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1
Salvador, 2020
Trabalhos de Filosofia Geral
Salvador, Vol. 1, n. 1, 2020
PUBLICAÇÃO
DESIGNER E DIAGRAMAÇÃO
• Artigos
• Ensaios
• Traduções
“Estar com fome já é querer ser livre” de Jean-Paul Sartre ................................ 220
Tradução de Flávio Rocha de Deus (UNEB)
Editorial
O que é isto – as filosofias?
Este momento inaugural, no qual vem à luz a Revista Añansi, constitui uma
mescla singular: de um lado, a felicidade própria a todo gesto criador, e, de outro, a
possível aflição causada pela responsabilidade de conduzir um discurso portador de
ideias que se interseccionam na construção deste projeto. Acrescente-se a isto o
desafio especial de redigir o editorial do primeiro número da Revista, agravado pelo
fato de tratar-se de uma publicação centrada em estudos de Filosofia. Ocorre que este
primeiro editorial precisa não apenas apresentar com clareza e coerência as intensões
do periódico, como se dar ao trabalho de delimitar o que a Revista entende e propõe
como filosofia, esta filosofia que nos dedicaremos a divulgar.
Heidegger vai nos dizer que a questão não é falarmos sobre a filosofia, como se
estivéssemos acima dela, vendo-a de longe, sendo necessário colocar-se fora do mundo
– como se isso fosse possível – para tentar compreendê-la. O que Heidegger vai
estabelecer como caminho é penetrar na filosofia, de forma subserviente, de modo que
possamos “submeter nosso comportamento às suas leis”. Porém, aqui haveremos de
concordar que tal concepção de caminho já é ultrapassada. A questão aqui não é
submeter nosso comportamento às leis da filosofia, pois é sabido que nosso próprio
agir no mundo cria a filosofia. A experiência filosófica transita entre o refletir,
rememorar e imaginar, que influenciam nosso agir e nosso estar.
Entender a filosofia não só como coisa, mas como coisa humana, já traz uma
obviedade. Ela é diversa em seus sentidos, em seus locais, em seus métodos e suas
línguas, pois há os mais diversos tipos de povos. Quando falamos de filosofia, falamos
essencialmente de pessoas e, consequentemente, de discursos. O que nos orienta à
nossa segunda consideração crítica.
Assim como filmes e pessoas, nem todos os textos envelhecem bem. Heidegger
anuncia: "[...] flosofia ocidental-europeia é, na verdade, uma tautologia. Por quê?
Porque a ‘filosofia’ é grega em sua essência." O que percebemos em Heidegger, neste
texto, é que a defesa de sua perspectiva do que seja filosofia se reduz à experiência do
sentido inscrito na palavra originária “filosofia”. O que aparenta uma confusão entre as
palavras e as coisas. A palavra Φιλοσοφία é grega, mas o que ela aponta é universal, se
manifesta em todo o globo. Certa vez, me contaram a história de um senhor de meia
idade que narrou a história de um homem, argumentando em seguida que apenas os
homens que viveram tal exata sequência de fatos em vida seriam homens de verdade.
Heidegger faz a mesma coisa com a filosofia. Nunca é sobre ela propriamente, mas
sobre a história e as particularidades de tempo e espaço que corroboram o
entendimento mais grego possível de um som. Esta leitura apenas favorece discursos
eurocêntricos e de hierarquização filosófica.
o filósofo também deve olhar para todas essas direções, para entender melhor a
realidade pelos mais distintos pontos de vista e, consequentemente, as filosofias que
nossa espécie produziu. Anãnsi: Revista de Filosofia, portanto, se apresenta a nós como
este periódico internacional de divulgação de trabalhos de Filosofia em seus diversos
formatos: artigos sobre as conclusões de nossas investigações, ensaios sobre nossos
questionamentos, traduções que consideramos importantes para a comunidade
brasileira e resenhas em geral. Aceitamos não apenas resenhas de livros que
representem significativa contribuição de leitura para nossa área, mas também de
filmes e eventualmente de obras de arte como pinturas, esculturas e fotografias. Na
contemporaneidade não podemos negar a influência de filmes e das imagens em nossa
vida cotidiana e nas reflexões individuais que realizamos sobre nossos
comportamentos.
Com esta relação de trabalhos, firmamos este novo passo para o fortalecimento
dos estudos filosóficos no nosso país. Em jargão aristotélico, diríamos que assumir
Añansi como nossa causa final foi um processo que não teria sido possível sem os
diversos agentes que, como causas eficientes, tornaram isto possível. Em especial,
acredito ser justo marcar quatro destacados agradecimentos. Primeiro, à Profª Maura
Icléa Cardoso de Castro, que, com seus anos de experiência editorando a Revista da
FAEEBA, no final de uma tarde quente estendeu seu horário de saída para nos explicar
cada passo do processo de criação e editoração de periódicos. Segundo, ao Profº
Luciano Costa Santos, que sempre se predispondo a encorajar e auxiliar atividades de
bom espírito, se mostrou disponível e atento a todo processo de coordenação e
editoração da revista. Terceiro, a todos os membros fixos do corpo editorial e eventuais
pareceristas ad hoc, que, no assíduo trabalho de revisão e avaliação, nos permitem
realizar uma qualificada triagem de trabalhos para divulgar à comunidade acadêmica.
Por fim, aos funcionários da Gerência de Informática (GERINF) da UNEB, que nos
auxiliaram tanto na construção como no manejo da plataforma de periódicos.
Resumo: Durante os anos 1872 e 1883 – ano de sua morte –, Karl Marx aprendeu russo para se dedicar
a um estudo de grande fôlego sobre as possibilidades de transformação social da Rússia,
particularmente sobre o papel que a comuna rural russa poderia desempenhar em uma transição ao
socialismo. Torna-se cada vez mais clara nesses estudos, cartas, textos, prefácios, uma concepção não-
linear e não-determinista de história. Essa abertura a uma pluralidade de formas da transição ao
socialismo tem uma enorme importância no debate sobre a revolução na Rússia e nos países atrasados,
nas vicissitudes dos bolcheviques no poder e do papel das classes populares nos processos
revolucionários. Essa concepção da história como totalização aberta, como processo de disputa que é
feito e refeito na transformação da realidade, posiciona Marx como um autor que propõe uma
antifilosofia e, assim, confronta toda a tradição que isolou a filosofia da vida, das dores e mudanças do
mundo.
Abstract: During the years 1872 and 1883 - the year of his death -, Karl Marx learned Russian in order
to dedicate himself to a great study about the possibilities of social transformation of this country,
particularly on the role that the rural Russian commune could perform in the transition to the socialism.
In these studies, letters, texts, prefaces, a non-linear and non-deterministic conception of history
becomes increasingly clear. This openning to a plurality of forms of the transition to socialism is of great
importance to the debate about the revolution in Russia and in back countries, in vicissitudes of the
Bolsheviks in power and in the role of the popular classes in the revolutionary processes. This
conception of history as open totalization, as a process of dispute that is made and remade in the
transformation of reality, positions Marx as an author who proposes an antiphilosophy and, thus,
confronts the whole tradition that isolated of life and pains and world changes the philosophy.
1 Graduado em Ciências Sociais pela Universidade Federal do Ceará e professor nos cursos de extensão
universitária do Centro Universitário Sete de Setembro (UNI7). É autor de livro didático de filosofia para
o ensino fundamental pelo Sistema Ari de Sá. É também professor do ensino médio da rede particular de
ensino em Fortaleza, Ceará, Brasil. E-mail: niloarag@gmail.com
Nilo Sergio Silva Aragão
Assim, teremos em Marx uma “crítica do progresso”, não como abstração, mas
como resultado concreto da análise histórica, que só pode efetivar-se em um programa
de transformação radical da vida social, das relações de produção e propriedade que
compreende as contradições presentes neste procedimento. O filósofo Daniel Bensaid
esclarece que não temos uma proposição do tipo “filosofia da história em seu sentido
único”. A ambição é outra, mais profunda e impactante: simplesmente “uma nova
escrita da história” (BENSAID, 1999, p. 13). Em sua avaliação, o alfabeto dessa nova
escrita,
[...] já vem proposto nos Grundrisse. O Capital, portanto, põe em ação uma
nova representação da história e uma organização conceitual do tempo como
relação social: ciclos e rotações, ritmos e crises, momentos e contratempos
estratégicos. A antiga filosofia da história extingue-se, por um lado, na crítica
do fetichismo mercantil e, por outro, na subversão política da ordem
estabelecida. (BENSAID, 1999, p. 13).
É, desse modo, que a crítica da razão histórica impõe uma dimensão mais ampla
e incerta, que exige novos meios para poder desvendar a processualidade do real e
contribuir com sua superação. Se O Capital é um momento ímpar nessa nova escrita a
exigir um novo alfabeto, se, como propõe Bensaid, esse procedimento inovador já se
encontra nos Grundrisse e se desenvolve na obra mais significativa de Marx, ele não
termina aí. Não isento de tensões teleológicas e ainda presas às “ideologias do
progresso”, é no debate sobre as condições russas que Marx e Engels afinam suas
concepções sobre o papel das determinações históricas. Daí sua relevância e a
necessidade de seu estudo.
Esse poderoso movimento foi levado a um impasse pelo seu próprio sucesso,
pois instalou-se uma forte repressão por parte do governo czarista. E por isso, na busca
de viabilizar a atividade prático-política interditada pela violência policial, as prisões,
os exílios siberianos, a organização mais forte entre os narodinikis, o “Terra e
Liberdade”, adota uma postura de ação direta: a violência estatal deveria ser
respondida com a violência popular. E o principal alvo deveria ser a fonte original
dessa violência, no caso do hipercentralizado Estado russo, o próprio czar; objetivo que
alcançam em 13 de março de 1881 – um bem-sucedido atentado a dinamite mata o
czar Alexandre II.
Sobre o movimento pesou, então, uma ainda mais brutal repressão que destrói a
liderança da organização Terra e Liberdade. O grupo A Vontade do Povo assume a
continuidade dessa tarefa política revolucionária. Entretanto, uma organização
minoritária que havia defendido a manutenção dos objetivos originais do movimento
narodiniki, intitulada Partilha Negra, já emigrada para o Ocidente e radicada em
Genebra, desviando-se da tradição narodiniki, aproximava-se da obra de Marx e Engels
através da leitura de sua obra maior, O Capital. Faziam parte desse grupo, que em 1883
fundaria A Emancipação do Trabalho, a primeira organização marxista da Rússia,
nomes como Georgi Plekhanov, Vera Zasulitch e Pavel Axelrod – futuros líderes da
fração menchevique do Partido Operário Social Democrata Russo (POSDR).
Podemos constatar que Engels tem sobre a situação da vida camponesa russa
uma avaliação negativa: o polo revolucionário se encontra na Europa ocidental, sendo
o czarismo russo e seus exércitos a última e mais formidável reserva da
contrarrevolução. Apesar de reconhecer que existiam elementos internos ao império
que atuavam para derrubá-lo, sendo destacado o papel dos poloneses, Engels tem uma
visão bastante negativa da realidade do campesinato russo.
O fato é que a massa do povo russo, os camponeses, há séculos vegeta, de
geração em geração, numa espécie de pântano a-histórico; e a única variação
que talvez tenha interrompido esse estado letárgico foram algumas revoltas
infrutíferas, que só levaram a novas opressões por parte da nobreza e do
governo (Ibid, p. 35-36).
Porém, Engels alerta que abolição da servidão (1861), ainda que obra do Estado
czarista, iria impelir os camponeses ao “movimento histórico”. O aumento da miséria
devido a “esperteza” da medida czarista geraria mais insatisfação e essa insatisfação
camponesa “já é um fato que tem de ser levado em conta tanto pelo governo quanto
por todos os insatisfeitos, incluindo os partidos de oposição” (Ibid, 2013, p. 35-36).
É em 1877, contudo, que a posição de Marx sobre a Rússia recebe uma clara
nova inflexão. Como já vimos, a obra de Marx despertara grande interesse na Rússia.
Um historiador comunista inglês afirma que, na Europa oriental, “nenhuma outra
explicação do fenômeno que transformou o século XIX em modernidade podia
competir com o marxismo, cuja influência tornou-se correspondentemente profunda” –
o que não seria o caso da Europa ocidental. Além disso, na Rússia “terra de um estrato
social desajustado, a ‘intelligentsia’ crítica, produziu leitores devotados de O Capital
antes de qualquer outro país”. (HOBSBAWN, 2011, p. 203). Nesses intensos debates, o
economista J. Jukovski publica no influente periódico O Contemporâneo uma dura
crítica à obra de Marx. Em defesa do autor alemão vem N. Mikhailovsky. Em sua revista
Notas Patrióticas publica o artigo K. Marx sob o julgamento do Sr. J. Jukovski. Ainda que
muitos contemporâneos russos de Mikhailovsky vissem em seu texto uma defesa um
tanto irônica da obra de Marx, ele próprio não entendeu assim e, como veremos,
apressou-se em responder-lhe.
história já ofereceu a um povo, para, em vez disso, suportar todas as vicissitudes fatais
do regime capitalista. (Ibid p. 66). Para Michael Löwy, esse pequeno documento é de
grande importância, pois impede qualquer leitura
unilinear, evolucionista, ‘etapista’ e eurocêntrica do materialismo histórico. A
partir de 1877, eles sugerem que ainda que não de forma desenvolvida, uma
perspectiva dialética, policêntrica, que admite uma multiplicidade de formas
de transformação histórica, e, sobretudo, a possibilidade que as revoluções
sociais modernas comecem na periferia do sistema capitalista [...] (LÖWY,
2013, p. 9).
Assim, a carta que Vera Zasulitch envia a Marx lhe dá margem para pensar e
clarear suas opiniões e análises sobre o desenvolvimento econômico e social da Rússia
e as possibilidades revolucionárias daí decorrentes, para além do que havia feito em
seu debate com Mikhailoski. Seu interesse é crescente pela Rússia, após finalizar a
redação do primeiro volume de O Capital, publicado em 1867. Segundo Teodor Shanin,
na década final de vida de Marx entre 1872 e 1882, “houve uma crescente
interdependência entre suas análises das realidades da Rússia e o movimento
revolucionário russo”, ou seja, o movimento narodiniki (SHANIN, 2017, P. 26). Talvez
por isso, sua hesitação em responder a carta, pois produz quatro rascunhos antes de
encontrar uma forma final. Seu papel na nova escrita da história que Marx teria
iniciado em “O Capital”, como afirma um filósofo marxista francês:
Se Marx retomasse por sua conta a teodiceia hegeliana do Espírito, o
encadeamento mecânico dos modos de produção para o comunismo desfiaria
simplesmente as etapas de uma marcha inexorável para o paraíso
recuperado. Suas célebres cartas a Vera Zassulich sobre a Rússia desmentem
categoricamente tal possibilidade (BENSAID, 1999, p 50-51).
que a carta final – estava em seu extremo cuidado no trato do tema, diante da
possibilidade de apropriação política indevida, no quadro de repressão e censura
vivido na Rússia.
Jean Tible lembra que Marx havia lido e comentado, entre 1874 e 1875, o livro
de M. Bakunin, Anarquismo e Estatismo e que, apesar dos comentários nada simpáticos
de Marx, as críticas de Bakunin às “características primitivas” da comunidade rural
russa, teriam exercido certa influência sobre as análises de Marx (TIBLE, 2017, p. 79).
Éttienne Balibar considera que as críticas de Marx a Bakunin e ao Programa de Gotha,
em 1875, repõem a questão do “enfraquecimento do Estado na transição para o
comunismo”. Há uma “abertura comparável” na correspondência russa de Marx
(BALIBAR, 1995, p. 126-127). Considerando que o tema não era novo para Marx, o
filósofo francês propõe outra solução para as hesitações presentes na redação de
quatro rascunhos e numa resposta final excessivamente tímida. Para ele, Marx teria
dificuldade em assumir claramente a formulação nova de sua ideia, pois “o que é
proposto nesses textos, portanto, é a ideia da multiplicidade concreta de vias de
desenvolvimento histórico”. Mais ainda,
através de uma surpreendente reviravolta da situação, sob pressão de uma
questão vinda do exterior (e com certeza também das dúvidas suscitadas nele
quanto a exatidão de algumas de suas próprias formulações, pela aplicação
que lhe propõe então os ‘marxistas’) o economismo de Marx dá à luz o seu
contrário: um conjunto de hipóteses antievolucionistas. (BALIBAR, 1995, p.
128).
1. O primeiro esboço
demonstrar sua posição, cita a passagem de O Capital em havia escrito que a história
dessa expropriação
[...] assume tonalidades distintas nos diversos países e percorre as várias
fases em sucessão diversa e diferentes épocas históricas. Apenas na
Inglaterra, e por isso tomamos esse país como exemplo, tal expropriação se
apresenta em sua forma clássica (MARX, 2017, p. 787-788)
2Entre abril de 1874 e janeiro de 1875, Karl Marx anotou, em russo, em um caderno longos extratos de
sua leitura de Estatismo e Anarquia, publicada em Zurique em 1873. Marx ali comenta suas divergências
com Bakunin a respeito da participação eleitoral, o papel do proletariado e do campesinato, as questões
étnicas e nacionais entre ocidente e oriente europeus, entre outras tantas polêmicas.
Seu quinto argumento não traz ideias que já não tenham sido apresentadas
anteriormente, mas é mais duro com aqueles “lacaios literários dos ‘novos pilares da
sociedade’” que, ao “tempo em que se sangra e tortura a comuna”, apresentam esse
procedimento “como sintomas de sua decrepitude espontânea”. A estes, nenhuma
trégua: “Aqui não se trata mais de um problema a resolver; trata-se de um inimigo a
derrotar” (Ibid, 102). Uma dissociação política e teórica de tais interpretes de O Capital
não poderia ser mais incisiva.
2. O segundo esboço
3O trecho da carta de a que Marx se refere é esse: Nos últimos tempos ouvimos dizer com frequência que
a comuna rural é uma forma arcaica, condenada à morte, como se fosse a coisa mais indiscutível, pela
história, pelo socialismo científico. As pessoas que apregoam isso se dizem seus discípulos por
excelência: ‘marxistas’” (ZASULITCH, 2013, p.79)
3. O quarto esboço
A carta enviada nunca foi publicada, apesar da permissão de Marx para que isso
fosse feito. Em 1883, com Marx já morto, o grupo representado por Zasulitch já havia
rompido com o movimento narodiniki – ruptura acelerada pelo intenso debate causado
pela carta de Marx sobre Jukovski e Mikhailovsky finalmente publicada. Assumem-se,
4. À guisa de conclusão
O que dizer desse debate travado de forma epistolar, travado nas sombras de
gabinetes e quartos de revolucionários exilados, tendo em vista os destinos do
desenvolvimento econômico e da revolução no país mais extenso do mundo, no
Império que havia sido desde o Congresso de Viena (1815) a reserva sagrada da
revolução europeia? Sua importância, assim apresentada, deveria ser evidente: a
revolução na Rússia teria impacto em toda a Europa, possibilitando uma mudança na
correlação de forças em âmbito continental. A transição que se discute no tocante à
Comuna russa é mais amplo que o país dos czares, podendo ser exemplar para os
países retardatários do capitalismo? Se a Rússia poderia saltar, ou atravessar de forma
completamente diferente, a etapa capitalista conforme seu desdobramento europeu-
ocidental, chega-se a uma problemática central da filosofia – ou antifilosofia – de Marx:
quem seria nessa hipótese o “sujeito histórico revolucionário”? A resposta clássica para
o ocidente era a classe trabalhadora industrial. Mas essa resposta não deveria ser a
mesma para a Rússia, caso a Comuna servisse de ponto de partida para uma radical
transformação da vida social e econômica russa. Verdade que em seus esboços Marx
alerta para a necessidade de passar da teoria à prática – o conceito de práxis – pois a
resolução dessas questões será tarefa da vida real, obra de homens e mulheres reais,
pois a filosofia só é de valor quando colabora à transformação do mundo.
Referências
MARX, Karl. Teses sobre Feuerbach, in MARX, Karl; ENGELS, Friederich; A Ideologia
Alemã. Tradução, prefácio e notas de Marcelo Backes. Rio de Janeiro; Civilização
Brasileira, 2007.
MARX, Karl; ENGELS, Friederich. Luta de classes na Rússia. Tradução Nélio Schneider,
Boitempo; 2013.
RIAZANOV, David. Vera Zasulitch e Karl Marx. In: MARX, Karl; ENGELS, Friederich. Luta
de classes na Rússia. Tradução: Nélio Schneider, São Paulo: Boitempo, 2013.
SANDERS, Jonathan. O cenário russo: uma nota biográfica. In SHANIN (Ed.), Marx
tardio e a via russa: Marx e as periferias do capitalismo. São Paulo: Expressão
Popular; 2017.
SHANIN, Teordo. Marx tardio e a via russa: Marx e as periferias do capitalismo, São
Paulo, Expressão Popular; 2017.
TIBLE, Jean. Marx Selvagem. 4ª Ed. São Paulo: Autonomia Literária, 2017.
ZASULICHT, Vera. Carta a Karl Marx em 16 de fevereiro de 1881. In: SHANIN (Ed.),
Marx tardio e a via russa: Marx e as periferias do capitalismo, São Paulo: Expressão
Popular, 2017.
Résumé: Pendant la lecture du roman La philosophie dans le boudoir, nous avons rencontré divers
discours philosophiques dans les paroles des libertins, principalement dans la voix de Dolmancé et de
Saint-Ange. Ces même deux libertins sont les personnages principales du roman. L’un comme l’autre
utilisent tel discours pour justifier ces actions libertines et les enseigner à la jeune Eugénie. Cet article a
l’intention de souligner les discours de Dolmancé qui parlent sur la métempsycose et le matérialisme.
Nous cherchons observer comme se construit les discours du personnage, ces possibles
fondamentalement philosophiques parmi les influences philosophiques de Sade et, en plus, entendre les
effets de tels influences dans l’esprit du personnage. Nous cherchons comprendre la pensée de
Dolmancé moyennant les influences de Sade en observant les bases qui construisent tels discours que,
dans ce cas, tournent autour de la pensée matérialiste du XVIIIe siècle. Parmi ces influences, nous faisons
plus attention au qui concerne les idées d’Holbach. En réalisant ce parcours, nous démontrons comme la
parole de Dolmancé est chargée par les idées qui sont présentes dans le Système de la nature d’Holbach.
que estavam presentes na alcova. Após a leitura, Eugénie afirma a Dolmancé que esse
panfleto é “um escrito pleno de sabedoria, e, sob tantos aspectos, tão de acordo com os
vossos princípios, que eu seria tentada a acreditar que sois o autor” (SADE, 2013, p.
69). Fora da obra A Filosofia na Alcova, encontramos um discurso sobre a
metempsicose na fala de Bressac no livro Os Infortúnios da Virtude. O intuito desse
discurso é justificar o matricídio à Justine, a heroína virtuosa desse livro. Há, também, a
dissertação filosófica do Papa Pio VI, na História de Juliette, onde encontramos uma
longa fala sobre a metempsicose acompanhada, implicitamente, de ideias do filósofo
Holbach.
nosso libertino “o que pensais da piedade, por exemplo?” (SADE, 2013, p. 19). Para
Dolmancé a virtude não significa nada para quem não crê na religião2 e, para mostrar
que a religião não significa nada, que a existência de Deus é uma quimera, o celerado
faz uso de alguns argumentos que são a base para pensarmos a metempsicose
materialista:
Se está demonstrado que o homem só deve sua existência aos planos
irresistíveis da natureza; se está provado que tão antigo neste globo quanto o
próprio globo, ele não passa, como o carvalho, o leão e os minerais que se
encontram nas entranhas desse globo, de apenas uma produção exigida pela
existência do globo e não deve a sua a quem quer que seja [...] se está
demonstrado que Deus, que os tolos veem como único autor e fabricante de
tudo o que vemos, não passa do nec plus ultra da razão humana, fantasma
criado no instante em que esta razão não vê mais nada a fim de ajudar suas
operações. (SADE, 2013, p. 19).
2Para entendermos essa frase precisamos pensar em outro sentido de piedoso, o de ser devoto a Deus.
Segundo o Dicionário Escolar Francês-Português Português-Francês, 1961, “pieux, euse (pië, ëz), adj.
Piedoso, devoto”.
A ridicularizarão que Dolmancé professa sobre Deus tem seu início na suposta
inércia desse ser todo poderoso. Seguindo o que foi apresentado por Holbach, tudo que
existe na Natureza está em movimento, e “não existe e não pode existir nada fora do
círculo que contém todos os seres” (HOLBACH, 2011, p. 31), ou seja, fora do círculo
contínuo das partículas de matéria. Isso quer dizer que a existência desse ser não é
possível, pois não há existência de algo que não pode afetar nossos sentidos, que não
nos pode fornecer ideia alguma3. Esse Deus só poderia, assim, ser uma quimera. Mas o
ponto mais importante para nós é que, segundo esse discurso, para Dolmancé, assim
como para Holbach, o homem é criado pela Natureza e a Natureza, por si só, uma vez
provado que o movimento é intrínseco a ela, basta a si mesma. Para ambos, não existe
3Para Holbach todos as nossas faculdades intelectuais são derivadas da nossa faculdade de sentir, só o
que nos afeta pelos sentidos pode nos fornecer alguma ideia. Cf. capítulo oito do Sistema da Natureza.
Dolmancé retoma algumas ideias que ele já tinha utilizado no seu discurso em
defesa do assassinato e os argumentos da metempsicose aparecem novamente. A ideia
de uma quantidade específica de matéria na Natureza e a necessidade da destruição
para criação de coisas novas. O importante é nos atermos ao uso da palavra destruição,
empregada constantemente por Domancé. No contexto da metempsicose, a destruição
não é uma destruição de fato, não existe uma morte, a matéria “destruída” vai ser
utilizada pela Natureza para a criação de algo novo, essa destruição faz parte do
processo de transmutação dos seres e, por isso, não há mal nenhum nela. Não é
possível não estar vivo, as coisas estão sempre existindo de diversas maneiras
diferente, em diversos e distintos arranjos de matéria. Trata-se de algo que Diderot
questiona em uma de suas cartas, “você concebe bem que um ser jamais possa passar
do estado de não-vivo para o estado vivente?” (1759). Nada jamais é destruído de fato,
nada morre. A destruição de um ser só se dá na medida em que outro surge por meio
de um novo emprego das partículas de matéria deixadas pelo ser anterior. Delon
explica que “o princípio materialista da metempsicose toma, em Sade, uma forma
agressiva, mas pode se combinar com um ponto de vista moral” (DELON 1991, p. 75). É
exatamente isso que Sade faz com Dolmancé. Partindo do princípio materialista da
metempsicose, Dolmancé leva a possibilidade de relativizar a vida e morte ao limite,
isso lhe permite fazer discursos em prol do assassinato e da sodomia. Dolmancé utiliza
desse princípio para justificar suas ações e suas condutas morais, além de ensinar suas
ideias para todos presentes na alcova. Assim, a metempsicose se torna uma peça chave
no discurso do libertino. Essa ideia materialista que Sade incorpora em seus escritos,
permite a seus personagens a possibilidade de justificar coisas absurdas para a moral
cristã da época.
discursos, ela constitui os seus valores morais que, por fim, acabam determinando suas
ações e sua forma de viver.
Referências
CASTRO, Clara Carniceiro. Sade e a Ideia de Metempsicose. In: ALMEIDA, Fábio Ferreira
de. (Org.). Sobretudo a Noite. Goiânia: Edições Ricochete, pp. 99-123, 2016.
DELON, Michel. L’Obsession de la mé tempsycose à la fin du XVIIIe siè cle, In:
GALLINGANI, Daniela (org.), Atti del convegno internazionale Presenza di
Gagliostro. Florença: Centro Editorial Toscano, pp. 71-79, 1991.
HOLBACH, Barão de. Sistema da Natureza ou das Leis do Mundo Físico e do Mundo
Moral. Tradução: Regina Schöpke e Mauro Baladi. São Paulo: Martins Fontes, 2011.
Resumo: O presente trabalho teve o objetivo de compreender noções acerca da subjetividade proposta
por Hegel, por meio de uma relação com o conto “O Espelho - esboço de uma nova teoria da alma
humana”, de Machado de Assis. Foi realizada a leitura de obras importantes do filósofo alemão, como os
volumes I e III da “Ciência da Lógica e Enciclopédia das ciências filosóficas”, assim como a leitura atenta
do conto. Duas obras de René Magritte, “Reprodução proibida” e “O Espelho falso”, também foram
utilizadas para ilustrar a teoria e os conceitos machadianos e hegelianos no que tange a natureza dupla
da alma humana, para proporcionar uma experiência estética em um texto árido. Hegel desenvolveu
uma crítica ao princípio da subjetividade, fundamento absoluto da modernidade, exercício também
representado em René Descartes e Immanuel Kant. O Cogito cartesiano ou a consciência absoluta de
Kant defende que ela é intrínseca ao sujeito, e Hegel critica essa ideia ao defender a constituição desta
como resultado de um processo dialético entre o Eu e o mundo exterior, natureza e cultura, sintetizados
em um pensar conceitual, que gera as referências objetivas e as autorreferências do sujeito. Assim, é
indicado o modo que Hegel concebe a construção de subjetividade a partir da suprassunção do Outro no
Eu via conceitos, pois estes permitem a criação da identidade entre os diferentes momentos de qualquer
produção espiritual: trazem em si o para si, as verdades mais fundamentais do absoluto.
ABSTRACT: The present work had the objective of understanding notions about the subjectivity
proposed by Hegel, through a relationship with the short story “The Mirror - sketch of a new theory of
the human soul”, by Machado de Assis. Important works by the German philosopher were read, such as
volumes I and III of the “Science of Logic and Encyclopedia of Philosophical Sciences”, as well as a careful
reading of the story. Two works by René Magritte, “Reproduction forbidden” and “The false mirror”,
were also used to illustrate the Machado and Hegelian theory and concepts regarding the double nature
of the human soul, to provide an aesthetic experience in an arid text. Hegel developed a critique of the
principle of subjectivity, the absolute foundation of modernity, an exercise also represented by René
Descartes and Immanuel Kant. The Cartesian Cogito or Kant's absolute consciousness argues that it is
intrinsic to the subject, and Hegel criticizes this idea in defending its constitution as a result of a
dialectical process between the Self and the outside world, nature and culture, synthesized in a
conceptual thinking, which generates the subject's objective references and self-references. Thus, it is
indicated the way that Hegel conceives the construction of subjectivity from the superassumption of the
Other in the Self via concepts, as these allow the creation of identity between the different moments of
any spiritual production: they bring in themselves the most important truths, fundamentals of the
absolute.
Introdução
Para alcançar o objetivo utilizou-se as imagens das obras, do artista belga René
Magritte, la reproduction interdite - “A reprodução proibida”- de 1937, e Le faux miroir -
Antes de Jacobina apresentar essa tese de que o ser humano é habitado por duas
almas, seus companheiros discutiam e defendiam justamente a afirmação contrária e
bastante comum: a de que o ser humano possui apenas uma alma. Na filosofia, antes de
Hegel, toda uma tradição especulativa ratifica esta tese defendida pelos companheiros
de Jacobina: a presença de uma única alma no ser humano. Descartes e Kant
A presença de duas almas diz respeito a sua natureza, de acordo com Magritte,
Jacobina e Hegel, pois todos eles defendem que existe um Outro, uma negação do eu,
importante para a constituição da subjetividade. Deste modo, esta deixa de ser
autocentrada. A subjetividade, então, seria uma superação e uma reconciliação por
meio do trabalho do Espírito, ou do homem. O trabalho realizado por esse parece ser a
unificação da natureza e da história, via conceitos, produzindo, dialeticamente, a
subjetividade no homem, que parece ser um conjunto complexo de conceitos, que
Essa obra traz essa ideia limitada de que o interior humano não é habitado por
algo divino, ou uma expressão de algo meramente do eu, mas sim que esse interior
nada mais é que a reprodução do mundo exterior pelo nosso corpo e nossos sentidos.
Assim, nem divina, nem egocêntrica e tampouco projeção excêntrica, mas sim uma
criação do espírito, a subjetividade em Hegel é a busca para a superação das cisões
Jacobina ao defender sua tese das duas almas retrata o momento crucial: a
transformação dialética do ser natural em um ser cultural, que não aniquila a natureza,
mas a conserva. Apesar disso, para Hegel, o que é da ordem do Espírito é superior, pois
é isto que caracteriza o ser humano. Podemos ver essa transformação numa breve
descrição realizada por Machado de Assis acerca da mutação sofrida por Jacobina na
constituição de sua ontologia, enquanto ser social. A personagem principal conta um
pouco de sua história de vida e relata uma experiência marcante que teve aos vinte e
cinco anos. Ele era um rapaz pobre, mas viu seu destino mudar quando obteve êxito ao
ser nomeado alferes.
Kojève (2014) afirma que a mudança de vida de alguém, como a que aconteceu
com Jacobina, onde ele deixou de ser Joãozinho, ou um João ninguém, se deve a uma
luta. Joãozinho se rebelou contra o seu atual estado e se lançou a uma luta que o forçou
a se libertar da natureza do anonimato, do puro sentimento de si, arriscando sua vida
numa luta de puro prestígio vindo a se constituir “Ser-para-si”, ou sua realidade
essencial. Assim, Joãozinho passa a ser o alferes, tornando-se alguém devido ao seu
desejo de reconhecimento que o levou a busca de uma realidade essencial,
distinguindo-o da coisidade e se afirmando como ser social. Jacobina corrobora a
ideia de Kojève ao descrever espantado aos companheiros a metamorfose pela qual
passara:
[...] a consciência do homem se obliterava, a do alferes tornava-se viva e
intensa. As dores humanas, as alegrias humanas, se eram só isso, mal
obtinham de mim uma compaixão apática ou um sorriso de favor. No fim de
três semanas, era outro, totalmente outro. Era exclusivamente alferes. (ASSIS,
1882, p. 104).
De acordo com Assis (1882) esse reflexo solitário levou Jacobina a sentir
estreitamento da alma externa, que quando era na presença de alguém que a
reconhecesse, estava viva dentro de si. Quando a tia foi embora ele ficou novamente
frente a frente com a natureza:
[...] achei-me só, sem mais ninguém, entre quatro paredes, diante do terreiro
deserto e da roça abandonada. Nenhum fôlego humano. Corri a casa toda, a
senzala, tudo, nada, ninguém, um molequinho que fosse. Galos e galinhas tão
somente, um par de mulas, que filosofavam a vida, sacudindo as moscas, e três
bois. (ASSIS, 1882, p. 105).
Machado de Assis parece aqui fazer uma crítica à solidão de Descartes, quando
este isolado em uma casa a frente da lareira se regozijava com a pretensa
superioridade de seu Cogito frente ao mundo ilusório. Hegel (1995) corrobora com a
visão machadiana e afirma que a solidão decorre da incompatibilidade do homem com
a natureza em si “na medida em que o homem é, como ser-da-natureza, e se comporta
como tal, é este um comportamento que não deve ser. O espírito deve ser livre, e ser
por si mesmo o que é. A natureza, para o homem, é apenas o ponto de partida que ele
deve transformar” (HEGEL, 1995, p. 86).
Por essa razão é que Jacobina teve essa sensação de solidão, pois sendo pior que
a própria morte, pois nenhum fôlego humano estava ali para proferir palavras de
reconhecimento, encontrava-se novamente com a natureza fria e apática quanto à
condição de homem livre. Depois de sofrer com a ausência do seu outro, sem se
contentar com suas representações subjetivas, que nada garantiam a Jacobina, teve
uma ideia:
[...] desde que ficara só, não olhara uma só vez para o espelho. Não era
abstenção deliberada, não tinha motivo; era um impulso inconsciente, receio
de achar-me um e dois, ao mesmo tempo, naquela casa solitária; e se tal
explicação é verdadeira, nada prova melhor a contradição humana, porque no
fim de oito dias, deu-me na veneta olhar para o espelho com o fim justamente
de achar-me dois. (ASSIS, 1882, p. 106).
Considerações Finais
Machado de Assis e Hegel buscam desconstruir essa ideia. Para ambos o instinto
da alma existe a relação entre a natureza e a cultura, entre o animal e o social,
mediados pelo conceito, que permite ao humano o deciframento de sua interioridade
em termos de movimentos históricos dialéticos e não de divindades, imanências ou
reprodução da mera exterioridade. Ambos, o literato e o filósofo, retratam o trabalho
do Espírito no processo de socialização do animal-homem. Desse modo, o espelho seria
a reflexão desse duplo, ou seja, o conceito fixado na interioridade humana, que contém
em si conteúdo concreto resultante do processo citado.
Este (auto) conceito guarda o antes, o agora e está sempre em direção ao porvir,
pois a subjetividade é um mover-se perene em direção a atualizações constantes, pois
caso o movimento cesse e fique restrito às necessidades ou a natureza, o ser não
atingirá sua plenitude e ficará petrificado na condição de escravo. Não se falou da
relação entre senhor e escravo neste trabalho, mas percebe-se que Jacobina ao recusar
o status de Joãozinho, que é João ninguém, pois está como todos os outros numa
situação de naturalidade, de indiferenciação, quando este atingiu o posto de alferes
pôde se diferenciar. Saiu do anonimato e passou a ser reconhecido como diferente. A
assunção da diferença em relação à mesmice inscreve o humano na posição de mestre.
Referências
ASSIS, Machado de. Papéis Avulsos. São Paulo: Editora Martin Claret, 2001.
HEGEL, Georg Wilhelm Friedrich. Cursos de Estética, volume 1. São Paulo: Editora da
Universidade de São Paulo, 2001.
Resumo: Este artigo apresenta e discute a crítica de Theodor Adorno ao idealismo absoluto de Hegel,
contida na introdução à Dialética Negativa, focando nos argumentos adornianos contra o
amordaçamento da dialética na positividade. Adorno considera que é na subversão da natureza
afirmativa da dialética que se pode chegar a uma determinação que não seja mera abstração, mas que
alcance definitivamente o filosofar concreto. Dividido em duas partes, o artigo inicia discutindo o
trânsito da dialética afirmativa à dialética negativa e depois de apontar os principais pontos de objeção
ao idealismo hegeliano, alcança, na segunda parte, o principal fundamento da Dialética Negativa que é a
aposta em uma lógica do não-idêntico. Finaliza destacando o aspecto prático da proposição adorniana,
que consiste em uma filosofia que não cultive a dicotomia teoria x práxis, pois que a práxis é
compreendida como o território, não apenas dos fazeres, mas também do pensamento, que institui
realidade aos fatos sociais.
Palavras-chave: Dialética Negativa. T. W. Adorno. Idealismo alemão. Teoria crítica. Hegel.
Resumée: Cet article présente et discute la critique de Theodor Adorno de l'idéalisme absolu de Hegel,
contenue dans l'introduction à la dialectique négative, en se concentrant sur les arguments adorniens
contre le emprisonnement de la dialectique dans la positivité. Adorno considère que c'est dans la
subversion de la nature affirmative de la dialectique qu'il est possible de parvenir à une détermination
qui n'est pas une simple abstraction, mais qui atteint définitivement la philosophie concrète. Divisé en
deux parties, l'article commence par discuter du passage de la dialectique affirmative à la dialectique
négative et après avoir souligné les principaux points d'objection à l'idéalisme hégélien, il atteint, dans la
deuxième partie, le fondement principal de la dialectique négative qui est le pari d'une logique de non-
identité. Il conclut en soulignant l'aspect pratique de la proposition adornienne, qui consiste en une
philosophie qui ne cultive pas la dichotomie théorie x praxis, puisque la praxis est comprise comme le
territoire, non seulement des actions, mais aussi de la pensée, qui établit la réalité des faits sociaux.
Mots-clés: Dialectique négative. T. W. Adorno. L'idéalisme allemand. Théorie critique. Hegel.
1 Professor Adjunto na Universidade Federal do Acre. Doutor em Filosofia pela Universidade Gama Filho
com pós-doutorado pelo Programa Pesquisador Colaborador na FFLCH/USP (2018-2019). Líder do
Grupo de Estudo em Fundamentos Sócio-Históricos e Filosóficos em Educação (GESHFE/UFAC). E-mail:
cleidson.ufac@gmail.com. Orcid: ordic.org/0000-0001-7535-1110.
Cleidson de Jesus Rocha
contradição não tenha lugar, mas sim, a identidade entre um e outro polo. Diz Hegel, na
Fenomenologia do Espírito:
A consciência, ao abrir caminho rumo à sua verdadeira existência, vai atingir
um ponto onde se despojará de sua aparência: a de estar presa a algo
estranho, que é só para ela, e que é como um outro. Aqui a aparência se torna
igual à essência, de modo que sua exposição coincide exatamente com esse
ponto da ciência autêntica do espírito. E, finalmente, ao apreender sua
verdadeira essência, a consciência mesma designará a natureza do própria
saber absoluto. (HEGEL, 2002, p. 73)
Ainda que Adorno tenha destacado que não existe nenhuma continuidade entre
seus trabalhos anteriores e a Dialética Negativa, parece oportuno lembrar que, já na
Dialética do Esclarecimento (1985) o filósofo destacara como a dialética, aos moldes
hegelianos, fora absorvida no interior da sociedade burguesa, na medida em que a
Ideia, isto é, a forma pela qual o espírito se efetiva, encarnou-se nas pessoas e
instituições dessa sociedade. Para indicá-lo, Adorno e Horkheimer nos disseram, no
prefácio à Dialética do Esclarecimento que:
Assim como o esclarecimento exprime o movimento real da sociedade
burguesa como um todo sob o aspecto de encarnação de sua Ideia em pessoas
e instituições, assim também a verdade não significa meramente a consciência
racional mas, do mesmo modo, a figura que esta assume na realidade efetiva.
(ADORNO, 1985, p. 14).
Não à toa, encaminhando para uma primeira conclusão da reflexão, Adorno nos
diz que “o desencantamento do conceito é o antídoto da filosofia.” (ADORNO, 2009, p.
19) A referência aqui é muito possivelmente a Hegel, para quem o conceito molesta as
representações. Em Hegel, não há conceitos, é preciso lembrar. Há o conceito, que,
para o autor da Fenomenologia do espírito (é preciso dizê-lo, posto que Adorno fará
uma crítica direta a essa obra), integra as representações do espírito (que, enquanto
representação, não se sabe enquanto tal) numa unidade de autoconsciência. Nesse
momento, o espírito descobre que as meras representações não eram universais, mas
particulares. É na concordância do elemento universal do conceito com o conteúdo do
espírito que se alcança, para Hegel, a sua verdade. É importante destacar aqui a ideia
de concordância, ou adequação, porque Adorno fará uma crítica justamente a ela, como
um elemento comum da tradição filosófica, em que os objetos entram na “norma
tradicional da adaequatio”. (ADORNO, 2009, p. 12)
Esses formandos são Schelling e Hegel, talvez Fichte. E aqui Adorno faz uma
comparação entre essas filosofias dos pretensos conceitos que apreendem a realidade
e o capitalismo industrial tardio, que a tudo submete, inclusive a ciência, aos interesses
das corporações.
Em face da sociedade dilatada de modo desmedido e dos progressos do
conhecimento positivo da natureza, os edifícios conceituais nos quais,
segundo os costumes filosóficos, o todo deveria poder ser alocado,
assemelham-se aos restos da simples economia de mercado em meio ao
capitalismo industrial tardio. (ADORNO, 2009, p. 11)
Para Adorno, há uma saída. Embora tenha havido uma absorção da filosofia pelo
mercado, tem de haver a possibilidade de uma crítica. “A dialética”, escreve Adorno,
“não deve emudecer diante de tal repreensão e da repreensão com ela conectada
referente à sua superfluidade, à arbitrariedade de um método aplicado de fora.”
(ADORNO, 2009, p. 12) O problema é justamente esse método aplicado de fora, que se
dá no interior da norma tradicional da filosofia, que é a adequação. A contradição é
importante, mas não é uma “essência heraclítica” como no idealismo absoluto de Hegel.
O que ela é, então?
identificar”. (ADORNO, 2009, p. 12). Em outro trecho, Adorno nos diz, apresentando a
necessidade da dialética, que
a contradição é o não-idêntico sob o aspecto da identidade; o primado do
princípio de não-contradição na dialética mensura o heterogêneo a partir do
pensamento da unidade. Chocando-se com os seus próprios limites, esse
pensamento ultrapassa a si mesmo. A dialética é a consciência consequente da
não-identidade. Ela assume antecipadamente um ponto de vista. (ADORNO,
2009, p. 12)
Para fazer ainda uma vez possível a filosofia, a saída consiste em pensar com
conceitos abertos, que não dividam em partes a realidade nem deixem fora o que
deveriam incluir. O pensamento deve desprezar a certeza e permanecer em uma
constante busca de sentido. O pensamento não deve solidificar-se e todos seus
conceitos têm de ser permeáveis. A Dialética Negativa postula um esforço do
pensamento em ir além do conceito através do próprio conceito. Então, o pensar já é
por natureza uma resistência ao imposto. Como todo sistema se torna estático e finito
por ser fechado e excludente, impondo ao específico a dominação da identidade do
genérico, o pensamento sistemático se denuncia como impróprio para um mundo que
nega à hegemonia do pensamento.
Vale lembrar que Adorno era ciente de que a relação entre a forma e o conteúdo
de uma obra colocava problemas hermenêuticos com os quais era preciso
contar em favor da coerência teórica. No aforismo 51 da Mínima Moralia, ele ensina:
Primeira medida de precauçãodo do escritor: verificar em cada texto, cada
fragmento, cada parágrafo, se o tema central sobressai com nitidez. Quem
quer expressar alguma coisa está de tal modo tocado por isso, que se deixa
levar sem refletir. A pessoa está próxima demais de sua intenção, ‘perdida em
seus pensamentos’, e esquece-se de dizer o que ela quer dizer (ADORNO,
1993, p.73).
A filosofia visa à exposição integral ao outro, e não deve cair no usual da ciência,
que reduz os fenômenos a um número mínimo de proposições. Assim, a filosofia quer
mergulhar em narrativas que abordem o heterogêneo. A despeito das pretensões
absolutas dos filósofos idealistas, para os quais não haveria filosofia sem a ideia de
infinito (a natural tendência da razão, como escrevia Kant), Adorno faz uma crítica à
maneira como lidam com essa a ideia:
Talvez a palavra ‘infinito’ só tenha passado pelos lábios dos filósofos
idealistas com uma facilidade tão fatal porque eles queriam aplacar a dúvida
corrosiva quanto à mísera finitude de seu aparato conceitual – mesmo
daquele de Hegel, apesar de sua intenção. A filosofia tradicional acredita
possuir seu objeto como um objeto infinito e, assim, enquanto filosofia, se
torna finita, conclusiva. Uma filosofia transformada precisaria revogar essa
petição, não poderia mais enredar a si mesma e aos outros na crença de que
teria o infinito à sua disposição. (ADORNO, 2009, p. 19)
Como vemos, para Adorno, mesmo a filosofia que conseguiu sua forma mais
elevada, na figura de Hegel, não pode ser salva. As razões de seu declínio são a
pretensão da identidade do ser e do pensamento, pois, se o mundo equivale ao espírito
da época, os sentidos compartilhados se esgotariam em formas sublimes, sobre as
quais quaisquer considerações seriam impertinentes e despropositadas. Um mundo
assim, cheio de significados intocáveis, diz Adorno, sepultaria o espírito negativo e
inquieto, que alimentou, ainda que positivamente, a filosofia em todo seu percurso.
apegando-se ao fixo e à positividade sem levar em conta que ele é apenas um momento
do processo de construção do conhecimento, que é feito de etapas, sendo o
positivo/fixo, apenas uma delas.
Sobre esta questão, Adorno lança mão da tese de Benjamin para quem, de
acordo com o conceito tradicional de filosofia, qualquer filosofia que não seja um
sistema deve ser condenada. Chama-se sistema a forma que se quer dar a essa
totalidade das explicações sobre o universo, que se impõe a partir de negações de
certos outros pensamentos circunscritos em teorias e correntes epistemológicas.
Considerações Finais
Adorno considera a práxis como o território, não apenas dos fazeres, mas
também do pensamento, um momento da transição, das mudanças por vir. De fato, é no
seio da sociedade e das vivências objetivas que as construções sobre as mudanças
necessárias se dão, puxadas pelo pensamento, que ganha força, quanto mais se exerce,
autonomamente, seu poder de crítica. Dessa maneira, não é possível, para Adorno,
Agindo assim, a filosofia se faz possível, por meio da dialética negativa. Seu
pressuposto básico é a construção dos conceitos não-pedantes, sem pretensão de
universalidade, mas abertos a possibilidade de revisão, por meio da negação. Esta é a
forma suprema da filosofia, na medida em se realiza como tentativa de tomar em si o
não-conceitual, o heterogêneo da filosofia em si mesma, de estender, portanto, a
filosofia ao essencial, que ela oculta em sua forma tradicional e afirmativa. O
pensamento é remetido para a filosofia, imiscuindo-se nas suas formas manifestas, que
instituem uma tradição epistemológica cujas pretensões são a universalidade, o
definitivo, o positivo como última etapa da inquietação do pensamento.
A tese de que a filosofia especula, mas não transforma o mundo, merece uma
outra consideração: as transformações pelas quais o mundo passou, no sentido dos
acréscimos culturais e das realizações humanas, não é somente resultado das
interpretações filosóficas, como deseja o pensamento político. Aliás, diz Adorno, o
mundo foi interpretado muito pouco. Se a humanidade estivesse a esperar que o
pensamento filosófico se transpusesse para a prática, para daí modificar as estruturas
do mundo e adaptá-lo às necessidades humanas, muito provavelmente ainda
estaríamos em estágios muito atrasados do desenvolvimento histórico. Mesmo a
dialética tradicional, das três etapas hegelianas, não se realiza de uma forma universal,
para todas as pessoas, mas apenas para aquelas que se inquietam diante do isto é, e por
isso, progridem em interesse e disciplina para as demais etapas, quais sejam, a da
negação e da síntese. Historicamente os feitos e realizações humanas são pautados
mais pela necessidade de sobrevivência e auto-proteção, do que pelas matrizes de um
pensamento elaborado filosoficamente.
Referências
JAY, Martin. As ideias de Adorno. Tradução: Adail Ubirajara Sobral. São Paulo: Cultrix
Editora da Universidade de São Paulo, 1988.
Resumo: O presente artigo originou-se da percepção do diálogo existente entre as ideias do filósofo
argentino Enrique Dussel e uma possível crítica às bases epistemológicas do Direito Moderno. Com tal
aproximação, objetiva-se lançar algumas reflexões acerca da possibilidade de uma Filosofia Jurídica da
Libertação contraposta aos pilares liberal-positivistas tradicionais do Direito. A metodologia é teórico-
bibliográfica, assentada em algumas obras de Dussel em interlocução com os sociólogos Quijano e
Santos. Pelas problematizações realizadas, vislumbramos a necessidade de uma leitura não eurocêntrica
da juridicidade. Afinal algumas insuficiências e problemas (universalismo abstrato, ensino jurídico
antidialógico, práticas hierarquizantes e silenciadoras) são percebidos nessa juridicidade. O uso do
conceito dusseliano da transmodernidade, por sua vez, mostra-se como subsídio importante para uma
crítica descentrada da modernidade Europeia. Como resultados da investigação, notou-se a necessidade
da construção de novas bases epistemológicas para a ciência jurídica na contemporaneidade. As ideias
dusselianas mostram-se como respostas filosóficas consentâneas a um contexto histórico forjado na
subalternidade e na colonialidade e como contraposições à transposição epistêmica europeia, incapaz de
resolver problemas sociais seculares de nossa geopolítica.
Palavras-chave: Diálogo. Transmodernidade. Juridicidade Moderna. Crítica dusseliana Filosofia da
Libertação.
Resumén: Este artículo se originó a partir de la percepción del diálogo existente entre las ideas del
filósofo argentino Enrique Dussel y uma posible crítica de las bases epistemológicas del Derecho
Moderno. Con esta aproximación, el objetivo es lanzar algunas reflexiones sobre la possibilitad de uma
Filosofía Jurídica de Liberación opuesta a los tradicionais pilares liberales-positivistas del Derecho. La
metodología es teórica y bibliográfica, basada em algunos trabajos de Dussel en diálogo com los
sociólogos Quijano y Santos. A partir de las problematizaciones realizadas, vemos la necesidad de uma
lectura no eurocentrada de la juridicidade. Algunas deficiencias y problemas (universalismo abstracto,
enseñanza jurídica antidialógica, prácticas jerárquicas y silenciadoras). El uso del concepto dusseliano
de transmodernidad, a su vez, se muestra com un subsidio importante para uma crítica descentralizada
de la Modernidad Europea. Como resultado de la investigación, es necesario construir nuevas bases
1 Mestre em Educação e Ensino pela Universidade Estadual do Ceará; Graduado em Direito, Graduando
em Filosofia e Especialista em Gestão Educacional pela Universidade Estadual Vale do Acaraú. Dedica-se
a pesquisas nas áreas de Direito, Filosofia e Estudos Descoloniais. E-mail: rua.diego@hotmail.com.
Diego Miranda Aragão
Introdução
O vínculo de cidadania ou status de cidadão, por sua vez, é uma das implicações
para o sujeito de direito no binômio Estado-Direito. Conforme sintetiza Bobbio, “no
Estado de direito, o indivíduo tem, em face do Estado, não só direitos privados, mas
também direitos públicos. O Estado de direito é o Estado dos cidadãos.” (BOBBIO,
2004, p. 30) onde “todo poder é exercido no âmbito de regras jurídicas que delimitam
sua competência e orientam (ainda que frequentemente com certa margem de
discricionariedade) suas decisões” (BOBBIO, 2004, p. 62).
para designar a gênese local de invenções teóricas e disposições geopolíticas. Quer dizer, indica-se a
temporalidade e a espacialidade da criação de tal marco categorial. Além disso, aponta-se um “ethos”
social que identifica certa região do globo, especialmente as grandes potências colonizadoras (Espanha,
Portugal, Holanda etc.) como produtoras desse mesmo corpo de ideias.
4A lógica da globalização do capital impulsionada pelo neoliberalismo e outros fatores forjou o êxodo
rural em massa e a formatação de cidades divididas, fragmentadas, marcadas pela desigualdade social
crescente. De um lado, a cidade dos ricos (provida de serviços diversos). Do outro, a dos pobres, carente
dos mínimos direitos, como saneamento básico. (HARVEY, 2013, pp. 67-68)
5 Concepção do Direito, que tem como principal expoente o jurista Hans Kelsen, afirmadora de ser a
fonte do Direito uma só, a lei em sentido formal. Tal autor, com a Teoria Pura do Direito, intentou elevar
o Direito à categoria de ciência, depurando-o de quaisquer outros elementos identificadores de outras
ciências distintas [ou ramos do saber] da esfera jurídica.
6 Refere-se à Teoria Crítica do Direito que questiona o caráter científico do Direito, a alegada
neutralidade política deste e a pureza científica dele (2009, p. 4), bem como a uma leitura marxista do
Direito que “explica o direito – como toda forma político-jurídica – a partir da análise do processo de
produção da existência humana, e, portanto, da ciência em sua totalidade.” (CHAGAS, 2011, p. 30).
juridicidades pretéritas a ele, como a pluriversidade ameríndia. O soerguimento de uma Teoria Crítica
Descolonial do Direito não só é possível, como necessário, como se verá.
8
Embora tanto o positivismo quanto o liberalismo apresentem outras dimensões para além das elencadas, são
as citadas que melhor se desenvolvem no discurso jurídico.
9
Tal insuficiência/inadequação mostra-se não só na contemporaneidade, mas também na própria gênese do
Estado e do Direito em nossas terras. Afinal deve-se lembrar da existência prévia de normatividades sociais
reguladoras da vida dos povos ameríndios. Normatividades essas que, quando não eram destruídas eram
atravessadas por uma espécie de tolerância dominadora. Isso significa, no limite, que “[...] a manutenção das
instituições jurídicas indígenas, ou mesmo das normatividades sociais que se assemelham ao parâmetro
jurídico espanhol, é um processo de converter a pluriversidade em uma pluralidade homogeneizante, projetada
em total tolerância dominadora.” (LIXA, 2018, p. 147)
Nesse sentido, para uma reflexão filosófica acerca do contexto genético de tais
categorias, deve-se ater à racionalidade subjacente aos processos modernos de criação
e de consolidação dessas mesmas categorias. Afinal, o contexto histórico-social dos
processos forjadores delas são pressupostos teóricos autolegitimadores que
atravessam as questões acerca do fenômeno jurídico. Há concepções de ciência e de
conhecimento inauguradoras desse campo e ínsitas aos processos realizados a partir
do universo jurídico. Por se encontrarem de forma subterrânea, mas presentes em
todo o sistema de direitos, há difícil detecção e consequente eliminação para
construção de outros paradigmas epistemológicos10.
10Está-se a falar do paradigma da colonialidade que, como demonstrar-se-á, forma um par com a
Modernidade. Ambos devem ser superados pela propositura de uma Filosofia Jurídica da Libertação.
jurídico e abrir espaço para a reflexão das bases teóricas e epistemológicas da ciência
que se faz prática na lida jurídica e em experiências coletivas de educação para direitos
dos sujeitos.
O liberalismo, por sua vez, será responsável por erigir dois sustentáculos
importantes para a ciência jurídica: propriedade privada e sujeito de direito. Tais
elementos, imbricados e mutuamente dependentes, serão atravessados pelas
definições de área de atuação da juridicidade moderna e pelas classificações/exclusões
daí decorrentes. A condição de cidadão, por exemplo, está atrelada aos moldes erigidos
pelas Revoluções Burguesas, isto é, o cidadão é o indivíduo privado marcado pela posse
e pela propriedade de bens (aferidos economicamente ou não).
Nesse sentido, o papel da linguagem é de traçar uma linha abissal entre aqueles
que detêm o conhecimento jurídico e os que não detêm. Tal marco divisório, inclusive,
é fonte para outras classificações: jurídico/não jurídico, legal/ilegal, cidadão/inimigo.
Tais classificações, como se verá, escondem negações e silenciamentos históricos.
Quanto ao positivismo jurídico, por sua vez, cujo maior expoente teórico
encontra-se na figura de Hans Kelsen, constitui uma doutrina ligada ao apego ao
formalismo legal e rigidez doutrinária na constituição da ciência do Direito. Com a
chamada Teoria Pura do Direito, tal autor alemão intentou elevar o Direito à categoria
de ciência, depurando-o de quaisquer outros elementos identificadores de outras
ciências ou ramos do saber distintos da esfera jurídica. Depuração essa que traria uma
concepção importante: a da unicidade de fonte jurígena. Quer dizer, o Estado seria um
único ente responsável pela produção das normas jurídicas. Essa é a ideia do monismo
jurídico.
Além disso, algumas das principais ideias que circundam o universo jurídico são
influências da presença positivista. A pretensão de uma neutralidade científica é
paradigmática nesse sentido, pois o “axioma da neutralidade valorativa das ciências
sociais conduz, logicamente, o positivismo, a negar – ou melhor, a ignorar – o
condicionamento histórico-social do conhecimento.” (LÖWY, 1998, p. 18)”. As
Na órbita jurídica, por sua vez, não cabe ao legislador ou aplicador da lei valorar
com base em experiências pessoais a criação ou aplicação das normas jurídicas. Estar
isento, é distanciar-se enquanto sujeito e enxergar o fenômeno jurídico como algo que
se autolegitima sem interferências quaisquer.
Ademais, não se deve esquecer, por fim, ser o positivismo o herdeiro das
crenças no progresso da ciência moderna como instrumento de autonomia e de
aperfeiçoamento humano. Daí a necessidade de processos objetivos e neutros no
manuseio do conhecimento racional advogado pelo “Século das Luzes” (XVIII), pois ele
deveria afastar-se de ideologias e de dominações externas. Em suma, o “positivismo
moderno nasceu como um legítimo descendente da filosofia do Iluminismo” (LÖWY,
1998, p. 19), movimento profundamente enraizado na europeidade.
Para uma filosofia jurídica da libertação: caminhar com o passado sem se limitar
a ele
[...] o futuro não se constrói a partir de um presente arbitrariamente fixado,
mas do questionamento do passado. É tão grave esquecer-se no passado
quanto esquecer o passado. Nos dois casos desaparece a possibilidade de
história. O contato continuado com o universo euro-ocidental é condição de
nossa maturidade. Mas sob uma condição: o exercício de uma impiedosa
antropofagia. É urgente devorar a "estranja" – como gostava de dizer Mário de
Andrade. Devorar sem culpa ou sentimento de inferioridade. (GOMES, 1994,
p. 105).
passado, mas ressignificá-lo e utilizar essa nova semântica como ferramenta para a
construção de novos futuros.
11
Ou Ipseidade, isto é, a tendência do pensamento moderno europeu de falar de si mesmo como legítimo
exemplar da universalidade filosófica. Como se verá, subjaz a essa afirmação a negação do Outro (africano,
latino-americano, asiático etc.) como uma voz filosófica também.
Por isso, a utilização do marco categorial moderno para a reinvenção das bases
epistêmicas do Direito redunda também, em caminharmos na direção de ser o que não
somos. Deve-se “pensar categorialmente”, isto é, realizar uma espécie de assimilação
criadora e reinventiva de categorias típicas da modernidade que se coadunam com os
processos históricos de formação dos nossos povos reivindicados desde um ponto de
vista da libertação.
Nesse sentido, pretendemos apresentar uma filosofia que não seja apenas um
amor ao saber, ao conhecimento, mas um amor do próprio amor no sentido da
revelação do homem por meio do encontro face-a-face com o Outro. Tal pensar
reporta-se a um local e reflete sobre ele. Esse lugar é o da pobreza, do lugar dos
oprimidos historicamente (negros, mulheres, lgbts, pobre, indígenas etc.). Isso resulta
em afirmar a posição capitalista/racista/patriarcal da modernidade europeia e
enunciar as diferentes perspectivas de libertação dessa mesma modernidade.
13Daí ser importante falar que uma Filosofia da Libertação não objetiva esquecer o passado, mas, com a
apropriação semântica própria e original dos povos colonizados, ultrapassar as designações
(ontológicas, filosóficas, estéticas, jurídicas) que ele carrega junto a si.
14 Como pensar modernamente a partir da América Latina, se se concebe que tais valores foram forjados
por processos históricos próprios e uma classe constituída especificamente por eles? Não tivemos
revoluções tipicamente burguesas neste lado do globo. A ascensão de uma classe dita burguesa no Brasil,
por exemplo, conviveu um bom tempo com a ordem escravocrata pela especificidade da construção de
nossa história econômica.
15 Há os bons mitos, aqueles capazes de revelar aproximações ou conexões intrínsecas (natureza-cultura,
conhecimento, para quem conhecer é “personificar, tomar o ponto de vista daquilo que deve ser
conhecido — daquilo, ou antes, daquele; pois o conhecimento xamânico visa um ‘algo’ que é um ‘alguém’,
um outro sujeito ou agente. A forma do Outro é a pessoa.” (VIVEIROS DE CASTRO, 2004, p. 231)
16 A ideia de Pluralismo Jurídico constitui um referencial importante aqui, pois, como uma das correntes
de pensamento do Direito, vai “pôr em xeque” o monismo jurídico da escola juspositivista ao afirmar não
ser o Estado o único detentor do poder de produzir normas jurídicas. Volkmer (2001), um dos principais
nomes de tal corrente, vai afirmar, ainda, que, para se analisar o fenômeno jurídico, deve se atentar para
a forma estatal histórica concreta presente em dado período. A forma burguesa de Estado vai produzir e
ser mantida por um direito burguês que vai chancelar os direitos de uma classe que se forjou
historicamente e se mantém a possuidora do poder em seus mais diversos aspectos (políticos,
econômicos, culturais, etc.). No entanto, pretende-se ir além das concepções desse Pluralismo Jurídico ao
propor uma aproximação com as cosmologias indígenas, berço de normatividades sociais pluriversas, e
um Direito com viés plural e emancipatório. A cosmologia ameríndia, cujas concepções de outro e de
pessoa são muito mais ampliadas, pode abrir caminho para uma juridicidade capaz de construir
potenciais emancipatórios de forma original e autônoma em nossas terras.
Considerações Finais
O fim é o começo e o começo é o fim. Tudo está conectado. Assim deve ser o
pensamento desde um ponto de vista comprometido com a libertação dos
subaltarnizados historicamente. Não se pretendeu com este artigo pôr um ponto final
na História, muito menos um ponto teleológico, mas apenas indicar possibilidades,
futuridades novas para problemas antigos.
Com este artigo, espera-se ter cumprido a tarefa inicial de expor as bases
epistêmicas do Direito com as características e reverberações específicas nacionais.
Além disso, espera-se ter delineado bem as interlocuções entre uma crítica
transmoderna da juridicidade e o pensar da libertação de Enrique Dussel.
Por certo, a proposta teórica aqui exposta não começa nem termina nestas
linhas. Boa parte da força política dessas palavras reside em experiências concretas e
delas depende. Afinal não se trata, neste artigo, de propor uma filosofia autofundante,
mas que se volte para a realidade concreta e histórica dos sujeitos, dela apreenda os
sentidos e, com ela, configure inventividades políticas reordenadoras do modo de vida
das pessoas.
Referências
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VAIDERGORN, José. O direito a ter direitos. São Paulo: Autores associados, 2000.
Resumo: Partindo de uma análise sócio-histórica da Surdez, é traçado um paralelo entre esta e a
Filosofia, enquanto componente curricular no ensino médio. Em seguida, investigam-se as demandas,
dificuldades, possibilidades e questões que parecem permanentemente em aberto quanto ao ensino de
filosofia, seus fundamentos, funções e efetividade da transposição enquanto recurso didático, de
maneira especial, para estudantes surdos. Tem-se o bilinguismo enquanto referencial, todavia, coloca-se
em xeque não só a possibilidade e os limites da tradução dos conceitos filosóficos (entre línguas de
diferentes modalidades, a saber, orais e de sinais) como a eficiência do ensino de filosofia. Aponta-se por
fim, que para o efetivo cumprimento do propósito político e social que lhe é designado, a filosofia, bem
como toda a educação básica, deve assumir uma postura simbiótica para com a comunidade surda, de
maneira a estender a tal grupo o ideal de autonomia que consta nos documentos oficiais.
Abstract: Starting from a socio-historical analysis on Deafness, a parallel is drawn between it and
Philosophy, as a curricular component in high school. Then, we investigate the demands, difficulties,
possibilities and issues that seem permanently open regarding the teaching of philosophy, its
fundamentals, functions and effectiveness of transposition as a didactic resource, especially for deaf
students. Bilingualism is used as a reference, however, not only the possibility and limits of the
translation of philosophical concepts (between languages of different modalities, namely, oral and sign)
are put in check, but also the efficiency of teaching philosophy. Finally, it is pointed out that for the
effective fulfillment of the political and social purpose assigned to it, philosophy, as well as each
curricular component, must assume a symbiotic stance towards the deaf community, in order to extend
to such a group the autonomy ideals that appear in the official documents.
Introdução
Não é preciso um olhar muito atento para notar que historicamente têm-se
negado à comunidade surda uma série de direitos básicos, dentre estes, além do
limitado acesso às diversas produções culturais destaca-se o cerceamento do direito à
educação. Isso, não se dá de maneira velada, ainda que a constituição federal de 1988
assegure o acesso e permanência dos mesmos à Educação Básica formal.
Dentre os 10,7 milhões de pessoas surdas do Brasil 32% não possuem qualquer
grau de instrução formal, 46% completaram o Ensino Fundamental e os 15% restantes
concluíram o último ciclo da Educação Básica e apenas 7% destes possuem Ensino
Superior completo. Esses dados implicam que pouco mais de um terço dos surdos,
37%, estejam inseridos no mercado de trabalho, fator que por sua vez, endossa as
limitações de seu acesso a bens de consumo diversos (GANDRA, 2019).
Não raro, o trato dado lhes imputa pena ou tenta-se justificar a necessidade de
mantê-los “embaixo da asa”, ou ainda, a postura de parte do corpo docente ao
questionar constantemente a capacidade intelectual de tais indivíduos, pressupondo
que suas necessidades educacionais especiais de algum modo viriam a comprometer a
aquisição das Habilidades e Competências, conforme indicam os documentos oficiais,
clássicas representações de capacitismo, a crença de que pessoas com deficiência ou
necessidades educativas especiais são incapazes de atingir os mesmos níveis das
consideradas “normais”. Tal crença acaba dificultando o papel social que a instituição
educacional, desde sua concepção, propõe-se a desempenhar: propiciar a formação
necessária para o pleno e autônomo exercício da cidadania (Rodríguez, 2016)
Ou seja, cabe afirmar que se ocorrem casos onde o desenvolvimento (de ordem
intelectiva ou socioemocional) de tais indivíduos possua “atraso” em relação aos
demais grupos da sociedade, isso deve-se à postura assumida pela sociedade civil na
mediação das primeiras relações sociais das pessoas surdas.
Por conta desta característica, de uma maneira geral, os primeiros contatos com
a Filosofia, enquanto Componente Curricular do Ensino Médio brasileiro costumam ser
traumáticos. Aqui, compreendemos “trauma” no sentido de fadado à derrota ou
desastroso. Tal característica se dá em grande parte como decorrência do estigma de
mera abstração ou “ideologismo” carregado pela Filosofia e do fato da disciplina seguir
preterida no Currículo escolar e sofrer com a falta de profissionais com a capacitação
necessária para atuar na área.
Afinal, para surdos, a língua oral não é adquirida de maneira natural, mas por
uma série de artifícios fonoaudiológicos, que não raramente são invasivos. Não
raramente isso se manifesta em uma reprodução de sons, palavras e frases que não
contenham unidade de sentido, não representando um raciocínio completo.
No começo do século XX, encontram-se os primeiros relatos dos insucessos do
oralismo. Um inspetor geral de Milão descreveu que o nível de fala e de
aprendizado de leitura e escrita dos Surdos após sete a oito anos de
escolaridade era muito ruim, sendo que estes Surdos não estavam preparados
para nenhuma função, a não ser como sapateiros ou costureiros. Na França
isso também foi notado, os Surdos educados no oralismo tinham uma fala
ininteligível (MOURA apud RODRIGUES, 2008, p. 49).
Aclamado por muitos sob a alcunha de “o pai dos surdos”, o Abade francês
Charles-Michel de L’Epée tem seu nome marcado na história. Ainda que não tenha sido
o primeiro a estabelecer relações de cunho pedagógico com surdos, foi pioneiro no que
diz respeito à uma escola propriamente para pessoas surdas, bem como quanto a uma
metodologia que utilizasse um alfabeto sinalizado, já no ano de 1760.
Ainda contando com um órgão responsável por lidar com as questões referentes
à surdez e aos surdos, a manutenção da língua de sinais não ocorreu de fato, já em
1880 o Congresso de Milão marca a proibição completa do uso de quaisquer tipos de
sinais na educação de surdos. Embora o oralismo tenha passado a ser considerado
antiquado, suas raízes estão entranhadas na cultura, tanto brasileira quanto ao redor
do globo.
Afinal, a autonomia do surdo pode deliberar o que é ideal ou não para sua
formação social, acadêmica e emocional é algo extremamente recente. Um quadro onde
surdos sequer são vistos como uma comunidade independente dotada de produções
culturais e linguísticas peculiares é deveras presente no imaginário coletivo. A
desconstrução de narrativas de tal natureza é, sem dúvidas, um trabalho árduo e a
longo prazo, mas parece passar pela viabilização de acesso de surdos não só à
educação formal (e informal, em ambientes bilíngues) como garantia de presenças
formalizadas no mercado de trabalho.
Conforme seu próprio nome sugere, a Libras é nativa do Brasil, ou seja, assim
como cada país do mundo tem sua própria língua oral, cada país possui sua própria
língua de sinais. Na verdade, as LS não fazem referência direta às línguas das
metrópoles colonizadoras da modernidade. Brasil e Portugal, por exemplo
compartilham o Português como língua oficial. No entanto, enquanto o Brasil possui a
Língua Brasileira de Sinais, Portugal possuí a Língua de Gestos Portuguesa (LGP). Este
fenômeno se dá porque as línguas desta modalidade se relacionam de maneira
dialética com a realidade sócio, histórica e cultural de cada localidade. Assim, torna-se
impossível que povos de diferentes países compartilhem a mesma língua de sinais,
bem como, justifica que a variação linguística seja um fator tão presente nas línguas de
sinais quanto nas línguas orais.
Significando que um sinal é composto por todos esses aspectos, logo, não há
efetiva comunicação em língua de sinais que não esteja atenta à todos, afinal, muitos
sinais compartilham uma mesma configuração de mão ou ponto de articulação,
mudando apenas a direção do movimento ou ponto de articulação. Sendo assim, a
unidade de significado fica comprometida num caso onde não seja feita a exata
correlação entre cada parâmetro.
Eis aqui a questão nevrálgica da presente sessão: qual a razão de ser dessa
filosofia institucionalizada? Rezende (2019) aponta uma resposta possível:
O ensino da Filosofia presente na matriz curricular no Ensino Médio possui
um papel formador, auxiliando na função de questionamento, de indagação
frente às várias certezas, e vai auxiliar o estudante a refletir sobre os saberes
transmitido pela cultura como: A Verdade, quais papéis deve desempenhar,
ao entrar em contato com o modus operandi da Filosofia, o estudante pode
problematizar e se posicionar de maneira diversa no mundo. (REZENDE,
2019, p.77)
constatação. Afinal, cada autor apenas enfatiza uma faceta do espectro. Sendo, pois,
narrativas complementares sobre o mesmo processo.
Se sua escola aceitava negros, “cholos” (nome dado na Bolívia aos filhos de
negros e indígenas, análogo ao “cafuzo” brasileiro) e órfãos, garantindo-lhes não só sua
formação acadêmica e profissional como sua permanência, não importando menos os
custos e encargos que o papel social exercido pela instituição em plena América
novecentista. Deste modo garantia-lhes a “cidadania” não só na letra da lei, mas o
preparo para o pleno exercício da mesma.
Reavivar suas ideias em pleno século XXI é compreender que uma escola
irreverente e comunista não só “aceita” ou “integra” estudantes oriundos de quaisquer
classes ou em quaisquer condições. Mas uma Escola que tenha que ao remeter à Scholé,
supera-a. Isto é, o “tempo improdutivo” da escola passa a ser compartilhado por
pessoas de condições distintas, não apenas de origem abastada.
Assim como existem uma série de dificuldades entre as traduções dos termos
técnicos próprios da filosofia, aquilo que chamamos conceitos, não raro sendo
considerados impossíveis; advém desta questão o constante emprego de neologismos e
a comum transmuta dos significantes referentes aos termos utilizados por cada
comentador ou cada tradutor, tendo em vista melhor exprimir o pensamento do
filósofo em questão.
Há, sem dúvidas uma série de diferenças entre as filosofias das tradições
“continental” e “anglo-saxã”, bem como entre a britânica e estadunidense, que
compartilham a língua inglesa. Haja vista que, a produção filosófica parece, de alguma
maneira, carregar em si o espírito do seu tempo, ou seja, é um retrato das condições
materiais, geológicas, sociais e culturais de uma determinada sociedade. E não seria,
portanto, a Língua parte constitutiva dessa herança cultural?
Ademais,
a língua é produto e produtora de cosmovisões e, além disso, como também
vimos, as línguas de sinais apresentam características específicas que as
distinguem das línguas orais. Assim, a LGP tem como características a
quadrimensionalidade, simultaneidade, iconicidade, possibilidade de «dizer
sem dar a ver» e de «dizer dando a ver», enquanto a LP (língua portuguesa) é
uma língua linear e sequencial no tempo. (CORREIA, COELHO, 2014 p. 119,
grifos nossos)
Ainda assim, recursos como a datilologia podem não ter pouca ou nula eficácia,
tendo em vista que: a relação entre linguagem o mundo é tripartite: significado,
significante e referente:
Com efeito, se o/a aluno/a não possui, na sua língua, um gesto para designar o
conceito, qual o interesse de «escrever» o enunciado linguístico desse
Ainda que segundo Simons e Masschelain (2017), a escola seja dotada de uma
língua própria, não dizendo respeito propriamente à língua que se vivência em casa, na
vida estatal ou qualquer outra “versão” das manifestações linguísticas, ainda refere-se
de maneira exclusiva às Línguas de modalidade Oral. Deliberadamente ou não
beneficiando a estas e relegando ao detrimento a existência das Línguas de Sinais.
Pensando a partir do adágio de que a filosofia só pode ser feita na língua nativa
daquele que a pensa, parece contraditória a exigência de que o estudante surdo
“filosofe em português”, afinal, não pode Deleuze filosofar em Alemão, Heidegger em
Francês ou para qualquer dos gregos o fazer em outra língua, salvo se possuíssem
fluência no idioma. Isto é, não só o domínio das estruturas gramaticais de determinada
língua, em sua modalidade escrita (tal qual ocorre com sujeitos surdos que conhecem o
português, por exemplo) como plenas competências expressão nesta língua. O que
implica capacidade de estabelecer relações entre os vocábulos e estruturas gramaticais
com seu cotidiano.
Tendo em vista que a Filosofia, via de regra, visa explicar uma realidade por
meio de conceitos e que uma língua é parte constitutiva das subjetividades, logo, das
realidades dos falantes. É possível afirmar que a língua em que se pretende filosofar
deve fazer parte efetiva do mundo da vida de cada falante. Só “pensa em inglês”, no
sentido de concatenar argumentos e estruturar significados, quem tem fluência no
idioma, em quaisquer acepções do termo. Surdos não podem “falar” ou apreender
línguas orais da mesma maneira que os ouvintes. Portanto, é incoerente defender a
necessidade de que sua relação com a Filosofia gire em torno da língua oral.
Dado isto, é mister considerar que a relação entre Filosofia e Surdez não pode
ser simplesmente mediada por um Intérprete, conforme define Barros (2012) para
uma efetiva mediação da relação “conhecimento filosófico-estudante surdo” é
necessário que o professor possua não só o domínio dos conceitos abordados e fluência
na Língua de Sinais, mas que esteja inserido como um todo na Comunidade Surda.
Deste modo, a comunicação pode ocorrer de maneira direta, não sendo “traída” ou
tendo o significado de suas assertivas e unidades de significados deturpados pelas
traduções, ainda que fidedignas.
Esta característica não significa que torna-se mais ou menos onerosa a atividade
de tradução. É claro, garante que um sem-número de termos sejam traduzidos e
integrem o léxico da língua de sinais. No entanto, a centralidade do processo está no
fato de possibilitar que estudantes surdos e ouvintes possam acessar estes conceitos
juntos. Por esta razão, faz-se urgente o desenvolvimento de um “léxico filosófico
standard”; como recurso de efetiva inclusão destes sujeitos nos processos educativos,
não limitando-se à mera integração dos mesmos. Afinal, a integração, por si só, de mais
pessoas num ambiente escolar em nada é avanço. Não lhes assegura apreensão dos
conteúdos nem desenvolvimento de habilidades, assim como não permite o exercício
de atividade filosófica nem a o cumprimento da formação para a cidadania.
Mas não só, o bilinguismo, em sentido amplo, aparece enquanto uma questão de
direto reconhecimento da alteridade. Se a relação dos estudantes ouvintes não se
limita ao contato com o professor, qual argumento sustentaria que o estudante surdo
deva se comunicar de maneira direta apenas com o intérprete? É importante não só
que o professor de Filosofia tenha domínio da língua de sinais, reiterando o que foi dito
anteriormente, mas que os diversos agentes desenvolvem tal competência. Dado o
papel formativo que a escola possui é necessário atribuir o devido “destaque ao papel
central da língua, da cultura e das identidades surdas como campo discursivo de luta,
como prática de significação, de produção de sentido sobre o mundo”. (FERNANDES;
MOREIRA, 2014, p. 64)
Referências
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Resumo: O presente artigo demonstra que a utilização da categoria “mulheres”, enquanto identidade
universalizante do movimento feminista, e da ideia de vulnerabilidade, como essência do corpo
feminino, aproxima o feminismo hegemônico da opressão que espera combater. A universalização do
sujeito feminista desconsidera outros vieses de relações de poder, como raça, classe e orientação sexual,
obscurecendo distintas formas de ser no mundo e impedindo a fragmentação do movimento em
feminismos plurais. A concepção de vulnerabilidade essencial feminina, por sua vez, reforça o sistema
patriarcal ao posicionar as mulheres num patamar rebaixado e débil, cuja imobilidade é característica
marcante. Posto isso, constata-se a violência simbólica que permeia o feminismo hegemônico, tendo em
vista que seus próprios atores, grupo socialmente dominado, se vale de noções construídas do ponto de
vista dos dominantes, naturalizando-as. Após discutir tal contrassenso, são apontadas e avaliadas
possíveis soluções: a consciência crítica e uma coalizão aberta.
Abstract: This article demonstrates that the use of the category “women”, as a universalizing identity of
the feminist movement, and the idea of vulnerability, as the essence of the female body, brings
hegemonic feminism closer to the oppression it hopes to combat. The universalization of the feminist
subject disregards other important forms of power relations, such as race, class and sexual orientation.
The idea of essential female vulnerability, in turn, reinforces the patriarchal system by placing women
on a low and weak level. That said, the symbolic violence that permeates hegemonic feminism is evident,
considering that its own actors, a socially dominated group, make use of notions constructed from the
point of view of the dominants, naturalizing them. After discussing such a inconsistency, possible
solutions are pointed out: critical awareness and an open coalition.
1Graduando em Direito pela Universidade Federal de Juiz de Fora – Campus Avançado Governador
Valadares. E-mail: matheusgbarros@hotmail.com.
Violência simbólica no feminismo hegemônico: mulheres e vulnerabilidade
Introdução
Ao final, o artigo destaca que uma “coalizão aberta”, conforme entendida por
Judith Butler (2019a), aliada à consciência crítica, indica um caminho possível para
superar tal impasse que intensifica a dor de sujeitos que, há tempos, são relegados às
margens das preocupações políticas e governamentais.
bell hooks (2019) insiste em lembrar que todas e todos somos socializados
numa cultura marcada pelo sexismo, de modo que podemos reproduzi-lo por vezes
sem sequer nos darmos conta. Um espaço só de “mulheres” não implica a inexistência
de opressão. Isso é claro uma vez que o patriarcado diz respeito a um sistema de
dominação, institucionalizado, disseminado e mantido.
Audre Lorde (2019) ajuda-nos a refletir acerca da norma patriarcal que obriga
os homens a censurarem seus próprios sentimentos e transferirem para as mulheres
em sua volta o dever de sentir por eles. Isso ocorre desde a tenra infância. A ruína
social de um garoto “começa quando ele é forçado a acreditar que ele só é forte se não
sentir, ou se vencer” (LORDE, 2019, p. 96).
Não é correto depreender que os homens são inimigos de luta. Pelo contrário, a
soma de forças pode ser (e é!) extremamente importante na batalha. Afinal, trata-se de
um problema sistemático, culturalmente determinado, que fixa imagens de gênero
deturpadas na integralidade dos sujeitos viventes. Nas palavras de bell hooks (2019, p.
31):
O feminismo é antissexismo. Um homem despojado de privilégios masculinos
que aderiu às políticas feministas, é um companheiro valioso de luta, e de
maneira alguma é ameaça ao feminismo; enquanto uma mulher que se
mantém apegada ao pensamento e comportamento sexistas, infiltrando o
movimento feminista, é uma perigosa ameaça.
Por isso, hooks (2019) afirma que transformar o inimigo interno deve anteceder
o confronto com o inimigo externo. Ou seja, é preciso que as “mulheres” abordem o seu
próprio sexismo, sob pena de prejudicar o levantamento adequado das bandeiras
políticas feministas. Nesse ponto, adentra uma questão fundamental: não é possível
discutir discriminação de gênero, sexismo, separadamente de outros vieses de relações
de poder, como raça, classe e orientação sexual. Corpos são atravessados por essas
dimensões de poder simultaneamente. Tratam-se de marcadores sociais sobrepostos,
em que um intensifica e redimensiona o outro.
(ibid., p. 21). Segundo a filósofa, não dá para separar a noção de gênero das interseções
políticas e culturais em que ela é invariavelmente produzida.
Insistir nessa visão hegemônica de mulheres (e homens), para Ribeiro, faz com
que mulheres negras e homens negros fiquem implícitos; deixando de ser beneficiários
de políticas importantes e se distanciando de serem aqueles que pensam tais políticas.
sexual; qual deles uma mulher que é negra e lésbica, como ela, deveria escolher? Aliás,
ela precisa escolher uma opressão determinada contra qual lutar? Lorde afirmava, em
contrapartida, conforme explica Ribeiro, que não se pode negar uma identidade para
afirmar outra, pois fazer isso não corresponde a uma transformação real, mas mero
reformismo.
Após retomar o pensamento de Patricia Hill Collins, segundo o qual não se pode
fazer uma soma de opressões (“mulher + negra + nordestina + trabalhadora + travesti
+ gorda”), já que a interseccionalidade impediria aforismos matemáticos
hierarquizantes ou comparativos, afirma:
Em vez de somar identidades, analisa-se quais condições estruturais
atravessam os corpos, quais posicionalidades reorientam significados
subjetivos desses corpos, por serem experiências modeladas por e durante a
interação das estruturas, repetidas vezes colonialistas, estabilizadas pela
matriz de opressão, sob a forma de identidade. Por sua vez, a identidade não
pode se abster de nenhuma das marcações, mesmo que nem todas,
contextualmente, sejam explicitadas. (AKOTIRENE, 2019, p. 43-44).
Butler (2019a) constata que a presunção política de ter de haver uma base
universal para o feminismo frequentemente acompanha a ideia de que a opressão das
mulheres também guarda uma forma singular, consubstanciada na concepção de
patriarcado universal. Acredita-se numa opressão patriarcal que atravessa culturas e
contextos históricos, produzindo uma experiência comungada e atemporal de
subjugação das mulheres.
Essa noção, contudo, é um fracasso, uma vez que não consegue explicar
mecanismos de opressão de gênero nos contextos culturais concretos em que ela
existe. Segundo Butler, essa forma de teorização feminista também foi alvo de críticas
por seus esforços de colonizar e se apropriar de culturas não ocidentais,
instrumentalizando-as com o propósito de ratificar noções flagrantemente ocidentais
de opressão.
Mais uma vez é preciso ressaltar, por meio da Butler (2019a): essa
especificidade do feminino é totalmente descontextualizada, separada tanto analítica
quanto politicamente de outros eixos de relações de poder, que tanto constituem a
identidade quanto tornam equívoca a noção singular de identidade. Nesses termos,
apesar de buscar fins emancipatórios, os meios empregados de representação são
coercitivos pela insistência prematura num sujeito estável do feminismo.
Não há como negar que certos grupos, sob determinados regimes de poder, são
mais expostos à opressão que os demais, ou seja, são mais visados por práticas
violentas. Entretanto, essa vulnerabilidade real não implica necessariamente o
lançamento de vidas para fora do domínio político. “Ainda que alguém esteja
desprovido de proteção, certamente não está reduzido a um tipo de ‘vida
desprotegida’” (BUTLER, 2018a, p. 154).
Mesmo assim, essa tradição guarda traços importantes que precisam ser, com a
devida cautela crítica, aproveitados. Se ficou evidente que a vulnerabilidade e a
invulnerabilidade não podem ser marcas essenciais de homens e mulheres, também é
correto dizer que a distribuição desproporcional da vulnerabilidade entre os grupos
sociais guarda conexão com “processos de formação de gênero, os efeitos de modelos
de poder que têm como um de seus objetivos a produção das diferenças de gênero que
caminhem lado a lado com a desigualdade” (BUTLER, 2018a, p. 159).
O sujeito, logo após nascer, necessita do que Bulter denomina “rede social de
ajuda” para viver uma vida vivível. A grande questão, portanto, é que somos todos
expostos às tormentas sociais, econômicas, políticas, que estão fora de nós e que na
maioria das vezes não temos controle. Para viver não basta um mero impulso interno,
diz a filósofa.
A exposição aos riscos externos que marca a precariedade das vidas humanas
em geral, por sua vez, é desigualmente distribuída. Isso quer dizer que pessoas
determinadas são mais suscetíveis às intempéries sociais, econômicas e políticas. Por
isso, Butler mobiliza o conceito de condição precária, remetendo-se justamente à
condição induzida politicamente que faz de certas populações o alvo preferencial de
violações, pobreza, violência e morte, decorrentes de apoios (sociais e econômicos)
deficientes, da proteção insuficiente ou inexistente.
Diante disso, é possível afirmar: existem populações que não são passíveis de
luto; cuja perda da vida não é oficialmente “enlutada”. O luto ultrapassa a esfera
privada, pois guarda uma dimensão política. Denota um senso de comunidade, um
sentido de interdependência social. O luto nos arranca de nós mesmos, nos prende a
outros, nos transporta, nos desfaz, nos envolve em vidas que não são as nossas (cf.
BUTLER, 2019b). Mas a perda de algumas vidas selecionadas não gera tamanha
comoção. Há uma hierarquia do luto.
Essas vidas não “enlutáveis”, como é o caso das mulheres em geral, e das
mulheres negras, pobres, e/ou não-heterossexuais em particular, entretanto, não são
“nuas”; não estão fora da polis num estado de exposição radical, mas “subjugadas e
constrangidas por relações de poder em uma situação de exposição forçada” (BUTLER,
2018b, p. 51).
As conclusões “a” e “b” destacadas acima retratam como, embora sem intenção
declarada, o feminismo hegemônico se vale de fundamentos que ratificam a lógica
geral de dominação ao invés de se contrapor a ela.
Quando os dominados aplicam àquilo que os domina esquemas que são
produto da dominação, ou, em outros termos, quando seus pensamentos e
suas percepções estão estruturados de conformidade com as estruturas
mesmas da relação da dominação que lhes é imposta, seus atos de
conhecimento são, inevitavelmente, atos de reconhecimento, de submissão
(BOURDIEU, 2019, p. 30).
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Editora, 2019.
RIBEIRO, Djamila. Lugar de fala. São Paulo: Sueli Carneiro; Pólen, 2019.
Resumo: O que define a crítica da violência? O que significa violência? Neste ensaio, faço uma revisão
sumária e parcial de ponderações da filosofia crítica desde Marx, Nietzsche e Benjamin. Do debate entre
filósofos contemporâneos sobre o tema, retiro formas de inteligibilidade do fenômeno. Primeiro, alguns
dados atuais de institutos oficiais dão uma ideia do aumento da violência e da sensação de
vulnerabilidade atual. A partir da crítica da violência bejaminiana, trato do vínculo que mantém atada a
violência mantenedora do direito e do Estado àquela instauradora deles, e da violência divina como
manifestação dos povos capaz de romper a violência mítica do poder. Assinalo, então, com Guyau e
Nietzsche, a importância da crítica do punitivismo e reconheço como injusta toda justiça penal, e com
Angela Davis e Juliana Borges, apresento a prisão como dispositivo necropolítico. Sob essa ótica, a lei
aparece como possibilidade do crime, o Estado é definido pela criminalização da pobreza, a violência,
como programa de governabilidade. Depois, revejo o conceito de “violência sistêmica” de Žižek e o
aproximo da concepção de ruptura da integridade do vivo de Saffioti. Por fim, pondero sobre o perigo do
apelo da não-violência, a condenação prévia da violência divina, e sobre a teoria como resposta que
nasce das, com e para as lutas sociais, destacando-as como condição para a liberdade.
Palavras-chave: Crítica da violência; Crítica da sanção; Violência sistêmica; Violência divina; Não-
violência
Abstract: What defines a critique of violence? What does violence mean? In this essay, I make a
summary and partial review of considerations of critical philosophy since Marx, Nietzsche and Benjamin.
Of the debate among contemporary philosophers on the subject, I take forms of intelligibility of the
phenomenon. First, some current data from official institutes gives an idea of the increase in violence
and the current feeling of vulnerability. Based on the Benjamin’s critique of violence, I deal with the
bond that maintains the violence that maintains the law and the State tieds to that establishes of them,
and divine violence as a manifestation of the peoples capable of breaking the mythical violence of power.
Perhaps, then, with Guyau and Nietzsche, the importance of the critique of punitivism and I recognize
that all criminal justice is unfair, and with Angela Davis and Juliana Borges, I presente the prison as a
necropolitical device. From this perspective, the law appears as possibility of crime, the State is defined
by the criminalization of poverty, violence, as a governance program. Then, I review Žižek’s concept of
“systemic violence” and bring it closer to Saffioti’s concept of disrupting the integrity of the living.
Finally, I ponder the danger of the appeal of nonviolence, the prior condemnation of divine violence, and
theory as a response that is born of, with and for social struggles, highlighting them as condition for
freedom.
Keywords: Critique of violence; Criticism of the sanction; Systemic violence; Divine violence;
Nonviolence.
1Professor Adjunto da Universidade do Estado da Bahia. Doutor em Filosofia pela Universidade Federal
da Bahia. E-mail: alansampaio7@gmail.com.
Alan Sampaio
[...] As leis foram desde o início assentadas para os nobres, a nobreza está fora
da lei e precisamente por isso a lei parece ter sido posta com exclusividade
nas mãos da nobreza. Naturalmente existe sabedoria nisso – quem duvida da
sabedoria das velhas leis? –, mas é também um tormento para nós,
provavelmente algo inevitável. [...] Certa vez um escritor resumiu isso da
seguinte maneira: a única lei visível e indubitavelmente imposta a nós é a
nobreza – e será que queremos espontaneamente nos livrar dela?
Kafka, “Sobre a questão das leis”.
Dardos e questões
A expansão do discurso da não-violência, por sua vez, pode ser notada em vozes
dissonantes. De um lado, temos uma espécie de ativismo que investe em formas
pacifistas de resolver conflitos e superar opressões, como protestos, boicotes e
desobediência civil, inspirados n’A desobediência civil de Thoreau (2012). Dois atos
exemplares do século XX: a Marcha do Sal, liderada por Mahatma Gandhi, em 1930, e as
Marchas de Selma a Montgomery, com Martin Luther King Jr. colaborando na
organização, em 1965. Do outro lado, o Estado e a grande mídia apelam sempre para a
ordem, para a paz, para a imobilidade social, atribuindo aos povos a potência da
irracionalidade, da desordem e da violência. Apesar do aumento simultâneo dos dois
discursos, eles são completamente adversos. O primeiro quer a libertação, o segundo, a
subserviência dos povos.
Nesta seara, há muito a renunciar. Por exemplo, supor que a violência seja
derivada do crime, como se este fosse a causa em si daquela; que a violência estatal seja
uma resposta aos crimes; que o crime esteja associado à pobreza; que a pobreza seja
uma espécie de demérito que corrompe a moral e os bons costumes; que o homem e a
mulher de bem não sejam violentos. Em todos estes casos, precisamente o contrário é a
verdade. A ideologia coloca o mapa da realidade de cabeça pra baixo. Via de regra,
inventa conexões causais pouco plausíveis. Quando de fato podemos estabelecê-las,
elas se encontram invertidas, o efeito aparece como causa e a causa, como efeito.
2
Em resposta às acusações de tortura contra indígenas, comércio de crianças, exploração de trabalho
escravo, incluindo prostituição, extermínio de tribos, com vírus e pólvora, e corrupção de todo tipo, o Serviço
de Proteção ao Índio (SPI), criado em 1910, com o fim de “inserir” o índio na sociedade, é extinto no fim de
1967, principalmente pela pressão internacional que exigia da Organização das Nações Unidas (ONU) que
investigasse os crimes do poder, ocorridos principalmente entre 1961 a 1967. Em seu lugar, surge a Fundação
Nacional do Índio (FUNAI) e, em seguida, a partir dela, são criadas uma polícia e uma prisão indígenas: a
Guarda Rural Indígena (GRIN) e o Reformatório Krenak, este logo substituído pela Fazenda Guarani, em 1972.
Para uma ideia de seus efeitos, ver o artigo de Daniela Alarcan (2018), “Povos indígenas foram vítimas de
genocídio na ditadura militar”. A resposta dos militares é cínica. Dizemos a eles que não aceitamos mais a
violência que perpetram contra os índios e eles respondem: “Tudo bem, então ensinamos os índios a se
maltratarem”. O cinismo costuma ser o tom das respostas contemporâneas às reivindicações populares.
3 Para uma crítica das violência das imagens reprodutíveis, ver Drummond e Sampaio (2013).
Até aqui, através de uma série de máximas que invertem as conexões causais de
ideologia estatal, quis dar uma ideia de para onde aponta a filosofia crítica desde Marx
e Nietzsche, quer dizer, como fornecem inteligibilidades mais coerente para a
percepção da violência com fins à sua superação. Talvez seja possível caracterizar a
filosofia crítica pelo modo como coloca a violência como questão central. Nela
encontramos as questões: O que faz a crítica da violência? O que significa violência?
Quais suas condições de possibilidade? Quais enquadramentos de pessoas ou
populações as tornam passíveis de sofrer e cometer agressões? Quais práticas,
incluindo as discursivas, promovem e justificam a violência? Quais circunstâncias
tornam a violência legítima? Os conceitos críticos são operatórios, quer dizer, servem a
propósitos de cunho social. A verdade que lhes concerne é do âmbito da ética em seu
alcance político. A teoria crítica é uma espécie de material de construções, com caixas
de ferramentas, mapas, esquadros, parafusos.
Este ensaio, escrito para celebrar o primeiro número da Revista Anãnsi, dá uma
ideia da inteligibilidade que a crítica da violência traz para a compreensão do
fenômeno. Ele responde a duas das questões centrais supracitadas: Qual o papel da
crítica da violência? O que significa violência? Nele, adoto uma espécie de perspectiva
aérea, que aproxima conceitos específicos de diferentes teóricos tratando-os como
análogos. O ensaio é parcial, seu intuito não é ser exaustivo, e sim apresentar as
concepções centrais da teoria crítica. Contenta-se em apresentar algumas delas. Terá
êxito se o leitor se sentir compelido a completar partes que faltam.
Crítica da violência
Qual a tarefa da crítica da violência? O ensaio Para a crítica da violência de
Walter Benjamin, de 1921, é um marco no debate. O título original do ensaio, Zur Kritik
der Gewalt, merece um comentário: desde Kant, “Kritik” tem na filosofia principalmente
o sentido de investigação dos limites de algo e suas implicações; e “Gewalt”, além de
“violência”, significa “poder”, “força”, como no caso de “Naturgewalt”; daí, há uma
antiga tradução do título em português como “Crítica da violência – crítica do poder”
(BENJAMIN, 1986). Segundo Agamben (2004, p. 84), o objetivo de Benjamin no ensaio
é “garantir a possibilidade de uma violência [ou poder] [...] absolutamente ‘fora’
(ausserhalb) e ‘além’ (jenseits) do direito e que, como tal, poderia quebrar a dialética
entre violência que funda o direito e violência que conserva”. Aqui, porém, deixo de
lado todo o rico debate em torno do texto, inclusive o debate entre Benjamin e Carl
Schmitt proposto por Agamben, para ficar apenas com a distinção entre a violência
mítica do Estado, que funda e mantém o direito pela força e a violência divina da greve
proletária, que Benjamin encontra em Georges Sorel (1993).
pelo Estado – aquela que o direito reclama para si. E, na própria lei, a sentença de uma
derrota.
A greve geral política, por sua vez, é uma espécie notável de omissão violenta,
comparável a um bloqueio. Tal se mostra, para Benjamin, ainda mais imoral e bruta na
greve dos médicos que ocorreu depois da Primeira Guerra Mundial. Ainda mais
repugnante é o uso da violência na série de greves das polícias que pululam no Brasil
desde 1997, como duas cifras de sangue. Uma greve política é, por assim dizer, um
mecanismo regulador do direito, que lhe é externo, mas fala a mesma língua do poder.
Ela é instauradora do direito, opera no campo da violência mítica. Apenas pode
conseguir que o poder passe de privilegiados a privilegiados.
Para Benjamin, assim como para Sorel, a revolução aparece como uma
necessidade, como sustentam Marx e Engels (2007, p. 42), não só porque a classe
dominante não pode ser deposta por outros meios, “mas também porque somente com
uma revolução a classe que derruba detém o poder de desembaraçar-se de toda a
antiga imundície e de se tornar capaz de uma nova fundação da sociedade”. A resolução
não-violenta de conflitos como princípio é incapaz de provocar verdadeiros avanços.
Apesar de Benjamin ter o cuidado de não tratar das erupções populares com mortes,
trago aqui um exemplo de violência revolucionária desse tipo.
Estado, se não a inocenta, torna, ao menos, inócua toda denúncia contra ela. Para ele, a
diferença radical entre as duas formas de cultura, a do índio e a do europeu, está
marcada pela presença do Estado, que aquela desconhece: “toda organização estatal é
etnocida, o etnocídio é o modo normal de existência do Estado”. É um erro imaginar
que os genocídios perpetrados pela Europa durante o processo de colonização tenham
se extinguido quando do reconhecimento da soberania das nações, e mesmo que este
reconhecimento se dê plenamente, porque não se dá.
Não nos parece nada de inexplicável que jovens escolham como local de
descarga da violência a escola. Há um relato de Erasmo de Rotterdam (2008, p. 88), do
século XVI que, apesar do tempo que nos separa, é ilustrativa: um educador, o teólogo,
sem nenhum motivo real, inclusive consciente disto, submete um menino de aparentes
dez anos, recém-ingresso na comunidade escolar, a uma humilhação gratuita por meio
de um castigo violento, que foi executado, então, pelo “prefeito do colégio”, mais
conhecido por “cão de guarda”, que:
lançou o menino ao chão e vergastou-o qual réu de sacrilégio. Aliás, o teólogo
chegou a bradar mais de uma vez: “Basta! Basta!”. O algoz, ensurdecido pelo
furor, persistia na macabra tarefa, não o tendo levado à síncope por pouco.
Voltou-se, então, o teólogo para nós e disse: “Nada disso o menino merecia,
mas era necessário humilhá-lo”.
Crítica do castigo
Na Crítica da ideia de sanção, que Jean-Marie Guyau (2007) faz nos anos de
1880, os diferentes argumentos que encontram a justiça na punição (e premiação). A
maioria dos moralistas desde Platão vinculam o vício ao sofrimento e a virtude à
felicidade, e Kant pensa esse vínculo como algo a priori. Utilitaristas chegam a conceber
uma relação mística entre um gênero de conduta e um estado feliz ou infeliz. A religião,
por sua vez, na medida em que admite a providência, vê proporcionalidade entre a boa
ou má conduta e a felicidade ou infelicidade. A ideia de justiça distributiva divina, pelo
menos no plano desta nossa única vida, não resiste à observação de que a natureza
absolutamente não pune, apenas tritura, sem paixão ou motivo, quem cai em suas
engrenagens.
Angela Davis (2018a) e Juliana Borges (2019) mostram como jovens de cor,
entendidos aí como negros, latinos, índios, mulçumanos são o alvo do encarceramento
em massa, nome dado ao fenômeno de expansão vertiginosa das prisões; como tal
prática teve pouco ou nenhum efeito sobre as estatísticas oficiais de criminalidade; em
que ela é herdeira da colonização e da escravidão. Elas fazem a crítica do vínculo entre
crime e castigo desde uma perspectiva interseccional, isto é, tomam gênero, classe e
raça como categorias que se sobrepõem nos sistemas de opressão.
Davis e Borges contam, tanto em relação aos Estados Unidos quanto ao Brasil,
respectivamente, como se deu a criminalização da cultura negra e de suas
organizações, enquanto as comunidades “economicamente menos favorecidas”
tornavam-se o berçário do inimigo público. Tanto aqui quanto lá, quando a alforria foi
concedida, de modo algum com boa vontade, surgem uma série de leis criminalizantes
que preveem detenção para “vagabundos, vadios, capoeiras”. Ora, mas “criminalizar a
‘vagabundagem’” significa para Borges (2019, p. 83) é uma abertura para todo tipo de
criminalização”. Trata-se aqui da mesma estratégia norte-americana em relação à
“vadiagem”, como aponta Davis (2018a, p. 30-31), codificada como crime dos negros,
por exemplo, nos Códigos Negros do Mississipi que surgem logo após a abolição. Vadio,
neste caso, era aquele que, conforme Milton Fierce (Slavery Revisited, 1994), “fosse
culpado de roubo, tivesse fugido [de um emprego, aparentemente], estivesse bêbado,
tivesse conduta ou proferisse discurso imoral, tivesse negligenciado o trabalho ou a
família, tivesse usado dinheiro de maneira negligente e (...) todas as outras pessoas
indolentes e desordeiras” (apud Davis, 2018a, p. 31, colchetes e parênteses de Davis).
penal vigora desde há cinco séculos: “o crime é definido com relação ao poder”, “campo
da penalidade foi recortado e especificado por ele”, “ele se tornou o elemento
determinante de todo funcionamento desse sistema penal” (ibid. p. 177). Desde o
século XIX, porém, ele se camufla sob a oposição entre O trabalho de crítica da
ideologia punitivista está em mostrar como a norma, a polícia, o cárcere criam o crime.
Nos termos de Benjamin (2011, p. 155), “A crítica da violência é a filosofia de sua
história”. Onde se vê uma cadeia de acontecimentos, a crítica angélica vê uma catástrofe
única, que acumula incansavelmente ruína sobre ruína e as dispersa a nossos pés. Ela
fabrica, com suas genealogias, a destruição do continuum que torna os vencedores de
hoje herdeiros dos vencedores de outrora (Cf. BENJAMIN, 1994b). Procuro mostrar, a
seguir, o direito como verdadeira fonte do crime e seu uso contra os povos como uma
forma de violência mítica.
Por outro lado, Juliana Borges (2019, p. 113) chama a atenção o uso da categoria
“pobreza” como modo de camuflar o de raça, sobre o qual se estrutura o direito penal
brasileiro: “A pobreza no Brasil tem cor. Aliás, negros são pobres porque são porque
são negros no Brasil. E não são negros porque são pobres”. Para ela, o direito não é
perpassado pela ideologia racista, como se algo exterior que se lhe acometesse. Ele é
espaço de “reprodução do racismo, da criminalização e do extermínio da população
negra e não um mero aparto de ideologia racista” (ibid., p. 75). A “criminalização da
pobreza” é uma espécie de “verniz” para apagar o elemento racial que determina o
sistema de desigualdades brasileiro.
sua dignidade e de seus direitos. A seguir, dou uma ideia em relação às áreas da
educação, justiça, economia
Hoje, consumido por uma crise permanente, como chama a atenção Boaventura
de Sousa Santo (2000), o Estado mostra-se falido e espera compreensão do explorado
de sempre, mais uma vez é preciso retirar-lhe algo, um direito, extinguir uma
conquista. A retirada de benefícios básicos, como previdência e saúde públicas, acaba
por ser consentida pela população, massacrada por uma mídia de jornalismo
publicitário – que é todo aquele que não informa nem traz o contradito. Em 2019, toda
rádio e televisão deste país falou de crise da previdência. Em lugar do debate, trouxe a
promessa de retomada da economia, claramente irreal. Não é que tenham bons
argumentos. Eles não precisam, afinal não debatem. “Uma mentira repetida mil vezes
torna-se verdade” – dizia o publicitário de Hitler. A grande parte do jornalismo
brasileiro operou para rasgar a CLT (Consolidação das Leis do Trabalho). Em todos os
casos, o argumento é a crise financeira do Estado, o “rombo” na previdência, a
retomada da economia e do progresso do país.
Assim, um “feminismo”, por exemplo, que luta por “igualdade de gênero”, que
não questiona a organização punitiva estatal, e mesmo assim lança sua resposta ao
aparato gerador de violências, como aponta Angela Davis (2018a, p. 80-81),
corresponde ao trabalho ideológico das prisões, o de nos livrar da responsabilidade de
nos envolver com os problemas sociais. Por isso, Davis defende uma justiça baseada em
reparação e reconciliação, em vez da “justiça” de punição e retaliação. Consideramos,
Até aqui, apresentei algumas teses centrais de uma crítica da violência como
crítica do poder. A seguir, busco um conceito de violência que dê ideia da abrangência
daquela perpetrada pelo poder.
A parte obscura
moral. A partir da noção de violência sistêmica trazido por Žižek, considero como
próximos os conceitos diferentes, como se iluminassem diferentes aspectos do
fenômeno, sem, todavia, apontar suas semelhanças de família. Destaco o de violência
em Butler (2017, 2019), que a pensa a partir da ideia de vida precária e
vulnerabilidade primária, estas pensadas segundo o conceito chave da ética levinasiana
de “rosto”, com o qual dialoga. Nela, porém, o conceito é secularizado, pensado desde o
corpo e o social.
Aprendemos quando crianças que devemos revidar o mal com o mal, e que o
bem e o bom são também isso: vingar-se de uma violência sofrida; assim, quando
caímos e choramos, nossos pais nos ensinam a bater em coisas que “nos machucaram”,
e aprendemos a ter satisfação com isso, mesmo quando a dor que sentimos, causada
por nossa “vingança” no objeto rígido, é maior do que a primeira “ofensa” do objeto.
Apesar de talvez não notarmos com quais procedimentos simbólicos, por sua
opacidade, aprendemos a desprezar a vida precária. O linchamento, o feminicídio, o
extermínio são exemplos extremos de nossa moralidade dos costumes. Moralidade,
quer dizer, sentimento, instinto de rebanho, prazer em seguir o rebanho, em ser
rebanho, tal como o rebanho trata o infrator, o inimigo.
Um adágio popular perdido diz: “Quando uma galinha está amarrada, as outras
vão lá bicar”. Pois bem, a ordem social das bicadas é a violência objetiva sistêmica,
objetiva, opaca – e habita mesmo um homem cuja vida foi dedicada à Ética. O desejo
confessado por Levinas, aquele que em Butler se torna mesmo o conceito de violência,
é paradigma da violência, não latente nem invisível, senão opaca, quer dizer, densa e
difícil discernibilidade. Para ambos, a noção de rosto coloca uma série de reflexões de
ordem ética desde o sentido do encontro com o outro, que permitem romper os
enquadramentos violentos da vida. Ele visa colocar a vida, o outro, a partir de um
estádio superior ao da empatia.
Conceito de violência
direito dos homens sobre as mulheres.” Sem renegar o conceito que usa para mostrar
precisamente o continuum entre a agressão e a norma, entre a violência e o poder,
Saffioti adota o conceito que toma a violência como violação dos direitos humanos,
decerto mais restrito e comensurável.
Não podemos aceitar que se roubem os olhos da justiça. Uma justiça cega é uma
justiça arbitrária, como já apontou Angela Davis (2018b), conduzida pelo direito que a
encerra e transfigura na dama tirana que aterroriza os despossuídos. Para a justiça
edipiana, que furou seus próprios olhos para não ver que lhe condenam, espécie de
Odisseu, com ceras no ouvido para não escutar as vozes suplicantes, vale a máxima de
Mateus: “a todo homem que tem será dado, e estará em superabundância; mas àquele
que não tem, mesmo o que tem ser-lhe-á tirado” (Mt 25, 29).
Por outro lado, o discurso da não-violência, fora das ruas, não significa destacar
a violência em detrimento da justiça? Como observa Angela Davis (2018a, p. 25),
“Colocar a violência em primeiro plano quase inevitavelmente serve para obscurecer
as questões que estão no centro das lutas por justiça”. Daí a luta e a liberdade estarem
em evidência nos discursos sociais que clamam por justiça; para ser mais preciso, a
liberdade como luta constante, conforme um artigo nosso sobre a filósofa (SAMPAIO;
BORGES, 2020). É nas organizações e lutas sociais ou em resposta a elas que conceitos
e histórias se tornam articuláveis, que se tecem memória, esperanças e a própria
liberdade – ou, nas palavras de Hamilton Borges (20016, p. 182), escritor e militante da
organização política Reaja ou Será Morta, Reaja ou Será Morto, “pela certeza de que a
luta faz a liberdade”. O discurso da violência que não divisa a liberdade, mas mira a
própria violência, não luta, não faz a liberdade. A escrita, a educação, a organização,
sim. Um “sim” e um “não” definem a justiça: a liberdade e a luta.
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Resumo: Este ensaio busca diagnosticar as práticas de poder que estão se formando no Brasil durante a
pandemia, a importância do uso de dados para a implementação dessa configuração e a intensificação da
política de terror nas favelas. Identifica uma nova configuração dos poderes disciplinar, biopolítico e
necropolítico e como atuam de diferentes formas nos sujeitos de acordo com suas diferenças
econômicas, raciais e de gênero. Para isso, nos utilizamos de três autores fundamentais: Michel Foucault,
cujo objetivo é refletir sobre a atualidade do biopoder, do poder disciplinar e do dispositivo panóptico;
George Orwell, no qual estabelecemos um paralelo com a literatura como maneira de aclarar tal
diagnóstico; e, Achille Mbembe para entender à luz do necropoder as características do genocídio negro
brasileiro.
Abstract: This essay aims to diagnose the power practices that are forming in pandemic’s Brazil, the
importance of using data to implement this configuration and the intensification of the terror policy in
the slums. Identifies a new configuration of disciplinary, biopolitical and necropolitical poweres and how
they act in diferente ways on subjects according to their economic, racial and gender diferences. For this,
we use three fundamental authors: Michel Foucault, whose objective is to reflect on the current status of
biopower, of disciplinary power and panoptic device; George Orwell, in wich we establish a parallel with
the literature as a way to clarify such diagnosis; and Achille Mbembe to understand in the light of the
necropower the characteristics of the Brazilian black genocide.
***
Com o advento da pandemia da covid-19 no início de 2020, medidas foram
tomadas para conter o avanço da doença. Cedo ou tarde, quarentenas foram
implementadas em praticamente todos os países do globo. Na China, onde o vírus foi
descoberto, há drones, sensores de temperatura e aplicativo de celular para descobrir
o infectado. O uso de dados também está sendo implementado em outros países, até
mesmo no Brasil. Com isso é possível saber a taxa de isolamento social ou onde cada
infectado esteve e, assim, conter um avanço da doença. Porém, é na favela onde o vírus
se espalha mais rápido e são os moradores das comunidades quem mais sofrem com a
dificuldade de acesso à saúde. Diante disso, o que nos garante que os nossos dados
estão protegidos, ou que a pandemia é um mero pretexto para acessá-los? O uso de
nossos dados servirá para novas práticas de poder? Como se configura essas novas
práticas nas favelas, onde impera o poder de matar?
cumprem muito bem esse papel. O olhar está por toda parte, sob o pretexto de
assegurar a vida da população, mas o que impediria que, ao fim da cidade pestilenta,
desenvolva-se enquanto dispositivo de poder que assegura a obediência com o simples
ato de se sentir observado?
Pode ser traçado um paralelo entre este cenário e a distopia 1984, de George
Orwell. Nela, o partido Ingsoc, liderado pelo Grande Irmão, governa o povo, sobretudo,
através das teletelas, em locais públicos e privados, pelas quais a observação diuturna
das suas ações é possível. Winston, principal personagem, trabalha em um setor
absurdamente estratégico chamado “ministério da verdade”, no qual o passado era
modificado com o intuito de tornar o presente, por pior que fosse, o melhor momento
vivido. Ao se apossar da memória da população, ao invadir a subjetividade e modificá-
la ao seu bel prazer, o partido coloca nas mãos as condições de possibilidades da
própria existência.
Não! A “mina de ouro” são os seres humanos. Eles fazem planos, eles enxergam a si
mesmos no “amanhã”. Com a ameaça da morte uma galinha não choca mais ovos, nem a
vaca produz mais leite, tampouco as árvores produzem mais frutos. Porém nós, seres
humanos, coagidos pelo medo do castigo, somos controláveis.
fundamentais para definir seu campo de ação discursivamente velado pelo vazio de
palavras como "liberdade", "segurança", "saúde", "progresso". Na biopolítica, tudo é
justificado pela preservação da vida, até mesmo matar por ela. Como sabemos, a
pandemia desvelou as várias desigualdades presentes em nossa sociedade. Enquanto o
menino da zona sul fica isolado em sua casa de praia, as vidas das favelas estão
vulneráveis, dividindo o mesmo cômodo com pai, tia, avó, mãe, irmã. Isso evidencia as
práticas do biopoder, o poder sobre a vida: "fazer viver e deixar morrer", mas também
"fazer morrer", na medida em que o Estado declara quem são seus inimigos e os mata
através do racismo.
negros, sendo que a população negra do Brasil não passa dos 57% (Pnad-IBGE, 2019).
Isso reflete na discrepância de um sistema de exclusão e na precarização do serviço
público de saúde impetrado por anos pelas políticas estatais brasileiras.
Referências
FOUCAULT, Michel. Microfísica do Poder. Org. e trad. Roberto Machado. 4ª Ed. Rio de
Janeiro: Paz e Terra, 2016.
4 Em São Paulo, maior cidade do país, teve um aumento de 30% em maio. Cf <https://g1.globo.com/sp/
sao-paulo/noticia/2020/04/13/casos-de-violencia-contra-mulher-aumentam-30percent-durante-a-
quarentena-em-sp-diz-mp.ghtml>, acesso em julho de 2020.
5 Cf. o portal O Globo o número de assassinatos contra mulheres trans e travestis cresceram 13%
ORWELL, George. 1984. Tradução: Alexandre Hubner, Heloisa Jahn. São Paulo:
Companhia das Letras, 2009.
Apresentação
É sempre um deleite para um autor encontrar sua escrita tão bem traduzida em
outro idioma. Nos quase cinco anos que se passaram desde que escrevi este artigo, no
início de 2016, a discussão filosófica no mundo anglófono se desenvolveu. Desde se os
Nahuas tinham uma filosofia ética para algumas de suas para uma discussão em que o
que está em jogo agora diz respeito às suas características. Estou feliz em ver esta
mudança seguir na esteira do meu trabalho. A discussão também ultrapassou a falta de
interesse na tradução filosófica de termos para análises mais sofisticadas. É
reconfortante ver também este avanço. Além disso, não creio que um trabalho mais
recente desafie nenhuma das reivindicações centrais feitas aqui neste trabalho.
1 “Eudaimonia and Neltiliztli: Aristotle and the Aztecs on the Good Life” Artigo originalmente publicado
na Revista da The American Philosophical Association: Hispanic/Latino Issues in Philosophy, Vol. 16, no.
2, Spring 2017. Vencedor do Prêmio APA 2016 em Pensamento Latino-Americano. As versões deste
ensaio foram apresentadas na conferência “Trans-American Experience” na University of Oregon em
Eugene (2015) e na conferência “Latinx Philosophy” na Columbia University em Nova York (2016).
2 Graduando em Filosofia pela Universidade do Estado da Bahia.
Lynn Sebastian Purcell
incontestável da conexão, e isto explica em parte porque não me sinto incomodado por
elas.
Apesar disso, meu argumento simplesmente não precisa entrar nesta disputa
filológica para defender sua causa. O assunto filosófico em jogo é se os Nahuas
entendiam a boa vida como um fim superior e se as virtudes eram necessárias para
alcançá-la. Fico feliz em render "nelli" como "verdade", e "neltiliztli" como "veracidade",
uma vez que estas mudanças de tradução não suportam a tese filosófica em jogo. Pode-
se dizer que os Nahuas procuraram levar uma vida verdadeira, em vez de uma vida
enraizada, e nada de importante muda sobre suas reivindicações éticas.
Mesmo admitindo este ponto, porém, acho que posso manter a relação entre a
boa vida e o enraizamento. A razão é que os Nahuas muitas vezes empregaram
metáforas amplas para indicar o que eles tinham em mente por um conceito. Esta é,
naturalmente, a ideia básica em ação no uso de difrasismos, mas este é apenas um
truque literário que eles usaram para este fim. Na constelação mais ampla em ação
sobre a boa vida, encontra-se amplo apoio para a contenção do enraizamento.
Estou imensamente grato ao colega Flávio Deus por sua tradução. Como passei a
maior parte da minha vida entre idiomas, entendo muito bem o trabalho envolvido.
1. Eudaimonia e Neltiliztli
Como devemos viver? Qual a melhor forma de viver? Esse viver implica em
obrigações para com as outras pessoas? Se sim, quais? Esses são, brevemente, os
questionamentos centrais da filosofia ética. Os dois primeiros, acerca do melhor tipo de
vida, abordam o tema do bem. Estes últimos, relativos às nossas obrigações para com
os outros, abordam o direito. Entre muitos dos filósofos da antiguidade grega clássica,
incluindo Platão e Aristóteles, as questões relativas ao bem foram entendidas como
conceitualmente anteriores às do direito. Eles sustentaram, em suma, que era preciso
saber que tipo de vida se procura viver antes que de levantar questões sobre que tipos
de obrigações deveriam seguir. Para eles a melhor vida era uma vida feliz e próspera -
uma vida de eudaimonia3. Além disso, consideravam a condução hábil da vida como
virtuosa, e por isso essa ética tem sido chamada de ética eudaemonista da virtude.
3 Na Ética a Nicômaco, Aristóteles (1934) identifica eudaimonia, "felicidade", como o maior dos objetivos.
2. A melhor finalidade
Existem duas características principais da boa vida que possui um paralelo
razoável no pensamento asteca e aristotélico, a saber: que a boa vida é a que possui a
ação do melhor fim e que esse melhor fim pode ser explicado por sua relação com a
condição humana. Neste último ponto, no entanto, Aristóteles difere um pouco da
abordagem asteca, pois relaciona a eudaimonia à função humana (ergon), enquanto os
astecas traçam seu raciocínio a partir de uma caracterização mais ampla de como é a
vida em nossa terra, no que eles chamavam de tlalticpac.
4 O padrão de citação e referência das notas de rodapé foram modificados para se adequar ao modelo
mais utilizado no Brasil "Sobrenome do autor (Ano)" e as especificações completas da obra ao final nas
referências no fim do trabalho. (N.T.)
5 Penso especialmente na Filosofia Asteca de Maffie (2014), o autor em seu verbete "Filosofia asteca"
muito grato a algumas das observações que León-Portilla faz neste livro. Também lucrei muito com suas
considerações no Pensamento e Cultura Asteca: Um Estudo do Antigo Nahuatl. (LÉON-PORTILLA, 1963).
7 É claro que antropólogos e historiadores da arte há muito tempo se interessam pela ética Nahuatl, mas
sua preocupação é mais com o que poderia ser chamado de análise de costumes culturais. Duas peças em
inglês que foram particularmente influentes para o presente ensaio foram as contribuições de Louise M.
Burkhart (1989) e Pete Sigal (2011). No primeiro caso, aprende-se a ser cauteloso com as influências e
interpolações castelhanas, mesmo na construção do Códice Florentino de Bernardino de Sahagún, no
qual grande parte do presente ensaio se baseia. Neste último, reconhece-se a abordagem bastante
tendenciosa, principalmente, da ética sexual que se encontra apresentada em quase todos os trabalhos
registrados, incluindo o Codex Florentino. López (1984) também se mostrou útil para entender a visão
geral do mundo de Nahua, embora as implicações de seu estudo sejam mais imediatas, penso eu, para a
metafísica de Nahua.
No que diz respeito à controvérsia, com brevidade, parece que dois pontos
podem nos esclarecer o que Aristóteles tinha em mente. Primeiro, lembre-se de que o
método de Aristóteles para a ética é encontrar “uma visão [que] seja a mais harmônica
entre os fenômenos”10. Para fazer isso, ele parte de um pedaço de sabedoria
respeitável, um endoxa11, e depois procede à provocação. Através de possíveis
implicações para chegar a uma afirmação melhor12. Nesse caso, o endoxa é a afirmação:
"portanto, os homens se expressaram bem em declarar que o bem é aquele para o qual
todas as coisas visam". O que o resto da passagem deve fazer, mesmo que não esteja
totalmente completo, é preencher a lacuna entre a primeira observação, como
premissa, e o endoxa, como conclusão. Em resumo, o argumento que ele desenvolve é
executado assim:
[1] Se os bens de cada um (inquérito, ação etc.) são ordenados
hierarquicamente (e são),
[2] E se os bens não chegarem ao infinito (o que seria absurdo),
[3] Depois, há um bem maior.
A conclusão, [3], é o bem maior para o qual "todas" as coisas apontam na linha
de abertura. 13
12 Kraut (2006) tem uma excelente revisão e avaliação do método de ética de Aristóteles.
13 Tecnicamente, não pode ser o objetivo de todas as coisas, pois as coisas inanimadas não visam nada. O
sentido parece estar restrito aos agentes humanos. Esta parte do argumento é retirada (e desenvolvida)
do meu ensaio “Bens naturais e o desafio da normatividade: felicidade entre culturas” (PURCELL, 2013).
Ainda assim, há discordância sobre qual deveria ser esse objetivo mais elevado
e, no primeiro livro da Ética a Nicômaco, Aristóteles propõe resolver o assunto
apelando para a atividade ou função apropriada (ergon) dos seres humanos. Ele
escreve:
Ora, se a função do homem é uma atividade da alma que segue ou que implica
um princípio racional, e se dizemos que "um tal-e-tal" e "um bom tal-e-tal"
tem uma função que é a mesma em espécie (por exemplo, um tocador de lira e
um bom tocador de lira, e assim em todos os casos, sem maiores
discriminações [...] o bem do homem nos aparece como uma atividade da alma
em consonância com a virtude, e, se há mais de uma virtude, com a melhor e
mais completa.17
18 Eu explorei esse cenário metafísico em detalhes em meu “Bem Natural e o Desafio da Normatividade:
objetos e práticas também vale para os seres humanos. A função humana é fazer uso da
razão, entendida em um sentido amplo (isto é, como logos). As atividades, na medida
em que são adequadamente humanas, fazem uso do logos. Ser um bom humano, pelo
mesmo raciocínio, é assim quem leva uma vida por meio de logos, ou pelo menos não
sem ele. Na medida em que alguém falha em usar o logos, leva uma vida humana ruim
ou cruel.
Para os Nahuas, assim como para Aristóteles, é a condição humana que limita e
permite que se busque o melhor tipo de vida. Porém, ao contrário de Aristóteles, para
os Nahuas, é o caráter de nossas circunstâncias como seres humanos na Terra que
determina principalmente essa condição, não uma propriedade do que somos como
seres animais, como logos. Para os Nahuas, nossas vidas são levadas na Terra, em
Tlalticpac. Este lugar tem três características pertinentes que definem as condições
para o tipo de vida que podemos esperar levar. É, antes de tudo, um lugar escorregadio.
Este ponto é amplamente registrado nos textos Nahua existentes. Por exemplo, o sexto
volume do Códice Florentino tem um catálogo de ditados comuns. Leia a seguir:
Escorregadia, lisa é a terra.
É o mencionado.
Talvez uma vez alguém tenha tido uma vida boa;
depois caiu em algo errado,
como se tivesse escorregado na lama.19
(2009), Entretanto, a tradução citada é de León-Portilla (1992) em Quinze poetas do mundo Asteca. O
texto de León-Portilla também inclui o Nahuatl para acompanhar cada tradução. A interpretação de
Bierhorst da cultura asteca é bastante contestada, e suas traduções tendenciosamente apoiam sua
posição, de modo que evitei inteiramente usar suas traduções e, quando necessário, traduzi os textos
pessoalmente. Para uma revisão das dificuldades da hipótese das "canções fantasmas" de Bierhorst,
consulte a resposta de León-Portilla na "Introdução" de sua obra Quinze poetas do mundo Asteca (LEÓN,
PORTILLA, 1992), especialmente as páginas 41-44.
23 Para a transcrição de Nahuatl, veja Ballads of the Lords of New Spain, p. 21 r. - 22 v. A tradução é dos
O que importa para fins éticos é obscurecido na tradução. A frase "aço tle nelli in
tlalticpac" é melhor traduzida como "Essa é a única verdade na terra?" Mas a palavra
nelli está relacionada a nelhuáyotl, que é uma raiz ou base.27 A ideia metafórica por trás
do entendimento dos Nahua de “verdade”, então, é que é uma questão de estar
enraizada como uma árvore, em vez de deslizar sobre ela: nossa terra escorregadia. O
objetivo, a solução para nossos problemas humanos, então, é encontrar raízes, que
como um substantivo abstrato seriam expressas em Nahuatl como neltiliztli.
Um ponto importante aqui é que o contexto do poema deixa claro que é preciso
encontrar raízes no único ser da existência, em teotl. Assim como no argumento da
função de Aristóteles, há igualmente um pano de fundo metafísico no relato de Nahua
sobre a boa vida. Os Nahuas eram de certa forma panteístas e consideravam nosso
mundo uma expressão do único ser fundamental da existência. Uma vida enraizada,
então, não é apenas nosso objetivo mais elevado, mas carrega uma força normativa
25 Pode-se encontrar o Nahuatl original em Cantares Mexicanos: Canções dos Astecas (BIERHORST, 1985).
A tradução, pelo motivo acima mencionado, é substancialmente modificada.
26 Uma implicação importante desse ponto, mas que não posso desenvolver aqui em detalhes, é que o
senso de verdade da verdade nahuatl é bastante diferente de uma teoria da verdade por
correspondência - algo que eu sempre pensei ser a posição de Aristóteles sobre a verdade. Para os
Nahuas, a pessoa não apenas conhece a verdade, mas fundamentalmente passa a viver a verdade.
27 Diccionario de lengua Nahuatl o Mexicana diz “reads: “nelhuayo adj. Provisto de raíces, que tiene
semelhante. Deve-se buscar o enraizamento não apenas por motivos prudenciais, mas
porque o enraizamento é a maneira pela qual alguém realmente recebe nossas
circunstâncias.
O poema filosófico "Flower and Song" fornece uma fonte de evidência para a
semelhança normativa entre Aristóteles e o entendimento Nahua acerca da boa vida.
Para evidências textuais adicionais, pode-se recorrer ao décimo volume do Códice
Florentino, que aborda "o povo" da cultura Nahua. Ali se encontram descrições de
pessoas trabalhando em funções socialmente reconhecidas. O autor do códice
Bernadino de Sahagún é responsável por perguntar quais são as boas e más formas de
cada uma, por exemplo, perguntar: O que é um bom trabalhador de penas? O que é
ruim? Portanto, não se pode dizer que os Nahuas teriam formulado explicitamente os
assuntos em termos de bons e maus. O que se pode notar é que, em suas respostas,
encontra-se um entendimento geral de como a aprovação e a desaprovação foram
atribuídas em cada caso e como eles raciocinaram sobre o que deveria ser. Ao
descrever um nobre adulto, lemos o seguinte:
O bom homem de meia idade é aquele que faz, um trabalhador [ágil, ativo,
solícito].
O mau homem de meia-idade [tlaueliloc] é preguiçoso, negligente, preguiçoso,
indolente, preguiçoso, ocioso, lânguido, um pedaço de carne [quitlatzcopic],
um pedaço de carne com dois olhos [cuitlatzcocopictli], um ladrão. 28
Para reunir todos esses pontos, pode-se escrever que Aristóteles e os astecas
sustentavam uma concepção da vida boa como aquela que é o objetivo mais alto que
alguém poderia ter ou, mais apropriadamente, viver. Eles diferiam nos motivos que
apresentavam para seus pontos de vista. O argumento de Aristóteles gira em torno de
uma tese sobre a função (ergon) do ser humano, enquanto os Nahuas sustentavam que
alguém deveria buscar o enraizamento como (i) uma resposta razoável às nossas
circunstâncias na terra e (ii) uma condição básica para liderar uma vida na
comunidade humana como parte do Teotl. O que precisa ser esclarecido agora é como
exatamente esse entendimento da boa vida pode guiar nossas ações.
discussão de excelência, mas esse vínculo estreito entre neltiliztli e excelência não foi
demonstrado pelos Nahuas. Embora o exposto acima mostre que eles tinham uma
compreensão do bem humano que sustenta essa linha de raciocínio, podemos nos
perguntar se existe uma palavra ou frase nahuatl que desempenha aproximadamente o
mesmo papel que arētē, e que esteja conectada a um relato de enraizamento? Segundo,
embora o acima exposto mostre que os Nahuas tinham uma concepção da vida boa, não
mostra que o neltiliztli funcionava da maneira exigida. Immanuel Kant e John Stuart
Mill ambos tinham concepções da vida boa, mas também não era um eticista da
virtude. Como podemos saber se o neltiliztli funciona como a eudaimonia de Aristóteles
e não como o summum bonum para Kant e Mill?
29 Este tópico tem sido objeto de estudo entre os classicistas. Embora Werner Jaeger desenvolva essa
tese até certo ponto, tenho em mente o argumento paciente de Adkins (1972). A obra referenciada é
dedicada a apoiar os pontos que acabamos de expor.
30 Para detalhes sobre a tradição confucionista sobre virtudes como de e ren, consulte o primeiro
tlacamelahuac. Esse termo deriva de tlacatl, que significa humano, e melauacayotl, que significa retidão
ou correção de algo. O termo, no entanto, provavelmente tinha um sentido mais específico. Costumo
considerá-lo um candidato mais próximo aos phronimos de Aristóteles. Outro possível candidato é
tlaçoyotl, que às vezes é traduzido como "excelência". No entanto, esse termo deriva de tlaçotli, que
significa valioso ou caro, e, portanto, é mais provável que seja um termo para valor inerente ou (melhor)
valor mais alto.
yn tecuheuh yn A filha [quem é] Esta é uma frase que indica toda a ideia de uma filha
ichpuchtli em sua relação com um falante masculino e feminino.
quiztica, intocada, Todos esses termos são difíceis de traduzir, porque o
macitica, vel perfeita, boa cristianismo já havia influenciado o significado das
palavras. No entanto, nenhum deles em Nahuatl tem
uma conexão fundamental com a compreensão cristã
da virgindade.
Nelli Enraizado Dibble e Anderson (SAHAGÚ, 1969) omitem esta
palavra na tradução, pois ela se encaixa mal na
interpretação cristianizada da descrição de Nahuatl.34
É a raiz do neltiliztli.
ichpuchtli in [quem é] a Não há quebra de sentença no Nahuatl, então a idéia
iectli in qualli, excelente filha, continua: a filha enraizada é a excelente…
in qualli a boa filha ... o bom, etc.
ichpuchtli...35
32 A seguir, pode ser útil ter em mente que Nahuatl não possui uma ortografia padrão, embora os estudos
atuais tendam a usar uma lexicografia franciscana modificada. O Códice Florentino em particular, tende a
fazer uso fora do padrão, mesmo de uma linha para a outra. Deve-se ter em mente, então, que "i" e "y"
são frequentemente substitutos, e "j" e "i" também são. No Códice, a existência de paradas glotais e
pausas de respiração é comumente indicada com um "h".
33 Códice Florentino, vol. 10, p. 2.
34 Para ser justo com Dibble e Anderson, um dos objetivos da tradução deles era manter contato com as
ideias que informavam o espanhol que Sahagún traduziu em sua transcrição original, mas sem traduzir
do espanhol para o inglês. Se Sahagún interpretou o Nahuatl de uma maneira específica, então a tarefa
deles era tornar isso conhecido em inglês. Meus objetivos neste trabalho são diferentes.
35 Códice Florentino, vol. 10, p. 2.
Alguém aqui encontra uma descrição da filha “boa” como alguém que está
enraizado, que está levando a melhor vida possível e que é excelente ao fazê-lo. A
passagem é difícil de analisar e traduzir, porque alguma influência cristã estava
presente no momento em que foi registrada, mas indica que os Nahuas pensavam em
conectar virtude (in yectli in qualli) e enraizamento (neltiliztli). A melhor vida
disponível na Terra, em suma, é aquela que é realizada de maneira excelente.
Passo agora à questão de saber se os Nahuas entendiam a boa vida como uma
condição necessária para uma ética da virtude. Pode-se começar lembrando o que é
distinto na eudaimonia, uma vez que ela funciona para propósitos de orientação à ação.
Para os eudaimonistas em geral, a orientação para a ação segue da prioridade do bem
para a correto. Isso quer dizer que, na ordem da justificação, apela-se primeiro a uma
concepção do bem e depois se conclui o julgamento da ação correta. Um eudaemonista,
então, pode argumentar que não se deve enganar ou trapacear o outro, ou que enganar
o outro é moralmente errado porque isso o prejudica inibindo sua prosperidade. Para
um filósofo moderno que mantém a prioridade do direito ao bem, como fazem os
deontologistas kantianos, o erro moral funciona como premissa da conclusão de
alguém. Não se deve enganar outrem porque é moralmente errado, e pode-se discernir
esse erro moral recorrendo a um teste independente, como o procedimento imperativo
categórico.36
36 De todos os autores que fazem esse contraste, John Rawls (1999, 2000) é provavelmente o mais claro.
Para seu relato do procedimento imperativo categórico e sua diferença do próprio imperativo
categórico, confira sua obra História da Filosofia Moral, especialmente o capítulo dez, que da atenção ao
imperativo categórico. Ele faz o contraste entre ordens de justificação em Uma teoria da justiça.
37 Ética a Nicômaco, 1094a.
38 “ta men gar eisin energiai, ta de par’ autas erga tina” (1094a 2-3).
esclarecer, nas linhas de abertura do Utilitarismo, Mill escreve: “Toda ação visa a algum
fim, e as regras de ação, como parece natural supor devem tomar todo o seu caráter e
aspecto do fim a que são subservientes”39. 40 A felicidade, como Mill a entende, é o
produto de agir de maneira a promover a felicidade do maior número. Para Aristóteles,
por outro lado, a eudaimonia não é concebida como um produto, o resultado final da
ação, mas como o desempenho de viver bem a própria vida. Sua vida teve um bom
desempenho, não um conjunto de estados mentais. Como resultado, seria incoerente
falar em maximizar esse tipo de felicidade, além de viver melhor - com mais virtude.
4. Formas de vida
Aristóteles, uma vez que os Nahuas defendem duas (ou mais) abordagens de
enraizamento, mas eles não têm noção de que é como a forma grega de viver.
A resposta de Aristóteles é um tanto elíptica, mas parece que ele sugere que o
que está no topo da hierarquia é um modo de vida, bios. Ele escreve:
Pode-se dizer, com efeito, que existem três tipos principais de vida: a que
acabamos de mencionar [isto é, do prazer], a vida política e contemplativa
[theōrētikos]. A grande maioria dos homens se mostram em tudo iguais a
escravos, preferindo [proairoumenoi] uma vida [bion] bestial, mas encontram
certa justificação para pensar assim no fato de muitas pessoas altamente
colocadas partilharem os gostos de Sardanapalo. A consideração dos tipos
principais de vida mostra que as pessoas de grande refinamento e índole ativa
identificam a felicidade com honra; pois a honra é, em suma, a finalidade
[telos] da vida [biou] política. 43
Nesta passagem, Aristóteles realiza breves críticas à vida do prazer, e isso visa à
honra, embora ele espere até o livro X para fornecer uma defesa completa da vida da
contemplação. O que importa, neste momento, é que os comentários de Aristóteles
sugerem para a estrutura da eudaimonia, a saber, que uma vida é decidida como um
telos. Entretanto, isso não é o mesmo que escolher um resultado específico ou conjunto
de resultados. Pois um modo de vida é uma maneira característica de escolher e
ordenar os fins, para que o desempenho deles seja típico. No topo de nossa hierarquia,
então, não está um objetivo final, mas um modo de vida.44 E Aristóteles mais tarde
gerenciamento hábil (isto é, excelente) de nossa hierarquia de vidas, e (2) um modo de vida é o que está
no topo da hierarquia, para permitir que Aristóteles evite os tipos de preocupação Larry Temkin suscita
em Repensando o bem: ideais morais e a natureza da razão prática. (TEMKIN, 2012). Uma objeção chave
que Temkin levanta é que nossas preferências não podem ser demonstradas estritamente como
transitivas, de modo que ordens de preferência (e, portanto, relações de equivalência) não podem ser
obtidas para nossas preferências. Isso acaba sendo um problema para consequencialistas de
preferências informadas e para quem concorda amplamente com o relato descritivo de John Rawls do
bem na parte três de A Theory of Justice. A concepção de Aristóteles do bem, se o exposto acima estiver
correto, pareceria permitir que ele evitasse esse tipo de preocupação, uma vez que uma bios requer
apenas uma maneira característica de colocar objetivos em relação um ao outro, e nada como uma
A especificação de qual modo de vida é melhor para Aristóteles tem sido fonte
de controvérsia, não porque não esteja clara, mas porque os estudiosos ficaram
intrigados ao tentar explicar a compatibilidade da boa vida essencialmente
intelectualista da eudaimonia, no livro 10, com a mais abrangente que está articulada
no restante da Ética a Nicômaco48. Não tentarei fornecer meu próprio senso da
compatibilidade dessas duas considerações em Aristóteles. Em vez disso, gostaria de
observar que os Nahuas também parecem conceber que a boa vida, de certa forma, está
dividida entre uma abordagem mais abrangente e integralista e uma essencialmente
intelectual. No entanto, como eles não fazem uso de bios como conceito, eles não
possuem uma concepção semelhante.
ordem de preferência parcial. O assunto, claramente, é mais complexo do que pode ser tratado aqui, mas
achei interessante notar que a abordagem de Aristóteles pode evitar uma série de dores de cabeça
modernas em relação ao bem.
45 Esse é o argumento de Aristóteles na Ética a Nicômaco, em 1177a até 10178a.
46 Aristóteles (1957)
48 Para uma amostra da controvérsia, veja as críticas de Thomas Nagel em "Aristóteles sobre
Eudaimonia", em no volume Ensaios sobre ética de Aristóteles (RORTY, 1980) e a resposta provisória de J.
L. Ackrill em "Aristóteles sobre Eudaimonia" no mesmo volume.
Uma maneira adicional pela qual se buscava uma vida enraizada estava na
psique – levando-se em consideração que para os nahuas a diferença entre psique e
corpo não eram tão delimitada como para nós. O ponto nesse sentido é que, se alguém
aprende a assumir uma identidade, um certo tipo de personalidade, ganha raízes. Por
exemplo, no Hueheutlatolli (Discursos dos Anciãos), encontramos um discurso de
congratulações no qual os mais velhos discursam com os novos noivos, novos donos de
um rosto e coração. O noivo, por exemplo, responde aos idosos, afirmando,
Vós me mostrastes graça, estais inclinados a vosso coração [amoiollotzin]; em
meu nome, vós sofrestes aflição. Eu infligirei doença a você, em seu rosto
[temuxtli]. 50
Nesse caso, o rosto (ixtli) e o coração (yollotl) juntos indicam a pessoa como um
todo. As respostas do noivo abordam as duas facetas da personalidade do ancião. Do
mesmo modo, no casamento, os mais velhos unem o casal como uma nova identidade,
amarrando a capa do homem à saia da mulher e falando tanto no rosto quanto no
coração. A sugestão é que, dessa maneira, eles adquiram personalidade, uma maneira
pela qual permanecerão aqui na terra escorregadia. As virtudes do caráter, então,
encontram seu lugar principalmente nesse nível, facilitando a aquisição e a
manutenção do "rosto e coração" de uma pessoa.
49Esses pontos foram detalhados no trabalho de Austin (1988) e no trabalho de Carrasco (1990).
50Códice Florentino, vol. 6, p. 127. Tradução do autor. Essa frase, que parece ser um insulto, é um elogio
na cultura Nahua. Um tipo de "equilíbrio" dos desejos de boa sorte com má sorte para desejar outro bem.
A seção termina, por exemplo, dando as boas-vindas ao novo casal na sociedade, dizendo que eles estão
abandonados. As declarações diziam: “pois é a nossa maneira de fazer as coisas na terra (em tlalticpac);
pois ninguém se preocupa com ninguém; pois já te abandonamos. Preste atenção nisso”, 132-33.
Tradução do autor.
Nesse ponto, pode-se perguntar como os Nahuas não são confrontados com o
mesmo tipo de dificuldade que Aristóteles enfrenta. O enraizamento parece ter um
significado estritamente intelectual, reservado para aqueles que podem compor flores e
canções, e outro enraizamento que ocorre de forma mais abrangente. Em resposta,
acho que o problema não é tão importante entre os nahuas. Uma vida (bios), para
lembrar, tem duas características importantes. Primeiro, é uma maneira característica
de escolher entre nossos objetivos e ordená-los na hierarquia do plano de nossa vida.
Este é o sentido que se situa no topo dessa hierarquia. Segundo, é uma forma de vida
escolhida acima e além das necessidades da vida zoē. Embora os Nahuas tivessem
vários papéis sociais, que, no caso de um filósofo ou médico, poderiam ser contados
como uma maneira característica de escolher entre fins, eles não distinguiram modos
como algo distinto das necessidades da mera vida. Todas as pessoas, então, buscavam o
enraizamento nos níveis da mente, psique e comunidade. Acontece que, para algumas
pessoas, a participação na comunidade também ofereceu a possibilidade de um
enraizamento mais direto. Os filósofos, por exemplo, descobriram o enraizamento em
suas comunidades, em parte, compondo “flor e música”, que por acaso era uma maneira
direta de encontrar enraizamento no tlalticpac. Os caminhos são complementares
entre os nahuas, e não excludentes, como parecem estar em Aristóteles.
5. Motivação moral
Para os Nahuas, a vida em tlalticpac não tem perfeição semelhante. A boa vida,
entendida como neltilitztli, tem apenas uma relação acidental com estados emocionais
elevados. Compor uma canção de flores, ou unir o rosto e o coração, cria uma existência
melhor e mais bonita, ainda que transitória. É o melhor e mais bonito. Pois, em última
análise, está enraizado no teotl, na maneira como as coisas passam por suas mudanças.
Embora os Nahuas não tenham pensado que o prazer é mais do que uma
característica incidental do desempenho de nossa vida, ainda assim há motivos para
agir de maneira alinhada ao prazer. É por isso que a vida enraizada deve ser
considerada uma concepção da “vida boa” e por que os nahuas não enfrentam um
problema relacionado à motivação moral. Até agora, o argumento revisou alguns dos
muitos papéis e ritos em ação na cultura Nahua. O que se vê nessas descrições é que o
trabalhador das penas age com paixão pelo seu ofício. O filósofo age por amor à
sabedoria. E mães e pais agem por amor aos filhos. Essas razões - a saber, paixões,
prazeres e amores, e ainda assim nos fornecem razões para agir. Além disso, são
algumas das motivações mais comuns que temos para empreender uma ação. Procurar
levar uma vida enraizada, então, significa, em última análise, buscar levar uma vida que
vale a pena. Mesmo que o prazer seja incidental a esse modo de vida, ainda temos a
maior quantidade de razões para buscá-lo.
51 A presente discussão utiliza pontos que Aristóteles desenvolve nos livros I e X da Ética a Nicômaco,
mas, por uma questão de clareza, omiti a discussão distinta de Aristóteles sobre o prazer no livro VII.
Não creio que o presente argumento abarque a diferença entre o prazer entendido como uma atividade
ininterrupta, como se encontra em grande parte no livro VII, e o prazer como uma espécie de perfeição
de nossas outras atividades. Sugiro o ensaio de Julia Annas (1980), para uma explicação que reconcilia as
várias declarações de Aristóteles sobre esse assunto.
52 Ética a Nicômaco, 1174b.
6. Esclarecimentos
Duas distinções podem nos ajudar a responder a essa pergunta. Uma diz
respeito à diferença entre neltiliztli, que é uma concepção da vida boa aqui no
tlalticpac, e quaisquer recompensas que se pensasse seguir na vida após a morte. É
verdade que, em crenças religiosas comuns, pensava-se que os guerreiros que caíram
em batalha (de maneiras específicas) e as mulheres que morreram no parto foram para
Tamoanchan. Mas eles não levariam vidas no tlalticpac. Não há nada incompatível
entre a ideia de levar uma vida enraizada no tlalticpac e a de receber recompensas na
vida após a morte por causa de uma ocorrência muito específica. O que parece estar em
jogo na questão é um senso mais amplo de justiça que seria obtido entre as ações
realizadas nesta vida e as recompensas na vida após a morte. No entanto, não está claro
para mim que os nahuas sustentavam tal visão (cristã). Ao abordar as crenças
religiosas, contudo, somos levados a uma segunda distinção pertinente.
55 Cantares Mexicanos, rapazes. 25r e v. A tradução é ligeiramente modificada para facilitar a leitura de
Miguel León-Portilla em Fifteen Poets of the Aztec World, 93.
56 Escrevo “filósofos e anciãos” para indicar a possibilidade de serem grupos distintos, embora
Em resposta, não acho correto afirmar que os Nahuas sustentavam que a teoria
moral central era exclusivamente voltada a comunidade, sem ter também avaliações
corretas para com os indivíduos isolados. Nos textos revisados acima, vários agentes
são criticados por prejudicar outras pessoas diretamente, sem necessariamente ter
prejudicado a comunidade ao prejudicar o individuo. Os próprios textos, então, entram
em conflito com essa interpretação. Além disso, o sócio-holismo é problemático do
ponto de vista filosófico,57 e, portanto, acho que conta para a maior força de suas
posições que os tlamatinimê não estavam inclinados a apoiá-lo.
7. Últimas considerações
O presente ensaio espera ter dado um primeiro passo em direção a uma séria
reflexão filosófica sobre o entendimento ético da boa vida, neltiliztli, entre os Nahuas.
Sua concepção é, de várias maneiras, como a compreensão de Aristóteles da
eudaimonia. O que se busca na vida, eles sustentavam, é uma resposta às condições
básicas da vida aqui em tlalticpac. O que se busca ao escolher fins que estão acima das
meras necessidades, sustentou Aristóteles, é a eudaimonia. Para os nahuas, a poesia
filosófica fornece o melhor tipo de resposta, o melhor enraizamento, em resposta ao
escorregadio tlalticpac, já que a flor e a música (poesia filosófica) duram mais que as
outras criações transitórias. Para Aristóteles, a vida da contemplação teórica é a que
melhor se adapta a um animal que leva sua vida por intermédio do logos. Para ambos,
no entanto, esse melhor modo de vida está relacionado ao objetivo mais amplo de viver
bem em outras atividades, que exigem excelentes qualidades de caráter (isto é,
virtudes) para serem alcançadas. Finalmente, em ambos os casos, a ação correta é
avaliada apelando para uma concepção do que é bom, como alguém floresce, o que é
justificadamente anterior à concepção do direito.
57Acho que os problemas são bem conhecidos. No entanto, para ser um pouco mais específico, um
problema principal enfrentado por qualquer explicação moralmente “holística” da orientação à ação é
que as formas de fascismo passam a ser prontamente suportáveis. Se a comunidade é a unidade última
de preocupação moral, o sacrifício de um indivíduo não tem mais consequências do que o sacrifício de
um dedo gangrenoso para salvar a vida do indivíduo (talvez até menos).
Referências
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Greece: From Homer to the End of the Fifth Century. New York: W. W. Norton and Co.,
1972.
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Essays on Aristotle’s Ethics. Berkeley: University of California Press, 1980, p. 285–99.
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Trans. B. Ortiz de Montellano and T. Ortiz de Montellano. Salt Lake City: University of
Utah Press, 1988.
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translation by John Bierhorst. Stanford: Stanford University Press, 1985.
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TEMKIN, Larry. Rethinking the Good: Moral Ideals and the Nature of Practical Reason.
New York: Oxford University Press, 2012.
YU, Jiyuan. The Ethics of Confucius and Aristotle: Mirrors of Virtue. New York:
Routledge Press, 2007.
Você não pode, é claro, dispensar Hegel. Ele é outro camarada que você levará
algum tempo para digerir. A um breve artigo sobre a lógica na Encyklopädie3 seria um
muito bom começo. Mas você deve pegar a edição do Volume 6 das Werke (Obras
completas de Hegel), e não a edição separada de (Karl) Rosenkranz 4 (1845), porque há
muito mais acréscimos explicativos das palestras na primeira, mesmo que esse idiota
Henning5 muitas vezes não as tenha entendido.
Mas você não deve ler Hegel como Herr Barth 9, a fim de descobrir os silogismos
ruins e esquivas podres que o serviram de alavanca na construção. Isso é trabalho de
estudante puro. É muito mais importante descobrir a verdade e o gênio que se
encontram sob a forma falsa e dentro das conexões artificiais. Assim, as transições de
uma categoria ou de uma contradição para a próxima são quase sempre arbitrárias -
geralmente feitas através de um trocadilho, como quando Positivo e Negativo (§120)
"zugrunde gehen" (perecem) para que Hegel possa chegar à categoria de "Grund"
(razão, fundamento). Pensar sobre isso é perda de tempo.
por Hegel em Heidelberg (1818), e Berlim (1820-29), compilado em 1835 por seu aluno Heinrich Gustav
Hotho.
No seguinte artigo, eu desejo, primeiro, sustentar que a palavra “causa” está tão
inextricavelmente conectada a associações enganosas que tornam desejável sua
completa extrusão do vocabulário filosófico; em segundo lugar, investigar qual
princípio, se algum, é empregado na ciência no lugar da suposta “lei da causalidade”
que filósofos imaginam ser empregada; terceiro, exibir certas confusões, especialmente
com respeito a teleologia e ao determinismo, que me parecem conectadas com noções
errôneas tais como a de causalidade.
1 Texto original: RUSSELL, Bertrand. “On The Notion of Cause” In Proceedings of the Aristotelian Societ:
New Series, Vol. 13 (1912 - 1913), pp. 1-26, 1913.
2 Graduado em Filosofia pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul e mestrando em Filosofia pelo
PPG-Filosofia da mesma instituição. Pesquisa Filosofia da Ciência e Epistemologia com foco em teorias
causais. E-mail: augustof.valmini@gmail.com.
3 N. T.: Russell aqui está se referindo ao Dictionay of Phylosophy and Psychology editado por James Mark
Baldwin, mas não informa a edição que utiliza. As palavras começando com a letra “c” estão no volume 1
e as palavras começando com “n” no volume 2. Conseguiu-se encontrar uma versão de 1901 para o
Volume 1, mas apenas uma de 1920 para o Volume 2. On The Notion of Cause foi apresentado em 1912 e
posteriormente publicado em 1913. Portanto a versão que conseguimos encontrar do Volume 2 do
Sobre a noção de causa
A noção de causa está tão intimamente ligada com a de necessidade que não
será nenhuma digressão perder tempo com a definição acima, com o objetivo de
descobrir, se possível, algum sentido da qual ela é capaz; pois, da maneira posta, está
longe de possuir qualquer significação definida.
O primeiro ponto a se notar é que, caso algum significado seja dado à frase
“seria verdadeiro sob todas circunstâncias”, o sujeito dela deveria ser uma função
proposicional, não uma proposição4. Uma proposição é simplesmente verdadeira ou
falsa, e a questão aí se encerra: não pode haver uma questão de “circunstâncias”. “A
cabeça de Charles I foi cortada” é tão verdadeira no verão quanto no inverno, tanto nos
domingos quanto nas segundas. Portanto, quando vale a pena dizer de algo que “seria
verdadeiro sob todas circunstâncias”, o algo em questão deve ser uma função
proposicional, i.e., uma expressão contendo uma variável, e tornando-se uma
proposição quando um valor é atribuído à variável; as aludidas “circunstâncias”
variando são então os diferentes valores que a variável pode assumir. Portanto, se
“necessário” significa “o que é verdadeiro sob todas circunstâncias”, então “se x é um
homem, x é mortal” é necessária, porque é verdadeira para qualquer valor possível de
x. Portanto deveríamos ser levados à seguinte definição:
Dictionary não foi a utilizada por Russell. Contudo o texto para a entrada de “necessário” não teve
alterações entre a edição que Russell usa do Dictionary e a edição de 1920. Disponiblizamos os
endereços online para ambos os volumes nas referências.
4 Uma função proposicional é uma expressão contendo uma variável, ou uma constituinte
indeterminada, e torna-se uma proposição assim que um valor definido é atribuído a variável. São
exemplos: “A é A” e “x é um número”. A variável é chamada de argumento da função.
A segunda definição não precisa nos deter por muito tempo por duas razões.
Primeiro, por que ela é psicológica: o que deve nos interessar ao considerar a
causalidade não é o “pensamento ou a percepção” de um processo, mas o próprio
E Bergson, que percebeu corretamente que a lei como posta por filósofos é
inútil, ainda assim continua a supor que ela seja usada na ciência. Diz ele então: “Agora,
argumenta-se, esta lei [da causalidade] significa que todo fenômeno é determinado por
suas condições, ou em outras palavras, a mesma causa produz os mesmos efeitos”.
(BERGSON, 2001, p. 199.)
E novamente:
Nós percebemos fenômenos físicos, e esses fenômenos obedecem a leis. Isso
significa: (1) os fenômenos a, b, c, d, previamente percebidos, podem ocorrer
novamente na mesma forma; (2) que um certo fenômeno P, que aparece após
as condições a, b, c, d, e apenas somente após essas condições, não falhará em
acontecer assim que as mesmas condições estiverem novamente presentes.
(Ibidem, p. 202.)
Uma boa parte do ataque de Bergson à ciência repousa na suposição de que ela
emprega esse princípio. Na verdade, ela não emprega tal princípio, mas filósofos –
mesmo Bergson – estão bastante propensos a tomar suas visões sobre a ciência uns
dos outros, não da ciência. Há uma grande concordância entre filósofos de várias
escolas sobre o que é esse princípio. Há, contudo, um número de dificuldades que
surgem de uma só vez. Pelo momento, eu omito a questão da pluralidade de causas, já
que há questões mais graves que devem ser consideradas. Duas das quais, que são
trazidas forçosamente a nossa atenção pela enunciação do princípio acima, são as
seguintes:
(2) Quão longo pode ser o intervalo de tempo entre a causa e o efeito?
O princípio “mesma causa, mesmo efeito”, o qual filósofos imaginaram ser vital à
ciência, é, portanto, completamente supérfluo. Assim que os dados antecedentes são
suficientemente completos que possibilitem que o consequente seja calculado com
alguma exatidão, os antecedentes se tornam tão complicados que é muito improvável
que eles voltarão a ocorrer. Consequentemente, se esse fosse o princípio envolvido, a
ciência permaneceria completamente estéril.
(1) “Causa e efeito devem mais ou menos se assemelharem”. Esse princípio foi
proeminente na filosofia do ocasionalismo e não está de jeito nenhum longe de ser
extinto. Ainda é frequentemente pensado, por exemplo, que a mente não poderia ter se
desenvolvido em um universo que não contivesse nada mental; e um fundamento para
essa crença é que a matéria é muito dissemelhante da mente para que lhe fosse uma
causa. Ou, de modo mais particular, o que se denomina as partes mais nobres da nossa
(2) “Causa é análoga à volição, já que deve haver um nexo inteligível entre causa
e efeito”. Essa máxima, eu penso, está frequentemente e inconscientemente nas
imaginações dos filósofos que a rejeitariam se ela fosse exposta explicitamente.
Provavelmente ela está operando na posição que acabamos de considerar, que a mente
não poderia ter surgido de um mundo puramente material. Eu não declaro saber o que
é significado por “inteligível”; parece significar “familiar à imaginação”. Nada é menos
“inteligível”, em qualquer outro sentido, que a conexão entre um ato da vontade e a sua
realização. Mas obviamente, o tipo desejado de nexo entre causa e efeito é tal que só
poderia se dar entre “eventos” contemplados pela suposta lei da causalidade; as leis
que substituem a causalidade numa ciência como a física, não deixam espaço para
quaisquer dois eventos entre os quais um nexo pudesse ser buscado.
(3) “A causa compele o efeito em algum sentido no qual o efeito não compele a
causa.” Essa crença parece operar amplamente a contragosto do determinismo; mas na
realidade, ela está conectada com nossa segunda máxima, e cai assim que ela é
abandonada. Nós podemos definir “compulsão” do seguinte modo: “É dito de qualquer
conjunto de circunstâncias que ele compele A quando A deseja fazer algo prevenido
pelas circunstâncias, ou [A] se abstém de algo causado pelas circunstâncias”. Isso
pressupõe que algum significado tenha sido encontrado para a palavra “causa” – um
ponto ao qual devo retornar mais tarde. O que agora eu quero tornar claro é que
compulsão é uma noção muito complexa, envolvendo desejos impedidos. Enquanto
uma pessoa faz o que deseja, não há compulsão, por mais que seus desejos possam ser
calculáveis por ajuda de eventos anteriores. E onde o desejo não entra, não pode haver
questão sobre compulsão. Por isso, é geralmente desorientador considerar a causa
como algo que compele o efeito.
Uma versão mais vaga da mesma máxima substitui a palavra “determina” pela
palavra “compele”: nos é dito que a causa determina o efeito num sentido em que o
efeito não determina a causa. Não é muito claro o que se quer dizer por “determinar”; o
único sentido preciso, até onde eu saiba, é aquele de uma função ou de uma relação de
um para muitos. Se admitirmos a pluralidade de causas, mas não de efeitos, isto é, se
supomos que, dado uma causa, o efeito deve ser tal e tal, mas dado o efeito, a causa
pode ser uma entre várias alternativas, então podemos dizer que a causa determina o
efeito, mas não o efeito a causa. Pluralidade de causas, contudo, resulta apenas de se
conceber o efeito de modo vago e restrito – e, a causa, de modo preciso e amplo. Muitos
antecedentes podem “causar” a morte de um homem, porque sua morte é vaga e
restrita. Mas, se adotarmos o caminho oposto, tomando como “causa” a ingestão de
uma dose de arsênico e, como “efeito”, o estado completo do mundo cinco minutos
após, teremos uma pluralidade de efeitos ao invés de pluralidade de causas. Então, a
suposta falta de simetria entre “causa” e “efeito” é ilusória.
(4) “Uma causa não pode operar quando ela cessou de existir, porque o que
cessou de existir não é nada.” Esta é uma máxima comum; e um preconceito não-
expresso ainda mais comum. Ela possui, imagino, muito a ver com a atratividade da
“durée” de Bergson: já que o passado tem efeitos agora, ele deve existir em algum
sentido. O erro dessa máxima consiste na suposição de que “causas” operem de algum
jeito. Uma volição “opera” quando o que ela deseja acontece; mas nada pode operar
exceto uma volição. A crença de que causas “operam” resulta de assimilá-las,
conscientemente ou inconscientemente, às volições. Nós já vimos que, se é que causas
existem, elas devem ser separadas por um intervalo de tempo finito dos seus efeitos e,
portanto, causam seus efeitos após terem cessado de existir.
Pode-se objetar à definição acima de uma volição “operante” que somente opera
quando “causa” o que deseja, não quando meramente acontece de ser seguida pelo que
deseja. Isso certamente representa a posição comum do que se quer dizer por uma
volição “operando”, mas como ela envolve a própria noção de causação que estamos
engajados em combater, ela não nos está disponível como uma definição. Podemos
dizer que uma volição “opera” quando há uma lei em virtude da qual uma volição
similar sob circunstâncias similares será usualmente seguida por aquilo que ela deseja.
Mas essa é uma concepção vaga, e introduz ideias que ainda não consideramos. O que é
principalmente importante notar é que a noção usual de “operar” não nos está
disponível se rejeitarmos, como eu argumentei que deveríamos, a noção usual de
causação.
(5) “Uma causa não pode operar exceto onde ela está.” Essa máxima está muito
espalhada: ela foi impelida contra Newton, e tem permanecido uma fonte de
preconceitos contra a “ação à distância”. Na filosofia ela levou à negação da ação
transiente e, por consequência, ao monismo ou ao monadismo leibniziano. Como a
máxima análoga com respeito a contiguidade temporal, ela repousa sobre a suposição
de que causas “operam”, i.e., que elas são de algum modo obscuro análogas a volições.
E, como no caso da contiguidade temporal, as inferências extraídas dessa máxima
carecem completamente de fundamentação.
Eu retorno agora à questão: qual lei, ou leis, pode-se descobrir para ocupar o
lugar da suposta lei da causalidade?
Primeiro, sem ir além das tais uniformidades de sequências tais como são
contempladas pela lei tradicional, nós podemos admitir que, se alguma dessas
sequências foi observada em um grande número de casos e nunca se descobriu que
falhasse, há uma probabilidade indutiva à qual descobriremos ser mantida em casos
futuros. Se até agora foi visto que pedras quebram janelas, é provável que elas
continuarão a fazê-lo. É claro que isso presume o princípio indutivo, do qual a verdade
pode ser razoavelmente questionada; mas como esse princípio não é de nossa
preocupação presente, eu o tratarei como indubitável nesta discussão. Podemos então
dizer, no caso de qualquer de tais sequências frequentemente observadas, que o evento
anterior é a causa e o evento posterior o efeito.
Em segundo lugar, não será assumido que todo evento possui algum
antecedente que é a sua causa nesse sentido: nós só podemos acreditar em sequências
causais onde as acharmos, sem a pressuposição de que elas sempre serão encontradas.
Nesse sentido, nós devemos desistir da esperança de encontrar leis causais tais
como Mill contemplara; qualquer sequência causal que tenhamos observado pode ser
falsificada a qualquer momento sem a falsificação de quaisquer leis do tipo que as
ciências mais avançadas pretendem estabelecer.
Em quarto lugar, tais leis sobre sequências prováveis, embora úteis na vida
cotidiana e na infância da ciência, tendem a ser substituídas por leis bastante
diferentes assim que uma ciência adquire sucesso. A lei da gravitação ilustrará o que
ocorre em qualquer ciência avançada. Nos movimentos de corpos gravitando
mutuamente, não há nada que possa ser chamado de causa, e nada que possa ser
chamado de efeito; há meramente uma fórmula. Certas equações diferenciais podem
ser encontradas, as quais valem para cada instante para toda partícula no sistema, e
que, e dada a configuração e as velocidades em um instante, ou as configurações em
Sem dúvida, a razão pela qual a velha “lei da causalidade” tem continuado a
impregnar por tanto tempo os livros de filósofos é simplesmente que a ideia de uma
função não é familiar a maioria deles, e por isso eles procuram um enunciado
indevidamente simplificado. Não há questões sobre repetições, da “mesma” causa
produzindo o “mesmo” efeito; não é em qualquer similaridade entre causas e efeitos
em que consiste a constância das leis científicas, mas na similaridade de relações. E
mesmo “similaridade de relações” é uma frase muito simples; “similaridade de
equações diferenciais” é a única frase correta. É impossível afirmar isto acuradamente
em uma linguagem não-matemática; a abordagem mais próxima seria a seguinte:
“existe uma relação constante entre o estado do universo em qualquer instante e a taxa
de variação numa taxa na qual qualquer parte do universo está variando naquele
instante; e essa relação é muitos para um, i.e., tal que a taxa de variação na taxa de
variação é determinada quando o estado do universo é dado”. Se a “lei da causalidade”
deve ser algo a ser descoberto pela prática científica, a proposição acima tem mais
direito ser nomeada assim do que qualquer “lei da causalidade” a ser encontrada nos
livros dos filósofos.
(3) A lei não será verificável empiricamente a menos que o curso dos eventos
dentro de um volume suficientemente pequeno seja aproximadamente o mesmo em
quaisquer dois estados do universo que difiram apenas com respeito ao que está a uma
distância considerável do pequeno volume em questão. Por exemplo, os movimentos
dos planetas no sistema solar devem ser aproximadamente os mesmos como quer seja
que as estrelas fixas estejam distribuídas, desde que todas as estrelas fixas estejam
muito mais distantes do sol do que estão os planetas. Se a gravitação variasse
diretamente como a distância, de modo que as estrelas mais remotas fizessem a maior
diferença para a movimentação dos planetas, o mundo poderia ser tão regular e tão
(4) Embora a velha “lei da causalidade” não seja assumida pela ciência, assume-
se algo que podemos chamar de “uniformidade da natureza”, ou antes é aceito por
bases indutivas. A uniformidade da natureza não afirma o trivial princípio “mesma
causa, mesmo efeito”, mas o princípio de permanência das leis. Isto quer dizer que,
quando uma lei exibe, por exemplo, uma aceleração como uma função da configuração,
e descobre-se, através do passado observável, que foi mantida, é esperado que ela
continuará a se manter no futuro, ou que, se ela não se manter, há alguma outra lei,
concordando com a suposta lei a respeito do passado, que se manterá no futuro. O
fundamento desse princípio é simplesmente o fundamento indutivo que se descobriu
ser verdadeiro em muitas instâncias; consequentemente, o princípio não pode ser
considerado certo; mas apenas com uma probabilidade cujo grau não pode ser
estimado acuradamente.
Em toda ciência temos que distinguir dois tipos de leis: primeiro, aquelas que
são verificáveis empiricamente, mas com probabilidade apenas aproximada; e, em
segundo, aquelas que não são verificáveis, mas podem ser exatas. A lei da gravitação,
por exemplo, em suas aplicações ao sistema solar, é apenas empiricamente verificável
quando se supõe que a matéria fora do sistema solar pode ser ignorada para tais
propósitos; acreditamos que isso seja verdadeiro apenas aproximadamente, mas não
podemos verificar empiricamente a lei da gravitação universal que acreditamos ser
exata. Esse ponto é muito importante em conexão ao que podemos chamar de
“sistemas relativamente isolados”. Esses podem ser definidos como se segue:
O caso onde é dito que um evento A “cause” um outro evento B, o qual filósofos
tomam como fundamental, é realmente apenas a instância mais simplificada de um
sistema praticamente isolado. Como um resultado de leis científicas gerais, pode
acontecer que sempre que um evento A ocorra ao longo de um determinado período,
ele seja seguido por B; nesse caso, A e B formam um sistema que é praticamente
isolado ao longo desse período. Contudo, caso isso ocorra, deverá ser considerado
como um caso de boa sorte; isso sempre se deverá a circunstâncias especiais, e não
seria verdadeiro se o resto do universo tivesse sido diferente apesar de sujeito às
mesmas leis.
Um sistema é dito “determinístico” quando, dado certa informação e1, e2,… en,
respectivamente aos tempos t1, t2,… tn, concernentes a esse sistema, se Et é o estado
desse sistema em qualquer tempo t, [então] há uma relação funcional da forma:
A ilustração acima é importante em sua conexão com uma certa confusão que
parece ter afligido aqueles que filosofaram sobre a relação entre mente e matéria. É
frequentemente pensado que, se um estado da mente está determinado quando um
estado do cérebro está dado; e se o mundo material forma um sistema determinístico,
então a mente está “sujeita” à matéria em algum sentido no qual a matéria não está
“sujeita” à mente. Mas se o estado do cérebro também está determinado quando o
estado da mente está dado, isso deve ser exatamente tão verdadeiro considerando a
matéria como sujeita à mente, como seria considerando a mente como sujeita à
matéria. Poderíamos, teoricamente, desenvolver a história da mente sem sequer
mencionar matéria, e então, ao fim, deduzir que a matéria deve ter, nesse período,
passado por uma história correspondente. É verdade que se a relação entre cérebro e
mente fosse muitos para um, e não um para um, haveria uma dependência
unidirecional da mente sob o cérebro, enquanto que contrariamente, se a relação fosse
um para muitos, como Bergson supõe, haveria uma dependência unidirecional do
cérebro sob a mente. Mas, em qualquer caso, a dependência envolvida é apenas lógica;
não significa que sejamos obrigados a fazer coisas que não desejamos fazer, que é o que
pessoas instintivamente imaginem que tal [dependência] signifique.
de matéria em certos tempos. É uma questão aberta se o mundo da mente e matéria, tal
como o conhecemos, é ou não um sistema mecânico; vamos supor, para fins de
argumentação, que ele é um sistema mecânico. Essa suposição – eu argumento – não
joga qualquer luz sob a questão do universo ser ou não um sistema “teleológico”. É
difícil definir acuradamente o que se quer dizer com um sistema “teleológico”, mas o
argumento não é muito afetado pela definição particular que adotarmos. De modo
amplo, um sistema teleológico é um no qual propósitos são realizados, i.e., no qual
certos desejos – aqueles que são mais profundos, ou nobres, ou fundamentais, ou
universais, ou o que seja – são seguidos por suas realizações. Agora, o fato – se for um
fato – do universo ser mecânico não tem qualquer peso na questão de se o universo é
teleológico no sentido acima. Pode haver um sistema mecânico no qual todos desejos
são realizados; e haver um no qual todos desejos são frustrados. A questão sobre se, e o
quanto, o nosso mundo é teleológico não pode, portanto, ser resolvida provando que o
mundo é mecânico; e o desejo de que ele seja teleológico não é um fundamento para
desejar que ele não seja mecânico.
meramente a lei da contradição. Os fatos parecem ser meramente (1) que desejar
geralmente depende de ignorância, e que é portanto mais comum com respeito ao
futuro do que com respeito ao passado, (2) que quando um desejo se concerne ao
futuro, ele e sua realização muito frequentemente formam um “sistema praticamente
isolado”, i.e., muitos desejos em respeito ao futuro são realizados. No entanto, não
parece haver dúvida que a principal diferença em nossos sentimentos surja do fato
acidental do passado, mas não do futuro, poder ser conhecido pela memória.
quadrado se manterá no futuro: pode ser que alguma das leis previamente
indistinguíveis se manterá. Não podemos dizer que toda lei previamente mantida será
mantida no futuro, porque fatos passados que obedecem a uma lei também obedecerão
a outras previamente indistinguíveis, mas divergentes no futuro. Consequentemente
deve haver, em cada momento, leis previamente não violadas que são agora violadas
pela primeira vez. O que a ciência faz, de fato, é selecionar a fórmula mais simples que
se ajustará aos fatos. Mas isso, muito obviamente, é um preceito meramente
metodológico, não uma lei da Natureza. Se, após algum tempo, a fórmula mais simples
deixar de ser aplicável, a fórmula mais simples que ainda permanece aplicável é
selecionada e a ciência não tem a sensação de que um axioma tenha sido falseado.
Somos então deixados com o fato bruto de que, em muitas áreas da ciência, descobriu-
se que leis muito simples têm se mantido até agora. Não se pode considerar que esse
fato possua algum fundamento a priori; também não pode ser usado para suportar
indutivamente a opinião de que as mesmas leis continuarão; pois a cada momento leis
previamente verdadeiras estão sendo falseadas, ainda que nas ciências mais avançadas
essas leis são menos simples que aquelas que permanecerão verdadeiras. Além disso,
seria falacioso argumentar indutivamente a partir do estado das ciências avançadas
sobre o futuro estado das outras, pois pode muito bem ser que as ciências avançadas
são avançadas simplesmente por que, até agora, seu objeto de estudo tem obedecido
leis simples e facilmente asseveráveis, enquanto que com o objeto de estudo das outras
ciências não tem sido assim.
Servirá para ilustrar o que foi dito, se o aplicarmos à questão do livre arbítrio.
esmagadora, e é bem possível que algumas volições, assim como algumas outras coisas,
não são determinadas, exceto no sentido em que estabelecemos que tudo deve ser
determinado.
(2) Mas, por outro lado, o sentido subjetivo de liberdade, alegado algumas vezes
contra o determinismo, não tem qualquer peso sobre a questão. A posição de que ele
tenha um peso repousa na crença de que causas compelem seus efeitos, ou que a
natureza impõe obediência às suas leis assim como governantes o fazem. Essas são
meras suposições antropomórficas, devido à assimilação de causas com volições e de
leis naturais com éditos humanos. Nós sentimos que nossa vontade não é compelida,
mas isso apenas significa que ela não é outra do que aquela que escolhemos que seja. É
um dos deméritos da teoria tradicional da causalidade que ela tenha criado uma
oposição artificial entre determinismo e liberdade da qual estamos conscientes
introspectivamente.
(3) Além da questão geral sobre se volições são determinadas, há ainda uma
questão sobre se elas são determinadas mecanicamente, i.e., se elas fazem parte do que
foi definido acima como um sistema mecânico. Essa é a questão sobre se elas formam
parte de um sistema com determinantes puramente materiais, i.e., se há leis das quais,
dado certa informação material, torna todas as volições funções dessa informação.
Aqui novamente, há evidência empírica até certo ponto, mas ela não é conclusiva com
relação a todas as volições. É importante observar, contudo, que mesmo se volições
forem partes de um sistema mecânico, isso de forma alguma implica qualquer
supremacia da matéria sobre a mente. Pode muito bem ser que o mesmo sistema que é
suscetível a determinantes materiais também seja suscetível a determinantes mentais;
portanto um sistema mecânico pode ser determinado por um conjunto de volições,
assim como por um conjunto de fatos materiais. Pareceria, por esse motivo, que são
falaciosas as razões pelas quais as pessoas não gostam da posição de que volições são
mecanicamente determinadas.
(α) Uma ação é necessária quando ela será realizada por mais que o agente
possa desejar fazer o contrário. Determinismo não implica que ações são necessárias
nesse sentido.
(β) Uma função proposicional é necessária quando todos seus valores são
verdadeiros. Esse sentido não é relevante para nossa presente discussão.
Referências
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University of Aberdeen in the years 1896-1898. London: Adam and Charles Black, 1903.
Introdução ao Texto
1 Texto original: MEILLASSOUX, Quentin. ‘Time Without Becoming’ in. Mimesis International Philosophy
n. 6. Edited by Anna Longo. 2014.
2 Graduanda em Direito pela Universidade de Brasilia. E-mail: rafaelaborges.fd@gmail.com.
Duas alternativas foram as mais comuns. A primeira foi insistir, como o finado
Stephen Hawking insistiu tanto, na fissão irreconciliável entre ciência e filosofia. As
ciências físicas, químicas, biológicas e astronômicas viram no estado caótico e
alucinatório da filosofia do linguismo uma verdadeira crise da razão. Em crise, a
filosofia não podia mais ajudar, contribuir, ajudar a determinar os rumos da realidade.
A ciência declara independência de uma filosofia perdida na sua própria propaganda,
abraçando um mecanicismo, cientificismo e neopositivismos debilitantes. Não é raro,
até hoje, ouvirmos os alunos de ensino médio, e até mesmo pessoas do ensino superior,
defendendo que são “de humanas” ou são “de exatas”, comprando a fissão
irreconciliável que declara, entre várias coisas, o que não diz: a opção por operar
pontos-cegos de duas áreas que, outrora aliadas, ainda que não sempre harmônicas,
agora se afogam voluntariamente em suas próprias incapacidades obstinadas.
“Coisas-em-si? Elas estão muito bem, obrigado. E como vai você? Você reclama
sobre coisas que não foram honradas por sua visão? Você sente que a estas coisas falta
a iluminação da sua consciência? Mas se você perdeu a liberdade galopante das zebras
na savana nesta manhã, o problema é seu; as zebras não se sentirão tristes que você
não esteve lá. Do contrário, você as teria domado, matado, fotografado ou estudado. Às
coisas-em-si não falta nada da mesma forma que na África não faltavam brancos antes
da chegada deles” (Latour, Irreduções, Interlúdio IV).
Temos também Alain Badiou, nascido em 1937. Desde cedo envolvido com
movimentos políticos, lutou pela descolonização da Algéria e participou de vertentes
maoístas dos protestos do famoso Maio de 1968. Curiosamente, e talvez um pouco
contraintuitivo para o público geral, sua grande paixão intelectual é a matemática e a
lógica. Seus trabalhos sobre a Teoria dos Conjuntos, de George Cantor, geraram
interessantes conexões de ontologia dos números, contingência de conjuntos
extensionais e pensar renovações políticas. Crítico do pós-estruturalismo de Deleuze e
Lyotard, Badiou abraça um renovado platonismo que o aproximou, ao mesmo tempo,
da filosofia da religião e da filosofia da ciência. Sua trilogia O Ser e o Evento (1988, 2006
e 2018) é uma das mais instigantes obras a cruzar tantas áreas, ciências e metafísicas,
mostrando que a criatividade filosófica está longe de ser esgotada. Seu orientando,
Quentin Meillassoux, é nosso próximo tópico.
Muito diferente é a obra de Iain Hamilton Grant (1950). Ele tomou para si a
dificílima missão de sistematizar milhares de páginas da Naturphilosophie (Filosofia da
Natureza) de Friedrich Schelling. De forma independente de Meillassoux, mas com
conexões contra o antropocentrismo e contra a abolição da natureza, Grant recupera o
conceito spinozista de natura naturans, numa reformulação radical da filosofia em
busca de novos temas da ecologia, de novos materialismos, de novas conexões com a
ciência e com políticas ambientais. Seu livro Filosofias da Natureza depois de Schelling
(2006) rapidamente se tornou um dos clássicos do movimento.
O breve seminário de 2007 foi um sucesso para muito além de suas mais loucas
expectativas. Logo, em 2009, uma segunda conferência similar foi organizada na
universidade de Grant, a University of the West of England, Bristol. Estes últimos 13
anos viram uma explosão de novas criatividades, novos movimentos, rupturas, alianças
e conexões em diversos níveis. Correntes vão se associar ao aceleracionismo de Nick
Land e Mark Fischer, às novas filosofias ecológicas de Bruno Latour e Donna Haraway,
às revitalizações da filosofia do processo de Whitehead e às diversas personagens da
ontologia orientada a objetos.
Além desses, vemos várias contribuições advindas dos Estados Unidos, França,
Alemanha, México, Irã e China. No Brasil, decisivamente inspirados por Hilan Bensusan
(UnB), Rodrigo Nunes (PUC/RJ), Moysés Pinto Neto (PUC/RS) e Jean-Pierre Caron
(USP), diversos grupos têm sido organizados sobre o realismo especulativo: o GT
Ontologias Contemporâneas (ANPOF), o grupo MaterialismoS (RJ-RS), o grupo
Anarchai (UnB) e o Seminário Permanente de Filosofia Contemporânea na UnB. Este,
fundado por mim e por Luan Miguel Araújo (Luan Fene), tem a honra de ter a presença
da tradutora deste artigo, Rafaela Borges.
Conclusão
4 Atualmente sob tradução e revisão final por Thiago de Araújo Pinho (Doutorando em Ciências
Sociais/UFBA).
alguns parágrafos. Enquanto a obra maior não é traduzida, apresentamos este artigo
como um exemplo de como um movimento global tão fértil e intrigante surge
debatendo acerca de um problema filosófico moderno, a saber, a crítica de Meillassoux
ao correlacionismo filosófico.
***
O Tempo sem o Tornar-se
Quentin Meillassoux
Eu gostaria de, antes de tudo, dizer que eu estou muito contente de ter a
oportunidade de discutir meu trabalho aqui na Universidade de Middlesex, e eu
gostaria de expressar meu obrigado aos organizadores deste seminário, especialmente
a Peter Hallward e Ray Brassier.
§1 Correlacionismo
É claro, levaria muito tempo para examinar aqui as relações precisas entre
correlacionismo, considerado como o modelo contemporâneo do antirrealismo, e a
complexa história dos críticos ao dogmatismo na filosofia moderna. Mas podemos dizer
5 NT: Usamos a grafia inusual ab-soluto para indicar, como o próprio Meillassoux o faz, algo que está
essencialmente separado do sujeito, não sendo o que lhe constitui naturalmente ou espiritualmente.
Dessa forma, diferenciamos o ab-soluto do Absoluto do idealismo alemão. Cf. Meillassoux, 2006, p. 38,
onde ele nomeia de “O Separado”. Capitalizamos na literalidade do termo no trocadilho ab-solutus, o
“não-soluto” ou o “não dissolvido” no solvente da subjetividade. Cf. Maciel, 2017, p. 54.
6 NT: Qualidades primárias e qualidades secundárias, respectivamente.
1) A coisa-em-si efetivamente existe fora da consciência (ou seja, sei que não há
apenas o fenômeno);
4) E, por último, que a coisa-em-si não pode ser espaço-temporal, visto que
espaço e tempo podem ser apenas formas da sensibilidade subjetiva, e não
propriedades do em-si: em outros termos, não sabemos o que a coisa-em-si é, mas
sabemos em absoluto o que ela não é.
Então, como se pode ver, Kant é bem “tagarela”7 a respeito da coisa-em-si, mas
como se sabe, a especulação pós-kantiana destruiu tais reivindicações ao negar até
mesmo a possibilidade de um em-si fora do sujeito. No entanto, o correlacionismo
contemporâneo não é um idealismo especulativo: ele não diz dogmaticamente que não
há um em-si, mas apenas que não se pode dizer qualquer coisa a respeito deste, nem
mesmo que o em-si existe – e é precisamente por isso que, para mim, o termo “em-si”
desapareceu desses discursos8. O pensamento apenas teria de lidar com um mundo
correlacionado com ele mesmo, e com o fato inconcebível do ser de tal correlação. Que
haja uma correlação pensamento-mundo é o enigma supremo o qual traz, em
contraste, a possibilidade de uma situação completamente diferente. O Tratado Lógico-
Filosófico9 é um bom exemplo de tal discurso, quando designa como “místico” o mero
fato de haver um mundo consistente; um mundo lógico, não contraditório.
7 “Loquacious”.
8 NT: Esta é uma crítica recorrente na obra de Meillassoux, a saber, contra este “agnosticismo
epistemológico” da filosofia moderna e contemporânea.
9 Obra de Ludwig Wittgenstein, traduzida para o português pela Editora da USP. Terceira edição lançada
em 2001.
sujeito para o sujeito. Apelos à intersubjetividade não são considerados aqui, uma vez
que o tempo em questão não é o tempo precedendo tal ou tal indivíduo – este tempo
ainda é social, feito pela temporalidade subjetiva dos ancestrais – mas um tempo
precedente a toda a vida, e então a toda comunidade humana.
um passado para a humanidade o qual não tem mais efetividade do que aquele
estritamente correlacionado com humanos atuais.
Essa questão é tão longe de ser obsoleta para a fenomenologia, que se tornou
um grande questionamento para Heidegger na década de 1930. Ele escreveu a
11 Denis Diderot, "Letter on the Blind For the Use of Those Who See", in Diderot's early philosophical
works, London and Chicago: Open Court 1916, p. 68
12 Immanuel Kant, Crítica da Razão Pura, B XXXIX
O que é muito importante para mim é que eu não finjo refutar o correlacionismo
por meio da ancestralidade: o problema da ancestralidade não é – de forma alguma –
intencionado como uma refutação do correlacionismo, isso seria ingênuo. Na verdade,
no primeiro capítulo de Depois da Finitude, eu simplesmente tento apresentar uma
aporia, ao invés de uma refutação. Isto é, por um lado parece impossível pensar,
através do correlacionismo, a habilidade das ciências naturais em produzir assertivas
ancestrais; mas por outro, parece impossível refutar a posição correlacionista, porque
parece impossível sustentar que poderíamos ser capazes de conhecer quando não
existimos. Como poderíamos pensar a existência da cor sem um olho que a veja, ou a
existência de um som sem um ouvido que o ouça? Como poderíamos pensar o
significado do tempo ou do espaço sem um sujeito consciente do passado, do presente
e do futuro; ou consciente da diferença entre esquerda e direita? E, antes de tudo, como
poderíamos saber disso, uma vez que somos incapazes de ver como o mundo é quando
não há alguém para percebê-lo?
14NT: A referência a Schelling é abundante em obras tardias de Heidegger, especialmente no que tange a
famosa “Filosofia da Identidade” schellinguiana: a pergunta era sobre as condições objetivas da
emergência da subjetividade, não apenas como a subjetividade podia acessar a objetividade.
No entanto, mesmo que não possamos positivamente afirmar que uma teoria
ancestral é efetivamente verdadeira, deve-se sustentar, insisto, que ela pode ser
verdadeira: não podemos saber se essas teorias irão manter sua verdade no futuro,
mas é uma possibilidade a qual não podemos descartar, porque é uma condição do
sentido de tais teorias. Verdade, e verdade considerada como algo tal qual uma
correspondência com a realidade, é uma condição para o sentido das teorias – como as
hipóteses, pode-se preferir uma em comparação a outras.
Mas realismo parece ser a condição de sentido para teorias ancestrais (na
verdade, acredito ser a condição para toda teoria científica, mas não posso demonstrar
isso agora). É por isso que a ideia de ingenuidade mudou: não podemos mais ter
15 NT: Esta é uma referência ao brocardo medieval de que há uma “Adaequatio rei et intellectus”
(adequação entre coisa e intelecto”). A noção geral parece ser rastreável a Platão e Aristóteles, atribuída
por Tomás de Aquino ao filósofo Isaque, o Velho, considerado o pai do neoplatonismo judaico no século
IX.
certeza de que a rejeição da correspondência não é, ela mesma, uma noção ingênua. O
dogmatismo da anti-adequação tornou-se tão problemático quanto o velho
dogmatismo pré-kantiano. Mas a real dificuldade é que é também impossível, a meu
ver, voltar para a velha concepção metafísica de adequação, ou ao realismo ingênuo
que a filosofia analítica às vezes parece perpetuar. Precisamos redefinir a
correspondência, a fim de encontrar um conceito bem diferente de adequação, se
formos seriamente rejeitar o correlacionismo em seu completo poder. Porque, como
veremos, o que descobrimos fora da correlação é muito diferente do conceito ingênuo
de coisas, propriedades e relações. É uma realidade muito diferente da realidade dada.
É por isso, finalmente, que prefiro descrever minha filosofia como materialismo
especulativo, ao invés de realismo: porque me lembro da frase de Foucault, que uma
vez disse: “Sou materialista, porque não acredito em realidade”16.
Então o que temos aqui, para mim, é uma poderosa aporia: a aporia da
correlação versus o arque-fóssil. É esta aporia que tento resolver no Depois da Finitude
– e minha estratégia para resolvê-la consiste em efetivamente refutar o
correlacionismo e elaborar um novo tipo de materialismo científico baseado em um
princípio que chamo de “princípio da factialidade”. Então, vamos agora ver o que esse
princípio significa, e porque é capaz, a meu ver, de fazer o que o correlacionismo diz
ser impossível: conhecer o que existe quando não estamos presentes17.
§3 O Princípio da Factialidade
16 NT: Meillassoux indica aqui que há uma disputa sobre o próprio termo do movimento filosófico.
Embora realismo especulativo seja mais amplo, ele diferencia o seu subtipo como materialismo
especulativo. Provavelmente, isso se deve ao fato de que “realista” carrega toda a carga de ingenuidade
tradicionalmente associada a ela pela filosofia continental, como ele mesmo observa no texto. Além
disso, ele talvez não queira fazer asserções radicais sobre “a realidade é X”, tal como faz Graham Harman
(que diria algo como “a realidade é composta de objetos”) ou Iain Hamilton Grant (que poderia dizer “a
realidade é o fluxo primordial da natureza pré-individuado”). É como se ele quisesse uma filosofia mais
modesta, de descobrir uma matéria da qual as coisas são feitas – e as coisas são “feitas de” facticidade e
de certos caprichos do Hipercaos, sem oferecer uma assertiva muito terminativa sobre a natureza da
realidade como um todo. Ainda assim, ambas as indexações como realista especulativo ou materialista
especulativo são tratadas em geral como funcionalmente equivalentes.
17 NT: A formulação original é “to know what there is when we are not”. A tradução que escolhemos é
para fazer conexão com a crítica às metafísicas da presença – já apresentadas em Heidegger em suas
mencionadas perguntas sobre a realidade sem humanos, mas que, como Meillassoux observa, não foram
levadas tão a sério como o francês propõe a partir do problema da ancestralidade.
18 NT: Esta é a diferença entre dois tipos de correlacionismo que Meillassoux critica no Depois da
Finitude. Ele chama o primeiro tipo de “cercle corrélationnel”, o tal círculo correlacionista. O segundo tipo
ele chama misteriosamente de “pas de danse corrélationnel”, traduzido por Ray Brassier como
“correlationist two-step”, para referenciar à metafísica da (inter)subjetividade. Para fins de simplificação,
chamamos o primeiro tipo de correlacionismo fraco ou simples; e o segundo, de correlacionismo forte ou
radical (Maciel, 2017, p. 49 e ss.).
conhecer o resíduo21. Mas este raciocínio presume que fruímos de um acesso positivo a
uma possibilidade absoluta: a possibilidade de que o em-si possa ser diferente do para-
nós. E essa possiblidade absoluta é fundada, por sua vez, na absoluta facticidade da
correlação. É porque posso conceber o não-ser da correlação, que eu posso conceber a
possibilidade do em-si ser essencialmente diferente do mundo correlacionado com a
subjetividade humana. É porque posso conceber a absoluta facticidade de tudo, que eu
posso ser cético sobre todo outro tipo de absoluto.
§4 O princípio da contradição
Agora, o que se pode dizer sobre esse ab-soluto o qual é identificado como
facticidade? O que é a facticidade uma vez considerada como um ab-soluto, e não como
um limite? A resposta é o tempo. Facticidade como absoluto deve ser considerada como
o tempo, mas um tempo muito específico, o qual chamei em Depois da Finitude de
“Hipercaos”. O que pretendo dizer com esse termo? Dizer que o absoluto é tempo, ou
caos, parece bastante trivial, banal. Mas o tempo que descobrimos aqui é, como eu
disse, um tempo muito especial: não um tempo físico, não um caos comum.
22 NT: Do latim sempiternitas, uma duração temporal infinita dentro de um tempo, não “fora do tempo”
(tal como seria a eternidade). Talvez o exemplo mais acessível seja o “infinito enquanto dure” do Soneto
da Fidelidade de Vinícius de Moraes.
23 NT: O termo surcontingence foi traduzido para o inglês como super-contingency, mas nos parece que o
prefixo “sur-” é aqui análogo à relação entre realismo e surrealismo. Talvez uma tradução aceitável seja
pensar, em analogia, em “surcontingênica”.
24 NT: Martin Heidegger parece ter sido o que primeiramente fez esta observação, mostrando, numa
forma elogiosa, que o mobilismo heraclitiano e o imobilismo parmenidiano não são tão diferentes
quanto parece à primeira vista. Meillassoux, ao contrário, enxerga esta fixidez do tornar-se de forma
negativa, como se fosse uma obrigação fixa do tempo ter de tornar-se eternamente. Alfred N. Whitehead
parece antecipar esta avaliação negativa de Meillassoux quando ele posiciona sua filosofia do organismo
contra teorias da “continuidade do tornar-se” (Whitehead, Processo e Realidade, p. 69).
25 NT: Aqui o público geral pode intuir porque o realismo especulativo, em todas as suas vertentes, se
aproxima do que Graham Harman apelidou de “realismo esquisito” (weird realism), onde é da razão das
coisas mesmas não ter uma razão tão humanoide, tão lapidada a nossos confortos, tão bem-comportada
segundo necessidades acessíveis por nós. Cf. Harman (2012), onde esta proximidade afetiva com o
estranho e o inusual é explorada por Harman na obra do autor de ficção favorito do quarteto original do
realismo especulativo: H.P. Lovecraft.
26 NT: A tradução oferece a chance de um trocadilho interessante. Meillassoux, um entusiasta de Hume,
segue este autor na defesa da importância filosófica da probabilidade, inclusive estatística (embora não
restrita a ela). Podemos, em analogia com a agência do Hipercaos, dizer que, nesta vez, ele agiu assim.
Naquela vez, agiu desta outra forma. Nada garante que o Hipercaos vai agir ou deixar de agir desta forma
nesta ou naquela vez. Este é um raciocínio que, embora fundado no “racionalismo” que Meillassoux
afirma professar, aponta diretamente para a necessidade do empírico, do experimento, do científico:
descobrir a maior ou menor probabilidade de tal vez em que o Hipercaos age ou não age de tal forma. O
tal-vez se torna um novo fundamento para a ciência.
27 NT: Este poema de Mallarmé foi traduzido por Haroldo de Campos como “Um lance de dados jamais
abolirá o acaso”.
Agora parece haver apenas fatos e não mais razão. Como se pode esperar
fundamentar as ciências com tamanho resultado? Penso que há um meio de se resolver
esse novo problema. Como podemos fazê-lo? Minha tese é a de que há condições
específicas da facticidade, as quais chamo de figuras: quero dizer, facticidade é para
mim a única necessidade das coisas, mas ser factual implica não ser qualquer coisa.
Algumas coisas, se existentes, não obedeceriam às estritas e necessárias condições
para serem uma entidade factual. É por isso que essas coisas não podem existir: pois se
existissem, seriam necessárias, e ser necessário, segundo o princípio da factialidade, é
impossível.
NT: Meillassoux faz referência ao famoso princípio da razão suficiente do sistema Leibniz-wolffiano. Cf.
28
29 NT: Esta metafísica paradoxal ganhou muitos adeptos diretos ou indiretos nas várias correntes do
realismo especulativo. Tristan Garcia (2014), no comentário de Jon Cogburn (2017) exerce uma
metafísica paradoxal onde fazer metafísica é fazer metafísica da totalidade, explicando porque esta
mesma totalidade é impossível. O projeto é elaborado de forma similar por Hilan Bensusan (2018), com
inspirações em ambos e na filósofa Anna Tsing. Bensusan e Tsing acreditam que a tarefa da metafísica é
oferecer uma visão maximamente geral sobre a realidade – visão esta que, paradoxalmente, deixa espaço
para outras visões maximamente reais. Ou, Bensusan (2017) coloca de forma diferente, é pensar uma
realidade maior composta de realidades menores, cada uma perspectivada e sem a obrigação de uma
coerência totalizante.
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Por direito, cada membro da sociedade é livre para possuir coisas, mas, como é
livre para possuir o que possui, significa que o capitalismo é livre para possuir os
instrumentos de seu trabalho e o salário de seu trabalhador; como resultado, o direito
à propriedade leva ao sancionamento da regra da desigualdade social.
Por direito, somos todos iguais perante a lei, mas o desemprego, a pobreza, o
trabalho forçado, uma cultura imposta, os tribunais tendenciosos, os júris dominados
por classes e uma polícia que está nas mãos da classe dominante, todos significam que,
na realidade, essa igualdade também é uma mistificação.
Por direito, todos temos a mesma liberdade de pensamento; mas qual é, de fato,
o significado da liberdade de pensamento para quem está morrendo de fome e frio ou
1 Texto original: SARTRE, Jean-Paul. “Avoir faim, c'est deja vouloir être libre”. Publicado na revista
Caliban. n. 20, 1948. Tradução realizada da Edição em inglês, de Adrian van den Hoven, publicada na
Sartre Studies International, v. 7, n. 2, p. 8-11, 2001.
2 Graduando em Filosofia pelo Departamento de Educação do Campus I (Salvador) da Universidade do
É compreensível que eles lhes digam: “Por que você precisa dessa liberdade, que
é expressa apenas por meio de grilhões e opressão? Você pode desistir. Porque o que
você quer, quando está com fome, é comer, e quando está com frio é carvão e roupas;
você está ameaçado pelo desemprego e, portanto, deseja segurança e não um direito
abstrato ao trabalho, mas garantias concretas em uma sociedade que tem pleno
emprego e deseja a paz”.
Existe uma maneira ofensiva de falar sobre liberdade que serve apenas para
fazer dessa liberdade uma arma contra demandas concretas. Quando, por exemplo,
uma pessoa conhecida declarou um dia, enquanto falava das demandas feitas pelas
massas, que elas eram uma expressão de seu materialismo sórdido, é óbvio o que esse
homem fez com esses valores, que a liberdade proporcionou uma arma contra essas
demandas, e que ele desejava que soubesse que não era sórdido e acreditava na
liberdade democrática.
Mas vamos discutir essas mesmas demandas. Vejamos qual é o significado das
exigências de um homem mal alimentado, mal remunerado e com fome. Ele está
simplesmente tentando evitar um desconforto ou tem medo de morrer? É claro que no
fundo existe isso também, mas também existe o medo de se enfraquecer, de ser visto
como um homem enfraquecido, a raiva de ser forçado, apesar de si mesmo, de pensar
apenas em sua barriga, a raiva de ser preso em um impasse, de ser caçado e preso
como um rato. A fome é precisamente em si mesma a exigência de ser algo mais do que
uma barriga, de ser um homem. E não esqueça que um homem não está com fome
sozinho; quando esse homem está com fome, está com todos os camaradas que
pertencem à mesma classe, com aqueles que são tão mal pagos quanto ele; a fome de
alguém desempregado é a de todos os desempregados ao mesmo tempo. Aqui, nessa
mesma fome, no esforço de se livrar dela, a solidariedade está nascendo. Depois, há
também a raiva, porque outros estão comendo; esse sentimento que as pessoas
tentaram insultar, que foi chamado de inveja e ciúme de base, era, pelo contrário, um
desejo de igualdade e justiça. Fome, simplesmente fome que resulta em demandas por
aumento de salário, já é a demanda de um homem que quer se libertar da necessidade,
que quer se libertar de tudo o que o impede de ser homem. A fome já é uma demanda
por liberdade.
Vamos agora dar outro exemplo, a demanda por paz. Hoje, todos os homens, a
menos que sejam enganados, querem trabalhar em paz. Certamente, em primeiro
lugar, existe a idéia correta e digna de que alguém não quer morrer preso em aventuras
sangrentas; mas também existe o ódio de ver o próprio destino, o destino no qual
alguém tenta, através do trabalho, através do trabalho organizado, através do modo
como vive a vida, lutar contra as condições mais dolorosas e que podem ser varridas
pelo desconhecido. Forças que vêm de outro lugar onde e sobre o qual não se tem
controle. Existe também a ideia de que as pessoas querem ter seu destino em suas
mãos. Quer lide com a fome, demandas relacionadas às condições de trabalho ou
demandas de paz, em todos os casos, o que esses homens exigem e buscam é uma
liberdade concreta, ou seja, na situação em que se encontram cada um quer finalmente
ser capaz em uma sociedade sem classes de ser responsável por sua vida.
1 Graduada em Cinema pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro e Mestranda em Estética e
Estudos Artísticos pela Universidade Nova de Lisboa. ORCID: orcid.org/0000-0001-7048-3907. E-mail:
laila.algaves@gmail.com
Laila Algaves Nuñez
Em seu ensaio intitulado A Pele de Cobra, o diretor reflete, atravessado por suas
memórias e fantasias pessoais, sobre o que de si existe em suas obras e sobre sua
relação com a arte. Para ele, a arte, no geral — para além do Cinema –, deve ser
experimentada através de uma relação que não é pré-codificada, que não busca —
porque, em última instância, não possui — sentido. Bergman chega a escrever,
inclusive, que a arte não detém mais a capacidade de determinar ou mesmo influenciar
o desenvolvimento de nossas vidas.
O termo hipócrita nasceu nos palcos. Utilizado em grego para designar o ator —
hypokrites, significava, portanto, nada mais que aquele que desempenha papéis. Com
Platão, porém, o ator será aquele que afasta-se do conhecimento verdadeiro porque
produz uma imitação daquilo que já é, em si, uma cópia imperfeita do ideal. Como
evidência da vitória da perspectiva platônica sobre verdade e mimesis no pensamento
ocidental, pode-se verificar que a suspeição em relação ao uso de máscaras se
inscreveu na língua, vinculando-se, negativamente, ao ocultamento da verdade.
Articulado a acusações morais, o termo sofre, então, um deslocamento de sentido, e
passa a referir-se tão somente àquele que mente. Marca-se, aqui, uma diferença
fundamental entre aparência e verdade.
A busca pela autenticidade é a busca pelo Ser mais essencial, aquilo que seria
imutável e, por conseguinte, verdadeiro. A sustentação de uma Verdade, em oposição
àquilo que é aparência e falso, é, no entanto, um mero artifício, útil à conservação do
homem comum, que precisa de crenças estáveis. Esta demarcação clara entre sujeito e
aparência “não passa de um preconceito moral”, como afirma o filósofo Friedrich
Nietzsche (1886), em Além do Bem e do Mal:
Admita-se ao menos o seguinte: não existiria nenhuma vida, senão com base
em avaliações e aparências perspectivas; e se alguém, com o virtuoso
entusiasmo e a rudeza de tantos outros filósofos, quisesse abolir por inteiro o
“mundo aparente”, bem, supondo que vocês pudessem fazê-lo — também da
sua “verdade” não restaria nada! Sim, pois o que nos obriga a supor que há
uma oposição essencial entre “verdadeiro” e “falso”? 4
verdade no discurso — palavra empregada, desta vez, para designar aquilo que é, de
fato, o real.
Alma, que não por acaso possui este nome, é esta figura de um ser inventivo, que
reconhece e articula suas múltiplas facetas em sua própria estrutura. Diferente de
Elizabeth, que supostamente está preocupada em atingir uma essência, uma natureza
íntima e pura, livre de “mentiras”, a enfermeira sabe que a liberdade nada tem a ver
com a Verdade, o que está claro em sua fala: “Is it really important that you don’t lie,
that you tell the truth, talk with a genuine tone of voice? Can you live without talking
freely? Lie and make excuses? Isn’t it better to give yourself permission to be lazy and
lie?”7. (PERSONA, 1966)
Em termos nietzschianos, Alma teria “se tornado aquilo que é”, expressão que,
de forma alguma, significa assumir uma identidade profunda desde sempre dada.
Significa, ao contrário, o desacorrentamento dos deveres do Ser, abrindo as condições
necessárias ao experimento consigo mesmo para uma auto-constituição radical. É o
vir-a-ser outros, aventurar-se na alteridade e, ao mesmo tempo, dominar esta vastidão
própria, impor uma ordem aos caos interno. É perder-se e criar-se. É fruir de sua
inteireza através de sua multiformidade. E para “que alguém se torne o que se é
pressupõe que não suspeite sequer remotamente o que é. Desse ponto de vista
possuem sentido e valor próprios até os desacertos da vida”8.
7 “É realmente importante que você não minta, que diga a verdade, que fale com um tom de voz genuíno?
Você pode viver sem falar livremente? Mentir e dar desculpas? Não é melhor se dar permissão para ser
preguiçoso e mentir?” (Tradução e Nota do Editor)
9 NIETZSCHE, Ecce Homo, s/d.
concebe, não significa deixar de revisar e suspender a si mesmo, mas, sim, reiterar tudo
aquilo que se descobre ser no trabalho constante de análise — sentido, portanto, em
completa ressonância àquele apresentado por Freud.
Alma e Elizabeth, na medida em que se aproximam cada vez mais, passam a ser
retratadas como a mesma pessoa. Talvez se possa afirmar que são duas personas de
uma mesma pessoa: Alma, que personifica o pecado e a imoralidade sob um aspecto
quase infantil e inocente; Elizabeth, madura, introvertida, marcada por uma repressão
profunda de seus desejos. Em algum aspecto, se assemelham, respectivamente, à
configuração do Isso e do Supereu na construção do Eu.
São os dois polos das várias dicotomias que se apresentam no filme: rosto-
máscara, realidade-aparência, eu-outro, real-imaginário, palavra-silêncio, alma-corpo,
sombra-luz. Em última instância, são as várias dicotomias que nos constituem como
seres humanos, sendo a principal delas o conflito psíquico entre Elizabeth, aquela que
recalca e adoece, e Alma, aquela de onde provém a cura.
Referências
BERGMAN, Ingmar. Images: My Life in Film. Nova Iorque: Arcade, 1990, p. 112.
NIETZSCHE, Friedrich. Ecce Homo, s/d. Versão Digital. Disponível em: <lusosofia.net/
textos/nietzsche_friedrich_ecce_homo.pdf>. Acesso: nov. 2016.
NIETZSCHE, Friedrich. Além do Bem e o do Mal, s/d. Versão Digital. Disponível em:
<neppec.fe.ufg.br/up/4/o/Al__m_do__Bem_e_do_Mal.pdf>. Acesso: nov. 2016.
PERSONA. Direção: Ingmar Bergman. AB Svensk Filmindustri: 1966. P&B. (125 min).
OUTERBRIDGE, David. Liv ullmann sem falsidades. Rio de Janeiro: Nórdica, 1979.
PEREIRA, Cássia Maria Chaffin Guedes. A perdão criadora. 212 f . Tese (Doutorado em
Psicologia). Departamento de Psicologia, Pontifícia Universidade Católica do Rio de
Janeiro. Rio de Janeiro, 2011.
E quem me vê apanhando da
vida duvida que eu vá revidar
Tô me guardando pra quando o
carnaval chegar
Eu vejo a barra do dia surgindo,
pedindo pra gente cantar
Tô me guardando pra quando o
carnaval chegar
Eu tenho tanta alegria, adiada,
abafada, quem dera gritar
Tô me guardando pra quando o
carnaval chegar…”
– Chico Buarque
1 Licenciada em Filosofia pela Universidade do Estado da Bahia. Atua como idealizadora do projeto
Zuruba de pesquisa e produção de imagens e suas relações sociais. Em suas realizações audiovisuais
atuou como diretora nos documentários Tríduo de Santo Antônio (2019), Lembranças de um não eu
(2019) e nas Web séries Vidas em branco (2018) e Diário de artista suburbano (2020). Atualmente dirige
a série Diz aí Juventudes do Canal Futura. E-mail: franciele.oliveira1996@gmail.com.
Estou Me Guardando para Quando o Carnaval Chegar
cenário do cinema nacional por produções como Cinema, aspirinas e urubus (2005) e
Viajo porque preciso, volto porque te amo (2009). Um dos horizontes das discussões que
envolvem o longa documental é sobre a propaganda que o neoliberalismo produz e
afirma: “Seja autônomo! Empreenda seu negócio e permaneça dono do seu tempo.”.
Essas são frases que manipulam e cooptam indivíduos diariamente, girando a chave da
subjetividade e ressignificando sonhos e realizações pessoais. A obra retrata o
desenvolvimento industrial na cidade de Toritama, situada no agreste do Pernambuco,
a 164 km de Recife. O local que é conhecido como a capital do Jeans, ocupa o segundo
lugar na produção do segmento no Brasil. A cidade permanece numa movimentação
frenética durante boa parte do ano, exceto no carnaval, quando quase todos os
moradores vão festeja-lo em outros locais, transformando a intensa velocidade do local
em silêncio e vazio.
Estou me guardando para quando o carnaval chegar tem seu roteiro e direção
executados sob a égide do confronto entre as memórias de infância e uma realidade
presente de Toritama. O confronto se estabelece quando, ao retornar à cidade depois
de muitos anos, o narrador encontra um cenário completamente distinto. As memórias
de infância, fixadas por um conjunto de imagens que apresentam a cidade como
símbolo de silêncio e calma, com atividades produtivas que se limitavam a criação de
gado e ao cultivo de mandioca e feijão, dão lugar a um espaço tomado por fábricas, um
incessante som produzido pelas máquinas de costura e o grande movimento de motos
e carros que executam o transporte das peças. A todo momento, o tempo, elemento
responsável por “costurar” a narrativa, nos interpela. Passado e presente como
dualidade temporal, quando confrontados, nos possibilitam a elaboração de críticas
sobre manipulação dos espaços que, por vezes, tornam-se irreconhecíveis física e
culturalmente.
panorama tão complexo, mas permite a partir de sua linearidade e porosidade, que
nossa razão visualize como as estratégias desse sistema agem e o que elas provocam,
tornando-se um material de cunho pedagógico, que possibilita enxergar de modo mais
organizado, as relações sociais de trabalho no Brasil contemporâneo. Como sua
conclusão, podemos pensar que o tempo que aqueles trabalhadores entregam a um
sistema que não identificam de forma límpida não pode ser tomado de volta, assim,
entregam além de sua força de trabalho também sua vida em busca de uma falsa
autonomia. O antigo vazio de Toritama que se dava nas ruas agora ganha outro lugar, o
da existência.
Referências