos de interação.
sino de História, instigando o aluno a utilizar seu ponto crítico, para
05/05 Apresentação do Plano de Ensino. 1 h35min
expor suas ideias, observações e comentários diante de uma fotogra­
Apresentação geral do ensino de His tó ria ,
fia, por exemplo. Vale destacar que aqui se inclui também a leitura de bem como a importância de se estudar
charges de jornais, manchetes e noticiários. Esse recurso, se utilizado documentos, imagens e meios de
de forma correta em saJa de aula, é um processo belíssimo, sendo uma comunicação.
importante fonte de pesquisa para a melhor compreensão da História. 1 0/05 Trabalhando com documentos. O q ue são 45min
A condição de escola multisseriada desencadeou um grande desafio, documentos? Qual a importância para o
por tratar-se de diferentes níveis de ensino aglomerados na mesma Ensino de História?
sala, necessitando uma abordagem que contemplasse ambos os es­ 1 2/05 O Registro de Nascimento. Vídeo: 1h35min
tágios da educação. Pensado nisso, propôs-se planejar e elaborar ati­ < https ://goo.gl/5881 oS>.

vidades que de forma coletiva fossem trabalhadas da mesma forma 1 7/05 O livro didático como fonte histórica. 45min
para ambas as idades. 1 9/05 Título de eleitor: cidadania e voto. Charges, 1 h35min
Com a finalidade de executar um bom trabalho, é importante Museus e Rádio.
deslacar que o que se fez em primeiro momcmo foi preparar as 24/05 Meios de Comunicação 45min
aulas, pos.sibilitando, desta maneira, um ensino de qualidade c com 31/05 Patrimônio e Memória. Organização de 45min
aprendiz..'lgens dinâmicas para com os alunos, fugindo da rotina tra­ Exposição.
I

dicional do dia a dia. fazendo um adendo, manteve-se uma ativi­


dade tradicional praticada em sala de aula: todas as quintas-feiras,

1?5
I IAJ.fi'RII CAno os RlnrJRO jlÍt<U>R I ).IAoRot< E.•r.on.•• VAo f>.noo (oncs.) ENsaso u E t (&)·aómA E CuRRkm o

Ex pos ição Patrimônio e Memória.


tomava o estudo anterior. Tal caderno de anotações possibili1011,
02/06 1 h35min
Breves discussões sobre a história do posteriormente, uma análise acerca do resultado do próprio traba­
municíp io e da escola a fim de produzir lho de regência. As aulas seguiram um processo gradual de conteú­
material para visitação à estação de rád io dos trabalhados e discutidos. Como ferramenta, foram utilizados
local. textos complementares encontrados em livros didáticos, porém não
07/06 Término da atividade sobre Rádio e 45min como única ferramenta. É claro que artigos, livros, sites e outras
definição de material para compartilhar e m fontes fizeram parte da construção dos temas dcbacidos.
isi tação.
I
v
Nwn dado momento, discutiu-se a imponância dos docu­
09/06 Visita à Rádio Local - sugestão de leitura 4h20min mencos, tanto para o ensino de História como enquanto cidadão,
pelos alunos na programação. abordando assim os diferentes ripos de documentos, o que envolveu
Visita ao museu para compartilhamento de
questões simples como: em que momento foi produzido, finalidade,
conhecimento e valorização do espaço no
analisando-se inclusive documenros pessoais. Neste mesmo contex­
m unic íp io .
to, exploramos a questão do tÍtulo de eleitor, o direito ao vo1o e o
Q11adro 1 . Cronograma
processo histórico dessa conquista.
A análise do livro didático, uma ferramenta muiro presente no
Na primeira aula, realizou-se uma apresentação do terna, abor­
cotidiano dos alunos, é ferramenra de conhecimento e de histórih.
dando seus principais objetivos c o que iria se trabalhar durante as
Poram produzidas análises sobre o material e a aplicação, tendo sido
aulas posteriores. Corno segundo momento, apresentou-se o ensino
entregue um questionário simples e dinâmico, para que eles come­
de História, evidenciando a importância do estudo das fontes histó­
çassem a interpretar um primeiro documento. Logo depois, é im­
ricas c sua evolução em sala de aula. De forma simples c dinâmica,
prescindível descrever aos alunos a importância da escrita como re­
fez-se a apresentaç..'lo do plano de aula, bem como os conteúdos e as
gistro, e no momento que se registra um documenro, por exemplo,
atividades que seriam realizadas na sala de aula c também fora dela.
este fica marcado ao longo do tempo, e na memória, contribuindo
Neste primeiro contato, sentiu-se a empolgação dos alunos e que esta­
assim para a construção da identidade pessoal e social. Após analisar
riam na expectativa por estudar algo diferente nas aulas de Hist<'>ria, se
0 documento, com o auxílio e orientações da regência, os 1. Iunos
esse foi o primeiro objetivo, pode-se considerar que ele foi alcançado,
apresentaram seus aponramentos.
é claro que deixando bem destacado que, mesmo com abordagens
Outro documento importante trabalhado em sala de aula está
diferentes, a cUsciplina seria baseada em acontecimentos c momentos
relacionado com os diferentes tipos de imagens, que conr�ibue n \
([Ue fizeram parte da construção da sociedade tanto nacional como �
para aprimorar as discussões sobre o con exro de determinada irn ji
mundial, conhecimento fundamental que constitui o aprendiz:tdo. _
gcm, sobre o contexto, temporal, espac1al e socwl, em que deter­
Para registro das atividades c para a avaliação do processo de
minada imagem tal imagem foi projetada. Como já mencionado
cnsino-aprendi1.agcm, foi cUstribuído aos alunos um caderno para
é válido compreender rodo o contexto histórico que há por trás de
que fosse utilizado como um diário para anot:1ções do que consi­
uma imagem, evidenciando, desta maneira, as principais ideias e
derassem rclevamc ao longo do processo da regência. Esse caderno
serviu como um instrumento de anotações para eventuais revisões
objetivos que influenciaram a criação dessa imagem.
A interpretação de charges foi outro instrumento proposto no
I
dos assuntos trabalhados, atividade que na aula seguinte sempre re-
viés das imagens. Com o auxilio da projeção de imagens, discutiu-se

1% 197
scoR�I VAr.F.ruo (onc;.s.)
I t.M,Pt�nu CMu.os R.wf.lnO jt'n':1nn I r-vfAmON E. ENSINO uE I liSTe)lUA u Cunulc�Ut o

diferentes charges que tratavam do preconceito acerca do índio, as as abordagens, já que a preocupação não nc::cessariamenre deve se 1c
modificações dos valores da educação por meio de imagem que re­ sumir apenas sobre o conteúdo a ser estudado, mas também pode se
presentava o ano de l%9 e outra em 2009, acerca do papel dos pais utilizar uma contextualização mais ampla ou mais particular como é
e do professor, a censura na Ditadma Militar, o Brasil como repú­ a sugestão deste trabalho. Enquanto professoras, essa atividade serviu
blica, o golpe de Estado e algumas outras. Para exercitar, os alunos como uma abordagem de valorização, já que esse ripo de visita possi­
analisaram charges sobre o voto e explicitaram suas interpretações, bilita, ainda, o estudo sobre e:;trutura e complexidade que comporta
compartilhando seus conhecimentos com toda a turma. e envolve a construç.'ío desse determinado espaço c roda a dedicação
Através dessas análises que buscam conhecer e analisar documen­ de estudo a ele destinada. Neste sentido, foram analisadas as peças
tos c sua existência, o não conhecimento sobre museus estimulou luna disponíveis, sua história particular, fuzendo com que os alunos com­
adaptação ao contet'1do programático para que fosse discutida essa im­ preendessem as relações e razões de escolha, a fim de enrenderem a
portante fume de história c preservação da memória. A história da sua finalidade, a percepção da utilização do passado para legitimar e
criação e fundamcnta��'io dos museus foi trabalhada em sala de aula, reconhecer a cultura de um determinado povo; idenrificar as escolhas
além de a projeção de imagens de grandes e renomados museus, bem que levaram à construçáo de um acervo hisrórico.
como muit<�s c difl::rcntcs peças que são c podem ser preservadas. Ao longo das atividades, trabalhou-se os meios de comunicação
Dest::� fonn::�, permitiu-se um estudo e pesquisa sobre peças c sendo vistos em diferentes temáticas que incorporam vários assuntos,
instrumentOs que preservam a memória da própria fàmília e, sobre­ dinamizando e deslocando os alunos a um vai c vem na análise de
tudo, da sociedade. Mesmo que divididos em grupos p::�ra f:Kilitar remas debatidos. A apresentação cb temárica do r;-)dio permitiu um
pesquisas sobretudo para aqueles que tinham dificuldades de acesso histórico de seu surgimento até a sua modernização, passando pelos
à internet, cada aluno teve a liberdade e o comprometimento de adventos da implementação de outros meios que indicariam a sua de­
estudar um objeto que fizesse parte da sua fi1mília e que, por ser cadência. Discutiu-se a sua origem no país, as principais emissoras,
importante, fora guardado e deveria ser contextualizado. Esse ma­ as radionovelas, os principais programas e a UJz do Brasil, rendo esse
memo permitiu uma maior proxjmidade entre os diferentes anos, meio de comunicaç.'io de massa como ferramenta para a formação de
demonstrando que há possibilidade, de forma conteudista c panici­ ideologias e sua influência na cultura da sociedade. Não menos im­
pativa, de trabalharem com o mesmo tema e de fato se relacionarem. portarlte foi o surgimenro da rádio Comunitária c seu papel desde a
Com essa proposta, os alunos trabalharam a pesquisa, a história oral criação, como meio inovador que permite a comunicação voltada para
.
na própria f 1mília para que pudessem produzir o trabalho solicita­ a localidade, tomando como exemplo a JUdio existente na cidade.
do. Fazendo pane da avaliaç.'ío o comprometimento c o interesse de Como forma complementar, o breve estudo da hisrória do município
cada um, a produção e compartilhamento do conhecimenco foram e da própria escola permitiu a elaboração de pequenos rcxms para a
expostos em aula, além de ser entregue a produção da escrita, valen­ irradiação na visitação realizada na emissora local, sendo um trabalho
do também como avaliação. pautado no reconhecimento e valorização da própria História.
Ainda, levamos os alunos ao museu da cidade, onde foi possível Por fim e como já mencionado em alguns momcnros, a forma
:malisar e estudar uma série de assuntos aprofundados na sala ele aula, de avaliação foi dada mediante à análise das ações desenvolvidas na
!::tis como, a importância da pesquisa, o estudo de fontes históricas sala de aula, com o objetivo de observar se haviam sido cumpridos
contextualizando o museu, bem como a conservação da memória c os objetivos propostos nesse projeto c se de f.<tto o conhecimento
dos materiais, entre outros. É neste sentido que se pode dinami7.ar esrava sendo construído em sala de aula. Entende-se que a maior

198
HAo.FF.Ru CAui.O\ lto11r.ono JúNIOot I I\IAonoN EscoRSo VAu\otoo (on<:<.)
ENMNO UE I (onón<A e Cuomíçuw

dedicação está no aprender c para isso há a necessidade de uma mu­ I 1/\GE, S. Classes multisseriadas: desafios da educação rural no brado
dança, em muitos níveis educacionais, que envolve a própria gestáo do Pará, Região Amazônic1. Bdém-PA: Geperua:t. 2003.
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J.E GOFF, ). História e Memória. São Paulo: Editora da Unicamp, 1993.
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Acesso em: 28 mai. 2016.
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Educadores c Educadoras. Brasília: SECAD/ MEC, 2009.

___ . Secretaria de Educação Continuada e Diversidade. l'rojeto Ua�c.


Br:L�ília: SECAD/MEC, 2008.

CONCEIÇÃO,). P. da. Ensino de História c consciência histórica Lati­


nu Amcrica11a no Colégio de Aplicação da UFSC. 201 O. 1 7 I ( Disserta­
ção (Mestrado em Educação) - Programa de Pós-Graduação em Educação,
Universidade Federal de Santa Catarina, Horianópolis.

FONSECA, S. G. Didática e prática de ensino de história: experiências,


reOcxõcs e aprendizados. Sáu Paulo: l'apirus, 2005.

FREIRE, I� A educação na ci<lade. São Paulo: Cortez Editora, 2000.

200 201
11

ESTÁGIO SUPERVISIONADO: O FINAL DE


UMA TRÍADE...

Daiana Pt�ul11 Vmvtto


Henrique Antônio 1'riz()/o
Universitl��tle Fetlmtl t/11 l·i·outeim Sul

O presente texto tem por objetivo discorrer sobre o ensino de


História que encomrnmos/estudamos na graduação, fuzendo um
contraponto com a realidade com a qual nos deparamos quando
entrnmos em sala de aula para a realização dos estágios. O rexto está
arriculado em três eixos centrais: cada um deles f:nendo referência a
uma das experiências realizada nos esrágios.
Para se obter o grau de licenciado em História da Universida­
de Federal da Fronteira Sul, é necessário perpassar por seus pré­
-requisitos, e a rcalizaçáo de Estágios Supervisionados é um deles,
no nosso caso, realizamos uma tríade de arividades que duraram
cerca de dezesseis mest:s, e que nos inseriu em sala de aula, não mais
como alunos, mas sim como professores, para, t:nfim, sairmos do
mundo das teorias educacionais para a rt:alidade em sala de aula.
Nossa práxis foi dividida em três momenros distintos: num primei­
ro momento (Estágio I), realizamos observações em sala de aula e
horas de pesquisa num ambiente de educaç..'ío não formal (Arquivo
Histórico Municipal Dr. Juarez Miguel Illa Font); num segundo
momento Estágio li), além das observações em sala de aula, enfren­
tamos um novo desafio, o de ministrar aulas para uma turma de
Ensino Fundamental - séries finais, sendo uma delas sob os olhares
do orientador de estágio e, por fim, o encerramento deste ciclo; com
o Estágio Supervisionado 111, em que também fomos inseridos em
sala de aula com objetivo de observar e de ministrar aulas para o En­
sino Médio, tamhém sob o olhar do professor orientador de est:ígio.
Com isso, pudemos analisar in loco a realidade educacional na
qual seremos inseridos ao final da gradmçáo. Podendo rambém

203
I·IAI.F�Ro Clnr.o, 1\rnrono jÍINron I �IAHION Escxrnsr VM Énro (On(;s.)

verificar as necessidades hodiernas de uma educação, que ainda é escolas do Brasil. Isso transforma as notas no suprassumo da edu�a­
considerada motor do desenvolvimento social' da nação brasileira. çáo, deixando de lado assim os verdadeiros objetivos do aprendizado.
Ainda temos a crescente utilização de ferramentas tecnológicas pe­ E, ao sairmos das carteiras da universidade e adenrrarmos as
los alunos (smartphones, tablets e afins), o que obriga o professor a salas de aula das escolas, temos a oportunidade de confirmar/re­
minimametlle conhecer essas novas tecnologias, mesmo que as esco­ futar wdo aquilo que foi debatido e estudado, principalmente no
las ainda não as dominem, e muitas vezes nem as conheçam, sendo que range à função/práxis do professor de História, aqui entendida
essa, mais uma variante a ser levada em consideração. como ferramenta que busca desestruturar as já consolidadas inter­
Neste contexto, encomramos na graduação diversas teorias edu­ pretações que regem os comportamentos e ações que norteiam o
cacionais, que podem servir para todos os tipos de professor, e que ensino, a fim de desfuzer-sc das certe-Las e de romper com modelos
podem ser aplicáveis indistintamente a todos os alunos, muitas vezes conservadores4• O profissional tem o desafio de "abrir as janelas" da
deixando de lado as experiências prévias deles, c, com isso, entrando sala de aula e absorver o que há na sociedade com um olhar crítico,
em um embate com a hercúlea tarefa de desvelar a "melhor teoria, a para que o aluno desenvolva "um leque" de observações e não uma
mais completa e a que dá melhores resultados", leia-se aqui notas ob­ única perspectiva sobre os fatos c acontecimentos que essa mesma
sociedade lhe apresenta.
tidas na Provinha BrasiF, que mede os índices do ldcbJ e ranqueia as
Dito isso, vamos f.·ncr um apanhado acerca elo desenvolvimento
I. "A educação, como proccs�o pedagógico sistematizado Je i ntcrvcnção na di­ das práticas educacionais ao longo dos três estágios que foram desen­
n�mica da vida social, é considemda hoje objeto priorizado de e.çtudns científicos volvidos entre o ano de 2013 e o primeiro semesrn: de 2014.
com vi.nas à definição de polrticas estratégicas para o desenvolvimento i ntegral
das socie<bdes. Ela é entendida como mediação básica da vida social de todas as
Estágio Supervisionado I - O Debute em sala de aula
çta reavaliação, que levou à sua revaloriz..1çáo, não pode,
comunidades humanas. E.
no entanto, rundar-se :tpen:IS na ,ÇIJ:I operacionalidade para a efic:\cia funciona)
do sistema sociocconômico, como muitas vezes tendem a vê-la as organizações Neste, trabalhamos com a realidade de duas escolas estaduais re­
ofici:lis, grandes economistas c ou1. rns especialistas que filca m a <JUCSI:ío sob a lativamente próximas, mas que abrigam um público-alvo distinro;
perspectiva da teoria do capital humano" (Severino, 2000, p. 65). enquanto primeira possui alunos de classes sociais menos abastadas, a
2. "Como o próprio nome explicita o processo de ;�valiaçáo se realiza através de
,
segunda conta com um grupo de classe média e classe média alta, com
provas padronizadas, aplic:�das no início e no fim do ano le1ivo, com a finalidade
raras exceções. Buscamos, através destas descentralizações, ampliar o
de 'monitorar' a aiErbetizaçfto realizada nas escolas prblicas.
( A ênf.1se na objeti­
vidade dos dados obtidos é um dos aspectos centrais na costura des.�e projeto de
campo de observação com intuito de conseguir estabelecer parâme­
avaliaçiio que apresenta como seu objetivo realiz..'lr um diagnóstico do nível de tros comparativos. Em suma, o trabalho buscou inserir os acadêmicos
alf.>tbetizaçáo dos estutlamcs, para prevenir e corrigir 'possíveis insuficiências' em
relação à leitura e escrita" (Es1eban, 2009, p. 48). esrorço maior daqueles que par1em em pior situação, com um objetivo implícito
3. ;'O Ideb é o indicador objetivo para a verificação do cumprimcnlll das metas de redução da desigualda,h: educacional" (Fernandes, 2008, p. 2).
fixadas no Termo de Atlc.�ão ao Compromisso Todos pela Educaçfto, eixo do Pla­ 4. "Trara-se do modelo educacional - e mais propriamente do modelo did:ítico ­
no de Desenvolvimento da Educação, do Ministério da Educação, que trara da cl:íssico, em que o :110 de ensinar se resume a um sujeito "cheio" que preenche com
educação básica. Nesse ârnhiHl <JUC se cnqu:tdra a idéia das met:1s inl.ermcdi;íri:•s seu conhecimento um sujeiH) 'vazio', o aprendiz que reproduz o saber dn mestre.
para o Idch. A lógica é a de l(lle para <JUe o Brasil chegue à média 6,0 em 2021, pe­ Não por acaso e.�sc modelo se aproxima do que 1-labermas cham:1 de razão técni·
ríodo estipulado tendo corno base a s i mbologia do bicentenário da I ndependência ca, cuja principal característica é a relação impositiva entre o saber e náo saber"
em 2022, cada sistema deve evoluir segundo pontos de partida dist.intos, e com (Cerri (a), 2011, p. 26).

2114 205
HAt..FF.Ro CAno.os R�nuno JúNIOR 1 ·'-'''""N [sconSJ \1,\l.r.ni<I (oncs.) ENSINO oe H1s·rófuA E Coamkuu)

em um ambiente escolar formal, c em um ambiente de ensino não Ou seja, neste processo complexo foram encontradas muitas in­
formal neste caso, o Arquivo Histórico Municipal Dr. Juarez Miguel fluências e uma grande diversidade de pensamentos, opiniões, oriun­
llla Font (voltado às pesquisas em fontes primárias), paa
r conhecer as das das diversas realidades culturais, econômicas e sociais que devem
estruturas que contribuem para a formação escolar da sociedade. ser levadas em consideração a fim de serem utilizadas como ferramen­
A partir de observações nas escolas, a atividade principal desen­ tas propulsoras do processo de ensino-aprendizagem. E�ra diversidade
volvida neste esdgio, foi debatida a questão da Didática do ensino precisa ser levada em conta durante rodo o processo, principalmente
de História5 em sala de aula, pelo f�Ho de depararmo-nos com prá­ no ambiente de sala de aula. Sob este aspecto, para enriquecer o deba­
ticas diversas e com professores nem sempre com formação na área te, incluímos outro elemento que está sempre presente no processo de
de História. Foi esse o caso da Escola "A", em que a professora era ensino-aprendizagem, o livro clidático, que é uma peça nevrálgica pela
formada em Geografia, sendo seu segundo ano como professora ele forma com que se insere nesse processo, afinal, ele serve aos interesses
História, enquanto a professora da Escola "B" possuía graduação daqueles que estão conduzindo o projeto educacional vigente.
em História. Também pretendemos discorrer sobre o papel do A aç.'lo do professor de História está baseada em desestruturar as
ensino de Históriar. no contexto contemporâneo e no desenvol­ já consolidadas inrerpretações que regem os comportamentos e ações,
vimento da consciência histórica7 dos envolvidos no processo de desfuzer-se das certezas a 11m de romper com modelos conservadorçs,
ensino-aprendizagem. o profissional tem o desafio de "abrir as janelas" da sala de aula e
absorver o que há na sociedade com olhar crítico, para que o aluno
5. "A opinião p�dráo sohre o que a didática da história é, como ela funciona c
desenvolva "um leque" de observações e não um único olhar sobre os
onde esd situ�d� no reino das humanidades é a seguinte: a didática da história é
uma abordagem formalizada par� ensinar história em escolas primárias c secun­ f..·uos e acontecimentos que essa mesma sociedade lhe apresenta.
dárias, que representa uma parte importante da transfi)fmaçáo de historiadores Verificando isso no âmbito do estudioso Riisen, esse rompimen­
profissionais em professores de história nest<�s escol�s. É um;• disciplina que f:n a to é possível, tendo em vista que a consciência histórica está sempre
mediação entre a história como disciplina �cadêmic� e o aprendizado hist6rico e a
ligada ao ser humano e eleve ser usada de acordo com sua intencio­
educação escolar. Assim, ela não tem nada a ver com o trabalho dos historiadores
nalidade. Sendo assim, como professores de História não podemos
em sua própria disciplina. A didática da história serve como uma ferramenta que
transportá conhecimento histórico dos recipientes cheios de pesquisa acadêmica naturalizar uma narrativa como certa, justa ou a mais densa, é ne­
para as cabeças vazias dos alunos" (Riisen, 2006, p. 8). cessário identil1car seu próprio quadro de consciência histórica e de
6. "[...) a História tem um papel importante para o fortalecimento do poder seus alunos, fazer a leitura de seus estudantes.
I
nacional e, sobretudo, em épocas como esta que nós vivemos. A Históri;� ofe­ Como futuros professores, temos o papel de desnaturalizar e
rece às elites c aos que exercem o poder político a inspiração que os ajuda a
mostrar o quanto o conhecimento é móvel, pois a História é inter­
escolher o melhor caminho, o mais rápido para atingir os objetivos nacionais"
pretativa e a convivência das mais diversas perspectivas é possível.
(Souza, 198 1 . p. 176).
7. "Primeiro, a consciência histórica não pnde ser meramente C<1uacionada como
Neste sentido, retomamos a ideia de quão fundamental é a didática
simples conhecimento do p::�ssado. A consciênci;• histórica d;í estrutura ao cn­ em sala de aula, na perspectiva do processo de ensino-aprendizagem
nhecimcnto histórico como um meio de entender o tempo presente e antecipar que deve ser conduzido de maneira que respeite as especificidades de
o futuro. Ela é uma combinação complexa que contém a apreensão do p;�ssado
regulada pela necessidade de entender o presente e de presumir o futuro. Se os dêmico amplamenrc aceiro de que a hisrória lida unicamenre com o passado: não
hiswriadorcs vierem a perceber a conexão essencial entre as três dimensões do há nada a se f:1zer com os problemas do presenre e ainda menos com os do futuro'"
tempo na estrutura da consciência histórica, eles podem evitar o preconceito aca- (Rüscn, 2006, p. 14).

206 207
l!.NSTNO r>F. I (t�TÓRTA 1: Cunn(c:uco

cada ambiente escolar. Durante as observações realizadas nas escolas de desenvolvimento das habilidades específic..'ls a serem utilizadas
A e B, foi percebido que o futor econômico realmente influencia no .
em sala de aula. Pela f'!lta de maiores oportunidades como essa, o
desenvoivimento dos trabalhos, principalmente no que se relaciona estágio torna-se um componente curricular imprescindível para o
à postura apresentada pelos alunos com relação a situações cotidja­ desenvolvimento dos futuros profissionais.
nas e, com destaque, quando questionados para apresentarem sua Com isso, podemos dizer que a visão do processo escolar sofreu
opinião perante fatos históricos ou acontecendo no momento. alterações consideráveis, pois as observações abriram os horizontes
Percebe-se, ainda, que existe uma grande diferença em rdaç.ío às para alguns contextos, atividades e procedimentos que passavam
roupas usadas pelos alunos e também entre as cantinas das escolas. despercebidos na nossa vida escolar e a posteriori em nossa vida
Feitas estas comparações, o estágio é considerado válido, por propor­ acadêmica, enriquecendo assim nossas experiências e reafirmando
cionar aos acadêmicos tão farta experiência de observaçío
. in loco ele o compromisso assumido com a docência. Essas concepções foram
todo o cotidiano escolar, não somente a condução da aula em si, mas detalhadas no texto do Estágio Supervisionado 11 intitulado "Do­
também dos demais aspectos da instituição escolar, como a estrutura cência em História: da Utopia a Realidade".
física e hurnana e a sua relação com a sociedade como um todo.
A partir desse estágio, o ambiente escolar que outrora era ina­ Estágio Supervisionado II - Docência em História: da
tingível, academicamente falando, transformou-se em algo tangível utopia à realidade
c esclarecedor, tendo em vista que todas as discussões eram a partir
de disposições e comparações dos tempos escolares. A Educação é vista como uma ferramenta de inclusão social, desen­
Podemos, enfim, considerar o trabalho proposto como algo volvimento profissional e econômico, apresenando
t um discurso que
realmente proveitoso e que veio ao encontro das necessidades acadê­ muitas vezes beira a uma utopia9• Afinal, buscam-se resultados que ex­
micas e pessoais dos professores em formação. Sendo fundamental trapolam os índices reais, ou visam-se metas que são pratic..1nte
1lle im­
para o desenvolvimento dos acadêmicos que, após formados, já te­ possíveis devido às condições oferecidas aos profissionais e aos altmos.
rão uma relativa experiência condizente com o processo de ensino­ Ao longo da história da educação, principalmente em âmbito
-aprendizagem nas escolas e poderão colocar em prática os conhe­ nacional, deparamo-nos com inúmeros cenários que pcrmcaram
cimentos desenvolvidos na academia. Deve-se ter em vista que a o seu desenvolvimento, desde a sua inclusão nas constituições de
maioria dos alunos não se enquadra no perfil acadêmico dos alunos 1934 10, 1937 e 1942, após o Manifesto dos Pioneiros da Educação,
ttuc recebem bolsas de extensão, como o Pibidl8 por exemplo, que
inserem os ac
l dêmicos desde os primeiros semestres no processo 9. Talvez a melhor síntese - a mais completa e a mais sintética - de todos estes
aspectos da utopia resida na metáfora benjaminiana do "anjo da história", a quem
R. O Pibid é uma iniciativa p:1ra o :1perfeiçoamento c a valorização da formação a tempestade que sopra do Paraíso impele "incessantemente para o futuro ao
de professores para a educação b:íska. O programa concede bolsas a alunos de t[ual volta as costas, ClliJU:lnto diante dele e até ao céu se acumulam ruínas. Esta
licenciatura participantes de projetos de iniciação à docência, desenvolvidos por tempestade é aquilo a que nôs chamamos o progresso" (Serra, 1998, p. 28/29).
Instituições de Educação Superior (IES) em parceria com escolas de educação lO. "A Constituição de 1934 inaugura, em âmbito nacional, a educação como um
básica da rede pública de ensino. Os projeto.� devem promover a inserção dos direito declarado. E, excetuados os casos em que a força se sobrepôs à lei c ao arbítrio
estudantes no contexto das escolas pública$ desde o início da sua formação aca­ ao direito (ainda que textualmente mantido em v;írios itens, como no caso da educa­
dêmica, para que desenvolvam atividades didático-pedagógicas sob orientação ção c.Kolar primária), as constituições posteriores não fizeram mais do que manter,
de um docente da licenciatura e de um professor da escola (Fonte: site da Capes). :1mpliar ou recriar este direito declarado" (Cury; Horta; Fávero, 1996, p. 25).

21lR 209
I IAo.eei<IJ CAou.o� Jton:mo JúNIOR I MAmON Esconso VALÉRIO (oncs.) EN�INO nf I lo�1ón1A "· Ctlltlill '"o

ou mesmo da criação da LDB, a fim de consolidar seu espaço peran­ Com isso percebemos claramente que a educação scJ Vl' l""'' 11 1 11
te a sociedade brasileira. projeto de nação, ao passo que ainda procura trabalhar corn 1 1111
O mérodo11 de ensino ainda é divergente, alguns modelos pre­ ccitos contraditórios, com os discursos que fomentam a cducac,:fu1
gam a ideia de um currículo predeterminado e universal, outros como força motora do desenvolvimento social capaz de catalisar as
trabalham com as necessidades específicas de cada grupo. Contudo, transformações sociais.
esre segundo ainda não tem tanta força devido ao sistema vigen­ Nesse sentido, é extensamente debatido, nas graduações, o pa­
te, que busca transformar a escola em um recinto de reprodução pel, que aqui denominamos utópico, da educação, por ser algo pra­
das ideias consideradas pertinenres no cenário vigeme. Basicamente ticamente intangível, e muitas vezes dcsassociado da realidade esco­
existe uma contradição entre a aplicação do ensino de História na lar. Muitos apegam-se às idcias freirianas de educação, onde deve-se
prática e seu papel no campo teórico da educação brasileira12• levar em conta os saberes dos alunos, a realidade da qual é oriundo,
dentre outras ideias que no papel são lindas, mas que, como vere­
1 1 . "A mcrnclologia de instrução na sala de aula ainda é um problema importanre. mos adiante, nem sempre se fazem presentes na realidade escolar.
Aqui a concentração no currículo tem sido predominante. Combinada com a Muitas vezes se debatem as condiçôes adversas que os novos
hipótese de que existe de <Jue existe uma teoria geral da instrução escolar (Un­
professores enfrentarão na sua vida profissional, contudo, esta análi­
tcrrichtslchre), o ensino de história em sala de aula tem tendido a se tornar uma
atividade mec!lnica. Ainda não se resolveu como a peculiaridade da consciência
se continua aquém da realidade dos futuros docentes, é muito mais
histórica - aquelas escrunuas mentais e processos <Jue constituem uma forma simples debater casos de violência de alunos pa a
r com professores,
cspecfllca de <Hividade cultural humana - pode ser integrada nesse padrão de por exemplo, sem ter passado isso na própria pele, cmpiricamente
educaçfio. Ainda existe um distanciamento entre a percepção program:írica de tudo é mais fácil, todos os problemas podem ser solucionados com
um bom profc.�sor de história e o treinamenro formal que ele ou ela recebem na
conversas, com painéis de papel pardo c boa vontade. Nem a mais
prática do ensi no de história . A raz..
ío desse distanciamento é que as discussões
agradável das utopias é capaz de dar conta disso.
referentes a consciência histórica e aos fatores constitutivos do pensamento histó­
rico não têm sido integrados na pragmática do ensino c aprendiz..1do. Os insighu
Ou seja, o novo professor necessariamente precisa se adaptar à
conquisrados na tlitl:ítica da lúrória sobre os processos, estruturas, conteo'odos c cultura escolar da instituiç..-ío, senão provavelmente terá problemas
funções da consciência histórica não têm sido traduzidos na análise do ensino e antes mesmo de concluir seu estágio, pois não é de bom tom nem
aprendizagem em sala de aula" (Rüsen, 2006, p. 13). mesmo salutar bater de frente com uma instittúçáo que lhe acolheu
12. " � claramente perceptível a presença de um grupo predominante- que se e lhe está possibilitando desenvolver suas habilidades enquanto do­
designa gencricamenre como Tradicional - que aborda a História em sua di­
cente. A não ser, é claro, que essa instituição apresente normas es­
mensão meramente informativa e não valoriza o conhecimemo histórico em seu
drúxulas c uma total falta de comprometimento/respeito para com
aspecro construtivo. As narrativas são organizadas a partir de recorres já consa­
grados, as fonrcs h istóricas ganham caráter mais ilustrativo e não s:io explom­ a individualidade do estagiário. E, com todos estes furores permean­
das numa dimensão que aproxime o aluno daquilo que preside o procedimento do a inserção do futuro professor em sala de auJa, podemos abraçar
histórico; nesse sentido, uma concepção de verdade pronta e irrefutável preside
a obra. Em geral, as coleções 11ue integram esse subconju nto mantêm coerência economia colonial; a análise da sociedade colonial somente a partir do binômio
com a visão processua l c evolutiva do tempo e das sociedades e não rompe com patriarcalismo/suhmissão feminina; a compreensão da industrialização brasileira
a cpoadripartição clássica de hase eurocêmrica. Alguns remas suSienram-sc em a partir do paradigma paulista, em associação c.çtrita com a acumulação de capi·
uma historiografia tr:odicional e apresentam-se de modo absolutamente rccor­ tal cafeeiro, 28 entre outras muitas possibilidades auaHticas <JUC podem emergir
renre e natur:.di·tado em termos de explicação, tais: a explicação da economia se procedermos a uma análise mais p()ntua l, incabível nos limites deste texr:o"
brasileira a parr:ir da ll:oria dos ciclos; a ausência de dinamismo econômico na (Fernandes, 2005, p. 140).

210 21 1
IIAcFenu CAttLOs RIHI!Itt<l júNllll< l MAIRON Esco•s• VALéRia (oucs.) ENSINO nr. 1- hs'I"(HIIA F. Cvnnlc:v•.o

mais um elemento fundamental (que foi estudado num primeiro Com isso, chegamos na ideia de <.JUe a universidade deveria formar

momento, c que acabou voltando à tona pela necessidade de se mi­ profissionais capazes de lidarem com todas ou quase todas as simações

nistrar aulas), a Didática do ensino de História, afinal, qual seria a que o futuro professor encontraria em sala de aula, mas não, se busca

práxis adorada pelo professor? De que maneira ele vai conduzir o cooptar o maior número de discentes para sua corrente político-ideo­

processo? Quais as concepções que ele vai pôr em prátie�? lógica, seja seja ela anarquista, marxista, pós-moderna ou neoliberal.

Questões interessantes, pois aqui começamos a quebrar com al­ A realidade despontando em nossos horizontes não é nem de

gumas ideias que esráo arraigadas no pensamento acadêmico, é neste longe a que sonhamos, uma realidade na qual todas as escolas pos­

momento que o futuro professor deveria, ao menos em tese, fazer o suem professores motivados e bem remunerados para reaJi1.arem seu

seu salto epistemológico, e dar-se conta de que o debate acadêmico trabalho, dotadas de espaço frsico e orçamento para promoverem

muitas vezes pode ser considerado um cobertor curro. Porque é ele atividades como viagens de estudo, para terem sala de inclusão di­

(enquanto professor e mediador do processo de ensino-aprendiza­ gital, e principalmente alunos sedentos por beber das fontes do co­
gem) que em uma fração de segundo vai ter que tomar uma decisão nhecimento. O que vemos são prof'Cssores sem rônus vital, escolas
que pode mudar cocal mente o rumo de sua aula e diminuir ou au­ sucateadas e sem dinheiro, alunos sem a mínima vontade de estudar
mentar o respcico que os alunos vão ter ou deixar de ter por ele. ou de fazer qualquer coisa construtiva para alterar sua realidade.
A complexidade desse cenário nos mostra que nem sempre o alu­ Nos propomos, ao longo do segundo fragmento, sair um pouco
no vai estar disposto a compartilhar os seus saberes, ou mesmo a sua da realidade acadêmica para entrar na realidade escolar do mundo
inércia com relação a questionamentos muna possível aula expositiva real. A situação que nos deparamos ao longo deste paralelo é real­
dialogada, c nem sempre ele vai ter domínio de conceitos básicos, os mente assustadora, sendo necessário um choque de realidade para a
quais, naquele momenro, ele não quer aprender. Isso é previsto nos academia e a busca de medidas que realmente possam transformar
debates acadêmicos e várias soluções emergem, todavia, na prátiCI elas tudo o que está posto. Senão, mais uma leva de professores recém­
poderão falhar, pois não é possível obrigar alguém a querer aprender. -formados cair.i no ostracismo e continuará repetindo a práxis que
Enfim, podemos debater o cenário utópico/empírico dos deba­ tanto combateram durante a graduação. Não podemos deixar que
tes ae�dêmicos fazendo um contrapomo com a realidade escolar do se continue fazendo mais do mesmo.
cenário atual vigente. Como vimos ao longo do texto, a educação
busca ser uma ferramenta de transformação social, de inclusão e Estágio Supervisionado III - O Encerramento da tríade...
de desenvolvimento econômico e social de uma nação, cabendo à
escola'3 formar mentes c corações. Ao longo dos primeiros estágios, trabalhamos com o cenário
das escolas e a primeira impressão com a sala de aula; no segundo,
13. "A escola que hoje conhecemos, apesar das muitas uansformações, ainda
mall[ém um forte vinculo com a escola disciplinar da Modernidade sólida. Essa
foi debatido o ensino de História que encontramos em sala de aula
escola disciplinar esrá alinhada com a ética de adiamento da satisfi1çáo d:1 socie­ a partir do contraponto feito com o ensino de História que estuda-
dade de produtores. Ela não l(li pensada para ser uma escola de prazer, uma escola
para atender ns desejos imediatos das crianças. O funcionamento da maquinaria para a vida adulta, par:1 o futuro. A sala de aula cn1 um lugar de trah:dho. O t'mico

escolar não era movido pelo desejo, mas pela vontade. Um dos grandes ensina­ prazer admissível era o prazer de aprender :ltpsilo que estava sendo cnsin:�do. A

mentos era jusramenrc este: dominar o desejo, desenvolver à vontade. A s:1rislr•çiín escola da Modernidade scílida pensava no longo pr:11.0, em uma remporalidade

prevista pela escola disciplinar era adiada para o final do ano, para o final do ciclo, linear e contínua" (Saraiva; Veiga-Neto, 2009, p. 191\).

212 213
ENSINO OF. HISTÓRIA E CURRÍCUI.O

mos ao longo da graduação; e no terceiro, fàremos um novo con­ operandi normalmente utilizado nos ambientes de ensino, cabendo
trapomo agora somarizando as três experiências, agret:,
>nndo as aulas aos estagiários estudarem quais as diretrizes adotadas pela escola,
e observações realizadas no Ensino Médio. Trabalhar com o Ensino para poderem realizar seus trabalhos de maneira completa e sem
Médio é um novo desafio, afinal, experimentamos observações em problemas extraclasse.
sala de aula, e a trabalhar com estudantes mais velhos, com crenças O terceiro estágio vem testar novamente as habilidades dos aca­
diferentes, com visões de mundo em vias de consolidação, em suma, dêmicos - futuros professores de História -, colocando à prova a
uma nova realidade14 a ser desbravada. bagagem adquirida ao longo dos estágios anteriores. Um momento
Um conceito a ser levado em consideração, ao longo do proces­ em que se mantém o que deu certo e se aprimora aquilo que deixou
so de estágio, é a concepção de cultura escolar15, tendo em vista que a desejar anteriormente. O acadêmico, agora professor16 de Histó­
a inserção dos estagiários nas escolas gera um "transtorno" ao modus ria, tem a oportunidade de reafirmar seu vínculo com o processo de
ensino-aprendizagem, com a confiança de quem já não está desbra­
14. "A diversidade culwral é a riqueza da humanidade. Para cumprir sua tarefit vando um território inóspito.
humanista, a escola precisa mostrar aos alunos que existem ourras culturas além Agora, tem-se mais clareza da gestão dos sabcres17, algo que pa­
da sua. Por isso, a escola rem que ser local, como ponto ele partida, mas tem que
recia bem distante no primeiro estágio, quando foram feitas as pri­
ser internacional e inrercultural, como ponto de chegada. [...] Escola autônoma
meiras observações. Consegue-se trabalhar com o improviso, com
significa escola curiosa, ousada, buscando dialogar com rodas as culturas e con­
cepções de mundo. Pluralismo não significa ecletismo, um conjunto amorfil de coisas que fogem do planejamento inicial. E, além disso, temos o
reralhos culturais. Significa sobretudo diálogo com todas as culturas, a partir de
uma cultura que se abre às demais" (Cadorri, 1992, p. 23). 16. "O profeswr, enquanto profissional, expressa diferentes destrezas, informa­
15. "Para ser breve, poder-se-ia descrever a cultura escolar como um conjunto ções crenças, atitudes, im1uietaçócs c interesses duranre sua carreira. Ao longo de
de normas que definem conhecimenws a ensinar e condutas a inculcar, e um sua trajetória ocorrem fatos, negativos ou positivo.�, que contribuem Jireta ou in­
conjunto de pr:íticas que permitem a transmissão desses conhecimentos e a diretamente para que ele se desenvolva profissionalmente. Esse desenvolvimento
incorporação desses comportamentos; normas e práticas coordenadas a finali­ é visto como um fenômeno de mudança que ocorre ao longo dos anos, como
dades que podem variar segundo as épocas (finalidades religiosas, sociopollticas processo de aprendizagem que se prolonga e acontece durante toda a vida quan­
ou simplesmente de socialização). Normas c práticas não podem ser analisadas do olhamos a pessoa como um todo. Para entendermos melhor como acontece
sem S<: levar em coma o corpo profissional dos agentes que são chamados a esse desenvolvimento, é importante lançarmos um olhar sobre as experiências
obedecer a essas ordens e, portanto, a utilizar dispositivos pedagógicos encar­ pelas quais os professores passam, buscando conhecer a sua história de vida"
regados de facilitar sua aplicação, a saber, os professores primários e os demais (Costa; Gonçalves, 2006, p. 1).
professores. Mas, para além dos limites da escola, poJe-sc buscar identificar em 17. Os saberes que servem de base para o ensino, tais como são vistos pelos pro­
um semido mais amplo, modos de pensar c de agir largamente difundidos no fessores, não se limitam a conteúdos bem circunscritos que dependeriam de um
interior de nossas sociedades, modos que não concebem a aquisição de conhe­ conhecimento e,�pcciali1.ado. Eles abrangem uma grande diversidade de objetos,
cimentos e de habilidades senão por intermédio de processos formais de esco­ de questôes, de problemas que estão relacionados com seu trabalho. Além disso,
larização: aqui se encontra a escalada Jos dispositivos propostos pela schooleJ não correspondem, ou pelo menos muito pouco, aos conhecimentos teóricos ob­
society que seria preciso analisar; nova religião com seus mitos e riros contra a tidos na universidade e produzidos pela pesquisa na �rea da Educação. [...] Os
qual Ivan Illich se levantou, com vigor, h<í mais de vinte anos. Enfim, por cul­ saberes profissionais dos professores parecem ser, portanto, plurais, compósitos, he­
tura escolar é conveniente compreender também, quando é possível, as culturas terogêneos, pois trazem à tona, no próprio exercício do trabalho, conhecimentos e
infantis (no sentido antropológico do termo), que se desenvolvem nos pátios manifestações do saber-fazer c do saber-ser bastanre diversificados, provenientes de
.
de recreio e o af:tstamento que apresentam em relação às culturas f1miliares" fontes variadas, as quais podemos supor 11ue sejam também de natureza diferente"
Quli:t, 2001, p. l0-11). (Tardifl: 2000, p. 6).

214 215
l l•r •eRo Cmurs Rruemo Jrir<ron l MAIKON EscoRsr v..,�••o (oRes.)

poder de escolha de não se deter exclusivamente no livro didático•s rcmpéries, de tal forma que menos da metade dos alunos c�tc�'"'' 1 ' 1 1 1
de poder trazer elementos relevantes para a formação dos alunos. o� 2010, no curso de Licenciatura em História da Universidade Jlt•dt•J.rl
futuros professores assumem o protagonismo19 do processo. da Fronteira Sul, encerrará a graduação no tempo previsto.
Em suma, o terceiro estágio é a ferramenta que liberta o acadê­ Muitos enfrentam ainda dificuldades para realizarem as :ui vida�
mico das amarras das discussões empíricas realizadas ao longo da des extracurriculares c os próprios estágios supervisionados por mo­
graduação, pois é a partir dele que o nlturo professor tem maior Livos profissionais (dificuldade na liberaçáo do emprego). É neste
autonomia para dar aulas e, consequentemenre, mais segurança cenário que foram desenvolvidos os estágios supervisionados, c que
para desempenhar suas atividades. É o último treinamento antes chegam ao final deste semestre de aulas.
da inserção no mercado de trabalho, e no desenvolvimento de um A realização dos estágios pode ser considerada fundamental
trabalho diário na área do ensino de História. para a formação dos futuros professores de História, pois foi possí­
O professor de História, no universo escolar, é um dos prin­ vel sair dos muros da universidade c imergir na realidade das escolas
cipais responsáveis pelo desenvolvimento da consciência histórica que com muito carinho acolheram os futuros professores, verificar
dos alunos e de seu senso crítico. A disciplina de História20 é a força
in loco tudo aquilo que foi debatido ao longo da graduação c coloca.r
motriz que faz com que se quebre com o pragmatismo que norteia
em prática o aprendido.
as atividades escolares atualmeme.
O processo de debate ela realidade encontrada em sala de aula
é importante, pois a troca de experiências21 entre os acadêmicos é
Notas de encerramento
uma ferramenta muito interessante para o desenvolvimento concei­
tual dos futuros professores. O conhecimento da realidade ajuda no
A caminhada para a formação de um professor de História é ár­
desenvolvimento da práxis que será adotada.
dua e longa, perpassando por int'uneros obstáculos, provações e in-
Sair do campo teórico e partir para a prática, num primeiro mo­

18. "Os livros didáticos não s:ío apenas instrumenros pedagógicos: são também mento, é algo diHcil, afinal nem rodos possuem a mesma desenvol­
produtos de grupos sociais 11ue procuram, por inrermédio deles, perpetuar suas tura, e nem a mesma fucilidade em comunicar-se, ainda mais com
identidades, seus valores, suas trad ições, suas culturas"
(Chopin, 2004, p. 69).
19. uO sujeico aprendenre, como se percebe, não ocupa o centro do processo. Pm­ 21. "É assim que o materialismo histórico entende ultrapassar ambas as concep­
fessor é o centro, pois detém n conhecimento. Aluno é objeto, aprendiz passivo. A ções ao ressaltar que o homem faz a História nas condiçóe.� dadas pela História:
relação é de tr.msmissão. São típicas dc.�sa concepção as expressões 'passar o con­ ao mesmo tempo <JUC os homens são livres c criativos, são também enraizados.
teúdo', ou 'vencer o conteúdo'. Evidentemente, em nenhum caso se admire um I 1:1, pois, que se considerar a relação dialética entre sujeito e objeto 110 processo
professor de história com erudição insuficieme, mas a cenrralidade do conter'tclo 0 _ de conhecimento. Assim, o historiador não parte propriamente dos f:nos c sim de
conreudismn - priva professor e aluno da reflexão epistemológica, já que os conrer't­ materiais históricos, fontes, com a ajuda dos quais constrói os fatos históricos. Se
dos são tomados como universalmente válidos. Essa perspectiva histórico-didática ele os constrói, os f rcsullado de
a tos históricos, mais do que ponto de panida, são
não se resume a uma posição dircirista no espectro político, j:í que há perspectivas u m processo. Nesse processo de conhecimento, o sujeito assume um papel ativo
de esquerda <)UC advogam esse entendimento" (Cerri (b), 2007, p. 151). ao considerar os dados da re:didade concreta, c aí intervêm não só sua subjetiv i­
20. "Conquanro perrença a rodas as di�ciplinas do curso a f;mnaçáo da consci­ dade mas, principalmente, as determinações sociais. A questão da objetividade do
ência social do :du no, é nos estudos de História que ma i.� cfica:anenre se realiza couhccimento, da sua verdade, fica contida, na perspectiva marxiHa, na questiio
a educação pnlítica, baseada na ela ra compreensão das necessidades de ordem de que todo conhecimento não é, na verdade, um conhecimento individual e
coletivae no conhecimenro das origens, dos caracteres e da cstrurura das atuais sim de classe. Portanto, con hecimento interessado e, de alguma forma, coletivo"
insriwiçóes políticas e administrativas" (Hollanda, 1957, p. til). (13ullà, 1990, p. 14).

216 217
HALFERU C\HLO> illfiEIIIO júNJOI< I MAJRON EsCOJISJ VAJ.foRJO (01\CS.)

HOLLANDA. G. de. Um quarto de século de programas c compênd.ios


pessoas que nunca foram vistas antes todavia, sem isso a formação
,

de História para o ensino secundário brasileiro. 1931-1956. Rio de


dos professores de História seria mais deficitária. Trabalhar com as
Janeiro: I NEP/Ministério da Educação, 1 957.
turmas ajuda ao próprio acadêmico a se conhecer e reconhecer en­
JULIA, A cultura escolar como objeto histórico. Revista Brasileira de
quanto professor. A realização dos três estágios supervisionados pode
O.
História da Educação, Campinas, n. I, p. 9-44, 2001.
ser considerada um divisor de águas para a graduação em História.
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219
218
12

O ENSINO DA HISTÓRIA ATRAVÉS DE


OBJETOS COTIDIANOS

Cttroline Rippe de Mello Klein


Universidade Federal da Fronteira Sul- Campus Erechim

O presente trabalho tem por finalidade investigar uma nova


abordagem para o ensino da História com a utilização de
material concreto, neste caso o uso de objetos cotidianos
que remetam a certa época histórica. O presente projeto foi
aplicado numa turma de S• série do ensino fundamental
na Escola Estadual de Ensino Médio Dr. Oscar 1ollens, na
zona leste do município de Porto Alegre-RS, no período de
março a maio de 2008. A metodologia educacional desen­
volvida propiciou a conclusão de que o ensino da História
torna-se mais eficiente, quando utilizamos materiais con­
cretos, bem como os alunos sentem-se motivados quando
inter-relacionamos aspectos concretos com temas histbri­
cos, trabalhando num contex.to pedagógico construtivista,
à luz da Teoria Cognitivista de Piaget.

A Escola Estadual de Ensino Médio Dr. Oscar Tollens está situa­


da na Rua Vidal de Negreiros, n° 432, Bairro Partenon, Vila São José,
num zoneamento mais conhecido como Vila Santa Maria, ao pé do
Morro da Cruz. A escola atende em três turnos: manhã, tarde e noite.
A Escola EstaduaJ de Ensino Fundamental e Médio Oscar Tol­
lens possui dois prédios em alvenaria, cada um com dois pavimen­
tos. Entre os dois prédios há um pátio pouco arborizado, para o uso
dos alunos. O pátio é de areia e há no espaço interno da escola mais
dois prédios, sendo que o primeiro é utilizado corno residência de
um policial militar e o outro é utilizado como clube de mães.
A infraestrutura da escola é precária, contando apenas com um
laboratório de Química e Física, sala de áudio, biblioteca, banhei­
ros, uma Classe Especial e um refeitório. A escola dispõe de 14 salas

221
ENSINo m: I hSTÓRIA F. Curtrth:lllo
I IAI>FRJ> URLOS :l.IRRlllO )úNIOI< I MAIRON ESCOI<Sl v.. �RIO (OitGS.)

Durante o período de análisespreliminares, com objetivo de �::1


de aula, espaço administrativo com sala da Direção e Vice-Direção,
racreri7.ar os sujeitos que participariam da pesquisa, elaboramos 11111
Secretaria e a sala dos professores, relativamente ampla, onde há
instrumento de afcriç.-'ío jtmto aos alunos da turma 54, da 5" série.
uma mesa de reuniões coletivas com cadeiras, televisão, sofís, espe­
Este instrumento tem caráter quanritativo, considerando-se o mé­
lho, banheiros, assim como armários para os professores, mimeó­
todo apontado por Pilho (2002), que se utiliza da sistemati7.ação c
grafo e murais onde são colocados os avisos. Já a biblioteca possui
análise dos dados c informações, anteriormente coletadas para uma
um pequeno acervo, dividido entre livros didáticos, literários, livros
para pesquisa e revistas. É eqtúpada com quatro mesas para traba­
análise estatística.

lhos de pesquisa e uma para o bibliotecário.


Na pesquisa quantitativa, ntili7�'1-se o método dedutivo (da
Dentre os objetivos da escola está o de promover o aprimo­
teoria para os dados), as definições predeterminada.� e opc­
ramento e o desenvolvimento de todas as potencialidades do ho­ racionaliz.ada.�. a postura racionalista, a precisão por meio
mem, formando um ser crítico e autocrítico, questionador, capaz da medida e da manipulação estatística, a medida de variá­
de posicionar-se frente à realidade, resgatar valores éticos, morais e veis, a análise de componentes. (Pilho, 2002, p. 44)
espirituais. Ter pensamento criativo e transformador, ter consciên­
cia profissional, tomar decisões com o fim de buscar o seu bem-estar A seguir, foram apresentadas 1 0 questões fechadas c abertas que
pessoal e ele atuar responsavelmente na sociedade num esforço co­ compõem o instrumento de pesquisa aplicado junto aos discentes.
mum de rodas as disciplinas e comunidade escolar. Após a coleta c a organização dos dados obtidos, realizou-se um
Tendo em vista a clientela que a escola trabalha, os educadores, tratamento estatístico para os mesmos, sendo possível caracreri1.ar
com sua competência pedagógica e preocupada com a construção significativamente os alunos participantes do projeto.
do aluno cidadão, vêm valori7.1ndo a cultura da própria comunida­ Tomando como população a turma 54, da 5a série do Ensino
de. Deste modo, buscam resgatar de forma participativa, solidária e Fundamental na Escola Estadual de Ensino Médio Dr. Oscar Tol­
com o potencial cognitivo ampliado, versátil, capaz. de transformar lcns, verificamos que: a turma era composta por 40 alunos, sendo
c transitar emocional c inrelectualmenre, os diversos caminhos da
1 8 meninos e 22 meninas, com idades entre 1 1 c 16 anos.
sociedade e do conhecimenro, estabelecendo um espaço dialético
entre educando e educador.
A comunidade escolar à qual pertence a escola caracteriza-se por
um nível socioeconômico baixo, em sua maioria, sendo a população
Quadro 1. Comparativo Gênero dos alrutos da turma 54
do bairro heterogênea. Em funç.1o da comunidade é que a escola
programa as suas atividades, rendo o cuidado de remanejar alunos
para o noturno, devido à necessidade de trabalho pelos jovens que Durante a análise estatística, pudemos verificar que a média da ida­
são chamados a cooperar na renda familiar. de dos alunos é de 12,7 anos com desvio-paclcio de 1,84 anos. A turma
A maioria dos estudantes é oriunda das vilas do bairro Partenon. 53 foi considerada, pela maioria dos professores desta série, como sendo
A realidade fumiliar das crianças e adolescentes tntL dados tais como uma "tunna-problema", pois nela cncontr:un-sc os ahmos repetentes.
o f.
t to de a maioria das mães trabalhar como doméstica. A escola rem A pesquisa contou com 10 horas/aulas de observaç.-'io, a. fim de
o papel de ocupar com segurança o horário de aula das crianç.'ls, cn­ colher material significativo para análise da caracterização da institui­
ção de ensino, bem como dos sujeitos que participaram da pesquisa.
quanro as mães trabalham, além de oferecer a principal refeição diária.

223
1'l2
1-fALFEI<U Cuu.•lS ltmFIRO j(INJOu I MAmoN EscoRSI VAcl!•uo (onc:s.)

A prática doccnrc ceve duração de 1 5 horas/aulas realizadas em 11%

1 0 enconrros. O professor titular Marco Rocha' gentilmente ofe­


61
receu sua turma, e deixou claro que o conteúdo sobre História do O Muito interessado
Brasil, principalmente o Descobrimento, já havia sido lecionado no
28% [J Um pouco interessado
mês anterior. Durante o período de observação, verificnmos o plano
· o da componente curricular
• Nenhum interesse
de ensm · < ' para constatar a importfincia

dada ao ensino de História do Brasil na 5a série c confrontá-lo com


a realidade de sala de aula. Gráfico I . Co mparativo Percentual de Interesse pela
Dois motivos evidenciam o abandono do ensino da História Componente Curricular de História
nessa turma. Primeiro, pelo furo de o pro6 essor não execurar o que
propõe o Plano de Ensino, que, enfutiza o estudo da História do Durante o período de observação da turma, ficou evidente a
Brasil e as mt'tlriplas làces écnicas brasileiras. Segundo, pela própria abordagem clássica do modelo tradicional de ensino utilizada pelo
caracterização da turma, que mesmo composta em sua maioria por
professor regente, na qual o aluno realiza inúmeros exercícios repe­
alunos repetentes, evidenciou-se não possuir pouco interesse e co-
ritivos e não reflexivos. Da mesma forma, não se utiliza de situações
nhccimento sobre o tr::ma.
concretas do cotidiano dos alunos para ilustrar situações de aplicabi­
Quando pergunr:unos aos alunos sobre o imeresse que estes
lidade do conhecimenro. Essa realidade evidencia uma discordância
tinham pela disciplina de História, constaramos que os alunos se
cnrre a prárica docenrc c o que versa a proposta pedagógica da escola,
definiam um pouco inreressados pela Co mponentc Curricular de
no sentido de contribuir para que os alunos trabalhem de maneim
História ou simplesmente não ligavam para a matéria lecionada,
crítica e construtiva. Carraher ( 1989) aponta críticas para o modelo
mostrando-se um pouco apáticos.
tradicional e suas implicações na aprendizagem do aluno.

Interesse Freq. Absoluta Freq. Relativa


O modelo tradicional da educação trata o conhecimenro
Muito interessado 5 28% como um conteúdo, como inf�lrmaçóe,�. coisas c faws a .çe­
Um pouco interessado 11 61% rem transmitidos ao ;Juno. O aluno, segundo csta visão vai
Nenhum interesse 2 11% para a escola rccehcr uma educação. Dizer quc elc :1prcnder:í
significa quc sabcrá dizcr ou mostrar o que lhc foi cnsinado.
To tal 18 100%
Segundo este moddo, o ensino é transmissão dc informa­
Tabela 2. Nível de Interesse pela Componente tle História
ções. A aprend izagem pe recepção de informações e seu ar­
mazenamento na memória. (Ca rraher 1989, p. 12)
,

A "hisMria" desenvolvida de forma não reflexiva, cujos signifi­


cados estão somente em si, conduz o aluno a pensar que a História
aprendida na escola não esd aplicada no seu dia a dia, conforme mos­
tra o levantamento feito na turma 54, apresentado no gráfico a seguir:
I. Licenciado em História pela Universidade Luterana do B rasil - Ulbra, lotada
na Escola E. E. M. Dr. Oscar Tollens em condições de Conrraro Emergencial.

22S
224
28%
Atividades com materiais
4 7%
manipuláveis

Jogos 9 17%

To ta l 54 100%

72% • Sim T.-.bcla 3. Ativi<lades de Maior Interesse

O Não Jogo

Atividades com materiais

Gráfico 2. Comparativo Percentual sobre a Associação da Atividades em

História com o Cotidiano do Aluno Copiar do


I �I
Leitura
••
11 Ulllllll
Aos alunos que responderam que o contexto histórico desenvol­ Desenho lllll 1111
vido em.sala de aula poderia ser aplicado no dia a dia, foi questiona­
Atividades li - 1'11
do como se dá essa associação. As respostas indicadas fonun:
o 5 10 15 20
- Não sei. Gráfico 3. Atividades de Maior lntcn:ssc
- Porque assim podemos descobrir o futuro.
- Não consigo ver nada.
- À�vezes sim ou não.
Ainda analisando as características dos sujeitos de interesse na
pesquisa, questionamos seus gostos nas horas de lazer, bem como se
- Porque eu gosto.
o lazer que estes buscam lhes propicia algum tipo de aquisição de
informação.
Com a finalidade de desenvolver uma scquência didálica que as­
sociasse conceitos históricos com a vivência dos alunos, bem corno Esportes
fosse atrativa c prazerosa, foi solicitado que os alunos listassem até Assistir TV
três atividades que lhes despertam maior interesse na escola. Escutar Música
Jogos Eletrônicos +------.-.---.�

I
Leitura
Atividades que despertam Freq. Freq.
Atividades Culturais
interesse Absoluta Relativa
Passear
Atividades físicas 14 26%
Diversão com os amigos
Desenhos 8 15%
o 2 4 6 B 10 12 1L, 16
Leitura livre 2 4%

Copiar do quadro 2 4%
Gráfico 4. Atividades de Lazer de M<lior Interesse

Atividades em grupo 15 28%

226 227
ENSINO 1>P. I h�1·ônrA •� CunnJcuto

O gráfico adma demonstra a ausência de leitura como a tividade mais prática sobre História. Na busca de desenvo lver a crítica h istóri­

de lazer. Em contrapartida , ao analisarmos a Tabela 4, que apresenta ca recomendada pe los PCN's, trabalhamos na linha construrivista de

a frequência absol uta do hábito de leitura no cotidiano dos alunos, ens ino , por entendermos que a construção e o manuseio de materiais

verificamos uma incoerência nas respostas. instrucionais, bem como as produções intelectuais sugeridas aos alu­

I
nos iam ao encontro da Teoria de Jean Piagct. Segu ndo Groenwald:

De vez
Fonte de
lnformacão
o·•anamen
. Ie
Com
Frequência
I em
quando
I Raramente tem o objetivo de justificar que ser construtivista é trabalhar
ao encontro da teoria de L'iaget e utilizar-se de recursos ins­
trucionais, como materiais concretos e encadear atividades
Jornal 12 1 3 3
que levam o aluno a formar estruturas lógicas de raciocínio.
Revista o 2 6 10
(Groenwald, 1997, p. 206)
Livro 1 2 6 9

Estabelecer um contrato d idático neste projeto foi de grande im­


Inlernet 3 3 5 8
'
Tabela 4. Frequências Absolutas do Hábito lia Leitura portância, uma vezque, atuando como professor-pesquisador, neces­
sita.va que os alunos p roduzissem material signi fica t ivo para análise
Duas in formações se destacam fortemente na Tabela 4, uma é li. posteriori da engenhari a didática que seria realizada nesta pesqu isa.
de que os alunos têm o hábito de ler jornal diariameme e, outra, de Desta forma, foi elaborado com os alunos um Contrato Didtiti­
que os jovens da turma 53 raramente buscam in fo rmações noutras co, onde o aluno se dispo nibilizava a ser cri ativo e crítico na realiza­
fontes escritas, como revistas, livros e internet. ção das atividades p ráticas desenvolvidas. Do mesmo modo, deve­
Burgués (1997, p. 61) entende que a percepção visual exige o riam trabalhar em grupo de forma cooperativa, bem como apontar

desenvolvimento de uma série de habilidades, entre as quais se des­ as dúvidas que surgissem no decorrer do trabalho.

tacam o saber ver e o saber interpretar. Essas habilidades não são Demo (2003) explica o Contrato Didático, bem como sua im­
inatas, tampouco instantâneas ao momento da observação. portância nas relaç ões entre professo res e alunos:

Ao final desta fase da pesquisa, buscamos montar uma sequên­


Por isso, a sala de aula clássica precisa ser repensada. Não
cia de atividades didáticas que buscassem responder aos questiona­
é educativo reforçar a imagem autoritária do professor, in­
mentos de nossas hipóteses. Para tanto, foi desenvolvid;� a metodo­
dicada pelo púlpico de onde leciona, pelo auditório cati­
logia do projeto, descrita no próxi mo capítulo.
vo obrigado a escut:í-lo, pelo poder discrionário que pode
No presente capítulo, apresentamos o projeto realizado com reprovar a quem tlueim, pela diferença ostensiva entre al­
uma t urma de 5a série do Ensino Fundamental, propondo-nos a guém que só ensina e outros que só aprendem, c assim por
abordar conceitos de História do Brasil de acordo com os níveis de diante. Esta ambiência conduz efeitos domesticadores, que,
desenvolvimento do pensamento histórico, bem como dentro da em vez de um p;uceiro de trabalho, prefere um aprendiz

linha Construtivist.1 da Educação. dependente. [.. . ) em vista disso, ser<Í útil desde logo retirar
o pedestal do pwfessor, para apresentar-se como orientador
o projeto foi aplicado com alunos da sa série do ensino funda­
mental na Escola Estadual de Ensino Médio Dr. Oscar 'lollens, que
do trabalho conjunto, coletivo e individual, de todos. Não
implica, de forma alguma, perder a autoridade, instaurando
até o momento tinham pouco ou nenh um contato com uma aula

228 229
ll�u·�nu CAnws 1"\Jumno )úNton I MAtnON Esconst VALIÍRIO (oncs.)

a bagunça e a impertinência dos alunos, mas implica em A Sequência Didática proposta busca dar um signlf11 adu I'·'"'
preferir a autoridade que se erige pela competência, bom os conteúdos desenvolvidos na série, presente no plano de cst 1ulo da
exemplo e orientação dedicada. (Demo, 2003, p. 16) componente História da 5" série. Essa significação se dá atr:w(�s dt•
uma mudança de metodologia, uma vez que o aJw10 ti11ha, apcna!l,
Neste irem, buscamos apresentar o objetivo da sequência didá­ aulas expositivas e com grandes quantidades de exercícios repetitivos.
tica, bem como sua concepção e desenvolvimento. O principal ob­ A mudança metodológica visa um ensino mais eficaz, prático
jetivo desta sequência didática foi introduzir importantes concciws e que reflita na reaJidade do aluno. Desta forma, oferecendo ex­
iniciais de História utilizando materiais concretos e assimilando-os periências capazes de tornar o cotidiano matemático escolar mais
com o tempo presente e passado. A Sequência Didática foi desenvol­ interessante c motivador.
vida em um período de 15 horas/aulas de atividades práticas, sendo Pensando numa proposta de atividades construtivista, buscamos
preparadas e adaptadas ao longo das 10 horas-aulas de observaç.'ío da utilizar recursos didáticos manipul:ívcis c visuais, a fim de provocar
turma c do ambiente escolar que antecederam as atividades práticas. a imaginação do aJuno. Cabe rc.�saltar que a finaJidade dos recursos
Segundo Pais (2002), a sequêncía didática é formada por: utilizados não está encerrada em si. São ferramentas importantes
no processo de aprendizagem, porém sozinhos não contribuem na
[...j cerro número de aulas planejadas e analisadas previa­ aquisição de conceitos geométricos. Na perspectiva do uso de ma­
mente com a finalidade de observar situações de aprendiza­ teriais concrews em sala de aula, Groenwald afirma: "se o professor
gem, envolvendo os conceitos p revistos na pesquisa Jid:ír'i­ quer assumir uma postura construtivista precisa mudar o enfoque
ca. Essas aulas são também denominadas de sessões, tendo de sua aula, precisa usar recursos que levam o aluno a concluir regras
em vista seu caráter específico para a pesquisa. Em outros e a sala de aula deve ser um local ideal que propicie este ambiente"
termos, não são aulas comuns no senrido da rotina de sala (Groenwald, 1997, p. 298).
de aula. (Pais, 2002, p. I 02) Aqui destacamos o papel do professor-mediador c a maneira
como este desenvolveu os conceitos trabalhados. Como sugestão de
Através da aplicação de uma Sequência Didática, buscamos mos­ sistematização da aprendizagem, indicamos que a turma e o profes­
trar exemplos concretos, bem como situações vivenciadas ou conrex­ sor formalizem a teoria no quadro, ou seja, que registrem a produ­
tualizadas para o aluno. Do mesmo modo, exploramos o ensino da ção intelectual explorada na atividade. Diferentemente do modelo
História utilizando recursos manipulativos, neste caso os mosaicos, tradicional, onde o professor detém todo o conhecimento e apenas
rendo como base a teoria cognitiva de Piaget, aplicada à História. repassa para o aJuno conceitos acabados e formalizados.
Na tentativa de tornar o ensino da História mais atraente do Uma das características apresentadas no projeto foi a disposição
que aquele desenvolvido de maneira expositiva, buscamos provocar dos alunos em grupos, livremente formados pelos discentes. Durante
o raciocínio do aluno, objetivando que este desenvolvesse csrrmuras a realização das atividades, o professor, aruando como mediador no
meneais capazes de resolver problemas, bem como criar suas pró­ processo de ensino-aprendizagem, procurou ajudar os ahmos, incenti­
prias ferramentas para a aprendizagem da história. Esta proposta vando que os mesmos encontrassem respostas para suas inquietações,
segue a ideia de uma Sequência Didática, a fim de evidenciar que realizando experimentações c investigações. Desta forma, o professor
cada conceito em desenvolvimento está diretamente ligado ao con­ incentivou o aluno a pensar por si mesmo, transmitindo-lhe que ele
ceito precedenre já desenvolvido. possui condições de reaJizar atividades com sucesso.

231
HAL�rRn C:..ou,us RIDEmO jlÍNJOn I MAJJ<ON Escons• VAc�Juo (onc:s.) ENS1NO uE l-IIS1'ÓIHA E Cuuulc:oa.o

De acordo com essa perspectiva em educação, Groenwald afirma: cimento prévio do assunto em questão, além de quatro caLxas colori­
das, dentro das quais havia objetos iguais, eram eles respectivamente:
A sala de aula deve ser um amhicnre democrático, de dis­
cussão agradável. O ambiente s6cio afetivo e intelectual da • Um pedaço de tecido vermelho, representando a explora­
classe é um dos pomos importanres para que as crianças ção do pau-hrasil;
aprendam ou não conceitos que serão desenvolvidos. Os • Urna réplica de um diário português, que rraram do que
alunos devem senrir-se à vontade para dizer suas opiniões e são as Capitanias 1-lcn:didrias;
discurir suas idéias com o objetivo de desenvolver sua auto­ Uma réplica de uma carta amiga, que comém várias in­

nomia. (Groenwald, 1 997. p. 306) formações acerca das relações dos donatários com a nova
colônia;
• Um mapa envelhecido que conré111 a divisão das Capita-
Ao longo das atividades, houve a realização final de uma ofici­
nias Hereditárias no Brasil;
na que teve como temática a pesquisa em fontes materiais, acerca
• Um espelho, representando o escau1bo;
do conteúdo História do Brasil Colônia - Do Descobrimento às
• Uma imagelll de uma caravela, que nos fab o meio que os
Capitanias Hereditárias. Os alunos teriam que, através de fontes
portugueses utilizaram para chegar ao Brasil;
materiais como fotos e cartas, pesquisar c deduzir fatos históricos • A pimura da Primeira Missa no Brasil de Vicror Meirdlt:s,
que compreendem o período citado. demonstrando a desigualdade entre os índio.ç e colonizado­
Em vista da carência e escassez de recursos multimídias, o grupo res, além da imposição de cultura e costumes dos portugue­
tinha como visão mostrar uma realidade diferente à comunidade ses sobre eles;
escolar, trazendo objetos e auxílio de computador e televisão. Além • Um colar indígena, n::presemando a culwra que os indí-
de incentivar os alunos à leitura de documentos c proporcionar uma genas possuíam;
nova vis:lo de História que se assemelha e caminha junto com a rea­ • Urn rosário, representando a religião que esses pormgue­
lidade social da comunidade em questão. De modo a: ses tinham e impuse::ram aos habitantes da América.

• Incentivar a leitura arravés de cartas, livros e fows; O grupo também conrou com 4 cores diferentes de esrrelas em

• Ensinar o conreúdo História do Brasil (elo Oescohrimenro EVA que iriam dividir a turma em 4 grupos de 10 alunos, para que

às Capitanias Hereditárias), incluindo o estudo da História, cada componente do grupo pudesse auxiliar os alunos a analisar as

através de recursos diversos e de uma forma diferenre e nova fontes e responder às questões que iriam ser expostas a eles, para
aos olhares dos alunos em questão; que as fizessem juntamenre com os professores de cada grupo. As
• Auxiliar c ensinar o que é pesquisa, seu papel na História estrelas seriam distribuídas aleatoriamente entre os alunos, os quais
e praticar juntamente com os alunos o exercício da pesquisa poderiam trocá-las com os colegas, caso quisessem.
em fontes materiais.

Referências
Para realizar a oficina, o grupo contou com uma ajuda relevante
do professor regente Marco Rocha c de 3 alunos do curso de História BARROS, J. J'A. O Projeto de Pesquisa em História. Petrópolis: Vo'Les,
da PUC-RS. Para realizar a oficina, o grupo contou com um conhc- 2005.

2J2 233
BRASIL. Secretaria da Educação fundamental. Parâmetros Curriculares
13
Nacionais: História. Brasília: MEC/SEP, 1998.
DESMISTIFICANDO O TABU DO TOTEM:
CARRAHER, T N. Aprender pensando. Petrópolis: Vozes, 1 989.

DEMO, P. Educar pela Pesqtúsa. São Paulo: Associados, 2003.


REFLEXÕES TEÓRICO-METODOLÓGICAS
PIAGET, J. Para onde vai a educação? Rio de Janeiro: forense Univer.�i­ PARA O ENSINO RELIGIOSO A PARTIR DE
tária, 1991. UMA ABORDAGEM HISTÓRICA

Paulof. S. Bittencourt
Universidade F
ederal da Fronteira Sul (UFF/))

"Quando os homens se calam, quando o demônio do ruído está mudo


no meio do seu templo, no meio de uma cidade adormecida, é então que
o tempo deva a sua voz, e se faz. ouvir à minha :�Ima."
(Sigmund Freud. YiJtem e tabu)

Ensino religioso e tabu

Um tabu que rem a ver, em essência, com o fenômeno religio­


so nos assola. Não se trata, contudo, da tese freudiana que postula
duas proibições basais como desencadeadoras da religião em tempos
remotos da história da humanidade, a saber, a do incesto e a da ma­
tança do animal totêmico. Apesar de nos servirmos alegoricamente
do par de conceitos que consagrou o ensaio de Freud, as associações
entre tabu e totem aqui são utilizadas para outro fim. O tabu a que
nos referimos é de natureza pedagógica. Consiste na pertinência de
se inserir ou não o ensino religioso em sala de aula, tanto nos currí­
culos da educação básica das escolas públicas quanto, eventualmen­
te, nas grades curriculares da educação superior.
O assunto é alvo de polêmicas intermináveis. Duas posições
diametralmenre opostas movem o desacerto. Ao se digladiarem, tra­
balham de mãos juntas sem o saber, a serviço da mesma finalidade:
a cristalização crescente do próprio tabu que, então, é retmalimentado
pela disputa mesma, numa cin:ularidttde de tipo viciosa. Incapazes de
se distanciarem episremologicamente de seus próprios pressupostos,
essas posições encarnam um espírito combativo, cruzadístico.

ns
234
A posição cretzte-doutriwb·ia é predominantemente religiosa? Que inconveniente haveria, então,
em se adotar práticas e simbologias da confissão religiosa m:tis ex­
Nwna ponta do conflito, encontra-se a postura crente-doutriná­ pressiva de uma religião nacional, em detrimentos das 0111 ras, nas
ria. Movidos por incompreensão ou intolerância, senão por ambas, repartições públicas?
seus defensores mostram-se incapazes de al:eitar a laicidadc do espa­ Mas há outra manifcsrnção ainda mais compromcredora a im­
ço ptlblico nas escolas e a abordagem acadêmico-científica nas uni­ pedir a laicização plena da esfera pública em plenos princípios do
versidades. Justamente por isso, veem na inserção do ensino religio­ século XXI. Eis sua construção argumentativa: Não é assegurada
so não só a aceitação tácita c inquestionável da religiosidade como constitucionalmente a liberdade de expressão aos cidadãos em um
fenômeno natural e normacivo ("ensina-se religião porque não se Estado laico? Então por que cidadãos religiosos não iriam se mani­
pode não ser religioso"), como advogam também o estudo do tema festar por seus ditames confessionais na elaboração das leis? Argu­
em perspectiva prosclitista-catequética. Daí consagram, em geral, mentos dessa ordem são urilizados, por exemplo, na conresraçáo
um credo em detrimento dos demais. Nesse caso, quase sempre a de projetos de leis que não se coadunam com preceitos c dogmas
confissão religiosa :� ser adorada é a da religião predominante no país. de denominações rcligios::ts. Seriam os casos bem conhecidos das
Aliás, aqui, não há tratamento científico da crença como fenômeno resistências ao reconhecimento plenamente jurídico cbs uniões civis
cultural. Instiga-se, pelo estudo da religião, a simplesmente crer.
homoafetivas e à clescriminalização do aborto.
Como se não bastasse, o enfoque crente-doutrinário traz para
a sala de aula práticas formalmente religiosas, desde a realização de
orações até leituras devocionais de textos sagrados. 1rata-se, quase
A posição ateísta-milittmte I'
sempre, de uma abordagem instrumental do ensino religioso, que
"Guerra é guerra", e a religião está em guerra contra a ciência.
visa, por sua vez, à conversão religiosa como cantinho de morali­
Ao atacarem, a partir dessa máxima, os fundamenralismos religio­
zação dos comportamentos c costumes. "Somente pessoas religio­
sos, os defensores do ateísmo-militante advertem para a necessida­
sas podem ser morais", é o que se costuma dizer. Dessa perspectiva
de de nunca se baixar a guarda contra as intromissões do discurso
advêm outras incompreensões reativas diante da n::;turC'L-:1 laica do
religioso sobre os processos educacionais. O filósofo Sam Harris
Estado c do espaço público. Uma delas subjaz, por exemplo, à re­
resumiu muito bem tal reação: "a religião bate sem dó c quer ser
futação de toda e qualquer tentativa de isent:u espaços públicos de
tratada com luvas de pelica". Com uma retórica virulenta, portanto,
símbolos religiosos, sob o argumento de que os adeptos da laicida­
os ateístas-militantes, a quem poderemos chamar simplesmenre de
dc do Estado são propagadorcs totalitários do ateísmo. Seus porta­
"neoateísras", ecoam a célebre senrcnça de Marx, sem serem nccessa­
-vozes não compreendem, assim, que Estado laico c Estado ateu
riamence marxistas: a religião é tão somente "o ópio do povo", uma
são duas realidades completamente distintas. 1 A sociedade civil não
crendice absurda que escraviza as pessoas. Freud, olll'ro giganre do
I . Dawkins, Richard. Dcm um r/e/frio. São Paulo: Companhia das Letras, 2007,
p. 73s. Este estudioso, ao se referir aos fundadores secularistas da Índia pós­ isto não está correto. O que isso significa é que é um Estado que honre todas as
c tCJn
n
-colonial, especialmente religioso Candhi e o ateu Nchru, cita dc.Hc último crenças igualmemc que lhes dê oportunidades iguais; a Índia um longo

uma das mais m:•gistrais dcf!niç6cs de laicidade do Estado, aqui tecidas em re­ histórico de tolerância religiosa 1 . 1 Num país como a Índia, que tem muitas
. .

lação à Índia laica tão sonh:ttla pelo primeiro: "Falamos de uma Índia laica [. .]
.
crenças e religiões, não é possível consnuir um nacionalismo real senão com hase

Algurnas pessoas acham que is.<o significa algo contrário � religião. Obviamente no seculiarismo".

237
I IAI FFIU> CAnto< R·..-.,no júN1on I MAmON Escon.�• v.,"-""' (<me:<.) FNSINO llt I I1S1óruA E CuunfcuLO

pensamento humano, se referiu à religião, em seu ensaio Ofuturo de compreensão. Uma conclusão exemplar dessa argumentação radical
mna i/miio, como uma neurose coleliva.2 - um non sequitur- é a própria defesa do banimento do estudo das
Deveras, de uma premissa acertada decorre o discurso ncoa­ religiões nos currículos escolares. Neste caso, não é só uma questão
teísta. Ela j á havia sido consagr<�da pelo cientificismo determinista de não se abordar a religião ao lado de teorias científicas como o
do século XIX. A investigação científica dos fenômenos da mente, evolucionismo. Almeja-se simplesmente não enfi>ear o fenômeno
da vida e do universo não requer nenhuma variável explicativa de religioso sob hipótese :�lguma. Acontece que essa posição é anticien­
ordem sobrenatural. Logo, a religião é desnecessária para o conhe­ tífica. O conhecimento científico é acima de tudo um modo de co­
cimento científl.co da realidade. Uma das reações mais aguerridas nhecer a realidade. A despciro de ser o mais preciso e seguro de que
elos neoatcístas, nesse sentido, emerge quando das prctCJlSÕes dos dispomos, não é de forma alguma o Graal das respostas a todos os
crentes-doutrinários de inserir, no espaço educacional, a teoria cria­ enigmas que assolam a humanidade. Esse argumento valida a crença
cionista em pé de igualdade epistemológica à teoria darwinista da religiosa como conhecimento, ou a comprovação de seus objetos?
evolução. Não nos enganemos aqui. Os religiosos que defendem É claro que não, e nem se trata disso. Mas residiria aqui o caráter
ess<� equivalência de s1at11S não atentam somente contra o espírito provisório, imperfeito c inacabado dos legados de conhecimentos
científico da forma mais absurda; prestam também um dcsserviço à científicos, sem o qual, aliás, a ciência se petrificaria, converrendo-se
própria natureza genuím da religião. A teoria darwinista é um fato em crença disfarçad:J de investigação livre e aurocrírica, um delírio
científico observado, testado c comprovado. Já o modelo criacionis­ jônico.3 Tão fustigada pelos ncoatcísras como reticente c covarde,
ta esd muito longe de st:-lo. a perspectiva agnóstica expressaria mais adequadamente o próprio
Com efeito, a ciência tornou possível a consideração de um uni­ espírito ciencífico.4 Com efeiro, o agnosricismo se rraduz como u m
verso não somente sem Deus, mas, acima de tudo, sem desígnio e

propósito. Aliás, já não é mais possível sustentar a hipótese de Deus 3 . Marcelo Cleiser ebari'l
r .a a expressão crítica "Falácia lónica", de !saia h Berlin,

ao se recorrer a uma impossibilidade da mente humana em aceitar com o termo "Delírio Jónico" para se referir a 1àles de Milew, o primeiro filósofo
jônico a propor uma teoria unificadora da matéria. '!ales acredirava que tudo
a existência de um universo regido pelo acaso. Vislumbres de telco­
poderia ser reduzido a uma Ílnica substância. Marcelo Cleiser considera a possi­
logia �6smica, aqtú, não dcix}lriam de ser meras projeções de meca­ bilidade de que os cientistas sejam vítimas de um sedutor Encantamenro Jônico,
nismos fundamentais de funcionamento da mente humana sobre "amplificado por milhares de anos de monoteísmo e pdo sucesso do reducio­
o mundo. No cnt.1nto, a militância ateísta, em ger<�l. regida pela nismo". Nossa ciência, segundo ele, será sempre incompleta. Nunca poderemos

premissa de que todas as questões podem ser reduzidas ao método conhecer cudo. "Podemos buscar descrições unificadas de fenômenos nawrais
e, no caminho, até encontrar algumas unificações parciais. Mas não devemos
científl.co, advoga a privação ela cultura lnrmana de outros modos de
jamais esquecer que uma unificação final está fora de nosso alcance". Ela é "uma
2. "O conhecimento do valor laisrórico de certas doutrinas religiosas aumenta tcnr:uiva de enconrrar Deus, mesmo que metaforicamente, através da lente da ci­

nosso respeito por elas, mas não invalida nossa proposta de exclui-las da moti­ . s de conceber a totalidade da Natureza. "Querer aprender
ência". Somos incapa·�.c

vação dos preceitos culturais. Pelo comr:írio! Com ajuda desses restos históricos, sempre mais reflete a nossa curiosidade. Acreditar poder saber t uelo rellete apenas

clacgamos à concepção de que as proposições religiosas são como qnc relictos urna ilusão". Cleiser, Marcelo. Cri11çrío imperjeitrJ: cosmo, vida e o código oculto

neuróticos, e agora podemos di1.cr 11uc provavelmente está na hora, tal como no da natureza. 3. ed. Rio de Janeiro: Recnrd, 21)10, p. 1 BI c 217s.
tratamento analítico do neur6lico, de ,çuhstituir os resultados do recalcamento 4. Para se rornar ciendfica, roda c qualquer hipóresc precisa ser rcsr:ívcl. Ora, não

pelos do trabalho intelectual." Frcnd, Sigmund. O fwuro de umn ilusão. Porto temos como resrar a existência de Deus para refud-la. Ao mesmo tempo, portan­

Alegre: L&PM, 2010, p. 111. to, que "Deus" não é uma hipórese científica, dizer que ele não cxisrc, com 100%

238 239
ENSINO DE I II�Tónr,, E CunniclH o

ateísmo prattco. Ora, se não há razões para se recorrer à hipótese Sagan, o maior divulgador da ciência do século XX, pelo cs11ulo da�
explicativa de Deus, e tampouco de se viver de acordo com ela, tradições religiosas:
também não há motivos para se encerrar definitivamente o assunto,
por mais que as probabilidades científicas sustentem o descarte da Estudou avidamente as religiões do mundo, tanto as viven­
existência de Deus. Trata-se, portanto, de urna prudência metódica, tes como as defumas, com o mesmo apetite pelo aprendi·t.a­
que instaura não a veracidade ontológica das cosmovisõcs religiosas, do que o levava a seus ohjeros científicos de esnHio. Ficou
mas sobretudo a tolerância respeitosa para com o estudo científi­ encantado com sua poesia e sua história. Quando debatia
co de outras formas explicativas do mundo, sem a diluição de suas com líderes religiosos, frequentemente os surpreendia com
identidades próp rias. sua capacidade de cirar, mais do que eles, os textos sagrados.
Alguns desses deharcs levaram a amizades de vida inteira c
a alianças pela prureçáo da vida. Ele nunca entendeu, no
A posição laico-cieutlfica
entanto, por que alguém desejaria separar a ciência, que é
só um jeito de buscar a verdade, daltuilo lJUe consideramos
Partimos, então, da relevância de se estabelecer as bases de uma
sagrado, as verdades que inspiram o amor e o tenwr.5
história sem crença das crenças religiosas. A inserção do estudo
do fenômeno religioso nos processos educacionais, para além do
O estudo dos fenômenos religiosos, para além das posições
embate entre essas duas posições, aponta para uma postura funda­
ateístas ou crentes, é imprescindível para o conhecimento íntimo e
mentalmente laico-ciemífica. Estaríamos diante de um tratamento
abrangente da mente humana. Não está, portanto, condicionado a
não religioso e, portamo, científico, do fenômeno religioso, sobre
quaisquer justificativas de ordem de f
é. Se a ciência nasceu da filo­
as bases teórico-metodológicas de uma das Ciências Humanas. Vá­
sofia a filosofia nasceu da religião. As cosmovisóes mítico-religiosas,
,

rias áreas das Ciências Humanas já se debruçam sobre esse campo.


com as expressões artísticas, constituem seguramente uma das pri­
Basta lembrar das abordagens das Ciências da Religião, da Cultura
meiras tentativas de compreensão do mundo pela espécie humana;
Religiosa e da Antropologia das Religiões. No. presente ensaio, a
remontam, portanto, ao grande despertar cultural da humanidade,
proposição parte dn método histórico ou, se se preferir, da História
inaugurado há, aproximadamente, 60 mil anos. Sua universalidade,
das Religiões c das Religiosidades.
esmagadora no passado e na atualidade, impõe no mínimo sua con­
sideração digna na investigação das relações emre a busca por res­
Mito e 1·ealidade: 1t71Ul história sem a·tmça das a·mças
postas cognitivas e de rcgulamcnração da sociabilidade c a dimensão
religiosas
do mistério ou do desconhecido.
O que Marcelo Gleiscr pondera a respeito das anes pode muito
Mas o ponto de partida deste ensaio, sem dúvida, constitui basi­
bem ser aferido no caso das cosmovisões mítico-religiosas: "[. . 1 o .

camente uma outra forma de olhar para o assunto. Ela parece muito
processo criativo científico não é assim ráo diferente do processo
bem expressa por Ann Oruyan, quando se referia, no prefácio à obra
experiência cientifim,
criativo nas artes, isto é, um veículo de autodescobena que se mani-
Vrtriedndes dtt ao interesse profundo de Carl

Jc ccrtcz�, não é uma possibilidaJc. A ciência n:lo pode provar <) que não existe, S. Sagan, Carl. Variedades da experiência cimtífim: uma visão pessoal da busca
muiw embora, como tal, nfto possa c nfto Jcva aceitar prcmiss:1s invcrificávcis. por Deus. São Paulo: Companhia tias Letras, 2006, p. !Os.

240 241
EN.)INO UI� I (J�T(�IHA E CuuufcuLO

fesra ao tentarmos capturar a nossa essência e lugar no Universo"6• como consequência da fluidez cognitiva da mente moderna entre as
Os enfoques e linguagens científicas e religiosas têm, naturalmente, chamadas inreligências social e naturalística, que, na menrc arcaica,
pouco em comum. Mas, sem dúvida, "religião teve (e tem!) um operavam separadamenrc. A manifestação por excelência dessa inte­
papel crucial no processo criativo de vários cientistas". Discorren­ gridade harmoniosa seria o pensamenro antropomórfico.
do, portanto, sobre os mitos de criação pré-científicos, Gleiser os A estatueta de marfim, proveniente de Hohlensrein-Sradel, no
encara, com os modelos cosmológicos, como a representação de Sudeste da Alemanha, mostra uma cabeça de leão c um corpo hu­
nossos esforços para compreender a existência do universo. "Esses mano. Imagens como essa pcrmeiam, adverte-nos Mithen, a arte de
miFos são essencialmente religiosos, uma expressão do fascínio com quase rodas as sociedades de caçadores-coletores, e aré mesmo dos
que as mais variadas culturas encaram o mistério da Criaçáo"7. Seria que vivem da agricul tttra elo comércio e ela indítstria. Infelizmente,
precisamente este fascínio que funciona como uma das motivações só podemos conjewrar a respeiro dos significados "inrernos" dessas
principais do processo criativo, um fascínio, no entendimento do imagens. É impossível reconstruir as ideologias religiosas das primei­
divulgador da ciência, "muito mais primitivo do que o veículo da ras sociedades do Paleolítico Superior, já que não dispomos de acesso
religião particular escolhido para expressá-la, seja através da religião ao mundo mitológico perdido da mente pré-hisróric.1. Corremos,
organizada ou da ciência"R. por isso, sempre o risco de :nrihuir a uma imagem senridos distantes
temporal e espacialmente em relação às próprias cond ições que a ins­
A p7-é-histÓ7"Ía da mente ,·eligiosa piraram. Aliás, como argumentou enfaticamente André Leroi-Gou­
rham, um francês especialista em pré-história, o balanço "religioso"
Nesse sentido, numa riquíssima e instigante abordagem sobre o
c.1mpo da Arqueologia Cognitiva, Steven Mithen posmla a hipótese [. ..] permanece até agora muiro pobre e compreende-se mal
de que as origens da arte c da religião estão associadas a um frenesi como é qut:, dispondo de tais materiais, certos autores pu­
deram considerar os depôsiros de ossadas como uma prova
de atividades culturais, correspondente aos começos da fase final
de p ráticas religiosas. A impressão que constantemente se
da nossa história arttuitetônica da mente. Tal fenômeno remontaria
retira dos ensaios sobre a religião pré-histórica é a de um
ao hig bang da cultura humana, durante a transição do Paleolítico
emprego forçado de documentos que nada têm a dil'.er de
Médio ao Superior. Aliás, a complexidade dessa transição nos leva a posit ivo sobre o ponto part cu lar da religião. tt
i
constatar a existência de "uma série de faíscas culturajs que aconte­
cem em momentos diferentes c panes diferentes do mundo, entre grupos humanos dentro do mundo natural, sumariz:Hin pela descendência de
sessenta e trinta mil anos awís"9• Mithen concebe o totcmismo1o uma espécie não-humana. O estudo do rotemismo - e as tcnt:uivas de defini­
-lo - formou o centro da antropologi a social durante seu dcscnvolvimenro no
6. Gleiscr, Marcelo. A dnll{'ll do 1111iv�rso: dos mitos de criação ao lli
g-llang. 2. ed. século XIX. Enrre 1910 e 1950, trabalhos importantes sobre esse assunto foram
São Pau lo: Companhia das Letras, 2003, p. 17.
produzidos por piondros antropólogos sociais, entre eles Frazcr, Durkheim, Pirt­
7. Ibidem, p. IRs.
-Rivers, Radcliffe-Drown c Malinowski. Esses estudos criaram as bases para A
R. Ibidem, p. 19.
mmte selMgem de Lévi-Strauss. A isso seguiu-se, descie os anos 70, um renovado
9. Smithcn, Stevcu. A pré-histórin da mmte: urna busca da.� origens
da arte, da interesse pelo totemismo". lhidcm, p. 66.
rcligiiio c da ciência. São Paulo: Unc.çp, 2002.
L I . Leroi-Gourhan, Anel ré. As religióu da pré-história. Lisboa: 70, 2007, p. 36s.
I O. "O totcmismo é o outro lado da rnneda do hom
em/aui mal. Em vez da atri­ Leroi-Gourhan prossegue seu argumenro, indaga ndo-nos cspecialmcnre a par­
buição de características humanas a animais, envolve implant
ar indivídu os e tir do caso das carcaças de lobo de Morá vi a: "[...] é vcrosfmil que os homens

242 243
I l rtrRII C.nw� RrArJnn
A }úNrnrt I MArrtoN E..�.Oil<l VAtÉRIO (ctAC:�.) FN"NO ut ll"·róru• E CoRRic;ur o

'lemos de nos contentar, portanto, em interpretar o sentido entidades sobrenaturais, caracterizaria, segundo Pascal Boyle, a pró­
"externo" da cultura material produzida pelos grupos de caçadore
s­ pria natureza peculiar dos fenômenos religiosos.
-coletores, precavidos nas reconstruções interpretativas por uma ati­ l�esumidamente, as religiões são fabulações; podem náo ser ver­
tude; sobretudo, prudeme c cautelosa. De todo modo, é possível dadeiras, mas, lembra-nos Nancy 1-Iuston, sáo eficazes. Os adepros
aferir de manifestações primordiais de crença, como o totemismo, a elas aderem, e em função delas se comporram. É impossível dizer,
os mecanismos fundamentais das operações da mente no fenômeno num certo sentido, que Deus não existe. Tudo o que podemos real­
religioso. A evidência arqueológica desde o início do Paleolítico Su­ mente dizer é "que ele não existe em outro lugar fora das cabeças
pefior, como a arte e as sepulturas, fornece indícios de um conjunto humanas. Mas existir a esse ponro, em tantas cabeças humanas, é
de propricdades mais comuns das religiões: a ideia de sobrevivên­ uma existência enormc!"12• Haveria, então, "duas espécies de verda­
l
cia db algum componente não flsico depois da morte e sua per­ de: a objetiva, cujos resultados podem ser confromados com o real
manência como um ser com crenças e desejos; a pressuposição de (ciências, técnicas, vida cotidiana) c a subjetiva, que acessamos ape­
que certas pessoas de uma sociedade estejam mais sujeitas a receber nas pela experiência interior (miros religiões literarura)"13• Como
inJpitaÇões diretas ou mensagens das esferas sobrenaturais, como negligenciar, sem mais, uma via de acesso ao conhecimenro de uma
deuses ou espíritos; a execução de certos rituais de modo preciso
das experiências interiores que tem enrranhado, em tão larga medi­
como forma de causar mudanças no mundo natural. A existência
da, todo o tempo e todo o espaço da história humana?
de CIHidades não Hsicas traz consigo transgressões do conhecimento
intuitivo biológico c físico. Elas podem possuir corpos, mas muitas
Considerações finais
vezes não passam pelos ciclos normais de vida (nascimento, cresci­
mento, reprodução, morte e deterioração). Podem violar também
a física intuitiva ao serem capazes de passar por objetos sólidos ou O olhar epistemológico não requer ausência de posicionamen­
de distan­
simplesmente serem invisíveis. 1endcm a abrigar, contudo, alguns tos a posteriori. Exige, ames de mais nada, um esforço
das posi­
aspectos fundamentalmente intuitivos. Sem dúvida, aquele que ciamento metódico em relação aos próprios pressupostos
podem
mais desponta como basal para todas as rel igiões, já referido a res­ ções que assumimos. Crentes c ateus, sem deixar de sê-los,
incorrer
peito do totemismo, é a crença na intencionalidade dessas entidades compartilhar da pesquisa sobre o fenômeno religioso sem
me ser
espirituais, tal como ocorre com seres lnunanos normais. Nesse sen­ na apologética teológica ou no repúdio desdenhoso. Parece-
sem
tido, elas podem ser ardilosas ou dissimuladas, sofrer por cit'uncs e exatamente esse o caso do estudo das religiões. Uma história
excelên cia epis­
rivalidades. A ambiguidade das violações e das conformidades, em crença das crenças religiosas refle1e um enfoque por
que roda
rebçáo ao conhecimento intuitivo como elemenLO definidor elas temológico do rema. Nunca é demais lembrar também
essencialmente ecumên ica,
abordagem epistemológica é também
início se inte­
do Palcol!tico tivc�sem idcias concretas sobre o lobo, é mesmo possível que os pois não há temas pelos quais a ciência não possa de
s em
a·m�mnados de carcaças da lixeira tivessem sido encarados com rc.çpeito ou com ressar. No que diz respeiro especificamente �s tradições religiosa
t iva, c tampou co
o sentimento de ter vencido forças ma léf cas,
i mas que dizer em relação a isto? O questão, não há nenhuma hierarquização qua1ira
De
respeito não é urna matéria fossili1.:ível e nada se assemelha mai� a uma lixeira
focus privilcgiodo para qualquer uma em detrimenlo das ourras.
que uma pilha de leras carrccadas de potencial m:ígico. A religião dos homens
a humanidade.
do Paleolítico, i\ semelhança da religião dos Australianos, não padece de drívidas, 12. l luston, Nancy. A t!Spéciefobu/tldom: um breve estudo sobre
revel:1ndo-se, no entanto, de pouca utilidade atulhar a cultura geral do homem Porw 1\lc�re: L&PM, 2010, p. 76.
moderno com provas que o 11iío siío ". 13. Ibidem, p. 62.

244 l�S
I lAtPP.Hu CMH.OS Rmfl.HKJ júNrOn I J\.tAmON Esconsr VAr.F.nr<l (onGs.)

outra parte, é da própria natureza do método científico fundar de 14


cerra forma a tolerância, considerando, sobretudo, o quão impres­
cindíveis são seus mecanismos autocorretivos. Mais ainda, uma his­
NA OFICINA DO LIVRO DIDÁTICO:
tória sem crença das crenças religiosas deve ser ampliada igualmente ASPECTOS PARA A DISCUSSÃO DE UM
de modo a incluir também o estudo e o ensino do ateísmo ou da
descrença como conrraparte necessária e altamente esclarecedora da
DOCUMENTO RELEVANTE PARA AS
própria investigação sobre o fenômeno religioso. ANÁLISES DE ENSINO DE HISTÓRIA
, O método comparativo no estudo das religiões representa, sem
dúvida, um dos caminhos mais profícuos para essa elucidação recí­ !Vfairon Escorsi Vàlério

proca de muitos aspectos das crenças religiosas. Mas precisa ser de­ Universidade Fetleraf df.l Fronteim Sul- Crtmpzts Erechim
vidamente elucidado. A questão não é tão simples. É possível haver,
por exemplo, paralelos de analogia que se referem a campos religiosos Nos meses finais do ano de 2008, quando ainda fazia meu'dou­
não diretamente intercambiáveis, e paralelos de identidade, 1� casos toramento em História pela Universidade Estadual de Campinas,
em que as tradições religiosas em questão compartilham de tradições recebi o convite de urna grande edirora1 para fàzer parte de uma
corrums, devendo-se, portanto, precisar a natureza dessas conexões. equipe de redatores do conteúdo de um livro didático de História
Reconheço, por isso, ter deixado de lado outros elementos im­ para o Ensino Médio. Essa oportunidade de trabalhar para o mer­
prescindíveis para o ensino religioso em perspectiva histórica, como cado editorial me chegou por intermédio de um professor daquela
o ecumenismo c a comparação, ambos essencialmente associados. universidade, que havia recebido a proposta anteriormente, mas que
Estou certo de que o estudo da evolução das ideias religiosas, ao precisou declinar ela mesma por estar comprometido já com outra
longo do tempo, possui o privilégio de esclarecer mais detidamente editora. Como resposta ao convite recusado, ele acabou recomen­
os aspectos histórico-culturais desse fenômeno. Todas as religiões dando alguns alunos da pós-graduação para o trabalho.
são tentadas a se autoconcebcr como atemporais em seus núcleos
Assim, em outubro daquele ano fiz um teste de escrita de dois
teológicos. Mas isso já é matéria de crença. No ensino religioso,
capítulos de livro didático. Fui aprovado e comecei a trabalhar no
caberá sempre percebê-las como fenômenos humanos que evoluem
projeto. O trabalho parecia-me não apenas uma possibilidade de
historicamente em meio a recepções e resistências. E o descontenta­
atuar numa área de trabalho da profissão, mas também uma grande
mento do estudioso crítico para com ideias não históricas não deixa
experiência de estar por dentro da maquinaria empresarial de produ­
de ser um dos ingredientes de sua honestidade intelectual.
ção de bens de consumo para a educação. É com base nessa experiên­
cia, que presumo não ser o tipo ideal weberiano de modu.s opemndi
da produção de livro didático - atemporal e normativo -, que sed
proposto um conjunto de reflexões acerca do Livro Didático na con­
temporaneidade e como isso incide nas análises elos pesquisadores de
ensino ele História que o utilizam como documenro histórico.

14. Utilizei a terminologia conceitual de paralelos de analogia e de identidade,


adaptando seus significados ao contexto deste ensaio, de Jammer, Max. Einstein e
n religiíill: física c teologia. Rio de Janeiro: Contraponto, 2000, p. 179. 1 . Editora SM.

246 247
EN�INO uF. I h<1c'lRIA r. Cunnlc.uw

flexivo. A equipe de edição supervisiona todo o trabalho para que o


Autoria
projeto seja concretizado no modo em que foi concebido. , _

Não existe autoria em livro didático. Essa premissa é um tanto


0 lugar de maior liberdade para os redatore de conteud � � � ao
os dossiês que aparecem nos finais de cada capttulo, que pnv�e­
quanto problemática. Primeiro que pode gerar argumentos empre­
,
giam temas relacionados com o conteúdo daquele capttulo específi­
sariais para o fim de proventos derivados das leis de autoria, o que
co mas que tenham a ver com presente, ou mesmo uma discussão
seria uma tragédia para aqueles que vivem do ramo. No entanto, a
autoria como se concebe, como o resuJtado de um esforço intelec­

hi toriográfica, um tema quase nunca abordado, mas considerado
relevante pelo autor. Esse e.�paço fica reservado para um aprofunda­
tual individual de concepção de um projeto inicial até sua execução
mento temático, que permite um corte vertical no conteúdo. Apesar
final, é muito rara na contemporancidade no que se refere à produ­
da livre-escolha temática, 0 autor obedece às orientações padrões de
ção de Livro Didático. Fl�tlvez, para ser mais criterioso, o que ainda
realização do projeto, como quantidade de caracteres, espaço reser­
existe é uma autoria relativa c parcial. Na maioria esmagadora das
vado para imagens c, também, propostas de at ividades que possar �
coletâneas did;íticas, o projero de escrita, diagramação, colocação
estimular 0 aluno em análises interpretativas, elaboraçáo de pesqui­
de imagens, surgimento de boxes, números de páginas por capítulo sa e construção do conhecirncmo em questão.
e propostas de atividades já estão previamente definidos. A equipe No que se refere às atividades de fim de capítulo, essas geral-
editorial monta a forma do texto, sua estrutura flsica, sua diagrama­ mente apresentam dois níveis de objetivos pedagógicos. Algumas
ção, quantidade de caracteres por páginas, reservas de espaço para questões são para que o aluno reveja o c� J� te�do. � ideia é � timular
imagens em páginas, além de estabelecer locais onde determinados a releitura de partes consideradas essenctats. Iossw um carater mne­
boxes possam trazer algum avanço, aprofundamento, relações inter­ mônico de apreensão de informações. Para além, estão pr�:ntes,
disciplinares ou coisas do gênero. num segundo nível, atividades mais interpretativas como anáhse de
Assim, quando um redator de conteúdo começa a trabalhar, ele documentos históricos em textos e imagens que estimule a capaci­_

já tem limitações muito claras do seu trabalho. Dividido em capí­ dade crítico-interpretativa do aluno. Apesar da estrutura pronta que
tulos e módulos, o livro didático é fracionado em sua escrit:1. O molda a atividade, o redator de conteúdo tem a liberdade de escolha
trabalho é também coletivo na redação do texto. Os autores ficam dos documentos, mas 0 questionamento deve direcionar o aluno a
com capítulos específico.,, com temáticas própri�1s. Obviamente essa uma resposta interpretativo-analítica.
divisão pode priorizar critérios de proximidade tem�ítica do autor Essas considerações relativizam de um modo permanente as

com temas nos quais se sente mais confortável. Independente disso, questões de autoria de livros didáticos. "Em sua con truçáo inter­ �
é muito provável que um mesmo autor possa escrever sobre coisas ferem vários personagens, iniciando pela figura do cd1tor, pas ando �
bastante distintas, como Período Helen{stico e Era Vrzrgas. pelo autor e pelos técnicos especializado � �
do processos graficos,
1\lém disso, para escrever wn capítulo sobre Reforma Protestan­ como programadores visuais, Uustradores 2��6, P·
.

(lhttcnco rt,

te, Primeira Repí1blica ou Colonização dos EUA, h:í todo um rotei­ 71). Daí a necessidade de que historiadores que propocm utl� tzar o

livro didático como um documento histórico tenham a obngaçao
ro a seguir que dá pouca margem de ação, criação ou invcntividadc
ao autor. Geralmente, nesses textos capitulares há um conjunto de de esclarecer esse processo de sua fabricaç.-ío. Analisar um manual
informaçóe.� básicas de conteúdo que deve estar no texto principal, escolar escrito por Joaquim Silva, Rocha Pombo é algo coml leta­ �
que possui um caráter informativo, narrativo e pouco analítico-rc- mcntc distinto de analisar um livro didático da contcmporanetdaclc

219
248
I IAL PCI<U c.mi.U) Rmell\0 júNIOU I MAII<ON EscoRSI VALÉIIIO (ORGS.)

no quesito nuroria. Mesmo porque, apesar de muitas vezes alguns barato, pois o livro cnJrn IIIIIIHt lh 11,•�·'"· 1111 ql l ll t t t ' h ', " J,,,,,, , ,,ll, •
aurores aparecerem na capa da obra e nas referências, na maior parte como elemento fundamcn1al p:ua a i 11111 1 '"' ll'lt 1 I" lu t\ I I I I� li ui
das vezes eles são redatores de conteúdos específicos, mas que por tério da Educação). Já no merCldo pd vm lo ,, ljll tllcl.ttlt dt 11111 luu u
,

sua posição acadêmica, ou profissional, serão colocados como os material é um atrativo para o público que ficqlli'llln ��� 1'�1 111 11� 1'·'1' 1
autores a fim de dar maior credibilidade à obra. O projeto delineado pela editora tem como Jrgul.•\·'"· • , jttll
outro, a cultura do livro didático já instalada na rede de c nsi uu t' I'"'
Façam o que fizerem, os autores não escrevem livros, os livros outro as exigências normativas do PNLD. Daí um dos clemenw1o
não são, de modo algum, escritos. São manufaturados pores­ ftmdamentais para se compreender porque uma coleção de livro di­
cribas e outros artt:sáos, por mecânicos, outros engenheiros e dático não pode ser extremamente renovadora. Por um lado, existe
por impressores e ourras máquinas. (Chartier, 1990, p. 126) a pressão pela inovação, tanto ele conteúdo quanto de método, para
que o livro tenha uma característica diferencial, atrativa, sobre a qual
Seria ingenuidnde abordar o assunto autoria como reflexo me­ o marketing das empresas possa trabalhar. No entanto, tal inovação
cânico dos supostos nomes de capa de um manual escolar hoje. O não pode se confundir com uma revolução do livro didático, pois o
conceito de autoria merece uma revisão profunda quando tratamos mesmo será vendido para um público que tem uma clara representa­
de Livro Didático. ção, icleia ou concepção do que seja um bom livro didático. O pro­
fessor cumpre aí um papel fundamental. Ele é o ponto-chave para a
Projeto c mercado inserção desse produto no mercado privado, e também no público.
Quanto ao processo de seleção de coleção realizado pelo MEC
Livros didáticos não são e nem podem ser inovadores. Não é por meio do PNLD, cabe ressaltar que as coleções chegam às escolas
esse o objetivo de um manual escolar. Como afirma Circe Bitten­ para que os professores das disciplinas específicas escolham quais
court, trata-se de um objeto da indústria culrural que tem objetivos manuais desejam. Esse processo é um orientador do processo de
específicos, sendo um ddes o lucro derivado de suas vendas. "O compra de livro didático por parte do MEC. Algum professores cl1.
livro didático é, antes de tudo, uma mercadoria, um produto do rede pública não conseguem compreender, muitas vezes, por que
mundo da edição que obedece a evolução das técnicas de fabricação o livro escolhido por eles não chega à sua escola. Trata-se de uma
c comercialização pertencente à lógica do mercado" (Birtencourr, orientação de compra na qual as porcentagens de compra acabam
2006, p. 71). Quando uma editora se propõe a entrar na competi­ sendo proporcionais por parte do MEC. Assim, os livros mais soli­
ção acirrada do mercado de livro didático, isso significa que a em­ citados serão os mais comprados, porém as demais coleções também
presa precisa ter dare-la de seus objetivos. são adquiridas. A distribuição não obedece muito essa lógica escola
Basicamente, existem dois mercados para serem atingidos: o pri­ - livro, mas sim a proporcionalidade coleção/editora - rede nacio­
vado e o p•'iblico. O livro rende a ser o mesmo, no que se refere nal de unidades escolares. Daí a possibilidade de o livro solicitado
ao conret'Jdo, para ambos, mudando apenas a qualidade do material não ser aquele que chega à escola no ano seguinte, mas com certeza
de fubricaç.'ío. Para o mercado público, derivado das políticas pt'1bli­ os mais solicitados terão lote maior de compra e maior porcentagem
cas de adoção de manuais didáticos escolares - o PNLD (Programa na distribuição, que é nacional, mas com margem de aleatoriedade.
Nacional do Livro Didático) e o PNLEM (Programa Nacional do Deste modo, o papel desempenhado pelo professor é preponde­
Livro-Didático para o Ensino Médio) -, o material deve ser mais rante no processo de venda do livro didático. Multas vezes, esses são

250 251
I IALPeKB CAntO> Rw•mo jüNJOn I M•moN EscoRSJ VAcéJ\10 (ouc:s.) I'.NS>Nll "" I IJSTÔIIIA r. Cunni<:IJI o

cortejados pelas ediroras que enviam para as escolas coleções e mais de programas de l listória: cronológico, de linhas de desen­
coleções para a análise, numa tentativa de garantir a escolha. Esse sis­ volvimento, por quadros his1óricos e por conceitos ou temas
tema vincula o processo de feitura do livro didático à condicionante organizadores L. ] indiscutivelmente, também entre nós,
..

prevalecem os currfculos camctcril.ados pelo que Pelguei­


de agradar ao professor, o sujeito-chave na conquista do mercado
ras denomina "programa cronológico". Neste, a organiza­
pela editora. No entanto, essa condicionante rem se mostrado bas­
ção do conhecimento histórico caracteriza-se por percorrer
ranre conservadora. Os professores esperam do livro didático uma
um longo perfodo de tempo e proceder a uma apologia do
linguagem, organizaç.io, modelo, escrita com que já estejam f
a mi­
"acontecido com êxito", ou seja, a versão oficiosa dos ven­
liari7.ados. A expectativa dos professores está em livros que possam
cedores. Invariavelmente, incidem na valorização exce.�siva
até apresentar alguma inovação, mas que não fujam completamente
do passado longínquo, ern especial os "mitos de origem",
ao pad ão
r com que estão habituados, sobre o qual já desenvolveram observando-se uma sistemática exclus:io do passado recente.
suas técnicas de trabalho, um domínio da lógica de exposição dos Pelgueiras aponta as asserções históricas que fundamentam
conteúdos, um conhecimento do processo pedagógico implícito. o programa cronológico, nas quais podemos identificar
Essa cultura escolar do que é ou deve ser um livro didático de elementoS já rereridos. 0 principio lltlrteadur consiste na
História serve de freio a qualquer inovação mais drástica nos livros transmissão de um corpo de informações <[Ue se considera
didáticos. lsso explica de certa forma por que, ao longo da consoli­ comprovadas. Objetiva-se a narrativa da epopeia humana
dação do PNLD, livros di<bíticos que tinham propostas de trabalho sobre a qual está edificado o presente. A história é vista
com eixos temáticos - e não cronológicos, no modelo do velho sis­ como um todo contínuo, ascendente, sendo que o processo
tema quadrip:utite francês2 - apesar de surgirem como inovadores, evolutivo só pode ser transmitido rornecendo-se aos alunos
foram perdendo espaço no mercado. Havia uma reorientação pro­ uma estrutura temporal - a cronologia - c o desenrolar
sequencial dos acontecimentos. Assim, só com repetições
funda do rrabalho do professor, que estava contida na proposta de
persistentes se alcançará a memorização das informações;
livros de história temática. O receio de lidar com uma história que
os marcos cronológicos determinam o que é estudado. (Ste­
fugisse das rédeas das temporalidades já enrronizadas pelo professor
phanou, 1998, p. 23)
causou a ojeriza de muims a essas coleções. A permanência de uma
co'ncepção hisrória definida no século XIX é ainda bastante presente
Perseveram, subjaceme, ideias como linearidade, evolução, pro­
nas salas de aula do Brasil.
gresso, processo histórico cumulativo. A ordem cronológica desde
a antiguidade até a contemporancidade é ainda a estrutura sobre a
Um interessante mapeamento de diferentes organizações
qual uma história política é ensinada. Propor alterações muito signi­
curriculares encontra-se no trabalho de Felgueiras. A aurom
ficativas nesses pontos basilares significa, muitas vezes, retirar o chão
portuguesa distingue tluatro tendências atuais na elabomç:io
de professores de História.
2. Modelo qu:1dripartite eu10peu (francês) que divide temporalmente a Histó­
ria em: Amiguidadt:, Média, Moderna e Comemporânea. A pcrmanl:ncia dessa
Exterioridade e transposição didática
cstnuura quadripartite no recente documento lançado pelo M EC, que regula
o currículo de l- lisrória para o Ensino Fundamental, o chamado fiNCC (Base
Nacional Curricular Comum), explícita essa dificuldade de superaç�o prática e
A relação entre a fabricação de um livro didático de História e
reórica desse modelo de organizar a história-coisa. o ambiente acadêmico ainda é a da ideia de transposiç.io didática.

252 253
IIAueuu CAuLOs 1\nmm.o JúNIOR I MAIItON EscouM VA!.r\Rro (01\GS.)

"O livro didático realiza uma transposição do saber acadêmico para sobre determinados acontecimentos históricos rclaciuuaudu-os corll
o saber escolar no processo de explicitação curricular" (I3ittencourt, os contextos históricos específicos de sua produção. Trata se mui111
2006, p. 72). Autores, redatores de conteúdo e corpo editorial são de aperfeiçoar a história-exterioridade c pouco de reflct ir sohrc :rs
convocados a ler o que há de ponta na historiografia brasileira e in­ possibilidades, contradiçóes c disputas de poder da ltistória-tcxtu.
ternacional para escrever a obra. Trata-se da ideia crua de que a uni­ De repente, de uma versão para outra, exige-se um novo capft uln
versidade produz o conhecimento e que o livro didático precisa ser ou módulo por conta da força de leis que respondem a pressão da
um bom simplificador desse. Há implícita nesta formulação uma sociedade civil por este ou aquele conteúdo específico que devem
ordem hierárquica de submissão, ao mesmo tempo em que se per­ estar no livro didático. E, assim, uma nova história-verdade ganha
cebe um compromisso com o conhecimento historiográfico c sua seu espaço naquelas páginas reivindicadas. Permanece atual o diag­
renovação. lslO evidencia a permanência de "O fetiche da Academia nóstico de Marcos A. Silva que, ao avaliar os discursos escolares
como único lugar elo saber: ele tem como consequência a desquali­ sobre a História, em 1984, afirmou haver:
ficação ele professores c alunos da escola fundamental e média, [ ... ]"
(Ponseca; Silva, 20 lO, p. 15). uma concepção de historicidade onde o principal nexo in­

Qualquer tema que seja tratado dentro de determinado capítulo terpretatívo se situa nos encadeamentos cronológicos, sem

de um livro-clidárico de História precisa dialogar com as percepções l}Ue seja atribuída qualquer importância aos intérpretes, às
relações de poder llue sustentam seu trabalho e aos problemas
hislOriográficas mais recentes. Essa preocupação com a atualização é
construídos pelo processo de conhecimento. Não há espaço
permanente e estabelece relações diretas com o sistema implantado
nesse modo de wnceber a aprendi..
1agem de história para a
pelo PLND, que limita a vida útil do livro didático em três anos.
. consideração do aluno como agente capab de propor c1ue.�tóe.�
Cada nova produção rorna imperativo um ref<zer, um reescrever,
ou dispor de conhecimento a partir de sua própria experiên­
uma relcirura e a incorporação de uma nova abordagem, seja sobre
cia social. A palavra das autoridades (professores, livros, do­
escravidão no Brasil ou, ainda, povos andinos pré-colombianos. Nes­
cumentos) assume uma força total. (Silva, 19H'Í, p. 2 1 )
sa constante busca, explícita-se a relação assimétrica de poder como
lugar de produção do conhccimenro entre a escola c a academia.
A prevalência dessa cultura de produção do livro-didático de
Apesar dessa busca pela atualização historiográfica, em uso de
História permite apenas a confecção de mais um capítulo de histó­
conceitos, abordagens e novas pesquisas, rodo esse movimento é feito
ria-exterioridade e pouca reflexão sobre as razões de produzir mais
a partir da concepção da História como exterioridade. As mudanças
uma narrativa, ou acerca das relações de poder que proporcionam
inseridas nos livros didáticos até indicam os caminhos da produção
ao livro didático ele mesmo ser um documento histórico. Uma série
do saber hisroriográfico -caso da inserção de documentos históricos,
de novos eventos e fàtos para f:.tzcr parte do programa básico que
sejam eles textuais ou imagéticos -, mas isso é bastante tímido e insu­
o aluno deve saber sobre História, deixando pa a
r segundo plano a
ficienre para trazer para o universo escolar elementos da produção do
compreensão da dinâmica de produção do conhecimento histórico,
conhecimento histórico e de sua finalidade político-social.
das disputas pela memória, da guerra de narrativas, da historicidade
Assim, cada renovação parece deslocar a história-verdade an­
do próprio livro d.idático.
terior (menos verídica) por uma história-verdade posterior (mais
verídica). Uma espécie de pensamento evolutivo subsiste nesse ra­
ciocínio. Há uma dificuldade em trabalhar narrativas divergentes

254 255
I IAI.PI!I<IJ C:Aou.os Rtuww JúNIOR I MAIHON EscoRSo VALÉnoo (onc;s.) EN�INO 011 f II!\'J(uuA r. Cun11h.w o

Currículo e ideologia sido uma opção, por parte das linhas teóricas das colc�·lks clhh111r 1111,
livrarem-se do estigma ideológico de livro marxista, fugindo nu·�11111
Há um fetiche que acompanha o livro didático: o de que ele das correntes mais culturalistas c humanistas como a dos m:uxbtw.
materiali?.a o currículo na sala de aula. Ocorre então um reducionis­ inglc.�cs, ou seja, de uma História social. Por outro lado, apcs:u ���·
mo grotesco na identificação enrre o conret'1do do livro didático e o aderir editorialmente à História cultural, torna-se difícil tra7.cr 1111111
conceito de currículo. Para além desse reducionismo, há uma crença história-exterioridade sem ncnhwn recorte de classes, ou abrindo
de que livros-didáticos são excelentes mecanismos de implantação mão completamente das contribuições significativas da História so­
de políticas pt'1blicas. Mais do que isso: livros-didáticos são vistos cial e elo próprio marxismo para pensar a História e o capitalismo
como efica1.es instrumentos de domesticação das massas. Governos contemporâneo. Além disso, ao se trabalhar com urna pluralidade
autoritários viram neles uma possibilidade de controle do que de­ de redatores de conteúdo, dificilmente há uma padroni1.ação teórica
veria ser ensinado, a fim de que alunos fossem súditos da pátria, clara entre todos, ou ainda o temor de um policiamento cerceador
com corações ardorosamente nacionalistas. Governos democráticos interno à equipe editorial.
vecm neles um mecanismo que permite a instalação de uma cultura Essa difícil missão de escapar do estigma ideológico fica mais
de tolerância, convivência com o diferente, participação política na evidente nos capítulos de História do Brasil que tratam de governos
esfera pt'1 blica dentro das regras do Estado de direito. Movirnenros recentes. A redação deles é acompanhada de perto pelo editor. Há
sociais veem neles uma possibilidade de f.uer com que suas bandei­ wn controle maior do texto quando se trata dos governos FHC,
ras reivindicatórias possam ser mais bem compreendidas. Segundo Lula c Dilma.
Selva G. Fonseca e Marcos A. Silva, trata-se do "fetiche da lei ou do Nesses capítulos considerados "delicados", exige-se do redator
,

Esrado que rudo salva, ignorando vontades intelectuais e políticas apontar pontos positivos e negativos de todos, numa escrita que as­
de professores, alunos c outros atores sociais envolvidos no Ensino pira à neutralidade, ao maior objctivismo possível, para não se criar
de História" (Fonseca; Silva, 2010, p. 15). um desequilíbrio que evidencie um lado nessa polarização política
O mercado editorial trabalha com esse fetiche. Aceita o empo­ ou, mesmo, que afete no processo de compra pelo Estado em que
deramenro do livro didático, pois isto significa o aumenro de sua um dos polos esteja no poder. Rcinvema-se na delicada História­
relevância no processo educacional, e em última instância persiste do prc.�ente cerra imparcialidade de frágU equilíbrio, em nome ela
legitimando-o corno instrumento necessário no processo educativo. não doutrinação c da ideia de construção autônoma da formação
Para além dessa questão, a linha editorial trabalha com cada dia político-ideológica discente.
mais cuidado em relação a urna escrita da História no livro didático Trata-se, portanto, da permanência de tuna concepção merca­
que não tenha um recorre muito ideológico. Para isso, a explosão dológica em que o livro didático seria um instrumento ideológico
temática da História cultural rem sido um escudo contra a força forre, capaz ele mobilizar mentes c corações, materialização das von­
das interpretações marxistas3, muito presentes nos anos 1980. Tem tades do aparelho de Estado. Na prática, o mercado editorial segue
o roteiro definido pelo Estado e suas instituições regul::�doras do
3. Segundo Selva G. Fonseca c Marcos A. Silva, houve um processo de lctíchi­
processo de produção do livro-didático, atendendo aos critérios exi-
zação cb l listória cultural francesa: "O fetiche dos 'Novos objeros', inspirado n;1
Nova História fr;,ncesa: a inovação derivaria de explorar temas nunca dantes na­ problcmatizaçóe.�. esse fetiche conduz a um ensino sobre eventuais exotismos e �
vegados (fósforos queimados, fraldas descartáveis, calos nas cordas vocais...). Sem perda de questões gerais de conhecimento histtírico'' (Fonseca; Silva, 2010, p. l5).

256 257
I IAO.I11'1Ul CARI.OS RluEmo ji'INIOR I i'viAIRON Escons1 VAciÍI\10 (oncs.)

gidos pelo momento histórico. É imporcante ressaltar que, durante Consequentemente, as formas de se ensinar altcm111111 �1 1 11� .

o período da ditadura civil-militar, o mercado editorial - estimula­ tancialmente, compreendendo-se a necessidade de fazer com tflll'
do pela própria política desenvolvimentista do Estado que visava a o aJuno possa ter um papel mais participativo na construç.'io do cu
estruturação e fortalecimento da indústria cultural - acatou à orien­ nhecimento. Isso modificou o livro didático. Sua nature-La contem­
tação ideológica do Estado e produziu manuais sob encomenda. Do porânea busca caminhos que possibilitem uma clara definição dele
mesmo modo, atualmente o livro didático, no contexto democráti­ mesmo como um veículo portador desse novo paradigma orienta­
co, é produzido com base na defesa da democracia liberal burguesa dor dos modos de ensinar. São cada ve:z. mais presentes propostas
e d e seus valores centrais, como liberdade de expressão e opinião, de pesqtúsa, de elaboração de materiais, de atividades, que preveem
laicismo e tolerância religiosa, cultura da paz, eleições livres, res­ uma intensa participação do aluno no processo de construção do
peito à constituição, à propriedade privada e aos direitos humanos. conhecimento, que propõem ao professor uma aula mais dinâmica,
"diferenciada" (como se diz no jargão escolar), induzindo metodo­
Dos modos de ensinar logicamente o modo de ensinar, a fim de torná-lo mais atrativo c em
sintonia com os interesses do aluno.
O livro didático é percebido como um instrumento orientador
do trabalho pedagógico. Sobre ele incide roda a discussão pertinen­ Nos últimos anos, com a progressiva entrada, na escola, das
te ao campo da educação e das discussões acerca da psicologia da pedagogias psicológicas, ativas c out ras congêneres, assisti­
mos a uma reorgani'Lação c.la tcrnpuralidade. Ainda que a
aprendizagem, a fim de torná-lo atualizado com as maneiras como
ética da procrastinação continue muito presente, as teorias e
deve se ensinar História.
as metodologias que vêm orientando o trabalho pedagógico
na atualidade, cada vez buscam mais a satisfação imed iata.
O livro-did:ítico nt:.�te aspecto elabora as estruturas e con­
Isso pude ser percebido na importância hoje concedida ao
dições do ensino para o professor, sendo inclusive comum
interesse c.lus alunos. Para ilustrar essa situaç.'io, pudemos
ex isr irern os livros do ''professor" ou do "mestre". Ao lado
tomar o caso da pedagogia de projetos. O ponto de partida
dos rexros, o livro didático produz urna série de técnicas de
para os projetos são os interesses dos alunos, interesses de­
aprendizagem: exercícios, questionários, sugestões de tra ba­
v idamente d irecionados, adequadamente produzidos. Afi­
lho, f.. . j assi m, os manuais escolares apresentam não apenas
nal, os alunos podem escolher os temas dos projetos, mas
os conteúdos das disciplina.�. mas corno esses cometidos de�
sempre nos limites daquilo que <L escola determina como
vem ser ensinados. (Bittencuurt, 2006, p. 72)
aceitável. A noção de interesse, como nos mostra Foucault,
é bastante importante para o libcmlismo e permanece no
Daí a sua necessidade constante de avaliação e, ao mesmo tem­
neol iberalismo. A diferença é que, no segundo ca.�o. o inte­
po, atualização em relação às perspectivas em alta que del1nem os resse é entendido corno algo a ser prod uzido por interven­
modos de ensinar. Neste aspecto, ao longo das últimas décadas do ções sobre o meio. (Veiga Neto; Saraiva, 2009, p. 198)
século XX, o vcror ela relação ensino-aprendizagem tem-se deslocado
significativamente para uma maior preocupação com a segunda. A Deixar essa adoção de paradigma clara é parte fundamental do
concepção de que aJunos não são rábula rasa, mas desenvolvem papel próprio markcting que incide nas vendas do livro. Uma desatenção
crucial no processo, ativou o paradigma do protagonismo do aluno. aos modos de ensinar postulados pelo paradigma do protagonismo

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I-IALf.Eilu C"" os ltwEH\0 júNu>n l MAtRON Esconst VAt.�tuo (onc.s.) EN�tNn " " I ftsn>ntA r. Cunnlc.m.o

do aluno implicaria numa concepção de um livro desatualizado, educacional, das relações entre Estado e editoras, da cultura docente
leviano com as principais diretrizes da discussão comemporânea, e discente de um período histórico, das intencionalidadcs do Estado
do campo educacional, que busca por meio da educação a consrru­ e suas políticas voltadas para educação, das condições específicas de
ç..'ío de um cidadão autônomo, crítico e criativo. A construção dessa aprender e ensinar História na escola.
autonomia individual representa não só o forralecimemo da lógica Cada uma dessas abordagens é relevante para que o pesquisador
cidadã da democracia liberal, mas a possibilidade de a escola intervir de ensino de História, que considere o livro-didático sua fonte pri­
de modo mais incisivo na construção das subjetivid:�des de uma so­ mária de pesquisa, nfto se conduza pelo labirinto da integralidade
ciedade estruturada em torno do noopodetl. Os modos de aprender de seu objeto, deixando de levar em consideração as contradições
são, ao mesmo tempo, os modos de produzir o cidadão ativo da pertinentes a esses pi lares de sustentação da feitura do livro-didático
democracia liberal c a inteligência criativa e inovadora necessária ao na contemporaneidadc: a auroria, projeto e mercado, exteriorida­
capir.'llismo cognitivo. de e transposição didática, ideologia e currículo, além das formas
de ensinar. Participar do mecanismo de produção desse objeto alvo
Considerações finais de tanta controvérsia na contemporaneidadc nos permite construir
um olhar de dentro para fora, ou até mesmo, fàzer uma história
O livro didático é, a ntes de qualquer coisa, um importante do­ vista de dentro. Tal perspectiva pode contribuir, de alguma forma,
cumento histórico cap:n de, por meio de sua análise, lançar algu­ com os pesquisadores de ensino de História quando esses tornam os
ma luz sobre determinados períodos históricos. Ele pode ser objeto livros-didáticos suas fontes primárias de pesquisa. Os aspectos aqui
específico de análise e por meio dele se alcançar alguma percepção levantados não podem ser negligenciados, escamoteados ou esqueci­
do funcionamento da educação - seus modos de ensinar e aprender dos, pois são elementos fundamentais do próprio objeto em si. Uma
-, das disputas ideológicas de um determinado período, das condi­ história vista de dent1·o do livro-didático tem muito a contribuir com
ções de funcionamento da indústria cultural voltada para o processo o ensino de História.

4. Conceito desenvolvido por Maurizio Lazzarato. Em sua perspectiva, o llllo­ Referências


poder é elemento central na organizaçflo do capitalismo cognitivo e na cresccnre

BITrENCOURl� C. (org.). O saber histórico na sala de aula. São Pau­


cenrraliJaJe Jo trabalho imarcrial na conremporaneiJade. Trata-se de um pnder
que não rem mai.s por alvo o corpo do indivíduo - como no caso do biopnder,
lo: Contexto, I 998.
conceito pensado por Michel Foucaulr -, nem o corpo Ja espécie. "Seu alvo é a
alma. Essa nova forma de poder incide sobre a vida, mas não a vida no sentido de FONSECA, S. G. Didática c Prática de Ensino de História: experiên­
bios nem Je :wi, dos fen6menos biológicos, mas a vida conforme definem Tarde cias, reflexões e aprend iz.ados. Campinas-SP: Papi rus, 2003.
c Bergson: a vida como memória. Lauaram (2006) toma o prefixo grego nous
rONSECA. S. G.; SILVA, M. A. O Ensino de História hoje: crrâncias,
para nomear essa modalidade emergente de poder: noopoder. !)ara Arisrórcles, o
nous é a parte mais elevada ela alma. O noopoder atua modulando os cérebros, conquistas c perdas. Revista Brasileira de História, São Paulo, v. 31, n.

capwrant!o a memória e a atenção. Ele não substitui a disciplina nem o biopo­ 60, p. 13-33. 2010.
dcr, rnas se articula a eles, cnrra na composição de um novo diagrama de forças.
LAV1LLE, C. A G uerra de Narrativas: debates e ilusões em torno do En­
Ainch1 que o noopoder não f:tç:t desaparecer as ourras modalidades de poder, ele
sino de H istória. Revista Brasileira de História, São Paulo, v. I 9, n. 38,
parcialmente as recobre e as modilica. Ele reorganiza os jogos de pncler" (Veiga
p. 125-138, 1999.
Ncrn; Sa ra iva, 2009, p. 195).

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I IAI I'Uilll ç.,., os llJUBIHO j1ÍNIUH I M.,U<ON EscoHSI VAtÉIIIIJ (oucs.)

SARAIVA, K.; VEIGA-NETO, A. Modernidade Líquida, Capitalismo


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Titulo Ensino de História e Curriculo Reflexões sobre a


Base Nacional Comum Curricular, Formação de
Professores e Prática de Ensino
Organizadores Halferd Carlos Ribeiro Júnior

Mairon Escorsi Valêrio


Assistência Editorial Paloma Almeida
Capa Wendel de Almeida
Projeto Gráfico Matheus de Alexandra
Assistência Gráfica Bruno Balota

Preparação e Revisão lsabella Pacheco


Formato 1 4 x 2 1 cm
Número d e Páginas 264
Tipografia Adube Garamond Pro
Papel Alta Alvura Alcalino 75g/m1
1• Edição Julho de 2017

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