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Vol. 1, n.

1
Salvador, 2020
Trabalhos de Filosofia Geral
Salvador, Vol. 1, n. 1, 2020

PUBLICAÇÃO

Universidade do Estado da Bahia


Departamento de Educação – Campus I
Curso de Licenciatura em Filosofia

DESIGNER E DIAGRAMAÇÃO

Flávio Rocha de Deus

Anãnsi: Revista de Filosofia / Universidade do Estado da Bahia.

Disponível na internet: revistas.uneb.br/index.php/anansi

Curso de Licenciatura em Filosofia. – v. 1, n.1 (2020) – Salvador: Departamento de


Educação / UNEB, 2020. Quadrimestral. ISSN:. 1. Periódico. 2. Filosofia 3. Universidade
do Estado da Bahia. 4. Departamento de Educação – Campus I.

Universidade do Estado da Bahia.


Departamento de Educação I - Colegiado de Filosofia.
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Vinícius dos Santos (UFBA)

Anãnsi: Revista de Filosofia, Salvador, v. 1, n. 1, 2020.


Sumário

Editorial “O que é isto – as filosofias?” ........................................................................... 07


Flávio Rocha de Deus (UNEB)

• Artigos

Marx: a comuna camponesa russa e a teoria marxiana da revolução ......... 12


Nilo Sergio Silva Aragão (UNI7)

A metempsicose no discurso de Dolmancé: a influência do pensamento


materialista nos personagens de Sade ........................................................................... 28
Nilton Marlon Antônio (UFPR)

A Subjetividade que reflete duas almas: Hegel e Machado de Assis sobre a


Dialética do Homem-Mundo ................................................................................................ 37
Marcos Bruno Silva (UFG)

A dialética negativa de Theodor Adorno contra o idealismo absoluto de


Hegel .................................................................................................................................................. 49
Cleidson de Jesus Rocha (UFAC)

Para uma filosofia jurídica da libertação: breves notas de uma crítica à


juridicidade moderna a partir da Transmodernidade Dusseliana ............... 63
Diego Miranda Aragão (UECE)

Surdez e Ensino de Filosofia: entre a coexistência e a simbiose na educação


básica ................................................................................................................................................. 83
Brennan Cavalcanti Maciel Modesto (UFPE)
Violência simbólica no feminismo hegemônico .................................................... 102
Matheus Guimarães Barros (UFJF)

• Ensaios

Notas para a crítica da Violência .................................................................................... 115


Alan Sampaio (UNEB)

Brasil Viral: Panóptico-Bionecropolítico ................................................................... 143


João Vitor dos Santos Cruz (UNEB)
Leonardo Rodrigues Almeida (UNEB)

• Traduções

“Eudaimonia e Neltiliztli: a concepção de boa vida em Aristóteles e na


Filosofia Asteca” de Lynn Sebastian Purcell ................................................................. 150
Tradução de Flávio Rocha de Deus (UNEB)
Apresentação de Lynn Sebastian Purcell (SUNY Cortland, USA)

“Sobre a importância de Hegel” Carta de Engels a Conrad Schmidt ................ 176


Tradução de Carlos Eduardo Nogueira Facirolli (UNESP)

“Sobre a noção de causa” de Bertrand Russell ........................................................... 178


Tradução de Augusto Lucas Valmini (UFRGS)

“O tempo sem o tornar-se” de Quentin Meillassoux ................................................ 196


Tradução de Rafaela Silva Borges (UNB)
Introdução, Revisão e Notas de Otávio Souza e Rocha Dias Maciel (UNB)

“Estar com fome já é querer ser livre” de Jean-Paul Sartre ................................ 220
Tradução de Flávio Rocha de Deus (UNEB)

Anãnsi: Revista de Filosofia, Salvador, v. 1, n. 1, 2020.


• Resenhas

Persona e a inútil busca pelo Ser: um olhar psicanalítico sobre o ofício do


ator e o problema da autenticidade .............................................................................. 223
Laila Algaves Nuñez (Universidade Nova de Lisboa, Portugal)

Tempo, Trabalho e Autonomia no Brasil Contemporâneo: Estou Me


Guardando para Quando o Carnaval Chegar ........................................................... 228
Franciele Oliveira Bispo / Fanny Oliveira (UNEB)
Editorial

Editorial
O que é isto – as filosofias?

Este momento inaugural, no qual vem à luz a Revista Añansi, constitui uma
mescla singular: de um lado, a felicidade própria a todo gesto criador, e, de outro, a
possível aflição causada pela responsabilidade de conduzir um discurso portador de
ideias que se interseccionam na construção deste projeto. Acrescente-se a isto o
desafio especial de redigir o editorial do primeiro número da Revista, agravado pelo
fato de tratar-se de uma publicação centrada em estudos de Filosofia. Ocorre que este
primeiro editorial precisa não apenas apresentar com clareza e coerência as intensões
do periódico, como se dar ao trabalho de delimitar o que a Revista entende e propõe
como filosofia, esta filosofia que nos dedicaremos a divulgar.

Em seus primeiros parágrafos de O que é isto – a filosofia? Heidegger discorre


sobre as dificuldades de delimitar o fazer/ser filosofia e sua abertura a distintas
possibilidades conceituais. Mesmo tendo oferecido algumas possibilidades de resposta:
“atarefamento da razão”; o “corresponder ao ser do ente”; “competência da busca do
ente enquanto é”; ou epistéme theoretiké, Heidegger é muito assertivo ao perceber que
a vastidão de tal debate sempre nos guiará a posições abertas. Mesmo representando
consistentes possibilidades de caminhos hermenêuticos, ainda assim, cada um destes
caminhos é apenas mais um dentre outros. Nós, portanto, apresentaremos um outro
dentre os outros.

Heidegger vai nos dizer que a questão não é falarmos sobre a filosofia, como se
estivéssemos acima dela, vendo-a de longe, sendo necessário colocar-se fora do mundo
– como se isso fosse possível – para tentar compreendê-la. O que Heidegger vai
estabelecer como caminho é penetrar na filosofia, de forma subserviente, de modo que
possamos “submeter nosso comportamento às suas leis”. Porém, aqui haveremos de
concordar que tal concepção de caminho já é ultrapassada. A questão aqui não é
submeter nosso comportamento às leis da filosofia, pois é sabido que nosso próprio
agir no mundo cria a filosofia. A experiência filosófica transita entre o refletir,
rememorar e imaginar, que influenciam nosso agir e nosso estar.

Entender a filosofia não só como coisa, mas como coisa humana, já traz uma
obviedade. Ela é diversa em seus sentidos, em seus locais, em seus métodos e suas
línguas, pois há os mais diversos tipos de povos. Quando falamos de filosofia, falamos
essencialmente de pessoas e, consequentemente, de discursos. O que nos orienta à
nossa segunda consideração crítica.

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Editorial

Assim como filmes e pessoas, nem todos os textos envelhecem bem. Heidegger
anuncia: "[...] flosofia ocidental-europeia é, na verdade, uma tautologia. Por quê?
Porque a ‘filosofia’ é grega em sua essência." O que percebemos em Heidegger, neste
texto, é que a defesa de sua perspectiva do que seja filosofia se reduz à experiência do
sentido inscrito na palavra originária “filosofia”. O que aparenta uma confusão entre as
palavras e as coisas. A palavra Φιλοσοφία é grega, mas o que ela aponta é universal, se
manifesta em todo o globo. Certa vez, me contaram a história de um senhor de meia
idade que narrou a história de um homem, argumentando em seguida que apenas os
homens que viveram tal exata sequência de fatos em vida seriam homens de verdade.
Heidegger faz a mesma coisa com a filosofia. Nunca é sobre ela propriamente, mas
sobre a história e as particularidades de tempo e espaço que corroboram o
entendimento mais grego possível de um som. Esta leitura apenas favorece discursos
eurocêntricos e de hierarquização filosófica.

Tendo estabelecido: 1. A filosofia essencialmente como coisa humana, vinculada


à cultura, legítima em todas elas e, consequentemente, diversa; 2. A existência de uma
vastidão de determinações que nos orientam a considerações abertas, sendo qualquer
caminho apenas mais um dentre outros – nesse jogo metafilosófico, é possível afirmar
que a filosofia extrai seu vigor justamente da possibilidade de suas múltiplas origens.
Aqui nos encontramos criteriosamente livres para ressignificar a filosofia e associá-la a
algo novo: por exemplo, às meninas do brasil.

Aqueles que possuem o prazer de morar em Salvador, em algum momento,


provavelmente, já devem ter passado pelas obras de arte da falecida artista, natural do
interior baiano, Eliana Kertész. As três enormes esculturas de bronze que ornamentam
a rua Adhemar de Barros, nomeadas pela autora como Meninas do Brasil, mais
conhecidas como “As gordinhas de Ondina”, têm muito a nos oferecer em seu
simbolismo. As três moças: Damiana, Mariana e Catarina, apresentam, cada uma,
respectivamente, traços faciais que rememoram as três etnias fundamentais na
formação da cultura brasileira. Damiana olha para o oceano, em busca de sua África
mãe; Mariana, olhando em um outro ângulo, procura a Europa portuguesa; e Catarina
dirige seu olhar para o interior da América profunda. Estas esculturas não realizam
apenas uma feliz abertura da arte a novas formas de representar o corpo feminino no
cenário brasileiro, como também apresentam a busca das diversas matrizes culturais
inspiradoras do pensar.

A proposta de Anãnsi é ser uma revista que reforce a pluralidade do


pensamento filosófico e suas diversas legitimidades, tendo como foco não apenas a
publicação de trabalhos com temáticas "clássicas", mas também contemporâneas e
outras menos usuais. Acreditamos fortemente na vitalidade da comunidade filosófica e
vemos na construção deste portal a reafirmação de nossa atuação crítica e criadora no
campo acadêmico cada vez mais presente, mesmo em tempos de déjà vu inquisitorial.
Esperamos que os trabalhos produzam discussões filosóficas que, assim como nossas
Gordinhas de Ondina, sejam exemplos de uma nova possibilidade de conceber nossas
atividades. Assim como elas buscam a imagem dos mais diversos continentes e povos,

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Editorial

o filósofo também deve olhar para todas essas direções, para entender melhor a
realidade pelos mais distintos pontos de vista e, consequentemente, as filosofias que
nossa espécie produziu. Anãnsi: Revista de Filosofia, portanto, se apresenta a nós como
este periódico internacional de divulgação de trabalhos de Filosofia em seus diversos
formatos: artigos sobre as conclusões de nossas investigações, ensaios sobre nossos
questionamentos, traduções que consideramos importantes para a comunidade
brasileira e resenhas em geral. Aceitamos não apenas resenhas de livros que
representem significativa contribuição de leitura para nossa área, mas também de
filmes e eventualmente de obras de arte como pinturas, esculturas e fotografias. Na
contemporaneidade não podemos negar a influência de filmes e das imagens em nossa
vida cotidiana e nas reflexões individuais que realizamos sobre nossos
comportamentos.

Publicada pelo Curso de Licenciatura em Filosofia do Departamento de


Educação do Campus I da Universidade do Estado da Bahia, a Revista Anãnsi se
organizará como um periódico quadrimestral. Apesar de, pelas mais diversas
contingências, neste volume seus dois primeiros números saírem respectivamente nos
meses de setembro e dezembro, a partir do próximo ano, nossas edições serão
publicadas na última semana dos meses de março, julho e novembro. Nossa primeira
edição conta com trabalhos variados de filosofia em geral. Ficamos felizes por
conseguir, dentre os trabalhos avaliados para esta edição, selecionar dezesseis escritos
para contribuir com o debate contemporâneo.

Em nosso primeiro trabalho, intitulado “Marx: a comuna camponesa russa e a


teoria marxiana da revolução”, Nilo Sérgio Silva Aragão realiza um mapeamento das
concepções de Marx acerca das possibilidades revolucionárias na Rússia a partir do
final do século XIX.

O segundo e o terceiro trabalhos realizam intersecções entre a filosofia e a


literatura. Nilton Marlon Antônio realiza uma análise dos discursos de Dolmancé sobre
a metempsicose materialista, relacionando-os com as influências filosóficas de Sade em
“A metempsicose no discurso de Dolmancé”; e Marcos Bruno Silva, em “A Subjetividade
que reflete duas almas”, nos apresenta as considerações do filósofo alemão George
Hegel e do escritor brasileiro Machado de Assis acerca da dialética do Homem-Mundo.

Cleidson de Jesus Rocha, em “A dialética negativa de Theodor Adorno contra o


idealismo absoluto de Hegel”, expõe a crítica do filósofo da Teoria Crítica, contida na
introdução à Dialética Negativa, e suas considerações contra o amordaçamento da
dialética na positividade, para apontar possíveis lacunas no idealismo absoluto do seu
opositor.

Diego Miranda Aragão nos oferece algumas reflexões acerca da possibilidade de


uma Filosofia Jurídica da Libertação, contraposta aos pilares liberais-positivistas
tradicionais do Direito, em seu trabalho intitulado “Para uma filosofia jurídica da
libertação: breves notas de uma crítica à juridicidade moderna a partir da
Transmodernidade Dusseliana”.

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Editorial

No sexto artigo, “Surdez e Ensino de Filosofia”, Brennan Cavalcanti Maciel


Modesto levanta reflexões acerca das particularidades do ensino de filosofia na
educação básica para pessoas portadoras de deficiência auditiva, debatendo não só a
possibilidade e os limites da tradução dos conceitos filosóficos, como a eficiência do
ensino de filosofia nestes casos.

No último trabalho da seção de artigos, Matheus Guimarães Barros elege a


violência como temática central. Em seu texto “Violência simbólica no feminismo
hegemônico”, o autor apresenta argumentos acerca da categorização de indivíduos
como “mulheres”, enquanto identidade universalizante no movimento feminista, e a
ideia de vulnerabilidade como essência do corpo feminino, aproximam o feminismo
hegemônico da opressão que espera combater.

Na seção de Ensaios, tivemos duas publicações. “Notas para a crítica da


Violência” de Alan Sampaio e “Brasil Viral: Panóptico-Bionecropolítico”, escrito por
João Vitor dos Santos Cruz e Leonardo Rodrigues Almeida. Sampaio nos traz um
trabalho que elenca dados e questões acerca da forma como a violência se revela.
Partindo de autores como Marx, Nietzsche e Benjamin, incluindo outros filósofos
contemporâneos ao debate, o autor retira formas de inteligibilidade do fenômeno. Já
Cruz e Almeida, munem-se das reflexões de Foucault, Orwell e Mbembe para uma
melhor compreensão das práticas de poder que estão se formando no Brasil durante a
pandemia do COVID-19, o foco dos mesmos é a importância do uso de dados para a
implementação dessa configuração e a intensificação da política de terror nas favelas.

Na seção de Tradução, o primeiro texto, “Eudaimonia e Neltiliztli: a concepção


de boa vida em Aristóteles e na Filosofia Asteca”, de Lynn Sebastian Purcell, traduzido
por Flávio Rocha de Deus, representa, no Brasil, uma publicação “pioneira” na
divulgação de estudos da área. O trabalho foi realizado em parceria com o próprio Lynn
Purcell, que também se encarrega de escrever a apresentação do texto desta edição. O
Prof. Purcell é docente da State University of New York College at Cortland e um dos
pesquisadores mais ativos no estudo da filosofia dos povos pré-colombianos,
especificamente da civilização Asteca. Vislumbrando a inexistência de publicações
acadêmicas acerca do tema em língua portuguesa, o autor se sentiu muito feliz em nos
auxiliar na tradução e apontar adendos em nosso texto. Anãnsi, portanto, muito se
alegra em ser a primeira revista brasileira de filosofia a publicar material acadêmico
sobre o assunto.

Ainda na seção de traduções, encontraremos a Carta de Engels a Conrad


Schmidt, “Sobre a importância de Hegel”, traduzida por Carlos Eduardo Nogueira
Facirolli; o texto “Sobre a noção de causa”, de Bertrand Russell, traduzido por Augusto
Lucas Valmini; “O tempo sem o tornar-se”, de Quentin Meillassoux, texto com tradução
de Rafaela Silva Borges e Introdução, Revisão e Notas de Otávio Souza e Rocha Dias
Maciel; e o ensaio “Estar com fome já é querer ser livre”, escrito por Jean-Paul Sartre e
traduzido, também, por Flávio Deus.

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Editorial

Na seção de Resenhas, tivemos dois textos dedicados à análise de filmes. O


primeiro deles, de Laila Algaves Nuñez, discorre acerca do filme Persona (1966) e a
inútil busca pelo Ser, elencando, através de um olhar psicanalítico, o ofício do ator e o
problema da autenticidade. Encerrando esta edição, nosso último texto, de autoria de
Fanny Oliveira, em sua resenha do filme Estou Me Guardando para Quando o Carnaval
Chegar (2019), traz reflexões e apontamentos críticos sobre o tempo, o trabalho e a
autonomia no Brasil contemporâneo.

Com esta relação de trabalhos, firmamos este novo passo para o fortalecimento
dos estudos filosóficos no nosso país. Em jargão aristotélico, diríamos que assumir
Añansi como nossa causa final foi um processo que não teria sido possível sem os
diversos agentes que, como causas eficientes, tornaram isto possível. Em especial,
acredito ser justo marcar quatro destacados agradecimentos. Primeiro, à Profª Maura
Icléa Cardoso de Castro, que, com seus anos de experiência editorando a Revista da
FAEEBA, no final de uma tarde quente estendeu seu horário de saída para nos explicar
cada passo do processo de criação e editoração de periódicos. Segundo, ao Profº
Luciano Costa Santos, que sempre se predispondo a encorajar e auxiliar atividades de
bom espírito, se mostrou disponível e atento a todo processo de coordenação e
editoração da revista. Terceiro, a todos os membros fixos do corpo editorial e eventuais
pareceristas ad hoc, que, no assíduo trabalho de revisão e avaliação, nos permitem
realizar uma qualificada triagem de trabalhos para divulgar à comunidade acadêmica.
Por fim, aos funcionários da Gerência de Informática (GERINF) da UNEB, que nos
auxiliaram tanto na construção como no manejo da plataforma de periódicos.

O nome “Anãnsi” é uma homenagem ao herói africano homônimo. Conta a lenda


que, vivendo em mundo triste pela inexistência de histórias, pois eram todas de
propriedade do deus do céu Nyame, Anãnsi realizou a façanha de vencer os desafios
impostos pelo deus para conquista-las e, depois, voltou ao mundo para dividi-las com
os homens. Atividade esta que nos esforçaremos para manter viva através desta
revista.

Flávio Rocha de Deus – Editor


Universidade do Estado da Bahia

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Universidade do Estado da Bahia
Departamento de Educação – Campus I
Anãnsi: Revista de Filosofia, Salvador, v. 1, n.1, 2020

Marx: a comuna camponesa russa e a


teoria marxiana da Revolução
Marx: a russian peasant commune and the marxian
theory of the Revolution
Nilo Sérgio Silva Aragão 1

Resumo: Durante os anos 1872 e 1883 – ano de sua morte –, Karl Marx aprendeu russo para se dedicar
a um estudo de grande fôlego sobre as possibilidades de transformação social da Rússia,
particularmente sobre o papel que a comuna rural russa poderia desempenhar em uma transição ao
socialismo. Torna-se cada vez mais clara nesses estudos, cartas, textos, prefácios, uma concepção não-
linear e não-determinista de história. Essa abertura a uma pluralidade de formas da transição ao
socialismo tem uma enorme importância no debate sobre a revolução na Rússia e nos países atrasados,
nas vicissitudes dos bolcheviques no poder e do papel das classes populares nos processos
revolucionários. Essa concepção da história como totalização aberta, como processo de disputa que é
feito e refeito na transformação da realidade, posiciona Marx como um autor que propõe uma
antifilosofia e, assim, confronta toda a tradição que isolou a filosofia da vida, das dores e mudanças do
mundo.

Palavras-chave: Marx e Marxismo. Comuna Russa. Revolução. Transição Socialista.

Abstract: During the years 1872 and 1883 - the year of his death -, Karl Marx learned Russian in order
to dedicate himself to a great study about the possibilities of social transformation of this country,
particularly on the role that the rural Russian commune could perform in the transition to the socialism.
In these studies, letters, texts, prefaces, a non-linear and non-deterministic conception of history
becomes increasingly clear. This openning to a plurality of forms of the transition to socialism is of great
importance to the debate about the revolution in Russia and in back countries, in vicissitudes of the
Bolsheviks in power and in the role of the popular classes in the revolutionary processes. This
conception of history as open totalization, as a process of dispute that is made and remade in the
transformation of reality, positions Marx as an author who proposes an antiphilosophy and, thus,
confronts the whole tradition that isolated of life and pains and world changes the philosophy.

Keywords: Marx and Marxism. Russian Commune. Revolution. Socialist Transition.

1 Graduado em Ciências Sociais pela Universidade Federal do Ceará e professor nos cursos de extensão
universitária do Centro Universitário Sete de Setembro (UNI7). É autor de livro didático de filosofia para
o ensino fundamental pelo Sistema Ari de Sá. É também professor do ensino médio da rede particular de
ensino em Fortaleza, Ceará, Brasil. E-mail: niloarag@gmail.com
Nilo Sergio Silva Aragão

Este artigo busca iniciar um processo de mapeamento das concepções de Marx,


sobretudo, e Engels, sobre as possibilidades revolucionárias na Rússia a partir do final
do século XIX, entrecruzando-se com as suas considerações a respeito do processo
histórico desigual e combinado do capitalismo. Se como afirma Étienne Balibar, Marx é
“antifilósofo” ao propor uma não-filosofia, é legítimo imaginar que está, assim, lançado
um desafio que exige da filosofia sua reaproximação transformadora da realidade,
como Marx declara na décima primeira das Teses sobre Feuerbach: “Os filósofos
apenas interpretaram o mundo diferentemente, imposta é transformá-lo” (MARX,
2007, p. 613).

Assim, teremos em Marx uma “crítica do progresso”, não como abstração, mas
como resultado concreto da análise histórica, que só pode efetivar-se em um programa
de transformação radical da vida social, das relações de produção e propriedade que
compreende as contradições presentes neste procedimento. O filósofo Daniel Bensaid
esclarece que não temos uma proposição do tipo “filosofia da história em seu sentido
único”. A ambição é outra, mais profunda e impactante: simplesmente “uma nova
escrita da história” (BENSAID, 1999, p. 13). Em sua avaliação, o alfabeto dessa nova
escrita,
[...] já vem proposto nos Grundrisse. O Capital, portanto, põe em ação uma
nova representação da história e uma organização conceitual do tempo como
relação social: ciclos e rotações, ritmos e crises, momentos e contratempos
estratégicos. A antiga filosofia da história extingue-se, por um lado, na crítica
do fetichismo mercantil e, por outro, na subversão política da ordem
estabelecida. (BENSAID, 1999, p. 13).

É, desse modo, que a crítica da razão histórica impõe uma dimensão mais ampla
e incerta, que exige novos meios para poder desvendar a processualidade do real e
contribuir com sua superação. Se O Capital é um momento ímpar nessa nova escrita a
exigir um novo alfabeto, se, como propõe Bensaid, esse procedimento inovador já se
encontra nos Grundrisse e se desenvolve na obra mais significativa de Marx, ele não
termina aí. Não isento de tensões teleológicas e ainda presas às “ideologias do
progresso”, é no debate sobre as condições russas que Marx e Engels afinam suas
concepções sobre o papel das determinações históricas. Daí sua relevância e a
necessidade de seu estudo.

Em 1911, David Riazanov, militante marxista e revolucionário ucraniano,


encontra entre os papéis de Paul Lafargue – militante socialista e um dos
testamenteiros de Marx – esboços de uma carta de K. Marx. Sua destinatária era a
revolucionária russa Vera Zasulitch, que pertencia a uma fração dissidente do
movimento narodiniki – os chamados “populistas” russos. O movimento narodiniki
havia surgido em meados do século XIX como uma opção política para a intelligentsia
russa diante dos impasses e possibilidades do futuro do país: era necessário “ir ao
povo” – povo concebido como o camponês russo – em que sobreviveria um espírito e
uma prática comunitária em decorrência da sobrevivência da propriedade camponesa

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Marx: a comuna camponesa russa e a teoria marxiana da Revolução

coletiva. O encontro entre a intelligentsia e o mujique permitiria criar uma solução


russa para o problema do progresso do país. Assim
A “campanha ‘Ir ao Povo’ em 1873-1874, mobilizou milhares de jovens
universitários que abandonaram os bancos escolares e foram para o campo
viver, trabalhar, comer e vestir como os camponeses, e organizá-los para a
revolução” (FERNANDES, 1982, p. 31).

Esse poderoso movimento foi levado a um impasse pelo seu próprio sucesso,
pois instalou-se uma forte repressão por parte do governo czarista. E por isso, na busca
de viabilizar a atividade prático-política interditada pela violência policial, as prisões,
os exílios siberianos, a organização mais forte entre os narodinikis, o “Terra e
Liberdade”, adota uma postura de ação direta: a violência estatal deveria ser
respondida com a violência popular. E o principal alvo deveria ser a fonte original
dessa violência, no caso do hipercentralizado Estado russo, o próprio czar; objetivo que
alcançam em 13 de março de 1881 – um bem-sucedido atentado a dinamite mata o
czar Alexandre II.

Sobre o movimento pesou, então, uma ainda mais brutal repressão que destrói a
liderança da organização Terra e Liberdade. O grupo A Vontade do Povo assume a
continuidade dessa tarefa política revolucionária. Entretanto, uma organização
minoritária que havia defendido a manutenção dos objetivos originais do movimento
narodiniki, intitulada Partilha Negra, já emigrada para o Ocidente e radicada em
Genebra, desviando-se da tradição narodiniki, aproximava-se da obra de Marx e Engels
através da leitura de sua obra maior, O Capital. Faziam parte desse grupo, que em 1883
fundaria A Emancipação do Trabalho, a primeira organização marxista da Rússia,
nomes como Georgi Plekhanov, Vera Zasulitch e Pavel Axelrod – futuros líderes da
fração menchevique do Partido Operário Social Democrata Russo (POSDR).

É em nome desse grupo de exilados que refletiam sobre a derrota da fração


majoritária do “populismo” russo que Vera escreve a Marx em fevereiro de 1881.
Zasulich, além de fazer parte do grupo dirigente da Partilha Negra, tinha ficado
bastante conhecida por atirar “no governador de São Petersburgo, Trepov, por açoitar
um prisioneiro”. Julgada, é inocentada, em um grande e rumoroso julgamento político
(SANDERS, 2017, p. 254).

Em sua carta, Zasulich comunica a Marx o sucesso de sua obra – apesar do


confisco ordenado pelo governo. Segundo ela “as poucas cópias remanescentes foram
lidas e relidas pela massa de pessoas mais ou menos instruídas de nosso país; homens
sérios o estudaram” (ZASULITCH, 2017, p.146). Zasulitch aponta, ainda, que a obra
desempenha um papel central no debate sobre a questão agrária russa – um tema
absolutamente decisivo para o movimento narodiniki. Para ela, essa questão é “de vida
ou morte, sobretudo para nosso partido socialista” e é expressa na forma de duas, e
somente duas, possibilidades: a primeira, que a comuna rural, libertando-se da
opressão estatal e da nobreza, na forma de impostos e má administração, seja capaz de
organizar a “produção e distribuição em bases coletivistas” (Ibid, p.146/147). Caso isso

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Nilo Sergio Silva Aragão

ocorresse, a via socialista na Rússia passaria necessariamente pela comuna camponesa


e seria a obrigação do movimento socialista investir suas forças “em prol da liberação e
do desenvolvimento da comuna”. Contudo, e aqui temos a segunda possibilidade, se “a
comuna está destinada a perecer” todo o trabalho socialista entre o campesinato é
esforço destinado ao fracasso. A atividade política socialista deveria “conduzir a
propaganda apenas entre os trabalhadores das cidades, que serão continuamente
inundados pela massa camponesa que, com a dissolução da comuna, será jogada nas
ruas, em busca de um salário” (Ibid, p.146/147). Apresentado o dilema, Zasulitch
solicita ao Cidadão Marx uma opinião:
Você estaria nos fazendo um grande favor se apresentasse suas ideias sobre o
possível destino de nossa comuna rural e sobre a teoria de que é
historicamente necessário que cada país do mundo passe por todas as etapas
do desenvolvimento capitalista. Por fim, propõe ao menos uma carta a ser
publicada por ela e seus amigos na Rússia (Ibid, p. 147-148).

As simpatias do grupo Partilha Negra estavam com a segunda hipótese. Sua


leitura de O Capital era feita de um ponto de vista determinista: a destruição da
comunidade camponesa seria inevitável, e desejável, posto que era parte da passagem
do feudalismo ao capitalismo. Sem o pleno desenvolvimento do capitalismo, não
haveria possibilidade para ao socialismo. E o apelo à autoridade de Marx – e, por outro
caminho, de Engels – era uma convergência de interesses com estudos que ambos já
desenvolviam sobre a Rússia. Engels, em 1875, expõe assim as causas do olhar atento
que o movimento operário e revolucionário alemão deveria ter sobre o império
czarista:
A evolução dos eventos na Rússia se reveste da maior importância para a
classe trabalhadora alemã. O Império Russo que aí está constitui o último
grande esteio de todo reacionarismo europeu ocidental [...]. Nenhuma
revolução poderá obter a vitória definitiva na Europa ocidental enquanto ao
seu lado ainda existir o Estado russo [...]. A derrubada do Estado czarista
russo e a destituição de seu império, constituem, portanto, uma das primeiras
condições para a vitória definitiva do proletariado alemão (ENGELS, 2013, p.
34).

Podemos constatar que Engels tem sobre a situação da vida camponesa russa
uma avaliação negativa: o polo revolucionário se encontra na Europa ocidental, sendo
o czarismo russo e seus exércitos a última e mais formidável reserva da
contrarrevolução. Apesar de reconhecer que existiam elementos internos ao império
que atuavam para derrubá-lo, sendo destacado o papel dos poloneses, Engels tem uma
visão bastante negativa da realidade do campesinato russo.
O fato é que a massa do povo russo, os camponeses, há séculos vegeta, de
geração em geração, numa espécie de pântano a-histórico; e a única variação
que talvez tenha interrompido esse estado letárgico foram algumas revoltas
infrutíferas, que só levaram a novas opressões por parte da nobreza e do
governo (Ibid, p. 35-36).

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Marx: a comuna camponesa russa e a teoria marxiana da Revolução

Porém, Engels alerta que abolição da servidão (1861), ainda que obra do Estado
czarista, iria impelir os camponeses ao “movimento histórico”. O aumento da miséria
devido a “esperteza” da medida czarista geraria mais insatisfação e essa insatisfação
camponesa “já é um fato que tem de ser levado em conta tanto pelo governo quanto
por todos os insatisfeitos, incluindo os partidos de oposição” (Ibid, 2013, p. 35-36).

O trecho acima citado é uma apresentação a um conjunto de textos intitulada


“Literatura de Refugiados”, escrita e publicada entre 1874 e 1875. Especificamente o
caso russo é tratado nos artigos 3, 4 e 5, tendo caráter de polêmica com os narodinikis
– ainda que com visões diferentes do processo político russo – P. Lavrov e P. Tkatchov.
O interesse de Marx e Engels sobre a Rússia os levou a estudo da língua e à leitura de
uma grande quantidade de livros sobre o país. É adequado lembrar que O Capital foi
traduzido pela primeira vez para o russo, já em 1872, pelo narodiniki N. Danielson,
após traduções não-concluídas de G. Lopatin e M. Bakunin.

É em 1877, contudo, que a posição de Marx sobre a Rússia recebe uma clara
nova inflexão. Como já vimos, a obra de Marx despertara grande interesse na Rússia.
Um historiador comunista inglês afirma que, na Europa oriental, “nenhuma outra
explicação do fenômeno que transformou o século XIX em modernidade podia
competir com o marxismo, cuja influência tornou-se correspondentemente profunda” –
o que não seria o caso da Europa ocidental. Além disso, na Rússia “terra de um estrato
social desajustado, a ‘intelligentsia’ crítica, produziu leitores devotados de O Capital
antes de qualquer outro país”. (HOBSBAWN, 2011, p. 203). Nesses intensos debates, o
economista J. Jukovski publica no influente periódico O Contemporâneo uma dura
crítica à obra de Marx. Em defesa do autor alemão vem N. Mikhailovsky. Em sua revista
Notas Patrióticas publica o artigo K. Marx sob o julgamento do Sr. J. Jukovski. Ainda que
muitos contemporâneos russos de Mikhailovsky vissem em seu texto uma defesa um
tanto irônica da obra de Marx, ele próprio não entendeu assim e, como veremos,
apressou-se em responder-lhe.

Mikhailovsky afirma que na sétima seção de O Capital, o capítulo intitulado A


assim chamada acumulação primitiva, teria pretendido “traçar aí um esboço histórico
dos primórdios do modo de produção capitalista”, mas teria ido muito além pois
“traçou toda uma teoria histórico-filosófica”. (MIKHAILOVSKY, 1982, p. 159).
Mikhailovsky avança na descrição do processo de separação dos meios de produção
dos produtores, indicando a necessidade desse processo para a criação de uma classe
de trabalhadores apta a vender livremente sua força de trabalho, que seria encontrado
em toda realidade capitalista. Sua leitura de Marx leva até a afirmar que o processo da
acumulação primitiva “foi difícil, penoso e longo, com séculos de duração, mas, sem
dúvidas, necessário” (Ibid, 1982, p. 160). Sem deixar de elogiar a cientificidade e a
capacidade de rigor lógico da análise marxiana, Mikhailovsky conclui que para o leitor
russo, essa bela exposição traria mais problemas que soluções. Um deles: o processo de
expropriação servil/camponesa não teria avançado tanto na Rússia quanto na Europa.
Assim, Mikhailovsky conclui que, aqueles que se apoiassem nas ideias de Marx para

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interpretar a Rússia se veriam no dilema de afirmar que “deveríamos percorrer aquele


mesmo processo descrito e elevado ao status de uma teoria histórico-filosófica por
Marx” (Ibid, 1982, p. 162). Diz mais: citando uma passagem em que Marx aponta as
tragédias que acompanham o processo da acumulação primitiva de forma “cáustica”,
saca da leitura do texto marxiano a conclusão da inevitabilidade bem-vinda da
acumulação primitiva, pois:
[...] do ponto de vista da teoria histórica de Marx, nós não deveríamos
protestar contra elas, pois isto seria o equivalente a agir contra os nossos
interesses; e mais, deveríamos saudá-las com alegria como degraus
necessários, ainda que árduos, na subida em direção ao templo da felicidade.
(Ibid, p. 163).

A visão de Marx como um determinista defensor da inevitabilidade dos


violentos e cruéis processos da acumulação primitiva capitalista, de produtor de uma
filosofia da história regida pela teleologia da necessidade histórica, leva Marx a
escrever para a revista uma resposta. Não a enviou, entretanto. Engels desconhecia a
razão do não envio e só tomou conhecimento dela depois da morte de Marx em março
de 1883. Em março de 1884 a carta de Marx é enviada para Genebra ao grupo
“Emancipação do Trabalho”, aos cuidados de Vera Zasulitch. Porém, os jovens
convertidos ao marxismo não a publicam (FERNANDES, 1982, p. 158). Será publicada
pela revista O Mensageiro da Vontade do Povo, fora da Rússia, em 1886. Duas
publicações anteriores feitas na Rússia haviam quase que totalmente caído nas mãos
da polícia russa. Em 1888, com tradução de N. Danielson ocorre a primeira publicação
em veículo legal dessa carta de Marx. (MARX & ENGELS, 2013, p. 60-61).

A resposta de Marx primeiramente enfrenta as acusações de ser um detrator do


pensamento de A. Herzen. Essa pequena passagem, publicada como apêndice de O
Capital – e retirada na segunda edição revista e corrigida do primeiro volume,
publicada na cidade de Hamburgo em 1872 – não está no cerne da avaliação de Marx,
como ele mesmo afirma em carta ao redator da publicação Notas Patrióticas. Ao
contrário,
Minha apreciação desse escritor pode ser justa ou pode ser falsa, mas em
nenhum caso ela fornecerá a chave da minha visão sobre os esforços ‘dos
homens russos para encontrar o caminho do desenvolvimento para sua
pátria, diferente daquele que foi e é trilhado pela Europa ocidental’ (MARX,
2013, p. 65).

A comprovação de seu argumento – contrário tanto a Jukovski quanto a


Mikhailovsky – é seu elogio a N. Tchernichevski. Sendo o grande autor russo favorável
a comuna rural preservada e desenvolvida, poderia servir de base a um processo
histórico que não passasse pelas “torturas” da acumulação primitiva. Tendo assim
afirmado sua concordância com Tchernichevski, reafirma, a fim de evitar deixar algo
“para ser adivinhado”, sua dedicação à língua russa e ao estudo de suas realidades
econômicas e esclarece que o resultado alcançado por anos de estudo foi que “se a
Rússia prosseguir no rumo tomado depois de 1861, ela perderá a melhor chance que a

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Marx: a comuna camponesa russa e a teoria marxiana da Revolução

história já ofereceu a um povo, para, em vez disso, suportar todas as vicissitudes fatais
do regime capitalista. (Ibid p. 66). Para Michael Löwy, esse pequeno documento é de
grande importância, pois impede qualquer leitura
unilinear, evolucionista, ‘etapista’ e eurocêntrica do materialismo histórico. A
partir de 1877, eles sugerem que ainda que não de forma desenvolvida, uma
perspectiva dialética, policêntrica, que admite uma multiplicidade de formas
de transformação histórica, e, sobretudo, a possibilidade que as revoluções
sociais modernas comecem na periferia do sistema capitalista [...] (LÖWY,
2013, p. 9).

Assim, a carta que Vera Zasulitch envia a Marx lhe dá margem para pensar e
clarear suas opiniões e análises sobre o desenvolvimento econômico e social da Rússia
e as possibilidades revolucionárias daí decorrentes, para além do que havia feito em
seu debate com Mikhailoski. Seu interesse é crescente pela Rússia, após finalizar a
redação do primeiro volume de O Capital, publicado em 1867. Segundo Teodor Shanin,
na década final de vida de Marx entre 1872 e 1882, “houve uma crescente
interdependência entre suas análises das realidades da Rússia e o movimento
revolucionário russo”, ou seja, o movimento narodiniki (SHANIN, 2017, P. 26). Talvez
por isso, sua hesitação em responder a carta, pois produz quatro rascunhos antes de
encontrar uma forma final. Seu papel na nova escrita da história que Marx teria
iniciado em “O Capital”, como afirma um filósofo marxista francês:
Se Marx retomasse por sua conta a teodiceia hegeliana do Espírito, o
encadeamento mecânico dos modos de produção para o comunismo desfiaria
simplesmente as etapas de uma marcha inexorável para o paraíso
recuperado. Suas célebres cartas a Vera Zassulich sobre a Rússia desmentem
categoricamente tal possibilidade (BENSAID, 1999, p 50-51).

Quais são os argumentos de Marx, quais conceitos desenvolve ao buscar a


conexão entre o desenvolvimento histórico-econômico da Rússia, a luta de classes e as
possibilidades revolucionárias neste país? E por qual razão foram necessários quatro
rascunhos, posto que o tema da comuna rural russa e seu possível papel na transição
ao socialismo não era novo para Marx?

A segunda questão recebeu uma multiplicidade de respostas. Rubens César


Fernandes, um pioneiro do estudo desses documentos e temas no marxismo brasileiro,
aponta várias razões: a variedade de tendências narodinikis existentes e, em particular,
a estranha tendência chamada de marxismo legal – que usava as teorias de Marx para
defender a necessidade de desenvolver o capitalismo na Rússia; a preocupação em
atender a dois grupos diferentes, pois, a carta de Zasulitch representava a busca da
chancela de Marx às teses da Partilha Negra e o comitê executivo de A Vontade do Povo
solicitara a Marx uma brochura sobre o mesmo tema – o que Marx teria prometido,
mas não cumprido. Para Fernandes, diante da situação “Marx primou pelo cuidado:
escreveu três longos rascunhos, detalhadamente corrigidos, que afinal foram
guardados e substituídos por uma carta de duas páginas” (FERNANDES, 1982, p. 169-
170). Assim, para Fernandes, a razão fundamental para os três rascunhos – maiores

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Nilo Sergio Silva Aragão

que a carta final – estava em seu extremo cuidado no trato do tema, diante da
possibilidade de apropriação política indevida, no quadro de repressão e censura
vivido na Rússia.

Foi David Riazanov quem encontrou os rascunhos da carta entre os papeis de


Marx que se encontravam com seu genro, Paul Lafargue. Cabe lembrar que Riazanov se
comunica imediatamente após o encontro dos rascunhos com G. Plekhanov, que nega o
conhecimento da carta. Entretanto, a memória do próprio Riazanov registrava um
evento ligado às cartas e aos líderes mencheviques:
eu me lembrava de ter ouvido, durante minha estadia na Suíça em 1883, uma
narrativa por vezes fantástica sobre uma troca de correspondências entre o
grupo Emancipação do Trabalho e Marx sobre a comuna camponesa russa.
Circulavam até mesmo anedotas muito inverossímeis sobre um embate
pessoal entre Plekhanov, que nega a propriedade comunal, e Marx, que a teria
defendido (RIAZANOV, 2013, p. 71).

Entretanto, em 1923, o pesquisador B. Nicolaievski encontra nos arquivos de P.


Axelrod, outro líder da Partilha Negra e fundador do grupo A Emancipação do
Trabalho, uma carta de Marx que era a reprodução reduzida de um dos esboços.
Segundo Riazanov, Nicolaievski era da opinião “de que a insatisfação de Marx com o
grupo Partilha Negra fez com que ele tivesse deixado de escrever algo franco e
detalhado” (Ibid, 2013, p. 71). Para Riazanov duas razões se impõe a uma carta tão
mais curta que os rascunhos e mesmo para tantos rascunhos: “a única coisa que o
impediu de responder tão extensamente como havia planejado foi sua própria
capacidade de trabalho, já solapada, cujas marcas se percebem nos esboços”. Além
disso, cita com aprovação a tese de E. Bernstein que o ceticismo de Marx diante das
possibilidades da transição socialista se basear na comuna camponesa russa não era
claramente expresso a fim de não “decepcionar demais” os revolucionários russos
(Ibid, p. 73-74).

Polêmica antiga, como se vê, dentro dos próprios círculos revolucionários


russos. Para Teodor Shanin, a questão é muito maior que a preocupação com o ânimo
dos revolucionários russos ou um eventual declínio intelectual. Para ele, Marx havia
desenvolvido “uma consciência crescente a respeito de um novo problema
fundamental”. A escrita de quatro rascunhos “atestam o tamanho do trabalho e do
pensamento que lhe dão base – como se toda uma década de estudos de Marx com suas
30 mil páginas de notas, embora sem nenhum texto finalizado, viesse junto” (SHANIN,
2017, P. 42). Assim, os esboços e a carta a Vera Zasulitch e ao grupo Partilha Negra –
que não a publicaram ou divulgaram – seria um ponto decisivo nos estudos de Marx
sobre a Rússia e um desdobramentos de seus estudos históricos já presentes nos
Grundrisse sobre as formações econômicas pré-capitalistas.

Jean Tible lembra que Marx havia lido e comentado, entre 1874 e 1875, o livro
de M. Bakunin, Anarquismo e Estatismo e que, apesar dos comentários nada simpáticos
de Marx, as críticas de Bakunin às “características primitivas” da comunidade rural

Anãnsi: Revista de Filosofia, Salvador, v. 1, n. 1, 2020. 20


Marx: a comuna camponesa russa e a teoria marxiana da Revolução

russa, teriam exercido certa influência sobre as análises de Marx (TIBLE, 2017, p. 79).
Éttienne Balibar considera que as críticas de Marx a Bakunin e ao Programa de Gotha,
em 1875, repõem a questão do “enfraquecimento do Estado na transição para o
comunismo”. Há uma “abertura comparável” na correspondência russa de Marx
(BALIBAR, 1995, p. 126-127). Considerando que o tema não era novo para Marx, o
filósofo francês propõe outra solução para as hesitações presentes na redação de
quatro rascunhos e numa resposta final excessivamente tímida. Para ele, Marx teria
dificuldade em assumir claramente a formulação nova de sua ideia, pois “o que é
proposto nesses textos, portanto, é a ideia da multiplicidade concreta de vias de
desenvolvimento histórico”. Mais ainda,
através de uma surpreendente reviravolta da situação, sob pressão de uma
questão vinda do exterior (e com certeza também das dúvidas suscitadas nele
quanto a exatidão de algumas de suas próprias formulações, pela aplicação
que lhe propõe então os ‘marxistas’) o economismo de Marx dá à luz o seu
contrário: um conjunto de hipóteses antievolucionistas. (BALIBAR, 1995, p.
128).

No prefácio à primeira edição de O Capital, logo após reconhecer que seus


estudos se centram na Inglaterra e citar, especificamente, que nada serviria aos
alemães imaginarem que não se falava deles, pois então Marx teria de gritar-lhes “A
fábula fala de ti!”, anuncia que “O país industrialmente mais desenvolvido não faz mais
do que mostrar ao menos desenvolvido a imagem de seu próprio futuro” (MARX, 2017,
p. 77). A leitura de O Capital como um texto evolucionista não foi feita apenas pelos
russos. Saudando a Revolução de 1917, A. Gramsci, jovem redator do jornal socialista
Avanti, propõe ser ela uma “uma revolução contra O Capital de Karl Marx”. E
argumenta que
O Capital de Marx era, na Rússia, o livro dos burgueses, mais do que dos
proletários (...) Os fatos fizeram explodir os esquemas críticos dentro dos
quais a história da Rússia deveria se desenvolver segundo os cânones do
materialismo histórico. Os bolcheviques renegam Karl Marx: afirmam – e com
o testemunho da ação explicitada, das conquistas realizadas – que os cânones
do materialismo histórico não são tão férreos como se poderia pensar e se
pensou. (GRAMSCI, 2011, p.62).

Quais são, então, os centros teóricos e seus desdobramentos práticos presentes


nesses rascunhos durante tanto tempo esquecidos, nessa carta-documento solicitada
para arbitrar divergências e proclamar um lado como correto, que termina por ser
suprimida e retornar como um fantasma ao debate, após a tão ansiada revolução ter
sido vitoriosa em 1917 e muitas vezes mais depois?

1. O primeiro esboço

Em seu primeiro esboço, não datado, Marx desenvolve um primeiro argumento.


O processo por ele descrito no capítulo sobre a acumulação primitiva de capital falava
do processo histórico inglês e apontava sua generalização pela Europa ocidental. Para

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demonstrar sua posição, cita a passagem de O Capital em havia escrito que a história
dessa expropriação
[...] assume tonalidades distintas nos diversos países e percorre as várias
fases em sucessão diversa e diferentes épocas históricas. Apenas na
Inglaterra, e por isso tomamos esse país como exemplo, tal expropriação se
apresenta em sua forma clássica (MARX, 2017, p. 787-788)

para logo depois reafirmar a generalidade cheia de diversidade desse


desenvolvimento para a Europa ocidental. Destaca, com outra citação de O Capital, que
o processo inglês que antecipa de forma não-linear eventos europeus ocidentais de
expropriação, são do tipo em que “propriedades nanicas de muitos em propriedade
gigantesca de poucos” (Ibid, p. 831). A partir daí, aponta que
ocorre a transformação de uma forma de propriedade privada em outra forma
de propriedade privada. A terra nas mãos dos camponeses russos jamais foi a
a sua propriedade privada; então como se aplicaria esse desenvolvimento?
(MARX, 2013, p. 89).

Argumento que é histórico e também lógico, como se vê.

Seu segundo argumento enfrenta os defensores da “dissolução fatal”:


considerando que a comuna rural camponesa não é uma exclusividade russa. E sim
“um tipo mais ou menos arcaico de propriedade comum” que “se encontra em toda
parte da Europa ocidental” e que “desapareceu completamente” porque acreditar na
Rússia seria diferente? A resposta de Marx é singela e cortante: um conjunto único de
características históricas tinha preservado a comuna rural russa em escala nacional.
Sua “contemporaneidade da produção capitalista” possibilitaria uma superação de suas
características primitivas – já criticadas por Bakunin em artigo lido e comentado por
Marx2 – e “se apropriar das conquistas positivas” do capitalismo, sem passar por suas
terríveis provações (MARX, 2013, p.89). Para reafirmar seu ponto de vista, Marx
apresenta um exemplo do “desenvolvimento desigual e combinado” da sociedade
capitalista: a Rússia, “para explorar máquinas, os barcos a vapor, as ferrovias, ...” não
teria precisado passar “por um longo período de incubação da indústria mecânica”, que
atravessou o Ocidente em séculos (Ibid, p. 90). Assim, o argumento dialético das
vantagens do atraso – o salto tecnológico e social possível graças a convivência no
amplo quadro das sociedades capitalistas de tempos históricos, formas de propriedade
e relações sociais de produção diferentes – é apresentado com bastante clareza. A
conclusão – cheia de ousadia de Marx – citando um “autor americano nem um pouco
suspeito de tendências revolucionárias” – é que o arcaísmo do comuna russa não é
problema, pois as formas superiores são renascimentos mais desenvolvidos de formas
anteriores (Ibid, p. 91). Através de um excurso histórico que começa com as fontes
romanas de Tácito e Júlio Cesar, Marx esclarece que a comuna russa é “o tipo mais

2Entre abril de 1874 e janeiro de 1875, Karl Marx anotou, em russo, em um caderno longos extratos de
sua leitura de Estatismo e Anarquia, publicada em Zurique em 1873. Marx ali comenta suas divergências
com Bakunin a respeito da participação eleitoral, o papel do proletariado e do campesinato, as questões
étnicas e nacionais entre ocidente e oriente europeus, entre outras tantas polêmicas.

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Marx: a comuna camponesa russa e a teoria marxiana da Revolução

recente da formação arcaica”, que transitou na Europa ocidental da “propriedade


comum para a propriedade privada”. Mas imediatamente afirma que “sua forma
constitutiva admite a seguinte alternativa: ou o elemento de propriedade privada
implicado nela prevalecerá sobre o elemento coletivo ou este último prevalecerá sobre
o primeiro”. Não há fatalismo, “Tudo depende do ambiente histórico em que a comuna
se encontra localizada”. E se falamos na concepção da história em Marx, falamos em
lutas sociais, falamos em luta de classe (Ibid, p. 93). Marx desenvolve ainda mais o
argumento da contemporaneidade entre a comuna (arcaica) e o presente (capitalista)
em âmbito mundial. Para não deixar qualquer dúvida a respeito de sua posição, afirma
que a comuna rural russa “pode tornar-se um ponto de partida direto do sistema
econômico para o qual tende a sociedade moderna; ela pode trocar de pele sem se
suicidar” (Ibid, 2013, p.96). Para isso, todavia, há que se “descer da teoria pura à
realidade russa”. Como afirma o filósofo francês Daniel Bensaid a respeito da formação
da concepção histórica de Karl Marx e suas implicações, não há
qualquer necessidade de postular uma causalidade implacável ou um juízo
ultimo para considerar que aquilo que se segue constitua um progresso em
relação a algo imediatamente precedente. O critério pode permanecer
sobriamente comparativo. (BENSAID, 1999, 56).

Assim também, a análise histórica que os revolucionários devem realizar – pois


não se trata de um debate acadêmico – parte da vida social e econômica russa em
direção à teoria; e não ao contrário, para o revolucionário alemão, a teoria não é uma
camisa de força em que se espreme a realidade.

O terceiro argumento de Marx é que não se deve cultivar ilusões. Desde o


decreto imperial que suprimiu a servidão, em 1861, a comuna rural russa estaria sobre
ataque. Usurários, comerciantes, o fisco e grandes proprietários avançam sobre ela e
seu colapso econômico é uma possibilidade. Estando em conexão com as
transformações mais gerais do mercado mundial em geral e da Rússia em particular, as
fontes de suas possibilidades positivas – a superação em direção a uma organização
social superior – e negativas - seu desaparecimento na transição capitalista – não estão
decididas por uma fatalidade histórica qualquer, pela necessidade de lutar “com uma
potente reação” contra “as influências destrutivas” que pesam sobre ela (Ibid, 2013, p.
102). A dialética da comuna rural está sempre presente na resposta de Marx. As
possibilidades mudam a cada evento, a cada ação das forças de superação positiva – em
direção ao socialismo ou destrutivas, que só tem a oferecer o tenebroso quadro
descrito por Marx em O Capital. A dinâmica histórica, sem fatalismos. É regida por
possibilidades, que, entretanto, não são eternas, pois o conflito social é sempre
presente, ainda que nem sempre visível. Forças diversas, interesses de classe, ações
governamentais, dinâmicas econômicas mundiais, inovações tecnológicas se conjugam
e se entrechocam na tessitura da realidade. Para Bensaid é essa complexidade, “essa
dialética do necessário e do possível [que] permanece incompreensível para os
detratores de um Marx rasamente determinista, aferrados a imputar-lhe um conceito
mecânico de necessidade” (BENSAID, 1999, p. 386). Marx se desvincula claramente

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desses que chama, no primeiro rascunho, ironicamente de “porta-vozes dos ‘novos


pilares sociais’” (MARX, 2013, p.102).

Seu quarto argumento ressalta que, apesar das dificuldades da pesquisa


histórica sobre o tema, que ainda estava engatinhando em 1881, Marx garante que é
possível afirmar que a comuna rural euro-russa é dotada de enorme vitalidade –
historicamente mais duradoura que a própria sociedade capitalista! – e que os fatores
limitantes endógenos que as levaram ao desaparecimento não pesam mais sobre a
comuna russa historicamente existente no momento em que ele escreve (Ibid, p. 101).
Sua recomendação, também, se dá em relação ao trato das fontes. A historiografia
burguesa é comprometida; historiadores, sociólogos, economistas, filósofos, não são
neutros.

Seu quinto argumento não traz ideias que já não tenham sido apresentadas
anteriormente, mas é mais duro com aqueles “lacaios literários dos ‘novos pilares da
sociedade’” que, ao “tempo em que se sangra e tortura a comuna”, apresentam esse
procedimento “como sintomas de sua decrepitude espontânea”. A estes, nenhuma
trégua: “Aqui não se trata mais de um problema a resolver; trata-se de um inimigo a
derrotar” (Ibid, 102). Uma dissociação política e teórica de tais interpretes de O Capital
não poderia ser mais incisiva.

2. O segundo esboço

Segue, inicialmente, o roteiro do primeiro esboço, com Marx numerando seus


pontos centrais. Recorre aos mesmo trechos de O Capital, mas, ao falar da propriedade
comunal, reforça seu caráter comunista. Torna claro que a destruição da propriedade
comunal é um desejo dos liberais russos e, no ponto dois, em que rispidamente afirma:
“Os ‘marxistas’ de que me falais me são desconhecidos. Os russos com quais tenho
relações pessoais, ao que eu saiba, têm pontos de vistas totalmente opostos”3 (Ibid, p.
104). Se, no primeiro esboço, o enfrentamento com os defensores do ponto de vista
fatalista da dissolução inevitável, em nome da opus magna de Marx, demoraram a ser
enfrentados, sua confrontação avança para o começo do segundo esboço. No seu
terceiro argumento, Marx destaca que
[...] a morte da propriedade comunal e o nascimento da produção capitalista
estão separados por um intervalo de tempo imenso, abrangendo toda uma
série de revoluções e sucessivas evoluções econômicas, das quais a produção
capitalista é apenas a mais recente. (Ibid, p. 104).

3O trecho da carta de a que Marx se refere é esse: Nos últimos tempos ouvimos dizer com frequência que
a comuna rural é uma forma arcaica, condenada à morte, como se fosse a coisa mais indiscutível, pela
história, pelo socialismo científico. As pessoas que apregoam isso se dizem seus discípulos por
excelência: ‘marxistas’” (ZASULITCH, 2013, p.79)

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Marx: a comuna camponesa russa e a teoria marxiana da Revolução

As “vantagens do atraso” da Rússia continuam sendo lembradas, e, portanto,


não há impedimento que a Rússia trilhe um caminho diferente do ocidente europeu em
seu desenvolvimento em direção à produção cooperativa e a “propriedade comunista”.

O quarto argumento deixa mais nítido o papel negativo do Estado na


preservação e superação, por parte da comunidade rural russa de seu atraso em
direção a formas superiores de produção. E no quinto argumento. A “discordância de
tempos” na formação social russa é indicada com firmeza, pois assim como as camadas
geológicas mostram “suas diversas idades” sobrepostas umas às outras, “a formação
arcaica da sociedade nos revela uma série de tipos diferentes, marcando as épocas
progressivas. A Comuna rural russa pertence ao tipo mais recente dessa corrente”
(Ibid, p. 105).

E tendo ressaltado os riscos e entraves que ameaçavam a valoração socialista


positiva da comuna, Marx chega ao seu quinto argumento, em que alerta contra as
forças que se erguem contra a comuna camponesa: “Certo gênero de capitalismo,
nutrido às expensas dos camponeses por intermédio do Estado”, associados aos
grandes proprietários rurais, a quem interessa o “trabalho barato” que se tornaria
disponível com a destruição da Comuna (Ibid, p. 107).

3. O quarto esboço

O terceiro esboço Estando dividido em, basicamente, duas partes, Marx


rearranja os argumentos dos esboços anteriores, alcançando uma forma de redação um
pouco mais coesa. Porém, o esboço se encontra interrompido, ou seja, foi abandonado.

Já no quarto esboço, muito menor do que os demais, Marx desculpa-se


afirmando estar acometido de “uma doença nervosa”. Avisa a missivista que havia
prometido ao “Comitê de São Petersburgo” “um escrito sobre o mesmo assunto”. O tom
seco, extremamente sintético, que termina por ser apenas um pouco mais extenso na
carta enfim enviada em 8 de março de 1881 – mesma data do esboço -, a referência ao
Comitê de São Petersburgo que receberia um texto mais longo e completo e uma leve
ironia na resposta – “Espero (...) que algumas linhas sejam suficientes para livrar-nos
sobre o mal-entendido acerca da minha assim chamada teoria” – nos levam a crer que
algo mudou na abordagem e na consideração que Marx faz a sua interlocutora e
destinatária. Primeiramente, afirma que em O Capital não há argumentos
nem a favor nem contra a vitalidade da comuna russa”. Em seguida, assertivo,
afirma que “Os estudos especiais que fiz, para os quais pesquisei em fontes
originais, convenceram-me que essa comuna é a alavanca natural da
regeneração social da Rússia. (Ibid, p. 113).

A carta enviada nunca foi publicada, apesar da permissão de Marx para que isso
fosse feito. Em 1883, com Marx já morto, o grupo representado por Zasulitch já havia
rompido com o movimento narodiniki – ruptura acelerada pelo intenso debate causado
pela carta de Marx sobre Jukovski e Mikhailovsky finalmente publicada. Assumem-se,

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Nilo Sergio Silva Aragão

sob a liderança de G. Plekhanov, como os primeiros marxistas da Rússia e não queriam


sofrer com a discordância do “mestre”.

4. À guisa de conclusão

O que dizer desse debate travado de forma epistolar, travado nas sombras de
gabinetes e quartos de revolucionários exilados, tendo em vista os destinos do
desenvolvimento econômico e da revolução no país mais extenso do mundo, no
Império que havia sido desde o Congresso de Viena (1815) a reserva sagrada da
revolução europeia? Sua importância, assim apresentada, deveria ser evidente: a
revolução na Rússia teria impacto em toda a Europa, possibilitando uma mudança na
correlação de forças em âmbito continental. A transição que se discute no tocante à
Comuna russa é mais amplo que o país dos czares, podendo ser exemplar para os
países retardatários do capitalismo? Se a Rússia poderia saltar, ou atravessar de forma
completamente diferente, a etapa capitalista conforme seu desdobramento europeu-
ocidental, chega-se a uma problemática central da filosofia – ou antifilosofia – de Marx:
quem seria nessa hipótese o “sujeito histórico revolucionário”? A resposta clássica para
o ocidente era a classe trabalhadora industrial. Mas essa resposta não deveria ser a
mesma para a Rússia, caso a Comuna servisse de ponto de partida para uma radical
transformação da vida social e econômica russa. Verdade que em seus esboços Marx
alerta para a necessidade de passar da teoria à prática – o conceito de práxis – pois a
resolução dessas questões será tarefa da vida real, obra de homens e mulheres reais,
pois a filosofia só é de valor quando colabora à transformação do mundo.

Referências

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Nelson Coutinho. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1995.

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Recebido em: 10 de jul. 2020


Aceito em: 13 de ago. 2020

Anãnsi: Revista de Filosofia, Salvador, v. 1, n. 1, 2020. 27


Universidade do Estado da Bahia
Departamento de Educação – Campus I
Anãnsi: Revista de Filosofia, Salvador, v. 1, n.1, 2020

A metempsicose no discurso de Dolmancé: a influência do


pensamento materialista nos personagens de Sade
La Métempsycose dans le discours de Dolmancé: L’influence de la
pensée matérialiste dans les personnages de Sade

Nilton Marlon Antônio 1


Resumo: Na leitura do romance A Filosofia na Alcova, encontramos diversos discursos filosóficos na fala
dos libertinos, principalmente na voz de Dolmancé e de Saint-Ange. Esses dois libertinos são os
personagens principais do romance. Tanto Dolmancé quanto Saint-Ange fazem uso desses discursos
filosóficos para justificar suas atitudes libertinas e ensiná-las para a jovem Eugénie. Esse trabalho tem
seu foco nos discursos de Dolmancé, mais precisamente os seus discursos que se referem a
metempsicose materialista. Buscamos observar como se constrói o discurso do personagem, os possíveis
embasamentos filosóficos por meio das influências filosóficas de Sade e, além disso, buscar entender os
efeitos disso no pensamento do personagem. Buscamos entender o pensamento de Domancé através das
influências filosóficas de Sade. Observaremos as bases filosóficas que constituem esses discursos que, no
caso dessa obra, giram em torno do pensamento materialista do século XVIII. Dentre essas influências,
focaremos principalmente em Holbach, mostraremos como a fala de Dolmancé está carregada de ideias
que estão presentes no Sistema da Natureza.

Palavras chaves: Sade; Holbach; Metempsicose; Materialismo; Filosofia Moderna.

Résumé: Pendant la lecture du roman La philosophie dans le boudoir, nous avons rencontré divers
discours philosophiques dans les paroles des libertins, principalement dans la voix de Dolmancé et de
Saint-Ange. Ces même deux libertins sont les personnages principales du roman. L’un comme l’autre
utilisent tel discours pour justifier ces actions libertines et les enseigner à la jeune Eugénie. Cet article a
l’intention de souligner les discours de Dolmancé qui parlent sur la métempsycose et le matérialisme.
Nous cherchons observer comme se construit les discours du personnage, ces possibles
fondamentalement philosophiques parmi les influences philosophiques de Sade et, en plus, entendre les
effets de tels influences dans l’esprit du personnage. Nous cherchons comprendre la pensée de
Dolmancé moyennant les influences de Sade en observant les bases qui construisent tels discours que,
dans ce cas, tournent autour de la pensée matérialiste du XVIIIe siècle. Parmi ces influences, nous faisons
plus attention au qui concerne les idées d’Holbach. En réalisant ce parcours, nous démontrons comme la
parole de Dolmancé est chargée par les idées qui sont présentes dans le Système de la nature d’Holbach.

Mots-clefs: Sade; Holbach; Métempsycose; Matérialisme; Philosophie Moderne.

1 Graduando em Filosofia pela Universidade Federal do Paraná. E-mail: niltonmarlon_at@hotmail.com.


Nilton Marlon Antônio

A metempsicose no discurso de Dolmancé

A partir do momento que começamos a ler as obras de Sade, somos jogados em


um universo cheio de discursos filosóficos. Os personagens, geralmente os libertinos
mais trabalhados, estão carregados de ideias que refletem em suas atitudes e em seus
princípios morais. Essas ideias são embasadas no pensamento filosófico que cercava
Sade em seu tempo. O que acontece em A Filosofia na Alcova não é diferente, os
personagens que constituem esse romance não cessam seus discursos filosóficos e,
como de costume, suas atitudes estão inteiramente ligadas a eles. É sobre esses
discursos que nos debruçaremos, sobretudo a ideia de metempsicose que Dolmancé
utiliza para apresentar seus princípios libertinos para seus colegas de libertinagem.
Observaremos a construção das ideias morais de Dolmancé através das ideias da
filosofia materialista do século XVIII. Focaremos precisamente no princípio da
metempsicose materialista. Esse princípio fundamenta alguns discursos do libertino e,
possibilitando uma relativização das noções de vida e de morte, a metempsicose
permite relativizar também os valores morais da época. Observando as ideias Voltaire,
Diderot e, principalmente, de Holbach, entenderemos o funcionamento do princípio da
metempsicose para, então, entendermos como Sade trabalha com esse princípio em
seus personagens e como isso pode inverter as noções de certo e errado dentro dos
discursos libertinos.

A Filosofia na Alcova tem dois personagens principais, Dolmancé e Saint-Ange.


Esses dois libertinos estão empenhados na tarefa de educar uma terceira personagem,
Eugénie. Saint-Ange tem vinte e seis anos, é casada e faz parte da alta nobreza. Seu
marido não vê problemas nas libertinagens dela contanto que ela lhe satisfaça certas
manias de libertinagem. Dolmancé tem trinta e seis anos, faz parte da alta nobreza
também, mas, ao contrário de Saint-Ange, é solteiro. Segundo o Cavaleiro de Mirvel,
irmão de Saint-Ange, Dolmancé tem “muita filosofia no espírito [...] é o mais célebre
ateu, o mais imoral dos homens... e da mais extrema e completa corrupção, o indivíduo
mais celerado e cruel que possa haver no mundo” (SADE, 2013, p. 11). Para Saint-Ange,
Dolmancé “tem precisamente o grau de filosofia necessária” (SADE, 2013, p. 15) para a
instrução da jovem de quinze anos, Eugénie. É nesse contexto que os discursos se
desenrolam.

É importante entender que as ideias apresentadas ao longo de A Filosofia na


Alcova não apresentam uma grande novidade filosófica, nem entre os filósofos da
época e nem entre os escritos de Sade. Várias ideias, inclusive a de metempsicose, são
anunciadas por vários personagens ao longo da obra de Sade. As próprias falas de
Dolmancé parecem se sintetizarem no panfleto lido pelo Cavaleiro de Mirvel. O
panfleto Franceses, Mais Um Esforço Se Quereis Ser Republicanos está no quinto diálogo
dos sete diálogos que constituem o livro A Filosofia na Alcova. Em uma determinada
parte do quinto diálogo, quando Eugénie expõe suas dúvidas sobre quais os costumes
são necessários para um governo, Dolmancé acha conveniente a leitura desse panfleto
e, por ter a voz mais bela entre todos ali, o Cavaleiro de Mirvel lê o panfleto para todos

Anãnsi: Revista de Filosofia, Salvador, v. 1, n. 1, 2020. 29


A metempsicose no discurso de Dolmancé

que estavam presentes na alcova. Após a leitura, Eugénie afirma a Dolmancé que esse
panfleto é “um escrito pleno de sabedoria, e, sob tantos aspectos, tão de acordo com os
vossos princípios, que eu seria tentada a acreditar que sois o autor” (SADE, 2013, p.
69). Fora da obra A Filosofia na Alcova, encontramos um discurso sobre a
metempsicose na fala de Bressac no livro Os Infortúnios da Virtude. O intuito desse
discurso é justificar o matricídio à Justine, a heroína virtuosa desse livro. Há, também, a
dissertação filosófica do Papa Pio VI, na História de Juliette, onde encontramos uma
longa fala sobre a metempsicose acompanhada, implicitamente, de ideias do filósofo
Holbach.

Como podemos observar, a ideia de metempsicose é um tema constante nas


falas dos libertinos de Sade. “‘Faça então um livro sobre a metempsicose’ diz a esposa
de Sade quando este lhe assinala seu interesse por esse dogma ‘insensato’, ainda que
‘muito verossímil’” (CASTRO, 2016, p. 99). Não há dúvidas quanto ao interesse de Sade
sobre esse assunto, mas do que se trata a metempsicose? Para Voltaire “a ideia da
metempsicose é talvez o mais antigo dogma do universo conhecido” (2001, p. 371).
Esse dogma consiste em observar que, na natureza, “um ponto quase imperceptível
torna-se um verme, esse verme se transforma em borboleta; uma bolota se transforma
num tronco, um ovo num pássaro; a água torna-se nuvem e trovão; a madeira troca-se
em fogo e cinza; tudo enfim, na natureza, parece metamorfose” (VOLTAIRE, 2001, p.
371). Diderot apresenta o princípio da metempsicose materialista na voz do sonhador
d’Alembert, “todos os seres circulam uns nos outros, por conseguinte todas as
espécies... tudo está em um fluxo perpétuo [...] Vivo, ajo e reajo em massa... Morto, ajo e
reajo em moléculas [...] Nascer, viver e passar é mudar de formas” (1961, p. 77-78).
Essa mesma ideia está presente em suas cartas. Para Diderot, a única diferença “entre a
morte e a vida, é que no presente, você vive em massa, e que dissolvido, disperso em
moléculas, daqui a vinte anos, você viverá em detalhe” (1759).

Do ponto de vista materialista, a metempsicose é “uma simples metamorfose ou


transferência de matéria de um organismo para um outro” (DELON, 1991, p. 74). Há
uma quantidade restrita de matéria na natureza, tudo que “morre” tem sua matéria
reempregada em outro ser, é uma mudança de forma. As partículas de matéria
circulam entre os seres. A metempsicose consiste na ideia de que “nada desaparece
definitivamente em uma natureza que reemprega as matérias orgânicas que ficam
disponíveis pelo fim do organismo” (DELON, 1991, p. 75). Assim, com uma quantidade
restrita de matéria, só se pode ter um ser novo a partir do fim de outro ser já existente.
A Natureza reemprega a matéria de forma cíclica criando novos seres a partir da
matéria deixada pelo ser que “morreu”. Não é à toa que esse tema é tão frequente nos
discursos dos libertinos de Sade, pois a metempsicose permite “relativizar as noções de
vida e de morte” (DELON, 1991, p. 75).

Um dos primeiros discursos mais significantes de Dolmancé consiste em


mostrar para Eugénie como a ideia de Deus é apenas uma quimera. A fonte desse
discurso está na pergunta feita pela jovem ao falar sobre as virtudes, perguntando ao

Anãnsi: Revista de Filosofia, Salvador, v. 1, n. 1, 2020. 30


Nilton Marlon Antônio

nosso libertino “o que pensais da piedade, por exemplo?” (SADE, 2013, p. 19). Para
Dolmancé a virtude não significa nada para quem não crê na religião2 e, para mostrar
que a religião não significa nada, que a existência de Deus é uma quimera, o celerado
faz uso de alguns argumentos que são a base para pensarmos a metempsicose
materialista:
Se está demonstrado que o homem só deve sua existência aos planos
irresistíveis da natureza; se está provado que tão antigo neste globo quanto o
próprio globo, ele não passa, como o carvalho, o leão e os minerais que se
encontram nas entranhas desse globo, de apenas uma produção exigida pela
existência do globo e não deve a sua a quem quer que seja [...] se está
demonstrado que Deus, que os tolos veem como único autor e fabricante de
tudo o que vemos, não passa do nec plus ultra da razão humana, fantasma
criado no instante em que esta razão não vê mais nada a fim de ajudar suas
operações. (SADE, 2013, p. 19).

Para entendermos o início desse discurso de Dolmancé, precisamos falar sobre


as influências filosóficas de Sade. As obras de Sade sofrem uma visível influência do
pensamento materialista moderno, sobretudo do Sistema da Natureza de Holbach. A
escolha de explicitarmos as influências do pensamento de Holbach sobre os escritos de
Sade não é aleatória, pois sua influência se faz muito clara nos discursos dos
personagens do Marquês. Sendo explícita nos discursos que levam à ideia de
metempsicose. Seja na voz do Papa ou na voz do Moribundo, a filosofia de Holbach é
professada pelos personagens. É por isso que Sade declarou, em uma de suas cartas
pessoais, a sua admiração pela obra do filósofo: “um livro que corre toda Paris, um
livro que eu fiz o papa ler. Um livro de ouro, numa palavra, um livro que deveria estar
em todas as bibliotecas e em todas as cabeças” (SADE, 2009, p. 196-197).

Holbach começa o primeiro capítulo do Sistema da Natureza falando que os


“homens se enganarão sempre que abandonarem a experiência por sistemas criados
pela imaginação” (HOLBACH, 2011, p. 31). Ou seja, pensar em um Deus como um nec
plus ultra da razão humana, algo que não está mais baseado empiricamente na
natureza, é pensar em uma quimera, algo que não existe, é uma enganação do homem
com ele mesmo. Pois, o “homem é obra da natureza, existe na natureza, está submetido
às suas leis; ele não pode livrar-se dela, não pode, nem pelo pensamento, sair dela”
(HOLBACH, 2011, p. 31). O homem deve, então, sua existência apenas aos planos
irresistíveis da natureza. Com o intuito de refutar a existência de Deus, Dolmancé dirá
que:
Se está provado que a existência deste Deus é impossível e que a natureza,
sempre em ação, sempre em movimento, tem por si só o que agrada aos tolos
lhe dar gratuitamente; se é certo supor que este ser inerte existiu, ele
certamente seria o mais ridículo dos seres, visto só ter servido um único dia, e
que, após milhões de séculos encontrar-se-ia numa inação desprezível (SADE,
2013, p. 19).

2Para entendermos essa frase precisamos pensar em outro sentido de piedoso, o de ser devoto a Deus.
Segundo o Dicionário Escolar Francês-Português Português-Francês, 1961, “pieux, euse (pië, ëz), adj.
Piedoso, devoto”.

Anãnsi: Revista de Filosofia, Salvador, v. 1, n. 1, 2020. 31


A metempsicose no discurso de Dolmancé

Nesse trecho, Dolmancé, além de ridicularizar a existência de Deus segundo


suas bases filosóficas, afirma que a natureza está sempre em movimento, sempre em
ação. Para entendermos o conceito de movimento na natureza, que é uma das bases
para entendermos a metempsicose mais à frente, recorremos novamente ao Holbach.

No pensamento de Holbach, o “movimento é um esforço pelo qual um corpo


muda ou tende a mudar de lugar” (2011, p. 43). Mas o principal é que “tudo está em
movimento no universo” (HOLBACH, 2011, p. 48), o movimento é uma característica
essencial da matéria. Há dois tipos de movimentos: um é observado imediatamente, o
outro, por outro lado, só percebemos com o tempo e por meio de seus efeitos. O
primeiro se trata de um “movimento em bloco, pelo qual um corpo inteiro é transferido
de um lugar para o outro” (HOLBACH, 2011, p. 45). Esse movimento nós podemos
observar imediatamente. É como quando alguém move um objeto qualquer de lugar,
podemos, imediatamente, observar o movimento pelo qual o objeto passou. O segundo
é “um movimento interno e oculto, que depende da energia própria de um corpo, ou
seja, da essência, da combinação, da ação e da reação das moléculas imperceptíveis de
matéria pelas quais esse corpo é composto” (HOLBACH, 2011, p. 45). Esse tipo de
movimento nós só conseguimos perceber com o tempo, não conseguimos observar
imediatamente, observaremos apenas os efeitos desse movimento. É como o
envelhecimento do objeto, o enferrujamento, e o exemplo usado por Holbach é a
fermentação. É importante compreender que esses dois tipos de movimentos são
perceptíveis para nós, cada um de seu modo. Um podemos observar imediatamente, o
outro observamos apenas as suas consequências, não podemos ver o movimento em si,
mas vemos o efeito que ele causa. Assim é entendido que tudo, então, está em
movimento. Aqueles movimentos que “não podem agir sobre nenhum dos nossos
órgãos”, ou seja, que não são os tipos de movimentos que apresentamos anteriormente,
“não têm nenhuma existência para nós, já que não podem nos afetar, nem, por
conseguinte nos fornecer ideias, nem ser conhecidos e julgados por nós” (HOLBACH,
2011, p. 44).

A ridicularizarão que Dolmancé professa sobre Deus tem seu início na suposta
inércia desse ser todo poderoso. Seguindo o que foi apresentado por Holbach, tudo que
existe na Natureza está em movimento, e “não existe e não pode existir nada fora do
círculo que contém todos os seres” (HOLBACH, 2011, p. 31), ou seja, fora do círculo
contínuo das partículas de matéria. Isso quer dizer que a existência desse ser não é
possível, pois não há existência de algo que não pode afetar nossos sentidos, que não
nos pode fornecer ideia alguma3. Esse Deus só poderia, assim, ser uma quimera. Mas o
ponto mais importante para nós é que, segundo esse discurso, para Dolmancé, assim
como para Holbach, o homem é criado pela Natureza e a Natureza, por si só, uma vez
provado que o movimento é intrínseco a ela, basta a si mesma. Para ambos, não existe

3Para Holbach todos as nossas faculdades intelectuais são derivadas da nossa faculdade de sentir, só o
que nos afeta pelos sentidos pode nos fornecer alguma ideia. Cf. capítulo oito do Sistema da Natureza.

Anãnsi: Revista de Filosofia, Salvador, v. 1, n. 1, 2020. 32


Nilton Marlon Antônio

nenhuma criação fora as criações da Natureza, nenhum criador além da própria


Natureza.

Mas como se dá o movimento de “criação” das coisas da Natureza? Essa


pergunta nos leva direto à ideia de metempsicose, que será central para o discurso de
Dolmancé em defesa do assassinado. Em Holbach vemos a ideia de uma marcha
constante da Natureza. Basicamente, a ideia principal é que na Natureza há uma
quantidade específica de matéria e, para ser possível que sempre haja coisas novas, é
preciso que haja, “com a ajuda do movimento, uma circulação contínua das moléculas
da matéria” (HOLBACH, 2011, p. 65). A natureza parece ter essa necessidade de estar
se renovando continuamente. Assim, as “moléculas, depois de terem, por algumas
combinações particulares, constituído seres dotados de essências, de propriedades, de
maneias de agir determinadas, dissolvem-se ou se separam com maior ou menor
facilidade e, combinando-se de uma nova maneira, formam seres novos” (HOLBACH,
2011, p. 65). Existe a ideia de que há um empréstimo dos elementos da natureza. Com a
“morte” do ser, esses elementos são devolvidos à natureza, formando outros seres: os
“animais, as plantas e os minerais, ao fim de um certo tempo, devolvem à natureza – ou
seja, à massa geral das coisas, ao armazém universal – os elementos ou os princípios
que eles tinham tomado por empréstimo” (HOLBACH, 2011, p. 70). Temos aqui uma
ideia cíclica, nada realmente morre na natureza, tudo está sempre existindo e tudo vai
sempre existir.

A ideia de metempsicose aparece no terceiro diálogo da Filosofia na Alcova, logo


depois de Dolmancé ter apresentado alguns de seus princípios à jovem Eugénie.
Dolmancé e Saint-Ange haviam apresentado princípios materialistas para justificar a
recusa à virtude e à piedade, além de justificar a pratica do adultério, do incesto, entre
outras coisas. Mas é no momento de justificar o assassinato que a ideia de
metempsicose aparece no discurso do libertino.

Dolmancé começa afirmando que a destruição é “uma das primeiras leis da


natureza, nada que destrói poderia ser um crime” (SADE, 2013, p. 29). Apesar da
utilização da palavra destruição, não é bem isso que ocorre. Nada é destruído de fato: “o
assassinado não é destruição. Quem o comete só varia as formas. Ele devolve à
natureza elementos de que sua hábil mão se serve para imediatamente recompensar
outros seres” (SADE, 2013, p. 29). A ideia principal se segue do que já foi dito por
Holbach. Como a Natureza possui uma quantidade determinada de matéria, ela só pode
criar algo novo a partir da destruição de algo já existente. O assassino, seguindo a
vontade da natureza, forneceria a ela a matéria necessária para a criação. Esse crime
“fornece-lhe materiais que ela imediatamente emprega, e a ação que os tolos tiveram
loucura em censurar revela-se apenas um mérito aos olhos desse agente universal”
(SADE, 2013, p. 29). Mais do que uma defesa do assassinato, mostrando que ele é
apenas uma forma de modificar os tipos de vida na natureza e que não há morte ou
destruição propriamente dita, Dolmancé demonstra que a natureza não tem uma
preferência sobre as espécies. O homem não é mais especial que um verme, todos são

Anãnsi: Revista de Filosofia, Salvador, v. 1, n. 1, 2020. 33


A metempsicose no discurso de Dolmancé

apenas formas de organização da matéria: “acreditamos que a natureza pereceria se


nossa maravilhosa espécie desaparecesse do globo, quando a destruição total dessa
espécie, restituindo à natureza a faculdade criadora que ela nos cede, lhe devolveria a
energia que lhe roubamos ao nos propagarmos” (SADE, 2013, p. 29). A raça humana é
apenas uma organização da matéria como qualquer outra coisa que existe. Sem os
humanos, a Natureza apenas proliferaria outros tipos de vida, não haveria nenhuma
perda para ela. A morte de um ou de todos os homens é indiferente aos olhos da
Natureza, e como o correto é seguir a voz da Natureza, não há nenhum problema no
assassinato de um homem ou mesmo na extinção de toda a raça humana.

Dolmancé apresenta essa ideia de voz da Natureza no começo do quinto diálogo


quando ele pretende demonstrar para Eugénie que não há mal nenhum na
libertinagem. A ideia é que a Natureza não tem duas vozes, não tem uma voz que prega
a entrega as paixões e outra que prega o sacrifício delas. Precisamos buscar qual é a
voz correta da Natureza. Obviamente, para o libertino, a única voz da Natureza é aquela
que nos diz para nos entregarmos as paixões. Para ele, afeiçoado às manias de
libertinagem, é seguro que “a natureza não tem duas vozes, em que uma cumpre
diariamente a tarefa de condenar o que a outra inspira; é bem certo ser somente de seu
órgão que os homens afeiçoados a esta mania recebem as impressões que os levam a
ela” (SADE, 2013, p. 44). Já vimos que todo o nosso conhecimento provém de nossas
faculdades sensoriais, o que não nos afeta não nos dá ideia, não conhecemos. Sendo
assim, tudo o que nos afeta, tudo o que conhecemos está na Natureza, todas as nossas
ideias provém dela, todas as nossas inclinações são o efeito da Natureza sobre nós. Não
devemos, portanto, fugir dessas inclinações que são a voz da Natureza.

Da mesma maneira que não há mal nenhum em um assassinato, também não há


mal nenhum em ter relações sexuais sem o objetivo de procriação, ou seja, não há mal
em práticas sexuais vistas como libertinas pelos dogmas religiosos. É justamente sobre
isso que Dolmancé coloca uma pergunta: “acaso já se demonstrou que a natureza
necessita tanto dessa reprodução como eles gostariam de nos fazer crer?” (SADE, 2013,
p. 44). Poderíamos concluir, com base nos discursos anteriores, que a resposta é não, a
Natureza não necessita da nossa reprodução. Ficou claro, anteriormente, que a
Natureza não necessita da existência da raça humana, ela seguiria sua marcha
normalmente ou até melhor. Com efeito, tal será o discurso de Dolmancé:
Se a natureza só criasse e jamais destruísse, eu poderia crer, como esses
fastidiosos sofistas, que o mais sublime de todos os atos seria trabalhar
incessantemente naquilo que produz, e, em consequência disso, estaria de
acordo com eles de que a recusa em produzir deveria necessariamente ser um
crime. Um simples olhar de relance sobre as operações da natureza não prova
que as destruições são tão necessárias a seus planos quanto as criações? Que
estas operações se ligam e se encadeiam tão intimamente que é impossível
uma agir sem a outra? Que nada poderá nascer ou regenerar-se sem
destruição? Logo, a destruição é uma das leis da natureza, tanto como a
criação (SADE, 2013, p. 44-45).

Anãnsi: Revista de Filosofia, Salvador, v. 1, n. 1, 2020. 34


Nilton Marlon Antônio

Dolmancé retoma algumas ideias que ele já tinha utilizado no seu discurso em
defesa do assassinato e os argumentos da metempsicose aparecem novamente. A ideia
de uma quantidade específica de matéria na Natureza e a necessidade da destruição
para criação de coisas novas. O importante é nos atermos ao uso da palavra destruição,
empregada constantemente por Domancé. No contexto da metempsicose, a destruição
não é uma destruição de fato, não existe uma morte, a matéria “destruída” vai ser
utilizada pela Natureza para a criação de algo novo, essa destruição faz parte do
processo de transmutação dos seres e, por isso, não há mal nenhum nela. Não é
possível não estar vivo, as coisas estão sempre existindo de diversas maneiras
diferente, em diversos e distintos arranjos de matéria. Trata-se de algo que Diderot
questiona em uma de suas cartas, “você concebe bem que um ser jamais possa passar
do estado de não-vivo para o estado vivente?” (1759). Nada jamais é destruído de fato,
nada morre. A destruição de um ser só se dá na medida em que outro surge por meio
de um novo emprego das partículas de matéria deixadas pelo ser anterior. Delon
explica que “o princípio materialista da metempsicose toma, em Sade, uma forma
agressiva, mas pode se combinar com um ponto de vista moral” (DELON 1991, p. 75). É
exatamente isso que Sade faz com Dolmancé. Partindo do princípio materialista da
metempsicose, Dolmancé leva a possibilidade de relativizar a vida e morte ao limite,
isso lhe permite fazer discursos em prol do assassinato e da sodomia. Dolmancé utiliza
desse princípio para justificar suas ações e suas condutas morais, além de ensinar suas
ideias para todos presentes na alcova. Assim, a metempsicose se torna uma peça chave
no discurso do libertino. Essa ideia materialista que Sade incorpora em seus escritos,
permite a seus personagens a possibilidade de justificar coisas absurdas para a moral
cristã da época.

Através da filosofia materialista moderna, Dolmancé justifica suas ações


libertinas. Sobretudo, é o pensamento filosófico, nesse caso, a metempsicose
materialista, que justifica as ideias de Dolmancé sobre assassinado, libertinagem e,
principalmente, sobre as discussões religiosas em torno da relação sexual servir
apenas com o intuito de procriação, ou seja, sobre a imoralidade de sodomia. O próprio
personagem é construído sobre os pilares de seus princípios, é solteiro e não tem
filhos. Suas ideias filosóficas tem, portanto, impactos em suas atitudes morais. Não à
toa, ele é descrito como o “mais célebre ateu, o mais imoral dos homens... e da mais
extrema e completa corrupção, o indivíduo mais celerado e cruel que possa haver no
mundo” (SADE, 2013, p. 11). Assim, Dolmancé toma forma através da filosofia
materialista do século XVIII por meio da influência que a leitura do Sistema da
Natureza teve sobre Sade na hora da criação de seus personagens. A ideia de
metempsicose acaba sendo formadora do caráter do personagem em questão, as
atitudes e as reflexões morais do libertino são moldadas pelo seu pensamento
materialista. Dolmancé não é apenas um libertino de espírito, ele é também libertino
em suas ações. Ele é imoral para os nossos padrões, mas não é imoral segundo a sua
filosofia. Esse libertino compreende a natureza como amoral, como indiferente,
portanto, age de acordo com ela. A metempsicose não está apenas presente em seus

Anãnsi: Revista de Filosofia, Salvador, v. 1, n. 1, 2020. 35


A metempsicose no discurso de Dolmancé

discursos, ela constitui os seus valores morais que, por fim, acabam determinando suas
ações e sua forma de viver.

Referências

CASTRO, Clara Carniceiro. Sade e a Ideia de Metempsicose. In: ALMEIDA, Fábio Ferreira
de. (Org.). Sobretudo a Noite. Goiânia: Edições Ricochete, pp. 99-123, 2016.

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Rio de Janeiro: Campanha Nacional de Material de Ensino, 1961.

DELON, Michel. L’Obsession de la mé tempsycose à la fin du XVIIIe siè cle, In:
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Gagliostro. Florença: Centro Editorial Toscano, pp. 71-79, 1991.

DIDEROT, Denis. O Sonho de d’Alembert, in: GUINSBURG, Jacob. In: A Filosofia de


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Moral. Tradução: Regina Schöpke e Mauro Baladi. São Paulo: Martins Fontes, 2011.

SADE, Marquês de. A Filosofia na Alcova ou Os Preceptores Imorais. Tradução:


Contador Borges, São Paulo: Editora Iluminuras, 2013.

SADE, Marquês de. 50 Lettres du Marquis de Sade à sa Femme. Paris: Flammarion,


2009.

VOLTAIRE. Dicionário Filosófico. Edição: Ridendo Castigat Mores, 2001.

Recebido em: 15 de jul. 2020


Aceito em: 17 de ago. 2020

Anãnsi: Revista de Filosofia, Salvador, v. 1, n. 1, 2020. 36


Universidade do Estado da Bahia
Departamento de Educação – Campus I
Anãnsi: Revista de Filosofia, Salvador, v. 1, n.1, 2020

A Subjetividade que reflete duas almas: Hegel e Machado


de Assis sobre a Dialética do Homem-Mundo
Subjectivity that reflects two souls: Hegel and Machado de Assis on
the Dialectic of the Man-World
Marcos Bruno Silva 1

Resumo: O presente trabalho teve o objetivo de compreender noções acerca da subjetividade proposta
por Hegel, por meio de uma relação com o conto “O Espelho - esboço de uma nova teoria da alma
humana”, de Machado de Assis. Foi realizada a leitura de obras importantes do filósofo alemão, como os
volumes I e III da “Ciência da Lógica e Enciclopédia das ciências filosóficas”, assim como a leitura atenta
do conto. Duas obras de René Magritte, “Reprodução proibida” e “O Espelho falso”, também foram
utilizadas para ilustrar a teoria e os conceitos machadianos e hegelianos no que tange a natureza dupla
da alma humana, para proporcionar uma experiência estética em um texto árido. Hegel desenvolveu
uma crítica ao princípio da subjetividade, fundamento absoluto da modernidade, exercício também
representado em René Descartes e Immanuel Kant. O Cogito cartesiano ou a consciência absoluta de
Kant defende que ela é intrínseca ao sujeito, e Hegel critica essa ideia ao defender a constituição desta
como resultado de um processo dialético entre o Eu e o mundo exterior, natureza e cultura, sintetizados
em um pensar conceitual, que gera as referências objetivas e as autorreferências do sujeito. Assim, é
indicado o modo que Hegel concebe a construção de subjetividade a partir da suprassunção do Outro no
Eu via conceitos, pois estes permitem a criação da identidade entre os diferentes momentos de qualquer
produção espiritual: trazem em si o para si, as verdades mais fundamentais do absoluto.

Palavras-chave: Subjetividade; Hegel; Dialética; Cultura; Identidade; Machado-de-Assis.

ABSTRACT: The present work had the objective of understanding notions about the subjectivity
proposed by Hegel, through a relationship with the short story “The Mirror - sketch of a new theory of
the human soul”, by Machado de Assis. Important works by the German philosopher were read, such as
volumes I and III of the “Science of Logic and Encyclopedia of Philosophical Sciences”, as well as a careful
reading of the story. Two works by René Magritte, “Reproduction forbidden” and “The false mirror”,
were also used to illustrate the Machado and Hegelian theory and concepts regarding the double nature
of the human soul, to provide an aesthetic experience in an arid text. Hegel developed a critique of the
principle of subjectivity, the absolute foundation of modernity, an exercise also represented by René
Descartes and Immanuel Kant. The Cartesian Cogito or Kant's absolute consciousness argues that it is
intrinsic to the subject, and Hegel criticizes this idea in defending its constitution as a result of a
dialectical process between the Self and the outside world, nature and culture, synthesized in a

1Graduado em Psicologia e Especialista em Teoria e Técnica Psicanalítica pela Universidade Federal de


Catalão, anteriormente Universidade Federal de Goiás - Regional Catalão. Atualmente se dedica a
pesquisa envolvendo Psicanálise, Filosofia e Literatura. E-mail: marcosbruno2786@gmail.com. Orcid:
orcid.org/0000-0002-0451-5541.
Marcos Bruno Silva

conceptual thinking, which generates the subject's objective references and self-references. Thus, it is
indicated the way that Hegel conceives the construction of subjectivity from the superassumption of the
Other in the Self via concepts, as these allow the creation of identity between the different moments of
any spiritual production: they bring in themselves the most important truths, fundamentals of the
absolute.

Keywords: Subjectivity; Hegel; Dialectic; Culture; Identity; Machado de Assis.

Introdução

A imagem abaixo traz à nossa consciência imediata a seguinte percepção: um


homem se olhando no espelho. Contudo, há algo estranho que ocasiona uma ruptura
em nossa forma habitual de conceber uma simples olhada no espelho: o homem da tela
“A reprodução proibida” de René Magritte não vê a si mesmo, mas um outro:

O espelho da tela que deveria


revelar aquele que olha a própria
imagem revela-lhe outra coisa, o
diferente. Assim, o espelho da tela ao
revelar um Outro e não o Mesmo, que é o
que estamos acostumados a enxergar
quando nos olhamos diante de algo
capaz de nos refletir, nos leva a uma
profunda inquietude, pois nos revela os
mistérios por trás de nossa própria
imagem, que aparenta ser algo
absolutamente do sujeito, sem relação
alguma com o exterior.

A nossa imagem revela o que


somos, mas será que permite à nossa
consciência o vislumbre desse
conhecimento de si de forma imediata?
O isto no espelho revela nossa mais
MAGRITTE, René. A reprodução proibida. íntima essência? De acordo com
Museum Bojimans Van Buningen, Holanda,
Machado de Assis (1839-1908) e o
1937. Fonte: Google Imagens.
filósofo alemão Georg Wilhelm Friedrich
Hegel (1770-1831), sim. O espelho de
Magritte não está absolutamente errado sobre o que reflete, pois mostra o que os
comuns não conseguem: o Outro. Assim, o que Magritte, Machado e principalmente
Hegel, portanto, tem a dizer sobre a reflexão dos espelhos e como estas geram
especulações sobre a nossa subjetividade?

Para alcançar o objetivo utilizou-se as imagens das obras, do artista belga René
Magritte, la reproduction interdite - “A reprodução proibida”- de 1937, e Le faux miroir -

Anãnsi: Revista de Filosofia, Salvador, v. 1, n. 1, 2020. 38


A Subjetividade que reflete duas almas: Hegel e Machado de Assis sobre a Dialética do Homem-Mundo

“O falso espelho”- para esteticamente diminuir a aridez conceitual de Hegel. No que se


refere a Machado de Assis, utilizou-se o conto, de 1882, “O espelho – Esboço de uma
nova teoria da alma humana”. Por fim, foram utilizadas algumas obras capitais do
filósofo Hegel para tentar a exteriorização do conceito de subjetividade, como uma
manifestação da Ideia sobre a mesma. Outros filósofos complementares foram
utilizados para a compreensão da lógica conceitual hegeliana acerca do termo em
questão.

Por ser um trabalho de natureza filosófica, imagina-se logo um escrito com


elevada precisão conceitual e definições rigorosas acerca do assunto proposto.
Contudo, se tratando de Hegel, podemos nos permitir à utilização da arte, pois segundo
ele, esta serve aos propósitos do Espírito, por meio de suas representações sobre a
vida. A filosofia hegeliana é um sistema em que as formas culturais – Arte, Religião e
Filosofia – se aproximam e se afastam, num movimento dialético, para efetivarem a
manifestação da Ideia na realidade. Assim, um fio lógico possibilita a esse sistema uma
interação fundamental entre suas formas à medida em que o desenvolvimento da
consciência permite a expressão do divino (das Göttliche), ou seja, os interesses mais
profundos da humanidade, as verdades mais abrangentes do espírito (HEGEL, 2001).

Com o intuito de relacionar as imagens, o conto e os conceitos tentar-se-á


expressar a ideia de subjetividade, de acordo com Hegel. A subjetividade é um
produzir, um produto derivado da interação dialética entre natureza, sociedade e
homem, que irá se revelando a partir dos momentos da evolução da consciência, no
esforço que esta tem não somente em relação ao conhecimento do para si, ou seja, do
mero exterior, mas também do em si, do que habita as coisas, os homens, daquilo que
anima tudo e torna possível um saber em si e para si, que é o conhecimento concreto
emanado pela produção superior do Espírito.

Jacobina, Magritte e Hegel: duas almas, não uma, subjazem no homem!

Jacobina, personagem do conto de Machado de Assis escrito do ano de 1882,


enquanto conversava com os seus companheiros sobre coisas metafísicas proferiu a
seguinte sentença: “em primeiro lugar, não há uma só alma, há duas...”. Jacobina e seus
quatro companheiros, depois de refletirem sobre “os árduos problemas do universo”,
desceram das especulações acerca do mundo fechado e do universo infinito e
aterrissaram sobre o terreno irrequieto e movediço da “natureza da alma”. A presença
dessas duas almas no ser humano, segundo a hipótese de Jacobina, é também
corroborada pelo artista surrealista René Magritte e por Hegel.

Antes de Jacobina apresentar essa tese de que o ser humano é habitado por duas
almas, seus companheiros discutiam e defendiam justamente a afirmação contrária e
bastante comum: a de que o ser humano possui apenas uma alma. Na filosofia, antes de
Hegel, toda uma tradição especulativa ratifica esta tese defendida pelos companheiros
de Jacobina: a presença de uma única alma no ser humano. Descartes e Kant

Anãnsi: Revista de Filosofia, Salvador, v. 1, n. 1, 2020. 39


Marcos Bruno Silva

evidenciam esta “alma” por meio do termo subjetividade, considerando-a o


fundamento absoluto de toda a realidade: o primeiro por meio do Cogito, penso, e o
segundo, por meio do Eu. Segundo Habermas (2002) a subjetividade em Descartes e
Kant é uma representada pelo cogito ergo sum no primeiro e pela consciência de si
absoluta, no segundo.

Sobre a subjetividade em Descartes e Kant, explica Habermas (2002, p. 28),


“trata-se da estrutura da auto-relação do sujeito cognoscente que se dobra sobre si
mesmo enquanto objeto para se compreender como em uma imagem especular,
justamente de modo especulativo”. Da modernidade até Hegel, a subjetividade era vista
como dado natural, como a referência primordial. Ela era imanente ao homem.
Descartes e Kant acreditavam nesta ideia, embora o segundo tentasse incorporar a
sensibilidade, em seu desenvolvimento. Mas, a despeito dessa tentativa, tanto em
Descartes quanto em Kant, a subjetividade era uma “alma” só e era uma propriedade
do homem. Embora Hegel não se dedique exclusivamente a subjetividade, como fizera
Descartes e Kant, ele a aborda e dá a ela um caráter dialético por meio da crítica do
solipsismo presente na filosofia moderna.

Assim, o cogito cartesiano e o eu kantiano seria equivalente à metáfora de uma


única “alma” presente no ser humano, que confere a este uma interioridade fundada
numa auto-relação meramente reflexiva de si consigo mesmo. Disso resultariam todas
as faculdades de sentir, pensar, imaginar, conhecer, do ser humano e, por fim, do seu
existir. Hegel, no entanto, é um crítico dessa ideia, pois para ele sujeito e realidade não
são entidades isoladas de forma absoluta, mas interdependentes. Como já dito, para ele
a subjetividade é constituinte do homem, mas a diferença é que em seu sistema
filosófico, ela não é absoluta ou pura, mas sim resultante de um processo dialético.
Neste processo contrário, a Natureza e o Espírito vão dando forma e conteúdo concreto
ao sujeito.

Mas, a questão da subjetividade em Descartes e em Kant não será aprofundada.


Abordemos superficialmente as concepções destes filósofos, pois dão conteúdo às
crenças acerca da única alma defendida pelos companheiros de Jacobina. Uma ou duas
não é essa a questão, pois eles estavam a fim de refletir sobre a natureza da alma.
Segundo a ideia defendida pelos companheiros de Jacobina, a alma seria o equivalente
a uma positividade absoluta decorrente de uma mera reflexão do sujeito sobre si
mesmo, sendo o restante, Mundo, outros, coisas meras projeções desse interior.

A presença de duas almas diz respeito a sua natureza, de acordo com Magritte,
Jacobina e Hegel, pois todos eles defendem que existe um Outro, uma negação do eu,
importante para a constituição da subjetividade. Deste modo, esta deixa de ser
autocentrada. A subjetividade, então, seria uma superação e uma reconciliação por
meio do trabalho do Espírito, ou do homem. O trabalho realizado por esse parece ser a
unificação da natureza e da história, via conceitos, produzindo, dialeticamente, a
subjetividade no homem, que parece ser um conjunto complexo de conceitos, que

Anãnsi: Revista de Filosofia, Salvador, v. 1, n. 1, 2020. 40


A Subjetividade que reflete duas almas: Hegel e Machado de Assis sobre a Dialética do Homem-Mundo

instituem a interioridade do homem a partir de suas vivências dialéticas no mundo


exterior: natureza, sociedade, outros homens, símbolos, leis, regras, etc.

Voltando ao raciocínio de Jacobina, sobre as duas almas, é lançado o seguinte


argumento para sustentar sua tese: “nada menos de duas almas. Cada criatura humana
traz duas almas consigo: uma que olha de dentro para fora, outra que olha de fora para
dentro” (ASSIS, 1882, p. 102). Atentemo-nos a esse trecho. Esse argumento parece
confirmar a ideia de subjetividade vislumbrada por Hegel, que, segundo Habermas
(2000) critica as ideias anteriores como meras positividades autorreferidas por um
sujeito cindido com o mundo, devido a um princípio absoluto desta subjetividade.

Segundo Hegel (2011, p. 29) “esse particular, nós só o obtemos ao passar de um


para o outro, pois o particular contém um [termo] e um Outro”. Para o filósofo alemão
parece haver uma ligação essencial entre o Eu (interior) e o Mundo externo, natureza,
sociedade, outras pessoas para a assunção da subjetividade. Essa concepção hegeliana
supera tanto as noções de uma subjetividade fundamentada de forma absoluta em uma
autorreferência, ou seja, eu sou o mundo, e uma outra que afirma que nossa
subjetividade não é nada menos que uma projeção do mundo exterior por meio de
nossos olhos, como sugere a obra artística de Magritte, Le faux miroir (O falso espelho):

MAGRITTE, René. O Falso Espelho, Acervo do Museu de Arte


Moderna, Nova York, 1928. Fonte: Google Imagens.

Essa obra traz essa ideia limitada de que o interior humano não é habitado por
algo divino, ou uma expressão de algo meramente do eu, mas sim que esse interior
nada mais é que a reprodução do mundo exterior pelo nosso corpo e nossos sentidos.
Assim, nem divina, nem egocêntrica e tampouco projeção excêntrica, mas sim uma
criação do espírito, a subjetividade em Hegel é a busca para a superação das cisões

Anãnsi: Revista de Filosofia, Salvador, v. 1, n. 1, 2020. 41


Marcos Bruno Silva

sugeridas pelas outras concepções essencialistas e externalistas, meramente


singulares, para integrá-las, por meio de um movimento dialético, em um universal, em
que “o interior aparece no que é exterior e se dá a conhecer através do mesmo, ao
passo que o exterior aponta por si próprio para o que é interior” (HEGEL, 2001, p. 43).

Concordando com Hegel, Kojève comenta a dialética presente na constituição da


subjetividade e assevera que: “o homem real e verdadeiro é o resultado de sua inter-
ação com os outros” (Kojève, 2014, p. 20). Desse modo, a alma que olha de dentro para
fora (Eu) e a outra que olha de fora para dentro (Mundo), permite ao homem o
vislumbre da construção histórica do seu Eu, ou seja, de sua subjetividade. De acordo
com Hegel essa construção da subjetividade por meio da inter-ação entre o eu e o
Outro ocorre da seguinte forma:
[...] assim como, no conceito em geral, a determinidade que nele se apresenta
é uma progressão do desenvolvimento, assim também no espírito cada
determinidade em que ele se mostra é momento do desenvolvimento, e na
determinação progressiva é avançar para a sua meta, [que] é tornar-se para si
o que é em si. [...] (HEGEL, 2011, p. 37.)

A subjetividade contém em si um movimento perene entre as duas almas,


interna e externa, o que na verdade é a relação dialética entre o eu e o mundo, onde o
exterior é incorporado ao Eu, que parece ser um conjunto de internalizações de
diversos Outros sintetizadas em (auto) conceitos que dão a ele a segurança de si
mesmo do mundo e de tudo ao seu redor. A constituição da subjetividade, portanto, é
um estranhamento do homem diante da suprassunção, ou seja, a negação da natureza,
do mundo pelo espírito, conservando neste o essencial daquilo que foi negado, num
nível mais elaborado.

De acordo com Hegel (2001, p. 37), o espírito ao “apreender-se em seu outro,


transformando o que é estranho em pensamento e, assim, o reconduzindo de volta a si”
vai delimitando a subjetividade enquanto produto, não acabado, pois ela é uma
resultante de outra luta contraditória entre a vida e a morte, de uma atividade dialética
que a efetiva no real, ou seja, na sociedade. Acerca da relação entre as “duas almas” do
homem, Jacobina explica que:
[...] as duas completam o homem, que é metafisicamente falando uma laranja.
Quem perde uma das metades, perde naturalmente metade da existência; e
casos há, não raros, em que a perda da alma exterior implica a da existência
inteira [...] (ASSIS, 1882, p. 102).

Esta marcante observação de Jacobina diz justamente sobre a relação dialética


necessária existente entre Natureza e Espírito para a formação da subjetividade.
Contudo, ele dá maior peso, assim como Hegel, na alma oriunda do Espírito, pois em
outro momento do conto lembra que “a alma exterior pode ser um espírito, um fluído,
um homem, muitos homens, um objeto, uma operação”; acrescentando depois que “o
ofício dessa segunda alma é transmitir a vida” (ASSIS, 1882, p. 102).

Anãnsi: Revista de Filosofia, Salvador, v. 1, n. 1, 2020. 42


A Subjetividade que reflete duas almas: Hegel e Machado de Assis sobre a Dialética do Homem-Mundo

Jacobina ao defender sua tese das duas almas retrata o momento crucial: a
transformação dialética do ser natural em um ser cultural, que não aniquila a natureza,
mas a conserva. Apesar disso, para Hegel, o que é da ordem do Espírito é superior, pois
é isto que caracteriza o ser humano. Podemos ver essa transformação numa breve
descrição realizada por Machado de Assis acerca da mutação sofrida por Jacobina na
constituição de sua ontologia, enquanto ser social. A personagem principal conta um
pouco de sua história de vida e relata uma experiência marcante que teve aos vinte e
cinco anos. Ele era um rapaz pobre, mas viu seu destino mudar quando obteve êxito ao
ser nomeado alferes.

Kojève (2014) afirma que a mudança de vida de alguém, como a que aconteceu
com Jacobina, onde ele deixou de ser Joãozinho, ou um João ninguém, se deve a uma
luta. Joãozinho se rebelou contra o seu atual estado e se lançou a uma luta que o forçou
a se libertar da natureza do anonimato, do puro sentimento de si, arriscando sua vida
numa luta de puro prestígio vindo a se constituir “Ser-para-si”, ou sua realidade
essencial. Assim, Joãozinho passa a ser o alferes, tornando-se alguém devido ao seu
desejo de reconhecimento que o levou a busca de uma realidade essencial,
distinguindo-o da coisidade e se afirmando como ser social. Jacobina corrobora a
ideia de Kojève ao descrever espantado aos companheiros a metamorfose pela qual
passara:
[...] a consciência do homem se obliterava, a do alferes tornava-se viva e
intensa. As dores humanas, as alegrias humanas, se eram só isso, mal
obtinham de mim uma compaixão apática ou um sorriso de favor. No fim de
três semanas, era outro, totalmente outro. Era exclusivamente alferes. (ASSIS,
1882, p. 104).

Pode-se observar a transformação do humano natural em um humano social, no


qual a realidade essencial a ser alcançada é a da subjetividade. Quando o homem inicia
sua existência no mundo, ele não difere de um animal qualquer, é um ser natural, um
animal, preso a condições dadas, onde meios e fins são confundidos. É a partir de sua
inserção em uma cultura que ele irá superar o mero sentimento-de-si, ou seja, o mero
animal. Isso se efetivará quando entrar em contato com a sociedade, as leis, e outros
homens, e se constituindo como uma consciência-de-si. Sobre essa inserção do homem
no mundo da cultura, Kojève assevera:
O homem é consciência-de-si. É consciente de si, consciente de sua realidade e
de sua dignidade humana. É nisso que difere essencialmente do animal, que
não ultrapassa o nível do simples sentimento de si. O homem toma
consciência de si no momento em que – pela primeira vez – diz: “Eu”.
Compreender o homem pela compreensão de sua origem é, portanto,
compreender a origem do Eu revelado pela palavra. (KOJÈVE, 2014, p. 11).

Machado de Assis também retrata essa etapa do processo dialético hegeliano,


metaforicamente exposto por:

Anãnsi: Revista de Filosofia, Salvador, v. 1, n. 1, 2020. 43


Marcos Bruno Silva

O alferes eliminou o homem. Durante alguns dias as duas naturezas


equilibraram-se; mas não tardou que a primitiva cedesse à outra; ficou-me
uma parte mínima de humanidade. Aconteceu então que a alma exterior, que
era dantes o sol, o ar, o campo, os olhos das moças, mudou de natureza, e
passou a ser a cortesia e os rapapés da casa, tudo o que me falava do posto,
nada do que me falava do homem. A única parte do cidadão que ficou comigo
foi aquela que entendia com o exercício da patente; a outra dispersou-se no ar
e no passado. (ASSIS, 1882, p. 104).

Assim, o homem, a subjetividade, surge a partir do momento em que o Eu é


enunciado mediante as palavras ou signos ou elementos linguísticos que possuem
valor na cultura. O suporte natural também é importante, pois a realidade humana só é
possível dentro de uma vida biológica, animal. O sentimento-de-si, a dimensão natural
do homem, não é condição suficiente para o pleno desenvolvimento da consciência de
si e da realidade humana, mas necessária. E as contribuições do mundo e da cultura são
fundamentais, pois eles serão no interiorizados no organismo dando origem a um
desejo, a uma consciência e existência enquanto ser humano.

Foi visto, portanto, como a subjetividade é desenvolvida. Ela é uma resultante


da interação entre as “duas almas”, uma representada pelo dado, o natural, a
animalidade, o puro sentimento de si, com outra que é a alteridade, o Outro, o mundo, o
social. Essa concepção marca a distinção de Jacobina em relação aos companheiros
quando estes falavam sobre a natureza da alma e a de Hegel em relação a uma tradição
filosófica da modernidade marcada pelo traço de pureza, defendidas por Descartes e
Kant. No plano artístico, Magritte apresenta a crítica à ideia de uma subjetividade
autorreferenciada no próprio sujeito e corrobora as ideias de Jacobina e Hegel.

O espelho que reflete dialeticamente o ser em si e o ser para si

A completar a ideia acerca da subjetividade hegeliana, o elemento espelho é


aquilo que, além de refletir a imagem de algo ou alguém, garante o reconhecimento e
faz o elo entre a natureza e o histórico, o mesmo e o outro, dando unidade e identidade
ao movimento dialético vivido pelo homem na formação de sua subjetividade. Hegel
(1995, p. 79) afirma que “[...] cada homem é um mundo inteiro de representações, que
estão sepultadas na noite do Eu. Assim, pois, [o] Eu é o universal, no qual abstrai de
todo o particular, mas no qual, ao mesmo tempo tudo está envolvido.”.

Hegel indicava que as representações petrificadas no Eu decorrem da abstração


que este faz, quando em relação dialética com o seu outro. É na relação do sujeito com
o mundo que se formam as representações do Eu, e esses serão os elementos a serem
internalizados, e constituirão o espaço interno do sujeito. Essa ideia revela a
importância da formação de representações e conceitos a partir das vivências do
sujeito com o mundo. O conceito será como um espelho que permitirá ao sujeito o
vislumbre de sua relação com o seu outro, para a chegada até o lugar em que se
encontra.

Anãnsi: Revista de Filosofia, Salvador, v. 1, n. 1, 2020. 44


A Subjetividade que reflete duas almas: Hegel e Machado de Assis sobre a Dialética do Homem-Mundo

Contudo, existe um detalhe importante: se os conceitos e as representações


coagulam na interioridade do sujeito, devido à presença de um obstáculo de seu
movimento no mundo, o Eu perde sentido. Jacobina narra um pouco da perda de
sentido quando aqueles que alimentavam o reconhecimento de sua nova condição de
alferes se retiraram ou o enganaram. Depois de ir até à casa de sua tia passar alguns
dias, Jacobina é obrigado a ficar somente no lugar, pois ela recebe uma notícia e tem
que se retirar às pressas de seu aposento e visitar uma filha, acometida por uma grave
doença. Antes de ir embora era “sobrinho, alferes” para lá e para cá. Depois que perdeu
o reconhecimento do seu outro que o legitimava em sua nova condição, ele se viu
perdido na solidão.

De acordo com Assis (1882) esse reflexo solitário levou Jacobina a sentir
estreitamento da alma externa, que quando era na presença de alguém que a
reconhecesse, estava viva dentro de si. Quando a tia foi embora ele ficou novamente
frente a frente com a natureza:
[...] achei-me só, sem mais ninguém, entre quatro paredes, diante do terreiro
deserto e da roça abandonada. Nenhum fôlego humano. Corri a casa toda, a
senzala, tudo, nada, ninguém, um molequinho que fosse. Galos e galinhas tão
somente, um par de mulas, que filosofavam a vida, sacudindo as moscas, e três
bois. (ASSIS, 1882, p. 105).

Machado de Assis parece aqui fazer uma crítica à solidão de Descartes, quando
este isolado em uma casa a frente da lareira se regozijava com a pretensa
superioridade de seu Cogito frente ao mundo ilusório. Hegel (1995) corrobora com a
visão machadiana e afirma que a solidão decorre da incompatibilidade do homem com
a natureza em si “na medida em que o homem é, como ser-da-natureza, e se comporta
como tal, é este um comportamento que não deve ser. O espírito deve ser livre, e ser
por si mesmo o que é. A natureza, para o homem, é apenas o ponto de partida que ele
deve transformar” (HEGEL, 1995, p. 86).

Por essa razão é que Jacobina teve essa sensação de solidão, pois sendo pior que
a própria morte, pois nenhum fôlego humano estava ali para proferir palavras de
reconhecimento, encontrava-se novamente com a natureza fria e apática quanto à
condição de homem livre. Depois de sofrer com a ausência do seu outro, sem se
contentar com suas representações subjetivas, que nada garantiam a Jacobina, teve
uma ideia:
[...] desde que ficara só, não olhara uma só vez para o espelho. Não era
abstenção deliberada, não tinha motivo; era um impulso inconsciente, receio
de achar-me um e dois, ao mesmo tempo, naquela casa solitária; e se tal
explicação é verdadeira, nada prova melhor a contradição humana, porque no
fim de oito dias, deu-me na veneta olhar para o espelho com o fim justamente
de achar-me dois. (ASSIS, 1882, p. 106).

Ao se olhar no espelho teve um novo estranhamento, pois este parecia refletir


sua condição anterior de um ser meramente natural. O espelho, disse Jacobina, “não me
estampou a figura nítida e inteira, mas vaga, esfumada, difusa, sombra de sombra [...] a

Anãnsi: Revista de Filosofia, Salvador, v. 1, n. 1, 2020. 45


Marcos Bruno Silva

imagem era a mesma difusão de linhas, a mesma decomposição de contornos” (ASSIS,


1882, p. 107). Era refletido não o conceito de jacobina, mas sim uma natureza
geométrica e confusa de Descartes e um múltiplo de sensibilidade kantiano sem o
ordenamento das categorias do entendimento. Ele continuava a se buscar no espelho,
contudo sem sucesso.

Entretanto, quando Jacobina teve o pensamento e se lembrou de vestir a farda


do alferes ele pôs-se vestido imediatamente frente ao espelho. Dessa vez não houve
estranhamento, mas sim reconhecimento, pois “o vidro reproduziu então a figura
integral, nenhuma linha de menos, nenhum contorno diverso; era eu mesmo, o alferes
que achava, enfim, a alma exterior [...] não era mais um autômato, era um ente
animado.” (ASSIS, 1882, p.107). Essa passagem representa a ideia de Hegel que só pelo
pensamento é possível vislumbrar a suprassunção no processo dialético, em que
natureza e espírito se reconciliam. Depois de vestida a farda Jacobina novamente se
encontra no reino da liberdade, pois escapou das indefinições e variações da
singularidade da natureza e se tornou um universal, por meio da assunção de seu ser
social. “O homem”, conclui Hegel, “na medida em que é espírito, não é um ser-da-
natureza; na medida em que se comporta como um tal ser, e persegue os fins do desejo,
é que o quer. ” (HEGEL, 1995, p. 86). Assim, o espelho reflete o homem volitivo, que ao
relembrar de sua condição por meio da farda, transcende o reino da necessidade se
tornando humano. A subjetividade então seria o resultado da incorporação da natureza
e a sua transformação mediante o pensamento de desejo.

Considerações Finais

Magritte, Jacobina e Hegel e suas concepções sobre a natureza da alma humana


serviram de inspiração para a escrita deste pequeno ensaio. Falar da subjetividade
demanda fineza, principalmente ao se relacionar conceitos de artistas e filósofos
consagrados pela tradição intelectual e artística do ocidente. Essa, não é derivada
exclusivamente do sujeito e tampouco é uma reprodução exata, por meio dos sentidos
humanos, de uma pura exterioridade. É movimento de assimilação, um trabalho do
Espírito, que conjuga Natureza e História e dá ao homem sua identidade. Assim, o
humano deixa de ser uma entidade natural e animal e passa a ser um ente social, sendo
que nesta característica essencial estão suprassumidas as outras etapas necessárias à
sua formação.

Existe ainda um elemento fundamental para a organização das interiorizações


daquela relação dialética no corpo do homem, o mediador, nesse caso, o conceito que
organiza as experiências vivenciadas por ele em suas transformações. O conceito
assume uma função especular, pois ele, embora seja resultado de um pensar, o ajuda a
compreender sua dupla natureza, animal e social, permitindo-o vislumbrar a sua
constituição histórica. O conceito é o espelho que reflete a ligação fundamental do Eu
com o seu Outro. Além de que ele é o que produz os pórticos, referências subjetivas, na

Anãnsi: Revista de Filosofia, Salvador, v. 1, n. 1, 2020. 46


A Subjetividade que reflete duas almas: Hegel e Machado de Assis sobre a Dialética do Homem-Mundo

interioridade do sujeito, que o faz lembrar permanentemente do movimento dialético


formador de sua existência.

As obras de Magritte contribuem para que se possa visualizar a ideia de


subjetividade formada a partir da relação com o outro. Tanto “A reprodução proibida”
quanto “O falso espelho” apontam críticas, de modo que ressaltam que ela é tão
somente a expressão do outro. Contudo, refuta a ideia comum que se tem de que ela
nada mais é do que algo inerente ao sujeito. Segundo essa ideia, o sujeito possuiria uma
subjetividade absolutamente sua. Ela seria o fundamento de toda a realidade, incluindo
a exterior. Tudo seria projeção dessa subjetividade. Descartes e Kant são defensores
dessa concepção. O cogito e a consciência absoluta ditariam a tônica da existência do
real.

Machado de Assis e Hegel buscam desconstruir essa ideia. Para ambos o instinto
da alma existe a relação entre a natureza e a cultura, entre o animal e o social,
mediados pelo conceito, que permite ao humano o deciframento de sua interioridade
em termos de movimentos históricos dialéticos e não de divindades, imanências ou
reprodução da mera exterioridade. Ambos, o literato e o filósofo, retratam o trabalho
do Espírito no processo de socialização do animal-homem. Desse modo, o espelho seria
a reflexão desse duplo, ou seja, o conceito fixado na interioridade humana, que contém
em si conteúdo concreto resultante do processo citado.

Dentro do conceito, existiria a síntese registrada da experiência vivida pelo


homem do processo dialético, do sentimento de si até a assunção da consciência de si.
A chegada até esse píncaro não significa que as etapas anteriores foram eliminadas,
mas sim que na atualidade significam algo maior, devido à força do presente histórico,
o qual está imerso o indivíduo. No caso de Jacobina pode-se perceber esse movimento,
era João e se tornou Alferes. Depois de uma confusão com o papel social que iria
assumir doravante, se tornou Alferes João. Dessa maneira, o significado de ser Alferes
assimilou o homem João e deu a este um novo conceito de si mesmo, em si e para si.

Este (auto) conceito guarda o antes, o agora e está sempre em direção ao porvir,
pois a subjetividade é um mover-se perene em direção a atualizações constantes, pois
caso o movimento cesse e fique restrito às necessidades ou a natureza, o ser não
atingirá sua plenitude e ficará petrificado na condição de escravo. Não se falou da
relação entre senhor e escravo neste trabalho, mas percebe-se que Jacobina ao recusar
o status de Joãozinho, que é João ninguém, pois está como todos os outros numa
situação de naturalidade, de indiferenciação, quando este atingiu o posto de alferes
pôde se diferenciar. Saiu do anonimato e passou a ser reconhecido como diferente. A
assunção da diferença em relação à mesmice inscreve o humano na posição de mestre.

Assim, ao atingir o ser social e manter a animalidade como um resquício de uma


etapa superada dentro de si, o ser humano constitui a sua subjetividade, assim como o
conhecimento, o saber e a cultura. A subjetividade é produto de uma criação e de um
pensar, pois é devido a essa capacidade de produzir conceitos, que o ser humano

Anãnsi: Revista de Filosofia, Salvador, v. 1, n. 1, 2020. 47


Marcos Bruno Silva

conhece a si mesmo, se liga ao mundo e opera uma dupla transformação, pois vê em


tudo seu reflexo, mas não como mera projeção, mas sim como reconhecimento deste
outro, natural, inicialmente e social, posteriormente, como constituidores de sua
condição humana. Devido a essa constatação Jacobina tem razão ao concluir: “nada
menos de duas almas. Cada criatura humana traz duas almas consigo: uma que olha de
dentro para fora, outra que olha de fora para dentro” (ASSIS, 1882, p. 102).

Referências

ASSIS, Machado de. Papéis Avulsos. São Paulo: Editora Martin Claret, 2001.

HABERMAS, Jürgen. O Discurso filosófico da modernidade: doze lições. São Paulo:


Martins Fontes, 2000.

HEGEL, Georg Wilhelm Friedrich. Enciclopédia das Ciências filosóficas em


Compêndio: volume 1- A ciência da lógica. São Paulo: Loyola, 1995.

HEGEL, Georg Wilhelm Friedrich. Cursos de Estética, volume 1. São Paulo: Editora da
Universidade de São Paulo, 2001.

HEGEL, Georg Wilhelm Friedrich. Ciência da Lógica: Excertos. Seleção e tradução de


Marco Aurélio Werle. São Paulo: Bancarolla, 2011a.

HEGEL, Georg Wilhelm Friedrich. Enciclopédia das Ciências filosóficas em


Compêndio: volume 3 – A filosofia do espírito. São Paulo: Loyola, 2011b.

HEGEL, Georg Wilhelm Friedrich. Lecciones sobre la historia de la filosofia III.


México: FCE, 1955.

KOJÈVE, Alexandre. Introdução à leitura de Hegel. Rio de Janeiro: Contraponto, 2014.

MARCUSE, Herbert. Razão e Revolução: Hegel e o Advento da Teoria Social. Rio de


Janeiro: Paz e Terra, 1978.

Recebido em: 15 de jul. 2020


Aprovado em: 22 de ago. 2020

Anãnsi: Revista de Filosofia, Salvador, v. 1, n. 1, 2020. 48


Universidade do Estado da Bahia
Departamento de Educação – Campus I
Anãnsi: Revista de Filosofia, Salvador, v. 1, n.1, 2020

A dialética negativa de Theodor Adorno contra o idealismo


absoluto de Hegel
La dialectique négative de Theodor Adorno contre l'idéalisme
absolu de Hegel

Cleidson de Jesus Rocha 1

Resumo: Este artigo apresenta e discute a crítica de Theodor Adorno ao idealismo absoluto de Hegel,
contida na introdução à Dialética Negativa, focando nos argumentos adornianos contra o
amordaçamento da dialética na positividade. Adorno considera que é na subversão da natureza
afirmativa da dialética que se pode chegar a uma determinação que não seja mera abstração, mas que
alcance definitivamente o filosofar concreto. Dividido em duas partes, o artigo inicia discutindo o
trânsito da dialética afirmativa à dialética negativa e depois de apontar os principais pontos de objeção
ao idealismo hegeliano, alcança, na segunda parte, o principal fundamento da Dialética Negativa que é a
aposta em uma lógica do não-idêntico. Finaliza destacando o aspecto prático da proposição adorniana,
que consiste em uma filosofia que não cultive a dicotomia teoria x práxis, pois que a práxis é
compreendida como o território, não apenas dos fazeres, mas também do pensamento, que institui
realidade aos fatos sociais.
Palavras-chave: Dialética Negativa. T. W. Adorno. Idealismo alemão. Teoria crítica. Hegel.

Resumée: Cet article présente et discute la critique de Theodor Adorno de l'idéalisme absolu de Hegel,
contenue dans l'introduction à la dialectique négative, en se concentrant sur les arguments adorniens
contre le emprisonnement de la dialectique dans la positivité. Adorno considère que c'est dans la
subversion de la nature affirmative de la dialectique qu'il est possible de parvenir à une détermination
qui n'est pas une simple abstraction, mais qui atteint définitivement la philosophie concrète. Divisé en
deux parties, l'article commence par discuter du passage de la dialectique affirmative à la dialectique
négative et après avoir souligné les principaux points d'objection à l'idéalisme hégélien, il atteint, dans la
deuxième partie, le fondement principal de la dialectique négative qui est le pari d'une logique de non-
identité. Il conclut en soulignant l'aspect pratique de la proposition adornienne, qui consiste en une
philosophie qui ne cultive pas la dichotomie théorie x praxis, puisque la praxis est comprise comme le
territoire, non seulement des actions, mais aussi de la pensée, qui établit la réalité des faits sociaux.
Mots-clés: Dialectique négative. T. W. Adorno. L'idéalisme allemand. Théorie critique. Hegel.

1 Professor Adjunto na Universidade Federal do Acre. Doutor em Filosofia pela Universidade Gama Filho
com pós-doutorado pelo Programa Pesquisador Colaborador na FFLCH/USP (2018-2019). Líder do
Grupo de Estudo em Fundamentos Sócio-Históricos e Filosóficos em Educação (GESHFE/UFAC). E-mail:
cleidson.ufac@gmail.com. Orcid: ordic.org/0000-0001-7535-1110.
Cleidson de Jesus Rocha

Da dialética afirmativa à dialética negativa

A leitura da Introdução da Dialética Negativa parece apontar a um projeto


filosófico que se constrói sobre a crítica ao idealismo alemão, sobretudo ao “idealismo
absoluto” de Hegel. Isso que Adorno decide chamar de “dialética negativa” pretende ir
além de uma dialética que, apesar de largamente desenvolvida na filosofia de Hegel,
acabou, segundo Adorno, mitigada. É em razão disso que Adorno preocupa-se com
posicionar-se historicamente, colocar-se contra a tradição filosófica da dialética
afirmativa. Ele mesmo diz, no Prefácio, como que resumindo a história do
desenvolvimento da dialética, que
a expressão ‘dialética negativa’ subverte a tradição. Já em Platão, ‘dialética’
procura fazer com que algo de positivo se estabeleça por meio do pensamento
da negação; mais tarde, a figura de uma negação da negação [aqui a referência
é muito possivelmente a Hegel] denominou exatamente isso. (ADORNO, 2009,
p. 7).

Ora, é tendo em vista esse suposto amordaçamento da dialética na positividade


ou na superação da negação que Adorno redige o livro. Cito: “o presente livro gostaria
de libertar a dialética de tal natureza afirmativa, sem perder nada em determinação.”
(ADORNO, 2009, p. 7).

O que está em discussão aqui é o fato de Hegel caracterizar a razão como “a


identidade do sujeito e do objeto” (HEGEL, 2003, p. 80), formulação esta que resulta do
seu longo envolvimento com a filosofia de Kant, em particular, com a ideia de dedução
transcendental. A dedução visa mostrar que as categorias necessariamente utilizadas
pelo sujeito pensante devem também se aplicar aos objetos do pensamento, que nos
termos de Hegel, significa mostrar que há uma “identidade de sujeito e objeto”. Esta
pretensa identidade que Hegel enxerga nas categorias e determinações de sujeito e
objeto, é o que ele chama “razão”, condição necessária para a efetividade da cognição
ou entendimento racional. As ideias sobre as coisas só se efetivam se suas
determinações puderem ser reveladas e percebidas pelo pensamento. A defesa de
Hegel é que a realidade só pode ser considerada racional se puder ser captada pela
racionalidade. Dessa forma a razão é a fonte da cognição, cuja efetividade só pode ser
obtida se as determinações constitutivas do pensar e do ser puderem ser articuladas. A
principal tarefa da filosofia é, para Hegel, a articulação dessas determinações, sendo
este o cerne do seu idealismo, que leva em conta que as determinações constitutivas do
pensar são as determinações constitutivas dos próprios seres.

O fato de que as pessoas podem construir auto compreensões contraditórias


sobre as coisas, corrobora a necessidade de que adotem o ponto de vista da razão,
suspendendo suas pressuposições para se envolverem em um exame rigoroso sem
pressupostos da verdade efetiva do ser. Este exame leva em conta a experiência do
objeto, comparada à concepção deste mesmo objeto, buscando identificar
discrepâncias entre estes dois momentos. Assim os pressupostos existentes são
adequadamente revisados, dando origem a uma nova forma de consciência, onde a

Anãnsi: Revista de Filosofia, Salvador, v. 1, n. 1, 2020. 50


A dialética negativa de Theodor Adorno contra o idealismo absoluto de Hegel

contradição não tenha lugar, mas sim, a identidade entre um e outro polo. Diz Hegel, na
Fenomenologia do Espírito:
A consciência, ao abrir caminho rumo à sua verdadeira existência, vai atingir
um ponto onde se despojará de sua aparência: a de estar presa a algo
estranho, que é só para ela, e que é como um outro. Aqui a aparência se torna
igual à essência, de modo que sua exposição coincide exatamente com esse
ponto da ciência autêntica do espírito. E, finalmente, ao apreender sua
verdadeira essência, a consciência mesma designará a natureza do própria
saber absoluto. (HEGEL, 2002, p. 73)

A forma inicial da consciência, que Hegel chama de “certeza sensível”, é definida


no primeiro parágrafo da Fenomenologia do Espírito, nos seguintes termos:
O saber que, de início ou imediatamente, é nosso objeto, não pode ser nenhum
outro senão o saber que é também imediato: o saber do imediato ou do
essente. Devemos proceder também de forma imediata ou receptiva, nada
mudando assim na maneira como ele se oferece, e agastando de nosso
apreender o conceituar. (HEGEL, 2002, p, 74).

Esse momento inicial, da imediação da afirmação sobre um algo, é incompatível


o que se almeja como conhecimento: a dialética hegeliana consiste na identificação da
contradição entre o que a consciência afirma experimentar, e como ela afirma
experimentar isso. Tudo o que a consciência pode experimentar imediatamente é “isto”
que esta “aqui”, “agora”. Para experimentar qualquer coisa mais complexa que um
objeto singular, a complexidade teria que ser unificada, mas tal unificação requeria um
processo de mediação. Assim, desta etapa inicial, o processo de cognição avança do
particular ao universal, delegando à consciência pensante, não apenas os acréscimos de
entendimento sobre os objetos, mas sobre os avanços dela mesma, consciência, em ir-
se modificando à medida que depura, racionalmente, sua experiência de tornar-se
idêntica ao objeto em análise. Assim se inscreve as característica da dialética hegeliana,
em seus momentos de afirmação, negação e negação da negação, que supera às
contradições entre sujeito e objeto. É sobre este projeto identificante que Theodor
Adorno se debruça em seu projeto de estabelecer uma dialética negativa.

O título Dialética Negativa é, nesse sentido, paradoxal. O estabelecimento de


algo de positivo por meio da negação (como queriam Platão e Hegel) era, segundo suas
filosofias, o único meio possível de determinação do mundo. Uma dialética negativa, do
ponto de vista de suas filosofias, redundaria na vacuidade do pensamento. Assim,
Adorno pretende mostrar que é justamente na subversão da natureza afirmativa da
dialética que se pode chegar a uma determinação que não seja mera abstração (como
em Hegel e Platão), mas que alcance “definitivamente o filosofar concreto.” (ADORNO,
2009, p. 8) Com efeito, se a filosofia desde sempre se fundamentou numa dialética
afirmativa, a dialética negativa necessariamente desenvolve uma crítica ao conceito de
fundamento e ao primado do pensamento do conteúdo, este a que se pretendia chegar
quando se estabelecia algo de positivo por meio da dialética.

Anãnsi: Revista de Filosofia, Salvador, v. 1, n. 1, 2020. 51


Cleidson de Jesus Rocha

Ainda que Adorno tenha destacado que não existe nenhuma continuidade entre
seus trabalhos anteriores e a Dialética Negativa, parece oportuno lembrar que, já na
Dialética do Esclarecimento (1985) o filósofo destacara como a dialética, aos moldes
hegelianos, fora absorvida no interior da sociedade burguesa, na medida em que a
Ideia, isto é, a forma pela qual o espírito se efetiva, encarnou-se nas pessoas e
instituições dessa sociedade. Para indicá-lo, Adorno e Horkheimer nos disseram, no
prefácio à Dialética do Esclarecimento que:
Assim como o esclarecimento exprime o movimento real da sociedade
burguesa como um todo sob o aspecto de encarnação de sua Ideia em pessoas
e instituições, assim também a verdade não significa meramente a consciência
racional mas, do mesmo modo, a figura que esta assume na realidade efetiva.
(ADORNO, 1985, p. 14).

Se na Dialética do Esclarecimento destacava-se uma crítica à formação, à Bildung


que absorve a dialética, na introdução à Dialética Negativa destaca-se a crítica à
própria filosofia da época. Adorno preocupa-se, assim, em fornecer um diagnóstico
filosófico à filosofia. Com efeito, se a história da filosofia nos legou apenas abstrações, e
se na filosofia contemporânea apenas se insinuou a concretude, é preciso fazer uma
crítica ao conceito de experiência filosófica. Assim, nessa espécie de “ontologia do
presente” (para usar uma expressão de Foucault), Adorno se aproxima, ao menos na
grandeza da pretensão, a Kant. No início da Introdução, ele nos diz:
A regressão da filosofia a uma ciência particular, imposta pelas ciências
particulares, é a expressão mais evidente de seu destino histórico. Se Kant,
segundo suas próprias palavras, tinha se libertado do conceito escolar de
filosofia e passado para o conceito cósmico dela, a filosofia foi agora obrigada
a regredir ao seu conceito escolar. (ADORNO, 2009, p. 12).

Não à toa, encaminhando para uma primeira conclusão da reflexão, Adorno nos
diz que “o desencantamento do conceito é o antídoto da filosofia.” (ADORNO, 2009, p.
19) A referência aqui é muito possivelmente a Hegel, para quem o conceito molesta as
representações. Em Hegel, não há conceitos, é preciso lembrar. Há o conceito, que,
para o autor da Fenomenologia do espírito (é preciso dizê-lo, posto que Adorno fará
uma crítica direta a essa obra), integra as representações do espírito (que, enquanto
representação, não se sabe enquanto tal) numa unidade de autoconsciência. Nesse
momento, o espírito descobre que as meras representações não eram universais, mas
particulares. É na concordância do elemento universal do conceito com o conteúdo do
espírito que se alcança, para Hegel, a sua verdade. É importante destacar aqui a ideia
de concordância, ou adequação, porque Adorno fará uma crítica justamente a ela, como
um elemento comum da tradição filosófica, em que os objetos entram na “norma
tradicional da adaequatio”. (ADORNO, 2009, p. 12)

No idealismo alemão, sobretudo em Hegel, houve a promessa de a filosofia


coincidir com a realidade, dar cabo da adaequatio, fazer o conúbio entre o par
incestuoso forma e conteúdo. Essa promessa foi quebrada, donde a filosofia se viu

Anãnsi: Revista de Filosofia, Salvador, v. 1, n. 1, 2020. 52


A dialética negativa de Theodor Adorno contra o idealismo absoluto de Hegel

obrigada a criticar-se a si mesma. Nessa crítica, Adorno dá ênfase às empreitadas do


idealismo alemão. Assim nos diz que
o que outrora, em relação à aparência dos sentidos e a toda experiência
orientada para o exterior, percebia-se como simplesmente não-ingênuo
tornou-se por sua vez, objetivamente, tão ingênuo quanto aqueles pobres
formandos que Goethe recebera cento e cinquenta anos atrás e que se
entregavam alegremente à especulação. (ADORNO, 2009, p. 11)

Esses formandos são Schelling e Hegel, talvez Fichte. E aqui Adorno faz uma
comparação entre essas filosofias dos pretensos conceitos que apreendem a realidade
e o capitalismo industrial tardio, que a tudo submete, inclusive a ciência, aos interesses
das corporações.
Em face da sociedade dilatada de modo desmedido e dos progressos do
conhecimento positivo da natureza, os edifícios conceituais nos quais,
segundo os costumes filosóficos, o todo deveria poder ser alocado,
assemelham-se aos restos da simples economia de mercado em meio ao
capitalismo industrial tardio. (ADORNO, 2009, p. 11)

Nisso Adorno verá, em chave kantiana, a confusão entre o conceito


escolar e o conceito cósmico da filosofia, confusão que faz com que as pretensões
filosóficas tornem-se ridículas. Essa discrepância entre a filosofia e a realidade já
estava em Hegel, que “sabia que essa não era senão um mero fator de realidade, uma
atividade baseada na divisão do trabalho; com isso, ele a restringiu.”. E Adorno
completa: “a partir daí vieram à tona a própria limitação da filosofia e sua discrepância
em relação à realidade.”. Isso constituiu, segundo Adorno, “a tentativa frustrada de,
com conceitos filosóficos, mostrar-se à altura do que é heterogêneo a esses conceitos.”
Nisso, novamente Adorno compara sua empreitada com a de Kant. Tal como o filósofo
de Königsberg perguntava-se pela possibilidade da filosofia enquanto metafísica
dogmática. Após o colapso da doutrina hegeliana, é também preciso perguntar-se sobre
a possibilidade da filosofia. Nas palavras do filósofo: “seria necessário perguntar-se se
e como, depois do colapso da filosofia hegeliana, ela ainda é efetivamente possível, tal
como Kant investigou a possibilidade da metafísica depois da crítica ao racionalismo.”
(ADORNO, 2009, p. 12)

Para Adorno, há uma saída. Embora tenha havido uma absorção da filosofia pelo
mercado, tem de haver a possibilidade de uma crítica. “A dialética”, escreve Adorno,
“não deve emudecer diante de tal repreensão e da repreensão com ela conectada
referente à sua superfluidade, à arbitrariedade de um método aplicado de fora.”
(ADORNO, 2009, p. 12) O problema é justamente esse método aplicado de fora, que se
dá no interior da norma tradicional da filosofia, que é a adequação. A contradição é
importante, mas não é uma “essência heraclítica” como no idealismo absoluto de Hegel.
O que ela é, então?

Deixo que Adorno responda: “Ela é o indício da não-verdade da identidade, da


dissolução sem resíduos daquilo que é concebido no conceito. Todavia, a aparência da
identidade é intrínseca ao próprio pensamento em sua forma pura. Pensar significa

Anãnsi: Revista de Filosofia, Salvador, v. 1, n. 1, 2020. 53


Cleidson de Jesus Rocha

identificar”. (ADORNO, 2009, p. 12). Em outro trecho, Adorno nos diz, apresentando a
necessidade da dialética, que
a contradição é o não-idêntico sob o aspecto da identidade; o primado do
princípio de não-contradição na dialética mensura o heterogêneo a partir do
pensamento da unidade. Chocando-se com os seus próprios limites, esse
pensamento ultrapassa a si mesmo. A dialética é a consciência consequente da
não-identidade. Ela assume antecipadamente um ponto de vista. (ADORNO,
2009, p. 12)

Para fazer ainda uma vez possível a filosofia, a saída consiste em pensar com
conceitos abertos, que não dividam em partes a realidade nem deixem fora o que
deveriam incluir. O pensamento deve desprezar a certeza e permanecer em uma
constante busca de sentido. O pensamento não deve solidificar-se e todos seus
conceitos têm de ser permeáveis. A Dialética Negativa postula um esforço do
pensamento em ir além do conceito através do próprio conceito. Então, o pensar já é
por natureza uma resistência ao imposto. Como todo sistema se torna estático e finito
por ser fechado e excludente, impondo ao específico a dominação da identidade do
genérico, o pensamento sistemático se denuncia como impróprio para um mundo que
nega à hegemonia do pensamento.

Neste sentido, para Adorno o pensamento não-sistemático guarda em si um


momento utópico, mas válido, já que propõe um mundo não-dominado. Daí o mergulho
imanente no individual, a busca de relacionamento sem sistema, a crítica da redução
matemática e fenomenológica, a exposição do pensamento na forma de ensaios, a
proposição de modelos teóricos e a valorização do estético. A estrutura subjacente à
Dialética Negativa é intermediada por uma gama de conexões e marcada por uma
linguagem peculiar, descrente no poder objetivo da razão. O texto é um apanhado
diagnóstico de vários momentos da produção filosófica, abordando autores que
tematizaram questões similares sob pontos de vista divergentes.

Vale lembrar que Adorno era ciente de que a relação entre a forma e o conteúdo
de uma obra colocava problemas hermenêuticos com os quais era preciso
contar em favor da coerência teórica. No aforismo 51 da Mínima Moralia, ele ensina:
Primeira medida de precauçãodo do escritor: verificar em cada texto, cada
fragmento, cada parágrafo, se o tema central sobressai com nitidez. Quem
quer expressar alguma coisa está de tal modo tocado por isso, que se deixa
levar sem refletir. A pessoa está próxima demais de sua intenção, ‘perdida em
seus pensamentos’, e esquece-se de dizer o que ela quer dizer (ADORNO,
1993, p.73).

O alerta adorniano servia-lhe de método na exposição de seu próprio


pensamento, levando-o a lidar frequência, tanto com as próprias dificuldades do
processo criativo, quanto com as críticas externas à forma Ensaio, gênero que defendia
e sobre o qual escreveu m 1932, que devia ser marcado pela ousadia da tentativa, um
atrevimento que sempre força o pensamento a persistir na busca. No texto O Ensaio
como Forma, diz Adorno:

Anãnsi: Revista de Filosofia, Salvador, v. 1, n. 1, 2020. 54


A dialética negativa de Theodor Adorno contra o idealismo absoluto de Hegel

Na Alemanha, o ensaio provoca resistência porque evoca aquela liberdade de


espírito que, após o fracasso de um Iluminismo cada vez mais morno desde a
era leibniziana, até hoje não conseguiu se desenvolver adequadamente, nem
mesmo sob as condições de uma liberdade formal, estando sempre disposta a
proclamar como sua verdadeira demanda a subordinação a uma instância
qualquer. O ensaio, porém, não admite que seu âmbitos de competência lhe
seja prescrito. Em vez de alcançar algo cientificamente ou criar artisticamente
alguma coisa, seus esforços ainda espelham a disponibilidade de quem, como
uma criança, não tem vergonha de se entusiasmar com o que os outros já
fizeram. O ensaio reflete o que é amado e odiado, em vez de conceber o
espírito como uma criação a partir do nada, segundo o modelo de uma
irrestrita moral do trabalho” (ADORNO, 2003, p. 16-17).

As formulações da experiência de sobre como ler Hegel ou Benjamin são


demonstrações das amplas possibilidades do gênero ensaio, que, revelando-se contra
sua forma, assemelha-se à arquitetura do Islã, cuja estrutura é aberta a partir de
dentro. Levando-se isso em conta, as anotações acima citadas adquirem sentido, pois,
verifica-se que o texto adorniano ganha gradativamente precisão, no esforço de
apropriação do que extrapola o conceitual com o que se apresenta como falta de
pensamento.

Segundo Adorno (2009) o peso das tradições, somado à incapacidade de uma


rebelião contra elas, manteve a análise moderna presa a vícios de um pensamento
estagnado e inoperante diante dos desafios a que nos sujeita a lógica contemporânea,
motivo pelo qual a inauguração de um esquema novo de pensar se faz necessário.
Nesses termos, Adorno defende uma Dialética Negativa como o pensametno da não
identidade, que não se estruture a partir de um esquema de triplicidade, nos termos da
dialética hegeliana (tese, antítese e síntese), e escape da ênfase da síntese.

Aparentemente, a dialética é uma lei do pensamento. No entanto, ela é, na


verdade, uma lei real, e nisso reside a sua importância. O mundo se desenvolve
dialeticamente, e disso resulta a dor a que a dialética se submete. Cito Adorno:
Quem se submete à disciplina dialética, tem de pagar sem qualquer
questionamento um amargo sacrifício em termos de multiplicidade
qualitativa da experiência. O empobrecimento da experiência provocado pela
dialética, empobrecimento que escandaliza as opiniões razoáveis e sensatas,
revela-se no mundo administrado como adequado à sua monotonia abstrata.
O que há de doloroso na dialética é a dor em relação a esse mundo, elevada ao
âmbito do conceito. (ADORNO, 2009, p. 13-14)

Na forma idealista a dialética fazia o sujeito predominar, tornava-o absoluto,


como sendo a força que produz negativamente todo movimento do conceito. Isso se
dava na doutrina hegeliana e na consciência transcendental kantiana e fichtiana. Disso
resultou um pensamento suplantado diante do curso do mundo, com o efeito de
renúncia em construí-lo. Nenhuma das reconciliações sustentadas pelo idealismo
absoluto mostrou-se válida.

Anãnsi: Revista de Filosofia, Salvador, v. 1, n. 1, 2020. 55


Cleidson de Jesus Rocha

E assim, o mundo que vislumbra possibilidades de uma hegemonia capaz de


suplantar o pensamento idealista é justamente o âmbito do não-conceitual do
individual e particular, exatamente o âmbito negligenciado por Hegel e pela tradição
idealista. Aqui novamente aparece o problema da relação entre forma e conteúdo:
“Aquilo”, escreve Adorno “que desde Platão foi alijado como perecível e insignificante e
sobre o que Hegel colou a etiqueta da existência pueril.”. (ADORNO, 2009, p. 15). Nas
palavras de Adorno, Hegel expressou deu desinteresse pela verdadeira da filosofia,
interesse este que apontaria para as qualidades por ela degradadas como contingentes
e transformadas em quantidade negligenciável. “Para o conceito”, cito Adorno, “o que
se torna urgente é o que e não alcança, o que é eliminado pelo seu mecanismo de
abstração, o que deixa de ser um mero exemplar do conceito.”. (ADORNO, 2009, p. 15).
E assim Adorno pode qualificar um tipo de filosofia contra a qual ele escreve: “a
filosofia, mesmo a hegeliana, expõe-se à objeção geral do que, porquanto possui
obrigatoriamente conceitos como material, decide-se previamente de maneira
idealista.” (ADORNO, 2009, p. 18).

Contudo, é preciso destacar que os conceitos sempre apontam para o não-


conceitual, na medida em que são, por sua parte, momentos da realidade que impelem
à formação desses mesmos conceitos. É preciso que ocorra um desencantamento do
conceito na filosofia. Isso, segundo Adorno, é o antídoto. O conceito impede o
supercrescimento, impede que a filosofia se autoabsolutize. “É preciso refuncionalizar”,
escreve Adorno, “uma ideia que foi legada pelo idealismo e que foi corrompida por ele
mais do que qualquer outra: a ideia do infinito.” (ADORNO, 2009, p. 19)

A filosofia visa à exposição integral ao outro, e não deve cair no usual da ciência,
que reduz os fenômenos a um número mínimo de proposições. Assim, a filosofia quer
mergulhar em narrativas que abordem o heterogêneo. A despeito das pretensões
absolutas dos filósofos idealistas, para os quais não haveria filosofia sem a ideia de
infinito (a natural tendência da razão, como escrevia Kant), Adorno faz uma crítica à
maneira como lidam com essa a ideia:
Talvez a palavra ‘infinito’ só tenha passado pelos lábios dos filósofos
idealistas com uma facilidade tão fatal porque eles queriam aplacar a dúvida
corrosiva quanto à mísera finitude de seu aparato conceitual – mesmo
daquele de Hegel, apesar de sua intenção. A filosofia tradicional acredita
possuir seu objeto como um objeto infinito e, assim, enquanto filosofia, se
torna finita, conclusiva. Uma filosofia transformada precisaria revogar essa
petição, não poderia mais enredar a si mesma e aos outros na crença de que
teria o infinito à sua disposição. (ADORNO, 2009, p. 19)

Adorno propõe, assim, a revogação dos temas e procedimentos da filosofia


tradicional, tornando a filosofia um campo aberto de possibilidades tratáveis, a partir
do comando dado pelas próprias criações sociais. A filosofia, em seu modo de ver,
deveria comportar-se como esfera crítica de análise dos fenômenos pautados por
diferentes tempos e lugares, vivificando clareza quanto aos interesses temporais,
sociais e humanos dos grupos. Ainda no lastro da crítica à filosofia tradicional, que

Anãnsi: Revista de Filosofia, Salvador, v. 1, n. 1, 2020. 56


A dialética negativa de Theodor Adorno contra o idealismo absoluto de Hegel

seleciona objetos considerados eternos temas filosóficos, Adorno propõe outra


maneira de destacar o aspecto infinito da filosofia:
Ao invés disso, porém, em um sentido atenuado, ela mesma se tornaria
infinita na medida em que despreza a possibilidade de fixar-se em um corpus
de teoremas enumeráveis. Ela teria o seu conteúdo na multiplicidade, não
enquadrada em nenhum esquema de objetos que se lhe impõem ou que ela
procura. (ADORNO, 2009, p. 20).

Como vemos, para Adorno, mesmo a filosofia que conseguiu sua forma mais
elevada, na figura de Hegel, não pode ser salva. As razões de seu declínio são a
pretensão da identidade do ser e do pensamento, pois, se o mundo equivale ao espírito
da época, os sentidos compartilhados se esgotariam em formas sublimes, sobre as
quais quaisquer considerações seriam impertinentes e despropositadas. Um mundo
assim, cheio de significados intocáveis, diz Adorno, sepultaria o espírito negativo e
inquieto, que alimentou, ainda que positivamente, a filosofia em todo seu percurso.

A crítica adorniana ao idealismo hegeliano tem apoio na concepção que sustenta


a dialética negativa de que a estrutura da contradição, geradora do salto qualitativo de
uma etapa a outra no processo dialético, encerra um duplo sentido:

1) O conceito não é, de maneira nenhuma, a identificação com a coisa. Pelo


contrário, entre o que se diz e o que de fato é, escapam alguns aspectos pelas
insuficiências da linguagem, ou da própria consciência que pretende a síntese. Dizendo
de outra forma: o que é suprimido no conceito é o que é mais, o que sobra, o que
excede, o que não se adequa. A sobra, assim, é excesso, que estende-se a outro objeto,
cumprindo o fio de sua natureza ampla, juntando-se a outras coisas, buscando ser delas
a expressão mais plena. A natureza enfática do conceito, torna-se, portanto, em
contradição, quando inadequadamente, pretende a síntese que não pode ser dada. A
contradição, então, encontra-se no conceito e não entre conceitos.

2) A realidade é plenamente contraditória. Os modelos, os tipos sociais, as


classes com seus interesses divergentes, formam uma sociedade antagônica. Mesmo os
fenômenos mais prosaicos, definem-se pela negação de seu contrário: é vida x morte;
fartura x miséria; belo x feio; saúde x doença, etc. A sociedade subsite graças ao que a
faz saltar pelo ar, ou seja, as motivações dos indivíduos vem, em grande parte, do
desejo de superação das contradições existentes.

Esse caráter duplo anula as pretensões que consideram o conceito como a


grande maravilha do universo filosófico. Relacionar o espírito ao conceito, ignorando
que entre um e outro existe o antogonismo, é construir o princípio de domínio da
natureza, canalizado em direção à identidade, pois, na medida em que consciência e
coisa se equivalem, anulam-se as possibilidades de distinção entre sujeito e objeto. A
identificação é, assim, denunciada por Adorno como uma ficção arbitrária, contra a
qual a dialética rigorosamente se contrapõe.

Anãnsi: Revista de Filosofia, Salvador, v. 1, n. 1, 2020. 57


Cleidson de Jesus Rocha

Adorno lembra que a epistemologia ocidental apresentou historicamente, duas


versões da dialética: a idealista e a materialista. Por que agora uma dialética negativa?
Em referência às objeções apresentadas à sua obra, Adorno diz enfrentar a acusação de
que sua proposta “nega o sal dialétio” (ADORNO, 2009, p. 15), que é, no limite, as
apostas de que a triplicidade do procedimento dialético inaugure o
conceito/síntese/verdade das coisas. A dialética negativa, opondo-se à identidade
como triunfo da consciência, adia o glorioso estado do absoluto e pleno saber. Uma
outra objeção é provocativa: se toda dialética é negativa, porque chamar uma assim?
Adorno estaria cometendo uma tautologia!

Dialética Negativa e a lógica do não-idêntico

Para Adorno existem ares de positividade, por exemplo, na dialética de Hegel,


para quem, seguindo a tradição filosófica desde Platão, compreende a dialética como
um procedimento que se afirma no positivo do conceito/síntese. O esquema das três
etapas hegelianas produz alterações qualitativas dos objetos, segundo a fórmula
matemática “menos por menos é mais”. A negação da negação deve ser afirmação. Aí se
verifica a positividade, que sai dos objetos para a subjetividade abstrata, instando o
sujeito a um estado positivo. Mas para Adorno, a síntese, que resulta da negação da
negação, é propriamente a positividade, que embora criticada pelo jovem Hegel, vigora
em seu legado de forma clara. A negativa de que exista positividade em seu esquema,
não o livra de contaminar-se com o imediatismo.

A filosofia, assim, impõe, segundo Adorno, o constrangimeneto social de criticar


uma subjetividade abstrata, negando, contudo, ao sujeito, meios de se autoproteger da
identificação cega com os objetos. Diante disso “o ser-em-si do sujeito”, não é o mais
elevado, mas permanece fora dele, de maneira coercitiva, repressiva. A identificação
subtrai os traços de particularidade e da individualidade. Adorno lembra que a
positividade apregoada nos esquemas da dialética hegeliana opera apenas como
fetiche, isto é, não responde ao que foi afirmado, e precisamente por isso, é falsa, isto é,
está sujeita à crítica. Esta é uma das razões, e não a última, que levou Adorno à
construção do formulação conceitual e terminológica de uma dialética negativa.

O potencial crítico da dialética negativa requer um esforço suplementar, pois


também abarca ao materialismo dialético, na medida em que é postulado como uma
ciência positiva. Assim, dialética negativa corresponde a uma crítica sem concessão, de
tudo o que existe. Trata-se da negação determinada, ou seja, a crítica imanente que
confronta o conceito com o seu objeto e vice-versa. A negatividade em si não é boa. O
positivo de ser, pretende perenidade. Essa pretensão, é, segundo Adorno, a vaidade do
ser que está nas coisas, o que não significa que a dialética, conforme a compreende
Hegel, consiga uma transposição dos objetos para a consciência. O abuso narcísico
hegeliano merece cuidados e regulação, pela negatividade, que suspende as certezas
frente a todas as verdades. O movimento positivo não pode ser pronunciado de modo a
colocar-se a si mesmo como chave para todo o entendimento seguro sobre os objetos,

Anãnsi: Revista de Filosofia, Salvador, v. 1, n. 1, 2020. 58


A dialética negativa de Theodor Adorno contra o idealismo absoluto de Hegel

apegando-se ao fixo e à positividade sem levar em conta que ele é apenas um momento
do processo de construção do conhecimento, que é feito de etapas, sendo o
positivo/fixo, apenas uma delas.

Segundo Adorno, em Hegel a positividade da dialética está na própria premissa


da dialética, que supõe que o sujeito é portador de um espírito mediatizador do
conhecimeneto, que suporta o sistema e suas nuances. Por ser positivo, o espírito
resiste, enfrenta, nega, define, molda e assegura a identidade dos objetos. As operações
mentais desenvolvidas pela dialética, purificam o conceito, excluindo todo o negativo,
toda falsidade, antes de configurar-se como identidade da consciência com o objeto.

Essa convicção de Hegel provoca Adorno a tentar responder duas questões


mediante o desenvolvimento do pensamento:

1) Uma dialética negativa é possível? Isto é, como realizar a determinação da


negação sem o estabelecimento do positivo que a acompanha?

A respeito disso, Adorno indaga sobre o que resulta da negação da negação, ao


que ele responde: sempre a má positividade, pois o produto, a síntese, merece todas as
reservas. Para Adorno, em Hegel a denominada síntese é a expressão da não
identidade, configurada aproximativamente com os procedimentos da filosofia
empirista, que, após a realização das experiências concretas, negando às contradições,
abraça-se ao seu resultado como decisivo dessa operação. A dialética hegeliana,
segundo, Adorno, ao validar a síntese como produto final das operações mentais sobre
os objetos, formando deles os conceitos finais, mal se distingue das nuances empiristas.

2) Existe dialética sem um sistema?

Sobre esta questão, Adorno lança mão da tese de Benjamin para quem, de
acordo com o conceito tradicional de filosofia, qualquer filosofia que não seja um
sistema deve ser condenada. Chama-se sistema a forma que se quer dar a essa
totalidade das explicações sobre o universo, que se impõe a partir de negações de
certos outros pensamentos circunscritos em teorias e correntes epistemológicas.

Por essas, entre outras razões, a dialética negativa é a consciência da


necessidade de modificação da epistemologia tradiciconal. Uma vez acompanhada pela
forma negativa de pensar filosoficamente, ela se comporta, a um só tempo, como busca
da verdade e como resistência aos modos tradicionais de fazer filosofia. Assim sendo,
em vez de uma busca com intenções conclusivas na forma conceito, o pensamento deve
se comportar negativamente, transformando a força do sistema em crítica do
particular. Essa crítica, alerta Adorno, deve se realizar em um duplo sentido: crítica do
conceito e crítica da coisa. Ora, essa perspectiva denota, em si, os critérios da forma
especulativa, que deve entender o conceito como linguagem, discurso, e, por isso deve
ser cotejado com às demais definições apresentadas por outros pensadores, sobre o
mesmo objeto. No que diz respeito à crítica da coisa, esta corresponde à ideia de que
ela, embora dona de uma natureza identitária, pode revelar, com seu conceito – que lhe

Anãnsi: Revista de Filosofia, Salvador, v. 1, n. 1, 2020. 59


Cleidson de Jesus Rocha

é exterior, já que produzido por um outro - o menos ou o mais de si próprio, podendo


evidenciar novos sentidos em cada tempo e lugar.

Os desenvolvimentos da dialética ao longo da história demonstram uma


tendência viciante de transformar pensamento em sistema. O fazer filosófico tem se
definido como a análise da obra dos diferentes pensadores, esquadrinhando-as em
esquemas ou sistemas. Essa lógica organizativa dos pensamentos consome os próprios
sistemas. Contudo, segundo Adorno, a força liberada na fuga do particular é o que
animou os sistemas no passado. Isso quer dizer que, na medida em que os conceitos,
ideias, definições apresentados pelos diferentes pensadores não circunscrevem as
finalizações sobre os temas abordados, dão margem para novas buscas, novos
posicionamentos, novas investigações, e, assim, mantém-se vivo o fenômeno da
inquietude, que é a força motriz da filosofia. A substância e resistência do pensamento
filosófico advêm da medida do não idêntico, pois o conceito nunca é a expressão final
de um objeto, dando margem ao pensamento que prossegue vigoroso e vivo, em seu
itinerário de busca e apreensão da verdade.

Considerações Finais

A questão que encaminha a proposição adorniana de uma dialética negativa,


tem a ver com uma marca anterior do pensamento filosófico, que a conhecida
dicotomia entre teoria e prática. Esta temática teve lugar no trabalho de Adorno, num
momento específico do itinerário de discussão sobre a Dialética Negativa. Em um curso
sobre a obra homônima, no inverno de 1965, em Berlin, Adorno dedicou-se a debater
sobre a famosa 11ª tese sobre Feuerbach, que é, geralmente, interpretada como
necessidade de eliminação da dicotomia teoria x prática do fazer filosófico. Adorno
discorda dessa interpretação, dizendo que não é apropriado pensar que a filosofia seria
deixada para trás depois do aspecto de sua realização. A filosofia é, conforme entende,
mais do que um conjunto de indicativos para a vida prática. Na própria dinâmica da
vida imediata, a filosofia é o ponto de inflexão em direção às respostas que a sociedade
almeja. Não é possível que a filosofia apresente diretrizes para uma vida prática,
supondo que o norte definido seja seguido, sem o acompanhamento crítico, reflexivo e,
principalmente, negativo, em relação às definições previamente construídas. Por outro
lado, o modo de organização das forças produtivas, por si mesmo, favorece ou nega a
abertura para o exercício vivo da dialética negativa. Em contextos democráticos, o
pensamento, livre de amarras, ousa provocações de cunho negativo, debruçando-se
sobre os conceitos e extraindo deles, o que podem, ainda, fornecer, enquanto
identidade.

Adorno considera a práxis como o território, não apenas dos fazeres, mas
também do pensamento, um momento da transição, das mudanças por vir. De fato, é no
seio da sociedade e das vivências objetivas que as construções sobre as mudanças
necessárias se dão, puxadas pelo pensamento, que ganha força, quanto mais se exerce,
autonomamente, seu poder de crítica. Dessa maneira, não é possível, para Adorno,

Anãnsi: Revista de Filosofia, Salvador, v. 1, n. 1, 2020. 60


A dialética negativa de Theodor Adorno contra o idealismo absoluto de Hegel

adiar-se infinitamente o momento da práxis, e também, do pensamento filosófico que


lhe lança luz. Há uma urgência prática da reflexão que se interesse pela produção de
saídas para a sociedade e, exatamente por isso, interrogue também por que a filosofia
tem adiado tanto esse processo. Cabe a filosofia enfrentar a autocrítica, repensando sua
demanda por identidade naufragou.

Agindo assim, a filosofia se faz possível, por meio da dialética negativa. Seu
pressuposto básico é a construção dos conceitos não-pedantes, sem pretensão de
universalidade, mas abertos a possibilidade de revisão, por meio da negação. Esta é a
forma suprema da filosofia, na medida em se realiza como tentativa de tomar em si o
não-conceitual, o heterogêneo da filosofia em si mesma, de estender, portanto, a
filosofia ao essencial, que ela oculta em sua forma tradicional e afirmativa. O
pensamento é remetido para a filosofia, imiscuindo-se nas suas formas manifestas, que
instituem uma tradição epistemológica cujas pretensões são a universalidade, o
definitivo, o positivo como última etapa da inquietação do pensamento.

A tese de que a filosofia especula, mas não transforma o mundo, merece uma
outra consideração: as transformações pelas quais o mundo passou, no sentido dos
acréscimos culturais e das realizações humanas, não é somente resultado das
interpretações filosóficas, como deseja o pensamento político. Aliás, diz Adorno, o
mundo foi interpretado muito pouco. Se a humanidade estivesse a esperar que o
pensamento filosófico se transpusesse para a prática, para daí modificar as estruturas
do mundo e adaptá-lo às necessidades humanas, muito provavelmente ainda
estaríamos em estágios muito atrasados do desenvolvimento histórico. Mesmo a
dialética tradicional, das três etapas hegelianas, não se realiza de uma forma universal,
para todas as pessoas, mas apenas para aquelas que se inquietam diante do isto é, e por
isso, progridem em interesse e disciplina para as demais etapas, quais sejam, a da
negação e da síntese. Historicamente os feitos e realizações humanas são pautados
mais pela necessidade de sobrevivência e auto-proteção, do que pelas matrizes de um
pensamento elaborado filosoficamente.

Referências

ADORNO, Theodor. “Ensaio como Forma”, In: Notas de Literatura I. Tradução e


apresentação de Jorge M. M. de Almeida. São Paulo: Duas Cidades; Ed. 34, 2003.

ADORNO, Theodor. Dialética Negativa. Tradução: Marco Antônio Casanova. Rio de


Janeiro: Zahar, 2009.

ADORNO, Theodor. Minima morália: reflexões a partir da vida danificada.


Tradução: Luiz Educardo Bica. São Paulo: Ática, 1993.

DUDLEY, Will. Idealismo alemão. Tradução de Jacques A. Wainberg. Petrópolis, RJ:


Vozes, 2018.

Anãnsi: Revista de Filosofia, Salvador, v. 1, n. 1, 2020. 61


Cleidson de Jesus Rocha

HEGEL, Georg Wilhelm Friedrich. Diferença entre os sistemas filosóficos de Fichte e


Schelling. Lisboa: imprensa Nacional Casa da Moeda, 2003.

HEGEL, Georg Wilhelm Friedrich. Fenomenologia do Espírito. Petrópolis: Vozes,


2002.

JAY, Martin. As ideias de Adorno. Tradução: Adail Ubirajara Sobral. São Paulo: Cultrix
Editora da Universidade de São Paulo, 1988.

Recebido em: 08 de jun. 2020


Aceito em: 17 de ago. 2020

Anãnsi: Revista de Filosofia, Salvador, v. 1, n. 1, 2020. 62


Universidade do Estado da Bahia
Departamento de Educação – Campus I
Anãnsi: Revista de Filosofia, Salvador, v. 1, n.1, 2020

Para uma filosofia jurídica da libertação: breves notas de


uma crítica à juridicidade moderna a partir da
Transmodernidade
Hacia una filosofía jurídica de la liberación: breves notas sobre una
crítica de la legalidad moderna desde la Transmodernidad

Diego Miranda Aragão 1

Resumo: O presente artigo originou-se da percepção do diálogo existente entre as ideias do filósofo
argentino Enrique Dussel e uma possível crítica às bases epistemológicas do Direito Moderno. Com tal
aproximação, objetiva-se lançar algumas reflexões acerca da possibilidade de uma Filosofia Jurídica da
Libertação contraposta aos pilares liberal-positivistas tradicionais do Direito. A metodologia é teórico-
bibliográfica, assentada em algumas obras de Dussel em interlocução com os sociólogos Quijano e
Santos. Pelas problematizações realizadas, vislumbramos a necessidade de uma leitura não eurocêntrica
da juridicidade. Afinal algumas insuficiências e problemas (universalismo abstrato, ensino jurídico
antidialógico, práticas hierarquizantes e silenciadoras) são percebidos nessa juridicidade. O uso do
conceito dusseliano da transmodernidade, por sua vez, mostra-se como subsídio importante para uma
crítica descentrada da modernidade Europeia. Como resultados da investigação, notou-se a necessidade
da construção de novas bases epistemológicas para a ciência jurídica na contemporaneidade. As ideias
dusselianas mostram-se como respostas filosóficas consentâneas a um contexto histórico forjado na
subalternidade e na colonialidade e como contraposições à transposição epistêmica europeia, incapaz de
resolver problemas sociais seculares de nossa geopolítica.
Palavras-chave: Diálogo. Transmodernidade. Juridicidade Moderna. Crítica dusseliana Filosofia da
Libertação.

Resumén: Este artículo se originó a partir de la percepción del diálogo existente entre las ideas del
filósofo argentino Enrique Dussel y uma posible crítica de las bases epistemológicas del Derecho
Moderno. Con esta aproximación, el objetivo es lanzar algunas reflexiones sobre la possibilitad de uma
Filosofía Jurídica de Liberación opuesta a los tradicionais pilares liberales-positivistas del Derecho. La
metodología es teórica y bibliográfica, basada em algunos trabajos de Dussel en diálogo com los
sociólogos Quijano y Santos. A partir de las problematizaciones realizadas, vemos la necesidad de uma
lectura no eurocentrada de la juridicidade. Algunas deficiencias y problemas (universalismo abstracto,
enseñanza jurídica antidialógica, prácticas jerárquicas y silenciadoras). El uso del concepto dusseliano
de transmodernidad, a su vez, se muestra com un subsidio importante para uma crítica descentralizada
de la Modernidad Europea. Como resultado de la investigación, es necesario construir nuevas bases

1 Mestre em Educação e Ensino pela Universidade Estadual do Ceará; Graduado em Direito, Graduando
em Filosofia e Especialista em Gestão Educacional pela Universidade Estadual Vale do Acaraú. Dedica-se
a pesquisas nas áreas de Direito, Filosofia e Estudos Descoloniais. E-mail: rua.diego@hotmail.com.
Diego Miranda Aragão

epistemológicas para la ciencia jurídica en la contemporaneidad. Las ideas dusselianas se muestran


como respuestas filosóficas em línea com um contexto histórico forjado em la subalternidade y la
colonialidad y como oposiciones a la transposición epistémica europea, incapaces de resolver los
problemas sociales seculares de nuestra geopolítica.

Palabras-clave: Diálogo. Transmodernidad. Juridicidad Moderna. Crítica dusseliana. Filosofía de la


Liberación.

Introdução

A moderna concepção de Direito está vinculada historicamente à própria ideia


de Estado. Não há que se falar neste que não seja alicerçado em um sistema de direitos
que garanta a organização da vida política dos cidadãos. Há uma relação intrínseca e de
complementaridade recíproca e dependente entre Direito e Estado na modernidade.
Tal relação abarca, por sua vez, uma série de implicações para quaisquer dos
elementos dela, guardadas as devidas distinções.

A modernidade, enquanto projeto político e filosófico, realiza algumas eleições


de quais áreas de produção do saber humano regulariam e organizariam esferas da
vida. O Direito foi, possivelmente, a principal delas. A juridicidade moderna assume um
papel de protagonista como substituta do pensar místico-religioso até então vigorante
previamente ao alvorecer da modernidade2. Por isso, afirmamos ser a nossa história,
enquanto povos colonizados, centrada na produção teórica e na visão de mundo
europeias. Afinal os pilares jurídicos, científicos e filosóficos responsáveis por essa
nova forma de organizar e pensar a vida humana são pautados pela europeidade3.

O vínculo de cidadania ou status de cidadão, por sua vez, é uma das implicações
para o sujeito de direito no binômio Estado-Direito. Conforme sintetiza Bobbio, “no
Estado de direito, o indivíduo tem, em face do Estado, não só direitos privados, mas
também direitos públicos. O Estado de direito é o Estado dos cidadãos.” (BOBBIO,
2004, p. 30) onde “todo poder é exercido no âmbito de regras jurídicas que delimitam
sua competência e orientam (ainda que frequentemente com certa margem de
discricionariedade) suas decisões” (BOBBIO, 2004, p. 62).

A forma Estado Moderno, dentro da matriz política ocidentalocêntrica, é


reputada como a organização política mais desenvolvida até aqui no percurso histórico
da constituição das sociedades para atender os direitos devidos a cada cidadão
2 As Revoluções Burguesas (Francesa, Gloriosa, Americana), o Movimento do Esclarecimento, o
Iluminismo e o nascimento da ciência moderna constituem momentos desse amplo quadro que se
delineia chamar de Modernidade cujos reflexos invariavelmente afetarão e constituirão o Direito
Moderno.
3 Termo utilizado por Dussel referente a um corpo de ideias forjadas no seio da Modernidade Europeia

para designar a gênese local de invenções teóricas e disposições geopolíticas. Quer dizer, indica-se a
temporalidade e a espacialidade da criação de tal marco categorial. Além disso, aponta-se um “ethos”
social que identifica certa região do globo, especialmente as grandes potências colonizadoras (Espanha,
Portugal, Holanda etc.) como produtoras desse mesmo corpo de ideias.

Anãnsi: Revista de Filosofia, Salvador, v. 1, n. 1, 2020. 64


Breves notas de uma crítica à juridicidade moderna a partir da Transmodernidade

pertencente a um estado-nação específico. A cidadania, nesse sentido, é um elemento


importante na configuração e estruturação dessa relação, ela quem confere direitos ao
sujeito e limites ao poder estatal. Apesar disso, não raras são as violações e negações
de direitos nessa mesma conformação, implicando mais cuidados e análises apuradas
em quais sentidos e abrangência os verdadeiros direitos são atendidos.

No caso latino-americano, especialmente brasileiro, que vem sendo pautado


pela lógica globalizada dos interesses do capitalismo, vivemos em cidades produzidas
pelo e para o grande capital4. Este direcionamento, com frequência, vai conflitar com as
demandas básicas desse mesmo cidadão.

Voltando ao citado acima. Se, por um lado, o atrelamento da organização estatal


a um sistema de direitos é uma limitação a arbitrariedades cometidas por agentes
diversos (inclusive o próprio Estado), por outro, as concepções de Direito e de sujeito
nessa sistemática delimitam e enrijecem, em termos formais, as possibilidades de
ultrapassar esses mesmos limites. Afinal, o casamento Estado-Direito é revestido de
um monismo jurídico5 já secular que se reproduz contemporaneamente.

Nesse sentido, percebe-se uma aparente contradição ou inadequação entre a


lógica dessa sistemática de direitos e a forma de vida sob a qual recai essa mesma
lógica. Isto é, há um distanciamento e estranhamento entre a vida concreta e o direito
positivado. Para nossa leitura, como pretendemos demonstrar neste artigo, trata-se
bem mais que isso. Essa aparente inadequação, em verdade, é resultado da
transposição de bases jurídico-epistemológicas europeias para formas de organização
da vida que foram colonizadas.

Essa mesma transposição é o pilar central da colonização epistêmica por que


passamos nos processos diversos de dominação ao longo de nossa história. Pensando
com Schwarz (1977), essas bases são “ideias fora do lugar”, pois foram implementadas
e reproduzidas em nossas terras em contexto totalmente diverso da realidade
europeia, berço dessas mesmas ideias.

Por isso, reivindica-se a necessária construção de um pensamento jurídico


descolonial. Em que pese importantes correntes críticas6, forjadas nas searas de
práticas jurídicas alternativas e as aproximações teóricas com o Materialismo Histórico

4A lógica da globalização do capital impulsionada pelo neoliberalismo e outros fatores forjou o êxodo
rural em massa e a formatação de cidades divididas, fragmentadas, marcadas pela desigualdade social
crescente. De um lado, a cidade dos ricos (provida de serviços diversos). Do outro, a dos pobres, carente
dos mínimos direitos, como saneamento básico. (HARVEY, 2013, pp. 67-68)
5 Concepção do Direito, que tem como principal expoente o jurista Hans Kelsen, afirmadora de ser a

fonte do Direito uma só, a lei em sentido formal. Tal autor, com a Teoria Pura do Direito, intentou elevar
o Direito à categoria de ciência, depurando-o de quaisquer outros elementos identificadores de outras
ciências distintas [ou ramos do saber] da esfera jurídica.
6 Refere-se à Teoria Crítica do Direito que questiona o caráter científico do Direito, a alegada

neutralidade política deste e a pureza científica dele (2009, p. 4), bem como a uma leitura marxista do
Direito que “explica o direito – como toda forma político-jurídica – a partir da análise do processo de
produção da existência humana, e, portanto, da ciência em sua totalidade.” (CHAGAS, 2011, p. 30).

Anãnsi: Revista de Filosofia, Salvador, v. 1, n. 1, 2020. 65


Diego Miranda Aragão

Dialético, terem erigido contribuições críticas importante, optou-se pelo diálogo


epistêmico com a Filosofia da Libertação de Enrique Dussel. Nesta se observa a
interface dialógica com essas mesmas correntes, sem se abster de um caminhar
filosófico próprio e originalmente autônomo.

Somado a isso, reivindica-se o pensamento social descolonial, pois objetiva


construir teorias que respondam a realidades específicas de países colonizados exige
outras categorias da ciência política e da filosofia para um pensar extramoderno.
Vamos além, afirmamos que o filósofo latino-americano, “(se não for um sofista ou
acadêmico irreal) sabe que sua teoria emerge da práxis latino-americana, de seu
mundo histórico e cotidiano. Sabe que seu projeto filosófico latino-americano é distinto
do europeu.” (DUSSEL, 1986, p. 247). Em suma, pretende-se reinventar as bases
epistêmicas do nosso modo de vida para que se possa melhor compreender o real que
nos assenta e, assim, levantar respostas adequadas para problemas de nossa
especificidade histórica.

Nesse sentido, a Filosofia da Libertação, como uma possível expressão do


pensar descolonial na Filosofia, apresenta-se como um pensar situado, de forma a
enraizar-se profundamente nos contextos concretos de uma ontologia latino-
americana. Com esse compromisso, pode-se, inclusive, utilizar-se de autores europeus
sem se perder a identidade geopolítica e metodológica de um pensamento autônomo.

Seguindo essa proposta, pretende-se realizar um resgate de categorias


filosóficas esquecidas pela europeidade. Uma delas é a da espacialidade, o que implica
situar-se geopoliticamente enquanto sujeitos que pensam a própria realidade a partir
dela mesma sem pretensão de universalização de categorias, mas prontos para o
diálogo intercultural com a produção teórica de outros povos.

Contrariamente ao dito acima, há a prática de esquecimento-negação de


categorias pelo discurso moderno, como o conceito de espacialidade. “O que o conceito
de modernidade faz é esconder, de forma engenhosa, a importância que a
espacialidade tem para a produção deste discurso”, ou seja, “na maioria das vezes,
aqueles que adoptam o discurso da modernidade tendem a adoptar uma perspectiva
universalista que elimina a importância da localização geopolítica.” (SANTOS, 2009, p.
351).

Portanto, afirma-se a necessidade de pôr a Filosofia da Libertação como tema


em si a partir das questões levantadas por ela dentro de uma perspectiva de crítica
epistêmica da realidade. Para isso, é importante atentar-se para a questão de se estar
lidando não só com uma descolonização dentro do campo filosófico, mas jurídico
também, o que implica o cuidado de assumir posições teóricas cujas reverberações no
seio social não se mostrem infrutíferas ou inócuas7.

7 O pensamento da afirmação de um Direito Descolonial, por exemplo, queda-se por completo ao se


lembrar da insígnia moderna que recai sobre o Direito no sentido de ser o esquecimento-negação de

Anãnsi: Revista de Filosofia, Salvador, v. 1, n. 1, 2020. 66


Breves notas de uma crítica à juridicidade moderna a partir da Transmodernidade

Das bases epistemológicas do Direito: as “ideias fora do lugar” do liberalismo e


do positivismo
[…] Não tinha outra filosofia. […] Não digo que a universidade não me tivesse
ensinado alguma; mas eu decorei-lhe só as fórmulas, o vocabulário, o
esqueleto. Tratei-a como tratei o latim; embolsei três versos de Virgílio, dois
de Horácio, uma dúzia de locuções morais e políticas, para as despesas da
conversação. Tratei-os como tratei a história e a jurisprudência. Colhi de
todas as coisas a fraseologia, a casca, a ornamentação. (ASSIS, 2010, p. 87)

O excerto que abre este capítulo é fragmento da obra “Memórias Póstumas de


Brás Cubas”, de Machado de Assis. É fala do personagem principal a refletir sobre o
significado do curso de Direito na trajetória dele. Tal exposição pode servir para que se
reflita sobre as principais ideias que imperavam na formação bacharelesca
oitocentista. O uso dessa reflexão justifica-se pelo fato de que boa parte dessas mesmas
ideias ainda vigora no universo jurídico brasileiro e, para nossa leitura, continua a não
corresponder adequadamente à problemática da especificidade nacional.

Antes de se realizar a reflexão sobre os pilares da ciência jurídica, seja em nível


político (liberalismo), seja em nível epistemológico (positivismo)8, deve-se atentar,
inicialmente, para as acepções do termo Direito. Dentre elas, pode-se citar a do direito
visto como norma, sendo identificado com a lei, como disciplina da matriz curricular
dos cursos, como o próprio curso de graduação de IES ou, ainda, a do Direito visto
como ciência. É nesta última que focaremos nossa análise.

O direito, enquanto ciência, terá dois principais pilares de sustentação teórica: o


liberalismo (nível político) e o positivismo (nível epistemológico). No primeiro caso, o
positivismo jurídico pretendeu, ao longo de todo o século XX, se expressar como
corrente de pensamento isenta de valorações axiológicas. Como um pensamento
desideologizado, tentou afirmar a ideia de monismo jurídico. No segundo, o liberalismo
trouxe à tona a ideia de tutela de direitos e de liberdades individuais face às
determinações estatais.

Neste artigo, demonstrar-se-á possíveis insuficiências e problemas do


juspositivismo e do jusliberalismo. Quando se pensa, por exemplo, na complexificação
da vida em sociedade e em novas demandas de novos sujeitos surgidas a cada nova
etapa histórica, tais questões avultam. A ideia de monismo jurídico, aliada à concepção
do positivismo jurídico, resulta insuficiente para o atendimento dos direitos exigidos
por esses exercícios de cidadania na contemporaneidade9. Sobre essa concepção, assim
se expressa Volkmer:

juridicidades pretéritas a ele, como a pluriversidade ameríndia. O soerguimento de uma Teoria Crítica
Descolonial do Direito não só é possível, como necessário, como se verá.
8
Embora tanto o positivismo quanto o liberalismo apresentem outras dimensões para além das elencadas, são
as citadas que melhor se desenvolvem no discurso jurídico.
9
Tal insuficiência/inadequação mostra-se não só na contemporaneidade, mas também na própria gênese do
Estado e do Direito em nossas terras. Afinal deve-se lembrar da existência prévia de normatividades sociais
reguladoras da vida dos povos ameríndios. Normatividades essas que, quando não eram destruídas eram

Anãnsi: Revista de Filosofia, Salvador, v. 1, n. 1, 2020. 67


Diego Miranda Aragão

[…] a representação dogmática do positivismo jurídico que se manifesta


através de um rigoroso formalismo normativista com pretensões de “ciência”
torna-se o autêntico produto de uma sociedade burguesa solidamente
edificada no progresso industrial, técnico e científico. Esse formalismo legal
esconde as origens sociais e econômicas da estrutura do poder,
harmonizando as relações entre capital e trabalho, e eternizando através das
regras de controle, a cultura liberal-individualista dominante. (2001, pp. 67).

O pensamento juspositivista, apegado ao formalismo legal e à concepção


moderna de Estado, esconde, como expõe o fragmento acima, as contradições insertas
na própria aplicabilidade desse tipo de concepção do Direito. A contradição capital-
trabalho, fundante do modelo capitalista, é base econômica do sistema de direitos. Ao
não problematizar, ou mesmo se contrapor a essa lógica, a juridicidade estaria apenas
a serviço dessa mesma lógica, mantendo-a, preservando-a.

Esse quadro acima caracterizado expõe o viés ideologicamente


desideologizador do discurso jurídico cujo exemplar mais danoso recai sobre o ensino
jurídico. Afinal o profissional formado nos bancos das faculdades de Direito, essas
mesmas que exercitam práticas pedagógicas antidialógicas, segue destilando a
dogmática jurídica juspositivista nos moldes estatais, sem problematizações a fundo ou
tentativas de utilização alternativa dos possíveis instrumentos emancipatórios do
direito. O que significa reproduzir a ideia da neutralidade do direito e da
desideologização dele. É assim que esse futuro profissional vai sendo ideologicamente
desideologizado (LYRA, 1985).

Somado a isso, vivemos em sociedades crescentemente estratificadas e


desiguais. E a necessidade de regulamentação jurídica das relações sociais cresce na
mesma medida, uma vez que “o comportamento das pessoas pode ser regulado pelas
mais diferentes regras, mas o momento jurídico dessa regulamentação começa onde
têm início as diferenças e oposições de interesses.” (PACHUKANIS, 2017, p. 95).

É ao tipo de complexificação da vida social e da demanda de direitos citada


acima, que as seculares bases jurídicas não respondem, seja porque estão, a princípio, a
serviço da formatação estatal daquele período, seja porque a própria concepção de
Estado encontra-se em falência pela crise sistêmica do capitalismo.

Para refletir sobre as bases jurídico-epistêmicas, necessário remontarmos à


gênese da norma jurídica. Esta remonta exatamente ao período das chamadas Grandes
Navegações em que se tornou necessária a produção de normas que protegessem os
direitos comerciais dos sujeitos que realizavam as transações mercantis. Era o direito a
proteger o comércio marítimo, o “Mercado” incipiente dos séculos XVI E XVII. As
clássicas palavras de Pachukanis são sintéticas a respeito: “O movimento mais ou
menos livre da produção e da reprodução social, que na sociedade de produção

atravessadas por uma espécie de tolerância dominadora. Isso significa, no limite, que “[...] a manutenção das
instituições jurídicas indígenas, ou mesmo das normatividades sociais que se assemelham ao parâmetro
jurídico espanhol, é um processo de converter a pluriversidade em uma pluralidade homogeneizante, projetada
em total tolerância dominadora.” (LIXA, 2018, p. 147)

Anãnsi: Revista de Filosofia, Salvador, v. 1, n. 1, 2020. 68


Breves notas de uma crítica à juridicidade moderna a partir da Transmodernidade

mercantil acontece formalmente através de transações privadas é o objetivo prático


profundo da mediação jurídica.” (PACHUKANIS, 2017, p. 65).

Afirma-se não ser aleatória essa associação histórica entre o projeto do


colonialismo político e a fundação genética do Direito e do Estado modernos. Afinal,
como dito, havia a necessidade de regulamentação dessas novas relações que estavam
a surgir. Além disso, o discurso jurídico serve, também, como jus-tificação para a
dominação colonial de outros povos cujos reflexos ultrapassarão esse mesmo
colonialismo e engendrarão condições desiguais futuras entre camadas sociais
distintas.

Portanto, a correlação entre a forma jurídica e o colonialismo político encontra


sustentação, também, eminentemente política. Para esse tipo de direcionamento, as
ideias liberais serão funcionais e cumprirão um papel importante. Elas vão ser
reproduzidas pelos filhos da elite nacional oitocentista, eminentemente, os bacharéis
em Direito. A superficialidade, a retórica de ornamentação, o individualismo e outros
valores burgueses são fortes influências liberais e que ainda perduram no universo
jurídico, seja no ensino jurídico, seja nas carreiras jurídicas diversas. Aprende-se e
regozija-se ainda hoje em aprender e repetir ingênua e acriticamente brocardos latinos
sem problematizá-los ou sequer saber a origem deles. Sobre isso, fala Faria:
[...] graças a um saber pretensamente humanista e supostamente não-
ideológico, assentado em fórmulas "racionais" de "engenharia social" com a
falsa aparência de um conhecimento sistemático e coerente, propicia que se
transmitam as crenças que sustentam a dogmática – o que faz dos atores
jurídicos formados por faculdades viciadas simples instrumentos na
reprodução do sistema vigente, atuando como "encobridores" ideológicos dos
interesses dominantes e como cooptadores dos integrantes dos grupos e
classes não-dominantes. (1991, pp. 91-92).

Nesse sentido, as “ideias fora do lugar” do liberalismo e do positivismo


evidenciam a necessidade de pensarmos novos paradigmas para o Direito, seja em
nível epistemológico, seja em nível político. Elementos que respeitem as
especificidades nacionais de formação de nosso povo e compreendam a forma como se
realizam as relações de reprodução material da vida em nossas terras. Precisamos de
um projeto que não reproduza fórmulas alienígenas díspares de nossa realidade, as
quais, ao invés de resolver os problemas sociais, atuam como encobridores e
reforçadores da dominação e das desigualdades sociais. Há a necessidade da
construção de um projeto verdadeiramente nacional que convirja para a emancipação
do povo brasileiro de séculos de exploração, de indigência cultural e de submissão às
elites.

As bases fundacionais do Direito moderno que criam a categoria norma jurídica,


também, por consequência, produzem a de sujeito de direito. Afinal a este se dirige a
norma. Não há que se falar em regra jurídica que não se reporte à relação em que

Anãnsi: Revista de Filosofia, Salvador, v. 1, n. 1, 2020. 69


Diego Miranda Aragão

participe um sujeito (seja no âmbito privado, seja no público). Este sujeito


historicamente foi forjado pelas revoluções burguesas, mas não foi capaz de estender
os direitos proclamados a todos os indivíduos, pois, na ordem do pensamento (político
e epistemológico), as ideias positivistas e liberais estavam entranhadas na instituição e
consolidação do Estado e do Direito modernos. Tanto o positivismo quanto o
liberalismo revestirão o Estado com os mantos da legalidade e da genericidade das leis.
Esses elementos, por sua vez, serão incapazes de corresponder às contingências sociais
e históricas de cada nação.

Quando se pensa, por exemplo, no fracasso desses mesmos pilares em estender


as “promessas do Iluminismo” para todos os indivíduos, observa-se que esse fulcro fica
inalcançável, uma vez que nem todos gozarão de status político de cidadania nas
mesmas condições. A assunção das categorias Estado e Direito (e as interrelações daí
decorrentes, tal como a de cidadania) é resultado de projetos históricos específicos
situados em um tempo e um lugar delimitados, quais sejam, a Europa dos séculos XVII
e XVIII.

Nesse sentido, para uma reflexão filosófica acerca do contexto genético de tais
categorias, deve-se ater à racionalidade subjacente aos processos modernos de criação
e de consolidação dessas mesmas categorias. Afinal, o contexto histórico-social dos
processos forjadores delas são pressupostos teóricos autolegitimadores que
atravessam as questões acerca do fenômeno jurídico. Há concepções de ciência e de
conhecimento inauguradoras desse campo e ínsitas aos processos realizados a partir
do universo jurídico. Por se encontrarem de forma subterrânea, mas presentes em
todo o sistema de direitos, há difícil detecção e consequente eliminação para
construção de outros paradigmas epistemológicos10.

Por isso, enxerga-se a necessidade de repensar a fundação de novas bases para


o Direito e de um outro tipo de formação para os sujeitos. No primeiro caso são
preementes mudanças no caráter da dogmática e da prática jurídicas. Estas
obstaculizam possibilidades mais claras e incisivas de atuações progressistas dentro da
lógica do sistema de direitos. Mas essas mesmas possibilidades existem e podem ser
exploradas conforme lição de Machado:
Os interesses que emergem da sociedade surgem de suas próprias
contradições internas, entre as forças produtivas e as relações destas com o
modo de produção, onde não sendo a consciência social homogênea, cria-se a
fermentação do conflito de classes, gerando um pluralismo
cultura/contracultura, e o Direito surge como instrumento de libertação, na
proposição de um pluralismo jurídico. (2009, p. 21)

O que se depreende do fragmento acima é a percepção das contradições do real


como condições suficientes para a visualização de novas demandas dos sujeitos. Tais
demandas podem forjar a atuação alternativa de profissionais ligados ao universo

10Está-se a falar do paradigma da colonialidade que, como demonstrar-se-á, forma um par com a
Modernidade. Ambos devem ser superados pela propositura de uma Filosofia Jurídica da Libertação.

Anãnsi: Revista de Filosofia, Salvador, v. 1, n. 1, 2020. 70


Breves notas de uma crítica à juridicidade moderna a partir da Transmodernidade

jurídico e abrir espaço para a reflexão das bases teóricas e epistemológicas da ciência
que se faz prática na lida jurídica e em experiências coletivas de educação para direitos
dos sujeitos.

O liberalismo, por sua vez, será responsável por erigir dois sustentáculos
importantes para a ciência jurídica: propriedade privada e sujeito de direito. Tais
elementos, imbricados e mutuamente dependentes, serão atravessados pelas
definições de área de atuação da juridicidade moderna e pelas classificações/exclusões
daí decorrentes. A condição de cidadão, por exemplo, está atrelada aos moldes erigidos
pelas Revoluções Burguesas, isto é, o cidadão é o indivíduo privado marcado pela posse
e pela propriedade de bens (aferidos economicamente ou não).

Nesse sentido, afirma-se que a fundação do Direito reside eminentemente no


âmbito do Direito Privado, ligado aos direitos do homem enquanto indivíduo singular,
não como cidadão inserto na esfera pública. Ora, o liberalismo é afirmador dos direitos
de propriedade do homem. Propriedade aqui vista não só no sentido de bens
econômicos, mas residente “na posse e no poder de uso que o homem tem sobre si
mesmo – a propriedade de seu corpo, de suas virtualidades. A propriedade enquanto
aquilo que é próprio do homem.” (VAIDERGORN, 2000, p. 7).

Portanto, a base liberal-individualista do Direito postula a defesa dos direitos


individuais e da propriedade privada como pedras-de-toque de todo o edifício jurídico.
No entanto, essa mesma esfera de atuação não se estende, como dito, a todos. A ideia
de propriedade privada, por exemplo, é tutelada para aqueles que têm as
possibilidades de possuir uma propriedade. O sujeito de direito, nessa relação, é
eminentemente, o indivíduo burguês (consumidor, proprietário, capitalista etc.). Tais
subcategorias, por sua vez, invariavelmente, são funcionais para a manutenção do
estado vigente das coisas. Isto é, os elementos mantidos pela base epistemológica do
Direito são o sustentáculo da lógica sistêmica capitalista. Nesse sentido, são precisas as
palavras de Pachukanis:
[...] o núcleo mais consolidado do universo jurídico (se é possível expressar-se
dessa maneira) repousa precisamente sobre o domínio das relações de direito
privado. É justamente aí que o sujeito de direito, a “persona”, encontra sua
encarnação mais adequada na personalidade concreta do sujeito econômico
egoísta, do proprietário detentor de interesses privados. É justamente no
direito privado que o pensamento jurídico age com mais liberdade e
segurança; sua construção adquire o aspecto mais acabado e harmonioso.
(2017, p. 93)

A passagem de indivíduo singular para cidadão modifica não só o status político


daquele como a configuração de direitos próprios do homem. A um mesmo sistema de
direito é estabelecido agora uma lógica pública de arcabouços e esquemas oriundos da
esfera privada. Todo esse processo, por sua vez, é bastante problemático, o que implica
a própria perda de sentido de juridicidade do direito público, seja enquanto sistema de
organização estatal seja enquanto modelo de tutela de direitos do cidadão.

Anãnsi: Revista de Filosofia, Salvador, v. 1, n. 1, 2020. 71


Diego Miranda Aragão

Outro elemento de reflexão acerca da influência liberal na órbita jurídica é a


questão da linguagem. Esta se evidencia como mais uma forma de estabelecer linhas
excludentes e classificatórias cujos chavões e expressões específicas parecem outro
idioma para o homem comum, “não iniciado” no exercício constante dos rituais e dos
cenários do mundo jurídico. Isso nos leva a afirmar, com Stutchka, “ruins e malévolas,
em grau extremo, as leis, as normas jurídicas, cuja compreensão é acessível apenas ao
jurista especializado”. (2001, p. 30). Essa rigidez linguística, associada ao formalismo
legal, é herança liberal.

Nesse sentido, o papel da linguagem é de traçar uma linha abissal entre aqueles
que detêm o conhecimento jurídico e os que não detêm. Tal marco divisório, inclusive,
é fonte para outras classificações: jurídico/não jurídico, legal/ilegal, cidadão/inimigo.
Tais classificações, como se verá, escondem negações e silenciamentos históricos.

Nessa toada, o engessamento e distanciamento da realidade social são


expressos de forma concreta na linguagem que, se não atinge o alcance social de
resolução de problemas, pode vir a representar mero ornamento e retórica artificial.
Nesse último caso, por sinal, a sátira machadiana da formação bacharelesca
oitocentista, citada no início do capítulo, é precisa.

Quanto ao positivismo jurídico, por sua vez, cujo maior expoente teórico
encontra-se na figura de Hans Kelsen, constitui uma doutrina ligada ao apego ao
formalismo legal e rigidez doutrinária na constituição da ciência do Direito. Com a
chamada Teoria Pura do Direito, tal autor alemão intentou elevar o Direito à categoria
de ciência, depurando-o de quaisquer outros elementos identificadores de outras
ciências ou ramos do saber distintos da esfera jurídica. Depuração essa que traria uma
concepção importante: a da unicidade de fonte jurígena. Quer dizer, o Estado seria um
único ente responsável pela produção das normas jurídicas. Essa é a ideia do monismo
jurídico.

O positivismo jurídico está adstrito à mera aplicação formal da norma jurídica à


realidade ou ao “caso concreto”. É uma representação lógico-formal de um reflexo
histórico que remonta à instituição dos ideais liberais perpetrados pela burguesia que
“cumpriu um papel revolucionário quando da destruição do feudalismo, mas não pôs
fim à exploração do homem pelo homem.” (CHAGAS, 2011, p. 53) A tarefa
juspositivista, assim, estava ligada à assunção do Direito à categoria de ciência em um
contexto onde novos marcos reguladores da vida estavam sendo exigidos. Estes
mesmos marcos não inauguraram uma ordem igualitária real, mas fundada na
pretensão de uma igualdade meramente formal (adstrita à menção legal).

Além disso, algumas das principais ideias que circundam o universo jurídico são
influências da presença positivista. A pretensão de uma neutralidade científica é
paradigmática nesse sentido, pois o “axioma da neutralidade valorativa das ciências
sociais conduz, logicamente, o positivismo, a negar – ou melhor, a ignorar – o
condicionamento histórico-social do conhecimento.” (LÖWY, 1998, p. 18)”. As

Anãnsi: Revista de Filosofia, Salvador, v. 1, n. 1, 2020. 72


Breves notas de uma crítica à juridicidade moderna a partir da Transmodernidade

categorias do tempo e do espaço, portanto, são afastadas quando da lida com as


ciências sociais.

Na órbita jurídica, por sua vez, não cabe ao legislador ou aplicador da lei valorar
com base em experiências pessoais a criação ou aplicação das normas jurídicas. Estar
isento, é distanciar-se enquanto sujeito e enxergar o fenômeno jurídico como algo que
se autolegitima sem interferências quaisquer.

Somado à pretensa neutralidade científica, o uso de conceitos e princípios


genericamente válidos é outra herança positivista. “Bem comum”, “ordem social”,
“estado de exceção”, dentre outras expressões, são utilizadas nos textos jurídicos como
termos vagos, sem conceituação jurídica e ficam à deriva da discricionariedade
hermenêutica de autoridades julgadoras ou aplicadoras da lei. Isso pode levar a usos
políticos antidemocráticos que prejudiquem determinados grupos de pessoas, o que
afasta bastante a pretensão de lida objetiva e neutra com os dispositivos do discurso
jurídico.

Ademais, não se deve esquecer, por fim, ser o positivismo o herdeiro das
crenças no progresso da ciência moderna como instrumento de autonomia e de
aperfeiçoamento humano. Daí a necessidade de processos objetivos e neutros no
manuseio do conhecimento racional advogado pelo “Século das Luzes” (XVIII), pois ele
deveria afastar-se de ideologias e de dominações externas. Em suma, o “positivismo
moderno nasceu como um legítimo descendente da filosofia do Iluminismo” (LÖWY,
1998, p. 19), movimento profundamente enraizado na europeidade.

Portanto, a pretensão de neutralidade científica, a ideia de objetividade, o


apartamento da realidade observada são todos corolários da presença positivista no
Direito. Este, por sinal, sendo mais um fruto da modernidade-Esclarecida-Europeia
pretensamente proclamadora de novos rumos epistêmicos, políticos, históricos e
filosóficos para toda a Humanidade.

Para uma filosofia jurídica da libertação: caminhar com o passado sem se limitar
a ele
[...] o futuro não se constrói a partir de um presente arbitrariamente fixado,
mas do questionamento do passado. É tão grave esquecer-se no passado
quanto esquecer o passado. Nos dois casos desaparece a possibilidade de
história. O contato continuado com o universo euro-ocidental é condição de
nossa maturidade. Mas sob uma condição: o exercício de uma impiedosa
antropofagia. É urgente devorar a "estranja" – como gostava de dizer Mário de
Andrade. Devorar sem culpa ou sentimento de inferioridade. (GOMES, 1994,
p. 105).

O excerto que abre este capítulo é fragmento da obra Crítica da Razão


Tupiniquim, de Roberto Gomes, cuja provocação é um ponto de partida importante
para realizar as reflexões nesta parte do artigo. Afinal não se pretende aqui negar o

Anãnsi: Revista de Filosofia, Salvador, v. 1, n. 1, 2020. 73


Diego Miranda Aragão

passado, mas ressignificá-lo e utilizar essa nova semântica como ferramenta para a
construção de novos futuros.

Ainda sobre o fragmento, ele enuncia a inescapável referência ao legado euro-


ocidental que carregamos em nossa história. Ao mesmo tempo em que há elementos
frutos da colonização e da invasão da lógica ocidentalocêntrica em nossa constituição
enquanto povo, há a possibilidade do emancipar-se da temporalidade imputada a nós
pelo ethos europeu. Não há como esconder ou negar o passado, mas degluti-lo, ruminá-
lo, mudar a forma dele para, assim, possibilitar novos processos e novos esquemas
interpretativos acerca do nosso real.

Para essas tarefas, são necessárias reinvenções filosóficas e políticas. Utilizar-se


do arcabouço teórico europeu resultaria em insuficiências, uma vez que é produtor de
linhas abissais divisórias do jurídico e do não-jurídico, do Ser e do não-Ser, da
civilização e da barbárie. Quer dizer, tudo aquilo que é produzido dentro do marco
geopolítico europeu é referencial de verdade (política, jurídica e ontológica), o que está
fora é fruto das efabulações e invenções míticas conforme mencionado no capítulo
anterior. Tal quadro que assim se delineia, mostra-se inadequado à especificidade de
nossas problemáticas, já que vistas sob o olhar silenciador e encobridor do
pensamento estrangeiro.

Dessa forma, para a Filosofia da Libertação, tributária de uma crítica à


juridicidade moderna, precisa-se pensar nossa realidade a partir da posição de onde
estamos, não por exclusiva comparação assimilativa de categorias, de ideias e de
autores distantes temporal e espacialmente de nós mesmos. Do contrário, continuar-
se-á a reproduzir um pensamento colonizado, ainda que bem-intencionado na direção
de autonomia e da libertação de nossos povos. Para o filósofo da libertação, o
pensamento reputado como a tradição da ocidentalidade filosófica não pode contribuir
para essa tarefa, seja pelo caráter da mesmidade11, seja pelo fato de que, conforme fala
Segalés,
[...] cuando partimos ingenuamente de la cosmovisión moderna de la historia,
la ciencia y la tecnología, automáticamente lo que se deduce es nuestro
supuesto carácter de inferioridad innata histórica y cultural, y así lo que
entonces se vuelve a deducir es que la única forma de desarrollarnos o salir
de este estado de inferioridad y subdesarrollo es perseguir a como dé lugar la
modernización de todas nuestras relaciones, pero de lo que no nos damos
cuenta es de que justamente con este tipo de procedimiento se esconde el
misterio de nuestro subdesarrollo, cuando, queriendo ser lo que no somos
(desarrollados), al final terminamos negando lo que éramos para poder ser lo
que no somos. (2014, p. 58).

A pretensão da Filosofia da Libertação caminha na direção de uma construção


histórica a partir da visão que se possa ter sobre nós mesmos enquanto povos

11
Ou Ipseidade, isto é, a tendência do pensamento moderno europeu de falar de si mesmo como legítimo
exemplar da universalidade filosófica. Como se verá, subjaz a essa afirmação a negação do Outro (africano,
latino-americano, asiático etc.) como uma voz filosófica também.

Anãnsi: Revista de Filosofia, Salvador, v. 1, n. 1, 2020. 74


Breves notas de uma crítica à juridicidade moderna a partir da Transmodernidade

colonizados e dependentes do centro do mundo (europeu-estadunidense). Essa


construção é o verdadeiro significado de firmar uma posição. Só se constrói um olhar
sobre a realidade a partir de uma posição. Ora, não há como enxergar sem delimitar e
precisar o nosso lugar de construção de uma visão sobre o mundo.

Por isso, a utilização do marco categorial moderno para a reinvenção das bases
epistêmicas do Direito redunda também, em caminharmos na direção de ser o que não
somos. Deve-se “pensar categorialmente”, isto é, realizar uma espécie de assimilação
criadora e reinventiva de categorias típicas da modernidade que se coadunam com os
processos históricos de formação dos nossos povos reivindicados desde um ponto de
vista da libertação.

Recorde-se, também, que tanto o positivismo quanto o liberalismo são


resultados do entusiasmo cientificista europeu pós-Revoluções Burguesas. A crença no
conhecimento como principal fonte e orientação humana gera a pretensão de que o
discurso científico poderia abarcar a totalidade da realidade. A leitura do real
realizada nesses moldes é uma leitura de interpretação, não a única. “Quando falamos
de ciência e técnica, falamos de uma atitude fundamental do homem com relação à
realidade, à totalidade, falamos de uma perspectiva na qual a totalidade se lhe
manifesta.” (OLIVEIRA, 1990, p. 131). Assim, seria demasiada pretensão arriscar em
uma leitura a possibilidade de abarcar a totalidade do real. Quando se aposta, por outro
lado, em interpretações do real comprometidas com a libertação dos povos e sujeitos
dominados historicamente, a unicidade de leitura torna-se ainda mais arriscada. Afinal
“nenhuma cultura é completa, no sentido de ser capaz de dar todas as respostas do
desejo global de autodeterminação e de libertação humana.” (SANTOS, 2019, p. 346).

A perspectiva adotada pela Filosofia da Libertação resgata a própria


necessidade do perspectivar, isto é, vislumbrar horizontes de futuro a partir do local de
observação da realidade. Tal lugar, diga-se, é pluriverso e multilocalizado e reivindica a
afirmação de que “todo saber acerca da realidade é pura possibilidade; a única
realidade constitui seu interesse absoluto”. Com isso, pode-se ir além. “Um homem
particular existente jamais é uma idéia, sua existência é algo absolutamente distinto da
existência pensada de uma idéia.” (DUSSEL, 1986, p. 165). Por isso, a analética12
dusseliana não se confunde com a dialética hegeliana. O real não pode ser pensado nem
determinado, em integralidade, pelo racional.

Nesse sentido, o compromisso do filósofo da libertação, por sua vez, é a defesa e


o movimento tendente a conjugar diferentes racionalidades para, dentre outras
finalidades, favorecer o bom conviver entre os diferentes povos. Essa postura implica
negar o pressuposto classificatório e hierarquizante do pensamento

12 Juntamente com a transmodernidade, a analética está no centro do quadro categorial dusseliano. A


analética remete a um método específico de interpretação da realidade cuja preocupação principal está
centrada no Outro (colonizado, subalternizado historicamente). Tal método “no es otra dialéctica más,
sino que es la dialéctica desfondada desde la palabra del Otro como revelación, la cual no viene desde
arriba o desde el cielo, sino desde lo que la totalidad ha negado siempre.”. (SEGALÉS, 2014, p. 24).

Anãnsi: Revista de Filosofia, Salvador, v. 1, n. 1, 2020. 75


Diego Miranda Aragão

moderno/científico responsável por construir dicotomias: sujeito/objeto;


cultura/natureza; humanos/não-humanos; científico/não científico etc.

Enquanto o saber científico pretende ler a realidade naquilo que lhe é


intrínseco, sem injunções do sujeito que a observa, objetivando um total apartamento
entre sujeito e objeto de conhecimento, o pensar pautado pelo método analético
caminha em outro sentido. Para este, o objetivo do saber não está no que foi
objetivado, mas no Outro personificado. Por isso, o Outro é capaz de conhecimento,
uma vez que não há conhecimento sem sujeito.

O uso de tal método constitui ferramenta importante dessa inventividade


filosófica, e a ideia de transmodernidade é imprescindível para a construção de novos
pilares epistêmicos para a vida e, consequentemente, para a juridicidade. É com a
transmodernidade que se torna possível um horizonte de sentido para o pensar desde
Nuestra Tierra. A transmodernidade contrapõe-se à ideia de modernidade e pretende
atravessá-la ultrapassando-a13. Veja-se o que fala Dussel:
Trans-modernidad” indica todos los aspectos que se sitúan “más-allá” (y
también “anterior”) de las estructuras valoradas por la cultura moderna
europeo-norteamericana, y que están vigentes en el presente en las grandes
culturas universales no-europeas y que se han puesto en movimiento hacia
una utopía pluriversa. (2005, p. 18).

Dessa forma, o situar-se “mais além” e anteriormente à modernidade, como fala


o fragmento acima, é condição imprescindível para a edificação de um projeto filosófico
latino-americano ou brasileiro especificamente. Nessa linha, faz-se necessário
encontrar um lugar para América Latina nessa proposta, ou seja, “encontrar um lugar
para ela na História Mundial, partindo da sua pobreza, e, assim, descobrir sua realidade
oculta.” (DUSSEL, 1995, p. 14). Tal opção teórica não é aleatória, mas convergente com
o respeito e a marcação temporal da vivência e da história dos nossos povos que
apresentam produções culturais, formas de vida e de saberes que sofreram “um
despojo de seu lugar na história da produção cultural da humanidade. Daí em diante
não seriam nada mais que raças inferiores, capazes somente de produzir culturas
inferiores.”. (QUIJANO, 2005, p. 127).

Nesse sentido, pretendemos apresentar uma filosofia que não seja apenas um
amor ao saber, ao conhecimento, mas um amor do próprio amor no sentido da
revelação do homem por meio do encontro face-a-face com o Outro. Tal pensar
reporta-se a um local e reflete sobre ele. Esse lugar é o da pobreza, do lugar dos
oprimidos historicamente (negros, mulheres, lgbts, pobre, indígenas etc.). Isso resulta
em afirmar a posição capitalista/racista/patriarcal da modernidade europeia e
enunciar as diferentes perspectivas de libertação dessa mesma modernidade.

13Daí ser importante falar que uma Filosofia da Libertação não objetiva esquecer o passado, mas, com a
apropriação semântica própria e original dos povos colonizados, ultrapassar as designações
(ontológicas, filosóficas, estéticas, jurídicas) que ele carrega junto a si.

Anãnsi: Revista de Filosofia, Salvador, v. 1, n. 1, 2020. 76


Breves notas de uma crítica à juridicidade moderna a partir da Transmodernidade

Ao partir-se desse novo ponto de vista, o dos colonizados, percebe-se o grau de


violência da empresa colonial ao objetivar incutir, de diferentes formas (política,
jurídica, pedagógica e militar), marcos categoriais importantes para a vida política dos
povos. Afinal os invasores europeus, armados com os argumentos do progresso e da
civilização, “[...] destruíram aquilo que não haviam criado e ridicularizaram o que não
entendiam.” (FEYERABEND, 1991, p. 38). As crenças e os modos de constituição da
vida coletiva de nossos povos originários foram vistos pelos invasores europeus,
invariavelmente, como “misticismos” ou como estágios inferiores de organização
comunitária, respectivamente.

Sobre o afirmado acima, a juridicidade colonial brasileira é um bom exemplo de


violência e dominação europeias. Afinal o Direito Colonial constituía uma mescla do
Direito Metropolitano com algumas normatividades oriundas das cosmovisões
indígenas. No entanto, mesmo quando os documentos oficiais dos colonos respeitavam
e proclamavam essa espécie de diversidade jurídica a mesclar elementos da
normatividade indígena, tal postura pode ser vista como uma espécie de tolerância
dominadora, como dito no primeiro capítulo deste artigo. Em suma, “o Direito Moderno
foi uma derradeira invenção alienígena, para a qual o extermínio, a violência e o
encobrimento sãos as melhores insígnias.”. (LIXA, 2018, p. 68).

O olhar transmoderno a respeito da história, nesse sentido, constitui-se como o


reconhecimento de histórias e de culturas milenares de povos não-europeus capazes
de produzir epistemologias e discursos não centrados nos valores e nas categorias
próprias da modernidade europeia14. Como não se pode ficar no passado, esquecendo-
se nele, a defesa de uma pluriversidade ontológica e jurídica torna-se premente para
que se possa ir ao encontro de diversos sujeitos de direito e de espaços de juridicidade
existentes nas regiões atravessadas pelo colonialismo.

A categoria da transmodernidade revela-se como capaz de respeitar e manter as


diferentes (mas confluentes e interseccionantes) histórias dos povos enquanto
constituidoras de epistemologias, de sentidos e de significados próprios. Para uma
Filosofia Jurídica da Libertação, portanto, ela seria um referencial central na
construção de bases epistemológicas para a juridicidade colonizada, tal como a que se
apresenta em nossas terras.

Para a assunção desse olhar pluriverso e transmoderno, é necessário derrubar a


narrativa mítica da centralidade da voz europeia como aquela capaz de pautar os
rumos epistêmicos e históricos dos povos. Esse mito enganador15 objetiva igualar duas

14 Como pensar modernamente a partir da América Latina, se se concebe que tais valores foram forjados
por processos históricos próprios e uma classe constituída especificamente por eles? Não tivemos
revoluções tipicamente burguesas neste lado do globo. A ascensão de uma classe dita burguesa no Brasil,
por exemplo, conviveu um bom tempo com a ordem escravocrata pela especificidade da construção de
nossa história econômica.
15 Há os bons mitos, aqueles capazes de revelar aproximações ou conexões intrínsecas (natureza-cultura,

sujeito-objeto). Um deles é a visão xamânica da realidade, afirmadora da personificação do

Anãnsi: Revista de Filosofia, Salvador, v. 1, n. 1, 2020. 77


Diego Miranda Aragão

categorias distintas: modernidade e Humanidade. Afinal a autoafirmação de províncias


do mundo (Portugal e Espanha dos séculos XVI e XVII) como detentoras de referenciais
de humanidade é, no mínimo, arriscada. Ora, tal centralidade eurocêntrica produz uma
visão capaz de igualar a humanidade com a modernidade. Afinal, esses processos
imputam à narrativa da “missão civilizadora” dos invasores o caráter de destino
histórico humano. Quer dizer, há a tentativa de uniformizar e homogeneizar o futuro
dos distintos povos (colonizados e colonizadores).

No entanto, não se deve cair nessa armadilha teórica e falaciosa. Reduzir a


humanidade ou os valores humanos às concepções modernas é afirmar um horizonte
de sentido construído a partir da negação de histórias e de saberes milenares e
pretéritos ao processo colonial. Sobre isso fala Segalés:
Cuando se confunde la modernidad con la humanidad, se piensa normalmente
que, al hacer una crítica radical de la modernidad, se hace para negarla
completamente a ella y así nos quedaríamos sin nada. Este temor proviene
normalmente de quienes piensan que la modernidad es lo mejor que la
humanidad pudo haber creado y quedarrnos sin ella equivaldría a volver a la
Edad de Piedra. Lo humano y la humanidad son mucho más que la
modernidad. Podemos darnos cuenta de ello cuando pensamos la modernidad
desde otros horizontes de sentido. Es lo que intenta un trabajo como el
nuestro (2014, p. 13).

Ao negar a narrativa falaciosa e mítica da humanidade como identidade da


modernidade, pretende-se a construção de horizontes de sentido para além e fora dos
crivos legados pela modernidade. Afirma-se a pluriversidade (jurídica, política,
epistêmica) que as cosmologias indígenas, por exemplo, apresentam. A normatividade
social de nossos povos originários foi substituída por um sistema de direitos monista,
positivista e liberal, responsável por uma redução de campos a partir dos quais a vida
social pode germinar o jurídico16.

Dessa forma, a aproximação e o aprendizado com as cosmologias dos povos


nativos de Nuestra Tierra pode ser caminho para visualizar-se uma perspectiva

conhecimento, para quem conhecer é “personificar, tomar o ponto de vista daquilo que deve ser
conhecido — daquilo, ou antes, daquele; pois o conhecimento xamânico visa um ‘algo’ que é um ‘alguém’,
um outro sujeito ou agente. A forma do Outro é a pessoa.” (VIVEIROS DE CASTRO, 2004, p. 231)
16 A ideia de Pluralismo Jurídico constitui um referencial importante aqui, pois, como uma das correntes

de pensamento do Direito, vai “pôr em xeque” o monismo jurídico da escola juspositivista ao afirmar não
ser o Estado o único detentor do poder de produzir normas jurídicas. Volkmer (2001), um dos principais
nomes de tal corrente, vai afirmar, ainda, que, para se analisar o fenômeno jurídico, deve se atentar para
a forma estatal histórica concreta presente em dado período. A forma burguesa de Estado vai produzir e
ser mantida por um direito burguês que vai chancelar os direitos de uma classe que se forjou
historicamente e se mantém a possuidora do poder em seus mais diversos aspectos (políticos,
econômicos, culturais, etc.). No entanto, pretende-se ir além das concepções desse Pluralismo Jurídico ao
propor uma aproximação com as cosmologias indígenas, berço de normatividades sociais pluriversas, e
um Direito com viés plural e emancipatório. A cosmologia ameríndia, cujas concepções de outro e de
pessoa são muito mais ampliadas, pode abrir caminho para uma juridicidade capaz de construir
potenciais emancipatórios de forma original e autônoma em nossas terras.

Anãnsi: Revista de Filosofia, Salvador, v. 1, n. 1, 2020. 78


Breves notas de uma crítica à juridicidade moderna a partir da Transmodernidade

libertadora, descentrada da europeidade. Uma espécie de “antropofagia filosófica”,


assim realizada, intenta “[…] apropriarse de esos avances y desarrollos para darles
otro fundamento, cuyo sentido sea ahora de liberación y no así de dominación”
(SEGALÉS, 2014, p. 12). Tais avanços e desenvolvimentos constituem não só as
construções herdadas da europeidade, mas o próprio conhecimento milenar dos povos
nativos.

Realizar esse hibridismo epistemológico representa não negar os processos


históricos e, ao mesmo tempo, reiventá-los a partir da construção de outros marcos de
temporalidade. O pensar transmoderno e a pluriversidade, na proposta descolonizante
da juridicidade moderna, andam juntos e são mutuamente dependentes. Não há que se
pensar em filósofo da libertação que não seja guiado pelo método analético e olhar
transmoderno como vias de construir uma pluriversidade jurídica. Tal caminho, se não
for determinante para processos de descolonização jurídica, ao menos constitui uma
proposta descentrada da europeidade cujo legado já se conhece e não contribuiu muito
para a solução dos nossos problemas sociais seculares.

Portanto, outro marco categorial é necessário para uma construção original e


autônoma de nosso povo. Como dito acima, trata-se agora de aproveitar o legado
histórico da modernidade que possa ser benéfico para uma proposta de
descolonialidade jurídica que “no se limita a copiar categorías o conceptos, sino que
intenta hacer una incorporación problematizadora y resemantizante en un corpus
categorial nuevo” (SEGALÉS, 2014, p. 22) correspondente à realidade vivenciada
porque fruto da relação problematizadora dessa mesma realidade. Isso tudo significa
afirmar, por fim, a necessidade de uma Filosofia Jurídica da Libertação em nossa parte
do globo.

Considerações Finais

O fim é o começo e o começo é o fim. Tudo está conectado. Assim deve ser o
pensamento desde um ponto de vista comprometido com a libertação dos
subaltarnizados historicamente. Não se pretendeu com este artigo pôr um ponto final
na História, muito menos um ponto teleológico, mas apenas indicar possibilidades,
futuridades novas para problemas antigos.

Pensar a construção de uma Filosofia da Libertação voltada para o campo


jurídico mostrou-se um desafio imenso dadas as múltiplas conexões reflexivas e
apontamentos práticos para o soerguimento de um projeto político dessa envergadura.
Em verdade, a dificuldade se apresenta em duas dimensões. Em uma primeira, a
própria assunção de uma Filosofia da Libertação, isto é, descentrada dos marcos
categoriais europeus. Já em uma segunda, o direcionamento dessa proposta filosófica
para uma crítica à juridicidade moderna.

Com este artigo, espera-se ter cumprido a tarefa inicial de expor as bases
epistêmicas do Direito com as características e reverberações específicas nacionais.

Anãnsi: Revista de Filosofia, Salvador, v. 1, n. 1, 2020. 79


Diego Miranda Aragão

Além disso, espera-se ter delineado bem as interlocuções entre uma crítica
transmoderna da juridicidade e o pensar da libertação de Enrique Dussel.

Por certo, a proposta teórica aqui exposta não começa nem termina nestas
linhas. Boa parte da força política dessas palavras reside em experiências concretas e
delas depende. Afinal não se trata, neste artigo, de propor uma filosofia autofundante,
mas que se volte para a realidade concreta e histórica dos sujeitos, dela apreenda os
sentidos e, com ela, configure inventividades políticas reordenadoras do modo de vida
das pessoas.

Por fim, fica o desejo de que outros pesquisadores, acuradamente, encontrem


nessas reflexões subsídios para novas pesquisas dentro do campo da Filosofia, do
Direito ou de áreas afins. Fica-se, também, com a lição de que a Filosofia da Libertação
“é estrita e propriamente uma pedagógica; relação mestre-discípulo, no método de
saber crer a palavra do outro e interpretá-la.” O filósofo da libertação, se pretende
comunicar algo a outrem, “deve começar por ser o discípulo atual do futuro discípulo.
Tudo depende disso.” (DUSSEL, 1986, pp. 209-210)

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Diego Miranda Aragão

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Recebido em: 09 de jul. 2020


Aceito em: 07 de ago. 2020

Anãnsi: Revista de Filosofia, Salvador, v. 1, n. 1, 2020. 82


Universidade do Estado da Bahia
Departamento de Educação – Campus I
Anãnsi: Revista de Filosofia, Salvador, v. 1, n.1, 2020

Surdez e Filosofia: entre a coexistência e a simbiose na


educação básica
Deafness and Philosophy: between coexistence and symbiosis in
basic education

Brennan Cavalcanti Maciel Modesto 1

Resumo: Partindo de uma análise sócio-histórica da Surdez, é traçado um paralelo entre esta e a
Filosofia, enquanto componente curricular no ensino médio. Em seguida, investigam-se as demandas,
dificuldades, possibilidades e questões que parecem permanentemente em aberto quanto ao ensino de
filosofia, seus fundamentos, funções e efetividade da transposição enquanto recurso didático, de
maneira especial, para estudantes surdos. Tem-se o bilinguismo enquanto referencial, todavia, coloca-se
em xeque não só a possibilidade e os limites da tradução dos conceitos filosóficos (entre línguas de
diferentes modalidades, a saber, orais e de sinais) como a eficiência do ensino de filosofia. Aponta-se por
fim, que para o efetivo cumprimento do propósito político e social que lhe é designado, a filosofia, bem
como toda a educação básica, deve assumir uma postura simbiótica para com a comunidade surda, de
maneira a estender a tal grupo o ideal de autonomia que consta nos documentos oficiais.

Palavras–chave: Educação Inclusiva; Ensino de Filosofia; Filosofia da Educação; Tradução; Surdez.

Abstract: Starting from a socio-historical analysis on Deafness, a parallel is drawn between it and
Philosophy, as a curricular component in high school. Then, we investigate the demands, difficulties,
possibilities and issues that seem permanently open regarding the teaching of philosophy, its
fundamentals, functions and effectiveness of transposition as a didactic resource, especially for deaf
students. Bilingualism is used as a reference, however, not only the possibility and limits of the
translation of philosophical concepts (between languages of different modalities, namely, oral and sign)
are put in check, but also the efficiency of teaching philosophy. Finally, it is pointed out that for the
effective fulfillment of the political and social purpose assigned to it, philosophy, as well as each
curricular component, must assume a symbiotic stance towards the deaf community, in order to extend
to such a group the autonomy ideals that appear in the official documents.

Keywords: Inclusive Education; Philosophy teaching; Philosophy of Education; Translation; Deafness.

1 Graduando em Pedagogia pela Universidade Estácio de Sá. Licenciado em Filosofia e Mestrando


Profissional em Filosofia pela Universidade Federal de Pernambuco. Professor e Coordenador do Projeto
Gradação (UFPE) e Professor do Pré-Vestibular Portal (UFPE). Membro do Grupo de Estudos e Práticas
de Ensino de Filosofia (UFPE) e do Observatório de Ensino de Filosofia (UFPE). Dedica-se à estudos em
Filosofia Latino-Americana, sobretudo na obra de Simón Rodríguez, Educação Inclusiva, Filosofia da
Educação e Ensino de Filosofia. E-mail: brennancmm@gmail.com
Brennan Cavalcanti Maciel Modesto

Introdução

Não é preciso um olhar muito atento para notar que historicamente têm-se
negado à comunidade surda uma série de direitos básicos, dentre estes, além do
limitado acesso às diversas produções culturais destaca-se o cerceamento do direito à
educação. Isso, não se dá de maneira velada, ainda que a constituição federal de 1988
assegure o acesso e permanência dos mesmos à Educação Básica formal.

Dentre os 10,7 milhões de pessoas surdas do Brasil 32% não possuem qualquer
grau de instrução formal, 46% completaram o Ensino Fundamental e os 15% restantes
concluíram o último ciclo da Educação Básica e apenas 7% destes possuem Ensino
Superior completo. Esses dados implicam que pouco mais de um terço dos surdos,
37%, estejam inseridos no mercado de trabalho, fator que por sua vez, endossa as
limitações de seu acesso a bens de consumo diversos (GANDRA, 2019).

Os diversos subgrupos de pessoas com necessidades educativas especializadas,


quando adentram as instituições escolares já carregam consigo uma série de fatores
que podem influenciar negativamente o seu desenvolvimento no âmbito social e
acadêmico.

Não raro, o trato dado lhes imputa pena ou tenta-se justificar a necessidade de
mantê-los “embaixo da asa”, ou ainda, a postura de parte do corpo docente ao
questionar constantemente a capacidade intelectual de tais indivíduos, pressupondo
que suas necessidades educacionais especiais de algum modo viriam a comprometer a
aquisição das Habilidades e Competências, conforme indicam os documentos oficiais,
clássicas representações de capacitismo, a crença de que pessoas com deficiência ou
necessidades educativas especiais são incapazes de atingir os mesmos níveis das
consideradas “normais”. Tal crença acaba dificultando o papel social que a instituição
educacional, desde sua concepção, propõe-se a desempenhar: propiciar a formação
necessária para o pleno e autônomo exercício da cidadania (Rodríguez, 2016)

Tais visões partem do pressuposto de que surdos possuem limitações, sejam


elas do campo Intelectivo ou socioemocional, no entanto,
É preciso ficar atento para se desconstruir a ideia de o Surdo ser incapaz, pois,
como denunciam Dizeu e Caporali (2005), o problema se encontra, na maioria
das vezes, nas condições dadas aos sujeitos e não ao sujeito em si. Então,
"podemos depreciar relatos que afirmam ser a surdez causadora de
limitações cognitivas e afetivas, pois a verdadeira limitação está nas condições
oferecidas a esse sujeito Surdo”. (DIZEU; CAPORALI apud REZENDE, 2019, p.
92).

Ou seja, cabe afirmar que se ocorrem casos onde o desenvolvimento (de ordem
intelectiva ou socioemocional) de tais indivíduos possua “atraso” em relação aos
demais grupos da sociedade, isso deve-se à postura assumida pela sociedade civil na
mediação das primeiras relações sociais das pessoas surdas.

Anãnsi: Revista de Filosofia, Salvador, v. 1, n. 1, 2020. 84


Surdez e Ensino de Filosofia: entre a coexistência e a simbiose na educação básica

A Filosofia, por sua vez, é marcada por um tipo de pensamento bastante


peculiar. De fato, não existe consenso sobre o modo como se dá o pensamento
filosófico, mas de maneira bastante geral, pode-se dizer que é centrado na Abstração
sobre e para o mundo. Para salvar a interpretação de Jaspers:
Certo é que ela rompe os quadros do inundo para lançar-se ao infinito. Mas
retorna ao finito para aí encontrar seu fundamento histórico sempre original.
Certo é que tende aos horizontes mais remotos, a horizontes situados para
além do mundo, a fim de ali conseguir, no eterno, a experiência do presente.
Contudo, nem mesmo a mais profunda meditação terá sentido se não se
relacionar à existência do homem, aqui e agora. (JASPERS, 1983, p. 138)

Por conta desta característica, de uma maneira geral, os primeiros contatos com
a Filosofia, enquanto Componente Curricular do Ensino Médio brasileiro costumam ser
traumáticos. Aqui, compreendemos “trauma” no sentido de fadado à derrota ou
desastroso. Tal característica se dá em grande parte como decorrência do estigma de
mera abstração ou “ideologismo” carregado pela Filosofia e do fato da disciplina seguir
preterida no Currículo escolar e sofrer com a falta de profissionais com a capacitação
necessária para atuar na área.

Como se sabe, estas são implicações diretas da desregulamentação de Filosofia e


Sociologia enquanto componentes curriculares – dando lugar à Educação Moral e
Cívica e Organização Social e Política Brasileira (OSPB) durante a ditadura Empresarial
Militar do Brasil ocorrida no entre as décadas de 1960 e 1980. Esses fatores por aliados
justificam por si sós parte da aversão sentida por uma parcela considerável da
sociedade (e refletida nos estudantes) nutrem para com o componente curricular.

Um breve histórico da Língua Brasileira de Sinais

Antes de compreender o surgimento da Língua Brasileira de Sinais em si, é


necessário um recorte histórico. Isto é, breves notas sobre as visões e narrativas que ao
longo dos séculos se estabeleceram sobre e em torno do sujeito surdo, bem como das
relações entre cognição e linguagem.

De início o Oralismo foi soberano. Considerava-se que o desenvolvimento


cognitivo era diretamente relacionado à aquisição da linguagem oral. Fator que hoje
sabe-se, de nenhuma maneira, garantir o pleno desenvolvimento de uma pessoa surda
isolada numa comunidade de ouvintes.

Afinal, para surdos, a língua oral não é adquirida de maneira natural, mas por
uma série de artifícios fonoaudiológicos, que não raramente são invasivos. Não
raramente isso se manifesta em uma reprodução de sons, palavras e frases que não
contenham unidade de sentido, não representando um raciocínio completo.
No começo do século XX, encontram-se os primeiros relatos dos insucessos do
oralismo. Um inspetor geral de Milão descreveu que o nível de fala e de
aprendizado de leitura e escrita dos Surdos após sete a oito anos de

Anãnsi: Revista de Filosofia, Salvador, v. 1, n. 1, 2020. 85


Brennan Cavalcanti Maciel Modesto

escolaridade era muito ruim, sendo que estes Surdos não estavam preparados
para nenhuma função, a não ser como sapateiros ou costureiros. Na França
isso também foi notado, os Surdos educados no oralismo tinham uma fala
ininteligível (MOURA apud RODRIGUES, 2008, p. 49).

Logo, não logravam-se os êxitos esperados. Os oralistas esperavam não somente


levar o surdo a falar e ler lábios, mas a desenvolver competência linguística, o que lhes
permitiria desenvolver-se social, emocional e intelectualmente e, dessa maneira,
integrar-se ao mundo dos ouvintes (CAPOVILLA apud RODRIGUES, 2008, p. 66). Dessa
forma, compromete-se o modo com que os surdos oralizados se relacionam com o
mundo, sua cognição não desenvolve-se plenamente (à despeito do que a perspectiva
defende), acarretando uma série de dificuldades nos campos pessoais e interpessoais.

O primeiro cidadão na modernidade ocidental que se propôs a ensinar surdos


foi Pedro Ponce de Léon, um monge beneditino espanhol do século XVI. Neste
momento, é verdade, a preocupação primordial era a garantia da instrução desses
indivíduos para que pudessem assumir as heranças de suas respectivas famílias.
Todavia, acaba por conseguir provar que sujeitos surdos, ao contrário do que se
pensava até então, eram capazes de aprender e exercer atividades intelectivas, ainda
que em alguma medida, rudimentares. Sem dúvidas, um avanço enorme propiciado
pelo advento da modernidade, marcada pela crença no poderio da razão.

Aclamado por muitos sob a alcunha de “o pai dos surdos”, o Abade francês
Charles-Michel de L’Epée tem seu nome marcado na história. Ainda que não tenha sido
o primeiro a estabelecer relações de cunho pedagógico com surdos, foi pioneiro no que
diz respeito à uma escola propriamente para pessoas surdas, bem como quanto a uma
metodologia que utilizasse um alfabeto sinalizado, já no ano de 1760.

Ainda que L’Epée considerasse a língua de sinais (LS) orgânica e extremamente


importante, nunca abriu mão do uso da língua oral. Seus Sinais Metódicos são criados
com base numa mistura de aspectos (sobretudo icônicos e visuais) da língua de sinais
francesa e o Francês tradicional, se justificavam sob o pretexto de as línguas de sinais
jamais possuiriam uma “gramática própria”.

A educação de surdos chega ao Brasil em meados do século XIX, mais


especificamente em 1857, à pedido de Dom Pedro II, o também francês Eduard Huet
funda o Imperial Instituto de Surdos Mudos (Collégio Nacional para Surdos-Mudos),
claro, esta não foi uma instituição de caráter popular, mas voltada aos descendentes da
família real e ao imediatamente próximos de sua corte, afinal, vivia-se o império.
Atualmente, este órgão chama-se Instituto Nacional de Educação de Surdos (INES) e
assume uma postura completamente avessa a inicial, prestando atendimento direto
para mais de 600 crianças e jovens surdos entre a educação infantil e o ensino médio e
influenciando diretamente todo tipo de movimentação da comunidade surda brasileira
no que tange temáticas Educacionais, atuando tanto na produção de materiais
didáticos como na produção acadêmica propriamente dita.

Anãnsi: Revista de Filosofia, Salvador, v. 1, n. 1, 2020. 86


Surdez e Ensino de Filosofia: entre a coexistência e a simbiose na educação básica

Ainda contando com um órgão responsável por lidar com as questões referentes
à surdez e aos surdos, a manutenção da língua de sinais não ocorreu de fato, já em
1880 o Congresso de Milão marca a proibição completa do uso de quaisquer tipos de
sinais na educação de surdos. Embora o oralismo tenha passado a ser considerado
antiquado, suas raízes estão entranhadas na cultura, tanto brasileira quanto ao redor
do globo.

Afinal, a autonomia do surdo pode deliberar o que é ideal ou não para sua
formação social, acadêmica e emocional é algo extremamente recente. Um quadro onde
surdos sequer são vistos como uma comunidade independente dotada de produções
culturais e linguísticas peculiares é deveras presente no imaginário coletivo. A
desconstrução de narrativas de tal natureza é, sem dúvidas, um trabalho árduo e a
longo prazo, mas parece passar pela viabilização de acesso de surdos não só à
educação formal (e informal, em ambientes bilíngues) como garantia de presenças
formalizadas no mercado de trabalho.

A perspectiva da Comunicação Total pode ser bastante frutuosa, entretanto, não


adentraremos em discussões quanto a esta, por ser antes uma concepção oposta à
oralista que um método de ensino propriamente dito, como viria a ser o Bilinguismo
(Capovilla, apud Souto, 2017, p.4). Este, caracteriza-se por compreender que o surdo
deve ter contato não só com sua língua nativa, no Brasil, a Libras como também com a
língua portuguesa, tendo em vista o intercâmbio cultural ente as comunidades surda e
ouvinte.

Ainda que a Constituição Federal de 1988 garantisse atendimento educacional


especializado (AEE) para todos que comprovadamente o necessitassem, perspectiva
endossada pela Lei de Diretrizes e Bases da Educação (LDB), de 1996, no entanto, a
efetivação quanto às pessoas surdas só surge muitos anos depois.

Apenas em 2002, consegue-se a aprovação da Lei nº 10.436, conhecida apenas


por Lei da Libras, fruto de amplas movimentações da comunidade surda de todo o país
e organização de uma frente ampla de luta, consegue-se a efetiva institucionalização da
Língua Brasileira de Sinais enquanto autônoma em relação à Língua Portuguesa, como
língua natural da comunidade surda em todo o território brasileiro e,
consequentemente, segunda língua oficial do Brasil.

Em 2005, o decreto nº 5.626, de 22 de dezembro de 2005, garante uma série de


subsídios para a efetivação da Libras em contexto escolar, como a inclusão de uma
carga horária mínima durante a formação acadêmica, marcada por conceituações
teóricas sobre a história da Libras e das concepções educacionais para com a surdez ao
longo dos séculos, de modo a garantir que os futuros professores, estejam capacitados
para um atendimento minimamente especializado, bem como a presença de TILS
(Tradutores e Intérpretes de Língua de Sinais) em sala, trabalhando conjuntamente
com o professor – uma maneira de direta implantação do bilinguismo na escola.

Anãnsi: Revista de Filosofia, Salvador, v. 1, n. 1, 2020. 87


Brennan Cavalcanti Maciel Modesto

Agora que efetivamente entende-se um pouco sobre o processo de legitimação


da língua de sinais como um aspecto constitutivo da comunidade surda, assegurado
por lei, passemos à explanação sobre os aspectos gerais e os parâmetros que compõem
a Língua Brasileira de Sinais.

Conforme seu próprio nome sugere, a Libras é nativa do Brasil, ou seja, assim
como cada país do mundo tem sua própria língua oral, cada país possui sua própria
língua de sinais. Na verdade, as LS não fazem referência direta às línguas das
metrópoles colonizadoras da modernidade. Brasil e Portugal, por exemplo
compartilham o Português como língua oficial. No entanto, enquanto o Brasil possui a
Língua Brasileira de Sinais, Portugal possuí a Língua de Gestos Portuguesa (LGP). Este
fenômeno se dá porque as línguas desta modalidade se relacionam de maneira
dialética com a realidade sócio, histórica e cultural de cada localidade. Assim, torna-se
impossível que povos de diferentes países compartilhem a mesma língua de sinais,
bem como, justifica que a variação linguística seja um fator tão presente nas línguas de
sinais quanto nas línguas orais.

Quanto ao canal de comunicação, a Libras, bem como as demais línguas de


sinais, utilizam a modalidade viso-manual. Ou seja, é uma modalidade de língua que
utiliza o espaço visual como canal para transmitir suas mensagens e as mãos como
ponto central do processo (embora não se limite àquelas), diferentemente das línguas
orais que utilizam, majoritariamente, audição, boca e ouvidos.

Os alfabetos manuais são usualmente bastante semelhantes, mas em cada país,


uma série de particularidades os diferenciam dos demais. Outro recurso utilizado pela
Libras é a Datilologia, uma “forma de soletrar” as palavras desconhecidas ou nomes
próprios, para então ser possível relacioná-las com um sinal, quanto existente.

A LIBRAS conta ainda com cinco parâmetros formativos, isto é, princípios de


referência e orientação para uma efetiva representação do sinal: a configuração de
mão; o ponto de articulação; o movimento; a orientação e, por último mas não menos
importante, a expressão facial e/ou corporal.

Significando que um sinal é composto por todos esses aspectos, logo, não há
efetiva comunicação em língua de sinais que não esteja atenta à todos, afinal, muitos
sinais compartilham uma mesma configuração de mão ou ponto de articulação,
mudando apenas a direção do movimento ou ponto de articulação. Sendo assim, a
unidade de significado fica comprometida num caso onde não seja feita a exata
correlação entre cada parâmetro.

Notas sobre o Ensino de Filosofia na escola básica

A Filosofia, conforme supracitado, é caracterizada por um pensamento abstrato,


aspecto este que causa certo estranhamento ao primeiro contato e uma série de
dificuldades com uma determinada gama de conceitos, ao menos à curto prazo. Quando

Anãnsi: Revista de Filosofia, Salvador, v. 1, n. 1, 2020. 88


Surdez e Ensino de Filosofia: entre a coexistência e a simbiose na educação básica

este estranhamento não é devidamente mediado, pode-se tomar como certa


determinada aversão por parte do corpo discente.

Sendo assim, a transposição didática assume função tão fundamental para a


prática docente quanto o pleno domínio dos conteúdos. Fato que pode não se repetir
em toda sorte de situações. Haja vista que a filosofia tematiza em alguns momentos
questões pouquíssimo tangíveis, recursos de representação física tem serventia
limitada, portanto, dificilmente poderiam dar conta da totalidade de tais conceitos.

Ora, existe a possibilidade de elaborar representações de modelos atômicos em


isopor, por exemplo. Entretanto o mesmo não pode ocorrer com o Espírito Absoluto,
para lembrarmos de Hegel, ou a Duração bergsoniana. Nesses casos, sobretudo, cabe ao
Professor mediar a apreensão de tais conceitos, que distam bastante do que
intuitivamente estas palavras significam isoladamente para o lugar comum. Assim,
parece ser, em larga medida, necessária, uma abordagem expositiva dos conteúdos e
temas filosóficos pertinentes ao currículo. Sobre a qual não visamos estabelecer juízo
de valor, mas apontar para a dificuldade de adaptação de sua prática em um contexto
de tradução simultânea.

Os horizontes da nova Base Nacional Comum Curricular, a BNCC, são bastante


peculiares. Nesse novo cenário o papel do professor deixa de ser o de alguém que
media a relação do estudante com o Conhecimento (no caso específico da Filosofia,
com os Conceitos elaborados por cada filósofo como chaves de leitura para a realidade)
para o posto de responsável pelo auxílio (ou mediação) no desenvolvimento de
Competências e Habilidades, afinal a abordagem deixa de ser pautada em disciplinas e
seus conteúdos diretamente correlatos, passando a voltar-se prioritariamente às
temáticas transversais.

A caráter de ilustração, importaria menos o “Espírito Absoluto” em si que o


contexto político, histórico, econômico, geopolítico e cultural em voga no período
compreendido como Idealismo Alemão; bem como suas implicações diretas no modo
de vida do Brasil. Essa alteração estrutural abre possibilidade para uma adaptação
deveras relevante no modo de ser da escola, o leque que se abre para o uso de outros
recursos para além do livro didático e a oratória é tão vasto quando o número de
facetas que um mesmo momento histórico possui.

Todavia, a atividade docente não é facilitada por essa nova caracterização, de


matriz transdisciplinar, pelo contrário: a vastidão de perspectivas que, agora devem
ser pautadas exigem uma erudição do docente bem como um repertório quase
infindável de abordagens metodológicas para dar vazão às questões pontuadas no
currículo, o que de fato é mais condizente com a natureza da Filosofia que enquadrar-
lhe enquanto uma “disciplina” propriamente dita. Ainda que a “Filosofia
Institucionalizada” traga consigo uma série de problemas e até mesmo deturpações do
que seria a concepção tradicional de sua finalidade (BORBA; KOHAN, 2008, p. 9).

Anãnsi: Revista de Filosofia, Salvador, v. 1, n. 1, 2020. 89


Brennan Cavalcanti Maciel Modesto

Nesta interpretação, a Filosofia Institucionalizada é compreendida enquanto


uma oposição à noção grega de scholé, reputada como um aspecto fundador da
Filosofia. Nos sentidos de tempo livre, correlata à estar apartado à tudo que tange o
tempo produtivo. A acepção fica mais clara quando refere-se à tradução latina do
termo otium, que refere-se mais no português diretamente à palavra “ócio”. Ou seja, a
Filosofia do século XXI está “disposta à fins”, atendendo demandas sociais de diversas
naturezas (jurídicas, sociais e políticas). Ou seja, ao longo da história houveram
diferenças intrínsecas entre os fazeres filosóficos de cada tempo, com o modo atual,
isto é, institucionalizado, não poderia ser diferente.

Eis aqui a questão nevrálgica da presente sessão: qual a razão de ser dessa
filosofia institucionalizada? Rezende (2019) aponta uma resposta possível:
O ensino da Filosofia presente na matriz curricular no Ensino Médio possui
um papel formador, auxiliando na função de questionamento, de indagação
frente às várias certezas, e vai auxiliar o estudante a refletir sobre os saberes
transmitido pela cultura como: A Verdade, quais papéis deve desempenhar,
ao entrar em contato com o modus operandi da Filosofia, o estudante pode
problematizar e se posicionar de maneira diversa no mundo. (REZENDE,
2019, p.77)

Ou seja, a filosofia parece surgir como a exposição de uma espécie de compêndio


de proposições clássicas sobre as quais se deve questionar e refletir. No entanto,
aprofundando um tanto mais a discussão, pode-se compreender de maneira mais clara
que
O ensino de filosofia no nível médio deve estar apoiado em algumas das
preocupações que de modo claro ou confuso, estão presentes na vida dos
jovens, que para além das diferenças sociais e culturais, devem construir sua
própria existência em uma sociedade e em uma escola em crise; preocupações
de tipo existencial como a orientação que darão às suas vidas, no trabalho,
frente à sociedade e à exclusão, frente à política e aos problemas da
democracia, ao viver o amor e o sexo, ao descobrir a liberdade e os limites etc.
(OBIOLS apud REZENDE, 2019 p.76).

Assim como se diz, ao dobrar a esquina encontramos Hegel. Agora


acompanhado do filósofo de Königsberg. A dicotomia entre suas posições quanto à
“educação filosófica” vem à tona. Para Kant, a Filosofia tem o título de “ciência de
rigor”, uma reflexão puramente crítica sobre os fenômenos do mundo. Nesses termos, a
expressão “ensinar a filosofar” é uma maneira bastante válida de sintetizar o intuito
kantiano de propiciar a autonomia do sujeito intelectual.

O filósofo do absoluto, por sua vez, é partidário da interpretação de que apesar


tendo consciência dos percursos históricos e epistemológicos do desenvolvimento da
filosofia, é que se pode, gradativamente, desenvolver consciência (crítica) de si e do
mundo. De certa maneira, é possível compreender que ambos apontam para o mesmo
horizonte, ainda que de referenciais bastante diferentes. Conforme Gelamo (2009) a
dicotomia entre Kant e Hegel seja antes fruto de uma leitura apressada que uma

Anãnsi: Revista de Filosofia, Salvador, v. 1, n. 1, 2020. 90


Surdez e Ensino de Filosofia: entre a coexistência e a simbiose na educação básica

constatação. Afinal, cada autor apenas enfatiza uma faceta do espectro. Sendo, pois,
narrativas complementares sobre o mesmo processo.

A escola básica no Brasil (em especial, o componente curricular Filosofia)


parece dedicado de maneira muito específica à formação de sujeitos politicamente
autônomos. Ou seja, de alguma maneira, é semelhante ao “ensinar a filosofar” kantiano.
Todavia, dialoga com a tradição filosófica, haja vista a abordagem “histórico-temática”
que a Filosofia recebe no Exame Nacional do Ensino Médio (ENEM) instrumento ao
qual, invariavelmente as escolas precisam fazer referência.

Não focaremos, contudo, nas implicações sociopolíticas desta Filosofia enquanto


componente curricular específico ou em abordagens trans e interdisciplinaridade; haja
vista que situações mais propícias para pautar tais discussões não hão de faltar. Mais
propriamente, nos debruçaremos sobre as possibilidades do estreitamento de laços a
relação entre o ensino de filosofia e a Surdez, esta última enquanto condição
sociocultural de um grupo de indivíduos.

Quanto ao ensino, não pode em nenhuma circunstância apartar-se da dimensão


da aprendizagem, afinal, “ensino/aprendizagem” é uma relação cíclica. De maneira
especial, a filosofia sempre parte de posições, perspectivas ou crenças pré-filosóficas
para o desenvolvimento de uma doutrina ou sistema filosófico.
o seu pensamento não é uma «tábua rasa» sobre a qual se possam depositar
os conteúdos da tradição filosófica, nem um amontoado de pensamentos
dominados pelos preconceitos e erros do conhecimento vulgar. A criticidade e
a criatividade, traços distintivos do pensamento filosófico, já estão presentes
nas mentes dos alunos de forma germinal e em alguns até com elevado grau
de desenvolvimento. (FERRIOL apud CORREIA et al, 2014 p. 34)

Interfaces entre a Surdez e a Filosofia

As pesquisadoras portuguesas Correia e Coelho, em artigo de 2014, apontam


que a relação entre o ensino de Filosofia é marcada por uma série de problemas
deveras peculiares, sobretudo, quanto às inter-relações necessárias entre as Culturas
Surda e Ouvinte
Ora, no caso da disciplina de Filosofia, a tradução levanta problemas
específicos. Esta situação, no entanto, não constitui uma limitação, mas
evidencia que aprender/ensinar filosofia em contexto de surdez é uma
questão de interculturalidade e de equidade social, o que leva a uma nova
perspectiva sobre a educação bilíngue de alunos/as surdos/as: o uso da LGP é
uma exigência cultural e não uma forma de superar uma deficiência.
(CORREIA, COELHO, 2014 p. 107)

Sublinha-se a exigência, em território lusitano, de proteger e valorizar a Língua


Gestual Portuguesa. Assim como ocorre no Brasil, haja vista que a Língua Brasileira de
Sinais é segunda língua oficial do país, bem como língua natural da comunidade surda.
Logo, o uso da LIBRAS em meio a seus processos de socialização escolar remetem,

Anãnsi: Revista de Filosofia, Salvador, v. 1, n. 1, 2020. 91


Brennan Cavalcanti Maciel Modesto

antes de tudo é uma demonstração de respeito à pertença cultural deste grupo de


indivíduos.

Analisando a comunidade surda, de pronto observa-se que existe uma latente


barreira linguística. Ora, ainda que a Língua Brasileira de Sinais (LIBRAS) seja a
segunda língua oficial do Brasil, pouquíssimas pessoas têm acesso, inclusive muitas
pessoas surdas são privadas de sua língua natural desde a infância devido fortes
resquícios de doutrinas Oralistas.

É observável que a habilidade de abstração é muito mais facilmente


desenvolvida na infância como também o fato da privação de uma língua possa anular
de maneira completa essa possibilidade, haja vista que entre os grandes nomes das
neurociências e da filosofia da mente é consensual que pensamento e linguagem
estejam naturalmente imbricados. Ora, a língua, conforme Sacks, é um “veículo de
pensamento e comunicação” (Sacks apud Rezende, 2019, p. 188), mas não só este caso
extremo se encaminha para dificuldades: a capacidade de abstrair parece ter uma
direta ligação com o repertório cultural do indivíduo.

Notadamente pessoas que desde o berço são expostas à grandes volumes de


capital cultural despontam com mais facilidade em diversos aspectos, e claro que aqui
não ignoramos as relações de Classe, todavia, fogem de nosso escopo. Pessoas Surdas,
conforme supracitado, não raro são privadas de uma série de produções culturais,
comprometendo a vastidão e profundidade de seu repertório de referências. De modo
a comprometer seu desenvolvimento em termos acadêmicos.

Na mesma toada, observa Rezende (2019) que “quanto ao ensino de Filosofia,


falta uma metodologia capaz para lidar com pessoas que encontram dificuldades
culturais para o trato com conceitos, textos e com a sua produção.” (Rezende, 2019,
p.69) Sendo assim, sugere em consonância a Guimarães (2010), que de fato existe a
[...] necessidade de serem criadas estratégias e metodologias diversas para
que o saber filosófico e a experiência do filosofar possam ser vivenciados
pelos estudantes no Ensino Médio, observando que, sobre o processo de
resistência à disciplina, essa postura defende uma ideologia, oriunda de uma
parcela da população, que julga os demais como incapazes para esse
aprendizado. (REZENDE, 2019, p.70).

A Educação Popular, conforme compreende Rodríguez (1999), parte da


realidade efetiva do estudante para a vida escolar, adaptando a última às necessidades
da primeira, convidando cada participante do processo a fazer Escola (no sentido grego
de Scholé) dentro da Escola. A Scholé rodriguiana pode sem dúvidas ser tomada como
referencial para todo tipo de empreitada que intencione um alargamento das noções
contemporâneas de Escola.

Se sua escola aceitava negros, “cholos” (nome dado na Bolívia aos filhos de
negros e indígenas, análogo ao “cafuzo” brasileiro) e órfãos, garantindo-lhes não só sua
formação acadêmica e profissional como sua permanência, não importando menos os

Anãnsi: Revista de Filosofia, Salvador, v. 1, n. 1, 2020. 92


Surdez e Ensino de Filosofia: entre a coexistência e a simbiose na educação básica

custos e encargos que o papel social exercido pela instituição em plena América
novecentista. Deste modo garantia-lhes a “cidadania” não só na letra da lei, mas o
preparo para o pleno exercício da mesma.

Reavivar suas ideias em pleno século XXI é compreender que uma escola
irreverente e comunista não só “aceita” ou “integra” estudantes oriundos de quaisquer
classes ou em quaisquer condições. Mas uma Escola que tenha que ao remeter à Scholé,
supera-a. Isto é, o “tempo improdutivo” da escola passa a ser compartilhado por
pessoas de condições distintas, não apenas de origem abastada.

A Escola Popular é política. Visa a libertação americana em um âmbito diferente


do logrado por Bolívar. Se este conseguiu uma libertação Econômica, por vias militares;
Rodríguez aponta para uma libertação Social, por vias educacionais. Uma “América
para os americanos”, tomando a liberdade de referenciar a famosa doutrina
imperialista, mas de uma perspectiva que parte de um referencial diferente de
igualdade
Termos das supostas lógicas igualitárias da época, que partem da
desigualdade, para Rodríguez a normalidade de coisas imperante. A respeito
escreve: 'só os sensatos veem, no que aconteceu, no que acontece e o que deve
acontecer sempre’. Oposto à igualdade como um programa social inacabado e
inacabável, a igualdade como axioma” (DURÁN, 2016, p. 337; tradução
nossa)

Achegar-se às ideias rodriguianas serve de arcabouço para uma tarefa árdua.


Reafirmar na prática o conteúdo dos documentos oficiais que regem a educação
brasileira bem como a responsabilidade social pela formação plena de sujeitos surdos
nas escolas. Atentando para os ideias de autonomia total e o exercício pleno da
cidadania, conforme consta.

Todavia, ainda permanece em aberto uma questão, possivelmente a mais central


dentre todas: a tradutibilidade, que podemos observar manifesta em dois níveis: entre
a linguagem estritamente conceitual da filosofia e o léxico vulgar e a tradução entre
modalidades linguísticas diferentes, a saber, as Línguas Orais e de Sinais.
O principal problema é o da tradução na disciplina de Filosofia em contexto de
surdez. Em primeiro lugar, esse problema prende-se com a tradutibilidade
dos conceitos filosóficos, problema geral para todas as línguas, devido à
especificidade desses conceitos. Em segundo lugar, neste caso, estamos
perante duas línguas de modalidades diferentes e, além disso, verifica-se a
não existência de léxico standard em LGP para alguns conceitos filosóficos.
(CORREIA, COELHO, 2014 p. 112)

Assim como existem uma série de dificuldades entre as traduções dos termos
técnicos próprios da filosofia, aquilo que chamamos conceitos, não raro sendo
considerados impossíveis; advém desta questão o constante emprego de neologismos e
a comum transmuta dos significantes referentes aos termos utilizados por cada
comentador ou cada tradutor, tendo em vista melhor exprimir o pensamento do
filósofo em questão.

Anãnsi: Revista de Filosofia, Salvador, v. 1, n. 1, 2020. 93


Brennan Cavalcanti Maciel Modesto

Ainda assim, tratam-se de línguas de uma mesma modalidade, isto é, a Oral. No


caso contrário, a tradução de Línguas Orais e para Línguas Viso-Espaciais não seria,
desde sua partida um tanto mais onerosa? Ou melhor dizendo, a tradução direta entre
orações repletas de conceitos, por si sós complexos, em língua portuguesa e, não raro,
já traduzidos de outros idiomas, para a LIBRAS não seria marcada por uma perda ainda
maior não só no seu rigor, como na mensagem a ser passada? Se o conhecido adágio
afirma que toda tradução é, em si, uma traição, não seria essa forma de traduzir,
permitindo-me o uso da expressão, uma “traição cúbica”?

Há, sem dúvidas uma série de diferenças entre as filosofias das tradições
“continental” e “anglo-saxã”, bem como entre a britânica e estadunidense, que
compartilham a língua inglesa. Haja vista que, a produção filosófica parece, de alguma
maneira, carregar em si o espírito do seu tempo, ou seja, é um retrato das condições
materiais, geológicas, sociais e culturais de uma determinada sociedade. E não seria,
portanto, a Língua parte constitutiva dessa herança cultural?

Ademais,
a língua é produto e produtora de cosmovisões e, além disso, como também
vimos, as línguas de sinais apresentam características específicas que as
distinguem das línguas orais. Assim, a LGP tem como características a
quadrimensionalidade, simultaneidade, iconicidade, possibilidade de «dizer
sem dar a ver» e de «dizer dando a ver», enquanto a LP (língua portuguesa) é
uma língua linear e sequencial no tempo. (CORREIA, COELHO, 2014 p. 119,
grifos nossos)

A relação dos estudantes surdos com a filosofia é, salvo raríssimas exceções,


mediado por um TILS (Tradutor e Intérprete de Língua de Sinais). Cuja função é
traduzir as vocalizações do professor e dos colegas ouvintes, tendo em vista que o
estudante surdo está inserido em um ambiente “bilíngue”, isto é, compartilhado com
um grupo extenso de ouvintes que não tem domínio da língua de sinais. Todavia, como
diz o popular jargão, toda tradução é uma traição. Assim, fica a questão: tendo em vista
uma relação efetiva entre a vida do estudante e a pertinência dos conceitos filosóficos
na mesma, a Interpretação, ou seja, a mediação feita pelo TILS é suficiente?

Além da sequência de traduções, do texto original para a língua portuguesa e da


língua portuguesa para a libras, adiciona-se também o fato de que a perspectiva do
professor é, por si só uma interpretação da obra filosófica, permeada por sua formação
acadêmica, cultural e linguística. De maneira análoga, os próprios TILS recebem todo
um conjunto de cargas linguísticas, culturais e acadêmicas que reverberam na escolha
dos sinais enquanto exerce sua profissão.

Ainda assim, recursos como a datilologia podem não ter pouca ou nula eficácia,
tendo em vista que: a relação entre linguagem o mundo é tripartite: significado,
significante e referente:
Com efeito, se o/a aluno/a não possui, na sua língua, um gesto para designar o
conceito, qual o interesse de «escrever» o enunciado linguístico desse

Anãnsi: Revista de Filosofia, Salvador, v. 1, n. 1, 2020. 94


Surdez e Ensino de Filosofia: entre a coexistência e a simbiose na educação básica

conceito no espaço? Pelo facto de ver as letras escritas mediante o alfabeto


manual, e não escritas em papel, o/a aluno/a não passa a compreender o
conceito; apenas poderá fixar o significante, mas o significado continua a ser-
lhe inacessível (CORREIA et al, 2014 p. 38)

Em consonância com Shaumyan (2006), Correia e Coelho (2014) apontam que


assim como ocorre nas Línguas Orais, a criação de novos sinais (para palavras para as
quais até então usava-se apenas datilologia) em Língua de Sinais, precisam fazer parte
do cotidiano daquele grupo, de modo à dar vazão à ao significado reputado ao termo.
Um exemplo de atividade correlata é criação de neologismos, fenômeno que surge da
assimilação de derivações termos estrangeiros ou não. Portanto, é mister que as
pessoas que lecionam Filosofia tenham fluência na língua sinalizada em questão e,
evidentemente, estejam imersas na Comunidade Surda
[...] embora a língua e o pensamento estejam dialeticamente relacionados,
também se encontram em conflito, conflito esse que resulta numa mudança
na língua: a nova forma linguística torna-se, temporariamente, uma forma
melhor até que surja um novo conflito entre língua e pensamento. Assim se
explicaria, segundo este autor, a evolução da língua. Ora, essa evolução é um
processo que envolve todos os membros da comunidade e não, como acontece
numa aula de Filosofia, estudantes surdos/as e um/a docente (que pode,
eventualmente, não ser um/a gestuante nativo/a) que não partilham a mesma
língua e falam línguas de modalidades diferentes. Defendemos, portanto, que
a criação de um neologismo, a ocorrer, só poderia ser feita por uma
comunidade de filósofos e filósofas gestuantes fluentes. (CORREIA, COELHO,
2014 p. 119, grifos nossos)

No entanto, essa necessidade de filósofos sinalizantes para a existência de sinais


que façam direta ligação com os conceitos não constitui-se enquanto empecilho para o
ensino de filosofia para surdos. Configura-se como uma espécie peculiar de ruído
comunicacional.

A Filosofia, enquanto componente curricular da escola básica, é formar visando


um determinado ideal de sociedade, a escola, como um todo, mas em especial, a aula de
Filosofia passa a ser antes de qualquer outra coisa um “espaço bicultural e
bilinguístico” onde poderão ter contato dois modos paralelos de representação e
significação do mundo. Um exemplo prático da constituição de experiências de
equidade social.

Só dessa maneira, é possível atribuir uma significação para a Filosofia na vida,


não só de sujeitos surdos, como de todo o corpo discente. Obviamente esse processo
passa por dois estágios: a transposição didática, enquanto recurso de aproximação
entre a realidade extra escolar e o conteúdo vivenciado em sala (ainda que esta não se
dê de maneira absoluta, mas se toquem e inter-relacionem a todo momento) e, por fim,
a abertura para ressignificar as questões e problemas filosóficos partindo de suas
próprias realidades.

Anãnsi: Revista de Filosofia, Salvador, v. 1, n. 1, 2020. 95


Brennan Cavalcanti Maciel Modesto

Aproximação filosófica do cotidiano, então, não pode apresentar-se como um


simples recurso didático a mais, mas deveria ser adotada como uma tentativa
de estabelecer um ponto onde se apoie uma forma de pensar eminentemente
questionadora nos estudantes, para abrir, a partir dali, novos campos de
significados e sentidos. (CERLETTI; KOHAN apud REZENDE, 2019, p.72).

Ou seja, a transposição e os recursos didáticos surgem como interlúdio ente o


conjunto de conhecimentos pré-filosóficos que cada estudante carrega consigo e
dimensão de “criticidade” peculiar à filosofia. Ou, assim como define Horn (2009):
“Quando o sujeito é estimulado a questionar o seu cotidiano, ele não anula a sua
história, e, nessa acepção, ‘a Filosofia pode contribuir para a reflexão e a compreensão
crítica, condição fundamental para a emancipação e para a mudança social’“. (HORN
apud REZENDE, 2019, p.74).

A possibilidade de uma simbiose entre a Filosofia na escola e a Surdez

Ainda que segundo Simons e Masschelain (2017), a escola seja dotada de uma
língua própria, não dizendo respeito propriamente à língua que se vivência em casa, na
vida estatal ou qualquer outra “versão” das manifestações linguísticas, ainda refere-se
de maneira exclusiva às Línguas de modalidade Oral. Deliberadamente ou não
beneficiando a estas e relegando ao detrimento a existência das Línguas de Sinais.

Pensando a partir do adágio de que a filosofia só pode ser feita na língua nativa
daquele que a pensa, parece contraditória a exigência de que o estudante surdo
“filosofe em português”, afinal, não pode Deleuze filosofar em Alemão, Heidegger em
Francês ou para qualquer dos gregos o fazer em outra língua, salvo se possuíssem
fluência no idioma. Isto é, não só o domínio das estruturas gramaticais de determinada
língua, em sua modalidade escrita (tal qual ocorre com sujeitos surdos que conhecem o
português, por exemplo) como plenas competências expressão nesta língua. O que
implica capacidade de estabelecer relações entre os vocábulos e estruturas gramaticais
com seu cotidiano.

Tendo em vista que a Filosofia, via de regra, visa explicar uma realidade por
meio de conceitos e que uma língua é parte constitutiva das subjetividades, logo, das
realidades dos falantes. É possível afirmar que a língua em que se pretende filosofar
deve fazer parte efetiva do mundo da vida de cada falante. Só “pensa em inglês”, no
sentido de concatenar argumentos e estruturar significados, quem tem fluência no
idioma, em quaisquer acepções do termo. Surdos não podem “falar” ou apreender
línguas orais da mesma maneira que os ouvintes. Portanto, é incoerente defender a
necessidade de que sua relação com a Filosofia gire em torno da língua oral.

Dado isto, é mister considerar que a relação entre Filosofia e Surdez não pode
ser simplesmente mediada por um Intérprete, conforme define Barros (2012) para
uma efetiva mediação da relação “conhecimento filosófico-estudante surdo” é
necessário que o professor possua não só o domínio dos conceitos abordados e fluência

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Surdez e Ensino de Filosofia: entre a coexistência e a simbiose na educação básica

na Língua de Sinais, mas que esteja inserido como um todo na Comunidade Surda.
Deste modo, a comunicação pode ocorrer de maneira direta, não sendo “traída” ou
tendo o significado de suas assertivas e unidades de significados deturpados pelas
traduções, ainda que fidedignas.

É preciso, pois, propiciar um vocabulário adaptado para o estudante surdo, para


sua realidade e, sobretudo, para sua língua. Só assim torna-se viável a passagem da
mera compreensão ou apreensão dos conceitos abarcados pela tradição filosófica, para
a questão à qual refere-se a proposta da Filosofia, enquanto componente curricular do
ensino médio: a atuação em sentido da formação de subjetividades autônomas no
pensar e no agir.

As línguas de sinais são capazes de exprimir conceitos de qualquer natureza,


visto que possuem léxico tão complexo quanto qualquer das línguas de modalidade
oral e, ainda, uma iconicidade inerente que é peculiar das línguas de sinais. Em outras
palavras, “as línguas de sinais são até mais eficientes na transmissão da informação,
possibilitando a expressão de qualquer conceito. Isto é, são línguas que dizem, mas que
também podem dizer e mostrar ao mesmo tempo.” (CORREIA, et al, 2014 p. 30).

Esta característica não significa que torna-se mais ou menos onerosa a atividade
de tradução. É claro, garante que um sem-número de termos sejam traduzidos e
integrem o léxico da língua de sinais. No entanto, a centralidade do processo está no
fato de possibilitar que estudantes surdos e ouvintes possam acessar estes conceitos
juntos. Por esta razão, faz-se urgente o desenvolvimento de um “léxico filosófico
standard”; como recurso de efetiva inclusão destes sujeitos nos processos educativos,
não limitando-se à mera integração dos mesmos. Afinal, a integração, por si só, de mais
pessoas num ambiente escolar em nada é avanço. Não lhes assegura apreensão dos
conteúdos nem desenvolvimento de habilidades, assim como não permite o exercício
de atividade filosófica nem a o cumprimento da formação para a cidadania.

Ainda sobre a questão da iconicidade é importantíssimo salientar que, de


nenhuma maneira, limita a polissemia dos termos. Ora, a produção de poesia em língua
de sinais (presente nos inúmeros “Slams das Mãos” espalhados por diversas cidades do
mundo) é uma prova de que a LIBRAS, assim como as demais LS podem se utilizar de
figurações. O ponto que endossa-se aqui é um conjunto de preconceitos linguísticos e
cultural para com as línguas de sinais e com a surdez como um todo, que a todo custo
tenta relega-los aos postos de “linguagens” e, recorrendo à todo tipo de discurso
capacitista para desqualificar a comunidade surda enquanto autônoma.

A preservação da Libras e fomento de sua presença na escola são questões


imprescindíveis, não apenas pela questão do pertencimento cultural do indivíduo
surdo, como pelo fato de que cada língua, em si, representa uma cosmovisão, todo um
universo de interpretações de mundo:
a língua é um sistema que permite representar o mundo, isto é, voltar a
apresentá-lo, torná-lo, de novo, presente; ela é produto, mas também

Anãnsi: Revista de Filosofia, Salvador, v. 1, n. 1, 2020. 97


Brennan Cavalcanti Maciel Modesto

produtora de cosmovisões, pois «cada uma das línguas humanas traça do


mundo um mapa diferente. […] Quando uma língua morre, é um mundo
possível que morre com ela» (STEINER, 2002: 18 apud CORREIA et al, 2014, p.
35)

Mas não só, o bilinguismo, em sentido amplo, aparece enquanto uma questão de
direto reconhecimento da alteridade. Se a relação dos estudantes ouvintes não se
limita ao contato com o professor, qual argumento sustentaria que o estudante surdo
deva se comunicar de maneira direta apenas com o intérprete? É importante não só
que o professor de Filosofia tenha domínio da língua de sinais, reiterando o que foi dito
anteriormente, mas que os diversos agentes desenvolvem tal competência. Dado o
papel formativo que a escola possui é necessário atribuir o devido “destaque ao papel
central da língua, da cultura e das identidades surdas como campo discursivo de luta,
como prática de significação, de produção de sentido sobre o mundo”. (FERNANDES;
MOREIRA, 2014, p. 64)

O contato do estudante surdo com sua cultura é imprescindível. Para usar as


palavras de Richard Rorty (1992) o ‘poeta forte’ seria nada mais que alguém capaz de
contar sua história com palavras nunca antes usadas. De modo análogo à usual
distinção entre humano e animal. Ambos são modificados e, de certo modo,
determinados pelo meio, mas só o humano é capaz de o modificar. "Encontrando uma
maneira de descrever o passado que o passado nunca conheceu" (RORTY, 1992, p. 54).
Ou seja, a Filosofia, nesses termos, seria nesse ponto um catalizador do fazer poético
destes indivíduos. Que justamente por possuírem língua e cultura paralelas às
Ouvintes, precisam tomá-las como ponto de partida, ainda que dialoguem e interajam
com as ouvintes.

Para Oliver Sacks (2011), o discurso em Língua de Sinais é potencialmente tão


filosófico como em Língua Oral, em seu escrito Vendo Vozes, tece críticas sobre o que
chama de fonocentrismo, ou seja, a tese de que a linguagem fonética é priorizada em
detrimento das demais não por razões naturais, mas por uma espécie de
etnocentrismo.

Novamente, a partir de Rorty (1997) é preciso utilizar-se da filosofia como


maneira de alargar as noções de comunidade. Considerando que certa dimensão do
etnocentrismo é fator recorrente em todas as culturas humanas, Rorty defende que o
discurso (filosófico ou não) e aproximações pacíficas são, em última instância mais
afetivos que o uso de força. (Rorty, 1997a, p. 285). Desse modo, é o ensino de filosofia
que pode contribuir para a formação de sujeitos que atuem criticamente em defesa da
identidade e cultura surda. Neste sentido, tratamos de simbiose: enquanto
impossibilidade de dissociação entre a formação de autonomias e a presença do
componente curricular em questão no currículo.

Anãnsi: Revista de Filosofia, Salvador, v. 1, n. 1, 2020. 98


Surdez e Ensino de Filosofia: entre a coexistência e a simbiose na educação básica

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Recebido em: 15 de jul. 2020


Aceito em: 23 de ago. 2020

Anãnsi: Revista de Filosofia, Salvador, v. 1, n. 1, 2020. 101


Universidade do Estado da Bahia
Departamento de Educação – Campus I
Anãnsi: Revista de Filosofia, Salvador, v. 1, n.1, 2020

Violência simbólica no feminismo hegemônico: mulheres


e vulnerabilidade
Symbolic violence in hegemonic feminism: woman and
vulnerability

Matheus Guimarães de Barros 1

Resumo: O presente artigo demonstra que a utilização da categoria “mulheres”, enquanto identidade
universalizante do movimento feminista, e da ideia de vulnerabilidade, como essência do corpo
feminino, aproxima o feminismo hegemônico da opressão que espera combater. A universalização do
sujeito feminista desconsidera outros vieses de relações de poder, como raça, classe e orientação sexual,
obscurecendo distintas formas de ser no mundo e impedindo a fragmentação do movimento em
feminismos plurais. A concepção de vulnerabilidade essencial feminina, por sua vez, reforça o sistema
patriarcal ao posicionar as mulheres num patamar rebaixado e débil, cuja imobilidade é característica
marcante. Posto isso, constata-se a violência simbólica que permeia o feminismo hegemônico, tendo em
vista que seus próprios atores, grupo socialmente dominado, se vale de noções construídas do ponto de
vista dos dominantes, naturalizando-as. Após discutir tal contrassenso, são apontadas e avaliadas
possíveis soluções: a consciência crítica e uma coalizão aberta.

Palavras-chave: Mulheres; Vulnerabilidade; Feminismo hegemônico; Violência simbólica.

Abstract: This article demonstrates that the use of the category “women”, as a universalizing identity of
the feminist movement, and the idea of vulnerability, as the essence of the female body, brings
hegemonic feminism closer to the oppression it hopes to combat. The universalization of the feminist
subject disregards other important forms of power relations, such as race, class and sexual orientation.
The idea of essential female vulnerability, in turn, reinforces the patriarchal system by placing women
on a low and weak level. That said, the symbolic violence that permeates hegemonic feminism is evident,
considering that its own actors, a socially dominated group, make use of notions constructed from the
point of view of the dominants, naturalizing them. After discussing such a inconsistency, possible
solutions are pointed out: critical awareness and an open coalition.

Key words: Women; Vulnerability; Hegemonic feminism; Symbolic violence.

1Graduando em Direito pela Universidade Federal de Juiz de Fora – Campus Avançado Governador
Valadares. E-mail: matheusgbarros@hotmail.com.
Violência simbólica no feminismo hegemônico: mulheres e vulnerabilidade

Introdução

Nem todo movimento social guarda pretensões democráticas. Corpos podem se


aliar e, ainda que apartados do Estado, ansiarem por respostas políticas conservadoras.
Como bem destaca Judith Butler, organizações da sociedade civil, ou seja, organizações
“de baixo”, populares, não necessariamente correspondem a um ideal de democracia.
Tudo depende, na realidade, do quão inclusivas e progressistas são suas exigências. Se
o escopo de um movimento social é a obtenção de certos benefícios para um grupo à
custa da aniquilação de direitos alheios, há motivo suficiente para questionar sua
legitimidade democrática.

Por outro lado, também é preciso admitir a possibilidade de movimentos sociais


que, embora guardem pretensões integrativas e aparentemente justas, pequem no
modus operandi, na maneira através da qual exercem suas atividades de reivindicação.
Se a priori parecem democráticos, o desenrolar de suas ações podem revelar o oposto,
ainda que involuntariamente. O primeiro passo, em situações desse tipo, é diagnosticar
o problema para, enfim, retomar o rumo democrático inicialmente pretendido.

O presente trabalho percebe o movimento feminista enquanto pertencente à


segunda classe de movimentos sociais acima mencionados. De fato, não se pode falar
num único feminismo. Existem vários feminismos. A pluralidade, inclusive, torna esse
movimento mais vívido e democraticamente orientado. Não obstante, há um tipo de
feminismo que se tornou hegemônico. É sobre os seus principais contrassensos que o
artigo intenta debruçar. Tratam-se de dois: a) utilização de política que enaltece uma
suposta identidade universal do movimento, simbolizada pelo termo “mulheres”; e b)
afirmação irrefletida da existência de certa vulnerabilidade feminina intrínseca.

Por encontrar no feminismo hegemônico características operacionais que


silenciosamente ratificam o contexto geral de exclusão e opressão, o conceito de
“violência simbólica” foi manejado. A intenção é compreender a violência inclusa num
movimento popular que preza pela supressão de práticas sociais violentas. Segundo
bell hooks (2019), a despeito da violência patriarcal contra mulheres permanecer
como preocupação primária, importa que a pauta principal do movimento feminista
seja o fim de todas as formas de violência. Mas o feminismo tornado hegemônico não
corresponde a tal exigência. Busca-se tornar mais cristalina essa contradição.

Ao final, o artigo destaca que uma “coalizão aberta”, conforme entendida por
Judith Butler (2019a), aliada à consciência crítica, indica um caminho possível para
superar tal impasse que intensifica a dor de sujeitos que, há tempos, são relegados às
margens das preocupações políticas e governamentais.

Base universal da teoria feminista hegemônica e o problema do gênero

bell hooks (2019) insiste em lembrar que todas e todos somos socializados
numa cultura marcada pelo sexismo, de modo que podemos reproduzi-lo por vezes

Anãnsi: Revista de Filosofia, Salvador, v. 1, n. 1, 2020. 103


Matheus Guimarães de Barros

sem sequer nos darmos conta. Um espaço só de “mulheres” não implica a inexistência
de opressão. Isso é claro uma vez que o patriarcado diz respeito a um sistema de
dominação, institucionalizado, disseminado e mantido.

Tal como os homens, as mulheres também foram socializadas para crer em


pensamentos e valores sexistas. O que os difere cinge-se ao fato de que os homens se
beneficiaram muito mais do sexismo em comparação às mulheres, culminando no
desinteresse que eles geralmente possuem em abrir mão dos privilégios do
patriarcado.

Mesmo assim, ainda é possível identificar a violência do patriarcado direcionada


aos próprios homens, que precisam conformar seus corpos e mentes a padrões de
masculinidade.

Audre Lorde (2019) ajuda-nos a refletir acerca da norma patriarcal que obriga
os homens a censurarem seus próprios sentimentos e transferirem para as mulheres
em sua volta o dever de sentir por eles. Isso ocorre desde a tenra infância. A ruína
social de um garoto “começa quando ele é forçado a acreditar que ele só é forte se não
sentir, ou se vencer” (LORDE, 2019, p. 96).

Ao passarem por tal processo, todavia, os homens abrem mão da sua


humanidade básica, mergulhando numa armadilha de dependência e medo, segundo
Lorde. Outrossim, fomenta-se o menosprezo às mulheres, cuja “capacidade” de sentir
profundamente as torna supostamente frágeis, “inferiores”.

Não é correto depreender que os homens são inimigos de luta. Pelo contrário, a
soma de forças pode ser (e é!) extremamente importante na batalha. Afinal, trata-se de
um problema sistemático, culturalmente determinado, que fixa imagens de gênero
deturpadas na integralidade dos sujeitos viventes. Nas palavras de bell hooks (2019, p.
31):
O feminismo é antissexismo. Um homem despojado de privilégios masculinos
que aderiu às políticas feministas, é um companheiro valioso de luta, e de
maneira alguma é ameaça ao feminismo; enquanto uma mulher que se
mantém apegada ao pensamento e comportamento sexistas, infiltrando o
movimento feminista, é uma perigosa ameaça.

Por isso, hooks (2019) afirma que transformar o inimigo interno deve anteceder
o confronto com o inimigo externo. Ou seja, é preciso que as “mulheres” abordem o seu
próprio sexismo, sob pena de prejudicar o levantamento adequado das bandeiras
políticas feministas. Nesse ponto, adentra uma questão fundamental: não é possível
discutir discriminação de gênero, sexismo, separadamente de outros vieses de relações
de poder, como raça, classe e orientação sexual. Corpos são atravessados por essas
dimensões de poder simultaneamente. Tratam-se de marcadores sociais sobrepostos,
em que um intensifica e redimensiona o outro.

O feminismo que se tornou hegemônico, todavia, foi branco, heterossexual e de


classe privilegiada, tendo fincado suas raízes no solo do capitalismo para dele não mais

Anãnsi: Revista de Filosofia, Salvador, v. 1, n. 1, 2020. 104


Violência simbólica no feminismo hegemônico: mulheres e vulnerabilidade

se desprender. Seu apoio foi direcionado à supremacia branca e ao sistema de


mercadorias, minando as políticas efetivamente radicais do movimento. Por não fazer
oposição direta ao status quo, à estrutura existente, chegou a ser apoiado pelo
patriarcado convencional, que considerou legítimas somente as exigências de mulheres
com privilégios de classe.

Assim sendo, o feminismo hegemônico foi/é reformista, pois ao invés de


pretender alterar sistematicamente a realidade (im)posta, buscou, no interior dela,
obter igualdade social. Em síntese, “mulheres de classe privilegiada queriam igualdade
em relação aos homens de sua classe. Apesar do sexismo dentro de sua classe, elas não
teriam desejado obter o que tinham os homens da classe trabalhadora” (HOOKS, 2019,
p. 70).

Ademais, discussões feministas de classe foram gradativamente diminuindo à


medida que mulheres alcançavam maior acesso ao poder econômico; acesso este
constantemente negado aos grupos de mulheres pobres e trabalhadoras, via de regra
negras. É preciso, pois, retomar a discussão de classe e raça; orientação sexual também.

O feminismo hegemônico apegou-se ao gênero; à ele foi dada toda prioridade.


Isso trouxe consequências importantes. A principal delas foi que mulheres brancas
assumiram a linha de frente do movimento. Eram elas as donas, embora convocassem
todas as outras para aderir. Não havia captação, por exemplo, do pensamento das
mulheres negras/não brancas, o que, para hooks, simbolizava uma sororidade não
genuína. “Sabíamos que não poderia haver verdadeira sororidade entre mulheres
brancas e mulheres não brancas se as brancas não fossem capazes de abrir mão da
supremacia branca, se o movimento feminista não fosse fundamentalmente
antirracista”. (HOOKS, 2019, p. 92).

O ponto fulcral, portanto, diz respeito ao fato de que o feminismo tornado


hegemônico estipulou uma identidade universal, restringindo o discurso sobre
políticas feministas. Ao se valer de categorias ontológicas de “homens” e “mulheres”,
como se houvesse alguma estabilidade interna nesses termos, o movimento feminista
tomou “mulheres” como seu sujeito fixo. Mas “mulheres” num sentido bem limitado,
consoante afirma Judith Butler (2019a, p. 17-18):
A teoria feminista tem presumido que existe uma identidade definida,
compreendida pela categoria de mulheres, que não só deflagra os interesses e
objetivos feministas no interior do seu próprio discurso, mas constitui o
sujeito em nome de quem a representação política é almejada.

A suposição de que o termo “mulheres” denote uma identidade comum tornou-


se um problema político. Para Butler, mesmo “mulheres”, no plural, configura-se
enquanto “um ponto de contestação, uma causa de ansiedade” (BUTLER, 2019a, p. 20).
Isso ocorre, pois o gênero nem sempre se constitui de maneira coerente nos diferentes
contextos históricos. Ademais, o gênero guarda “intersecções com modalidades raciais,
classistas, étnicas, sexuais, regionais de identidades discursivamente constituídas”

Anãnsi: Revista de Filosofia, Salvador, v. 1, n. 1, 2020. 105


Matheus Guimarães de Barros

(ibid., p. 21). Segundo a filósofa, não dá para separar a noção de gênero das interseções
políticas e culturais em que ela é invariavelmente produzida.

Tanto a intelectual negra norte-americana bell hooks quanto a filósofa judia


estadunidense Judith Butler mostram os perigos da universalização da categoria
mulher. Porém, tal crítica é geralmente atribuída a Butler. Eis uma questão essencial
para se pensar.

O feminismo hegemônico se esqueceu de muitas vozes; via de regra vozes


negras que já falavam há muito tempo. Fato relevante que Djamila Ribeiro (2019) se
propôs corretamente a ressaltar: as mulheres negras falavam, como é o caso de
Sojouner Truth, Kimberlé Crenshaw, bell hooks e Audre Lorde, dentre tantas outras.

Insistir nessa visão hegemônica de mulheres (e homens), para Ribeiro, faz com
que mulheres negras e homens negros fiquem implícitos; deixando de ser beneficiários
de políticas importantes e se distanciando de serem aqueles que pensam tais políticas.

Remetendo a dados estatísticos brasileiros, a autora demonstra que a não


marcação de diferenças, pela insistência em falar de mulheres como universais, faz com
que somente parte desse ser mulher seja visto. “Segundo o Mapa da Violência de 2015,
aumentou em 54,8% o assassinato de mulheres negras, ao passo que o de mulheres
brancas diminuiu em 9,6%” (RIBEIRO, 2019, p. 41). Dados mais recentes do Instituto
de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA) e do Fórum Brasileiro de Segurança Pública
revelam que a taxa de homicídios de mulheres cresceu 5,4% de 2016 para 2017.
Entretanto, desses 5,4% de mulheres, 3 em cada 4 são negras (75%). O feminicídio se
dirige preferencialmente a mulheres negras.

Ainda sobre o feminismo hegemônico no Brasil, explica Sueli Carneiro:


As mulheres negras assistiram, em momentos de sua militância, à temática
específica da mulher negra ser secundarizada na suposta universalidade de
gênero. Essa temática da mulher negra invariavelmente era tratada como
subitem da questão geral da mulher, mesmo em um país em que
afrodescendentes compõem aproximadamente metade da população
feminina. Ou seja, o movimento feminista brasileiro se recusa a reconhecer
que há uma dimensão racial na temática de gênero que estabelece privilégios
e desvantagens entre as mulheres. (CARNEIRO, 2011, p. 121).

Essa universalidade do feminismo hegemônico, portanto, é excludente. Por isso,


Patricia Hill Collins, citada por Ribeiro (2019), afirma que a mulher negra, no interior
do movimento feminista, ocupa um lugar de forasteira de dentro: está “dentro” por ser
feminista que pleiteia o lugar da mulher negra como sujeito político; mas ao mesmo
tempo está “de fora” (forasteira) pela maneira como é vista e tratada dentro do próprio
movimento.

Audre Lorde, também mencionada por Ribeiro (2019), expressa a dificuldade de


se sentir pertencente a algum movimento. Se o movimento feminista aborda a questão
específica de gênero; o movimento negro, racial; o movimento LGBT, de orientação

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Violência simbólica no feminismo hegemônico: mulheres e vulnerabilidade

sexual; qual deles uma mulher que é negra e lésbica, como ela, deveria escolher? Aliás,
ela precisa escolher uma opressão determinada contra qual lutar? Lorde afirmava, em
contrapartida, conforme explica Ribeiro, que não se pode negar uma identidade para
afirmar outra, pois fazer isso não corresponde a uma transformação real, mas mero
reformismo.

Djamila Ribeiro sustenta a necessidade de reconhecer que as mulheres partem


de lugares diferentes, justamente por experenciarem o gênero de modos distintos. Não
há como igualar as pautas de discussões e lutas. É preciso nomear essa realidade, trazê-
la à tona para que melhorias possam ser experimentadas. Do contrário, legitima-se um
discurso excludente, que inviabiliza e invisibiliza outras formas de ser no mundo.

Um novo instrumento teórico-metodológico: a interseccionalidade

Kimberlé Crenchaw, intelectual afro-estadunidense, forneceu terreno fértil para


o desenvolvimento das críticas à suposta identidade universal do movimento
feminista. Ao discorrer sobre discriminação interseccional, ou interseccionalidade,
revelou como as discriminações operam juntas, limitando muito mais as chances de
sucesso das mulheres negras.

Conforme Crenshaw (2004), tradicionalmente entende-se que discriminação de


gênero cinge-se a mulheres, enquanto a racial diz respeito apenas à raça e etnicidade;
assim como a discriminação de classe limita-se a pessoas pobres. Mas a
interseccionalidade, pelo contrário, sugere que nem sempre lidamos com grupos
distintos e sim com grupos sobrepostos.

A princípio, o conceito foi pensado por feministas negras justamente num


contexto em que havia, de um lado, reivindicações do feminismo branco que não
incorporavam a dimensão da raça, e, de outro, reivindicações do movimento
antirracista que não incorporavam a dimensão de gênero. Nas palavras de Angela
Davis (2018, p. 21):
O feminismo negro emergiu como um esforço teórico e prático de demonstrar
que raça, gênero e classe são inseparáveis nos contextos sociais em que
vivemos. Na época de seu surgimento, com frequência pedia-se às mulheres
negras que escolhessem o que era mais importante, o movimento negro ou o
movimento de mulheres. A resposta era que a questão estava errada. O mais
adequado seria compreender as intersecções e as interconexões entre os dois
movimentos.

Contudo, esse instrumento teórico-metodológico serve não somente para


reflexões acerca da conexão entre raça e gênero, mas sobre todas as dimensões de
poder que atravessam corpos humanos, conjugando-se e intensificando-se
mutuamente. Conforme Carla Akotirene (2019, p. 19), “a interseccionalidade visa dar
instrumentalidade teórico-metodológica à inseparabilidade estrutural do racismo,
capitalismo e cisheteropatriarcado”.

Anãnsi: Revista de Filosofia, Salvador, v. 1, n. 1, 2020. 107


Matheus Guimarães de Barros

Tomar “mulheres” de modo universal é um equívoco gravíssimo. Ratificando a


teorização de Djamila Ribeiro, expõe Akotirene (2019, p. 28) que “iniquidades de
gênero nunca atingiram mulheres em intensidades e frequências análogas”.

Após retomar o pensamento de Patricia Hill Collins, segundo o qual não se pode
fazer uma soma de opressões (“mulher + negra + nordestina + trabalhadora + travesti
+ gorda”), já que a interseccionalidade impediria aforismos matemáticos
hierarquizantes ou comparativos, afirma:
Em vez de somar identidades, analisa-se quais condições estruturais
atravessam os corpos, quais posicionalidades reorientam significados
subjetivos desses corpos, por serem experiências modeladas por e durante a
interação das estruturas, repetidas vezes colonialistas, estabilizadas pela
matriz de opressão, sob a forma de identidade. Por sua vez, a identidade não
pode se abster de nenhuma das marcações, mesmo que nem todas,
contextualmente, sejam explicitadas. (AKOTIRENE, 2019, p. 43-44).

Patriarcado universal e “mulheres”: fins emancipatórios por meios coercitivos

Quando dissemos que o pensamento de Judith Butler não é totalmente novo ao


sustentar que opressões atuam de maneira conjunta, uma intensificando a outra, de tal
maneira que não se pode considerar o gênero apartado de outros marcadores sociais,
não estávamos descartando sua relevância para a crítica do sujeito feminista universal.

Aliás, muitas novidades foram suscitadas pela filósofa, como a performatividade


do gênero, ou seja, o entendimento de que ele é constituído no tempo, através de uma
repetição estilizada de atos (BUTLER, 2019a). Não adentraremos nessa questão, mas
não poderíamos deixar de mencioná-la, haja vista a reconceitualização de identidade
que ela promove: identidade passa a ser tomada como efeito da performance e não
como algo a priori, fixo.

Butler (2019a) constata que a presunção política de ter de haver uma base
universal para o feminismo frequentemente acompanha a ideia de que a opressão das
mulheres também guarda uma forma singular, consubstanciada na concepção de
patriarcado universal. Acredita-se numa opressão patriarcal que atravessa culturas e
contextos históricos, produzindo uma experiência comungada e atemporal de
subjugação das mulheres.

Essa noção, contudo, é um fracasso, uma vez que não consegue explicar
mecanismos de opressão de gênero nos contextos culturais concretos em que ela
existe. Segundo Butler, essa forma de teorização feminista também foi alvo de críticas
por seus esforços de colonizar e se apropriar de culturas não ocidentais,
instrumentalizando-as com o propósito de ratificar noções flagrantemente ocidentais
de opressão.

Apesar da existência de um patriarcado universal não ter mais tanta


credibilidade, superar a ideia de uma concepção genericamente compartilhada das

Anãnsi: Revista de Filosofia, Salvador, v. 1, n. 1, 2020. 108


Violência simbólica no feminismo hegemônico: mulheres e vulnerabilidade

“mulheres”, que por sua vez é um corolário da própria perspectiva do patriarcado


universal, tem sido uma tarefa árdua.

Mais uma vez é preciso ressaltar, por meio da Butler (2019a): essa
especificidade do feminino é totalmente descontextualizada, separada tanto analítica
quanto politicamente de outros eixos de relações de poder, que tanto constituem a
identidade quanto tornam equívoca a noção singular de identidade. Nesses termos,
apesar de buscar fins emancipatórios, os meios empregados de representação são
coercitivos pela insistência prematura num sujeito estável do feminismo.

Feminismo hegemônico e vulnerabilidade: humanos vulneráveis são imobilizados?

Outro argumento que frequentemente se associa ao feminismo tornado


hegemônico diz respeito à concepção de que os corpos das mulheres são
particularmente vulneráveis. Essa vulnerabilidade demandaria, portanto, políticas
públicas específicas destinadas a suplantá-la ou pelo menos reduzi-la. Bom, a depender
do manejo dessa assertiva, o resultado pode ser contraproducente. Para Judith Butler
(2018a, p. 153), ao contrário, “seria tão enganoso pensar o corpo como primariamente
e por definição ativo quanto seria pensar no corpo como primariamente e por
definição vulnerável e inativo”.

Não há como negar que certos grupos, sob determinados regimes de poder, são
mais expostos à opressão que os demais, ou seja, são mais visados por práticas
violentas. Entretanto, essa vulnerabilidade real não implica necessariamente o
lançamento de vidas para fora do domínio político. “Ainda que alguém esteja
desprovido de proteção, certamente não está reduzido a um tipo de ‘vida
desprotegida’” (BUTLER, 2018a, p. 154).

A exposição exacerbada à violência não transforma automaticamente sujeitos


políticos em seres imobilizados, cuja salvação somente pode ser encontrada mediante
a salvaguarda paternalista do Estado. Dizer isso é negar a força de resistência e
mobilização que emerge de tais grupos minoritários.

Segundo Butler, há um risco em afirmar que mulheres são especialmente


vulneráveis: tanto porque outros grupos também podem fazer a mesma afirmação
quanto pela categoria das mulheres ser interseccionada por classe, raça, idade e
demais vetores de poder e espaços de potencial discriminação.

Além disso, tomar a vulnerabilidade enquanto imutável e definidora fortalece


disposições paternalistas de proteção. Nos exatos termos de Butler (2018a, p. 154-
155):
Se as mulheres são consideradas especialmente vulneráveis e por isso buscam
proteção, se torna responsabilidade do Estado ou de outros poderes paternais
prover essa proteção. De acordo com esse modelo, o ativismo feminista não
apenas reivindica autoridade paterna para práticas e proteções especiais,

Anãnsi: Revista de Filosofia, Salvador, v. 1, n. 1, 2020. 109


Matheus Guimarães de Barros

como também afirma a desigualdade de poder que situa as mulheres em uma


posição de impotência e, consequentemente, os homens em uma posição mais
poderosa. E quando não coloca os “homens” apenas e exclusivamente na
posição de provedores de proteção, investe as estruturas do Estado da
obrigação paternal de facilitar a realização dos objetivos feministas.

Mesmo assim, essa tradição guarda traços importantes que precisam ser, com a
devida cautela crítica, aproveitados. Se ficou evidente que a vulnerabilidade e a
invulnerabilidade não podem ser marcas essenciais de homens e mulheres, também é
correto dizer que a distribuição desproporcional da vulnerabilidade entre os grupos
sociais guarda conexão com “processos de formação de gênero, os efeitos de modelos
de poder que têm como um de seus objetivos a produção das diferenças de gênero que
caminhem lado a lado com a desigualdade” (BUTLER, 2018a, p. 159).

Como dito anteriormente, corpos femininos são mais suscetíveis de sofrerem


algum tipo de ataque. Mas isso não é uma característica intrínseca ao corpo feminino, e
sim resultado do modo como opera o poder numa sociedade patriarcal.

Outrossim, a vulnerabilidade desproporcional sofrida por mulheres não as


imobiliza enquanto grupo. Butler destaca que mulheres são ao mesmo tempo
vulneráveis e capazes de resistência, refletindo em formas de autodefesa e de
instituições feministas (abrigos para mulheres agredidas, por exemplo) que visam
garantir proteção sem aumentar os poderes paternalistas.

É importante, nesse ponto, discorrer sobre a distinção entre “precariedade” e


“condição precária” delineada por Judith Butler em Quadros de Guerra: quando a vida é
passível de luto?. Para ela, precariedade diz respeito a uma característica de todo ser
humano, pelo simples fato de estar vivo. Ora, viver demanda relacionar-se socialmente.
Se a vida “requer que várias condições sociais e econômicas sejam atendidas”, significa
que “a vida de alguém está sempre, de alguma forma, nas mãos do outro” (BUTLER,
2018b, p. 31).

O sujeito, logo após nascer, necessita do que Bulter denomina “rede social de
ajuda” para viver uma vida vivível. A grande questão, portanto, é que somos todos
expostos às tormentas sociais, econômicas, políticas, que estão fora de nós e que na
maioria das vezes não temos controle. Para viver não basta um mero impulso interno,
diz a filósofa.

A exposição aos riscos externos que marca a precariedade das vidas humanas
em geral, por sua vez, é desigualmente distribuída. Isso quer dizer que pessoas
determinadas são mais suscetíveis às intempéries sociais, econômicas e políticas. Por
isso, Butler mobiliza o conceito de condição precária, remetendo-se justamente à
condição induzida politicamente que faz de certas populações o alvo preferencial de
violações, pobreza, violência e morte, decorrentes de apoios (sociais e econômicos)
deficientes, da proteção insuficiente ou inexistente.

Anãnsi: Revista de Filosofia, Salvador, v. 1, n. 1, 2020. 110


Violência simbólica no feminismo hegemônico: mulheres e vulnerabilidade

Diante disso, é possível afirmar: existem populações que não são passíveis de
luto; cuja perda da vida não é oficialmente “enlutada”. O luto ultrapassa a esfera
privada, pois guarda uma dimensão política. Denota um senso de comunidade, um
sentido de interdependência social. O luto nos arranca de nós mesmos, nos prende a
outros, nos transporta, nos desfaz, nos envolve em vidas que não são as nossas (cf.
BUTLER, 2019b). Mas a perda de algumas vidas selecionadas não gera tamanha
comoção. Há uma hierarquia do luto.

Essas vidas não “enlutáveis”, como é o caso das mulheres em geral, e das
mulheres negras, pobres, e/ou não-heterossexuais em particular, entretanto, não são
“nuas”; não estão fora da polis num estado de exposição radical, mas “subjugadas e
constrangidas por relações de poder em uma situação de exposição forçada” (BUTLER,
2018b, p. 51).

Sendo assim, diferentemente de “vidas nuas”, não representam uma mera


existência, mas se manifestam politicamente, sendo as variadas insurreições, atos de
resistência, a confirmação disso. É preciso um cuidado com a linguagem para impedir
que vidas se tornem ainda mais precarizadas e inoperantes.

Por óbvio, não se trata em absoluto de negar auxílio e proteção do Estado ou


demais instituições, ou seja, de tornar mulheres hiper-responsáveis pela própria
vulnerabilidade real, mas de igualmente não “posicioná-las como populações
sofredoras que necessitam do ‘cuidado’ dos bons cristãos” (ibid., 2018a, p. 159). Em
suma,
Na minha perspectiva, a luta é por fazer a reivindicação feminista
eficientemente de modo que essas instituições sejam cruciais para a
sustentação de vidas ao mesmo tempo que as feministas resistam aos modos
de paternalismo que restabeleçam e naturalizem relações de desigualdade
(BUTLER, 2018a, p. 156).

Diagnóstico: violência simbólica.


Terapêutica: conscientização crítica e coalizão aberta

Verifica-se no feminismo hegemônico a conservação de traços de violência


simbólica, tal como definida por Pierre Bourdieu, tendo em vista: a) o estabelecimento
de uma identidade única para fins de ação política efetiva, e, com isso, o afastamento da
possibilidade de fragmentação do movimento em feminismos plurais; e b) a utilização
acrítica do conceito de vulnerabilidade que reforça o sistema de opressão patriarcal ao
posicionar o pretenso sujeito feminista num lugar frágil e inferior, cuja imobilidade é
característica fundamental.

Segundo Bourdieu (2019, p. 12), violência simbólica é aquela suave, insensível,


por vezes invisível a suas próprias vítimas, “que se exerce essencialmente pelas vias
puramente simbólicas da comunicação e do conhecimento, ou, mais precisamente, do
desconhecimento, do reconhecimento ou, em última instância, do sentimento”.

Anãnsi: Revista de Filosofia, Salvador, v. 1, n. 1, 2020. 111


Matheus Guimarães de Barros

A violência simbólica pode ocorrer, e ocorre, quando os próprios dominados


utilizam para agir, ver e avaliar, esquemas que nada mais são do que incorporações de
classificações (das relações de poder), naturalizadas, das quais seu ser social é produto.
Os dominados aplicam, desse modo, categorias construídas do ponto de vista dos
dominantes às relações de dominação, fazendo-as ser vistas como naturais.

As conclusões “a” e “b” destacadas acima retratam como, embora sem intenção
declarada, o feminismo hegemônico se vale de fundamentos que ratificam a lógica
geral de dominação ao invés de se contrapor a ela.
Quando os dominados aplicam àquilo que os domina esquemas que são
produto da dominação, ou, em outros termos, quando seus pensamentos e
suas percepções estão estruturados de conformidade com as estruturas
mesmas da relação da dominação que lhes é imposta, seus atos de
conhecimento são, inevitavelmente, atos de reconhecimento, de submissão
(BOURDIEU, 2019, p. 30).

Diante do diagnóstico, qual o possível tratamento? Elencamos dois “fármacos”: o


primeiro é a consciência crítica; o segundo, uma coalizão aberta. Não se pode superar
um problema desconhecido. A princípio, é preciso delineá-lo, trazê-lo à tona, torná-lo
conhecimento, como no caso das duas contradições fundamentais do feminismo
hegemônico; permitimos a conscientização a respeito das mesmas.

Não basta, todavia, apenas indicar a existência do impasse. É preciso, sobretudo,


justificar a razão de ser um impasse, clareando os empecilhos que traz consigo. Logo, a
crítica se torna fundamental.

A consciência crítica é relevante principalmente acerca do conceito de


vulnerabilidade utilizado pelo feminismo hegemônico. Através dela, se pode
redimensionar a carga semântica do termo a fim de empregá-lo em favor da luta por
igualdade, respeito e autonomia. Em suma, alterando o sentido de sua utilização, torna-
se possível enfrentar o sistema patriarcal de opressão em vez de corroborar com ele.

Quanto à concepção de suposta identidade universal do movimento feminista,


para além da crítica, outro enfrentamento parece cabível. Trata-se da coalizão aberta,
nos moldes como entende Judith Butler (2019a). Basicamente, uma coalizão que afirme
identidades alternativamente instituídas e abandonadas; uma assembleia que permita
múltiplas convergências e, também, divergências, sem precisar obedecer a um telos
normativo e definidor.

Mas é preciso lembrar sobre os perigos na construção de coalizões, embora o


impulso inicial seja democratizante. Conforme bem explica Judith Butler (2019a, p. 39),
a teórica aliancista “pode inadvertidamente reinserir-se como soberana do processo,
ao buscar antecipar uma forma ideal para as estruturas de coalizão, vale dizer, aquela
que garanta efetivamente a unidade do resultado”.

A coalizão, desse modo, precisa ser aberta; reconhecendo suas contradições,


sem precisar demovê-las ou buscar qualquer síntese. Nas palavras de Butler (2019a, p.

Anãnsi: Revista de Filosofia, Salvador, v. 1, n. 1, 2020. 112


Violência simbólica no feminismo hegemônico: mulheres e vulnerabilidade

40), “talvez o entendimento dialógico também encerre em parte a aceitação de


divergências, rupturas, dissensões e fragmentações, como parcela do processo
frequentemente tortuoso de democratização”.

Resumindo, a lógica de uniformização é patológica também na formação de


alianças, devendo ser expurgada veementemente. Afinal,
não será, precisamente, a insistência prematura no objetivo dessa unidade a
causa da fragmentação cada vez maior e mais acirrada das fileiras? Certas
formas aceitas de fragmentação podem facilitar a ação, e isso exatamente
porque a ‘unidade’ da categoria das mulheres não é nem pressuposta nem
desejada [...]. Sem a expectativa compulsória de que as ações feministas
devam instituir-se a partir de um acordo estável e unitário sobre a identidade,
essas ações bem poderão desencadear-se mais rapidamente e parecer mais
adequadas ao grande número de ‘mulheres’ para as quais o significado da
categoria está em permanente debate (ibid., p. 40-41).

Referências

AKOTIRENE, Carla. Interseccionalidade. São Paulo: Sueli Carneiro; Pólen, 2019.

BOURDIEU, Pierre. A dominação masculina: a condição feminina e a violência


simbólica. Tradução de Maria Helena Kühner. 15. Ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil,
2019.

BUTLER, Judith. Corpos em aliança e a política das ruas: notas para uma teoria
performativa de assembleia. Tradução de Fernanda Siqueira Miguens. 2. Ed. Rio de
Janeiro: Civilização Brasileira, 2018a.

BUTLER, Judith. Quadros de guerra: quando a vida é passível de luto?. Tradução de


Sérgio Lamarão e Arnaldo Marques da Cunha. 5. ed. Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira, 2018b.

BUTLER, Judith. Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade.


Tradução de Renato Aguiar. 17. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2019a.

BUTLER, Judith. Vida precária: os poderes do luto e da violência. Tradução de Andreas


Lieber. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2019b.

CARNEIRO, Sueli. Racismo, sexismo e desigualdade no Brasil. São Paulo: Selo Negro,
2011.

CRENSHAW, Kimberlé. A intersecionalidade na discriminação de raça e gênero. In:


VV.AA. Cruzamento: raça e gênero. Brasília: Unifem, 2004.

DAVIS, Angela. A liberdade é uma luta constante. Tradução: Heci Regina Candiani.
São Paulo: Boitempo, 2018.

Anãnsi: Revista de Filosofia, Salvador, v. 1, n. 1, 2020. 113


Matheus Guimarães de Barros

HOOKS, bell. O feminismo é para todo mundo: políticas arrebatadoras. Tradução:


Ana Luiza Libânio. 4. ed. Rio de Janeiro: Rosa dos Tempos, 2019.

LORDE, Audre. Irmã outsider. Tradução: Stephanie Borges. Belo Horizonte: Autêntica
Editora, 2019.

RIBEIRO, Djamila. Lugar de fala. São Paulo: Sueli Carneiro; Pólen, 2019.

Recebido em: 02 de mai. 2020


Aceito em: 16 de jul. 2020

Anãnsi: Revista de Filosofia, Salvador, v. 1, n. 1, 2020. 114


Universidade do Estado da Bahia
Departamento de Educação – Campus I
Anãnsi: Revista de Filosofia, Salvador, v. 1, n.1, 2020

Notas para a crítica da violência


Notes for the critic of violence
Alan Sampaio 1

Resumo: O que define a crítica da violência? O que significa violência? Neste ensaio, faço uma revisão
sumária e parcial de ponderações da filosofia crítica desde Marx, Nietzsche e Benjamin. Do debate entre
filósofos contemporâneos sobre o tema, retiro formas de inteligibilidade do fenômeno. Primeiro, alguns
dados atuais de institutos oficiais dão uma ideia do aumento da violência e da sensação de
vulnerabilidade atual. A partir da crítica da violência bejaminiana, trato do vínculo que mantém atada a
violência mantenedora do direito e do Estado àquela instauradora deles, e da violência divina como
manifestação dos povos capaz de romper a violência mítica do poder. Assinalo, então, com Guyau e
Nietzsche, a importância da crítica do punitivismo e reconheço como injusta toda justiça penal, e com
Angela Davis e Juliana Borges, apresento a prisão como dispositivo necropolítico. Sob essa ótica, a lei
aparece como possibilidade do crime, o Estado é definido pela criminalização da pobreza, a violência,
como programa de governabilidade. Depois, revejo o conceito de “violência sistêmica” de Žižek e o
aproximo da concepção de ruptura da integridade do vivo de Saffioti. Por fim, pondero sobre o perigo do
apelo da não-violência, a condenação prévia da violência divina, e sobre a teoria como resposta que
nasce das, com e para as lutas sociais, destacando-as como condição para a liberdade.
Palavras-chave: Crítica da violência; Crítica da sanção; Violência sistêmica; Violência divina; Não-
violência

Abstract: What defines a critique of violence? What does violence mean? In this essay, I make a
summary and partial review of considerations of critical philosophy since Marx, Nietzsche and Benjamin.
Of the debate among contemporary philosophers on the subject, I take forms of intelligibility of the
phenomenon. First, some current data from official institutes gives an idea of the increase in violence
and the current feeling of vulnerability. Based on the Benjamin’s critique of violence, I deal with the
bond that maintains the violence that maintains the law and the State tieds to that establishes of them,
and divine violence as a manifestation of the peoples capable of breaking the mythical violence of power.
Perhaps, then, with Guyau and Nietzsche, the importance of the critique of punitivism and I recognize
that all criminal justice is unfair, and with Angela Davis and Juliana Borges, I presente the prison as a
necropolitical device. From this perspective, the law appears as possibility of crime, the State is defined
by the criminalization of poverty, violence, as a governance program. Then, I review Žižek’s concept of
“systemic violence” and bring it closer to Saffioti’s concept of disrupting the integrity of the living.
Finally, I ponder the danger of the appeal of nonviolence, the prior condemnation of divine violence, and
theory as a response that is born of, with and for social struggles, highlighting them as condition for
freedom.
Keywords: Critique of violence; Criticism of the sanction; Systemic violence; Divine violence;
Nonviolence.

1Professor Adjunto da Universidade do Estado da Bahia. Doutor em Filosofia pela Universidade Federal
da Bahia. E-mail: alansampaio7@gmail.com.
Alan Sampaio

[...] As leis foram desde o início assentadas para os nobres, a nobreza está fora
da lei e precisamente por isso a lei parece ter sido posta com exclusividade
nas mãos da nobreza. Naturalmente existe sabedoria nisso – quem duvida da
sabedoria das velhas leis? –, mas é também um tormento para nós,
provavelmente algo inevitável. [...] Certa vez um escritor resumiu isso da
seguinte maneira: a única lei visível e indubitavelmente imposta a nós é a
nobreza – e será que queremos espontaneamente nos livrar dela?
Kafka, “Sobre a questão das leis”.

Dardos e questões

Suicídio; Homicídio; Linchamento; Feminicídio; Estupro: violências de todos os


tipos cresceram, segundo o Atlas da violência 2019 (Ipea e Fórum Brasileiro de
Segurança Pública) e o Mapa da violência de 2016 (Waiselfisz, 2015). Segundo os dados
oficiais do Sistema de Informações sobre Mortalidade, do Ministério da Saúde
(SIM/MS), em 2017, 59,1% do total de óbitos de homens entre 15 e 19 anos de idade
são por homicídio. Segundo o Mapa da violência de gênero, em 2017, as mulheres são
cerca de 67% das vítimas de agressão física registradas no país. Em relação aos casos
de feminicídio, 64% das mulheres assassinadas eram negras. O número de homicídios
de mulheres no país de 2007 a 2017 cresceu 30,7%. Ainda mais assustador é o
aumento do encarceramento das mulheres entre 2000 e 2016, da ordem de 632%. O
decréscimo de 9,2% nos últimos três anos (2017-2019) é apenas uma oscilação.

A sensação de insegurança, de vulnerabilidade, o sentir-se passível de ser ferido


em sua integridade ou de ser aniquilado por violência cresceu. Segundo o Fórum
Brasileiro de Segurança Pública e Instituto do DataFolha (2017 e 2019), cerca de dois
terços dos brasileiros presenciaram violência contra as mulheres nos últimos doze
meses que antecedem as pesquisas. No Nordeste, pelo menos um terço das mulheres é
vítima de violência doméstica (ibid., 2017). No Rio de Janeiro, quase a totalidade de
seus habitantes temem ser vítimas ou ter um parente vítima de bala perdida, enquanto
a maioria gostaria de deixar a cidade por causa da violência; em um ano, um terço dos
cariocas presenciou algum tiroteio (Instituto do DataFolha, 2018). Notamos também a
expansão de imagens de violência nas mídias.

A expansão do discurso da não-violência, por sua vez, pode ser notada em vozes
dissonantes. De um lado, temos uma espécie de ativismo que investe em formas
pacifistas de resolver conflitos e superar opressões, como protestos, boicotes e
desobediência civil, inspirados n’A desobediência civil de Thoreau (2012). Dois atos
exemplares do século XX: a Marcha do Sal, liderada por Mahatma Gandhi, em 1930, e as
Marchas de Selma a Montgomery, com Martin Luther King Jr. colaborando na
organização, em 1965. Do outro lado, o Estado e a grande mídia apelam sempre para a
ordem, para a paz, para a imobilidade social, atribuindo aos povos a potência da
irracionalidade, da desordem e da violência. Apesar do aumento simultâneo dos dois
discursos, eles são completamente adversos. O primeiro quer a libertação, o segundo, a
subserviência dos povos.

Anãnsi: Revista de Filosofia, Salvador, v. 1, n. 1, 2020. 116


Notas para a crítica da violência

O aumento da violência nas últimas décadas coincide tanto com o da percepção


dela quanto com o do apelo da não-violência. Quão natural, causal nos parece o vínculo
entre o fenômeno, a apreensão do fenômeno e o discurso crítico. Engana-se, porém,
quem pensa na coincidência do triplo crescimento a partir de uma relação causal.
Recusamos que a violência seja perceptível por si mesma; que por si só provoque
horror e indignação; e, como consequência, que daí nasceria o apelo da não violência.

Quando percebemos atos e procedimentos como violentos, é o espírito que


define os atos violentos, se infames, e como devem ser punidos os agentes, ou ainda,
quais atos são justificáveis, quem pode realizá-los, sob tais e tais circunstâncias. Esse
espírito, que traz em seu coração a ideia de “liberdade” atômica, individual e, portanto,
a responsabilização do indivíduo por “seus” atos, ele tem dificuldades em compreender
a norma como geradora de violência, entender mesmo essa responsabilidade como
arbitrária. Se a coincidência não é da ordem das relações causais, nem por isso é
acidental. Nem causal, nem casual, o triplo aumento é programático. Por si mesma, a
violência não desperta repulsa. O apelo da não-violência não nasce de uma
sensibilidade ao sofrimento.

Nesta seara, há muito a renunciar. Por exemplo, supor que a violência seja
derivada do crime, como se este fosse a causa em si daquela; que a violência estatal seja
uma resposta aos crimes; que o crime esteja associado à pobreza; que a pobreza seja
uma espécie de demérito que corrompe a moral e os bons costumes; que o homem e a
mulher de bem não sejam violentos. Em todos estes casos, precisamente o contrário é a
verdade. A ideologia coloca o mapa da realidade de cabeça pra baixo. Via de regra,
inventa conexões causais pouco plausíveis. Quando de fato podemos estabelecê-las,
elas se encontram invertidas, o efeito aparece como causa e a causa, como efeito.

A percepção da violência e a emoção correlata são sociais. Nossas reações são


“programadas”, seguem uma regra. A percepção e a emoção não têm nada de natural. É
o espírito, neste caso, que determina as respostas físicas e psíquicas. A percepção da
violência não tem relação direta com a própria violência, mas com o enquadramento da
cena, a tipificação de pessoas em personagens, e de atos como repugnantes, justos ou
educativos. A apreensão de um caso como violento não conduz necessariamente à
indignação. A comoção, indignação e ira, ou inversamente, a satisfação e êxtase – estão
enquadradas desde sempre pelo logos, pela prática discursiva, pelas mídias. Nos de
atos de revanche, por exemplo, entre agressores e voyeurs, as emoções que
acompanham a percepção do sofrimento provocado em pessoas “culpadas” são de
contentamento, êxtase, alívio.

Um exemplo midiático: O único registro público que resta do pau-de-arara,


instrumento de tortura usado pelos militares durante a Ditadura, foi descoberto em
2012 pelo Grupo Tortura Nunca Mais/SP, graças à astúcia do cineasta Jesco Von
Puttkamer ao nomear seu filme de “Araras”. O vídeo traz imagens da formatura, em 5
de fevereiro de 1970, em Belo Horizonte, da primeira turma da Guarda Rural Indígena

Anãnsi: Revista de Filosofia, Salvador, v. 1, n. 1, 2020. 117


Alan Sampaio

(GRIN)2, a recém-criada milícia indígena do Estado, com a presença Governador de


Minas Gerais e do Ministro do Interior, dentre outras celebridades oficiais. A população
ocupa os cantos da rua (e do vídeo) enquanto os quase cem indígenas fardados
desfilam e mostram o que aprenderam com o Exército Brasileiro. Dentre eles, dois
carregam uma pessoa com pés e mãos atados juntos, pendurada como um saco em uma
barra de ferro. Governador, Ministro, crianças, homens e mulheres, nenhum deles,
ninguém esboça qualquer indignação, revolta ou comoção. Ao contrário, uns sorriem e
outros ainda batem palmas.

Tanto em “Araras” quanto da imagens de Abu Ghraib, prisão controlada pelos


EUA no Iraque, cujas cenas de tortura contra presos políticos divulgadas em 2004
causaram espanto e ojeriza, em ambos os casos, são as imagens de violência, pelo modo
como são apresentadas, que comovem. Todos os dias, corpos com marcas de violência
são exibidos na televisão, mas a forma do enquadramento das imagens, ao fabricar o
ódio contra o “inimigo público”, impede qualquer comoção3.

Retornando, a percepção não provoca uma indignação que chega ao discurso


como apelo da não-violência. Ao contrário, os conceitos, argumentos, as evidências
apresentadas pelo discurso crítico permitem expandir nossa compreensão do
fenômeno. Não são os únicos responsáveis. Antes deles, organizações e movimentos
sociais, povos, reivindicam uma mudança de entendimento de conceito, hábitos e leis.
A prática libertária e a teoria crítica visam alterar, em última instância, o universo
simbólico, a linguagem em que o mundo é, e, portanto, o mundo. A denúncia da
violência e o clamor por seu fim só são escutados com atos públicos. O discurso chapa-
branca, por outro lado, faz uso publicitário de elementos do discurso crítico para o
aceite por parte das massas das violências perpetradas para fins de guerra e coerção.

Há décadas, o Ocidente declara guerras em nome da liberdade e da democracia;


não por ganância, senão pelos direitos humanos. Na grande mídia, a guerra se faz pela
paz; o assassinato, pela vida; a tortura, pela segurança pública; o encarceramento, em
nome da liberdade; o linchamento, por causa da moral. “O terrível, diz ela, não pertence
ao racional!” – Para nós, ao contrário, precisamente aí se encontra parte significativa da
Razão! Mas esta não é translúcida.

2
Em resposta às acusações de tortura contra indígenas, comércio de crianças, exploração de trabalho
escravo, incluindo prostituição, extermínio de tribos, com vírus e pólvora, e corrupção de todo tipo, o Serviço
de Proteção ao Índio (SPI), criado em 1910, com o fim de “inserir” o índio na sociedade, é extinto no fim de
1967, principalmente pela pressão internacional que exigia da Organização das Nações Unidas (ONU) que
investigasse os crimes do poder, ocorridos principalmente entre 1961 a 1967. Em seu lugar, surge a Fundação
Nacional do Índio (FUNAI) e, em seguida, a partir dela, são criadas uma polícia e uma prisão indígenas: a
Guarda Rural Indígena (GRIN) e o Reformatório Krenak, este logo substituído pela Fazenda Guarani, em 1972.
Para uma ideia de seus efeitos, ver o artigo de Daniela Alarcan (2018), “Povos indígenas foram vítimas de
genocídio na ditadura militar”. A resposta dos militares é cínica. Dizemos a eles que não aceitamos mais a
violência que perpetram contra os índios e eles respondem: “Tudo bem, então ensinamos os índios a se
maltratarem”. O cinismo costuma ser o tom das respostas contemporâneas às reivindicações populares.
3 Para uma crítica das violência das imagens reprodutíveis, ver Drummond e Sampaio (2013).

Anãnsi: Revista de Filosofia, Salvador, v. 1, n. 1, 2020. 118


Notas para a crítica da violência

A desenvoltura com que usamos as noções morais, como as de bem e mal, ou de


violência e justiça, e com que legitimamos atos por argumentos canhestros, e
valoramos atos e pessoas, não significa que elas mesmas sejam claras para nós. Os
conceitos relativos à moral são opacos, de difícil discernimento. “Sei o que é bom desde
que não me perguntem o que é o bem”. Em relação à violência, a opacidade das coisas
morais se mostra especialmente densa. O papel de uma crítica da violência, em todo
caso, é encontrar formas de inteligibilidade do fenômeno, que permitam antes de tudo
reconhecê-lo enquanto tal, a fim elencar suas condições de possibilidade, quer dizer, os
enquadramentos da vida que a precarizam como passível de violência.

Até aqui, através de uma série de máximas que invertem as conexões causais de
ideologia estatal, quis dar uma ideia de para onde aponta a filosofia crítica desde Marx
e Nietzsche, quer dizer, como fornecem inteligibilidades mais coerente para a
percepção da violência com fins à sua superação. Talvez seja possível caracterizar a
filosofia crítica pelo modo como coloca a violência como questão central. Nela
encontramos as questões: O que faz a crítica da violência? O que significa violência?
Quais suas condições de possibilidade? Quais enquadramentos de pessoas ou
populações as tornam passíveis de sofrer e cometer agressões? Quais práticas,
incluindo as discursivas, promovem e justificam a violência? Quais circunstâncias
tornam a violência legítima? Os conceitos críticos são operatórios, quer dizer, servem a
propósitos de cunho social. A verdade que lhes concerne é do âmbito da ética em seu
alcance político. A teoria crítica é uma espécie de material de construções, com caixas
de ferramentas, mapas, esquadros, parafusos.

Este ensaio, escrito para celebrar o primeiro número da Revista Anãnsi, dá uma
ideia da inteligibilidade que a crítica da violência traz para a compreensão do
fenômeno. Ele responde a duas das questões centrais supracitadas: Qual o papel da
crítica da violência? O que significa violência? Nele, adoto uma espécie de perspectiva
aérea, que aproxima conceitos específicos de diferentes teóricos tratando-os como
análogos. O ensaio é parcial, seu intuito não é ser exaustivo, e sim apresentar as
concepções centrais da teoria crítica. Contenta-se em apresentar algumas delas. Terá
êxito se o leitor se sentir compelido a completar partes que faltam.

Comecei por contestar a falaciosa conexão causal entre fato, percepção e


discurso. Com isso, apresentei máximas das quais parto e, penso, a relevância das
questões. As próximas três notas mostram a tarefa da crítica da violência. Primeiro, a
partir de Benjamin, como o aparato estatal da justiça promove a violência, a qual pode
ser chamada de mítica, em oposição àquela outra, divina, que eclode de povos
oprimidos. Depois, com Nietzsche e Jean-Marie Guyau, o que há de injusto em todo
castigo, e com Foucault, Angela Davis e Juliana Borges, desmistifico a ideia de que
penitenciária seja uma resposta ao crime. Em seguida, apresento a lei como condição
de possibilidade do crime e como projeto estatal de esgotamento e aniquilamento dos
povos.

Anãnsi: Revista de Filosofia, Salvador, v. 1, n. 1, 2020. 119


Alan Sampaio

As últimas notas, buscam um significado para “violência”, um operatório, que


permita divisar a série de “pequenas” violências, o real papel das instituições oficiais de
violência, a fabricação de enquadramentos dissimétricos pela mídia, que sustentam o
estado de “normalidade”, o fundo sobre o qual aparece as figuras da violência, aquelas
quantificáveis. Primeiro, trago a tipologia de Žižek e, com Nietzsche, as concepções de
violência sistêmica e simbólica. Em seguida, oponho-me à crítica de Byung-Chul Han a
tais concepções, e extraio da aproximação entre a socióloga brasileira Heleieth Saffioti
e a filósofa estadunidense Judith Butler um conceito crítico de violência. Por fim, coloco
em questão todo apelo da não-violência que não parta de organizações e manifestações
populares.

Crítica da violência
Qual a tarefa da crítica da violência? O ensaio Para a crítica da violência de
Walter Benjamin, de 1921, é um marco no debate. O título original do ensaio, Zur Kritik
der Gewalt, merece um comentário: desde Kant, “Kritik” tem na filosofia principalmente
o sentido de investigação dos limites de algo e suas implicações; e “Gewalt”, além de
“violência”, significa “poder”, “força”, como no caso de “Naturgewalt”; daí, há uma
antiga tradução do título em português como “Crítica da violência – crítica do poder”
(BENJAMIN, 1986). Segundo Agamben (2004, p. 84), o objetivo de Benjamin no ensaio
é “garantir a possibilidade de uma violência [ou poder] [...] absolutamente ‘fora’
(ausserhalb) e ‘além’ (jenseits) do direito e que, como tal, poderia quebrar a dialética
entre violência que funda o direito e violência que conserva”. Aqui, porém, deixo de
lado todo o rico debate em torno do texto, inclusive o debate entre Benjamin e Carl
Schmitt proposto por Agamben, para ficar apenas com a distinção entre a violência
mítica do Estado, que funda e mantém o direito pela força e a violência divina da greve
proletária, que Benjamin encontra em Georges Sorel (1993).

Benjamin delimita a crítica da violência ao âmbito do direito e da justiça: se a


violência atinge as relações éticas, e se estas se definem precisamente pelos conceitos
de direito e justiça, então a violência é definida por suas relações com o direito e a
justiça. Mas, então, salta sobre o debate entre o direito natural e o direito positivo, para
apontar para a violência do direito. Enquanto “O direito natural almeja ‘justificar’ os
meios pela justiça dos fins, o direito positivo, ‘garantir’ a justiça dos fins pela
‘justificação’ dos meios.” (BENJAMIN, 2011, p. 124). Neles há diferentes modos de
justificar ou delimitar a violência do Estado e, precisamente por isso, não há neles uma
crítica da violência.

Benjamin vê na greve geral dos trabalhadores uma espécie de “violência pura”,


capaz de romper com a ignóbil violência do continuum da história, um Jano de duas
faces, a da guerra e a do direito, que tem sua personificação precisamente na polícia: “O
infame de uma tal instituição”, diz Benjamin, “reside no fato de que nela está suspensa
a separação entre a violência que instaura o direito e a violência que o mantêm” (ibid.,
p. 135). No combate à violência pela lei, ele vê a exigência de exclusividade da violência

Anãnsi: Revista de Filosofia, Salvador, v. 1, n. 1, 2020. 120


Notas para a crítica da violência

pelo Estado – aquela que o direito reclama para si. E, na própria lei, a sentença de uma
derrota.

Se “A tradição dos oprimidos nos ensina que o ‘estado de exceção’ em que


vivemos é na verdade a regra geral”, então é preciso provocar um verdadeiro estado de
exceção, quer dizer, não o da “justiça”, mas uma que a quebre (Benjamin, 1994b, p.
226). Por isso, Benjamin (2011, p. 143) retoma a distinção de Sorel entre a greve geral
política e a greve geral proletária: “a primeira forma de suspensão do trabalho é
violenta, uma vez que provoca só uma modificação exterior das condições de trabalho,
a segunda, enquanto meio puro, é não-violenta”. As possíveis consequências
catastrófica da última não dizem o contrário, pois o caráter violento das ações deve ser
julgado “segundo a lógica de seu meios” e “não segundo seus efeitos ou fins”, mesmo
porque acaba por ser indiferente aos ganhos efetivos, afinal, sua tarefa não é outra
senão “aniquilar o Estado” (ibid., 142-144) . Ela é uma manifestação e não de meio,
como a cólera, cujas explosões de violência não meios para um fim predeterminado.
Como diz Sorel (1993), “Com a greve geral, desaparecem todas as belas coisas; a
revolução aparece como uma revolta clara e simples” (apud BENJAMIN, 2011, p. 143).

A greve geral política, por sua vez, é uma espécie notável de omissão violenta,
comparável a um bloqueio. Tal se mostra, para Benjamin, ainda mais imoral e bruta na
greve dos médicos que ocorreu depois da Primeira Guerra Mundial. Ainda mais
repugnante é o uso da violência na série de greves das polícias que pululam no Brasil
desde 1997, como duas cifras de sangue. Uma greve política é, por assim dizer, um
mecanismo regulador do direito, que lhe é externo, mas fala a mesma língua do poder.
Ela é instauradora do direito, opera no campo da violência mítica. Apenas pode
conseguir que o poder passe de privilegiados a privilegiados.

A greve proletária, ao contrário, é anarquista. É revolucionária. Abandona o


terreno dos programas e utopias, quer dizer, “de instaurações de quaisquer formas de
direito” (ibid. p. 143). Quer, pura e simplesmente, como um terremoto divino, abolir o
Estado, a razão de ser dos grupos dominantes. No contexto das opressões, esse grito de
liberdade, capaz de sacudir e fazer cair as estruturas de poder, os mecanismos de
violência, quer aniquilar a própria “justiça” que conhece como violência mítica. Se esta
é ameaçadora, a violência divina golpeia, “se a primeira é sangrenta, a divina é letal de
maneira não- sangrenta” (ibid., p. 150).

Para Benjamin, assim como para Sorel, a revolução aparece como uma
necessidade, como sustentam Marx e Engels (2007, p. 42), não só porque a classe
dominante não pode ser deposta por outros meios, “mas também porque somente com
uma revolução a classe que derruba detém o poder de desembaraçar-se de toda a
antiga imundície e de se tornar capaz de uma nova fundação da sociedade”. A resolução
não-violenta de conflitos como princípio é incapaz de provocar verdadeiros avanços.
Apesar de Benjamin ter o cuidado de não tratar das erupções populares com mortes,
trago aqui um exemplo de violência revolucionária desse tipo.

Anãnsi: Revista de Filosofia, Salvador, v. 1, n. 1, 2020. 121


Alan Sampaio

Para Frantz Fanon (2015, p. 78-79), a Revolução Argelina é um meio de deter o


processo violento que os europeus lhe imprimem: “o colonialismo não é uma máquina
de pensar, não é um corpo dotado de razão. Ele é a violência em estado natural, e só
pode se inclinar diante de uma violência maior”. Para o colonialismo, vale o adágio de
Sartre (2015, p. 38), segundo o qual “nenhuma suavidade apagará as marcas da
violência: só a violência é que pode destruí-las”. No primeiro capítulo, “Sobre a
violência”, d’Os Condenados da terra, Fanon (2015, p. 54-55) define a descolonização
como o processo que rompe a violência do primeiro confronto, que cinde o mundo em
dois, o do colono e o do colonizado, violência continuada nas relações entre as duas
cidades:
O mundo colonizado é um mundo cortado em dois. A linha de corte, a
fronteira, é indicada pelas casernas e pelos postos policiais. Nas colônias, o
interlocutor legítimo e institucional do colonizado é o policial ou o soldado.
[...] Nos países capitalistas, entre o explorado e o poder impõe-se uma
multidão de professores da moral, de conselheiros, de “desorientadores”. [...]
o intermediário do poder utiliza uma linguagem de pura violência. [...] O
intermediário leva a violência para as casas e para os cérebros dos
colonizados.

Quanto à violência na origem do direito e do Estado, Nietzsche (1996, p. 51;


2000, p. 75-76) tem passagens esclarecedoras: “‘O vencido pertence ao vencedor, com
mulher e filho, com bens e sangue. É a violência que dá o primeiro direito, e não há
nenhum direito que não seja em seu fundamento arrogância, usurpação e ato de
violência’”, ainda que a história de modo geral pouco elucide sobre isso. Precedida pelo
“violento, poderoso, o fundador original do Estado, aquele que avassala os mais fracos”,
a moralidade mesma conserva o caráter de coerção por muito tempo ainda, e faz do
indivíduo sua vítima. “Depois se torna costume, depois ainda obediência livre,
finalmente quase instinto”, e então, “chama-se virtude”. Nietzsche vê na função
pedagógica da lei, destacada por Platão e Kant como sua função precípua, um modo de
disciplinar os vencidos. Nos Estados formados pela colonização parece, todavia, que a
função terrorista se destacar. Ademais, a pedagogia que conhecemos está manchada
pelo punitivismo ocidental e por todos os preconceitos sociais.

Pierre Clastres (2011, p. 81, 85), ao discutir os conceitos de genocídio e


etnocídio, em um dos artigos de sua Arqueologia da violência, nota que toda cultura é
fundamentalmente etnocêntrica. As sociedades primitivas nomeiam a si mesmas
sempre como “os Homens”, enquanto reservam aos vizinhos nomes injuriosos. A
divisão operada pela cultura afirma a si como excelência do humano, enquanto os
outros, como uma espécie de humanidade de segundo grau. O reconhecimento do
humano entre vizinhos é sempre assimétrico: desdém da diferença do outro, apologia
da sua. Se, porém, é da essência da cultura ser etnocêntrica, considerar-se a cultura por
excelência, “somente a ocidental é etnocida”.

Clastres tem o cuidado suficiente de não se deter no espanto que atribui um


fatalismo à civilização ocidental que, lançando uma compreensão para a barbárie do

Anãnsi: Revista de Filosofia, Salvador, v. 1, n. 1, 2020. 122


Notas para a crítica da violência

Estado, se não a inocenta, torna, ao menos, inócua toda denúncia contra ela. Para ele, a
diferença radical entre as duas formas de cultura, a do índio e a do europeu, está
marcada pela presença do Estado, que aquela desconhece: “toda organização estatal é
etnocida, o etnocídio é o modo normal de existência do Estado”. É um erro imaginar
que os genocídios perpetrados pela Europa durante o processo de colonização tenham
se extinguido quando do reconhecimento da soberania das nações, e mesmo que este
reconhecimento se dê plenamente, porque não se dá.

Segundo o ponto de vista decolonial e feminista, o papel da mídia liberal é


fornecer enquadramentos em que a violência e a morte sejam aceitáveis. Seu papel é
legitimar as ações empreendidas contra os povos alvos da máquina genocida. A mídia
em geral nos solicita uma forte dose de paixão frente a tragédias sociais, o que as exime
de buscar as condições de possibilidade do acontecimento, limitando-se a parear a
população na compaixão que nesta desperta, e nomear com dedo em riste os
“culpados”: “Vândalos!”, “Psicopatas!”, “Bandidos!”. Não é nenhuma análise dos
acontecimentos aquela que termina com um ponto de exclamação.

Do impacto inicial do terror, do espanto, espera-se a frieza do estudo, e não a


conclusão de que o fenômeno pertence ao campo do inefável. O que dissemos em A
cidade e seu duplo sobre a tragédia de Realengo vale de modo ainda evidente para a
recente tragédia de Suzano, na qual é explicita a relação de imitação com o massacre de
Columbine:
O jovem carioca, tão vítima quanto as outras, visou este caráter das imagens
reprodutíveis que definem nossa sociedade. Ele quis provocar um sofrimento
na sociedade equivalente àquele que sentia em si mesmo, como vítima desta.
Tem seu ato por heroico, enquanto a mídia o expõe às avessas, pois o toma
como anomalia, enquanto no seu próprio julgamento é a sociedade que é
monstruosa, a qual seu ato bárbaro denuncia. [...]

É preciso lembrar que massacres com números de vítimas equivalentes são


comuns tanto em Salvador quanto na Faixa de Gaza (dentre as várias cidades
que não só autorizam, mas também promovem, corriqueiramente,
massacres)? (DRUMMOND; SAMPAIO, 2013, p. 68-69).

Não nos parece nada de inexplicável que jovens escolham como local de
descarga da violência a escola. Há um relato de Erasmo de Rotterdam (2008, p. 88), do
século XVI que, apesar do tempo que nos separa, é ilustrativa: um educador, o teólogo,
sem nenhum motivo real, inclusive consciente disto, submete um menino de aparentes
dez anos, recém-ingresso na comunidade escolar, a uma humilhação gratuita por meio
de um castigo violento, que foi executado, então, pelo “prefeito do colégio”, mais
conhecido por “cão de guarda”, que:
lançou o menino ao chão e vergastou-o qual réu de sacrilégio. Aliás, o teólogo
chegou a bradar mais de uma vez: “Basta! Basta!”. O algoz, ensurdecido pelo
furor, persistia na macabra tarefa, não o tendo levado à síncope por pouco.
Voltou-se, então, o teólogo para nós e disse: “Nada disso o menino merecia,
mas era necessário humilhá-lo”.

Anãnsi: Revista de Filosofia, Salvador, v. 1, n. 1, 2020. 123


Alan Sampaio

Somos herdeiros de uma milenar pedagogia da violência. Se a crítica quiser


apontar para qualquer superação do estado de violência generalizada em que nos
encontramos, ela começa por reconhecer o punitivismo como fonte geradora da
violência, cujas máximas são da dardos da civilização: “Bandido bom é bandido morto”;
“Quem deve tem de pagar”; “Quem se mistura com porcos, farelos come”; “Manda quem
pode, obedece quem tem juízo”; “Não coloque o chapéu onde a mão não alcança”. O
punitivismo é um emaranhado semiótico gigantesco. Sua “justiça” e “edificação” criam,
recriam, mantém os quadros de reconhecimento assimétrico, isto é, instauram, como
se desde sempre, uma diferença essencial e, a partir daí, efetiva. A violência é ou ato de
estabelecimento e manutenção desse reconhecimento ou ato de libertação daqueles
submetidos à efetividade da diferença mítica. A punição, instrumento da “justiça”,
porém, não é ela mesma injusta.

Crítica do castigo

Na Crítica da ideia de sanção, que Jean-Marie Guyau (2007) faz nos anos de
1880, os diferentes argumentos que encontram a justiça na punição (e premiação). A
maioria dos moralistas desde Platão vinculam o vício ao sofrimento e a virtude à
felicidade, e Kant pensa esse vínculo como algo a priori. Utilitaristas chegam a conceber
uma relação mística entre um gênero de conduta e um estado feliz ou infeliz. A religião,
por sua vez, na medida em que admite a providência, vê proporcionalidade entre a boa
ou má conduta e a felicidade ou infelicidade. A ideia de justiça distributiva divina, pelo
menos no plano desta nossa única vida, não resiste à observação de que a natureza
absolutamente não pune, apenas tritura, sem paixão ou motivo, quem cai em suas
engrenagens.

Ao longo da crítica, Guyau mostra as falácias dos argumentos moralistas,


utilitaristas e transcendentais que atam o castigo ao crime. É, afinal, uma matemática
infantil, diz ele, a da lei do “Olho por olho, dente por dente”: “Para defender-se,
aniquila-se o agressor” (ibid., p. 57). Enquanto os utilitaristas repetem o projeto
platônico de domesticação do homem pela sanção, premiando a virtude e,
principalmente, punindo o vício, para Guyau, ao contrário, “Quanto mais sagrada é uma
lei, mais ela deve estar desarmada, de tal modo que, no absoluto e fora das
conveniências sociais, a verdadeira sanção parece dever ser a completa impunidade da
coisa realizada. [...] toda justiça propriamente penal é injusta” (ibid. p. 27). Primeiro
porque não é possível reparar o fato e imprimir sofrimento não redime o feito, pelo
menos não do ponto de vista moral. “Não! O que está feito, está feito [...]. Tanto quanto
seria racional perseguir [...] a cura do culpado, é irracional buscar a punição ou a
recompensa do crime.” (ibid., p. 35). Depois, se ele se reconhece como culpado, isso já
não bastaria?

Se consideramos o criminoso como a causa do crime, o que está longe de ser,


então a educação parece ser a única resposta justa: “Enquanto um criminoso
permanecer verdadeiramente como tal, ele se colocará, por isso mesmo, acima de

Anãnsi: Revista de Filosofia, Salvador, v. 1, n. 1, 2020. 124


Notas para a crítica da violência

qualquer sanção moral. Seria necessário convertê-lo antes de atingi-lo e, se ele se


converteu, por que atingi-lo?” (ibid., p. 37). Ou, em outras palavras: “Que fazer com o
ignorante? Que se deve fazer com quem erra? Criar condições para o despertar da ética
entre os autores do erro e da violência. Não matar, bater, prender ou suspender
direitos... Aprender é a verdadeira paga do bruto, do ignorante!” (MARTINS; SAMPAIO,
2019, p. 14).

No mesmo sentido, a filosofia de Nietzsche (2004, p. 20-21, 166) tem por um


objetivo central seu retirar do mundo os conceitos de pecado e de punição. Desafio
heroico, diz ele, na medida em que parece que a educação do gênero humano foi
conduzida pelas fantasias de carcereiros e carrascos, que o conceito de punição
infestou completamente o mundo, segundo a absurda lógica que toma causa e efeito
como culpa e punição. Para Nietzsche (2000, p. 63), nosso crime contra os criminosos
consiste em que os tratemos como vilões. A nossa punição não educa nem purifica o
criminoso, não é nenhuma expiação: ao contrário, mancha mais do que o próprio crime:
Como ocorre de que toda execução nos insulte mais do que um assassinato? É
a frieza do juiz, a penosa preparação do suplício, a percepção de que um
homem é aí usado como um meio para assustar outros. Pois a culpa não é
punida, mesmo se uma houvesse: esta se acha em educadores, pais, nos
arredores, em nós, não no assassino, – penso nas circunstâncias
determinantes.

Com Nietzsche, nos colocamos a questão de nossa responsabilidade social pela


violência, isto é, não somos moralmente responsáveis, não por cada criminoso, mas
pelo crime mesmo existir? Simples, não fabricamos formas de vida que gostam de bater
cabeça contra a parede toda vez que se escuta uma piada. – “Todavia, existe entre nós
brutos.” – Seria melhor dizer: “Há entre nós muita barbárie”. Os brutos não inventaram
a sua própria brutalidade. Ela é invenção nossa, coletiva, faz parte da forma de vida de
um “nós”. Neste sentido podemos ler as palavras de Guyau (2007, p. 42):
As bestas-feras humanas devem ser tratadas com absoluta indigência e
piedade, como todos os outros seres; pouco importa que se considere sua
ferocidade uma fatalidade ou um ato espontâneo, elas têm sempre de ser
lamentadas moralmente. Por que se desejaria que também o fossem
fisicamente?

Nietzsche (2008, p. 177) descreve como opera, entre os utilitaristas ingleses


(todos baseados em Bentham), a velha lógica de comerciante, segundo a qual, o castigo
deve ser proporcional à infração, que em sua forma moderna cria para si uma
instituição própria, a prisão. Além disso, seria importante notar que “O bandido e o
poderoso que promete à comunidade defendê-la do bandido são provavelmente, no
fundo, seres muito semelhantes.” Do mesmo modo, “o comerciante e o pirata são por
muito tempo a mesma pessoa”. Por seu parentesco, “a moral do comerciante não é
mais do que um refinamento da moral pirata”.

Na Genealogia da moral, é bastante recorrente o desprezo pela lógica do cálculo


penal e da ideia moderna de responsabilidade, que não leva até as últimas

Anãnsi: Revista de Filosofia, Salvador, v. 1, n. 1, 2020. 125


Alan Sampaio

consequências os seus pressupostos, portanto, sua arbitrariedade, a do direito e da boa


consciência. Nela, há um erro gramatical que funda nossa consciência moral. A
exigência gramatical de um sujeito e um predicado, um agente e uma ação, implica no
criminoso como sujeito do crime. Há aí algo enganoso. Por isso, Nietzsche (1992; 1998)
recusa a falsa causalidade dessa noção de responsabilidade: o “eu”, o “sujeito” como
causa da ação, o criminoso como culpado de seu crime. Trata-se então de mostrar que a
responsabilização do criminoso, quer dizer, a alegação de que ele (o sujeito do crime)
agiu conscientemente, é uma ideia muito recente, não um, por assim dizer, a priori
gramatical. Nietzsche, afinal, nos mostra a legitimação metafísica, gramatical, da
violência. Foucault (2015) localiza o nascimento desse sujeito e dessa concepção de
responsabilidade na emergência do criminoso como inimigo social no século XVIII.

A crítica ao punitivismo é um dos empreendimentos mais caros ao trabalho


genealógico de Nietzsche e Foucault. Enquanto Guyau mostra a irracionalidade da
lógica da sanção, os genealogistas situam na história as formas como as ideias e
instituições penais, seu vínculo com a verdade e a criação do indivíduo enquanto
sujeito. Ao descrever a emergência da prisão no curso A sociedade primitiva, Foucault
elenca os principais argumentos da crítica que lhe é contemporânea: “a lei não penetra
nas prisões”; “fabrica um verdadeiro exércitos de inimigos internos”; “não só não pode
ter efeito de dissuasão, como também atrai para a delinquência”; “Da prisão saem
pessoas fadadas definitivamente à criminalidade pelos hábitos e pela infâmia com que
são marcadas” (ibid., p. 229).

Assinalo duas mudanças no discurso sobre as prisões desde os anos 1815-1830.


Primeiro, a introdução da ideia de uma “correção” a partir de uma “ciência da prisão”, a
qual provoca uma inversão criminológica do circuito carcerário, como diz o Foucault:
Aquilo que no início do século XIX era usado, com outras palavras, para
criticar a prisão (constituição de uma população “marginal” de
“delinquentes”) passou a ser visto como fatalidade. Não só aceito como fato,
mas também constituído como dado primordial. O efeito “delinquência”,
produzido pela prisão, torna-se problema da delinquência à qual a prisão
deve dar resposta adequada. (Ibid., p. 230).

Outra mudança, desta vez atual, encontra-se no abandono do projeto iluminista


de edificação da sociedade, conforme a análise de Angela Davis sobre o isolamento nas
prisões de segurança supermáximas. Se reformadores do século XVIII e XIX, dentre os
quais Alexis de Tocqueville e Gustave de Beaumont, acreditavam no isolamento
completo como um tipo de punição capaz de provocar uma renovação moral, este traço
desapareceu do discurso punitivista. Trata-se agora simplesmente de punir o mal com
o mal: “A justificativa predominante para a prisão de segurança supermáxima é que os
horrores que ela cria são o complemento perfeito para as personalidades monstruosas”
que confina (DAVIS, 2018a, p. 53).

O discurso recente é acompanhado de práticas repressivas, dentre as quais se


destaca a interdição de que os prisioneiros se eduquem, como mostra Davis: “o suposto

Anãnsi: Revista de Filosofia, Salvador, v. 1, n. 1, 2020. 126


Notas para a crítica da violência

propósito da prisão de promover a reabilitação foi completamente substituído pela


incapacitação como o principal objetivo do encarceramento” (ibid. p. 78-79). Com as
revoluções Francesa e Americana, imortalizou-se a ideia de direitos e liberdades
inalienáveis do indivíduo. O indivíduo, sujeito de direito, é condição de possibilidade da
prisão, nem por isso o alvo da prisão deixa de ser os povos. Concomitante à supressão
do elemento moralizante de seu discurso e à interdição à educação dos presos, o poder
expande as prisões. Há quadro décadas, emergiu o fenômeno do encarceramento em
massa, elevando cada vez mais as cifras assombrosa nas taxas de encarceramento no
mundo, com destaque para os EUA e o Brasil.

Angela Davis (2018a) e Juliana Borges (2019) mostram como jovens de cor,
entendidos aí como negros, latinos, índios, mulçumanos são o alvo do encarceramento
em massa, nome dado ao fenômeno de expansão vertiginosa das prisões; como tal
prática teve pouco ou nenhum efeito sobre as estatísticas oficiais de criminalidade; em
que ela é herdeira da colonização e da escravidão. Elas fazem a crítica do vínculo entre
crime e castigo desde uma perspectiva interseccional, isto é, tomam gênero, classe e
raça como categorias que se sobrepõem nos sistemas de opressão.

Davis e Borges contam, tanto em relação aos Estados Unidos quanto ao Brasil,
respectivamente, como se deu a criminalização da cultura negra e de suas
organizações, enquanto as comunidades “economicamente menos favorecidas”
tornavam-se o berçário do inimigo público. Tanto aqui quanto lá, quando a alforria foi
concedida, de modo algum com boa vontade, surgem uma série de leis criminalizantes
que preveem detenção para “vagabundos, vadios, capoeiras”. Ora, mas “criminalizar a
‘vagabundagem’” significa para Borges (2019, p. 83) é uma abertura para todo tipo de
criminalização”. Trata-se aqui da mesma estratégia norte-americana em relação à
“vadiagem”, como aponta Davis (2018a, p. 30-31), codificada como crime dos negros,
por exemplo, nos Códigos Negros do Mississipi que surgem logo após a abolição. Vadio,
neste caso, era aquele que, conforme Milton Fierce (Slavery Revisited, 1994), “fosse
culpado de roubo, tivesse fugido [de um emprego, aparentemente], estivesse bêbado,
tivesse conduta ou proferisse discurso imoral, tivesse negligenciado o trabalho ou a
família, tivesse usado dinheiro de maneira negligente e (...) todas as outras pessoas
indolentes e desordeiras” (apud Davis, 2018a, p. 31, colchetes e parênteses de Davis).

Não só porque propriedades, meios de subsistência, educação foram recusados


aos “libertos”, a efetiva emancipação parece não só improvável, mas mesmo
impossível. A rarefação da possibilidade de qualquer mudança sistêmica expressiva
não se deve apenas à carência histórica de um programa de inclusão nacional e de
políticas abolicionistas efetivas, com exceção de recentes, incipientes e escassas
políticas de reparação, a exemplo da adoção de cotas no ensino superior, muitas, aliás,
desde a guinada à extrema direita dos últimos cinco anos, já revogadas ou em vias de o
serem.

É preciso dizer com Foucault (2020, p. 176), “A penalidade é política, de alto a


baixo”. Nas anotações do curso Teorias e instituições penais, ele descreve a violência

Anãnsi: Revista de Filosofia, Salvador, v. 1, n. 1, 2020. 127


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penal vigora desde há cinco séculos: “o crime é definido com relação ao poder”, “campo
da penalidade foi recortado e especificado por ele”, “ele se tornou o elemento
determinante de todo funcionamento desse sistema penal” (ibid. p. 177). Desde o
século XIX, porém, ele se camufla sob a oposição entre O trabalho de crítica da
ideologia punitivista está em mostrar como a norma, a polícia, o cárcere criam o crime.
Nos termos de Benjamin (2011, p. 155), “A crítica da violência é a filosofia de sua
história”. Onde se vê uma cadeia de acontecimentos, a crítica angélica vê uma catástrofe
única, que acumula incansavelmente ruína sobre ruína e as dispersa a nossos pés. Ela
fabrica, com suas genealogias, a destruição do continuum que torna os vencedores de
hoje herdeiros dos vencedores de outrora (Cf. BENJAMIN, 1994b). Procuro mostrar, a
seguir, o direito como verdadeira fonte do crime e seu uso contra os povos como uma
forma de violência mítica.

Criminalização dos povos

O crime não é a razão principal da violência, e sim o direito, a propriedade, o


aparato de segurança, o (des)valor da vida, representações e modos de
reconhecimento assimétrico, práticas educativas, enquadramentos midiáticos das
formas de vida. O castigo não é uma consequência do crime, senão uma inconsequência
social promovida pelas elites por vias estatais e midiáticas como forma de controle. A
lei não é uma resposta ao crime. O crime é uma criação da lei. Através da fabricação do
crime, do combate à “vadiagem”, às “drogas”, às infrações contra a “propriedade”, a lei
institui um mundo que perpetua de modo sistêmico a barbárie da colonização.

O crime é uma invenção do direito. Quando nomeia o ato como um “crime”,


quando nomeia o agente do ato como “criminoso”, seu discurso é adâmico, a lei
determina tanto o gênero e a essência do ato quanto de seu agente. Ela confisca seu
status de cidadão e, porque o marca com a insígnia infame, pode-se encarcerá-lo, pode-
se executá-lo. Sem a lei, têm-se indignação, revolta, vingança, mas não crime. No
contexto colonial do poder, o crime, criado pela lei, justifica a violência do Estado
contra pessoas de cor. O encarceramento, a tortura e a execução são violências
extremas!

O direito, ao definir o crime e a pena do criminoso, com toda sua terminologia,


em latim de preferência, e determinações, ele cria a condição de possibilidade de
sequestro, tortura, extorsão, execução do “inimigo público”, dentre outras “infrações”
dos agentes armados da lei. A lei vigia e pune, e dá de ombros aos “excessos” dos
homens de bem, de seus guardas, dos escritores e administradores da lei. Todos, com
exceção dos guardas, são brancos de sobrenome estrangeiro.

A criminalização da pobreza é um projeto de Estado, um projeto mundial do


Capital, em nome do conforto, segurança e sadismo daqueles que expropriam e
exploram as vidas por eles precarizadas e do controle destas por aqueles. Não há,
porém, entre a pobreza e violência uma relação essencial, e sim uma relação

Anãnsi: Revista de Filosofia, Salvador, v. 1, n. 1, 2020. 128


Notas para a crítica da violência

programática; não causal, mas de condições de possibilidade. Curiosamente, a elevação


social das classes mais desfavorecidas não foi nenhum obstáculo ao crescimento da
violência. No Brasil, e em países da América Latina, depois de ditaduras militares, com
a redemocratização, alcançada a estabilidade econômica, e com governos de esquerda,
houve crescimento do poder de consumo, do nível de educação, de expectativa de vida,
de reconhecimento de direitos básico. Por que, então, a violência continuou a aumentar
mesmo com a elevação social do povo? Para dizer mais uma vez, pois a violência é um
projeto político de controle.

Os danos que o consumo de entorpecentes pode provocar e a violência que o


aparato judiciário, policial e penitenciário efetivamente consuma com a “guerra às
drogas” são, na verdade, incomparáveis; o segundo é incomensuravelmente maior.
Qual classe, qual raça são os alvos da lei? Com o crescente combate às drogas, como é
possível que seu comércio não pare de crescer? Não se trata propriamente de
questionar a lisura da “justiça”, porque ela, transfigurada pelo direito em algoz dos
sofredores, não se faz nem age de boa-fé, senão trata-se de apontar a extensão de sua
violência. Ela prende por tráfico de drogas mães solo, que estão no último degrau do
comércio bilionário, quer dizer, quando não inventa mesmo seu “envolvimento com o
tráfico”, mas nada faz quando toneladas são encontradas em um helicóptero na fazenda
de Senador.

A forma como a favela é enquadrada como lugar do inimigo e da brutalidade é


uma violência objetiva, que justifica a violência policial dirigida contra as comunidades
periféricas: “Imputar aos pobres – diz Saffioti (2015, p. 87) – uma cultura violenta
significa um pré-conceito e não um conceito” e desconsidera toda a situação de
estresse em que vivem aqueles atingidos pelas políticas públicas de precarização da
vida. Também o “mito do estuprador negro” denunciado por Angela Davis (2016, p.
177): “Na história do Estados Unidos, a acusação fraudulenta de estupro se destaca
como um dos artifícios mais impiedosos criados pelo racismo”.

Por outro lado, Juliana Borges (2019, p. 113) chama a atenção o uso da categoria
“pobreza” como modo de camuflar o de raça, sobre o qual se estrutura o direito penal
brasileiro: “A pobreza no Brasil tem cor. Aliás, negros são pobres porque são porque
são negros no Brasil. E não são negros porque são pobres”. Para ela, o direito não é
perpassado pela ideologia racista, como se algo exterior que se lhe acometesse. Ele é
espaço de “reprodução do racismo, da criminalização e do extermínio da população
negra e não um mero aparto de ideologia racista” (ibid., p. 75). A “criminalização da
pobreza” é uma espécie de “verniz” para apagar o elemento racial que determina o
sistema de desigualdades brasileiro.

A criminalização dos povos, então, define os Estados capitalistas. O conceito


estatal de povo é o de nacionalidade. Contra este, é preciso salvaguardar o termo,
tomá-lo em sua dimensão ético-política. Enrique Dussel (1982) chama de povo as
comunidades, que são objeto de exclusão e opressão, e lutam pelo reconhecimento de

Anãnsi: Revista de Filosofia, Salvador, v. 1, n. 1, 2020. 129


Alan Sampaio

sua dignidade e de seus direitos. A seguir, dou uma ideia em relação às áreas da
educação, justiça, economia

Na missão formativa do Estado, imperam a segregação, a depreciação, com as


representações diminutivas, incluindo cômicas, uma seletividade que impõe derrotas
constantes no aprendizado de sua tábua de conteúdo, mas então notadas como
impotência, congênita ou disciplinar, do então “loser” da vida, derrotado por toda vida.
Tal sistema, hegemônico, fabrica impotentes e derrotistas, enquanto elege suas
exceções. Nada ou quase nada além da tabuada ele ensina para a autonomia das
pessoas. Não ensina o direito a qual as submete. Nada de medicina, de arquitetura,
engenharia, agricultura.

Na sua “justiça”, o mesmo: imperam a segregação, a depreciação da vida, com


representações diminutivas, uma seletividade que fracassa em promover o bem e
fabrica derrotas constantes no exercício sistêmico da lei. Prescrevem-se processos sem
julgamento, enquanto pessoas são “esquecidas” presas por crimes imputados
injustamente. Seu objetivo nunca foi erradicar a produção e o comércio de “drogas”;
estes não deixaram de aumentar e se diversificar. O objetivo do Estado nunca foi
proteger a vida.

Em suas funções econômicas, o Estado promove a segregação, deprecia a vida.


Ele onera os pobres, precariza os empreendimentos menores, favorece as
aglomerações de rendas e distribui dividendos e perdões de dívida aos mais abastados,
quer dizer, aos banqueiros, aos latifundiários, aos grandes empresários. O Estado cria o
indigente, lançam às ruas a vida destituída de documentos, de qualquer cidadania, uma
vida sem moradia, sem alimento, na dependência de doações espontâneas e mil vezes
constrangedoras. O Estado cria a vida sem valor.

A violência que é o Estado promove o depauperamento dos povos, vence com o


aparato militar e o apoio da mídia, e faz avançar a selvageria dos ricos na exploração da
mão de obra. O Estado liberal precariza as condições de trabalho, desresponsabiliza os
danos provocados pelo capitalista na extração e exploração dos recursos planetários,
incluindo os recursos humanos. Quando mais riqueza produzimos, mais crônica se
torna a crise do Estado em promover as condições dignas de vida de sua população. O
cinismo de seu declarado fracasso se mostra mais repulsivo na desoneração de seu
papel social.

Hoje, consumido por uma crise permanente, como chama a atenção Boaventura
de Sousa Santo (2000), o Estado mostra-se falido e espera compreensão do explorado
de sempre, mais uma vez é preciso retirar-lhe algo, um direito, extinguir uma
conquista. A retirada de benefícios básicos, como previdência e saúde públicas, acaba
por ser consentida pela população, massacrada por uma mídia de jornalismo
publicitário – que é todo aquele que não informa nem traz o contradito. Em 2019, toda
rádio e televisão deste país falou de crise da previdência. Em lugar do debate, trouxe a
promessa de retomada da economia, claramente irreal. Não é que tenham bons

Anãnsi: Revista de Filosofia, Salvador, v. 1, n. 1, 2020. 130


Notas para a crítica da violência

argumentos. Eles não precisam, afinal não debatem. “Uma mentira repetida mil vezes
torna-se verdade” – dizia o publicitário de Hitler. A grande parte do jornalismo
brasileiro operou para rasgar a CLT (Consolidação das Leis do Trabalho). Em todos os
casos, o argumento é a crise financeira do Estado, o “rombo” na previdência, a
retomada da economia e do progresso do país.

O fenômeno epidêmico da violência é a atualização do projeto político genocida


do Estado. Chamo de “projeto”, pois, afinal, não há nada de casual nele. Trata-se de um
programa descritível, mensurável, que segue a lógica patriarcal, colonialista,
capitalista. Um projeto de governabilidade, de necropolítica, responsável pela
expansão da violência, da criminalização, do encarceramento. Tanto no Brasil quando
nos EUA, o poder torna-se mais violento, mesmo quando a esquerda assume o governo.
Na verdade, é indiferente se os atores políticos que assinarão o programa são de direita
ou de esquerda.

As instituições ditas “promotoras” da justiça, “empenhadas” em reduzir a


violência, as quais deveriam favorecer a potência da vida ao tornar rarefeita a
vulnerabilidade primária, constitutiva de sermos corpos, na verdade, tais instituições
são e sempre foram a sua fonte. Elas operam por ameaça e terror. Quando a lei
determina, para fins de reintegração de posse, o despejo de centenas de famílias sem
outro teto além daquele reclamado, ela opera antes por ameaça e, se necessário, a
cumpre, usa de seu braço armado. E ainda, atos policiais que atiram contra casas e
pessoas indistintamente, que batem e desmoralizam mulheres, homens e crianças, são
atos terroristas. O ato terrorista é aquele que investe na publicização da violência para
o terror da população alvo. Faço uma última consideração, sobre a esquerda punitiva,
que mostra a importância da crítica do poder, para em seguida apresentar um conceito
crítico de violência.

Não apenas a violência mítica do Estado avança, é a próprio punitivismo que


expande. Foucault (2015, p. 106) chama a atenção para o fato de a moral não estar
dentro da cabeça das pessoas, e sim inscrita “dentro das relações de poder, e apenas a
modificação das relações de poder poderá trazer a modificação da moralidade”. Esse
tom revolucionário lembra a sentença de Marx e Engels sobre a catarse moral da
revolução há pouco citada. Infelizmente, porém, não é certo que a revolução possa nos
fazer desembaraçar-nos de “toda imundice”. Também por isso, devemos debater de
modo crítico nossas próprias respostas ao problema da violência, e nos perguntar se
elas promovem seu decréscimo ou, longe disso, não só são ineficientes ao combate, mas
também criam outras violências.

Assim, um “feminismo”, por exemplo, que luta por “igualdade de gênero”, que
não questiona a organização punitiva estatal, e mesmo assim lança sua resposta ao
aparato gerador de violências, como aponta Angela Davis (2018a, p. 80-81),
corresponde ao trabalho ideológico das prisões, o de nos livrar da responsabilidade de
nos envolver com os problemas sociais. Por isso, Davis defende uma justiça baseada em
reparação e reconciliação, em vez da “justiça” de punição e retaliação. Consideramos,

Anãnsi: Revista de Filosofia, Salvador, v. 1, n. 1, 2020. 131


Alan Sampaio

em suma, respostas educativas e de saúde pública mais humanitárias, justas e


eficientes do que a prisão no combate à violência.

A questão deve ser colocada a todos os ativismos políticos de esquerda que


apela ao punitivismo. A característica fundamental a esquerda punitiva é, como
sintetiza Salo de Carvalho (2014, p. 138), “a reivindicação da criminalização de
violências reais e efetivas contra os direitos humanos de determinados grupos
vulneráveis”. Movimentos negros reclamam a criminalização do racismo; movimentos
feministas, a da violência doméstica; movimentos LGBTTs, a da homofobia;
movimentos de Verdade e Memória, a dos protagonistas do terrorismo de Estado;
movimentos ecológicos, a criminalização da destruição do meio ambiente. Carvalho
sublinha que, à exceção dos grupos ambientalistas, as demandas punitivas de esquerda
promovem “violências concretas contra pessoas de ‘carne e osso’”. Para ele, é ainda
mais preocupante a expansão da “razão vulgar”, dos discursos de “justificação do
injustificável”, de nossa anuência a violências que declaramos no geral como
inaceitáveis, como se necessárias, “em nome da ‘governabilidade’ e da ‘reserva do
possível’, assumem a defesa da ordem contra os direitos humanos”. Nos termos de
Foucault, a esquerda punitiva crê que a moral está na mente das pessoas, então aposta
em quebrá-las, mas a moralidade pertence às relações de poder. Quer dizer, se
desejamos uma mudança da moralidade, então são estas a serem aniquiladas e aquelas.

Até aqui, apresentei algumas teses centrais de uma crítica da violência como
crítica do poder. A seguir, busco um conceito de violência que dê ideia da abrangência
daquela perpetrada pelo poder.

A parte obscura

O que significa violência? Que conceito pode tornar mais translúcido o


fenômeno? A violência não é acidental, mas seria equivocado considerá-la como ato
volitivo. Quando olhamos o fenômeno a partir dos conceitos de seguir uma regra,
paradigma, norma, normalidade, aquela vontade do indivíduo aparece mais como uma
vontade no indivíduo. O indivíduo se torna um preposto da vontade que nasce nele
quando segue uma regra, imita um paradigma, destaca o caráter coercitivo da norma,
oprime em nome da normalidade. Mesmo considerando que uma vontade conduz o
indivíduo, suas palavras, emoções, corpo, nem por isso o conceito de vontade deixa de
obscurecer o fenômeno. Com o acréscimo do “eu” e da “vontade” pode surgir o conceito
de “criminoso”, sujeito de uma vontade atomizada, responsável por seus atos, como
vimos com Nietzsche. A noção liberal de liberdade serve à culpabilização, à
incriminação e não à libertação. Tanto o conceito de liberdade quanto o de violência
têm a libertação, se a promovem ou dificultam, como pedra de toque.

Ao contrário do conceito que torna quantificável as violências que aparecem a


partir de sua noção liberal de responsabilidade, o conceito de violência correspondente
à crítica da violência e da punição é o de violência sistêmica, estrutural, entranhada na

Anãnsi: Revista de Filosofia, Salvador, v. 1, n. 1, 2020. 132


Notas para a crítica da violência

moral. A partir da noção de violência sistêmica trazido por Žižek, considero como
próximos os conceitos diferentes, como se iluminassem diferentes aspectos do
fenômeno, sem, todavia, apontar suas semelhanças de família. Destaco o de violência
em Butler (2017, 2019), que a pensa a partir da ideia de vida precária e
vulnerabilidade primária, estas pensadas segundo o conceito chave da ética levinasiana
de “rosto”, com o qual dialoga. Nela, porém, o conceito é secularizado, pensado desde o
corpo e o social.

A violência sistêmica, segundo Slavoj Žižek (Violência), é análoga à “matéria


escura” da física. Nós a encontramos expressa no poema “Sobre a violência” de Bertolt
Brecht (1986): “Do rio que tudo arrasta se diz que é violento./ Mas ninguém diz
violentas/ as margens que o comprimem”. Para Žižek (2014), há três tipos de violência:
a subjetiva, “a parte mais visível” do triunvirato, e duas objetivas, a sistêmica e a
simbólica, quase imperceptíveis. Assim a lemos na imagem de Brecht: a violência do
rio, explícita, com agente claramente identificável (o rio), é uma violência subjetiva,
“experimentada enquanto tal contra o pano de fundo de um grau zero de não
violência”, “percebida como uma perturbação do estado de coisas ‘normal’ e pacífico”,
enquanto as margens que comprimem o rio exercem uma violência sistêmica, a
violência propriamente objetiva, opaca, porque inerente ao estado “normal” de coisas,
porque “sustenta a normalidade do grau zero contra a qual percebemos como
subjetivamente violento” (ibid., p. 17-18). Do rio quando dizemos que é violento, a ele
atribuímos um valor, que o converte em símbolo de temível. Não se trata aqui de um
uso excessivo, ao contrário, faz parte da linguagem enquanto violência simbólica: “é a
linguagem, e não o interesse egoísta primitivo, o primeiro e maior fator de divisão
entre nós, é devido à linguagem que nós e os nossos próximos podemos viver ‘em
mundos diferentes’ mesmo quando moramos na mesma rua”; “A ‘barreira da
linguagem’ que me separa para sempre do abismo de outro sujeito é simultaneamente
aquilo que abre e que mantém esse abismo – o próprio obstáculo que me separa do
Além é aquilo que cria a sua imagem” (ibid., p. 63; p. 67).

Assim como já Nietzsche divisava na linguagem uma fonte geradora de valores,


o recando da moral, Žižek localiza nela a fonte de todas as discriminações. Ambos
destacam o alcance da violência da e a partir da linguagem. A consciência que temos
das coisas é fruto da capacidade de comunicação, é filha da linguagem, este sistema de
generalidades e generalizações; ela é, como diz Nietzsche (2001, p. 247-251), o “gênio
da espécie”. Para ele, a consciência procede da comunidade e, por isso, trata-se de um
mundo superficial – mundo de sinais, comunicável, comum. É nesse nível que situamos
nossas pesquisas. Os fenômenos não são profundos, são opacos; não precisamos
escavar nada nem dispor de uma maquinaria de conceitos para compreendê-los;
precisamos examinar os discursos, as práticas e o que neles é sistemático, estrutural.
Os conceitos são operatórios neste caso e não autorreferentes.

Para Žižek, é na linguagem, espécie de clareira do ser, que aparecemos – somos –


com caracteres definidos. Dela brotam as distinções entre os mundos que nos separam.

Anãnsi: Revista de Filosofia, Salvador, v. 1, n. 1, 2020. 133


Alan Sampaio

Ela nos dá o valor ao mesmo tempo em que determina os caracteres essenciais –


quando, por exemplo, uma pessoa é definida por seu gênero, sexo, cor, classe social,
nacionalidade, religiosidade. A tentação de praticar a violência nasce com a língua e nas
instituições e práticas sociais, que são objetivas.

Nas palavras de Judith Butler (2017, p. 243), Emmanuel Levinas define a


violência de modo assustador: ela é “uma ‘tentação’ que um sujeito pode experimentar
quando se depara com a vida precária do outro que é comunicada através do rosto”.
Forte, desagradável, sua definição implica-nos; é assustadora; faz-nos reconhecer em
nós o desejo de uma violência abjeta que de algum modo aparece – como uma
“tentação”: “o rosto do outro, em sua precariedade e vulnerabilidade, é para mim a
tentação de matar e o apelo à paz, o ‘Não matarás’” – diz Levinas (1999, p. 141,
tradução nossa).

O conceito de “moralidade do costume”, com o qual Nietzsche começa Aurora,


mostra a violência objetiva da moral através da norma. Na época “pré-histórica” que
precede à “história universal”, designada por Nietzsche (2004, p. 17-19), como o tempo
da “eticidade dos costumes” ou “moralidade da moral”, valia o princípio: “qualquer
costume é melhor do que nenhum costume”; “Moralidade” ou, como dizemos, a
sociedade, o povo em nós, “é o instinto de rebanho no indivíduo”. Ela é “o sentimento
para todo o complexo de costumes em que se vive e se foi criado – e criado não como
indivíduo, senão como membro de um todo, como cifra de uma maioria”. Através deste
sentimento, a “normalidade” do costume se torna indiscutível, e se opõe a novas
experiências e ao surgimento de novos e melhores costumes: ela, afinal, embrutece!

O homem moderno é tão pouco moral, no sentido de obediência cega a uma


tradição, se comparado com os milênios que lhe antecederam. Se por um lado, no nosso
tempo a moralidade está enfraquecida, se comparada àquele grande período dos
começos da civilização (ou mesmo se comparada ao século XIX), por outro lado, não
ignoramos a incomensurabilidade de sua força coercitiva, como norma ou paradigma, e
ainda com penosas prescrições que, no fundo, são supérfluas (pensemos, por exemplo,
no caso do trado de pais para com os “erros” dos filhos, com seus “não faça isso!”, “não
faça aquilo!”, “que feio!”, “você é mau!”; e logo os filhos aprendem que o “erro” deve ser
“corrigido” com admoestações e sanções).

Aprendemos quando crianças que devemos revidar o mal com o mal, e que o
bem e o bom são também isso: vingar-se de uma violência sofrida; assim, quando
caímos e choramos, nossos pais nos ensinam a bater em coisas que “nos machucaram”,
e aprendemos a ter satisfação com isso, mesmo quando a dor que sentimos, causada
por nossa “vingança” no objeto rígido, é maior do que a primeira “ofensa” do objeto.
Apesar de talvez não notarmos com quais procedimentos simbólicos, por sua
opacidade, aprendemos a desprezar a vida precária. O linchamento, o feminicídio, o
extermínio são exemplos extremos de nossa moralidade dos costumes. Moralidade,
quer dizer, sentimento, instinto de rebanho, prazer em seguir o rebanho, em ser
rebanho, tal como o rebanho trata o infrator, o inimigo.

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Notas para a crítica da violência

Um adágio popular perdido diz: “Quando uma galinha está amarrada, as outras
vão lá bicar”. Pois bem, a ordem social das bicadas é a violência objetiva sistêmica,
objetiva, opaca – e habita mesmo um homem cuja vida foi dedicada à Ética. O desejo
confessado por Levinas, aquele que em Butler se torna mesmo o conceito de violência,
é paradigma da violência, não latente nem invisível, senão opaca, quer dizer, densa e
difícil discernibilidade. Para ambos, a noção de rosto coloca uma série de reflexões de
ordem ética desde o sentido do encontro com o outro, que permitem romper os
enquadramentos violentos da vida. Ele visa colocar a vida, o outro, a partir de um
estádio superior ao da empatia.

Conceito de violência

Retornando à tipologia de Žižek, ela mostra o desafio de compreendermos os


aspectos objetivos da violência, que são simbólicos e sistêmicos e, por isso, opacos.
Primeiro, o fato de que nossa compreensão do fenômeno ser a princípio insuficiente. É
necessário um esforço sóbrio para ver a violência sistêmica por detrás e para além
daquela violência padrão que a grande mídia nos ensina a rechaçar. A violência que
percebemos seria, afinal, apenas a ponta do iceberg. A sistêmica e a simbólica seriam a
monstruosa massa sólida invisível dele. Tal tipologia é análoga ao do triângulo da
violência que Johan Galtung apresenta em Violência estrutural de 1969, a parte visível
do iceberg é a violência direta, enquanto na base estão as violências estrutural e
conceitual, invisíveis. Para Galtung (1969, p. 168, tradução minha), “a violência está
presente sempre que seres humanos estão sendo influenciados de modo que suas
realizações somáticas e espirituais são menores do que suas realizações potenciais”.

As duas concepções são ainda comparáveis, conforme Byung-Chul Han (2018, à


de “violência simbólica” de Pierre Bourdieu (2012, p. 7), quer dizer, aquela “violência
suave, insensível, invisível a suas próprias vítimas” que se encontra na dominação
masculina. Na Topologia da violência, Han se opõe aos conceitos de Galtung, Bourdieu e
Žižek, por considerá-los demasiado genéricos, incapazes de distinguir entre violência e
injustiça, e porque tratam como sinônimos poder e violência. Ora, Han os condena
precisamente por seu mérito. O conceito crítico de violência não serve para
comensurar, não é um instrumento de quantificação, mas de inteligibilidade, uma que
desloca, dos povos para o direito a percepção que até agora temos da violência e a
tornar menos opaca. É possível, inclusive, usar os dois conceitos em pesquisas de
ciências sociais, por exemplo, como faz Saffioti.

Em Gênero patriarcado violência, Heleieth Saffioti (2015, p. 79-80), apresenta o


conceito de violência “como ruptura de diferentes tipos de integridade: física, sexual,
emocional, moral”. Ele, porém, é de difícil utilização, especialmente nas pesquisas de
gênero: “a ruptura das integridades como critério de avaliação de um ato violento
situa-se no terreno da individualidade”; “cada mulher o interpretará singularmente”;
“cada mulher colocará o limite em um ponto distinto do continuum entre agressão e

Anãnsi: Revista de Filosofia, Salvador, v. 1, n. 1, 2020. 135


Alan Sampaio

direito dos homens sobre as mulheres.” Sem renegar o conceito que usa para mostrar
precisamente o continuum entre a agressão e a norma, entre a violência e o poder,
Saffioti adota o conceito que toma a violência como violação dos direitos humanos,
decerto mais restrito e comensurável.

Não há, obviamente, violação dos direitos humanos na diferenciação de


brinquedos e jogos por gênero, mas não aí há nenhuma violência?! A partir do exemplo,
entendemos como semelhantes os conceitos de ruptura da integridade,
depauperamento da potência e precarização da vida. Além de degradar as
potencialidades, precarizar habilidades, que deixam de se desenvolver graças à
diferenciação, o exclusivismo das brincadeiras gera problemas de gênero, que podem
desencadear até agressões físicas no ambiente familiar e público; em outras palavras,
pessoas são feridas em sua integridade física e moral, e emocional, esta última que
acompanha sempre qualquer forma de violência. De outro modo, pode-se dizer que na
fabricação de brinquedos há racismo estrutural, o qual denuncia, por exemplo, Larissa
Luz (Bonecas pretas), quando canta:
Um caso contestável/ Direito questionável/ Necessidade de ocupar/ Invadir
as vitrines, lojas principais/ Referências acessíveis é poder pra imaginar/
Mídias virtuais/ Anúncios constantes/ Revistas, jornais/ Trocam estética
opressora// Por identificação transformadora// Procuram-se bonecas
pretas/ Procura-se representação!

Machismo, racismo, lgbttfobia, xenofobia são formas de reconhecimento


assimétricas herdeiras do patriarcado e do colonialismo. Elas colocam as pessoas
implicadas em níveis essencialmente distintos. O reconhecimento assimétrico é a
norma das distinções, tidas como essenciais. A sociedade moderna nos ensina a
desprezar os “monstruosismos” – ao tempo em que, paradoxalmente, ou em paralaxe,
ela mesma é a incubadora dos monstros. Como diz Saffioti (2015, p. 79), “É óbvio que a
sociedade considera normal e natural que homens maltratem suas mulheres, assim
como que pais e mães maltratem seus filhos, ratificando, deste modo, a pedagogia da
violência”. Atos de fala e punho, expressão do reconhecimento vertical, são o próprio
reconhecimento assimétrico. Quando são denunciados, a defesa oscila entre a negação,
dissimulação ou minimização de seus atos, e a justificação, legitimação do ato, via de
regra, na responsabilização do violentado.

Levinas insistia, segundo Žižek (2014, p. 60), “no caráter fundamentalmente


assimétrico da intersubjetividade: nunca há uma reciprocidade equilibrada em meu
encontro com outro sujeito”. Na verdade, o que caracteriza o reconhecimento no caso
dos monstruosismos é a reação programada que repete a estrutura assimétrica da
relação. O “outro” é sempre lembrado de sua condição inferior, das características
selvagens de sua humanidade de segunda ordem. Não alcançamos esse tipo de
violência com um conceito mais quantificável, senão um, nesse sentido, menos preciso,
que melhor permita descrever a ruptura da integridade, o depauperamento da
potência, a precarização da vida.

Anãnsi: Revista de Filosofia, Salvador, v. 1, n. 1, 2020. 136


Notas para a crítica da violência

Talvez o exemplo da carência de bonecas pretas possa levar leitores de Han a


designarem-na como injustiça, devido ao grau de abstração da violência. Ora, quando a
menina branca brinca de ser mãe e segura a boneca branca no colo, no mundo do “faz
de conta”, a boneca torna-se ela e ela, a mãe. A menina negra segura a boneca branca.
Mesmo no “faz de conta”, resta-lhe a ocupação da mãe. A menina se torna a mãe
ausente que cuida da filha da patroa, e a menina preta desaparece no mundo mágico da
brincadeira. É preciso entender que a repetição cria aí uma experiência e estabelece
uma representação como real, institui um hábito. Como diz Benjamin (1994a, p. 253)
“A essência da representação, como da brincadeira, não é ‘fazer como se’, mas ‘fazer
sempre de novo’, é a transformação em hábito de uma experiência devastadora”. O
hábito, por sua vez, é a forma petrificada, irreconciliável, “de nossa primeira felicidade
e de nosso primeiro terror”.

“A luta faz a liberdade”

A função do conceito crítico de violência é tornar perceptível atos e normas que


rasgam, depreciam, fragilizam a vida; tornar descritível o logos que fere a integridade
da pessoa, que precariza e incapacita a vida. Ao contrário de buscar uma justiça
distributiva, que apesar de injusta, como vimos com Guyau e Nietzsche, quer-se
coerente e universal, “nossa” “justiça” é claramente seletiva. Por isso, precisamos de
um conceito nosso de justiça, para antepor ao direito, para mostrá-lo como baluarte das
injustiças. Nela, se destacam os conceitos de violência e de liberdade, afinal, liberdade é
o oposto de viver oprimido. Um Sim e um Não a definem. Ela defende a liberdade dos
povos e das pessoas e recusa o abuso, a agressão, a brutalidade.

Não podemos aceitar que se roubem os olhos da justiça. Uma justiça cega é uma
justiça arbitrária, como já apontou Angela Davis (2018b), conduzida pelo direito que a
encerra e transfigura na dama tirana que aterroriza os despossuídos. Para a justiça
edipiana, que furou seus próprios olhos para não ver que lhe condenam, espécie de
Odisseu, com ceras no ouvido para não escutar as vozes suplicantes, vale a máxima de
Mateus: “a todo homem que tem será dado, e estará em superabundância; mas àquele
que não tem, mesmo o que tem ser-lhe-á tirado” (Mt 25, 29).

O conceito crítico de violência – que alcança as práticas, incluindo discursivas,


que provocam feridas, enfraquecem e destroem as condições de vida digna – torna
claro a necessidade da desmilitarização da sociedade e do abolicionismo penal, para
onde o ensaio de Benjamin aponta. Sim, porque a conclusão de Benjamin está longe de
encerrar toda o rico campo de investigação e atuação que suas teses ensejam. A crítica
benjaminiana vê na violência divina, pura, expiatória, a possibilidade de quebrar a
dialética viciada entre a violência instauradora e a mantenedora da “civilização”,
encerrada nas relações entre meios e fins na disputa entre direito natural e direito
positivo. Do mesmo modo, vemos as manifestações do povo, assim como Žižek (2014,
p. 157): “Lembremos o pânico que se apoderou do Rio de Janeiro quando massas de

Anãnsi: Revista de Filosofia, Salvador, v. 1, n. 1, 2020. 137


Alan Sampaio

favelados desceram do morro para as regiões mais ricas da cidade e começara a


saquear e a incendiar supermercados. Isto era a violência divina”.

Arrastões e rolezinhos, para citar extremos de um tipo de violência divina,


porém, incapazes de quebrar a depravada dialética do poder. Mas eles podem dar
início à sua destruição, e por isso são combatidos com seriedade, de modo tão enérgico.
A repressão às manifestações populares mostra que não há mesmo uma dicotomia
democracia-ditadura, como diz Mauro Iasi (2014, p. 177): “Como se a ditadura não
fosse a predominância da coerção com consenso e a democracia não fosse a
predominância dos instrumentos de formação de consenso com coerção.” Na análise da
“irrupção violenta das massas nas ruas do Brasil em 2013” como violência divina, Iasi
descreve o enquadramento que criminalizou manifestantes como “vândalos e
arruaceiros” e permitiu a repressão brutal da polícia como uma operação ideológica
que criminaliza o oprimido quando expressa nas ruas sua indignação. Ele grita
“Existimos, estamos aqui, vocês estão nos ouvindo?” e o governo de “esquerda” diz
“Sim, sim... não estamos!”.

A exclusividade da violência é reclamada pelo Estado com violência difusa,


arbitrária, sem se importar mesmo se atinge os supostos “vândalos” ou qualquer um da
massa que legitimamente estaria nas ruas, conforme sua operação ideológica. O que
importa é a mensagem: “a violência só é aceitável contra pobres, contra bandidos,
contra marginais, mas é inadmissível contra lixeiras, pontos de ônibus, bancos,
vitrines” (ibid., p. 178). São mesmo duas formas completamente distintas, a violência
mítica do Estado e a divina do povo: “A primeira mata, tortura e esconde o corpo
mutilado para manter a Ordem. A segunda questiona a Ordem com o exercício ativo da
Desordem. A primeira visava silenciar, esconder; a segunda tornou possível mostrar o
que se tenta ocultar” (ibid., p. 188).

Mesmo que se encontrem formas divinas de violência, como os últimos


exemplos, no sentido reclamado por Benjamin para a greve geral proletária, quer dizer,
sem derramamento de sangue, é perigoso o discurso da não-violência. Para encerrar o
ensaio, gostaria de frisar que a inteligibilidade que a crítica fornece está relacionada às
organizações e lutas sociais.

A crítica não deve ser um trabalho de gabinete, desassociada dos movimentos


progressistas. Os estudos decoloniais e as lutas por liberdade mostram como
necessários a organização e mobilização contra os atos bárbaros do poder. É nelas que
o apelo da não violência, como súplica de quem a sofre, é crítico. Fora das lutas, ele não
serviria apenas para legitimar a violência por sua abstração? Recusemos o belo apelo
de gabinete da não-violência, o clamor burguês de paz, o que eles desejam é conter o
grito. O grito de liberdade é uma violência como manifestação, não se pode esperar que
os povos tenham, quando gritam, superado as diversas formas de violência a que são
submetidos e constrangidos a cometer.

Anãnsi: Revista de Filosofia, Salvador, v. 1, n. 1, 2020. 138


Notas para a crítica da violência

Podemos comparar o apelo genérico da não violência à reação a um movimento


diante do genocídio do povo negro que diz que “vidas negas importam”, “Black Lives
Matter”. Quando se diz que “All Lives Matter”, “todas as vidas importam”, o que se diz
não é uma sentença que precisamente a crítica tem como princípio, ao considerar que
as vidas precarizadas importam. É sim, ao contrário, expressão de desprezo e
estratégia de silenciamento. Enfim, que há uma diferença radical, desde a sua função
social, entre os discursos de Mahatma Gandhi e de Martin Luther King Jr., vozes de
lutas, dos discursos feitos para a Organização das Nações Unidas para a Educação, a
Ciência e a Cultura - UNESCO.

Por outro lado, o discurso da não-violência, fora das ruas, não significa destacar
a violência em detrimento da justiça? Como observa Angela Davis (2018a, p. 25),
“Colocar a violência em primeiro plano quase inevitavelmente serve para obscurecer
as questões que estão no centro das lutas por justiça”. Daí a luta e a liberdade estarem
em evidência nos discursos sociais que clamam por justiça; para ser mais preciso, a
liberdade como luta constante, conforme um artigo nosso sobre a filósofa (SAMPAIO;
BORGES, 2020). É nas organizações e lutas sociais ou em resposta a elas que conceitos
e histórias se tornam articuláveis, que se tecem memória, esperanças e a própria
liberdade – ou, nas palavras de Hamilton Borges (20016, p. 182), escritor e militante da
organização política Reaja ou Será Morta, Reaja ou Será Morto, “pela certeza de que a
luta faz a liberdade”. O discurso da violência que não divisa a liberdade, mas mira a
própria violência, não luta, não faz a liberdade. A escrita, a educação, a organização,
sim. Um “sim” e um “não” definem a justiça: a liberdade e a luta.

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Recebido em: 15 de jul. 2020


Aceito em: 23 de ago. 2020

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Universidade do Estado da Bahia
Departamento de Educação – Campus I
Anãnsi: Revista de Filosofia, Salvador, v. 1, n.1, 2020

Brasil Viral: Panóptico-Bionecropolítico


Brazil Viral: Panopticon-Bionecropolitical

João Vitor dos Santos Cruz 1


Leonardo Rodrigues Almeida 2

Resumo: Este ensaio busca diagnosticar as práticas de poder que estão se formando no Brasil durante a
pandemia, a importância do uso de dados para a implementação dessa configuração e a intensificação da
política de terror nas favelas. Identifica uma nova configuração dos poderes disciplinar, biopolítico e
necropolítico e como atuam de diferentes formas nos sujeitos de acordo com suas diferenças
econômicas, raciais e de gênero. Para isso, nos utilizamos de três autores fundamentais: Michel Foucault,
cujo objetivo é refletir sobre a atualidade do biopoder, do poder disciplinar e do dispositivo panóptico;
George Orwell, no qual estabelecemos um paralelo com a literatura como maneira de aclarar tal
diagnóstico; e, Achille Mbembe para entender à luz do necropoder as características do genocídio negro
brasileiro.

Palavras-chave: Pandemia; Bionecropolítica; Saber; Controle.

Abstract: This essay aims to diagnose the power practices that are forming in pandemic’s Brazil, the
importance of using data to implement this configuration and the intensification of the terror policy in
the slums. Identifies a new configuration of disciplinary, biopolitical and necropolitical poweres and how
they act in diferente ways on subjects according to their economic, racial and gender diferences. For this,
we use three fundamental authors: Michel Foucault, whose objective is to reflect on the current status of
biopower, of disciplinary power and panoptic device; George Orwell, in wich we establish a parallel with
the literature as a way to clarify such diagnosis; and Achille Mbembe to understand in the light of the
necropower the characteristics of the Brazilian black genocide.

Keywords: Pandemic; Bionecropolitical; Knowledge; Control.

***
Com o advento da pandemia da covid-19 no início de 2020, medidas foram
tomadas para conter o avanço da doença. Cedo ou tarde, quarentenas foram
implementadas em praticamente todos os países do globo. Na China, onde o vírus foi
descoberto, há drones, sensores de temperatura e aplicativo de celular para descobrir
o infectado. O uso de dados também está sendo implementado em outros países, até

1 Licenciando em Filosofia pela Universidade do Estado da Bahia. E-mail: jaovitorcruz@gmail.com.


2 Licenciado em Filosofia pela Universidade do Estado da Bahia. E-mail: leo.08.ra@gmail.com.
João Vitor dos Santos Cruz e Leonardo Rodrigues Almeida

mesmo no Brasil. Com isso é possível saber a taxa de isolamento social ou onde cada
infectado esteve e, assim, conter um avanço da doença. Porém, é na favela onde o vírus
se espalha mais rápido e são os moradores das comunidades quem mais sofrem com a
dificuldade de acesso à saúde. Diante disso, o que nos garante que os nossos dados
estão protegidos, ou que a pandemia é um mero pretexto para acessá-los? O uso de
nossos dados servirá para novas práticas de poder? Como se configura essas novas
práticas nas favelas, onde impera o poder de matar?

Refletir sobre essas questões a partir de problematizações foucaultianas é, no


mínimo, perturbador, porque a sua analítica dos poderes contempla a atualidade dos
planos teórico e prático das ações governamentais individualizantes e globalizantes.
Por analogia, seria como ajustar o grau das lentes dos óculos e, assim, perceber as
racionalidades políticas presentes nessa governamentalidade, antes embaçadas pela
ausência de conceitos nítidos. Diferente de como concebem liberais e marxistas, a
questão não está assentada no desvio da intervenção estatal, como quiseram os
primeiros, nem em sua transformação, como propuseram os segundos. O nível de
análise é micropolítico, capilar, detalhado, no qual o alvo é a governabilidade. Ao
identificar as práticas de poder, tornar-se-á possível notar quão hodierna é sua
configuração no contexto pandêmico.

Foucault (2008) descreve dois mecanismos de poder, a saber, disciplinar e


biopolítico, que surgiram, respectivamente, a partir dos séculos XVIII e XIX. O exercício
do poder disciplinar torna os indivíduos politicamente dóceis e economicamente úteis.
Através de práticas de individualização, classificação, identificação, recompensa e
castigo, os corpos dos indivíduos e seus comportamentos são moldados segundo uma
ordem de interesse. O panóptico de Jeremy Bentham, popularizado pela abordagem de
Foucault, foi o modelo arquitetônico projetado para esse fim. Considerado como "o ovo
de Colombo" do problema da vigilância, ele é composto por uma torre central, a partir
da qual era possível vigiar todos aqueles presentes em cubículos formando uma
estrutura circular. Não obstante, Bentham não menciona quem ocupa a torre central.
Bom, se ninguém ocupa a torre central, quem está vigiando? Nessa estrutura idealizada
pelo jurista inglês, quem está sendo vigiado não consegue identificar quem ocupa a
torre central. Logo, o que há de extremamente eficaz e economicamente irrisório é a
criação da consciência autovigilante. Ninguém precisa vigiar você quando a
disciplinarização do seu corpo é bem-sucedida, pois nesse caso a finalidade
governamental atinge seu ápice.

E o que isso tem a ver com a pandemia? Revisitando a quarentena da cidade


pestilenta, que Foucault descreve em Vigiar e Punir - não por coincidência está no
capítulo do panóptico - percebemos algumas semelhanças. Apesar da ausência de
recursos tecnológicos, os intendentes dos quarteirões e os síndicos das ruas deviam
saber tudo o que se passava dentro de cada casa e com cada indivíduo, sob pena de
morte àquele morador que mentisse. Se antes era necessário olho humano para
registrar e certificar tudo, hoje as telas de vidro, o localizador GPS e os olhos digitais

Anãnsi: Revista de Filosofia, Salvador, v. 1, n. 1, 2020. 144


BRASIL VIRAL: Panóptico-Bionecropolítico

cumprem muito bem esse papel. O olhar está por toda parte, sob o pretexto de
assegurar a vida da população, mas o que impediria que, ao fim da cidade pestilenta,
desenvolva-se enquanto dispositivo de poder que assegura a obediência com o simples
ato de se sentir observado?

No nível individual, na passagem que se faz da família para a escola, depois,


talvez, universidade e então espaços de trabalho, nessas instituições disciplinares,
aquele tipo de sujeito governável é fabricado mediante a lapidação da máxima virtude
que herdamos do cristianismo: a obediência. O reconhecimento das autoridades
presentes nos nossos micropoderes cotidianos (pai, mãe, marido, professora, policial,
etc.) cristalizam essa condição de "ovelha" apresentada na infância e levada a cabo até
a velhice. Sua importância é demasiadamente grande para haver aceitação das medidas
de controle operadas pelos governantes. Quanto mais obediente for o indivíduo, menos
convincente precisa ser o discurso que legitima a ação. Entender isso de modo crítico
não significa que devemos quebrar o isolamento social e correr o risco da
contaminação. Ao contrário do que defendem os gladiadores da bandeira econômica,
nós não temos a pretensão de reforçar tal ideia. Porém, também não significa a cega
aceitação. O ponto em questão está em perceber de que modo essas medidas restritivas
afetam nossos comportamentos e nos preparam para novas configurações sociais de
exacerbado controle pela "defesa da vida".

Talvez, o maior sonho humano seja o equilíbrio entre segurança e liberdade. O


prazer da realização individual somada à ausência de ameaças aparenta ser utópico, na
medida em que a história mostra que eles são excludentes entre si. Regimes fascistas e
ditatoriais são exemplos nos quais a liberdade individual foi esmagada pela segurança
dos eleitos. Em quadros pandêmicos, como o atual, a ânsia para ter a vida assegurada
ganha evidência e as medidas de controle político, reforçadas pela aclamação pública, é
oportunizada. Cuidado e atenção, nessa circunstância, são palavras de ordem pela
possibilidade da afirmação de si ser suprimida sob a justificativa da sobrevivência.

Pode ser traçado um paralelo entre este cenário e a distopia 1984, de George
Orwell. Nela, o partido Ingsoc, liderado pelo Grande Irmão, governa o povo, sobretudo,
através das teletelas, em locais públicos e privados, pelas quais a observação diuturna
das suas ações é possível. Winston, principal personagem, trabalha em um setor
absurdamente estratégico chamado “ministério da verdade”, no qual o passado era
modificado com o intuito de tornar o presente, por pior que fosse, o melhor momento
vivido. Ao se apossar da memória da população, ao invadir a subjetividade e modificá-
la ao seu bel prazer, o partido coloca nas mãos as condições de possibilidades da
própria existência.

Quando colocado numa gaiola, o pássaro está seguro ou preso? Este


questionamento pode ser derivado da leitura da obra orwelliana e correlacionado com
os efeitos da atual pandemia no Brasil, sobretudo pelo medo da morte. Na tentativa de
explorar o mundo, o medo é o sentimento de maior valor e espantoso de tão eficiente.
Qual o maior recurso disponível no planeta a ser explorado? Galinhas? Vacas? Árvores?

Anãnsi: Revista de Filosofia, Salvador, v. 1, n. 1, 2020. 145


João Vitor dos Santos Cruz e Leonardo Rodrigues Almeida

Não! A “mina de ouro” são os seres humanos. Eles fazem planos, eles enxergam a si
mesmos no “amanhã”. Com a ameaça da morte uma galinha não choca mais ovos, nem a
vaca produz mais leite, tampouco as árvores produzem mais frutos. Porém nós, seres
humanos, coagidos pelo medo do castigo, somos controláveis.

O medo da morte tornou o controle político objeto de desejo e o castigo


justificável. As explicações transcendentais, por sua vez, constituem o plano de
argumentação metafísico desse jogo de poder. As punições divinas, como as doenças,
estimulam a introspecção para “limpar” as “impurezas” que por ventura tenham
acirrado a ira do ser supremo. Com isso se tem a sensação de controle e,
consequentemente, de segurança sob a proteção daquele que é omnisciente,
omnipotente e omnipresente. É preciso sofrer para ser “salvo” e o uso político dessa
combinação é implacável ao instaurar o pânico do juízo final, divino ou laico.

Além do medo, os governantes precisam investir em outro sentimento –


esperança – sem o qual o exercício do poder político seria estéril. O sucesso de tal
investimento significa controle sobre o tempo. Quem controla o passado, controla o
presente e quem controla o presente, controla o futuro. Criar subjetividades
esperançosas, sobretudo em democracias representativas, significa desapropriar a
ação direta dos indivíduos pela fé no futuro melhor, prometido pelos salvadores
partidários. Confiar única e exclusivamente no direcionamento das autoridades
públicas, pelo medo de morrer e esperança de viver, pode ser o caminho para a
guilhotina.

Nesse sentido, as políticas compensatórias usadas pelos governantes e/ou


entidades filantrópicas se configuram como cortina de fumaça. O que são o auxílio
emergencial e a doação de cestas básicas? Nada mais do que contenção de possíveis
revoltas. Essas ações não partem de uma bondade dos governantes pela necessidade
de sobreviver dos governados, mas funcionam como estratégia política. E dominar a
opinião pública é parte necessária na implantação de novas ordens.

As sociedades atuais não têm epicentro disciplinar, elas são sociedades de


controle. Se na sociedade disciplinar o uso da vigilância é destinado para fabricar
sujeitos tipificados, na de controle ela vai ser usada para criar "campos de liberdade",
zonas de consumo, dirigir, induzir, mapear caminhos delimitados que vai da escolha do
produto até a incitação de impulsos emocionais diante do isolamento social. Aqui, o
medo da morte é propagado pelas mídias e o instinto de sobrevivência e selvageria dos
mascarados explodem em socos e pontapés em quem ousar tossir. Se estiver
desprotegido, então, pode acabar morrendo. Mas não de coronavírus, aqui a causa é
outra doença pior: o ódio.

Nessa tipificação de sociedade, emerge outro tipo de poder o qual Foucault


chama de biopolítico. Ele está voltado inteiramente para a população, investe na vida,
no biológico; aqui as taxas de natalidade, mortalidade, ou seja, os índices demográficos
são inteiramente importantes. Ciências como a estatística e a medicina são

Anãnsi: Revista de Filosofia, Salvador, v. 1, n. 1, 2020. 146


BRASIL VIRAL: Panóptico-Bionecropolítico

fundamentais para definir seu campo de ação discursivamente velado pelo vazio de
palavras como "liberdade", "segurança", "saúde", "progresso". Na biopolítica, tudo é
justificado pela preservação da vida, até mesmo matar por ela. Como sabemos, a
pandemia desvelou as várias desigualdades presentes em nossa sociedade. Enquanto o
menino da zona sul fica isolado em sua casa de praia, as vidas das favelas estão
vulneráveis, dividindo o mesmo cômodo com pai, tia, avó, mãe, irmã. Isso evidencia as
práticas do biopoder, o poder sobre a vida: "fazer viver e deixar morrer", mas também
"fazer morrer", na medida em que o Estado declara quem são seus inimigos e os mata
através do racismo.

Os conceitos de necropolítica e necropoder de Achille Mbembe são


fundamentais para entender esse processo. Se a biopolítica se encarrega do controle da
sociedade, a necropolítica faz morrer os inimigos do “progresso”. Para Mbembe (2016),
a soberania está inteiramente fundada no poder de decidir sobre a morte: quem deve
viver e quem deve morrer. A morte não é exceção à regra política, ela se torna a
própria regra. Com isso, a política está implementada no trabalho de morte que, para
matar, incessantemente produz ou reproduz estados de sítio, de exceção, e fabrica
ficcionalmente o inimigo. O Estado brasileiro se utiliza inteiramente do racismo para
tal. Ele criou seu inimigo ficcional: os africanos escravizados e sua descendência –
principalmente, os jovens negros.

No Brasil Colônia financiava-se o tráfico negreiro, na República Federativa do


Brasil se financia uma política de terror que só recai sobre os moradores das favelas.
Estas que abrigam grande parte da população que resistiram ao longo dos anos à
própria sorte e apesar do Estado que lhes negou casa, comida, saúde e educação. As
favelas são verdadeiros espaços onde a lei é suspensa e qualquer um que tenha uma
arma tem o direito soberano de matar. Para matar, o Estado brasileiro tem apontado
com os revólveres de seus policiais para os negros e pobres moradores das favelas,
lugares onde o poder soberano suspende a lei sob o slogan do “Combate às Drogas” em
que se mata indistintamente. Ainda assim, com a quarentena decretada pelos
municípios, o número de assassinatos nas favelas brasileiras (ocasionadas pela polícia
ou não) continuou subindo.3 Mostrando que mesmo diante dos efeitos mortíferos
desse vírus, a máquina de guerra do Estado continua a funcionar a todo vapor.

Se a bala ainda não alcançou os corpos de certos moradores, a falta ou a


precariedade do saneamento básico, os acessos negados ou limitado ao sistema de
saúde estabelecem condição para morte. Ou, condição para que uma doença viral possa
se estabelecer nesses locais. Se os surtos de dengue ou outras doenças virais demoram
a cumprir com seu papel de eliminar essas vidas, a covid-19 faz isso mais rápido. Mais
de 67% dos que dependem exclusivamente do Sistema Único de Saúde (SUS) são

3 Cf o “Monitor da Violência”, publicado no Portal G1 <https://g1.globo.com/monitor-da-violencia/


noticia/2020/05/25/mesmo-com-pandemia-do-coronavirus-brasil-tem-alta-de-11percent-no-numero-
de-assassinatos-em-marco.ghtml>, o índice de homicídios subiu 11% em relação ao mesmo período do
ano passado. Acesso em julho de 2020.

Anãnsi: Revista de Filosofia, Salvador, v. 1, n. 1, 2020. 147


João Vitor dos Santos Cruz e Leonardo Rodrigues Almeida

negros, sendo que a população negra do Brasil não passa dos 57% (Pnad-IBGE, 2019).
Isso reflete na discrepância de um sistema de exclusão e na precarização do serviço
público de saúde impetrado por anos pelas políticas estatais brasileiras.

Até aqui, fizemos um recorte racial e de classe, mas é necessário também


demarcar gênero. Se para grupos privilegiados o decreto de se manter em casa é viável
e possível, para muitas mulheres esse tem sido o pior lugar do mundo. A violência
doméstica cresceu exponencialmente4 e era de se esperar, tendo em vista a confluência
dos discursos legitimadores das práticas machistas que corroboram para a
normalização da hierarquia de gênero. Dessa maneira, a soma entre a negligência do
poder público, o risco da contaminação e a violência doméstica torna os corpos
femininos ainda mais vulneráveis. Sobretudo a violência contra mulheres trans e
travestis, cujos números de assassinatos, mesmo em meio à quarentena, não pararam
de subir5. Aqui também o poder atua para subjugar os corpos, no caso, os corpos
femininos.

Os três poderes aqui apresentados (disciplinar, biopolítico e necropolítico) são


exercidos através da recíproca relação entre saber e poder, ou seja, é necessário
levantar dados - tanto dos indivíduos quanto da população - para que esses
mecanismos funcionem. Não à toa, os dados ganham notoriedade sem precedentes na
era da informação. A partir de que os governos são exercidos? Saberes. No disciplinar,
para docilizar e fabricar sujeitos; no biopolítico, para controlar a população; e no
necropolítico, para produzir o inimigo ficcional do governo. A quarentena atual,
característica da sociedade de controle, coaduna tais formas de poder: elas
simultaneamente docilizam pela higienização, controlam pelo medo da morte e matam
através da política de terror. Quem precisa das teletelas de George Orwell quando
carregam smartphones nas mãos?

Referências

FOUCAULT, Michel. Segurança, Território, População. Tradução: Eduardo Brandão.


São Paulo: Martins Fontes, 2008.

FOUCAULT, Michel. Microfísica do Poder. Org. e trad. Roberto Machado. 4ª Ed. Rio de
Janeiro: Paz e Terra, 2016.

FOUCAULT, Michel.. Vigiar e Punir: nascimento da prisão. Tradução: Raquel


Ramalhete. Petrópolis: Vozes, 1987.

4 Em São Paulo, maior cidade do país, teve um aumento de 30% em maio. Cf <https://g1.globo.com/sp/
sao-paulo/noticia/2020/04/13/casos-de-violencia-contra-mulher-aumentam-30percent-durante-a-
quarentena-em-sp-diz-mp.ghtml>, acesso em julho de 2020.
5 Cf. o portal O Globo o número de assassinatos contra mulheres trans e travestis cresceram 13%

durante a pandemia <https://oglobo.globo.com/celina/assassinatos-de-mulheres-trans-travestis-sobem


-13-durante-isolamento-social-diz-pesquisa-24411415>, acesso em julho de 2020.

Anãnsi: Revista de Filosofia, Salvador, v. 1, n. 1, 2020. 148


BRASIL VIRAL: Panóptico-Bionecropolítico

MBEMBE, Achille. Necropolítica. Tradução: Renata Santini. 2016. Disponível online em


<https://revistas.ufrj.br/index.php/ae/article/view/8993/7169>.

ORWELL, George. 1984. Tradução: Alexandre Hubner, Heloisa Jahn. São Paulo:
Companhia das Letras, 2009.

Recebido em: 10 de jul. 2020


Aceito em: 25 de ago. 2020

Anãnsi: Revista de Filosofia, Salvador, v. 1, n. 1, 2020. 149


Universidade do Estado da Bahia
Departamento de Educação – Campus I
Anãnsi: Revista de Filosofia, Salvador, v. 1, n.1, 2020

Eudaimonia e Neltiliztli: a concepção de boa vida em


Aristóteles e na Filosofia Asteca 1
Lynn Sebastian Purcell
Tradução: Flávio Rocha de Deus 2

Apresentação

É sempre um deleite para um autor encontrar sua escrita tão bem traduzida em
outro idioma. Nos quase cinco anos que se passaram desde que escrevi este artigo, no
início de 2016, a discussão filosófica no mundo anglófono se desenvolveu. Desde se os
Nahuas tinham uma filosofia ética para algumas de suas para uma discussão em que o
que está em jogo agora diz respeito às suas características. Estou feliz em ver esta
mudança seguir na esteira do meu trabalho. A discussão também ultrapassou a falta de
interesse na tradução filosófica de termos para análises mais sofisticadas. É
reconfortante ver também este avanço. Além disso, não creio que um trabalho mais
recente desafie nenhuma das reivindicações centrais feitas aqui neste trabalho.

Em resposta, eu modificaria apenas algumas traduções para evitar algumas


disputas acadêmicas. A mais importante entre elas é a tradução de "nelli" como
"enraizado". Embora eu continue a pensar que existem boas razões para ligar "nelli"
(verdade) a "nelhuatl" (uma raiz), o argumento que desenvolvo aqui não precisa desta
conexão para fazer suas considerações. Em resumo, enquanto León-Portilla segue Remi
Siméon na ligação dos termos, R. Joe Campbell (em correspondência por e-mail) tem se
perguntado sobre a força da conexão. Os problemas são duplos. Com relação à conexão
morfêmica, a raiz nominal de "nelli", nel-, talvez relacionada ao "nel-huatl", mas não
está completamente claro como. Com relação à semântica em jogo, seria útil que nelli
não só apontasse para nelhuatl, mas que nelhuatl fosse atestado em usos que se
assemelhassem mais à verdade, ou seja, apontados para nelli. Estas reservas, sejam elas
consideradas independentemente ou em conjunto, não provam ser uma refutação

1 “Eudaimonia and Neltiliztli: Aristotle and the Aztecs on the Good Life” Artigo originalmente publicado
na Revista da The American Philosophical Association: Hispanic/Latino Issues in Philosophy, Vol. 16, no.
2, Spring 2017. Vencedor do Prêmio APA 2016 em Pensamento Latino-Americano. As versões deste
ensaio foram apresentadas na conferência “Trans-American Experience” na University of Oregon em
Eugene (2015) e na conferência “Latinx Philosophy” na Columbia University em Nova York (2016).
2 Graduando em Filosofia pela Universidade do Estado da Bahia.
Lynn Sebastian Purcell

incontestável da conexão, e isto explica em parte porque não me sinto incomodado por
elas.

Apesar disso, meu argumento simplesmente não precisa entrar nesta disputa
filológica para defender sua causa. O assunto filosófico em jogo é se os Nahuas
entendiam a boa vida como um fim superior e se as virtudes eram necessárias para
alcançá-la. Fico feliz em render "nelli" como "verdade", e "neltiliztli" como "veracidade",
uma vez que estas mudanças de tradução não suportam a tese filosófica em jogo. Pode-
se dizer que os Nahuas procuraram levar uma vida verdadeira, em vez de uma vida
enraizada, e nada de importante muda sobre suas reivindicações éticas.

Mesmo admitindo este ponto, porém, acho que posso manter a relação entre a
boa vida e o enraizamento. A razão é que os Nahuas muitas vezes empregaram
metáforas amplas para indicar o que eles tinham em mente por um conceito. Esta é,
naturalmente, a ideia básica em ação no uso de difrasismos, mas este é apenas um
truque literário que eles usaram para este fim. Na constelação mais ampla em ação
sobre a boa vida, encontra-se amplo apoio para a contenção do enraizamento.

A primeira delas, claramente, é que o problema básico da existência no


tlalticpac, a terra, é que escorregamos (FC 6.41, 228). O remédio para este problema
seria encontrar uma maneira de não cair. O cultivo de raízes na terra é uma metáfora
consistente neste contexto.

Em segundo lugar, encontra-se no huehuetlatolli gravado no Codex Florentine


um esboço de um ser humano ideal. O discurso é um discurso que o rei recém-
nomeado entrega a seus novos súditos, e os admoesta sobre como viver uma boa vida.
Falando primeiro do homem ideal, que depois repete em sua discussão sobre a mulher
ideal, ele diz "E ele é venerado tanto pelo céu quanto pelo chão, na verdade ele é um
defensor e sustentador". Ele se torna o ceiba, o ahuehuete, ao lado e ao lado do qual as
pessoas se refugiam" (FC 6.14, 73). Se examinarmos as árvores, mencionadas, o que é
notável nelas não é apenas seu enorme tamanho, mas a enorme estrutura radicular que
as sustenta. Elas podem então dar abrigo a outros, porque criaram raízes firmemente.

Finalmente, no Huehuehtlahtolli, que Andrés de Olmos registrou apenas alguns


anos após os primeiros esforços de Sahagún, pode-se ler a admoestação de um pai a
seu filho a respeito da boa vida. Lá ele lhe diz que se ele leva uma vida de excelência
(qualli, yectli) então é "a partir daí que você vai beber, comer e vestir; por isso você vai
ficar de pé (yc tihcaz)" (H 25, 300). Caso contrário, o pai continua, "é com dificuldade
que se vive na terra (tlalticpac)" (H 26, 300). Em suma, é por excelência, por virtude,
que se vive sobre a terra, que se pode ficar de pé. Sugere-se novamente um sentido de
enraizamento.

Mesmo sem a conexão lingüística entre "nelli" e "nelhuatl", então, a constelação


metafórica mais ampla que o Nahuas usava para discutir a boa vida sugere que esta
vida não é apenas uma vida verdadeira, mas especialmente uma vida enraizada.

Anãnsi: Revista de Filosofia, Salvador, v. 1, n. 1, 2020. 151


Eudaimonia e Neltiliztli: a concepção de boa vida para Aristóteles e os Astecas

Além deste assunto, espero que os estudiosos de diversas áreas continuem a se


juntar ao grupo crescente de nós que traçamos um caminho para recuperar a filosofia
dos povos nativo-americanos. Precisamos saber como as visões pareciam em outros
lugares da América, tanto para nossa maior compreensão, como para que possamos
levar uma vida melhor. Ainda há muito trabalho a ser feito.

Estou imensamente grato ao colega Flávio Deus por sua tradução. Como passei a
maior parte da minha vida entre idiomas, entendo muito bem o trabalho envolvido.

Prof. Lynn Sebastian Purcell, PhD.


Department of Philosophy, State University of New York at Cortland
New York, Agosto de 2020

1. Eudaimonia e Neltiliztli

Como devemos viver? Qual a melhor forma de viver? Esse viver implica em
obrigações para com as outras pessoas? Se sim, quais? Esses são, brevemente, os
questionamentos centrais da filosofia ética. Os dois primeiros, acerca do melhor tipo de
vida, abordam o tema do bem. Estes últimos, relativos às nossas obrigações para com
os outros, abordam o direito. Entre muitos dos filósofos da antiguidade grega clássica,
incluindo Platão e Aristóteles, as questões relativas ao bem foram entendidas como
conceitualmente anteriores às do direito. Eles sustentaram, em suma, que era preciso
saber que tipo de vida se procura viver antes que de levantar questões sobre que tipos
de obrigações deveriam seguir. Para eles a melhor vida era uma vida feliz e próspera -
uma vida de eudaimonia3. Além disso, consideravam a condução hábil da vida como
virtuosa, e por isso essa ética tem sido chamada de ética eudaemonista da virtude.

O que o presente ensaio argumenta é que os astecas pré-colombianos, ou mais


especificamente os Nahuas, as pessoas que falaram Nahuatl na Mesoamérica pré-
colombiana, tinham uma visão sobre a filosofia ética semelhante à de Aristóteles. Eles
sustentaram uma concepção da boa vida, que eles chamaram de neltiliztli, e
sustentaram que a compreensão de seu caráter era conceitualmente anterior a
perguntas sobre a retidão. O que esta tese sugere é que eles também sustentavam uma
forma de ética da virtude, embora diferente da eudaimonista que Aristóteles e Platão
defendiam. Como neltiliztli significa enraizamento, podemos chamá-la de ética
enraizada das virtudes.

Uma consequência dessa tese é que ela articula um entendimento alternativo da


boa vida que, embora seja semelhante à eudaimonia de Aristóteles na maneira como
guia nosso pensamento sobre a ação correta, levanta um novo problema para a filosofia
ética: o quão intimamente ligado está o prazer (hēdonē) com a vida boa? Aqui há uma

3 Na Ética a Nicômaco, Aristóteles (1934) identifica eudaimonia, "felicidade", como o maior dos objetivos.

Anãnsi: Revista de Filosofia, Salvador, v. 1, n. 1, 2020. 152


Lynn Sebastian Purcell

semelhança com o problema ético fundamental da antiguidade clássica, que


questionava se a virtude era suficiente para a felicidade (eudaimonia). No entanto, o
foco do problema atual não se concentra na relação da virtude com a vida boa, mas
apenas no que conta como vida boa em primeiro lugar. Pode-se realmente ter uma
concepção da vida boa que não tenha nenhuma relação interna com estados
emocionais elevados ou positivos (hēdonē)? Os Nahuas nos fazem acreditar que
podemos e devemos, pelo menos para qualquer vida levada no que eles chamavam de
nossa terra "escorregadia".4

Uma segunda consequência é que este ensaio avança no preenchimento de uma


lacuna na filosofia comparada. Os Nahuas estão finalmente começando a receber
atenção filosófica entre os estudiosos anglófonos, mas este trabalho até agora tendeu a
se concentrar em suas visões metafísicas 5. Isso ocorre até mesmo entre os estudiosos
de língua espanhola, que foram melhores em abordar filosoficamente os Nahuas6. O
presente ensaio, então, move-se de certa forma no desenvolvimento de nossa
compreensão da filosofia de Nahua, articulando sua concepção da boa vida.7 Como o
assunto em questão é bastante complicado, começo com as características de
eudaimonia e neltiliztli como o fim mais elevado.

2. A melhor finalidade
Existem duas características principais da boa vida que possui um paralelo
razoável no pensamento asteca e aristotélico, a saber: que a boa vida é a que possui a
ação do melhor fim e que esse melhor fim pode ser explicado por sua relação com a
condição humana. Neste último ponto, no entanto, Aristóteles difere um pouco da
abordagem asteca, pois relaciona a eudaimonia à função humana (ergon), enquanto os
astecas traçam seu raciocínio a partir de uma caracterização mais ampla de como é a
vida em nossa terra, no que eles chamavam de tlalticpac.

4 O padrão de citação e referência das notas de rodapé foram modificados para se adequar ao modelo
mais utilizado no Brasil "Sobrenome do autor (Ano)" e as especificações completas da obra ao final nas
referências no fim do trabalho. (N.T.)
5 Penso especialmente na Filosofia Asteca de Maffie (2014), o autor em seu verbete "Filosofia asteca"

para a Enciclopédia na Internet, <iep.utm.edu/aztec/>, forneceu o que é provavelmente o panorama


mais filosófico da ética Asteca. Seu objetivo lá, no entanto, era muito mais amplo.
6 A esse respeito, lembrei-me especialmente da obra de Miguel León-Portilla (2001). O presente ensaio é

muito grato a algumas das observações que León-Portilla faz neste livro. Também lucrei muito com suas
considerações no Pensamento e Cultura Asteca: Um Estudo do Antigo Nahuatl. (LÉON-PORTILLA, 1963).
7 É claro que antropólogos e historiadores da arte há muito tempo se interessam pela ética Nahuatl, mas

sua preocupação é mais com o que poderia ser chamado de análise de costumes culturais. Duas peças em
inglês que foram particularmente influentes para o presente ensaio foram as contribuições de Louise M.
Burkhart (1989) e Pete Sigal (2011). No primeiro caso, aprende-se a ser cauteloso com as influências e
interpolações castelhanas, mesmo na construção do Códice Florentino de Bernardino de Sahagún, no
qual grande parte do presente ensaio se baseia. Neste último, reconhece-se a abordagem bastante
tendenciosa, principalmente, da ética sexual que se encontra apresentada em quase todos os trabalhos
registrados, incluindo o Codex Florentino. López (1984) também se mostrou útil para entender a visão
geral do mundo de Nahua, embora as implicações de seu estudo sejam mais imediatas, penso eu, para a
metafísica de Nahua.

Anãnsi: Revista de Filosofia, Salvador, v. 1, n. 1, 2020. 153


Eudaimonia e Neltiliztli: a concepção de boa vida para Aristóteles e os Astecas

Aristóteles no inicio da Ética a Nicômaco defende o bem como a mais adequada


finalidade de nossas ações, da seguinte maneira:
Admite-se geralmente que toda arte e toda investigação, assim como toda
ação [praxis] e toda escolha [proairēsis], tem em mira um bem qualquer; e por
isso foi dito, com muito acerto que o bem é aquilo que a todas as coisas
tendem. Mas observa-se entre os fins uma certa diferença: alguns são
atividades, outros são produtos distintos das atividades que os produzem. 8 9

A qualidade do raciocínio em jogo nesta passagem tem sido a fonte de


controvérsia acadêmica. Só porque toda investigação, ação e decisão visa a algum bem,
não se segue que o bem seja aquilo para o qual todas as coisas visam. Seria um pouco
como argumentar que todas as estradas levam a algum lugar, então todas as estradas
levam ao mesmo lugar. O que Aristóteles pretendia, então, ocupa estudiosos há algum
tempo.

No que diz respeito à controvérsia, com brevidade, parece que dois pontos
podem nos esclarecer o que Aristóteles tinha em mente. Primeiro, lembre-se de que o
método de Aristóteles para a ética é encontrar “uma visão [que] seja a mais harmônica
entre os fenômenos”10. Para fazer isso, ele parte de um pedaço de sabedoria
respeitável, um endoxa11, e depois procede à provocação. Através de possíveis
implicações para chegar a uma afirmação melhor12. Nesse caso, o endoxa é a afirmação:
"portanto, os homens se expressaram bem em declarar que o bem é aquele para o qual
todas as coisas visam". O que o resto da passagem deve fazer, mesmo que não esteja
totalmente completo, é preencher a lacuna entre a primeira observação, como
premissa, e o endoxa, como conclusão. Em resumo, o argumento que ele desenvolve é
executado assim:
[1] Se os bens de cada um (inquérito, ação etc.) são ordenados
hierarquicamente (e são),
[2] E se os bens não chegarem ao infinito (o que seria absurdo),
[3] Depois, há um bem maior.

A conclusão, [3], é o bem maior para o qual "todas" as coisas apontam na linha
de abertura. 13

Como Aristóteles, um pouco mais tarde, identifica o bem maior com a


eudaimonia, o que o argumento inicial sugere é que a boa vida é esse sentimento de
felicidade que surge quando se considera a vida como um todo, quando se considera a

8 Ética a Nicômaco, 1094a.


9
Todos as citações referentes a Ética a Nicômaco que aparecem nesta tradução foram retiradas da
versão brasileira traduzida por Leonel Vallandro e Gerd Bornheim, retirado da seleção de textos de
Aristóteles de José Américo Pessanha publicados pela Editora Abril em 1984. (N.T.)
10 Ética a Nicômaco, 1235b.

11 Ética a Nicômaco, 1145b.

12 Kraut (2006) tem uma excelente revisão e avaliação do método de ética de Aristóteles.

13 Tecnicamente, não pode ser o objetivo de todas as coisas, pois as coisas inanimadas não visam nada. O

sentido parece estar restrito aos agentes humanos. Esta parte do argumento é retirada (e desenvolvida)
do meu ensaio “Bens naturais e o desafio da normatividade: felicidade entre culturas” (PURCELL, 2013).

Anãnsi: Revista de Filosofia, Salvador, v. 1, n. 1, 2020. 154


Lynn Sebastian Purcell

relação ordenada entre seus objetivos e hierarquiza-os.14 Embora vários comentadores


tenham notado que Aristóteles não completa esse argumento nas passagens iniciais da
Ética a Nicômaco, eles tendem a concordar que esse é o tipo de argumento que ele
pretende fazer15. Se for assim, o dificuldade real não é a qualidade da inferência das
premissas até a conclusão, mas a solidez de [1]. Não está claro que todos os nossos
produtos sejam ordenados hierarquicamente. Aristóteles argumenta por analogia com
as ciências e, embora seja verdade que elas podem ser hierarquizadas, os objetivos
humanos individuais geralmente não são. Aristóteles até reconhece isso ao explicar os
diferentes tipos de prazeres que são procurados.16 Acontece, então, que algum tipo de
habilidade será necessária para gerenciar essa relação - e esse é, em resumo, o objetivo
das virtudes: essas excelentes qualidades de caráter que permitem que uma pessoa
viva bem sua vida.

Ainda assim, há discordância sobre qual deveria ser esse objetivo mais elevado
e, no primeiro livro da Ética a Nicômaco, Aristóteles propõe resolver o assunto
apelando para a atividade ou função apropriada (ergon) dos seres humanos. Ele
escreve:
Ora, se a função do homem é uma atividade da alma que segue ou que implica
um princípio racional, e se dizemos que "um tal-e-tal" e "um bom tal-e-tal"
tem uma função que é a mesma em espécie (por exemplo, um tocador de lira e
um bom tocador de lira, e assim em todos os casos, sem maiores
discriminações [...] o bem do homem nos aparece como uma atividade da alma
em consonância com a virtude, e, se há mais de uma virtude, com a melhor e
mais completa.17

Dado o modo como Aristóteles carrega premissas para seu argumento,


principalmente marcado por elipses, não é de surpreender que os motivos de sua
afirmação também tenham sido objeto de estudos filosóficos bastante intensos. O
núcleo de seu raciocínio, sem abordar grande parte do pano de fundo metafísico por
trás dele, parece ativar a tese de que ser é ser bom. Expressado de maneira diferente,
ele sustenta que, digamos, para ser um tocador de lira, ou ser uma bicicleta, ou ser
qualquer outra coisa, deve-se ser um bom tocador de lira, uma boa bicicleta, ou um
bom qualquer outra coisa.18 Por exemplo, se minha bicicleta fosse danificada, de modo
que sua roda fosse levemente empenada, ela rodaria mal. Como resultado, seria uma
bicicleta pior. Se a bicicleta perdesse a corrente, ela se pareceria com algo mais
próximo de uma scooter. Se perdesse completamente as rodas, deixaria de ser uma
bicicleta e seria apenas um quadro de bicicleta. O que vale para bicicletas, outros

14 Ética a Nicômaco, 1095a.


15 Reeve (2012), por exemplo, especificamente no capítulo sete de sua obra, tem uma análise linha por
linha das passagens de abertura da Ética a Nicômaco. e chega a essa conclusão. Russell (2012) chega a
uma conclusão semelhante.
16 Ética a Nicômaco, 1099a.

17 Ética a Nicômaco, 1098a.

18 Eu explorei esse cenário metafísico em detalhes em meu “Bem Natural e o Desafio da Normatividade:

Felicidade entre Culturas”. (PURCELL, 2013)

Anãnsi: Revista de Filosofia, Salvador, v. 1, n. 1, 2020. 155


Eudaimonia e Neltiliztli: a concepção de boa vida para Aristóteles e os Astecas

objetos e práticas também vale para os seres humanos. A função humana é fazer uso da
razão, entendida em um sentido amplo (isto é, como logos). As atividades, na medida
em que são adequadamente humanas, fazem uso do logos. Ser um bom humano, pelo
mesmo raciocínio, é assim quem leva uma vida por meio de logos, ou pelo menos não
sem ele. Na medida em que alguém falha em usar o logos, leva uma vida humana ruim
ou cruel.

Em suma, a boa vida humana é aquela que exibe excelências ou virtudes


humanas. O ruim é o que exibe vícios humanos. Uma vez que esse entendimento
articula (parcialmente) o que significa levar uma vida humana, ele estabelece um
conjunto básico de condições para nosso objetivo humano mais elevado, a eudaimonia.
Somos obrigados a persegui-la, se devermos procurar levar uma vida humana. Esse
argumento resolve a disputa referente à felicidade, estabelecendo condições objetivas
para todas as atividades humanas. Finalmente, e para conectar esses pontos a um dos
argumentos de Aristóteles no livro X da Ética a Nicômaco: é apenas buscando esse tipo
de vida que podemos desfrutar dos prazeres humanos.

Para os Nahuas, assim como para Aristóteles, é a condição humana que limita e
permite que se busque o melhor tipo de vida. Porém, ao contrário de Aristóteles, para
os Nahuas, é o caráter de nossas circunstâncias como seres humanos na Terra que
determina principalmente essa condição, não uma propriedade do que somos como
seres animais, como logos. Para os Nahuas, nossas vidas são levadas na Terra, em
Tlalticpac. Este lugar tem três características pertinentes que definem as condições
para o tipo de vida que podemos esperar levar. É, antes de tudo, um lugar escorregadio.
Este ponto é amplamente registrado nos textos Nahua existentes. Por exemplo, o sexto
volume do Códice Florentino tem um catálogo de ditados comuns. Leia a seguir:
Escorregadia, lisa é a terra.
É o mencionado.
Talvez uma vez alguém tenha tido uma vida boa;
depois caiu em algo errado,
como se tivesse escorregado na lama.19

O "mencionado" é o ditado listado logo acima no códice, que diz:


Por que isso? Olha bem para ti mesmo, ó peixe de ouro.
Dizem que nesta época: a algum
tempo atrás vivia uma vida boa [e] depois
caíra [em outra] - talvez tomasse
um amante, ou derrubou alguém
que adoeceu ou até morreu;
e por isso ele foi preso:
então, naquele momento, é dito: “por que isso?
Olha bem para ti mesmo, peixe de ouro.20

19 Códice Florentino, vol. 6, p. 288, tradução modificada pelo autor.


20 Códice Florentino, vol. 6, p. 228.

Anãnsi: Revista de Filosofia, Salvador, v. 1, n. 1, 2020. 156


Lynn Sebastian Purcell

Algumas observações estão em ordem. A primeira é que o leque de coisas que


são escorregadias (tlaalahui) inclui os tipos de ações que normalmente podemos
incluir na ética, porque elas estão sob nossa vontade ou não, pois temos pouco ou
nenhum controle sobre elas. Diríamos que tomar um amante é uma escolha, enquanto
derrubar alguém, tropeçando, por exemplo, é um resultado ruim, mas perdoável por
estar fora de nosso controle. No entanto, essas são descrições de nossa condição na
Terra, e seu argumento parece ser que, independentemente da escolha individual, este
é exatamente o tipo de lugar onde podemos esperar esses lapsos. Como resultado,
podemos ter que ir para a cadeia, de modo que o apelo à condição de tlalticpac não seja
uma desculpa, mas uma descrição do caráter geral de nossas vidas na terra. Um
segundo ponto é que a condição escorregadia de tlalticpac, portanto, não é algo que se
possa evitar raciocinando bem. Não se escapa de uma hamartia aristotélica, um erro no
silogismo prático do raciocínio de alguém.21 Em vez disso, esse é apenas o ocorrido de
um lugar em que é propenso a escorregar, onde ocorrerão lapsos de julgamento. O
ideal para a vida de alguém, como resultado (e terceiro), não pode ser aquele que não
inclui erros nem lapsos de julgamento. A pureza neste lugar não pode ser a meta pela
qual lutamos em via recta. Em vez disso, deve ser o tipo de ideal que reconhece que
esses deslizamentos ocorrem e, no entanto, os gerencia da melhor maneira possível.

Uma segunda característica de nossa condição humana, a vida em tlalticpac, é


que ela é efêmera e transitória. Novamente, esse ponto de vista é bem atestado nos
textos existentes, mas ninguém é um porta-voz melhor nesse ponto do que
Nezahualcoyotl. Em uma obra de filosofia poética intitulada “Ma zan moquetzacan,
nicnihuan! / Meus amigos, levantem-se!” ele escreve o seguinte (esta é a peça na sua
totalidade).
Meus amigos. Levantem-se!
Os príncipes ficaram indigentes.
Eu sou Nezahualcoyotl.
Eu sou um cantor,
cabeça de arara.
Peguem suas flores e seus leques.
Com eles saiam para dançar!
Você é meu filho,
você é Yoyontzin.
Pegue o seu chocolate,
flor do cacaueiro,
você pode beber tudo!
Faça dança,
faça música!
Aqui não é a nossa casa,
não moramos aqui,
você também terá que ir embora.22

21 Para um desenvolvimento mais completo do silogismo prático de Aristóteles, consulte O silogismo


prático de Gottleib (2006)
22 Pode-se encontrar a transcrição de Nahuatl nas Baladas dos Senhores da Nova Espanha em Bierhorst

(2009), Entretanto, a tradução citada é de León-Portilla (1992) em Quinze poetas do mundo Asteca. O

Anãnsi: Revista de Filosofia, Salvador, v. 1, n. 1, 2020. 157


Eudaimonia e Neltiliztli: a concepção de boa vida para Aristóteles e os Astecas

O caráter desta peça não pode deixar de impressionar alguém, como em 1


Coríntios 15:32: “Vamos comer e beber, pois amanhã morreremos”. Ainda assim, o
contexto é muito mais amplo no pensamento de Nahua. Para Nezahualcoyotl, de fato,
esse é o problema básico de nossa existência (e não apenas o escorregadio de nossas
vidas). Pois não apenas é verdade que nossas vidas são efêmeras, mas também é
verdade que mesmo a estrutura do cosmos é de caráter efêmero. A quinta era, aquela
com sol de movimento, é aquela que, como as quatro anteriores, passará algum dia.

Essas considerações levam a um terceiro aspecto da vida em tlalticpac,fato de


que ela está longe de ser um lugar plenamente feliz. Como parte de um poema extenso,
Nezahualcoyotl escreve:
É verdade que somos felizes,
que vivemos na terra?
Não é certo que vivemos
e viemos à Terra para sermos felizes.
Estamos todos com muita falta.
Existe alguém que não sofre
aqui, próximo as pessoas? 23

Para o próprio trabalho de Nezahualcoyotl, essas considerações o levaram a


buscar o único tipo de estabilidade e eternidade que se pode esperar, a saber, o que se
encontra na reflexão filosófica-poética, na composição de "flor e música". Para a
perspectiva ética mais ampla de Nahua (mais abaixo), essas reflexões fornecem a razão
pela qual a busca pela felicidade não é algo que eles pensavam ser um objetivo
adequado para o plano de vida de alguém. O caráter transitório e escorregadio da vida
em tlalticpac tornaria elevados os estados emocionais, ou seja, a "felicidade" é um
objetivo imprudente.

O objetivo geral da ética Nahua, então, não é a felicidade, mas alcançar o


enraizamento (neltilitztli) no tlalticpac. Para apoiar a ideia textualmente, será útil ter
em mente um ponto linguístico. Se alguém quiser formar uma nova palavra em
Nahuatl, o idioma está bem equipado com a capacidade de composição, da mesma
forma que o grego antigo era. No entanto, pode-se também usar o que Angel Maria
Garibay chamou de “difrasismo”, que é a expressão de uma ideia em duas palavras.24
Exemplos em inglês podem ser “with blood and fire” (com sangue e fogo) ou “against
wind and tide.” (contra o vento e a maré). Esse tipo de expressão era extremamente
comum em Nahuatl, e é preciso ter cuidado para captar o significado metafórico no

texto de León-Portilla também inclui o Nahuatl para acompanhar cada tradução. A interpretação de
Bierhorst da cultura asteca é bastante contestada, e suas traduções tendenciosamente apoiam sua
posição, de modo que evitei inteiramente usar suas traduções e, quando necessário, traduzi os textos
pessoalmente. Para uma revisão das dificuldades da hipótese das "canções fantasmas" de Bierhorst,
consulte a resposta de León-Portilla na "Introdução" de sua obra Quinze poetas do mundo Asteca (LEÓN,
PORTILLA, 1992), especialmente as páginas 41-44.
23 Para a transcrição de Nahuatl, veja Ballads of the Lords of New Spain, p. 21 r. - 22 v. A tradução é dos

Fifteen Poets of the Aztec World, p. 91.


24 Garibay (1981, p. 112).

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trabalho. Pois, se tomado literalmente, o significado de um difrasismo está quase


totalmente perdido. Uma das mais comuns em um contexto filosófico é a frase in xochi
in cuicatl, que, traduzida literalmente, significa "com flor e música", mas,
metaforicamente, significa algo como "poesia".

Voltando à discussão sobre o enraizamento, gostaria de examinar o pequeno


texto “Flower and Song / Xochi Cuicatl”, encontrado nos Cantares Mexicanos, que foi
composto e recitado antes de uma reunião de sábios e poetas na casa de
Tecayehautzin. A questão em jogo na história é como obter algum tipo de permanência.
Dizem que Lorde Ayocuan conhece o Doador da Vida, um dos nomes do único ser da
existência, Teotl. Invocando e lembrando o senhor, a sugestão da peça é que é criando
“flor e música” que se encontra essa permanência. Lemos a percepção do autor de que
essa criação poética deve ser a resposta para a transitoriedade da vida em tlalticpac
nas seguintes linhas:
Então é assim que esse senhor, o glorioso,
vem criando-os. Sim, com plumas
como contas de pulseira, ele agrada ao único ser.
É isso que agrada ao Doador da Vida?
Essa é a única verdade [nelli] na terra [tlalticpac]?25

Assim, o autor chega à conclusão de que, ao escrever um canto das flores


(poesia), especialmente o tipo que aborda os maiores problemas de nossa existência
humana, nos torna mais capazes de encontrar a "verdade" na terra escorregadia. 26

O que importa para fins éticos é obscurecido na tradução. A frase "aço tle nelli in
tlalticpac" é melhor traduzida como "Essa é a única verdade na terra?" Mas a palavra
nelli está relacionada a nelhuáyotl, que é uma raiz ou base.27 A ideia metafórica por trás
do entendimento dos Nahua de “verdade”, então, é que é uma questão de estar
enraizada como uma árvore, em vez de deslizar sobre ela: nossa terra escorregadia. O
objetivo, a solução para nossos problemas humanos, então, é encontrar raízes, que
como um substantivo abstrato seriam expressas em Nahuatl como neltiliztli.

Um ponto importante aqui é que o contexto do poema deixa claro que é preciso
encontrar raízes no único ser da existência, em teotl. Assim como no argumento da
função de Aristóteles, há igualmente um pano de fundo metafísico no relato de Nahua
sobre a boa vida. Os Nahuas eram de certa forma panteístas e consideravam nosso
mundo uma expressão do único ser fundamental da existência. Uma vida enraizada,
então, não é apenas nosso objetivo mais elevado, mas carrega uma força normativa

25 Pode-se encontrar o Nahuatl original em Cantares Mexicanos: Canções dos Astecas (BIERHORST, 1985).
A tradução, pelo motivo acima mencionado, é substancialmente modificada.
26 Uma implicação importante desse ponto, mas que não posso desenvolver aqui em detalhes, é que o

senso de verdade da verdade nahuatl é bastante diferente de uma teoria da verdade por
correspondência - algo que eu sempre pensei ser a posição de Aristóteles sobre a verdade. Para os
Nahuas, a pessoa não apenas conhece a verdade, mas fundamentalmente passa a viver a verdade.
27 Diccionario de lengua Nahuatl o Mexicana diz “reads: “nelhuayo adj. Provisto de raíces, que tiene

raíces. R. nelhuayotl.” (SIMÉON, 1981).

Anãnsi: Revista de Filosofia, Salvador, v. 1, n. 1, 2020. 159


Eudaimonia e Neltiliztli: a concepção de boa vida para Aristóteles e os Astecas

semelhante. Deve-se buscar o enraizamento não apenas por motivos prudenciais, mas
porque o enraizamento é a maneira pela qual alguém realmente recebe nossas
circunstâncias.

O poema filosófico "Flower and Song" fornece uma fonte de evidência para a
semelhança normativa entre Aristóteles e o entendimento Nahua acerca da boa vida.
Para evidências textuais adicionais, pode-se recorrer ao décimo volume do Códice
Florentino, que aborda "o povo" da cultura Nahua. Ali se encontram descrições de
pessoas trabalhando em funções socialmente reconhecidas. O autor do códice
Bernadino de Sahagún é responsável por perguntar quais são as boas e más formas de
cada uma, por exemplo, perguntar: O que é um bom trabalhador de penas? O que é
ruim? Portanto, não se pode dizer que os Nahuas teriam formulado explicitamente os
assuntos em termos de bons e maus. O que se pode notar é que, em suas respostas,
encontra-se um entendimento geral de como a aprovação e a desaprovação foram
atribuídas em cada caso e como eles raciocinaram sobre o que deveria ser. Ao
descrever um nobre adulto, lemos o seguinte:
O bom homem de meia idade é aquele que faz, um trabalhador [ágil, ativo,
solícito].
O mau homem de meia-idade [tlaueliloc] é preguiçoso, negligente, preguiçoso,
indolente, preguiçoso, ocioso, lânguido, um pedaço de carne [quitlatzcopic],
um pedaço de carne com dois olhos [cuitlatzcocopictli], um ladrão. 28

Declarações semelhantes são encontradas em todo o Códice para que possamos


ter certeza de que esse tipo de linguagem não é isolada. A sugestão é dupla.
Primeiramente, bons homens adultos são aqueles que desempenham bem seus deveres
e papéis, enquanto os maus são indolentes. Segundo, homens adultos maus
dificilmente se parecem com homens. Eles se tornam, antes, meros pedaços de carne.
Dito de outra forma: existem condições para levar uma vida em uma comunidade
humana e, se não as observarmos, tenderemos a não levar uma vida humana.

Para reunir todos esses pontos, pode-se escrever que Aristóteles e os astecas
sustentavam uma concepção da vida boa como aquela que é o objetivo mais alto que
alguém poderia ter ou, mais apropriadamente, viver. Eles diferiam nos motivos que
apresentavam para seus pontos de vista. O argumento de Aristóteles gira em torno de
uma tese sobre a função (ergon) do ser humano, enquanto os Nahuas sustentavam que
alguém deveria buscar o enraizamento como (i) uma resposta razoável às nossas
circunstâncias na terra e (ii) uma condição básica para liderar uma vida na
comunidade humana como parte do Teotl. O que precisa ser esclarecido agora é como
exatamente esse entendimento da boa vida pode guiar nossas ações.

3. A Virtude e a orientação de nossas ações


Para explicar como suas considerações nos orientam a ação, é preciso abordar
duas perguntas. Primeiro, a eudaimonia de Aristóteles está claramente ligada à sua

28 Códice Florentino, vol. 10, p. 11. Tradução modificada pelo autor.

Anãnsi: Revista de Filosofia, Salvador, v. 1, n. 1, 2020. 160


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discussão de excelência, mas esse vínculo estreito entre neltiliztli e excelência não foi
demonstrado pelos Nahuas. Embora o exposto acima mostre que eles tinham uma
compreensão do bem humano que sustenta essa linha de raciocínio, podemos nos
perguntar se existe uma palavra ou frase nahuatl que desempenha aproximadamente o
mesmo papel que arētē, e que esteja conectada a um relato de enraizamento? Segundo,
embora o acima exposto mostre que os Nahuas tinham uma concepção da vida boa, não
mostra que o neltiliztli funcionava da maneira exigida. Immanuel Kant e John Stuart
Mill ambos tinham concepções da vida boa, mas também não era um eticista da
virtude. Como podemos saber se o neltiliztli funciona como a eudaimonia de Aristóteles
e não como o summum bonum para Kant e Mill?

Começo com a questão da "virtude". De certa forma, o tópico é difícil devido à


abundância de termos possíveis disponíveis. Deve-se lembrar de que arētē em grego é
derivado do deus Ares, e nos tempos homéricos a palavra significava principalmente
nobreza e força no campo de batalha. Ao longo das centenas de anos seguintes de
textos gregos registrados, encontramos o termo mudando lentamente de uma
qualidade de caráter focada principalmente em atividades competitivas para uma
focada em atividades cooperativas - que promovem a vida na cidade-estado (polis).
Platão e Aristóteles, além disso, desempenharam um papel significativo nessa
mudança, adaptando intencionalmente termos comuns a seus propósitos. 29 “Virtude”
ou “excelência humana”, em suma, não surgiu da blindada cabeça de Zeus, mas foi um
conceito desenvolvido ao longo de vários séculos entre os gregos. Deve-se ter cuidado,
então, em encontrar um equivalente exato em outras culturas. Além disso, não se deve
esperar que os nahuas tenham apenas um desses termos apenas porque os filósofos
helenísticos acabaram por se estabelecer em um. Na tradição confucionista, por
exemplo, encontramos duas palavras usadas para "virtude", a saber, de e ren.30 Pode
acontecer que os nahuas tenham mais de uma. A proposta que me atrevo aqui é a de
que existe uma frase ampla para a excelência, e que pode haver outros termos mais
específicos para a excelência, porém, disponíveis de outras maneiras, assim como de é
o termo amplo para a virtude na tradição confucionista e ren termo mais específico
focado nas relações humanas. 31

29 Este tópico tem sido objeto de estudo entre os classicistas. Embora Werner Jaeger desenvolva essa
tese até certo ponto, tenho em mente o argumento paciente de Adkins (1972). A obra referenciada é
dedicada a apoiar os pontos que acabamos de expor.
30 Para detalhes sobre a tradição confucionista sobre virtudes como de e ren, consulte o primeiro

capítulo de A ética de Confúcio e Aristóteles de Jiyuan Yu (YU, 2007).


31 Seguindo Austin (1988, p. 189) outro possível entendimento seria seja o "homem reto",

tlacamelahuac. Esse termo deriva de tlacatl, que significa humano, e melauacayotl, que significa retidão
ou correção de algo. O termo, no entanto, provavelmente tinha um sentido mais específico. Costumo
considerá-lo um candidato mais próximo aos phronimos de Aristóteles. Outro possível candidato é
tlaçoyotl, que às vezes é traduzido como "excelência". No entanto, esse termo deriva de tlaçotli, que
significa valioso ou caro, e, portanto, é mais provável que seja um termo para valor inerente ou (melhor)
valor mais alto.

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Eudaimonia e Neltiliztli: a concepção de boa vida para Aristóteles e os Astecas

Para começar, em Nahuatl, como no grego, há várias palavras para o bem, o


nobre e o belo. Geralmente, o termo mais amplamente usado para “bom” é “qualli”, e eu
o indiquei entre colchetes nos textos citados acima.32 A raiz da palavra deriva do verbo
qua, que significa comer. A ideia geral indicada, então, é que algo é bom porque
assimilável, comestível de uma maneira que ajudará no florescimento de alguém. Outra
palavra comum é yectli, que é algo bom porque é reto, sem desvios. Provavelmente, a
melhor tradução para yectli é retidão. Os Nahuas também fizeram uso de um difrasismo
com essas duas palavras como componentes: in qualli in yectli, significando,
literalmente, "com bondade e retidão". Minha sugestão é que essa é a maneira nahua de
expressar "excelência". No décimo volume do Códice Florentino, por exemplo, encontra-
se uma descrição da filha “boa” que diz: ichpuchtli in iectli in qualli, em qualli ichpuchtli,
que pode ser traduzida como “a excelente filha, a boa filha”. 33

Nesta passagem, também se encontra uma conexão explícita entre a excelência,


assim entendida, e a boa vida como raiz. Como o assunto é crítico, forneço uma
tradução por palavra e comentário na tabela abaixo.

yn tecuheuh yn A filha [quem é] Esta é uma frase que indica toda a ideia de uma filha
ichpuchtli em sua relação com um falante masculino e feminino.
quiztica, intocada, Todos esses termos são difíceis de traduzir, porque o
macitica, vel perfeita, boa cristianismo já havia influenciado o significado das
palavras. No entanto, nenhum deles em Nahuatl tem
uma conexão fundamental com a compreensão cristã
da virgindade.
Nelli Enraizado Dibble e Anderson (SAHAGÚ, 1969) omitem esta
palavra na tradução, pois ela se encaixa mal na
interpretação cristianizada da descrição de Nahuatl.34
É a raiz do neltiliztli.
ichpuchtli in [quem é] a Não há quebra de sentença no Nahuatl, então a idéia
iectli in qualli, excelente filha, continua: a filha enraizada é a excelente…
in qualli a boa filha ... o bom, etc.
ichpuchtli...35

32 A seguir, pode ser útil ter em mente que Nahuatl não possui uma ortografia padrão, embora os estudos
atuais tendam a usar uma lexicografia franciscana modificada. O Códice Florentino em particular, tende a
fazer uso fora do padrão, mesmo de uma linha para a outra. Deve-se ter em mente, então, que "i" e "y"
são frequentemente substitutos, e "j" e "i" também são. No Códice, a existência de paradas glotais e
pausas de respiração é comumente indicada com um "h".
33 Códice Florentino, vol. 10, p. 2.
34 Para ser justo com Dibble e Anderson, um dos objetivos da tradução deles era manter contato com as

ideias que informavam o espanhol que Sahagún traduziu em sua transcrição original, mas sem traduzir
do espanhol para o inglês. Se Sahagún interpretou o Nahuatl de uma maneira específica, então a tarefa
deles era tornar isso conhecido em inglês. Meus objetivos neste trabalho são diferentes.
35 Códice Florentino, vol. 10, p. 2.

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Alguém aqui encontra uma descrição da filha “boa” como alguém que está
enraizado, que está levando a melhor vida possível e que é excelente ao fazê-lo. A
passagem é difícil de analisar e traduzir, porque alguma influência cristã estava
presente no momento em que foi registrada, mas indica que os Nahuas pensavam em
conectar virtude (in yectli in qualli) e enraizamento (neltiliztli). A melhor vida
disponível na Terra, em suma, é aquela que é realizada de maneira excelente.

Passo agora à questão de saber se os Nahuas entendiam a boa vida como uma
condição necessária para uma ética da virtude. Pode-se começar lembrando o que é
distinto na eudaimonia, uma vez que ela funciona para propósitos de orientação à ação.
Para os eudaimonistas em geral, a orientação para a ação segue da prioridade do bem
para a correto. Isso quer dizer que, na ordem da justificação, apela-se primeiro a uma
concepção do bem e depois se conclui o julgamento da ação correta. Um eudaemonista,
então, pode argumentar que não se deve enganar ou trapacear o outro, ou que enganar
o outro é moralmente errado porque isso o prejudica inibindo sua prosperidade. Para
um filósofo moderno que mantém a prioridade do direito ao bem, como fazem os
deontologistas kantianos, o erro moral funciona como premissa da conclusão de
alguém. Não se deve enganar outrem porque é moralmente errado, e pode-se discernir
esse erro moral recorrendo a um teste independente, como o procedimento imperativo
categórico.36

Se essa diferença na ordem da justificação é o que distingue Aristóteles de Kant


no bem, então o que distingue Aristóteles de Mill no bem? Os consequencialistas
utilitaristas também apelam para uma concepção do bem, um máximo de utilidade
média, a fim de determinar se uma ação é correta. Qual a diferença entre Aristóteles ou
o eudaemonista?

Para responder a essa pergunta, retornamos a um ponto intraduzível na


segunda linha da Ética a Nicômaco, uma vez que é aí que Aristóteles introduz uma
qualificação importante sobre o caráter do bem mais elevado como um fim. Ele
escreve: “Mas observa-se entre os fins uma certa diferença: alguns são atividades,
outros são produtos distintos das atividades que os produzem.”37 Ao escrever isso,
Aristóteles distingue dois tipos de atividades: ta erga (produções) e hai energeiai
(performances/atividades).38 As ações produtivas são as que produzem um produto
separado da ação, como o vaso de um oleiro. Ações de desempenho são aquelas que são
ações (erga) em (en) elas mesmas; o fazer constitui o que são. Eles são como uma
dança ou um solo de jazz. Importante para Aristóteles, a extremidade mais alta, a
eudaimonia, é uma performance/atividade. Isso significa que ele está pensando nisso
de uma maneira fundamentalmente diferente do que um utilitarista faria. Para

36 De todos os autores que fazem esse contraste, John Rawls (1999, 2000) é provavelmente o mais claro.
Para seu relato do procedimento imperativo categórico e sua diferença do próprio imperativo
categórico, confira sua obra História da Filosofia Moral, especialmente o capítulo dez, que da atenção ao
imperativo categórico. Ele faz o contraste entre ordens de justificação em Uma teoria da justiça.
37 Ética a Nicômaco, 1094a.

38 “ta men gar eisin energiai, ta de par’ autas erga tina” (1094a 2-3).

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Eudaimonia e Neltiliztli: a concepção de boa vida para Aristóteles e os Astecas

esclarecer, nas linhas de abertura do Utilitarismo, Mill escreve: “Toda ação visa a algum
fim, e as regras de ação, como parece natural supor devem tomar todo o seu caráter e
aspecto do fim a que são subservientes”39. 40 A felicidade, como Mill a entende, é o
produto de agir de maneira a promover a felicidade do maior número. Para Aristóteles,
por outro lado, a eudaimonia não é concebida como um produto, o resultado final da
ação, mas como o desempenho de viver bem a própria vida. Sua vida teve um bom
desempenho, não um conjunto de estados mentais. Como resultado, seria incoerente
falar em maximizar esse tipo de felicidade, além de viver melhor - com mais virtude.

Os nahuas pensavam o neltiliztli como Aristóteles pensava a eudaimonia? Pode-


se responder afirmativamente por duas razões. Primeiro, em nenhuma das literaturas
existe uma discussão sobre um teste independente para avaliar a ação correta,
portanto eles não pensaram nisso da maneira que Kant pensa. Segundo, se olharmos
para a análise do desempenho bom e ruim dos papéis sociais, veremos que eles
justificam a avaliação apelando para um dano ou ajuda prestada. Por exemplo, aqui
está como o filósofo, ou tlamatini, é descrito no volume dez do Códice:

O bom [qualli] tlamatini é um médico, uma pessoa de confiança, um conselheiro;


um instrutor digno de confiança, merecedor de credibilidade, merecedor de fé; um
professor. Ele é um conselheiro, um bom exemplo; um professor de prudência,
discrição; uma luz, um guia que traça o caminho de alguém, que acompanha um... O
mau [amo qualli] tlamatini é um médico estúpido, bobo, decrépito, aquele que finge ser
uma pessoa de confiança, que finge ser um conselheiro... [Ele é] um adivinho, o que
ilude, que engana, confunde, causa males, leva ao mal.41
O que se observa nesta descrição é a maneira pela qual uma pessoa desempenha
seu papel social, a qualidade de sua contribuição para a comunidade, é a fonte de
louvor ou culpa. O mau [amo qualli] filósofo causa problemas especificamente, tanto
para a pessoa aconselhada quanto para a comunidade em geral. O bom [qualli] filósofo
é aquele que é uma luz e um exemplo tanto para seus pacientes como para a
comunidade. As avaliações da ação correta, portanto, seguem a partir do entendimento
do que significa levar uma boa vida humana e comunitária. Penso eu, então, que os
nahuas raciocinavam o bem e o correto da mesma maneira que os eudaemonistas.

4. Formas de vida

Nesse ponto, pode-se ter mais algumas perguntas pertinentes. O entendimento


de Aristóteles da eudaimonia está conectado a um modo de vida, ao contemplativo e a
um programa para a vida em geral. Até que ponto algo assim está presente no
entendimento nahuatl de neltiliztli? A resposta, penso eu, distancia os Nahuas de

39 John Stuart Mill em o Utilitarismo.


40
A tradução usada para citação em português foi retirada de MILL, John Stuart. Sobre a liberdade /
Utilitarismo. São Paulo: Martins Fontes, 2000, p. 178. (N.T.)
41
Códice Florentino, vol. 10, p. 29-30. Tradução modificada pelo autor.

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Aristóteles, uma vez que os Nahuas defendem duas (ou mais) abordagens de
enraizamento, mas eles não têm noção de que é como a forma grega de viver.

A partir de Aristóteles, grande parte da imagem para sua compreensão da


eudaimonia emerge do exposto. Cada um de nós conduz sua vida organizando e
deliberando sobre seus fins. Isso não é algo que acontece com facilidade e, portanto,
requer habilidade, virtude (arētē), para desempenhar bem essa organização. Além
disso, Aristóteles nos diz que o modo como levamos nossas vidas, o modo como
desfrutamos da eudaimonia humana, é empregar o logos, empregar razões amplamente
compreendidas.42 A virtude especial do logos para a ética é, obviamente, a prudência,
phronēsis. E é a phronēsis que age de acordo com as outras virtudes, para permitir que
cada um de nós viva bem, para levar uma vida eudaimonica. Nada disso, no entanto,
nos diz o que está no topo da hierarquia. É apenas algo que poderíamos escolher?

A resposta de Aristóteles é um tanto elíptica, mas parece que ele sugere que o
que está no topo da hierarquia é um modo de vida, bios. Ele escreve:
Pode-se dizer, com efeito, que existem três tipos principais de vida: a que
acabamos de mencionar [isto é, do prazer], a vida política e contemplativa
[theōrētikos]. A grande maioria dos homens se mostram em tudo iguais a
escravos, preferindo [proairoumenoi] uma vida [bion] bestial, mas encontram
certa justificação para pensar assim no fato de muitas pessoas altamente
colocadas partilharem os gostos de Sardanapalo. A consideração dos tipos
principais de vida mostra que as pessoas de grande refinamento e índole ativa
identificam a felicidade com honra; pois a honra é, em suma, a finalidade
[telos] da vida [biou] política. 43

Nesta passagem, Aristóteles realiza breves críticas à vida do prazer, e isso visa à
honra, embora ele espere até o livro X para fornecer uma defesa completa da vida da
contemplação. O que importa, neste momento, é que os comentários de Aristóteles
sugerem para a estrutura da eudaimonia, a saber, que uma vida é decidida como um
telos. Entretanto, isso não é o mesmo que escolher um resultado específico ou conjunto
de resultados. Pois um modo de vida é uma maneira característica de escolher e
ordenar os fins, para que o desempenho deles seja típico. No topo de nossa hierarquia,
então, não está um objetivo final, mas um modo de vida.44 E Aristóteles mais tarde

42Ética a Nicômaco, 1098a.


43Ética a Nicômaco, 1095b.
44 Essa abordagem para a organização de nossas preferências, de modo que (1) a eudaimonia é o

gerenciamento hábil (isto é, excelente) de nossa hierarquia de vidas, e (2) um modo de vida é o que está
no topo da hierarquia, para permitir que Aristóteles evite os tipos de preocupação Larry Temkin suscita
em Repensando o bem: ideais morais e a natureza da razão prática. (TEMKIN, 2012). Uma objeção chave
que Temkin levanta é que nossas preferências não podem ser demonstradas estritamente como
transitivas, de modo que ordens de preferência (e, portanto, relações de equivalência) não podem ser
obtidas para nossas preferências. Isso acaba sendo um problema para consequencialistas de
preferências informadas e para quem concorda amplamente com o relato descritivo de John Rawls do
bem na parte três de A Theory of Justice. A concepção de Aristóteles do bem, se o exposto acima estiver
correto, pareceria permitir que ele evitasse esse tipo de preocupação, uma vez que uma bios requer
apenas uma maneira característica de colocar objetivos em relação um ao outro, e nada como uma

Anãnsi: Revista de Filosofia, Salvador, v. 1, n. 1, 2020. 165


Eudaimonia e Neltiliztli: a concepção de boa vida para Aristóteles e os Astecas

argumenta no livro X da Ética a Nicômaco, que apenas um desses modos de vida,


tipificado pela contemplação teórica, é adequado aos seres humanos como um objetivo
completo.45

Há um ponto adicional que se mostra útil para uma comparação com a


concepção de vida boa de Nahua. Uma das razões pelas quais Aristóteles descarta tão
rapidamente a vida do prazer é que ele a identifica como uma vida é adequada para
animais, boskēmatōn - literalmente animais em engorda. O que está implícito na
linguagem de Aristóteles é uma distinção entre um modo de vida, bios e a simples vida,
zoē. Nas passagens iniciais de sua Política,46 Aristóteles distingue entre uma tendência
natural, como procriação, que ele acha que não é resultado de uma decisão (proairēsis),
uma união natural, como uma família, que é uma associação para atender às
necessidades, da vida cotidiana e de um estado que "existe para viver bem". 47
Enquanto os humanos também levam uma vida zoē, uma para satisfazer essas
necessidades, como comer, também decidimos sobre certos objetivos para viver bem.
Quando nos envolvemos em atividades ou práticas (como música e dança) para esses
fins, estamos levando um modo de vida bios. É por isso que é um erro de categoria,
para Aristóteles, decidir sobre um modo de vida que seria focado às atividades
necessárias para a mera sobrevivência. Isso também significa que a eudaimonia, em
última análise, diz respeito ao desempenho da vida de alguém, organizando fins
escolhidos acima e além das necessidades da bios.

A especificação de qual modo de vida é melhor para Aristóteles tem sido fonte
de controvérsia, não porque não esteja clara, mas porque os estudiosos ficaram
intrigados ao tentar explicar a compatibilidade da boa vida essencialmente
intelectualista da eudaimonia, no livro 10, com a mais abrangente que está articulada
no restante da Ética a Nicômaco48. Não tentarei fornecer meu próprio senso da
compatibilidade dessas duas considerações em Aristóteles. Em vez disso, gostaria de
observar que os Nahuas também parecem conceber que a boa vida, de certa forma, está
dividida entre uma abordagem mais abrangente e integralista e uma essencialmente
intelectual. No entanto, como eles não fazem uso de bios como conceito, eles não
possuem uma concepção semelhante.

O enraizamento no corpo de alguém se torna possível ao participar de várias


práticas. Os Nahuas sustentavam que o corpo serve como local temporário para três
forças que nos animam: tonalli, que reside na cabeça e fornece a energia necessária

ordem de preferência parcial. O assunto, claramente, é mais complexo do que pode ser tratado aqui, mas
achei interessante notar que a abordagem de Aristóteles pode evitar uma série de dores de cabeça
modernas em relação ao bem.
45 Esse é o argumento de Aristóteles na Ética a Nicômaco, em 1177a até 10178a.

46 Aristóteles (1957)

47 Aristóteles, A política, 1252b.

48 Para uma amostra da controvérsia, veja as críticas de Thomas Nagel em "Aristóteles sobre

Eudaimonia", em no volume Ensaios sobre ética de Aristóteles (RORTY, 1980) e a resposta provisória de J.
L. Ackrill em "Aristóteles sobre Eudaimonia" no mesmo volume.

Anãnsi: Revista de Filosofia, Salvador, v. 1, n. 1, 2020. 166


Lynn Sebastian Purcell

para o crescimento; teyolia, que reside no coração e fornece memória, emoção e


conhecimento; e ihiyotl, que reside no fígado e fornece paixão, bravura, ódio e amor,
entre outros.49 Os antropólogos recuperaram muitas estatuetas que aparentam estar
em poses de ioga; eles incluem, por exemplo, uma posição quase exatamente
semelhante à posição de lótus. A partir da descrição do corpo e de seus movimentos,
conclui-se que uma prática regular de movimentos semelhantes ao yoga foi pensada
para ajudar a equilibrar ou enraizar algumas de nossas energias corporais.

Uma maneira adicional pela qual se buscava uma vida enraizada estava na
psique – levando-se em consideração que para os nahuas a diferença entre psique e
corpo não eram tão delimitada como para nós. O ponto nesse sentido é que, se alguém
aprende a assumir uma identidade, um certo tipo de personalidade, ganha raízes. Por
exemplo, no Hueheutlatolli (Discursos dos Anciãos), encontramos um discurso de
congratulações no qual os mais velhos discursam com os novos noivos, novos donos de
um rosto e coração. O noivo, por exemplo, responde aos idosos, afirmando,
Vós me mostrastes graça, estais inclinados a vosso coração [amoiollotzin]; em
meu nome, vós sofrestes aflição. Eu infligirei doença a você, em seu rosto
[temuxtli]. 50

Nesse caso, o rosto (ixtli) e o coração (yollotl) juntos indicam a pessoa como um
todo. As respostas do noivo abordam as duas facetas da personalidade do ancião. Do
mesmo modo, no casamento, os mais velhos unem o casal como uma nova identidade,
amarrando a capa do homem à saia da mulher e falando tanto no rosto quanto no
coração. A sugestão é que, dessa maneira, eles adquiram personalidade, uma maneira
pela qual permanecerão aqui na terra escorregadia. As virtudes do caráter, então,
encontram seu lugar principalmente nesse nível, facilitando a aquisição e a
manutenção do "rosto e coração" de uma pessoa.

Esses pontos já deslizam para o enraizamento na comunidade, o terceiro nível


de enraizamento. Pois os noivos não estão apenas unidos, mas também dentro da
comunidade. A participação de alguém na comunidade era realizada em festivais e ritos
sociais de vários tipos. Na cerimônia de casamento descrita, por exemplo, pais, mães,
avós e familiares relacionados têm papéis específicos a desempenhar. Além disso, era o
papel do tlamatinimê, os filósofos, promover a aquisição de um rosto por meio de
aconselhamento e o objetivo da educação de ensinar às crianças nahua as disposições
que sustentariam um julgamento saudável. O caráter de alguém, então, permitiu que
ele executasse bem os cargos sociais, estes não apenas tinham demandas mais

49Esses pontos foram detalhados no trabalho de Austin (1988) e no trabalho de Carrasco (1990).
50Códice Florentino, vol. 6, p. 127. Tradução do autor. Essa frase, que parece ser um insulto, é um elogio
na cultura Nahua. Um tipo de "equilíbrio" dos desejos de boa sorte com má sorte para desejar outro bem.
A seção termina, por exemplo, dando as boas-vindas ao novo casal na sociedade, dizendo que eles estão
abandonados. As declarações diziam: “pois é a nossa maneira de fazer as coisas na terra (em tlalticpac);
pois ninguém se preocupa com ninguém; pois já te abandonamos. Preste atenção nisso”, 132-33.
Tradução do autor.

Anãnsi: Revista de Filosofia, Salvador, v. 1, n. 1, 2020. 167


Eudaimonia e Neltiliztli: a concepção de boa vida para Aristóteles e os Astecas

específicas, mas também serviram ao propósito de treinar ou habituar alguém a essa


atuação.

Uma maneira final de alcançar o enraizamento era diretamente no teotl. As três


dimensões de enraizamento que acabamos de discutir são, obviamente, maneiras
indiretas de se enraizar em teotl. Os Nahuas pareciam também ter sustentado que
havia outras maneiras mais diretas de se enraizar. Na passagem citada acima de
"Flower and Song", a resposta específica dada para alcançar o enraizamento é compor
poesia filosófica. Isso não está muito distante da insistência de Aristóteles na vida da
mente. Em algumas das passagens mais místicas, parece que alguns pensavam que o
uso de substâncias alucinógenas também fosse uma maneira. Contudo, pensava-se que
qualquer uma dessas formas de fazer era algo de belo no nosso curto período de tempo
em tlalticpac.

Nesse ponto, pode-se perguntar como os Nahuas não são confrontados com o
mesmo tipo de dificuldade que Aristóteles enfrenta. O enraizamento parece ter um
significado estritamente intelectual, reservado para aqueles que podem compor flores e
canções, e outro enraizamento que ocorre de forma mais abrangente. Em resposta,
acho que o problema não é tão importante entre os nahuas. Uma vida (bios), para
lembrar, tem duas características importantes. Primeiro, é uma maneira característica
de escolher entre nossos objetivos e ordená-los na hierarquia do plano de nossa vida.
Este é o sentido que se situa no topo dessa hierarquia. Segundo, é uma forma de vida
escolhida acima e além das necessidades da vida zoē. Embora os Nahuas tivessem
vários papéis sociais, que, no caso de um filósofo ou médico, poderiam ser contados
como uma maneira característica de escolher entre fins, eles não distinguiram modos
como algo distinto das necessidades da mera vida. Todas as pessoas, então, buscavam o
enraizamento nos níveis da mente, psique e comunidade. Acontece que, para algumas
pessoas, a participação na comunidade também ofereceu a possibilidade de um
enraizamento mais direto. Os filósofos, por exemplo, descobriram o enraizamento em
suas comunidades, em parte, compondo “flor e música”, que por acaso era uma maneira
direta de encontrar enraizamento no tlalticpac. Os caminhos são complementares
entre os nahuas, e não excludentes, como parecem estar em Aristóteles.

5. Motivação moral

Enquanto a discussão sobre os modos de vida (bios) destaca uma diferença


entre Aristóteles e os Nahuas na vida boa que pode contar em favor da visão dos
Nahuas, outro tópico relacionado pode ser um desafio para ela. Esse tópico diz respeito
ao papel do prazer, hēdonē ou estados emocionais elevados para a boa vida. A
dificuldade específica é que, mantendo uma conexão entre o prazer e a boa vida,
Aristóteles também resolve um problema importante da motivação moral. Para a
pergunta, por que devemos ser bons? Aristóteles pode responder: porque é mais
agradável do que não ser bom. Se os Nahuas não mantiverem essa conexão, parece que
eles perdem essa vantagem.

Anãnsi: Revista de Filosofia, Salvador, v. 1, n. 1, 2020. 168


Lynn Sebastian Purcell

Em resposta, pode-se começar lembrando os fundamentos do argumento de


Aristóteles na Ética a Nicômaco 51. Para Aristóteles, o prazer aperfeiçoa, no sentido de
completo, o desempenho da eudaimonia como um “fim que sobrevém como o viço da
juventude para os que se encontram na flor da idade.” 52 Se não é um componente
constitutivo ou essencial da eudaimonia, então está relacionado internamente como
sua forma preenchida. A razão para isso é que a eudaimonia explica o que significa
levar uma vida como ser humano, em oposição à vida de um simples animal. Essa vida
deve fazer uso do logos de alguma forma e, em última análise, é levada na companhia
de outras pessoas (como os argumentos da Política de Aristóteles deixam claro). O
prazer que se segue a esta vida, como resultado, é um prazer propriamente humano, e
esta é a única maneira de alcançá-lo. Embora o infortúnio possa intervir, como sugere a
discussão de Aristóteles sobre Príamo, mesmo naqueles casos trágicos "o belo
brilha".53 Somente vivendo bem, Príamo poderia ter tido a felicidade humana de
qualquer maneira. Além disso, se a sorte nos favorecer, nossas vidas desfrutam não
apenas de felicidade, eudaimonia, mas também de bênção, makaria54.

Para os Nahuas, a vida em tlalticpac não tem perfeição semelhante. A boa vida,
entendida como neltilitztli, tem apenas uma relação acidental com estados emocionais
elevados. Compor uma canção de flores, ou unir o rosto e o coração, cria uma existência
melhor e mais bonita, ainda que transitória. É o melhor e mais bonito. Pois, em última
análise, está enraizado no teotl, na maneira como as coisas passam por suas mudanças.

Embora os Nahuas não tenham pensado que o prazer é mais do que uma
característica incidental do desempenho de nossa vida, ainda assim há motivos para
agir de maneira alinhada ao prazer. É por isso que a vida enraizada deve ser
considerada uma concepção da “vida boa” e por que os nahuas não enfrentam um
problema relacionado à motivação moral. Até agora, o argumento revisou alguns dos
muitos papéis e ritos em ação na cultura Nahua. O que se vê nessas descrições é que o
trabalhador das penas age com paixão pelo seu ofício. O filósofo age por amor à
sabedoria. E mães e pais agem por amor aos filhos. Essas razões - a saber, paixões,
prazeres e amores, e ainda assim nos fornecem razões para agir. Além disso, são
algumas das motivações mais comuns que temos para empreender uma ação. Procurar
levar uma vida enraizada, então, significa, em última análise, buscar levar uma vida que
vale a pena. Mesmo que o prazer seja incidental a esse modo de vida, ainda temos a
maior quantidade de razões para buscá-lo.

51 A presente discussão utiliza pontos que Aristóteles desenvolve nos livros I e X da Ética a Nicômaco,
mas, por uma questão de clareza, omiti a discussão distinta de Aristóteles sobre o prazer no livro VII.
Não creio que o presente argumento abarque a diferença entre o prazer entendido como uma atividade
ininterrupta, como se encontra em grande parte no livro VII, e o prazer como uma espécie de perfeição
de nossas outras atividades. Sugiro o ensaio de Julia Annas (1980), para uma explicação que reconcilia as
várias declarações de Aristóteles sobre esse assunto.
52 Ética a Nicômaco, 1174b.

53 Ética a Nicômaco, 1100b.

54 Ética a Nicômaco, 1099b.

Anãnsi: Revista de Filosofia, Salvador, v. 1, n. 1, 2020. 169


Eudaimonia e Neltiliztli: a concepção de boa vida para Aristóteles e os Astecas

6. Esclarecimentos

O presente argumento até agora estabeleceu uma série de pontos de


concordância e observou algumas diferenças entre a concepção de Aristóteles da vida
boa e a dos Nahuas. No entanto, devo agora fazer uma pausa para esclarecer dois
pontos sobre a análise do entendimento Nahua sobre neltiliztli especificamente. Faço
esses pontos como objeções e forneço respostas para esclarecer a natureza das
alegações feitas até agora.

Uma primeira preocupação pode ser a seguinte. A presente análise de neltiliztli


é coerente com as concepções mais amplas dos Nahua? Por exemplo, nas crenças
religiosas populares dos Nahuas, as mães que morreram no parto foram para o céu da
vida após a morte. Seu entendimento de recompensas e punições, então, parece ser
bastante fatalista. Como esse entendimento religioso é compatível com o relato até
agora delineado, no qual a deliberação sobre fins, ou pelo menos fins mais elevados,
parece desempenhar um papel tão central?

Duas distinções podem nos ajudar a responder a essa pergunta. Uma diz
respeito à diferença entre neltiliztli, que é uma concepção da vida boa aqui no
tlalticpac, e quaisquer recompensas que se pensasse seguir na vida após a morte. É
verdade que, em crenças religiosas comuns, pensava-se que os guerreiros que caíram
em batalha (de maneiras específicas) e as mulheres que morreram no parto foram para
Tamoanchan. Mas eles não levariam vidas no tlalticpac. Não há nada incompatível
entre a ideia de levar uma vida enraizada no tlalticpac e a de receber recompensas na
vida após a morte por causa de uma ocorrência muito específica. O que parece estar em
jogo na questão é um senso mais amplo de justiça que seria obtido entre as ações
realizadas nesta vida e as recompensas na vida após a morte. No entanto, não está claro
para mim que os nahuas sustentavam tal visão (cristã). Ao abordar as crenças
religiosas, contudo, somos levados a uma segunda distinção pertinente.

A segunda distinção diz respeito ao caráter do presente estudo. Meu objetivo,


diferentemente do dos antropólogos, não tem sido reconstruir o entendimento geral da
boa vida entre os Nahuas. Os filósofos da antiguidade clássica procuram entender
reivindicações filosóficas específicas entre gregos e romanos e, portanto, não tentam
tornar seus argumentos consistentes com noções culturais mais amplas, como a
contaminação miasmática. Faço o mesmo aqui, e assim prescindi de uma consideração
do entendimento mais amplo dos Nahuas sobre tlazolli, que é notavelmente
semelhante ao miasma grego em certos aspectos.

Temos evidências de que os mais velhos e os tlamatinimê (plural de tlamatini,


isto é, "filósofo") frequentemente romperam com entendimentos comuns.
Nezahualcoyotl, por exemplo, se pergunta abertamente se existe uma vida após a
morte, ou se é apenas uma fábula reconfortante. Em um poema filosófico intitulado
"Estou triste", ele escreve:

Anãnsi: Revista de Filosofia, Salvador, v. 1, n. 1, 2020. 170


Lynn Sebastian Purcell

Estou triste, eu sofro


Eu, senhor Nezahualcoyotl.
Com flores e canções,
Me lembro dos príncipes,
Aqueles que já partiram,
Tezozomoctzin, e aquele Cuacuahtzin.
Onde eles realmente vivem,
há um caminho?55

Nezahualcoyotl está nessas linhas expressando claramente dúvidas sobre a vida


em um local após a morte. Deve ser um lugar onde existe alguém de alguma maneira
não carnal? Essa dúvida na vida após a morte, além disso, explica a preocupação
constante de Nezahualcoyotl com a morte, uma vez que ele é pouco confortado pelas
histórias comuns. Em resumo, os filósofos e os anciões56 romperam com as crenças
religiosas estabelecidas em seus escritos registrados, e, portanto, seria irracional
criticar o presente estudo filosófico por não estar em conformidade com as crenças
religiosas de outros segmentos da população.

Uma preocupação adicional é que, ao apresentar o neltiliztli em relação a


eudaimonia de Aristóteles, moldei as reivindicações de Nahua de uma maneira que é
demasiadamente "individualista", principalmente quando focamos na orientação à
ação e na busca pela boa vida. Então, podemos nos perguntar: como isso se enquadra
no entendimento mais amplo, mais sociocêntrico, da cultura Nahua que os
antropólogos descreveram?

Em resposta, observa-se que “individualismo” e “sociocentrismo” são termos


escorregadios. O que espero ter mostrado é que os Nahuas eram, de duas maneiras
específicas, mais "sociocêntricos" que Aristóteles. Este é o caso, primeiro, da maneira
multinível em que se alcança o enraizamento. Embora eu acredite que Aristóteles
muitas vezes seja mal interpretado nos estudos contemporâneos como focado
exclusivamente na busca individual da felicidade, a ênfase de Nahua em encontrar
raízes através do papel social específico de alguém na comunidade adiciona uma
dimensão social que não está presente no relato de Aristóteles. De fato, uma grande
parte da orientação da ação para os Nahuas gira em torno de quão bem alguém
desempenha seu papel em suas funções sociais, e isso é notavelmente diferente do foco
de Aristóteles nas excelências que qualquer ser humano deve desenvolver. Segundo, o
modo como os ritos e práticas sociais era considerado como parte essencial da
formação do caráter não encontra paralelo em Aristóteles. Em nenhum lugar ele
discute a formação de caráter por meio da participação em ritos sociais, mas os Nahuas
costumam elaborar de maneira bastante elaborada. Os trechos acima foram extraídos
de exortações de anciãos para jovens envolvidos apenas nesses rituais. Dessa maneira,

55 Cantares Mexicanos, rapazes. 25r e v. A tradução é ligeiramente modificada para facilitar a leitura de
Miguel León-Portilla em Fifteen Poets of the Aztec World, 93.
56 Escrevo “filósofos e anciãos” para indicar a possibilidade de serem grupos distintos, embora

provavelmente não fossem.

Anãnsi: Revista de Filosofia, Salvador, v. 1, n. 1, 2020. 171


Eudaimonia e Neltiliztli: a concepção de boa vida para Aristóteles e os Astecas

acredito que os nahuas eram mais orientados para a comunidade, ou "sociocêntricos",


do que Aristóteles.

Há outro sentido, no entanto, no qual se poderia pensar que os nahuas eram


mais "sociocêntricos" que Aristóteles. Pode-se pensar que eles mantiveram um senso
de vida ética que é sócio-holístico. Nesse entendimento, os Nahuas teriam sustentado
que a unidade fundamental de preocupação moral era a comunidade e não o indivíduo.
Se isso estiver correto, o desenvolvimento aqui sobre neltiliztli, especialmente nas
partes relacionadas à orientação para ações, seria verdadeiro, porém enganoso.

Em resposta, não acho correto afirmar que os Nahuas sustentavam que a teoria
moral central era exclusivamente voltada a comunidade, sem ter também avaliações
corretas para com os indivíduos isolados. Nos textos revisados acima, vários agentes
são criticados por prejudicar outras pessoas diretamente, sem necessariamente ter
prejudicado a comunidade ao prejudicar o individuo. Os próprios textos, então, entram
em conflito com essa interpretação. Além disso, o sócio-holismo é problemático do
ponto de vista filosófico,57 e, portanto, acho que conta para a maior força de suas
posições que os tlamatinimê não estavam inclinados a apoiá-lo.

7. Últimas considerações

O presente ensaio espera ter dado um primeiro passo em direção a uma séria
reflexão filosófica sobre o entendimento ético da boa vida, neltiliztli, entre os Nahuas.
Sua concepção é, de várias maneiras, como a compreensão de Aristóteles da
eudaimonia. O que se busca na vida, eles sustentavam, é uma resposta às condições
básicas da vida aqui em tlalticpac. O que se busca ao escolher fins que estão acima das
meras necessidades, sustentou Aristóteles, é a eudaimonia. Para os nahuas, a poesia
filosófica fornece o melhor tipo de resposta, o melhor enraizamento, em resposta ao
escorregadio tlalticpac, já que a flor e a música (poesia filosófica) duram mais que as
outras criações transitórias. Para Aristóteles, a vida da contemplação teórica é a que
melhor se adapta a um animal que leva sua vida por intermédio do logos. Para ambos,
no entanto, esse melhor modo de vida está relacionado ao objetivo mais amplo de viver
bem em outras atividades, que exigem excelentes qualidades de caráter (isto é,
virtudes) para serem alcançadas. Finalmente, em ambos os casos, a ação correta é
avaliada apelando para uma concepção do que é bom, como alguém floresce, o que é
justificadamente anterior à concepção do direito.

Ao final dessas reflexões, apresenta-se duas articulações diferentes da boa vida.


A maioria de nós, eu diria, gostaria de acreditar que o prazer está, de alguma forma,

57Acho que os problemas são bem conhecidos. No entanto, para ser um pouco mais específico, um
problema principal enfrentado por qualquer explicação moralmente “holística” da orientação à ação é
que as formas de fascismo passam a ser prontamente suportáveis. Se a comunidade é a unidade última
de preocupação moral, o sacrifício de um indivíduo não tem mais consequências do que o sacrifício de
um dedo gangrenoso para salvar a vida do indivíduo (talvez até menos).

Anãnsi: Revista de Filosofia, Salvador, v. 1, n. 1, 2020. 172


Lynn Sebastian Purcell

conectado internamente ao melhor desempenho do ato de nossa vida no cenário


mundial. No entanto, também reconhecemos que talvez esse seja um pensamento
muito esperançoso. Além disso, não está claro, que esse tipo de diferença possa ser
resolvido simplesmente por uma análise de conceitos. Aristóteles e os astecas têm,
cada um, um sentido preferido diferente de “prazer” e diferentes entendimentos de sua
relação com a boa vida. Qual sentido é melhor para propósitos éticos não é uma
questão que possa ser resolvida apenas olhando para os significados dos termos em
consideração. Em vez disso, deve tomar sua medida a partir da coerência mais ampla
das teorias éticas como um todo e de suas respectivas habilidades para iluminar nossas
vidas morais. A presente reflexão sobre os astecas, como resultado, destaca menos um
problema de resolução do que um problema da condição humana. Além disso, desafia-
nos a questionar a sabedoria (ocidental) recebida sobre a boa vida. E deveríamos ser
melhores, se, como afirma Aristóteles, porque nos trará prazer em aperfeiçoar nossas
atividades como seres possuidores do logos, ou se, como sustentavam os Nahuas, isso
cria um padrão mais bonito de nossas atividades na escorregadia terra que vivemos.

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Recebido em: 10 de ago. 2020


Aceito em: 14 de ago. 2020

Anãnsi: Revista de Filosofia, Salvador, v. 1, n. 1, 2020. 175


Universidade do Estado da Bahia
Departamento de Educação – Campus I
Anãnsi: Revista de Filosofia, Salvador, n.1, 2020

“Sobre a importância de Hegel”


Carta de Engels para Conrad Schmidt, 1891 1

Tradução: Carlos Eduardo Facirolli 2

Londres, 01 de novembro de 1891.

Você não pode, é claro, dispensar Hegel. Ele é outro camarada que você levará
algum tempo para digerir. A um breve artigo sobre a lógica na Encyklopädie3 seria um
muito bom começo. Mas você deve pegar a edição do Volume 6 das Werke (Obras
completas de Hegel), e não a edição separada de (Karl) Rosenkranz 4 (1845), porque há
muito mais acréscimos explicativos das palestras na primeira, mesmo que esse idiota
Henning5 muitas vezes não as tenha entendido.

Na Introdução, você tem primeiro a crítica (§26, etc.) da versão de Wolf 6 e


Leibnitz 7 (metafísica no sentido histórico), depois do empirismo inglês-francês (par.
37, etc.) e depois Kant (§40, e sequentes.) e finalmente (§61) do misticismo de Jacoby 8.
Na primeira seção (Ser), não gaste muito tempo com o Ser e o Nada; os últimos
parágrafos sobre Qualidade e, em seguida, Quantidade e Medida são muito mais
refinados, mas a teoria da Essência é a coisa principal: a resolução das contradições
abstratas em sua própria instabilidade, em que ninguém tenta segurar um lado sozinho
do que é transformado despercebido no outro, etc. Ao mesmo tempo, você sempre
pode esclarecer a questão por meio de exemplos concretos; por exemplo, você, como
noivo, tem um exemplo impressionante da inseparabilidade da identidade e da
diferença entre você e sua noiva. É absolutamente impossível decidir se o amor sexual
é prazer na identidade, na diferença ou na diferença na identidade. Afaste a diferença
(neste caso do sexo) ou a identidade (a natureza humana de ambos) e o que resta?

1 Texto original em: <marxists.catbull.com/archive/marx/works/1891/letters /91_11_01.htm>.


2 Bacharel e Mestrando em Filosofia pela Universidade Estadual Paulista (UNESP).
3 Enciclopédia de Ciências Filosóficas é uma obra do filósofo Hegel (1770-1831), publicada em 1817, que

apresenta uma versão abreviada de todo seu sistema filosófico.


4 Johann Karl Friedrich Rosenkranz (1805-1879): filósofo e pedagogo alemão.

5 Leopold Von Henning (1791-1866): Filósofo alemão da vertente direita hegeliana.

6 Christian Wolff (1679-1745): Filósofo alemão.

7 Christian Wolff (1646-1716): Gênio matemático e influente filósofo iluminista.

8 Friedrich Heinrich Jacobi (1743-1819): influente filósofo alemão.


“Sobre a importância de Hegel” Carta de Engels para Conrad Schmidt, 1891

Lembro-me de quanto essa inseparabilidade de identidade e diferença me preocupou a


princípio, embora nunca possamos dar um passo sem tropeçar nele.

Mas você não deve ler Hegel como Herr Barth 9, a fim de descobrir os silogismos
ruins e esquivas podres que o serviram de alavanca na construção. Isso é trabalho de
estudante puro. É muito mais importante descobrir a verdade e o gênio que se
encontram sob a forma falsa e dentro das conexões artificiais. Assim, as transições de
uma categoria ou de uma contradição para a próxima são quase sempre arbitrárias -
geralmente feitas através de um trocadilho, como quando Positivo e Negativo (§120)
"zugrunde gehen" (perecem) para que Hegel possa chegar à categoria de "Grund"
(razão, fundamento). Pensar sobre isso é perda de tempo.

Como em Hegel, todas as categorias representam um estágio da história da


filosofia (como geralmente indica), você faria bem em comparar as palestras 10 sobre a
história da filosofia (uma de suas obras mais brilhantes). Como relaxamento, posso
recomendar a Estética 11. Quando você se dedicar a isso um pouco, ficará surpreso.

A dialética de Hegel está de cabeça para baixo porque deveria ser o


"autodesenvolvimento do pensamento", do qual a dialética dos fatos é, portanto,
apenas um reflexo, enquanto que realmente a dialética em nossas cabeças é apenas o
reflexo do desenvolvimento real que é realizado no mundo da natureza e da história
humana em obediência às formas dialéticas.

Se você apenas comparar o desenvolvimento da mercadoria no Capital de Marx


com o desenvolvimento de Ser para Essência em Hegel, você terá um bom paralelo
para o desenvolvimento concreto resultante de fatos; aí você tem a construção
abstrata, na qual as ideias mais brilhantes e, muitas vezes, transmutações muito
importantes, como o da qualidade em quantidade e vice-versa, são reduzidos ao
aparente autodesenvolvimento de um conceito de outro - alguém poderia ter fabricado
uma dúzia a mais do mesmo tipo.

Recebido em: 29 de jun. 2020


Aceito em: 24 de ago. 2020

9 Paul Barth (1858-1922): filósofo e sociólogo alemão, professor da Universidade de Leipzig.


10 HEGEL, G. W. F. (1837). Vorlesungen über die Philosophie der Geschichte. Frankfurt: Suhrkamp Verlag,
1970. Anotações de aula editadas por seu aluno Karl Ludwig Michelet em 1833 e revisadas em 1840-2.
11 Vorlesungen über die Ästhetik é uma compilação de palestras universitárias sobre estética dadas

por Hegel em Heidelberg (1818), e Berlim (1820-29), compilado em 1835 por seu aluno Heinrich Gustav
Hotho.

Anãnsi: Revista de Filosofia, Salvador, v. 1, n. 1, 2020. 177


Universidade do Estado da Bahia
Departamento de Educação – Campus I
Anãnsi: Revista de Filosofia, Salvador, v. 1, n.1, 2020

Sobre a noção de causa 1


Bertrand Russell
Tradução: Augusto Lucas Valmini 2

No seguinte artigo, eu desejo, primeiro, sustentar que a palavra “causa” está tão
inextricavelmente conectada a associações enganosas que tornam desejável sua
completa extrusão do vocabulário filosófico; em segundo lugar, investigar qual
princípio, se algum, é empregado na ciência no lugar da suposta “lei da causalidade”
que filósofos imaginam ser empregada; terceiro, exibir certas confusões, especialmente
com respeito a teleologia e ao determinismo, que me parecem conectadas com noções
errôneas tais como a de causalidade.

Todos filósofos, de todas escolas, imaginam que a causação é um dos axiomas ou


postulados fundamentais da ciência, ainda que, estranhamente, em ciências avançadas
como na astronomia gravitacional, a palavra “causa” nunca ocorra. Dr. James Ward, em
seu Naturalism and Agnosticism (1903), faz disto uma fonte de reclamações contra a
física: o trabalho daqueles que desejam averiguar a verdade última sobre o mundo, ele
aparentemente pensa, deveria ser a descoberta das causas, embora a física nem sequer
as procure. Para mim parece que a filosofia não deve assumir tais funções legislativas;
e a razão pela qual a física parou de procurar pelas causas é que, de fato, não há tais
coisas. A lei da causalidade, eu acredito, como muito do que é aceito pelos filósofos
após inspeção, é uma relíquia de uma época passada, sobrevivendo, como a monarquia,
somente porque se supõe erroneamente que não cause danos.

A fim de descobrir o que filósofos comumente entendem por “causa”, eu


consultei o Dictionary3de Baldwin e fui recompensado além das minhas expectativas,
pois eu encontrei as seguintes três definições mutuamente incompatíveis:

1 Texto original: RUSSELL, Bertrand. “On The Notion of Cause” In Proceedings of the Aristotelian Societ:
New Series, Vol. 13 (1912 - 1913), pp. 1-26, 1913.
2 Graduado em Filosofia pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul e mestrando em Filosofia pelo

PPG-Filosofia da mesma instituição. Pesquisa Filosofia da Ciência e Epistemologia com foco em teorias
causais. E-mail: augustof.valmini@gmail.com.
3 N. T.: Russell aqui está se referindo ao Dictionay of Phylosophy and Psychology editado por James Mark

Baldwin, mas não informa a edição que utiliza. As palavras começando com a letra “c” estão no volume 1
e as palavras começando com “n” no volume 2. Conseguiu-se encontrar uma versão de 1901 para o
Volume 1, mas apenas uma de 1920 para o Volume 2. On The Notion of Cause foi apresentado em 1912 e
posteriormente publicado em 1913. Portanto a versão que conseguimos encontrar do Volume 2 do
Sobre a noção de causa

CAUSALIDADE. (I) A conexão necessária de eventos em séries temporais…

CAUSA (noção de). Tudo que possa ser incluído no pensamento ou na


percepção de um processo como acontecendo em consequência de outro
processo...

CAUSA E EFEITO. (I) Causa e efeito… são termos correlativos denotando


quaisquer duas coisas, fases ou aspectos da realidade distinguíveis, que estão
tão relacionados entre si, que sempre que o primeiro cessa de existir, o
segundo vem a existir imediatamente depois, e sempre que o segundo passa a
existir, o primeiro cessou de existir imediatamente antes. (BALDWIN, 1901,
pp. 163-164.)

Vamos considerar em turnos cada uma dessas três definições. A primeira,


obviamente, é ininteligível sem uma definição de “necessário”. Sob este cabeçalho, o
Dictionary de Baldwin fornece o seguinte:
NECESSÁRIO. Aquilo que é necessário não somente quando é verdadeiro, mas
seria verdadeiro sob todas as circunstâncias. Algo mais do que bruta
compulsão está, portanto, envolvida na concepção; há uma lei geral sob a qual
a coisa acontece. (BALDWIN, 1920, p. 143.)

A noção de causa está tão intimamente ligada com a de necessidade que não
será nenhuma digressão perder tempo com a definição acima, com o objetivo de
descobrir, se possível, algum sentido da qual ela é capaz; pois, da maneira posta, está
longe de possuir qualquer significação definida.

O primeiro ponto a se notar é que, caso algum significado seja dado à frase
“seria verdadeiro sob todas circunstâncias”, o sujeito dela deveria ser uma função
proposicional, não uma proposição4. Uma proposição é simplesmente verdadeira ou
falsa, e a questão aí se encerra: não pode haver uma questão de “circunstâncias”. “A
cabeça de Charles I foi cortada” é tão verdadeira no verão quanto no inverno, tanto nos
domingos quanto nas segundas. Portanto, quando vale a pena dizer de algo que “seria
verdadeiro sob todas circunstâncias”, o algo em questão deve ser uma função
proposicional, i.e., uma expressão contendo uma variável, e tornando-se uma
proposição quando um valor é atribuído à variável; as aludidas “circunstâncias”
variando são então os diferentes valores que a variável pode assumir. Portanto, se
“necessário” significa “o que é verdadeiro sob todas circunstâncias”, então “se x é um
homem, x é mortal” é necessária, porque é verdadeira para qualquer valor possível de
x. Portanto deveríamos ser levados à seguinte definição:

Dictionary não foi a utilizada por Russell. Contudo o texto para a entrada de “necessário” não teve
alterações entre a edição que Russell usa do Dictionary e a edição de 1920. Disponiblizamos os
endereços online para ambos os volumes nas referências.
4 Uma função proposicional é uma expressão contendo uma variável, ou uma constituinte

indeterminada, e torna-se uma proposição assim que um valor definido é atribuído a variável. São
exemplos: “A é A” e “x é um número”. A variável é chamada de argumento da função.

Anãnsi: Revista de Filosofia, Salvador, v. 1, n. 1, 2020. 179


Bertrand Russell

NECESSÁRIO é um predicado de uma função proposicional, significando que


ela é verdadeira para todos os valores possíveis do seu argumento ou dos
seus argumentos.

Infelizmente, contudo, a definição no Dictionary de Baldwin diz que o que é


necessário não é somente “verdadeiro sob todas as circunstâncias”, mas também é
“verdadeiro”. Ora, essas duas definições são incompatíveis. Apenas proposições podem
ser “verdadeiras”, e apenas funções proposicionais podem ser “verdadeiras sob todas
circunstâncias”. E então a definição, como ela está, é sem sentido. Parece que o que se
quer significar é isto: “uma proposição é necessária quando é um valor de uma função
proposicional que é verdadeira sob todas circunstâncias, i.e., para todos os valores do
seu argumento ou de seus argumentos”. Mas se adotamos essa definição, a mesma
proposição será necessária ou contingente de acordo com nossa escolha entre um ou
outro dos termos da nossa função proposicional. Por exemplo, “se Sócrates é um
homem, Sócrates é mortal” é necessária se Sócrates for escolhido como argumento,
mas não se homem ou mortal for escolhido. Novamente, “Se Sócrates é um homem,
Platão é mortal”, será necessária se tanto Sócrates ou homem for escolhido como
argumento, mas não se Platão ou mortal for escolhido. Contudo, essa dificuldade pode
ser superada ao se especificar o constituinte que deve ser considerado como
argumento, e chegamos então a seguinte definição:

“Uma proposição é necessária em relação a um dado constituinte se ela


permanece verdadeira quando o constituinte é alterado de qualquer modo compatível
com a proposição permanecendo significativa”.

Nós podemos aplicar essa definição à definição de causalidade citada acima. É


obvio que o argumento deve ser o tempo no qual o evento anterior ocorre. Portanto,
uma instância de causalidade deve ser tal que: “Se o evento e1 ocorre no tempo t1, ele
será seguido pelo evento e2.” Pretende-se que essa proposição seja necessária com
respeito a t1, i.e., permanecer verdadeira para qualquer modo que t1 possa ser variada.
Causalidade, como uma lei universal, será então o seguinte: “Dado qualquer evento e 1,
existe um evento e2 tal que, sempre que e1 ocorre, e2 ocorre após.” Mas antes disso ser
considerado como preciso, devemos especificar quanto depois e2 deve ocorrer.
Portanto, o princípio se torna:

“Dado qualquer evento e1, há um evento e2 e um intervalo de tempo τ tal que,


quando quer que e1 ocorre, e2 se segue após um intervalo τ”.

Por enquanto, ainda não estou preocupado se essa lei é verdadeira ou


falsa. No momento, eu estou apenas preocupado em descobrir o que é suposto que a lei
da causalidade seja. Eu passo, por isso, para as outras definições [de causa] citadas
acima.

A segunda definição não precisa nos deter por muito tempo por duas razões.
Primeiro, por que ela é psicológica: o que deve nos interessar ao considerar a
causalidade não é o “pensamento ou a percepção” de um processo, mas o próprio

Anãnsi: Revista de Filosofia, Salvador, v. 1, n. 1, 2020. 180


Sobre a noção de causa

processo. Em segundo lugar, pois [a definição] é circular: ao se falar de um processo


como “acontecendo em consequência de” outro processo, ela introduz a própria noção
de causa que estava por ser definida.

A terceira definição é de longe a mais precisa; de fato, no que concerne à clareza,


ela não deixa nada a desejar. Mas uma grande dificuldade é provocada pela
contiguidade temporal entre causa e efeito que a definição afirma. Não há dois
instantes contíguos, já que a série temporal é compacta; consequentemente, se a
definição está correta, ou a causa e o efeito, ou ambos, devem perdurar por um período
de tempo finito; de fato, pelo que está expresso na definição, é evidente que se assume
que ambos devem perdurar por um tempo finito. Mas então nós somos confrontados
com um dilema: se a causa é um processo que envolve alteração em si mesma, nós
devemos requerer (se causalidade é universal) relações causais entre as partes
anteriores e posteriores; além disso, pareceria apenas que as partes posteriores seriam
relevantes, já que as partes anteriores não são contíguas com o efeito, e por isso (por
definição) não podem influenciar o efeito. Deste modo somos levados a reduzir, sem
limites, a duração da causa, e por mais que possa ser reduzida, ainda permanecerá uma
parte anterior que poderia ser alterada sem alterar o efeito, de modo que a verdadeira
causa, assim definida, não terá sido alcançada, pois será observado que a definição
exclui pluralidade de causas. Se, por outro lado, a causa é puramente estática, não
envolvendo uma alteração em si mesma, então, em primeiro lugar, tal causa não será
achada na natureza, e em segundo lugar, parece estranho – muito estranho para ser
aceito, apesar da mera possibilidade lógica – que a causa, após existir placidamente por
algum tempo, deva repentinamente explodir no efeito, quando poderia tão bem tê-lo
feito em qualquer tempo anterior, ou ter prosseguido inalterada sem produzir seu
efeito. Esse dilema, portanto, é fatal para a posição de que causa e efeito possam ser
contíguos no tempo: se há causas e efeitos, eles devem ser separados por um intervalo
de tempo finito τ, como foi assumido na interpretação acima da primeira definição.

O que é essencialmente a mesma afirmação da lei da causalidade acima extraída


da primeira das definições de Baldwin é fornecida por outros filósofos. John Stuart Mill
afirma:
A Lei da Causação, cujo reconhecimento é o principal pilar da ciência indutiva,
apenas é a verdade familiar que descobrimos por observação, da
invariabilidade de sucessão obtida entre todo fato na natureza e algum outro
fato que o tenha precedido. (MILL, 1974, Livro III, Capítulo. V, §2, pp. 326-
327)

E Bergson, que percebeu corretamente que a lei como posta por filósofos é
inútil, ainda assim continua a supor que ela seja usada na ciência. Diz ele então: “Agora,
argumenta-se, esta lei [da causalidade] significa que todo fenômeno é determinado por
suas condições, ou em outras palavras, a mesma causa produz os mesmos efeitos”.
(BERGSON, 2001, p. 199.)

Anãnsi: Revista de Filosofia, Salvador, v. 1, n. 1, 2020. 181


Bertrand Russell

E novamente:
Nós percebemos fenômenos físicos, e esses fenômenos obedecem a leis. Isso
significa: (1) os fenômenos a, b, c, d, previamente percebidos, podem ocorrer
novamente na mesma forma; (2) que um certo fenômeno P, que aparece após
as condições a, b, c, d, e apenas somente após essas condições, não falhará em
acontecer assim que as mesmas condições estiverem novamente presentes.
(Ibidem, p. 202.)

Uma boa parte do ataque de Bergson à ciência repousa na suposição de que ela
emprega esse princípio. Na verdade, ela não emprega tal princípio, mas filósofos –
mesmo Bergson – estão bastante propensos a tomar suas visões sobre a ciência uns
dos outros, não da ciência. Há uma grande concordância entre filósofos de várias
escolas sobre o que é esse princípio. Há, contudo, um número de dificuldades que
surgem de uma só vez. Pelo momento, eu omito a questão da pluralidade de causas, já
que há questões mais graves que devem ser consideradas. Duas das quais, que são
trazidas forçosamente a nossa atenção pela enunciação do princípio acima, são as
seguintes:

(1) O que é significado por “evento”?

(2) Quão longo pode ser o intervalo de tempo entre a causa e o efeito?

(1) Um “evento”, na enunciação da lei, obviamente tem a intenção de ser algo


que provavelmente ocorrerá novamente, já que de outro modo a lei se torna trivial.
Segue-se que um “evento” não é um particular, mas algum universal do qual pode
haver muitas instâncias. Segue-se também que um “evento” deve ser algo aquém do
estado completo do universo, já que é muito improvável que tal estado ocorrerá
novamente. O que se quer dizer por “evento” é algo como riscar um fósforo, ou colocar
uma moeda na fenda de uma máquina automática. Se tal evento ocorrerá, ele não deve
ser definido muito estritamente: não devemos especificar o grau de força com o qual o
fósforo será riscado, nem qual será a temperatura da moeda. Pois se tais considerações
fossem relevantes, nosso “evento” ocorreria no máximo uma vez, e a lei deixaria de
fornecer informação. Um “evento”, então, é um universal definido de modo
suficientemente amplo para admitir muitas ocorrências particulares no tempo como
sendo suas instâncias.

(2) A próxima questão é em respeito ao intervalo de tempo. Filósofos, sem


dúvida, pensam em causa e efeito como contíguos no tempo, mas isso, por razões já
fornecidas, é impossível. Consequentemente, já que não existem intervalos de tempo
infinitesimais, deve haver um lapso finito de tempo τ entre a causa e o efeito. Porém,
isso gera de uma só vez dificuldades já levantadas. Não importa quão curto tornemos o
intervalo de tempo τ, alguma coisa pode acontecer durante esse intervalo que
prevenirá o resultado esperado. Eu coloco minha moeda na fenda, mas antes que eu
possa retirar meu bilhete há um terremoto que atrapalha os cálculos da máquina e os
meus. Para haver certeza do efeito esperado, nós devemos saber que não há nada no
ambiente que interferirá nele. Mas isso significa que a suposta causa não é, por si só,

Anãnsi: Revista de Filosofia, Salvador, v. 1, n. 1, 2020. 182


Sobre a noção de causa

capaz de garantir o efeito. E assim que incluímos o ambiente, diminui-se a


probabilidade da repetição, até que enfim, quando todo o ambiente é incluído, a
probabilidade da repetição se torna quase nula.

Devido a essas dificuldades, deve, é claro, ser admitido que muitas


regularidades de sequências razoavelmente dependentes ocorrem na vida cotidiana.
São essas regularidades que tem sugerido uma suposta lei da causalidade; quando se
descobre que ela falha, é pensado que uma melhor formulação poderia ter sido
descoberta que nunca teria falhado. Eu estou longe de negar que possam existir essas
sequências tais que, de fato, nunca falhem. Pode ser que nunca existirá uma exceção à
regra de que quando uma pedra com mais do que uma certa massa, movendo-se com
mais do que certa velocidade, encontra-se com um vidro com menos do que certa
espessura, o vidro quebra. O que eu nego é que a ciência suponha a existência de
sequências uniformemente invariáveis deste tipo, ou que ela vise descobri-las. Todas
estas uniformidades, como dizemos, dependem de uma certa vagueza na definição de
“eventos”. É uma afirmação qualitativa vaga que corpos caiam; a ciência deseja saber
quão rápido eles caem. Isso depende dos formatos dos corpos e da densidade do ar. É
verdade que há uma uniformidade mais próxima quando eles caem no vácuo; até onde
Galileu podia observar, a uniformidade então é completa. Mais tarde, viu-se que a
latitude e a altitude faziam diferença. Teoreticamente, as posições do sol e da lua
devem fazer diferença. Resumidamente, cada avanço da ciência nos leva mais longe das
uniformidades brutas que são primeiramente observadas, para uma maior
diferenciação do antecedente e do consequente, e para um círculo continuamente mais
amplo de antecedentes reconhecidos como relevantes.

O princípio “mesma causa, mesmo efeito”, o qual filósofos imaginaram ser vital à
ciência, é, portanto, completamente supérfluo. Assim que os dados antecedentes são
suficientemente completos que possibilitem que o consequente seja calculado com
alguma exatidão, os antecedentes se tornam tão complicados que é muito improvável
que eles voltarão a ocorrer. Consequentemente, se esse fosse o princípio envolvido, a
ciência permaneceria completamente estéril.

A importância dessas considerações repousa parcialmente no fato de elas


levarem a uma abordagem mais correta do procedimento científico, parcialmente no
fato de removerem a analogia com a volição humana, o que torna a concepção de causa
uma frutífera fonte de falácias. Este último ponto se tornará mais claro com ajuda de
algumas ilustrações. Para este fim, eu considerarei algumas máximas que têm
desempenhado um grande papel na história da filosofia.

(1) “Causa e efeito devem mais ou menos se assemelharem”. Esse princípio foi
proeminente na filosofia do ocasionalismo e não está de jeito nenhum longe de ser
extinto. Ainda é frequentemente pensado, por exemplo, que a mente não poderia ter se
desenvolvido em um universo que não contivesse nada mental; e um fundamento para
essa crença é que a matéria é muito dissemelhante da mente para que lhe fosse uma
causa. Ou, de modo mais particular, o que se denomina as partes mais nobres da nossa

Anãnsi: Revista de Filosofia, Salvador, v. 1, n. 1, 2020. 183


Bertrand Russell

natureza é supostamente inexplicável a menos que o universo sempre tenha contido


algo pelo menos igualmente nobre que pudesse tê-las causado. Todas essas posições
parecem depender da suposição de uma lei da causalidade indevidamente simplificada;
pois, em qualquer sentido legítimo de “causa” e “efeito”, a ciência parece nos mostrar
que são frequentemente muito dissemelhantes, a “causa” sendo, de fato, dois estados
do universo inteiro e, o “efeito”, algum evento particular.

(2) “Causa é análoga à volição, já que deve haver um nexo inteligível entre causa
e efeito”. Essa máxima, eu penso, está frequentemente e inconscientemente nas
imaginações dos filósofos que a rejeitariam se ela fosse exposta explicitamente.
Provavelmente ela está operando na posição que acabamos de considerar, que a mente
não poderia ter surgido de um mundo puramente material. Eu não declaro saber o que
é significado por “inteligível”; parece significar “familiar à imaginação”. Nada é menos
“inteligível”, em qualquer outro sentido, que a conexão entre um ato da vontade e a sua
realização. Mas obviamente, o tipo desejado de nexo entre causa e efeito é tal que só
poderia se dar entre “eventos” contemplados pela suposta lei da causalidade; as leis
que substituem a causalidade numa ciência como a física, não deixam espaço para
quaisquer dois eventos entre os quais um nexo pudesse ser buscado.

(3) “A causa compele o efeito em algum sentido no qual o efeito não compele a
causa.” Essa crença parece operar amplamente a contragosto do determinismo; mas na
realidade, ela está conectada com nossa segunda máxima, e cai assim que ela é
abandonada. Nós podemos definir “compulsão” do seguinte modo: “É dito de qualquer
conjunto de circunstâncias que ele compele A quando A deseja fazer algo prevenido
pelas circunstâncias, ou [A] se abstém de algo causado pelas circunstâncias”. Isso
pressupõe que algum significado tenha sido encontrado para a palavra “causa” – um
ponto ao qual devo retornar mais tarde. O que agora eu quero tornar claro é que
compulsão é uma noção muito complexa, envolvendo desejos impedidos. Enquanto
uma pessoa faz o que deseja, não há compulsão, por mais que seus desejos possam ser
calculáveis por ajuda de eventos anteriores. E onde o desejo não entra, não pode haver
questão sobre compulsão. Por isso, é geralmente desorientador considerar a causa
como algo que compele o efeito.

Uma versão mais vaga da mesma máxima substitui a palavra “determina” pela
palavra “compele”: nos é dito que a causa determina o efeito num sentido em que o
efeito não determina a causa. Não é muito claro o que se quer dizer por “determinar”; o
único sentido preciso, até onde eu saiba, é aquele de uma função ou de uma relação de
um para muitos. Se admitirmos a pluralidade de causas, mas não de efeitos, isto é, se
supomos que, dado uma causa, o efeito deve ser tal e tal, mas dado o efeito, a causa
pode ser uma entre várias alternativas, então podemos dizer que a causa determina o
efeito, mas não o efeito a causa. Pluralidade de causas, contudo, resulta apenas de se
conceber o efeito de modo vago e restrito – e, a causa, de modo preciso e amplo. Muitos
antecedentes podem “causar” a morte de um homem, porque sua morte é vaga e
restrita. Mas, se adotarmos o caminho oposto, tomando como “causa” a ingestão de

Anãnsi: Revista de Filosofia, Salvador, v. 1, n. 1, 2020. 184


Sobre a noção de causa

uma dose de arsênico e, como “efeito”, o estado completo do mundo cinco minutos
após, teremos uma pluralidade de efeitos ao invés de pluralidade de causas. Então, a
suposta falta de simetria entre “causa” e “efeito” é ilusória.

(4) “Uma causa não pode operar quando ela cessou de existir, porque o que
cessou de existir não é nada.” Esta é uma máxima comum; e um preconceito não-
expresso ainda mais comum. Ela possui, imagino, muito a ver com a atratividade da
“durée” de Bergson: já que o passado tem efeitos agora, ele deve existir em algum
sentido. O erro dessa máxima consiste na suposição de que “causas” operem de algum
jeito. Uma volição “opera” quando o que ela deseja acontece; mas nada pode operar
exceto uma volição. A crença de que causas “operam” resulta de assimilá-las,
conscientemente ou inconscientemente, às volições. Nós já vimos que, se é que causas
existem, elas devem ser separadas por um intervalo de tempo finito dos seus efeitos e,
portanto, causam seus efeitos após terem cessado de existir.

Pode-se objetar à definição acima de uma volição “operante” que somente opera
quando “causa” o que deseja, não quando meramente acontece de ser seguida pelo que
deseja. Isso certamente representa a posição comum do que se quer dizer por uma
volição “operando”, mas como ela envolve a própria noção de causação que estamos
engajados em combater, ela não nos está disponível como uma definição. Podemos
dizer que uma volição “opera” quando há uma lei em virtude da qual uma volição
similar sob circunstâncias similares será usualmente seguida por aquilo que ela deseja.
Mas essa é uma concepção vaga, e introduz ideias que ainda não consideramos. O que é
principalmente importante notar é que a noção usual de “operar” não nos está
disponível se rejeitarmos, como eu argumentei que deveríamos, a noção usual de
causação.

(5) “Uma causa não pode operar exceto onde ela está.” Essa máxima está muito
espalhada: ela foi impelida contra Newton, e tem permanecido uma fonte de
preconceitos contra a “ação à distância”. Na filosofia ela levou à negação da ação
transiente e, por consequência, ao monismo ou ao monadismo leibniziano. Como a
máxima análoga com respeito a contiguidade temporal, ela repousa sobre a suposição
de que causas “operam”, i.e., que elas são de algum modo obscuro análogas a volições.
E, como no caso da contiguidade temporal, as inferências extraídas dessa máxima
carecem completamente de fundamentação.

Eu retorno agora à questão: qual lei, ou leis, pode-se descobrir para ocupar o
lugar da suposta lei da causalidade?

Primeiro, sem ir além das tais uniformidades de sequências tais como são
contempladas pela lei tradicional, nós podemos admitir que, se alguma dessas
sequências foi observada em um grande número de casos e nunca se descobriu que
falhasse, há uma probabilidade indutiva à qual descobriremos ser mantida em casos
futuros. Se até agora foi visto que pedras quebram janelas, é provável que elas
continuarão a fazê-lo. É claro que isso presume o princípio indutivo, do qual a verdade

Anãnsi: Revista de Filosofia, Salvador, v. 1, n. 1, 2020. 185


Bertrand Russell

pode ser razoavelmente questionada; mas como esse princípio não é de nossa
preocupação presente, eu o tratarei como indubitável nesta discussão. Podemos então
dizer, no caso de qualquer de tais sequências frequentemente observadas, que o evento
anterior é a causa e o evento posterior o efeito.

Apesar disso, muitas considerações tornam tais sequências especiais muito


diferentes da relação tradicional de causa e efeito. Em primeiro lugar, a sequência, em
qualquer instância até agora não observada, não é mais do que provável, ao passo que
se supunha que a relação de causa e efeito fosse necessária. Eu não quero dizer com
isso meramente que não temos certeza de ter descoberto um verdadeiro caso de causa
e efeito; eu quero dizer que, mesmo quando temos um caso de causa e efeito nesse
atual sentido, tudo o que se quer dizer é que, com base na observação, é que é provável
que quando um ocorre o outro também ocorre. Portanto, no atual sentido, A pode ser
uma causa de B mesmo que existam casos onde B não se segue de A. Riscar um fósforo
será a causa de sua ignição, a despeito do fato de alguns fósforos estarem úmidos e
falharem em sua ignição.

Em segundo lugar, não será assumido que todo evento possui algum
antecedente que é a sua causa nesse sentido: nós só podemos acreditar em sequências
causais onde as acharmos, sem a pressuposição de que elas sempre serão encontradas.

Em terceiro lugar, qualquer caso de uma sequência suficientemente frequente


será causal em nosso presente sentido; por exemplo, não poderemos nos recusar em
dizer que a noite é a causa do dia. Nossa repugnância em dizer isso surge da facilidade
que temos em imaginar à falha da sequência, mas devido ao fato de que causa e efeito
devem ser separados por um intervalo de tempo finito, qualquer outra dessas
sequências pode falhar através da interposição de outras circunstâncias no intervalo.
Mill, ao discutir essa instância do dia e da noite, diz:
É necessário ao nosso uso da palavra causa, que devamos acreditar não
apenas que o antecedente sempre tenha sido seguido pelo consequente, mas
que, enquanto a constituição presente das coisas perdurar, sempre será assim.
(ibidem, §6, p. 338.)

Nesse sentido, nós devemos desistir da esperança de encontrar leis causais tais
como Mill contemplara; qualquer sequência causal que tenhamos observado pode ser
falsificada a qualquer momento sem a falsificação de quaisquer leis do tipo que as
ciências mais avançadas pretendem estabelecer.

Em quarto lugar, tais leis sobre sequências prováveis, embora úteis na vida
cotidiana e na infância da ciência, tendem a ser substituídas por leis bastante
diferentes assim que uma ciência adquire sucesso. A lei da gravitação ilustrará o que
ocorre em qualquer ciência avançada. Nos movimentos de corpos gravitando
mutuamente, não há nada que possa ser chamado de causa, e nada que possa ser
chamado de efeito; há meramente uma fórmula. Certas equações diferenciais podem
ser encontradas, as quais valem para cada instante para toda partícula no sistema, e
que, e dada a configuração e as velocidades em um instante, ou as configurações em

Anãnsi: Revista de Filosofia, Salvador, v. 1, n. 1, 2020. 186


Sobre a noção de causa

dois instantes, fornecem a configuração em qualquer instante anterior ou posterior


teoricamente calculável. Isso quer dizer, a configuração de qualquer instante é uma
função da configuração desse instante e das configurações em dois instantes dados.
Essa afirmação vale para toda a física, não apenas no caso particular da gravitação. Mas
não há nada que poderia ser propriamente chamado de “causa” e nada que poderia ser
propriamente chamado de “efeito” em tal sistema.

Sem dúvida, a razão pela qual a velha “lei da causalidade” tem continuado a
impregnar por tanto tempo os livros de filósofos é simplesmente que a ideia de uma
função não é familiar a maioria deles, e por isso eles procuram um enunciado
indevidamente simplificado. Não há questões sobre repetições, da “mesma” causa
produzindo o “mesmo” efeito; não é em qualquer similaridade entre causas e efeitos
em que consiste a constância das leis científicas, mas na similaridade de relações. E
mesmo “similaridade de relações” é uma frase muito simples; “similaridade de
equações diferenciais” é a única frase correta. É impossível afirmar isto acuradamente
em uma linguagem não-matemática; a abordagem mais próxima seria a seguinte:
“existe uma relação constante entre o estado do universo em qualquer instante e a taxa
de variação numa taxa na qual qualquer parte do universo está variando naquele
instante; e essa relação é muitos para um, i.e., tal que a taxa de variação na taxa de
variação é determinada quando o estado do universo é dado”. Se a “lei da causalidade”
deve ser algo a ser descoberto pela prática científica, a proposição acima tem mais
direito ser nomeada assim do que qualquer “lei da causalidade” a ser encontrada nos
livros dos filósofos.

A respeito do princípio acima, diversas observações devem ser feitas:

(1) Ninguém pode fingir que o princípio acima é a priori ou autoevidente ou


uma “necessidade do pensamento”. E também não é, em qualquer sentido, uma
premissa da ciência: ela é uma generalização empírica de um número de leis que são
elas mesmas generalizações empíricas.

(2) A lei não diferencia o passado do futuro: o futuro “determina” o passado no


exato mesmo modo em que o passado “determina” o futuro. A palavra “determina”,
aqui, tem um sentido puramente lógico: um certo número de variáveis “determina”
outra variável se essa outra variável é uma função delas.

(3) A lei não será verificável empiricamente a menos que o curso dos eventos
dentro de um volume suficientemente pequeno seja aproximadamente o mesmo em
quaisquer dois estados do universo que difiram apenas com respeito ao que está a uma
distância considerável do pequeno volume em questão. Por exemplo, os movimentos
dos planetas no sistema solar devem ser aproximadamente os mesmos como quer seja
que as estrelas fixas estejam distribuídas, desde que todas as estrelas fixas estejam
muito mais distantes do sol do que estão os planetas. Se a gravitação variasse
diretamente como a distância, de modo que as estrelas mais remotas fizessem a maior
diferença para a movimentação dos planetas, o mundo poderia ser tão regular e tão

Anãnsi: Revista de Filosofia, Salvador, v. 1, n. 1, 2020. 187


Bertrand Russell

sujeito às leis matemáticas como o é no presente, mas nunca poderíamos descobrir


esse fato.

(4) Embora a velha “lei da causalidade” não seja assumida pela ciência, assume-
se algo que podemos chamar de “uniformidade da natureza”, ou antes é aceito por
bases indutivas. A uniformidade da natureza não afirma o trivial princípio “mesma
causa, mesmo efeito”, mas o princípio de permanência das leis. Isto quer dizer que,
quando uma lei exibe, por exemplo, uma aceleração como uma função da configuração,
e descobre-se, através do passado observável, que foi mantida, é esperado que ela
continuará a se manter no futuro, ou que, se ela não se manter, há alguma outra lei,
concordando com a suposta lei a respeito do passado, que se manterá no futuro. O
fundamento desse princípio é simplesmente o fundamento indutivo que se descobriu
ser verdadeiro em muitas instâncias; consequentemente, o princípio não pode ser
considerado certo; mas apenas com uma probabilidade cujo grau não pode ser
estimado acuradamente.

A uniformidade da natureza, no sentido acima, embora seja assumida na prática


científica, não deve, em sua generalidade, ser tomada como um tipo de premissa
principal, sem a qual todo o discurso científico estaria em erro. A suposição de que
todas as leis da natureza são permanentes possui, é claro, menos probabilidade que a
suposição que esta ou aquela lei particular é permanente; e a suposição que uma lei
particular é permanente para todo o tempo tem menos probabilidade que a suposição
que ela será válida até uma tal e tal data. Ciência, em qualquer dado caso, assumirá o
que o caso requer, mas não mais. Para a produção do Nautical Almanac de 1915 ela
suporá que a lei da gravitação permanecerá verdadeira até o fim daquele ano; mas não
fará suposição quanto a 1916 até que se chegue no próximo volume do almanaque.
Claramente, esse procedimento é ditado pelo fato que a uniformidade da natureza não
é conhecida a priori, mas é uma generalização empírica, tal como “todos homens são
mortais”. Em todos esses casos, é melhor argumentar imediatamente das instâncias
particulares dadas para a nova instância do que argumentar através de uma premissa
principal: a conclusão é apenas provável em qualquer um dos casos, mas requer uma
probabilidade maior no caso anterior do que no posterior.

Em toda ciência temos que distinguir dois tipos de leis: primeiro, aquelas que
são verificáveis empiricamente, mas com probabilidade apenas aproximada; e, em
segundo, aquelas que não são verificáveis, mas podem ser exatas. A lei da gravitação,
por exemplo, em suas aplicações ao sistema solar, é apenas empiricamente verificável
quando se supõe que a matéria fora do sistema solar pode ser ignorada para tais
propósitos; acreditamos que isso seja verdadeiro apenas aproximadamente, mas não
podemos verificar empiricamente a lei da gravitação universal que acreditamos ser
exata. Esse ponto é muito importante em conexão ao que podemos chamar de
“sistemas relativamente isolados”. Esses podem ser definidos como se segue:

Anãnsi: Revista de Filosofia, Salvador, v. 1, n. 1, 2020. 188


Sobre a noção de causa

Um sistema relativamente isolado durante um dado período de tempo é tal que,


dentro de uma atribuível margem de erro, comportar-se-á da mesma maneira através
daquele período apesar de como o resto do universo possa estar constituído.

Um sistema pode ser chamado “praticamente isolado” durante um dado período


se, embora possam haver estados no resto do universo que produziriam mais do que o
que foi atribuído na margem de erro, há razões para acreditar que tais estados não
ocorram de fato.

Falando estritamente, nós devemos especificar em relação ao que o sistema é


relativamente isolado. Por exemplo, a terra é relativamente isolada em relação a
corpos em queda, mas não em relação a marés; ela é praticamente isolada em relação a
fenômenos econômicos, contudo, se a teoria das manchas solares de Jevon sobre crises
comerciais fosse verdadeira, ela não teria sido sequer praticamente isolada nesse
respeito.

Será observado que não podemos provar antecipadamente que um sistema é


isolado. Isso será inferido do fato observado que uniformidades próximas podem ser
estabelecidas para esse sistema sozinho. Se fossem conhecidas as leis completas para
todo o universo, a isolação do sistema poderia ser deduzida delas; assumindo a lei da
gravitação, por exemplo, a isolação prática do sistema solar a esse respeito pode ser
deduzida com ajuda do fato que há muito pouca matéria em sua vizinhança. Mas deve-
se observar que sistemas isolados somente são importantes ao fornecer uma
possibilidade de descobrir leis científicas; eles não possuem importância teórica na
estrutura acabada da ciência.

O caso onde é dito que um evento A “cause” um outro evento B, o qual filósofos
tomam como fundamental, é realmente apenas a instância mais simplificada de um
sistema praticamente isolado. Como um resultado de leis científicas gerais, pode
acontecer que sempre que um evento A ocorra ao longo de um determinado período,
ele seja seguido por B; nesse caso, A e B formam um sistema que é praticamente
isolado ao longo desse período. Contudo, caso isso ocorra, deverá ser considerado
como um caso de boa sorte; isso sempre se deverá a circunstâncias especiais, e não
seria verdadeiro se o resto do universo tivesse sido diferente apesar de sujeito às
mesmas leis.

Tem-se suposto que a função essencial que a causalidade realiza é a


possibilidade de inferir o futuro através do passado, ou, de modo mais geral, eventos
em quaisquer tempos de eventos em certos tempos especificados. Qualquer sistema no
qual tal inferência é possível pode ser chamado de um sistema “determinístico”.
Podemos definir determinístico do seguinte modo:

Um sistema é dito “determinístico” quando, dado certa informação e1, e2,… en,
respectivamente aos tempos t1, t2,… tn, concernentes a esse sistema, se Et é o estado
desse sistema em qualquer tempo t, [então] há uma relação funcional da forma:

Anãnsi: Revista de Filosofia, Salvador, v. 1, n. 1, 2020. 189


Bertrand Russell

Et = f(e1, t1, e2, t2, …, en, tn, t). (A)

O sistema será “determinístico ao longo de um dado período de tempo” se t, na


fórmula acima, puder ser qualquer dos tempos dentro do período, embora fora desse
período a fórmula possa não mais ser verdadeira. Se o universo como um todo é um
sistema tal como esse, o determinismo é verdadeiro para o universo; se não, não. Eu
chamarei de “determinado” um sistema que é parte de um sistema determinístico; eu
chamarei de “inconstante” um sistema que não é parte de quaisquer tais sistemas.

Eu chamarei aos eventos e1, e2,… en, de “determinantes” do sistema. É de se


observar que um sistema que possui um conjunto de determinantes, em geral, terá
muitos. Por exemplo, no caso dos movimentos dos planetas, as configurações do
sistema solar em quaisquer dois dados momentos serão determinantes.

Nós podemos usar outra ilustração vinda da hipótese do paralelismo psicofísico.


Vamos supor, para os propósitos desta ilustração, que um dado estado do cérebro
sempre corresponda a um dado estado da mente e vice-versa, i.e., que existe uma
relação um para um entre eles, tal que cada um é uma função do outro. Também
podemos assumir, o que é praticamente certo, que a um dado estado do cérebro
corresponda um estado de todo o universo material. Segue-se que, se n estados do
universo material são determinantes do universo material, então n estados de uma
dada mente humana são determinantes de todo o universo material e mental –
supondo, com isto dito, que o paralelismo psicofísico é verdadeiro.

A ilustração acima é importante em sua conexão com uma certa confusão que
parece ter afligido aqueles que filosofaram sobre a relação entre mente e matéria. É
frequentemente pensado que, se um estado da mente está determinado quando um
estado do cérebro está dado; e se o mundo material forma um sistema determinístico,
então a mente está “sujeita” à matéria em algum sentido no qual a matéria não está
“sujeita” à mente. Mas se o estado do cérebro também está determinado quando o
estado da mente está dado, isso deve ser exatamente tão verdadeiro considerando a
matéria como sujeita à mente, como seria considerando a mente como sujeita à
matéria. Poderíamos, teoricamente, desenvolver a história da mente sem sequer
mencionar matéria, e então, ao fim, deduzir que a matéria deve ter, nesse período,
passado por uma história correspondente. É verdade que se a relação entre cérebro e
mente fosse muitos para um, e não um para um, haveria uma dependência
unidirecional da mente sob o cérebro, enquanto que contrariamente, se a relação fosse
um para muitos, como Bergson supõe, haveria uma dependência unidirecional do
cérebro sob a mente. Mas, em qualquer caso, a dependência envolvida é apenas lógica;
não significa que sejamos obrigados a fazer coisas que não desejamos fazer, que é o que
pessoas instintivamente imaginem que tal [dependência] signifique.

Para uma outra ilustração podemos usar o caso do mecanismo e da teleologia.


Um sistema pode ser definido como “mecânico” quando ele possui um conjunto de
determinantes que são puramente materiais, tais como as posições de certos pedaços

Anãnsi: Revista de Filosofia, Salvador, v. 1, n. 1, 2020. 190


Sobre a noção de causa

de matéria em certos tempos. É uma questão aberta se o mundo da mente e matéria, tal
como o conhecemos, é ou não um sistema mecânico; vamos supor, para fins de
argumentação, que ele é um sistema mecânico. Essa suposição – eu argumento – não
joga qualquer luz sob a questão do universo ser ou não um sistema “teleológico”. É
difícil definir acuradamente o que se quer dizer com um sistema “teleológico”, mas o
argumento não é muito afetado pela definição particular que adotarmos. De modo
amplo, um sistema teleológico é um no qual propósitos são realizados, i.e., no qual
certos desejos – aqueles que são mais profundos, ou nobres, ou fundamentais, ou
universais, ou o que seja – são seguidos por suas realizações. Agora, o fato – se for um
fato – do universo ser mecânico não tem qualquer peso na questão de se o universo é
teleológico no sentido acima. Pode haver um sistema mecânico no qual todos desejos
são realizados; e haver um no qual todos desejos são frustrados. A questão sobre se, e o
quanto, o nosso mundo é teleológico não pode, portanto, ser resolvida provando que o
mundo é mecânico; e o desejo de que ele seja teleológico não é um fundamento para
desejar que ele não seja mecânico.

Em todas essas questões, há uma grande dificuldade em evitar confusões entre o


que podemos inferir e o que está, de fato, determinado. Vamos considerar, por um
momento, os vários sentidos no qual o futuro possa estar “determinado”. Há um
sentido – e um muito importante – no qual ele está determinado com bastante
independência das leis científicas, nomeadamente, o sentido no qual ele será o que ele
será. Todos nós consideramos o passado como determinado simplesmente pelo fato de
ele ter acontecido; mas devido ao acidente da memória funcionar retrospectivamente e
não prospectivamente, deveríamos considerar o futuro como igualmente determinado
pelo fato de que ele acontecerá. “Mas”, nos é dito, “você não pode alterar o passado, ao
passo que você pode, em alguma medida, alterar o futuro.” Parece-me que essa posição
repousa justamente naqueles erros a respeito da causação, os quais têm sido meu
objetivo eliminar. Você não pode tornar o passado outro do que foi – verdade, mas essa
é uma mera aplicação da lei da contradição. Se você já sabe como foi o passado,
obviamente é inútil desejá-lo diferente. Mas você também não pode tornar o futuro
diferente do que ele será; isso é novamente uma aplicação da lei da contradição. E se
lhe ocorre de saber o futuro – p. ex. no caso de um eclipse vindouro – é tão inútil
desejá-lo diferente como desejar o passado diferente. “Mas”, será respondido, “nossos
desejos podem, algumas vezes, causar que o futuro seja diferente do que ele seria, caso
eles não existissem, e eles não podem ter tal efeito sobre o passado.” Isso é novamente
uma mera tautologia. Sendo o efeito definido como algo subsequente à sua causa,
obviamente não podemos ter qualquer efeito sob o passado. Mas isso não significa que
o passado não teria sido diferente se nossos desejos presentes tivessem sido
diferentes. Obviamente, nossos desejos presentes são condicionados pelo passado e,
portanto, não poderiam ter sido diferentes a menos que o passado tivesse sido
diferente; consequentemente, se nossos desejos presentes fossem diferentes, o
passado seria diferente. É claro, o passado não pode ser diferente do que foi, mas tão
pouco podem nossos desejos presentes serem diferentes do que são; de novo, isso é

Anãnsi: Revista de Filosofia, Salvador, v. 1, n. 1, 2020. 191


Bertrand Russell

meramente a lei da contradição. Os fatos parecem ser meramente (1) que desejar
geralmente depende de ignorância, e que é portanto mais comum com respeito ao
futuro do que com respeito ao passado, (2) que quando um desejo se concerne ao
futuro, ele e sua realização muito frequentemente formam um “sistema praticamente
isolado”, i.e., muitos desejos em respeito ao futuro são realizados. No entanto, não
parece haver dúvida que a principal diferença em nossos sentimentos surja do fato
acidental do passado, mas não do futuro, poder ser conhecido pela memória.

Embora o sentido de “determinado” no qual o futuro está determinado pelo


mero fato de que será o que será seja suficiente (ao menos, assim me parece) para
refutar alguns adversários do determinismo, particularmente Sr. Bergson e os
pragmatistas, ainda não é o que muitas pessoas têm em mente quando elas falam do
futuro como determinado. O que elas têm em mente é uma fórmula por meio da qual o
futuro pode ser exibido e pelo menos calculado teoricamente como uma função do
passado. Mas nesse ponto encontramos uma grande dificuldade que atinge o que já foi
dito acima sobre sistemas determinísticos, assim como o que é dito por outros.

Se são admitidas fórmulas de qualquer grau de complexidade, não importado


quão grande, pareceria que qualquer sistema, cujo estado em um dado momento é uma
função de certas quantidades mensuráveis, deve ser um sistema determinístico. Vamos
considerar, em ilustração, uma partícula material singular, cujas coordenadas no
tempo t são x1, y1, z1. Então de qualquer modo que a partícula se mova, deverá haver,
teoricamente, funções f1, f2, f3, tais que

x1 = f1(t), y1 = f2(t), z1 = f3(t).

Segue-se que, teoricamente, o estado completo do universo material no tempo t


deve ser capaz de ser exibido como uma função de t. Consequentemente, nosso
universo será determinístico no sentido definido acima. No entanto, caso isso seja
verdade, nenhuma informação sobre o universo é transmitida ao se afirmar que ele é
determinístico. É verdade que as fórmulas envolvidas podem ser de complexidade
estritamente infinita; e por isso não ser praticamente capaz de serem escritas ou
apreendidas. Mas, exceto do ponto de vista do nosso conhecimento, isso pode parecer
um detalhe; em si mesmo, as considerações acima são sólidas, o universo material deve
ser determinístico, deve ser sujeito às leis.

Contudo, isso é plenamente o que não se pretendia. A diferença entre essa


posição e a posição pretendida pode ser exposta como se segue. Dada alguma fórmula
que se encaixe aos fatos até aqui – digamos, a lei da gravitação – haverá um número
infinito de outras fórmulas, não distinguíveis empiricamente dela no passado, mas
divergindo cada vez mais dela no futuro. Consequentemente, mesmo assumindo que há
leis persistentes, nós não devemos ter razões para assumir que a lei do inverso do

Anãnsi: Revista de Filosofia, Salvador, v. 1, n. 1, 2020. 192


Sobre a noção de causa

quadrado se manterá no futuro: pode ser que alguma das leis previamente
indistinguíveis se manterá. Não podemos dizer que toda lei previamente mantida será
mantida no futuro, porque fatos passados que obedecem a uma lei também obedecerão
a outras previamente indistinguíveis, mas divergentes no futuro. Consequentemente
deve haver, em cada momento, leis previamente não violadas que são agora violadas
pela primeira vez. O que a ciência faz, de fato, é selecionar a fórmula mais simples que
se ajustará aos fatos. Mas isso, muito obviamente, é um preceito meramente
metodológico, não uma lei da Natureza. Se, após algum tempo, a fórmula mais simples
deixar de ser aplicável, a fórmula mais simples que ainda permanece aplicável é
selecionada e a ciência não tem a sensação de que um axioma tenha sido falseado.
Somos então deixados com o fato bruto de que, em muitas áreas da ciência, descobriu-
se que leis muito simples têm se mantido até agora. Não se pode considerar que esse
fato possua algum fundamento a priori; também não pode ser usado para suportar
indutivamente a opinião de que as mesmas leis continuarão; pois a cada momento leis
previamente verdadeiras estão sendo falseadas, ainda que nas ciências mais avançadas
essas leis são menos simples que aquelas que permanecerão verdadeiras. Além disso,
seria falacioso argumentar indutivamente a partir do estado das ciências avançadas
sobre o futuro estado das outras, pois pode muito bem ser que as ciências avançadas
são avançadas simplesmente por que, até agora, seu objeto de estudo tem obedecido
leis simples e facilmente asseveráveis, enquanto que com o objeto de estudo das outras
ciências não tem sido assim.

As dificuldades que viemos considerando parecem solucionadas em parte,


senão completamente, pelo princípio de que o tempo não deve ser incluído
explicitamente em nossas fórmulas. Todas leis mecânicas exibem aceleração como uma
função de configuração, não de configuração e tempo conjuntamente; e esse princípio
da irrelevância do tempo pode ser estendido para todas leis científicas. De fato, nós
podemos interpretar a “uniformidade da natureza” como significando apenas isso, que
nenhuma lei científica inclui o tempo como um argumento, a menos que, é claro, ele
seja dado em uma forma integrada, no caso onde o lapso de tempo, embora não o
tempo absoluto, pode aparecer em nossas fórmulas. Se essa consideração é suficiente
para superar completamente nossa dificuldade, eu não sei; mas em todo caso ela faz
muito para diminuí-la.

Servirá para ilustrar o que foi dito, se o aplicarmos à questão do livre arbítrio.

(1) Determinismo em relação à vontade é a doutrina de que nossas volições


pertencem a algum sistema determinístico, i.e., são “determinadas” no sentido acima
definido. Se essa doutrina é verdadeira ou falsa, é uma mera questão factual: nenhuma
consideração a priori (se nossas discussões previas estiverem corretas) pode existir em
qualquer dos lados. De um lado, não há uma categoria a priori da causalidade, mas
meramente certas uniformidades observadas. Na verdade, há uniformidades
observadas em respeito à volição; portanto há alguma evidência empírica de que
volições são determinadas. Mas seria muito apressado sustentar que a evidência é

Anãnsi: Revista de Filosofia, Salvador, v. 1, n. 1, 2020. 193


Bertrand Russell

esmagadora, e é bem possível que algumas volições, assim como algumas outras coisas,
não são determinadas, exceto no sentido em que estabelecemos que tudo deve ser
determinado.

(2) Mas, por outro lado, o sentido subjetivo de liberdade, alegado algumas vezes
contra o determinismo, não tem qualquer peso sobre a questão. A posição de que ele
tenha um peso repousa na crença de que causas compelem seus efeitos, ou que a
natureza impõe obediência às suas leis assim como governantes o fazem. Essas são
meras suposições antropomórficas, devido à assimilação de causas com volições e de
leis naturais com éditos humanos. Nós sentimos que nossa vontade não é compelida,
mas isso apenas significa que ela não é outra do que aquela que escolhemos que seja. É
um dos deméritos da teoria tradicional da causalidade que ela tenha criado uma
oposição artificial entre determinismo e liberdade da qual estamos conscientes
introspectivamente.

(3) Além da questão geral sobre se volições são determinadas, há ainda uma
questão sobre se elas são determinadas mecanicamente, i.e., se elas fazem parte do que
foi definido acima como um sistema mecânico. Essa é a questão sobre se elas formam
parte de um sistema com determinantes puramente materiais, i.e., se há leis das quais,
dado certa informação material, torna todas as volições funções dessa informação.
Aqui novamente, há evidência empírica até certo ponto, mas ela não é conclusiva com
relação a todas as volições. É importante observar, contudo, que mesmo se volições
forem partes de um sistema mecânico, isso de forma alguma implica qualquer
supremacia da matéria sobre a mente. Pode muito bem ser que o mesmo sistema que é
suscetível a determinantes materiais também seja suscetível a determinantes mentais;
portanto um sistema mecânico pode ser determinado por um conjunto de volições,
assim como por um conjunto de fatos materiais. Pareceria, por esse motivo, que são
falaciosas as razões pelas quais as pessoas não gostam da posição de que volições são
mecanicamente determinadas.

(4) A noção de necessidade, que é frequentemente associada com o


determinismo, é uma noção confusa não dedutível legitimamente do determinismo.
Três significados são comumente embaraçados quando se fala de necessidade:

(α) Uma ação é necessária quando ela será realizada por mais que o agente
possa desejar fazer o contrário. Determinismo não implica que ações são necessárias
nesse sentido.

(β) Uma função proposicional é necessária quando todos seus valores são
verdadeiros. Esse sentido não é relevante para nossa presente discussão.

(γ) Uma proposição é necessária em relação a um dado constituinte quando ela é


o valor de uma função proposicional, com esse constituinte como argumento, em
outras palavras, quando ela permanece verdadeira por mais que o constituinte possa
ser variado. Nesse sentido, em um sistema determinístico, a conexão de uma volição
com seus determinantes é necessária se o tempo no qual os determinantes ocorrem

Anãnsi: Revista de Filosofia, Salvador, v. 1, n. 1, 2020. 194


Sobre a noção de causa

seja tomado como o constituinte a ser variado, o intervalo de tempo entre os


determinantes e a volição sejam mantidos constantes. Mas esse sentido de necessidade
é puramente lógico, não tendo nenhuma importância emocional.

Agora podemos resumir nossa discussão sobre a causalidade. Vimos primeiro


que a lei da causalidade, como usualmente exposta por filósofos, é falsa e não é
empregada na ciência. Nós então consideramos a natureza das leis científicas e vimos
que, ao invés de estabelecerem que um evento A é sempre seguido por um outro
evento B, elas estabelecem relações funcionais entre certos eventos em certos tempos,
os quais nós chamamos de determinantes, e outros eventos em tempos anteriores ou
posteriores ou ao mesmo tempo. Fomos incapazes de encontrar qualquer categoria a
priori envolvida: a existência de leis científicas se mostrou um fato puramente
empírico, não necessariamente universal, exceto de uma forma trivial e cientificamente
inútil. Vimos que um sistema com um conjunto de determinantes pode muito bem
possuir outros conjuntos de tipos bem diferentes, que, por exemplo, um sistema
determinado mecanicamente também pode ser determinado teleologicamente ou
volitivamente. Finalmente consideramos o problema do livre arbítrio: aqui vimos que
as razões para se supor que volições sejam determinadas é forte mas não conclusiva; e
decidimos que mesmo se volições forem determinadas mecanicamente, não há razão
para negar liberdade no sentido revelado pela introspecção, ou para supor que eventos
mecânicos não são determinados por volições. O problema do livre arbítrio versus o
determinismo é por isso, se estivermos corretos, principalmente ilusório, mas em parte
ainda incapaz de ser resolvido decisivamente.

Referências

BALDWIN, James Mark. Dictionary of Philosophy and Psychology. Vol. 1. New York:
The Macmillam Company, 1901. Disponível em: <https://archive.org/details/dictiona
ryphilo02baldgoog>. Último acesso: 25 de Jun. 2020.

BALDWIN, James Mark. Dictionary of Philosophy and Psychology. Vol. 2. New York:
The Macmillam Company, 1920. Disponível em: <https://archive.org/details/dictiona
ryofphil21bald/mode/2up>. Último acesso: 25 de Jun. 2020.

BERGSON, Henri. Time and Free Will: Essay on the Immediate Data of Consciousness.
New York: Dover Publications Inc, 2001. Traduções nossas.

MILL, John Stuart. A System of Logic Ratiocinative and Inductive: Being a Connected
View of the Principles of Evidence and the Methods of Scientific Investigation. Toronto:
University of Toronto Press, Routledge & Kegan Paul, 1974. Traduções nossas.

WARD, James. Naturalism and agnosticism: the Gifford lectures delivered before the
University of Aberdeen in the years 1896-1898. London: Adam and Charles Black, 1903.

Recebido em: 08 de jul. 2020 / Aceito em: 23 de ago. 2020.

Anãnsi: Revista de Filosofia, Salvador, v. 1, n. 1, 2020. 195


Universidade do Estado da Bahia
Departamento de Educação – Campus I
Anãnsi: Revista de Filosofia, Salvador, v. 1, n.1, 2020

O Tempo sem o Tornar-se 1


Quentin Meillassoux
Tradução: Rafaela Silva Borges 2
Introdução, Revisão e Notas de Otávio Souza e Rocha Dias Maciel 3

Introdução ao Texto

O artigo que apresentamos para o público brasileiro é um marco de um dos


primeiros movimentos globais de filosofia do século XXI, comumente referido como
realismo especulativo. O movimento surgiu por diversas vias transversais, mais ou
menos isoladas, reunidas quase que por acaso, sem a intenção de fundar uma escola ou
uma nova doutrina. Apesar do sucesso global, o movimento permanece fragmentário
em diversas correntes que se unem sob este indexador em praticamente apenas um
acordo: a necessidade da crítica ao correlacionismo filosófico, diagnosticado
notadamente por Quentin Meillassoux.

§1 Estado da filosofia no século XX

A filosofia do século passado, ao menos desde o pós-guerra, tem se encavernado


numa série de pensadores que advogaram o tal “giro linguístico”. Poucos ousaram
fazer epistemologia, ética ou política sem considerações da linguagem como
constituidora do ser humano, uma ontologia social que é “feita de” linguagem. Quando
algo mais ousado era proposto, geralmente o foi ao modo da ressurreição de outros
elementos da intersubjetividade humana, como a luta de classes, o inconsciente, o
poder disciplinar, o mercado – todos, não raro, mediados pela linguagem. O mundo
real, concreto, parecia ser apenas feito de intersubjetividades humanas – algo que, nas
palavras de Markus Gabriel, era uma espécie de “alucinação coletiva transcendental
mediada pela história do desenvolvimento cultural da humanidade”. Entre várias
vantagens destas filosofias, elas têm a “vantagem psicológica de bajular o nosso
narcisismo” (2016, 21).

1 Texto original: MEILLASSOUX, Quentin. ‘Time Without Becoming’ in. Mimesis International Philosophy
n. 6. Edited by Anna Longo. 2014.
2 Graduanda em Direito pela Universidade de Brasilia. E-mail: rafaelaborges.fd@gmail.com.

3 Doutorando em Filosofia pela Universidade de Brasília. E-mail: oe.maciel@gmail.com.


O Tempo sem o Tornar-se

Duas alternativas foram as mais comuns. A primeira foi insistir, como o finado
Stephen Hawking insistiu tanto, na fissão irreconciliável entre ciência e filosofia. As
ciências físicas, químicas, biológicas e astronômicas viram no estado caótico e
alucinatório da filosofia do linguismo uma verdadeira crise da razão. Em crise, a
filosofia não podia mais ajudar, contribuir, ajudar a determinar os rumos da realidade.
A ciência declara independência de uma filosofia perdida na sua própria propaganda,
abraçando um mecanicismo, cientificismo e neopositivismos debilitantes. Não é raro,
até hoje, ouvirmos os alunos de ensino médio, e até mesmo pessoas do ensino superior,
defendendo que são “de humanas” ou são “de exatas”, comprando a fissão
irreconciliável que declara, entre várias coisas, o que não diz: a opção por operar
pontos-cegos de duas áreas que, outrora aliadas, ainda que não sempre harmônicas,
agora se afogam voluntariamente em suas próprias incapacidades obstinadas.

A segunda alternativa foi capitalizar na alucinação coletiva que aboliu as coisas-


em-si, o mundo real e uma natureza que não era nada além de escrava mecanizada do
humano. Esta alternativa chegou à conclusão de que tudo é hiperincomensurável, nas
palavras de Bruno Latour em seu clássico Jamais Fomos Modernos (1991). Isso significa
que, se estamos num cenário da intersubjetividade radical que aboliu a realidade para
fora dos sujeitos, então o que o sujeito disser que é, passa-se por verdade. A Verdade
deixa de existir, sendo nem correspondência e nem coerência com um mundo real,
visto que este fora abolido para fora da alucinação coletiva da modernidade tardia. O
que se vendia como emancipação e gozo irrestrito prometido pelo “tudo pode” de
certos intelectuais iluminados e ativistas de Facebook, logo encontrou sua
instrumentalização. Já que tudo pode e só depende de jogos de forças intersubjetivas, o
fanatismo ressurge vigorosamente. Por que não falar na terra plana, no ozônio retal e
em certos medicamentos como curandeirismo infalível como uma destas pós-
verdades? Melhor ainda, como contradizer estas pessoas se abolimos a realidade? No
reino da “pós-verdade”, quem governa são os Trumps e Bolsonaros.

§2 Movimentos e reformas no século XX

Este cenário desanimador precisa mudar. Compartilhamos com Meillassoux a


necessidade de revitalizar e reequipar a filosofia para combater o fanatismo, o
obscurantismo, o irracionalismo – sejam eles da pós-verdade da emancipação
alucinatória, seja da pós-verdade cloroquínica, seja do cientificismo best-seller. No
entanto, para voltar a ser uma poderosa aliada, no século XXI vemos a filosofia
renascer e regozijar na volta daquela que nunca efetivamente foi embora: a metafísica.
O retorno das disciplinas metafísicas, como ontologia e cosmologia, tem sua história
espalhada de forma razoavelmente fragmentária no século XX. Vemos especialmente
nas obras de Charles S. Peirce, William James e Henri Bergson os prelúdios deste
renascimento, trabalhados em exímios detalhamentos nas obras de Alfred N.
Whitehead (1861-1947) e Nicolai Hartmann (1882-1950). Ambos transitavam da física
matemática e da biologia e medicina, respectivamente, para propor sistemas

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Quentin Meillassoux

metafísicos categoriais vastamente complexos, onde ciência e filosofia foram


profundamente reordenadas em uma coordenação surpreendente. Vastamente
esquecidos no pós-guerra, quando estes contribuintes de um realismo complexo,
digamos assim, são lembrados, acontece apenas restringidos ao linguismo ou ao
cientificismo.

Dois autores devem ser lembrados em sua odisseia de revitalizar a metafísica no


final do século XX. Bruno Latour, nascido em 1947, começa sua carreira como teólogo,
mudando para a antropologia e se dedicando aos Estudos das Ciências. Longe de cair
na alucinação da intersubjetividade moderna, Latour seguia os atores científicos em
seus laboratórios como um antropólogo segue os pajés e guerreiros de uma tribo.
Fazendo antropologia da ciência, Latour descobre que o sucesso científico está
vastamente em fazer diferente do que eles dizem estar fazendo: ao invés de capitalizar
na subjetividade humana, o cientista não usa esta ferramenta, deixando proliferar as
afinidades dos elétrons, as linguagens dos insetos, as vozes de Gaia. Descobre que o
discurso universalizante e purificador dos modernos é defendido por certos
cientificistas, mas os cientistas se esforçam na produção de híbridos, de quase-objetos,
de quase-sujeitos, na proliferação de modos de veridicção e em uma cuidadosa ecologia
das práticas: uma verdadeira metafísica pragmática. Seu espírito geral pode ser
capturado na saborosa citação:

“Coisas-em-si? Elas estão muito bem, obrigado. E como vai você? Você reclama
sobre coisas que não foram honradas por sua visão? Você sente que a estas coisas falta
a iluminação da sua consciência? Mas se você perdeu a liberdade galopante das zebras
na savana nesta manhã, o problema é seu; as zebras não se sentirão tristes que você
não esteve lá. Do contrário, você as teria domado, matado, fotografado ou estudado. Às
coisas-em-si não falta nada da mesma forma que na África não faltavam brancos antes
da chegada deles” (Latour, Irreduções, Interlúdio IV).

Temos também Alain Badiou, nascido em 1937. Desde cedo envolvido com
movimentos políticos, lutou pela descolonização da Algéria e participou de vertentes
maoístas dos protestos do famoso Maio de 1968. Curiosamente, e talvez um pouco
contraintuitivo para o público geral, sua grande paixão intelectual é a matemática e a
lógica. Seus trabalhos sobre a Teoria dos Conjuntos, de George Cantor, geraram
interessantes conexões de ontologia dos números, contingência de conjuntos
extensionais e pensar renovações políticas. Crítico do pós-estruturalismo de Deleuze e
Lyotard, Badiou abraça um renovado platonismo que o aproximou, ao mesmo tempo,
da filosofia da religião e da filosofia da ciência. Sua trilogia O Ser e o Evento (1988, 2006
e 2018) é uma das mais instigantes obras a cruzar tantas áreas, ciências e metafísicas,
mostrando que a criatividade filosófica está longe de ser esgotada. Seu orientando,
Quentin Meillassoux, é nosso próximo tópico.

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O Tempo sem o Tornar-se

§3 Quentin Meillassoux: Depois da Finitude

Nascido em 1967 em Paris, Meillassoux dá prosseguimento ao ímpeto filosófico


de Badiou para a filosofia da matemática e para a teoria dos conjuntos. Seu livro
principal, Depois da Finitude, foi lançado em 2006 e prefaciado por Badiou. Em 2008 foi
traduzido para o inglês por Ray Brassier, pensador que sugeriu a alcunha “realismo
especulativo”. Embora Cantor e Badiou sejam figuras importantes para este livro,
Meillassoux vai recuperar em Galileu e em Descartes o que ele quer chamar de o
Grande Lá-Fora (“Grand Dehors”), a realidade fora da subjetividade humana – ou, mais
exatamente, fora do círculo correlacionista. Para Meillassoux, a filosofia da Revolução
Científica, elaborada tanto em Descartes como em Bacon e Locke, é uma espécie de
paraíso perdido.

Galileu, Newton e Copérnico descobriram uma realidade que funcionava por


conta própria, sem o input humano – uma realidade que tinha suas leis próprias, seus
direcionamentos próprios, e seus desafios que atingiam a todos. Descentralizaram não
apenas a Terra, mas também o Humano do centro do universo. Descobriram a natureza
escrita em caracteres matemáticos, não nas confusas fórmulas obscuras medievais.
Chegaram ao conceito de qualidades primárias: na formulação de Locke, aquelas que
mantêm suas realidades independentes do observador – enquanto as qualidades
secundárias, as que dependem do sujeito que percebe, são postas entre parêntesis na
busca da ciência. Havia um absoluto que era separado da cognição, uma realidade em
si, que mantinha a regularidade das leis cósmicas.

Meillassoux sugere, na contramão de toda a filosofia moderna, que a grande


“catástrofe” veio com Kant. Ao invés de trabalhar nas qualidades primárias, vemos
Kant, na autoproclamada “Revolução Copernicana” de seu pensamento, fazer
exatamente o oposto do que Descartes, Galileu e Copérnico fizeram. Ao invés de
descentrar do sujeito, Kant afunda a objetividade na intersubjetividade humana. O
sujeito, que havia sido liberto de ser centro de tudo, agora volta a ser o centro da
filosofia pós-kantiana. Meillassoux nomeia isso ironicamente de Contrarrevolução
Ptolomaica, o retorno do antropocentrismo, a fixação no correlato “sujeito – objeto”;
“humano – mundo”; onde mundo e objeto são conhecidos na medida em que se
conhece as condições humanas de acesso humano. Este, em poucas palavras, é o círculo
correlacionista.

O cenário só piora quando o próximo passo, meio que evidente, se realiza. Se a


realidade em si não interessa, o que interessa é apenas o acesso intersubjetivo humano.
O antropocentrismo é convertido em ontologia social no idealismo alemão, que toma
para si a missão de abolir a coisa-em-si. Daí, o que sobra? Apenas a alucinação coletiva
que Markus Gabriel mencionara, o que Meillassoux vai nomear de metafísica da
subjetividade. Em nossa interpretação (Maciel, 2017), esta é a meta-metafísica de todas
as filosofias modernas que, mesmo em suas vertentes mais antimetafísicas, são todas
fundadas na exageração filosófica de algum elemento da intersubjetividade humana: o
Espírito hegeliano, a luta de classes marxista, o vitalismo francês do século XIX, a

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Quentin Meillassoux

vontade de potência nietzschiana, a emancipação pós-moderna, a pós-verdade


contemporâneas.

Meillassoux nos apresenta uma quarta alternativa. Não pretende retornar a um


realismo ingênuo, mas também não vai comprar a inteireza do projeto e dos limites
kantianos. Seu inimigo é claramente as metafísicas da subjetividade. Sua proposta,
delineada de forma resumida e acessível no presente artigo traduzido por Rafaela
Borges, aparece sob o nome materialismo especulativo. Veremos como o retorno das
qualidades primárias, o uso do correlato kantiano como pista de decolagem e a
matemática dos conjuntos nos deixa às portas com o princípio da factialidade e com
sua teoria do Hipercaos. Uma avançada matemática hipercaótica consegue capturar a
realidade hipercaótica sem usar de recursos subjetivistas.

§4 O movimento do realismo especulativo

Não apenas Meillassoux, mas os primeiros envolvidos no que Brassier chamou


de “realismo especulativo” já vinham seguindo carreiras filosóficas mais ou menos
solitárias e fragmentárias. Em abril de 2007, no Goldsmiths College da Universidade de
Londres, aconteceu o primeiro encontro dos quatro filósofos que se reuniram para um
seminário mais ou menos casual, sem pretensões maiores de formar uma escola.

O organizador era Ray Brassier (1965), na Universidade de Beirute, no Líbano.


Famoso por seus comentários e trabalhos sobre a não-filosofia de François Laruelle, ele
sofrerá um imenso impacto pela obra de Meillassoux. No entanto, não compartilha das
pretensões “neoiluministas” do combate ao fanatismo. Para Brassier e seu nihilismo
transcendental, a completa ausência de sentido no universo é a melhor coisa sobre o
universo. A insistência humana em macular esta beleza em sua constante busca,
imposição e destruição de sentidos gera efeitos desastrosos para a natureza. Brassier
defende a filosofia como um “órganon da extinção” em seu O Nada Desacorrentado
(2007), adotando uma postura decisivamente anti-humanista.

Muito diferente é a obra de Iain Hamilton Grant (1950). Ele tomou para si a
dificílima missão de sistematizar milhares de páginas da Naturphilosophie (Filosofia da
Natureza) de Friedrich Schelling. De forma independente de Meillassoux, mas com
conexões contra o antropocentrismo e contra a abolição da natureza, Grant recupera o
conceito spinozista de natura naturans, numa reformulação radical da filosofia em
busca de novos temas da ecologia, de novos materialismos, de novas conexões com a
ciência e com políticas ambientais. Seu livro Filosofias da Natureza depois de Schelling
(2006) rapidamente se tornou um dos clássicos do movimento.

Graham Harman (1968), então um conhecido de Brassier, sugeriu o evento de


2007. Sua carreira filosófica começa como um comentador de Martin Heidegger. No
entanto, já começa a se destacar a partir de 2002 com sua leitura bastante heterodoxa
em relação aos círculos heideggerianos no que tange a realidade das ferramentas. O

Anãnsi: Revista de Filosofia, Salvador, v. 1, n. 1, 2020. 200


O Tempo sem o Tornar-se

Ser-Ferramenta: Heidegger e a Metafísica dos Objetos é um dos marcos inaugurais do


que será chamado de Ontologia Orientada a Objetos (OOO), cujo esquema será
desenvolvido mais amplamente em O Objeto Quádruplo (2010)4. A intuição básica é
rastreável a um texto relativamente obscuro de Heidegger, em duas versões, chamado
A Quadratura (Das Geviert), onde a realidade de Deuses, do Céu, da Terra e dos Homens
estabelece um intrincado e misterioso conjunto de relações. Esta relação é tornada
mais visível na análise da ferramenta que Heidegger promove sobre o martelo que se
quebra, revelando ao autor uma dimensão inaudita própria para muito além do que a
teoria e a prática humanas conseguiriam capturar. Este é o insight da OOO: tudo é um
objeto, e tudo tem este interior misterioso, não apenas o martelo de Heidegger – uma
realidade própria que se recua do acesso e da percepção não apenas dos humanos, mas
de todos os objetos entre si também.

O breve seminário de 2007 foi um sucesso para muito além de suas mais loucas
expectativas. Logo, em 2009, uma segunda conferência similar foi organizada na
universidade de Grant, a University of the West of England, Bristol. Estes últimos 13
anos viram uma explosão de novas criatividades, novos movimentos, rupturas, alianças
e conexões em diversos níveis. Correntes vão se associar ao aceleracionismo de Nick
Land e Mark Fischer, às novas filosofias ecológicas de Bruno Latour e Donna Haraway,
às revitalizações da filosofia do processo de Whitehead e às diversas personagens da
ontologia orientada a objetos.

Além desses, vemos várias contribuições advindas dos Estados Unidos, França,
Alemanha, México, Irã e China. No Brasil, decisivamente inspirados por Hilan Bensusan
(UnB), Rodrigo Nunes (PUC/RJ), Moysés Pinto Neto (PUC/RS) e Jean-Pierre Caron
(USP), diversos grupos têm sido organizados sobre o realismo especulativo: o GT
Ontologias Contemporâneas (ANPOF), o grupo MaterialismoS (RJ-RS), o grupo
Anarchai (UnB) e o Seminário Permanente de Filosofia Contemporânea na UnB. Este,
fundado por mim e por Luan Miguel Araújo (Luan Fene), tem a honra de ter a presença
da tradutora deste artigo, Rafaela Borges.

Conclusão

É curioso, em 2020, escrever um prefácio a um texto pequeno, mas tão


importante. Como vimos, os pensadores associados ao realismo especulativo
encontravam-se dispersos e até mesmo solitários em suas carreiras, espalhados pelo
mundo. O Depois da Finitude de Meillassoux funciona como um catalisador global que
deu certa cara ao movimento. O presente artigo é um resumo do próprio autor sobre o
livro de 2006, proferido dia 8 de maio de 2008 na Universidade de Middlesex, na
Inglaterra. O texto foi editado e publicado em 2014 por Anne Longo e retém um caráter
oral, e adicionamos algumas Notas de Tradução no decorrer do texto e dividimos

4 Atualmente sob tradução e revisão final por Thiago de Araújo Pinho (Doutorando em Ciências
Sociais/UFBA).

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Quentin Meillassoux

alguns parágrafos. Enquanto a obra maior não é traduzida, apresentamos este artigo
como um exemplo de como um movimento global tão fértil e intrigante surge
debatendo acerca de um problema filosófico moderno, a saber, a crítica de Meillassoux
ao correlacionismo filosófico.

Otávio Souza e Rocha Dias Maciel


Departamento de Filosofia, Universidade de Brasília
Doutorando PPGFil/UNB

***
O Tempo sem o Tornar-se

Quentin Meillassoux

Eu gostaria de, antes de tudo, dizer que eu estou muito contente de ter a
oportunidade de discutir meu trabalho aqui na Universidade de Middlesex, e eu
gostaria de expressar meu obrigado aos organizadores deste seminário, especialmente
a Peter Hallward e Ray Brassier.

Eu vou expor e explicar as principais decisões de Depois da Finitude,


especificamente a respeito de duas noções fundamentais as quais eu tentei elaborar
neste livro: a de “correlacionismo”, e a do “princípio da factialidade”.

§1 Correlacionismo

Eu chamo de “correlacionismo” o oponente contemporâneo de qualquer


realismo. O correlacionismo toma muitas formas contemporâneas, mas
particularmente aquelas da filosofia transcendental; as variadas fenomenologias; e os
pós-modernismos. Mas embora essas correntes sejam extraordinariamente variadas
em si-mesmas, todas compartilham, a meu ver, uma mais ou menos explícita decisão: a
de que não há objetos, eventos, leis ou seres os quais não sejam desde-sempre
correlacionados a um ponto de vista, a um acesso subjetivo. Qualquer um que sustente
o contrário – por exemplo, que é possível acessar algo como a realidade em-si-mesma
que existe absolutamente independentemente do seu ponto de vista, de suas
categorias, ou de sua época, ou de sua cultura, ou de sua linguagem etc.; esta pessoa
será considerada um exemplo de ingenuidade, ou se você preferir: um realista, um
metafísico, um antiquado filósofo dogmático.

Com o termo “correlacionismo”, eu gostaria de explicar o argumento-base


dessas “filosofias do acesso” – para usar a expressão empregada por Graham Harman –

Anãnsi: Revista de Filosofia, Salvador, v. 1, n. 1, 2020. 202


O Tempo sem o Tornar-se

mas também, e eu insisto nesse ponto, a força excepcional de tal argumentação


antirrealista, aparentemente tão desesperadamente implacável. O correlacionismo se
baseia em um argumento tão simples quanto poderoso, que pode ser formulado da
seguinte maneira: não pode haver “X” sem uma dadidade de X, e nenhuma teoria sobre
“X” sem uma postura de X. “Se você fala sobre algo”, o correlacionista dirá, “você fala
sobre algo dado a você, e postulado por você”. O argumento para essa tese é tão
simples de formular quanto difícil de refutar: pode ser chamado de “argumento do
círculo”, e consiste em apontar que toda objeção contra o correlacionismo é uma
objeção produzida pelo seu pensamento, portanto, dependente dele. Se você fala contra
a correlação, você esquece que fala contra a correlação do ponto de vista de sua
própria mente, ou cultura, ou época etc. O círculo significa que há um ciclo vicioso em
qualquer realismo ingênuo, uma contradição performática pela qual você refuta o que
você mesmo diz ou pensa pelo próprio ato de dizer ou pensar.

Penso que há duas versões mais relevantes do correlacionismo: uma


transcendental, a qual reivindica que há algumas formas universais de conhecimento
subjetivo das coisas; e a pós-moderna, a qual nega a existência de qualquer
universalidade subjetiva. Mas, em ambos os casos, há uma negação de um
conhecimento absoluto – quero dizer, um conhecimento da coisa-em-si
independentemente de nosso acesso subjetivo a ela. Consequentemente, para
correlacionistas, a proposição “X é” significa “X é o correlato do pensamento” –
pensamento no sentido cartesiano – ou seja: X é o correlato de uma afecção, ou de uma
percepção, ou de uma conceituação, ou de qualquer outra ação subjetiva ou
intersubjetiva. “Ser” é “ser um correlato”, um termo de uma correlação. E quando se
reivindica pensar qualquer “X” específico, é necessário postular esse X, o qual não se
pode separar deste específico ato de postulação.

É por isso que é impossível conceber um X ab-soluto5 – por exemplo, um X que


pudesse ser essencialmente separado de um sujeito. Não se pode conhecer a realidade
em-si porque não se pode distinguir entre aquelas propriedades supostamente
pertencentes ao objeto, e aquelas propriedades pertencentes ao acesso subjetivo ao
objeto6. Obviamente correlacionismos concretos são bem mais complexos que meu
modelo: mas eu sustento que este modelo é a decisão mínima de qualquer
antirrealismo. E, porque este é o próprio conceito que eu quero contestar, não preciso
aqui entrar nos detalhes de filosofias específicas e históricas.

É claro, levaria muito tempo para examinar aqui as relações precisas entre
correlacionismo, considerado como o modelo contemporâneo do antirrealismo, e a
complexa história dos críticos ao dogmatismo na filosofia moderna. Mas podemos dizer

5 NT: Usamos a grafia inusual ab-soluto para indicar, como o próprio Meillassoux o faz, algo que está
essencialmente separado do sujeito, não sendo o que lhe constitui naturalmente ou espiritualmente.
Dessa forma, diferenciamos o ab-soluto do Absoluto do idealismo alemão. Cf. Meillassoux, 2006, p. 38,
onde ele nomeia de “O Separado”. Capitalizamos na literalidade do termo no trocadilho ab-solutus, o
“não-soluto” ou o “não dissolvido” no solvente da subjetividade. Cf. Maciel, 2017, p. 54.
6 NT: Qualidades primárias e qualidades secundárias, respectivamente.

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Quentin Meillassoux

que o “argumento do círculo” significa não somente que a coisa-em-si é incognoscível,


como em Kant, mas também que é radicalmente impensável. Kant, como vocês sabem,
disse que era impossível de se conhecer a coisa-em-si, mas ele atribuía, a uma razão
teórica (deixando a razão prática de lado aqui), a capacidade de se acessar quatro
determinações do em-si. De acordo com Kant, sabemos que:

1) A coisa-em-si efetivamente existe fora da consciência (ou seja, sei que não há
apenas o fenômeno);

2) A coisa afeta nossa sensibilidade e produz em nós representações (seria por


isso que a sensibilidade é passiva, finita e não espontânea);

3) A coisa-em-si não é contraditória – o princípio da não-contradição é um


princípio absoluto, não um que seja meramente relativo à nossa consciência;

4) E, por último, que a coisa-em-si não pode ser espaço-temporal, visto que
espaço e tempo podem ser apenas formas da sensibilidade subjetiva, e não
propriedades do em-si: em outros termos, não sabemos o que a coisa-em-si é, mas
sabemos em absoluto o que ela não é.

Então, como se pode ver, Kant é bem “tagarela”7 a respeito da coisa-em-si, mas
como se sabe, a especulação pós-kantiana destruiu tais reivindicações ao negar até
mesmo a possibilidade de um em-si fora do sujeito. No entanto, o correlacionismo
contemporâneo não é um idealismo especulativo: ele não diz dogmaticamente que não
há um em-si, mas apenas que não se pode dizer qualquer coisa a respeito deste, nem
mesmo que o em-si existe – e é precisamente por isso que, para mim, o termo “em-si”
desapareceu desses discursos8. O pensamento apenas teria de lidar com um mundo
correlacionado com ele mesmo, e com o fato inconcebível do ser de tal correlação. Que
haja uma correlação pensamento-mundo é o enigma supremo o qual traz, em
contraste, a possibilidade de uma situação completamente diferente. O Tratado Lógico-
Filosófico9 é um bom exemplo de tal discurso, quando designa como “místico” o mero
fato de haver um mundo consistente; um mundo lógico, não contraditório.

§2. O problema do Arque-fóssil

Meu objetivo é muito simples: procuro refutar toda forma de correlacionismo –


o que significa dizer que tento demonstrar que o pensamento, sob condições muito
específicas, pode acessar a realidade em-si, independentemente de qualquer ato de
subjetividade. Em outras palavras, eu defendo que um ab-soluto, a saber, uma
realidade absolutamente separada do sujeito, pode ser pensado pelo sujeito. Tal

7 “Loquacious”.
8 NT: Esta é uma crítica recorrente na obra de Meillassoux, a saber, contra este “agnosticismo
epistemológico” da filosofia moderna e contemporânea.
9 Obra de Ludwig Wittgenstein, traduzida para o português pela Editora da USP. Terceira edição lançada

em 2001.

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O Tempo sem o Tornar-se

assertiva é aparentemente uma contradição e, à primeira vista, é exatamente o que um


realista ingênuo sustentaria. Meu desafio é demonstrar que ela pode sim ser uma
proposição não-contraditória, uma que não é não ingênua, mas especulativa. Então eu
devo explicar duas coisas acerca dessa assertiva: primeiramente, por que acredito ser
imperativo que nós rompamos com o correlacionismo? A fim de explicar esse ponto,
apresentarei um problema específico que chamo de “problema da ancestralidade”. Em
segundo lugar, devo explicar como podemos refutar o argumento supostamente
implacável do círculo correlacionista. Para esse propósito, irei expor um princípio
especulativo que chamo de princípio da factialidade (“principe de factualité” em
francês).

Comecemos com o primeiro ponto. Correlacionismo, para mim, insurge contra


um sério problema, o qual chamo de “problema do arque-fóssil10”, ou “o problema da
ancestralidade”. Um fóssil é um material contendo traços da vida pré-histórica: mas o
que chamo de “arche-fóssil” é um material indicando traços de fenômenos “ancestrais”
anteriores até à emergência da vida. Chamo de “ancestral” uma realidade – uma coisa
ou um evento – que existiu antes da vida na Terra.

A ciência é agora capaz de produzir assertivas (digamos: “assertivas ancestrais”)


descrevendo realidades ancestrais graças aos isótopos radioativos, cuja taxa de
decaimento provê um índice da idade de amostras de rochas, ou graças à luz estelar,
cuja luminescência provê um índice da idade de estrelas distantes. A ciência pode,
desta maneira, produzir assertivas, tais quais: “o universo possui aproximadamente 14
bilhões de anos”; ou “a Terra foi formada há aproximadamente 4.5 bilhões de anos”.
Então meu questionamento é bem direto. Eu simplesmente questiono: quais são as
condições de possibilidade de assertivas ancestrais? Esta é uma questão formulada em
um estilo transcendental, tem um sabor transcendental por assim dizer, mas meu
ponto é que é impossível responder a essa questão por meio da Filosofia Crítica. Minha
pergunta, de fato, é mais precisa: pergunto se o correlacionismo – em quaisquer de
suas versões – é capaz de dar um sentido, ou um significado a assertivas ancestrais.

O que gostaria de demonstrar é que é impossível para o correlacionismo, apesar


de todas as variadas formas de argumentação sutil que ele é capaz de inventar, é
impossível, sustento, para o correlacionismo dar sentido à capacidade das ciências
naturais de produzir assertivas ancestrais graças aos arque-fósseis (isótopo radioativo,
luminescência estelar). Como se poderia dar sentido à ideia de um tempo precedente
ao sujeito, ou à consciência ou ao Dasein, um tempo no qual a subjetividade ou o ser-no-
mundo ele-mesmo emergiu, e o qual talvez irá desaparecer junto com a humanidade e a
vida terrestre, se fizermos do tempo, do espaço e do mundo visível apenas correlatos
estritos dessa subjetividade? Se o tempo é um correlato do sujeito, logo nada pode
verdadeiramente preceder o sujeito – tanto como indivíduo quanto como espécie
humana – dentro do tempo. Porque o que existiu antes do sujeito existiu antes do

10NT: Meillassoux escreve archifossile ou matière-fossile (matéria-fóssil) no Depois da Finitude (2006, p.


25-6).

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Quentin Meillassoux

sujeito para o sujeito. Apelos à intersubjetividade não são considerados aqui, uma vez
que o tempo em questão não é o tempo precedendo tal ou tal indivíduo – este tempo
ainda é social, feito pela temporalidade subjetiva dos ancestrais – mas um tempo
precedente a toda a vida, e então a toda comunidade humana.

Eu sustento que há infinitas formas nas quais as diferentes versões do


correlacionismo podem tentar negar ou mascarar esta aporia, e eu tentei desconstruir
algumas delas no Depois da Finitude. Mas esta negação é seguida de uma certeza: não
pode haver solução realista ou materialista ao problema da ancestralidade. Mas
mantenho que tal solução existe – é por isso que sou capaz de ver e constatar o óbvio: o
correlacionismo não pode dar nenhum sentido a assertivas ancestrais,
consequentemente, tampouco a uma ciência capaz de produzir tais afirmações. A
ciência é reduzida a uma explicação do mundo dado-a-um-sujeito. É claro, também sei
que sempre dizem que a filosofia transcendental ou a fenomenologia são definidas
como essencialmente distintas de um idealismo bruto à la Berkeley. Mas o que eu
quero demonstrar em Depois da Finitude é que todo correlacionismo desmorona nesse
idealismo bruto quando tem de pensar no significado da ancestralidade.

Por que escolhi o termo “correlacionismo”, ao invés de um termo bem


conhecido tal qual “idealismo”, para designar meu adversário intelectual? Porque eu
desejava desqualificar a retórica comumente usada pela filosofia transcendental e pela
fenomenologia contra a acusação de serem idealistas, respostas como “a crítica
kantiana não é um idealismo subjetivo, uma vez que há uma refutação ao idealismo na
Crítica da Razão Pura”, ou “fenomenologia não é um idealismo dogmático, uma vez que
a intencionalidade é orientada em direção a uma exterioridade radical, e não se trata
de um solipsismo uma vez que a dadidade do objeto implica, segundo Husserl, na
referência a uma comunidade intersubjetiva”. E o mesmo pode ser dito sobre o Dasein
como o “ser-no-mundo” originário. Mesmo que esses posicionamentos reivindiquem
que não são idealismos subjetivos, eles não podem negar, ao risco de autorrefutação,
que a exterioridade por eles elaborada é essencialmente relativa: relativa a uma
consciência, uma linguagem, um Dasein etc. Consequentemente, tudo o que o
correlacionismo pode dizer sobre a ancestralidade é que se trata de uma representação
subjetiva de tal passado, mas que tal passado não poderia realmente ter existido em-si-
mesmo com todos os seus objetos e eventos.

O correlacionismo irá em geral sustentar – porque ele é sutil – que assertivas


ancestrais são verdadeiras em um certo sentido – por exemplo, como assertivas
universais, baseadas em algumas experiências atuais sobre materiais específicos (luz
estelar, isótopo), ou ao menos como uma assertiva aceita pela atual comunidade de
cientistas. Mas se for consistente, o correlacionismo terá de negar que as referências a
essas assertivas realmente existiram anteriormente a qualquer humano ou espécie
vivente. Para o correlacionista, ancestralidade não pode ser uma realidade anterior aos
sujeitos, mas uma realidade dita e pensada pelos sujeitos como anterior aos sujeitos. É

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O Tempo sem o Tornar-se

um passado para a humanidade o qual não tem mais efetividade do que aquele
estritamente correlacionado com humanos atuais.

Mas essa assertiva é, obviamente, uma catástrofe, porque destrói o sentido de


proposições científicas, as quais, eu insisto, somente significam exatamente o que estão
dizendo. Uma proposição científica ancestral não diz que algo existiu antes da
subjetividade para a subjetividade, mas que algo existiu antes da subjetividade, e nada
além disso: ou a assertiva ancestral tem um sentido realista, ou não tem sentido algum.
Porque dizer que algo existiu antes de você apenas em relação a você, apenas sob a
condição de que você existe para ser consciente desse passado, significa dizer que nada
existiu antes de você. É dizer o contrário do que ancestralidade significa: que a
realidade em-si existiu independentemente da sua percepção dela como o seu próprio
passado. O seu passado é seu passado apenas se ele efetivamente já foi um presente
sem você, não somente um presente pensado no presente como um passado. Tal
passado não é um passado, não importa o que diga, mas uma ilusão produzida por uma
espécie de retrojecção, um passado produzido agora como um passado absolutamente
precedente ao presente.

Como se sabe, Kant, seguindo Diderot11, considerou um escândalo para a


filosofia que uma prova da existência de coisas fora do sujeito ainda não fora
comprovada12. Não poderia eu ser acusado de ressuscitar esse problema antigo, o qual
é geralmente considerado como ultrapassado? Heidegger, em Ser e Tempo,
famosamente inverteu a proposição kantiana, afirmando que o escândalo consistiria,
na verdade, no fato de que esse tipo de prova ainda fosse experimentado e
aguardado13. Essa assertiva é explicada pela própria estrutura da subjetividade
fenomenológica: na intencionalidade de Husserl, no ser-no-mundo de Heidegger, ou na
explosão [éclatement] em direção à coisa ela-mesma de Sartre, longe de ser um
elemento superfluamente adicionado por um sujeito intrinsecamente solipsista, o
exterior é uma estrutura originária do sujeito, tornando obsoleta e até mesmo ridícula
qualquer tentativa de se provar uma realidade externa. Ainda, eu disse, a questão
persiste, mesmo após a fenomenologia, e mesmo na própria fenomenologia.

Mesmo que os fenomenólogos digam que a consciência é originalmente


correlacionada e aberta a um mundo, o que eles podem dizer sobre uma realidade pré-
humana e pré-animal, sobre a ancestralidade, esse domínio da não-correlação, uma vez
que não há qualquer sujeito? Como as ciências são capazes de falar tão precisamente
sobre esse domínio, se este domínio não é nada mais que uma ilusão retrospectiva? O
que seria da natureza sem nós? O que restaria se nela não mais estivéssemos?

Essa questão é tão longe de ser obsoleta para a fenomenologia, que se tornou
um grande questionamento para Heidegger na década de 1930. Ele escreveu a

11 Denis Diderot, "Letter on the Blind For the Use of Those Who See", in Diderot's early philosophical
works, London and Chicago: Open Court 1916, p. 68
12 Immanuel Kant, Crítica da Razão Pura, B XXXIX

13 Martin Heidegger, Ser e Tempo, §43

Anãnsi: Revista de Filosofia, Salvador, v. 1, n. 1, 2020. 207


Quentin Meillassoux

Elisabeth Blochmann em 11 de outubro de 1931: “Eu frequentemente pergunto a mim


mesmo – essa tem sido por muito tempo uma questão fundamental para mim – o que
seria da natureza sem o homem, deve ela ressoar através dele [hindurschwingen] a fim
de atingir sua potência máxima?”. Nessa carta descobrimos que o próprio Heidegger é
incapaz de renunciar a essa questão, e que sua própria tentativa de a responder é tanto
enigmática quanto provavelmente inspirada na metafísica de Schelling, como sugere o
termo “potência” [Macht, oder Potenz]. Vemos aqui o quão longe Heidegger estava de
ser capaz de desqualificar ou solucionar a questão da ancestralidade: o que é a
natureza sem o homem, e como podemos pensar o tempo em que a natureza tenha
produzido o sujeito, ou o Dasein?14

Devemos compreender a exata significância desse problema da ancestralidade


na minha estratégia.

O que é muito importante para mim é que eu não finjo refutar o correlacionismo
por meio da ancestralidade: o problema da ancestralidade não é – de forma alguma –
intencionado como uma refutação do correlacionismo, isso seria ingênuo. Na verdade,
no primeiro capítulo de Depois da Finitude, eu simplesmente tento apresentar uma
aporia, ao invés de uma refutação. Isto é, por um lado parece impossível pensar,
através do correlacionismo, a habilidade das ciências naturais em produzir assertivas
ancestrais; mas por outro, parece impossível refutar a posição correlacionista, porque
parece impossível sustentar que poderíamos ser capazes de conhecer quando não
existimos. Como poderíamos pensar a existência da cor sem um olho que a veja, ou a
existência de um som sem um ouvido que o ouça? Como poderíamos pensar o
significado do tempo ou do espaço sem um sujeito consciente do passado, do presente
e do futuro; ou consciente da diferença entre esquerda e direita? E, antes de tudo, como
poderíamos saber disso, uma vez que somos incapazes de ver como o mundo é quando
não há alguém para percebê-lo?

Por um lado, parece impossível refutar o argumento do círculo correlacionista,


em outros termos, de esquecer que quando pensamos em algo, somos nós quem
pensamos esse algo; por outro lado, parece impossível haver um correlacionista que
compreenda as ciências naturais. Através desse aparentemente simples e até mesmo
ingênuo problema, eu coloco a questão da ingenuidade filosófica: isto é, a questão de o
que exatamente significa “ser ingênuo” na filosofia. Ingenuidade na filosofia hoje em
dia assume uma forma preferida: a crença na correspondência possível entre
pensamento e ser – mas um ser que é representado precisamente como independente
ao pensamento. Todo o esforço empregado pela filosofia moderna consistiu em
filosofar sem o conceito de verdade, ou, para mim, e de maneira mais interessante, em

14NT: A referência a Schelling é abundante em obras tardias de Heidegger, especialmente no que tange a
famosa “Filosofia da Identidade” schellinguiana: a pergunta era sobre as condições objetivas da
emergência da subjetividade, não apenas como a subjetividade podia acessar a objetividade.

Anãnsi: Revista de Filosofia, Salvador, v. 1, n. 1, 2020. 208


O Tempo sem o Tornar-se

redefinir fundamentalmente esse conceito, trocando a “verdade como adequação”15


pela “verdade considerada como legalidade” (Kant), ou intersubjetividade (Husserl), ou
interpretação (hermenêutica). Mas o que tento mostrar em Depois da Finitude é que há,
na ancestralidade, uma estranha resistência a todo modelo anti-adequação. Ademais,
essa resistência não concerne diretamente à verdade das teorias científicas, mas sim ao
significado delas.

Vamos explicar esse ponto. Certamente não podemos acreditar


engenhosamente que uma teoria científica, no campo das ciências naturais, poderia ser
algo como “verdade”. Não por conta de algum ceticismo radical contra as ciências, mas
sim considerando o próprio processo da ciência. Ao longo de sua história, esse
processo apresentou uma inventividade extraordinária em incansavelmente destruir
suas próprias teorias, inclusive as mais fundamentais, trocando-as por paradigmas cuja
novidade foi tão extrema que ninguém pôde antecipar o início de suas configurações. O
mesmo também vale para as teorias atuais, e especialmente as cosmológicas: apenas
não podemos dizer quais serão as teorias futuras de cosmologia, de ancestralidade – o
passado, como diz o ditado, é imprevisível.

No entanto, mesmo que não possamos positivamente afirmar que uma teoria
ancestral é efetivamente verdadeira, deve-se sustentar, insisto, que ela pode ser
verdadeira: não podemos saber se essas teorias irão manter sua verdade no futuro,
mas é uma possibilidade a qual não podemos descartar, porque é uma condição do
sentido de tais teorias. Verdade, e verdade considerada como algo tal qual uma
correspondência com a realidade, é uma condição para o sentido das teorias – como as
hipóteses, pode-se preferir uma em comparação a outras.

Se tentamos dispensar a noção de verdade e de correspondência ao tentar


compreender essas teorias, rapidamente geramos absurdos divertidos. Por exemplo, se
se diz que a verdade ancestral deve ser definida pela intersubjetividade, ao invés de
pela reconstituição de uma realidade pré-humana, você deveria dizer algo como: nunca
existiu algo como um universo precedente à humanidade com tais e tais determinações
que poderíamos efetivamente saber – isso é puro absurdo – mas apenas um consenso
entre cientistas, o que legitima a teoria em questão. Sustenta-se na mesma frase que
cientistas têm razões sólidas para aceitar uma teoria, e que essa teoria descreve um
objeto – o campo da vida pré-terrestre – o qual não pode existir tal como descrito,
porque seria um absurdo. Temos aqui um tipo de retorno ao real lacaniano: o
impossível para o filósofo contemporâneo é o realismo, ou a correspondência.

Mas realismo parece ser a condição de sentido para teorias ancestrais (na
verdade, acredito ser a condição para toda teoria científica, mas não posso demonstrar
isso agora). É por isso que a ideia de ingenuidade mudou: não podemos mais ter

15 NT: Esta é uma referência ao brocardo medieval de que há uma “Adaequatio rei et intellectus”
(adequação entre coisa e intelecto”). A noção geral parece ser rastreável a Platão e Aristóteles, atribuída
por Tomás de Aquino ao filósofo Isaque, o Velho, considerado o pai do neoplatonismo judaico no século
IX.

Anãnsi: Revista de Filosofia, Salvador, v. 1, n. 1, 2020. 209


Quentin Meillassoux

certeza de que a rejeição da correspondência não é, ela mesma, uma noção ingênua. O
dogmatismo da anti-adequação tornou-se tão problemático quanto o velho
dogmatismo pré-kantiano. Mas a real dificuldade é que é também impossível, a meu
ver, voltar para a velha concepção metafísica de adequação, ou ao realismo ingênuo
que a filosofia analítica às vezes parece perpetuar. Precisamos redefinir a
correspondência, a fim de encontrar um conceito bem diferente de adequação, se
formos seriamente rejeitar o correlacionismo em seu completo poder. Porque, como
veremos, o que descobrimos fora da correlação é muito diferente do conceito ingênuo
de coisas, propriedades e relações. É uma realidade muito diferente da realidade dada.
É por isso, finalmente, que prefiro descrever minha filosofia como materialismo
especulativo, ao invés de realismo: porque me lembro da frase de Foucault, que uma
vez disse: “Sou materialista, porque não acredito em realidade”16.

Então o que temos aqui, para mim, é uma poderosa aporia: a aporia da
correlação versus o arque-fóssil. É esta aporia que tento resolver no Depois da Finitude
– e minha estratégia para resolvê-la consiste em efetivamente refutar o
correlacionismo e elaborar um novo tipo de materialismo científico baseado em um
princípio que chamo de “princípio da factialidade”. Então, vamos agora ver o que esse
princípio significa, e porque é capaz, a meu ver, de fazer o que o correlacionismo diz
ser impossível: conhecer o que existe quando não estamos presentes17.

§3 O Princípio da Factialidade

O principal problema que tento confrontar em Depois da Finitude consiste


precisamente em desenvolver um materialismo capaz de decisivamente refutar o
círculo correlacionista, na sua forma mais simples, a qual é também a forma mais difícil
de refutar: isto é, o argumento que demonstra que não podemos falar contra a
correlação exceto dentro do próprio correlato. Eis minha estratégia: a fraqueza do
correlacionismo consiste na dualidade contra aquilo que ele se opõe. Estritamente
falando, correlacionismo, como eu o defino, não é um antirrealismo, mas um

16 NT: Meillassoux indica aqui que há uma disputa sobre o próprio termo do movimento filosófico.
Embora realismo especulativo seja mais amplo, ele diferencia o seu subtipo como materialismo
especulativo. Provavelmente, isso se deve ao fato de que “realista” carrega toda a carga de ingenuidade
tradicionalmente associada a ela pela filosofia continental, como ele mesmo observa no texto. Além
disso, ele talvez não queira fazer asserções radicais sobre “a realidade é X”, tal como faz Graham Harman
(que diria algo como “a realidade é composta de objetos”) ou Iain Hamilton Grant (que poderia dizer “a
realidade é o fluxo primordial da natureza pré-individuado”). É como se ele quisesse uma filosofia mais
modesta, de descobrir uma matéria da qual as coisas são feitas – e as coisas são “feitas de” facticidade e
de certos caprichos do Hipercaos, sem oferecer uma assertiva muito terminativa sobre a natureza da
realidade como um todo. Ainda assim, ambas as indexações como realista especulativo ou materialista
especulativo são tratadas em geral como funcionalmente equivalentes.
17 NT: A formulação original é “to know what there is when we are not”. A tradução que escolhemos é

para fazer conexão com a crítica às metafísicas da presença – já apresentadas em Heidegger em suas
mencionadas perguntas sobre a realidade sem humanos, mas que, como Meillassoux observa, não foram
levadas tão a sério como o francês propõe a partir do problema da ancestralidade.

Anãnsi: Revista de Filosofia, Salvador, v. 1, n. 1, 2020. 210


O Tempo sem o Tornar-se

antiabsolutismo. Correlacionismo é a forma moderna de rejeitar toda possibilidade de


se conhecer um ab-soluto: reivindica-se que estamos todos aprisionados em nossas
representações – conscientes, linguísticas, históricas – sem nenhum meio seguro de
acesso a uma realidade externa independente de nosso ponto de vista específico.

Há duas principais formas do absoluto: o realista, que é uma realidade não-


pensante independente do nosso acesso a ele; e o idealista, o qual consiste, ao
contrário, na absolutização da própria correlação18. Dessa maneira, o correlacionismo
deve também refutar o idealismo especulativo – ou qualquer forma de vitalismo ou
pampsiquismo – se pretende rejeitar todas as modalidades de absoluto. Mas para essa
segunda refutação, o argumento do círculo correlacionista é inútil, porque idealismo e
vitalismo consistem precisamente em reivindicar que é este círculo subjetivista ele
mesmo que é o absoluto.

Vamos examinar rapidamente esses argumentos vitalistas e idealistas. Chamo


de metafísica subjetivista qualquer absolutização de um determinado acesso humano
ao mundo – chamo de “subjetivista” (para encurtar) o apoiador de qualquer metafísica
subjetivista. A correlação entre pensamento e ser toma muitas formas distintas: o
subjetivismo reivindica que algumas dessas relações – ou até mesmo todas – são
determinações não apenas de humanos ou de seres vivos, mas do Ser ele-mesmo. O
subjetivista projeta uma correlação nas coisas elas-mesmas – o que pode tomar a
forma de percepção, intelecção, desejo etc. – e a transforma no absoluto. É claro, esse
processo é muito mais elaborado do que posso demonstrar aqui, especialmente com
Hegel. Mas o princípio básico do subjetivismo é sempre o mesmo. Consiste em refutar o
realismo e o correlacionismo por meio da seguinte argumentação: uma vez que não
podemos conceber um ser que não possa ser constituído por nossa relação com o
mundo, uma vez que não podemos escapar do círculo da correlação, logo, o todo dessas
relações, ou uma parte eminente desse todo, representa a própria essência de qualquer
realidade. Segundo o subjetivista, é absurdo supor, como o correlacionista o faz, que
poderia existir um em-si diferente de quaisquer correlações humanas com o mundo. O
subjetivista, portanto, vira o círculo correlacionista contra o próprio correlacionista:
uma vez que não podemos pensar qualquer realidade independentemente de
correlações humanas, isso significa, para o subjetivista, que supor uma realidade
existindo fora do círculo é um nonsense. Dessa forma, o absoluto é o círculo ele-
mesmo, ou ao menos parte dele. O absoluto é pensamento, ou percepção, ou desejo,
etc.: Ideia, logos, Geist (Mente), Wille zur Macht (Vontade de Poder), a intuição da
duração bergsoniana, etc.

18 NT: Esta é a diferença entre dois tipos de correlacionismo que Meillassoux critica no Depois da
Finitude. Ele chama o primeiro tipo de “cercle corrélationnel”, o tal círculo correlacionista. O segundo tipo
ele chama misteriosamente de “pas de danse corrélationnel”, traduzido por Ray Brassier como
“correlationist two-step”, para referenciar à metafísica da (inter)subjetividade. Para fins de simplificação,
chamamos o primeiro tipo de correlacionismo fraco ou simples; e o segundo, de correlacionismo forte ou
radical (Maciel, 2017, p. 49 e ss.).

Anãnsi: Revista de Filosofia, Salvador, v. 1, n. 1, 2020. 211


Quentin Meillassoux

Essa segunda forma do absolutismo revela o porquê de ser necessário, para o


correlacionismo, produzir um segundo argumento capaz de responder ao absoluto
idealista. Essa necessidade por uma segunda argumentação é extremamente
importante, uma vez que, como veremos, tornar-se-á o ponto fraco da fortaleza do
círculo correlacionista. Esse segundo argumento é o que descrevi em Depois da
Finitude como o “argumento da facticidade”, e agora devo explicar o que isso significa
mais precisamente.

Chamo de “facticidade” a ausência de razão para qualquer realidade; em outros


termos, a impossibilidade de prover-se um fundamento último para a existência de
qualquer ser. Podemos apenas acessar a necessidade condicionada, nunca a
necessidade absoluta. Se causas definidas e leis da física são postuladas, então
podemos reivindicar que se deve seguir um determinado efeito. Mas nunca acharemos
um fundamento para essas leis e causas, exceto eventualmente outras causas e leis
infundadas: não há causa última, nem lei última, ou seja, uma causa ou lei que inclua o
fundamento de sua própria existência. Mas essa facticidade é também algo próprio do
pensamento. O cogito cartesiano claramente mostra esse ponto. O que é necessário, no
cogito, é uma necessidade condicionada: se penso, logo, devo existir. Mas não é uma
necessidade absoluta: não é necessário que eu pense. Olhando de dentro da correlação
subjetiva, eu ratifico a minha própria facticidade, e, portanto, a facticidade do mundo
correlacionado ao meu acesso subjetivo a ele. Chego a essa conclusão mediante a falta
de uma razão última, de uma causa sui, capaz de fundamentar minha existência.

Facticidade assim definida é, a meu ver, a resposta fundamental a qualquer


absolutização da correlação: pois se a correlação é factual, não podemos mais
sustentar, como o faz o subjetivista, que o correlato é uma componente necessária de
toda realidade. Claro, um idealista poderia responder que qualquer tentativa de
conceber o não-ser de uma correlação subjetiva resulta numa contradição
performática, uma vez que a concepção mesma da correlação prova que efetivamente
existimos como sujeitos. Mas o correlacionista responde que não pode haver prova
dogmática de que a correlação deve ou não existir, logo, essa ausência de necessidade é
o suficiente para rejeitar a afirmação idealista acerca da absoluta necessidade da
correlação. E o fato de que não se pode imaginar a não-existência da subjetividade, uma
vez que imaginá-la é existir enquanto sujeito, não prova sua impossibilidade: não posso
imaginar como é estar morto, dado que imaginar isso significa estar vivo, mas,
infelizmente, esse fato não prova que a morte é impossível. Os limites da minha
imaginação não são o indício de minha imortalidade.

Devemos ser cuidadosos. O correlacionista não reivindica que a subjetividade


deva perecer: talvez ela seja tão eterna quanto um absoluto, como Espírito [Geist] ou
Vontade [Wille] se não for tal como um indivíduo. O correlacionista apenas reivindica
que não se pode decidir por uma ou pela outra hipótese: não se pode alcançar uma
verdade eterna, seja ela realista ou idealista. Não sabemos nada de fora do círculo, nem
mesmo se há um – contra o realismo – assim como não podemos saber se o círculo ele

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O Tempo sem o Tornar-se

mesmo é necessário ou contingente – contra o subjetivismo19. Correlacionismo,


portanto, é composto por dois argumentos: o argumento do círculo correlacionista
contra o realismo ingênuo (vamos usar esse termo para descrever qualquer realismo
que seja incapaz de refutar o círculo); e o argumento da facticidade, contra o idealismo
especulativo. O subjetivista afirmou erroneamente que poderia derrotar o
correlacionista ao absolutizar a correlação; acredito que podemos apenas derrota-lo ao
absolutizarmos a “facticidade”. Vejamos o porquê.

O correlacionista deve sustentar, contra o subjetivista, que podemos conceber a


contingência da correlação: isto é, sua possibilidade de desaparecimento com a
extinção da humanidade. Mas, ao fazê-lo, e esse é o ponto essencial, o correlacionista
deve admitir que podemos pensar em uma possibilidade que seja essencialmente
independente da correlação, uma vez que essa é precisamente a possibilidade da não-
existência da correlação. Para entender esse ponto, podemos novamente considerar a
analogia com a morte: a fim de pensar sobre mim mesmo como um mortal, devo
admitir que a morte não depende do meu próprio pensamento sobre a morte. Caso
contrário, eu poderia ser capaz de desaparecer apenas sob uma condição: que eu
permanecesse vivo para pensar no meu desaparecimento, e assim transformar esse
evento em um correlato acessível por mim. Em outras palavras, eu poderia estar
morrendo indefinidamente, mas nunca morreria de fato.

Se a facticidade da correlação pode ser concretizada, se é uma noção que


podemos efetivamente conceber – e, como vimos, esse deve ser o caso para o
correlacionista se ele quer refutar o subjetivista – então é uma noção que pode ser
pensada como um ab-soluto: a absoluta ausência de razão para qualquer realidade, em
outros termos, a efetiva habilidade para toda entidade determinada, seja ela um
evento, uma coisa, ou uma lei, de aparecer e desaparecer sem nenhuma razão para sua
existência ou não-existência. A Irrazão20 torna-se o atributo de um tempo absoluto
capaz de destruir ou de criar qualquer entidade determinada, sem nenhuma razão para
sua criação ou destruição.

Por meio dessa tese, tento revelar a condição para a cognoscibilidade da


oposição fundamental no correlacionismo, mesmo quando essa oposição não é
afirmada ou é negada: esta é a oposição entre o em-si e o para-nós. A tese do
correlacionista, seja ela explicitamente afirmada ou não, é que eu não posso saber o
que a realidade seria sem mim. Segundo ele, se eu me removo do mundo, não posso

19 NT: Esta é a “finitude” que Meillassoux busca ir além no Depois da Finitude.


20 NT: Este é o que Meillassoux se refere como princípio a-hipotético da irrazão [principe anhypothétique
d’irrasion] Uma a-hipótese, na filosofia aristotélica (ανυπὀθετον, na Metafísica, 1005b-14), é algo “cuja
prova não é da demonstração lógica de deduções perfeitas, mas sim [ir] apontando inconsistências nas
quais o adversário iria incorrer se tentasse refutar tal a-hipótese” (Maciel, 2016, p. 64). Assim,
Meillassoux enuncia tal a-hipótese da irrazão nos seguintes termos: “nada tem razão de ser e de deixar
de ser tal como é; tudo deve poder, sem razão, não-ser e/ou poder ser outro em relação ao que ele é”
(Meillassoux, 2006, p. 82).

Anãnsi: Revista de Filosofia, Salvador, v. 1, n. 1, 2020. 213


Quentin Meillassoux

conhecer o resíduo21. Mas este raciocínio presume que fruímos de um acesso positivo a
uma possibilidade absoluta: a possibilidade de que o em-si possa ser diferente do para-
nós. E essa possiblidade absoluta é fundada, por sua vez, na absoluta facticidade da
correlação. É porque posso conceber o não-ser da correlação, que eu posso conceber a
possibilidade do em-si ser essencialmente diferente do mundo correlacionado com a
subjetividade humana. É porque posso conceber a absoluta facticidade de tudo, que eu
posso ser cético sobre todo outro tipo de absoluto.

Consequentemente, para mim, é possível refutar a refutação correlacionista do


realismo – a qual é baseada na acusação de contradição performativa – uma vez que
descubro uma contradição performativa na argumentação do correlacionista. Na
verdade, as noções fundamentais do correlacionismo, o para-nós e o em-si-mesmo, são
fundamentados em uma absolutização implícita: a absolutização da facticidade. Tudo
pode ser concebido como contingente, dependente do tropismo humano, tudo exceto a
própria contingência. Contingência, e apenas a contingência, é absolutamente
necessária: facticidade, e apenas a facticidade não é factual, mas, sim, eterna.
Facticidade não é um fato, não é mais um mero fato no mundo. E isso é baseado em um
argumento preciso: eu não posso ser cético em relação ao operador de todo ceticismo.

Essa necessidade da facticidade, essa não-facticidade da facticidade, chamo em


francês de “factualité” – isto é, na tradução de Ray Brassier, factialidade. Factialidade
não é facticidade, mas a necessidade de facticidade, a essência da facticidade. E o
princípio que enuncia a factialidade, simplesmente chamo de “princípio da
factialidade”. Finalmente, chamo “spéculation factuale”, “especulação factial”, a
especulação fundada no princípio da factialidade. Por meio do princípio da factialidade,
sustento que posso obter um materialismo especulativo que claramente refuta o
correlacionismo. Posso pensar em um X independentemente de qualquer pensamento:
e sei disso, graças ao próprio correlacionismo e sua luta contra o absoluto. O princípio
da factialidade desvela a verdade ontológica escondida por baixo do ceticismo radical
da filosofia moderna, pois ser não é ser um correlato, mas ser um fato; ser é ser factual,
e isso não é um fato.

§4 O princípio da contradição

Agora, o que se pode dizer sobre esse ab-soluto o qual é identificado como
facticidade? O que é a facticidade uma vez considerada como um ab-soluto, e não como
um limite? A resposta é o tempo. Facticidade como absoluto deve ser considerada como
o tempo, mas um tempo muito específico, o qual chamei em Depois da Finitude de
“Hipercaos”. O que pretendo dizer com esse termo? Dizer que o absoluto é tempo, ou
caos, parece bastante trivial, banal. Mas o tempo que descobrimos aqui é, como eu
disse, um tempo muito especial: não um tempo físico, não um caos comum.

21 NT: Referência ao “resíduo fenomenológico”.

Anãnsi: Revista de Filosofia, Salvador, v. 1, n. 1, 2020. 214


O Tempo sem o Tornar-se

Hipercaos é muito diferente do que comumente chamamos de “caos”. Caos


geralmente representa desordem, aleatoriedade, o eterno tornar-se de tudo. Mas essas
propriedades não são propriedades do Hipercaos: sua contingência é tão radical que
até o tornar-se, a desordem ou a aleatoriedade podem ser por ele destruídos, e
substituídos por ordem, determinismo e fixidez. As coisas são tão contingentes no
Hipercaos, que o tempo é capaz de destruir até o tornar-se das coisas. Se a facticidade é
o ab-soluto, contingência não mais significa a necessidade de destruição ou de
desordem, mas sim a contingência equivalente entre ordem e desordem, do tornar-se e
da sempiternidade22. É por isso que agora prefiro os termos “sobrecontingência”
[surcontingence]23, ao invés de contingência.

Devemos compreender que essa tese sobre o tempo é muito diferente da


filosofia de Heráclito. Ele, a meu ver, é um fixista terrível24. Seu tornar-se deve se
tornar, e persistir eternamente como tornar-se. Por quê? Isso é, para mim, uma
assertiva dogmática sem justificação alguma: porque, a meu ver, o tornar-se é apenas
um fato – assim como a fixidez – e, portanto, tornar-se e fixidez devem ambos possuir a
possibilidade eterna de aparecer e desaparecer. Mas o tornar-se heraclitiano também
é, como todo tempo físico, governado por leis específicas, leis de transformação que
nunca mudam. Mas não há motivo pelo qual uma lei física perdura, ou persiste, por
mais um dia, por mais um minuto. Porque essas leis são apenas fatos: não se pode
demonstrar sua necessidade.

Hume demonstrou esse ponto muito claramente. Mas essa impossibilidade de se


demonstrar a necessidade das leis físicas não é, a meu ver, por conta dos limites da
razão, como acreditava Hume, mas sim por conta do fato de que tal demonstração é
apenas falsa. Sou um racionalista, e razão claramente demonstra que não se pode
demonstrar a necessidade de leis. Logo, deveríamos apenas acreditar na razão e aceitar
este ponto: leis não são necessárias, são fatos, e fatos são contingentes, podem mudar
sem razão alguma. Tempo não é governado por leis físicas porque são as leis mesmas
que são governadas por um tempo louco25.

22 NT: Do latim sempiternitas, uma duração temporal infinita dentro de um tempo, não “fora do tempo”
(tal como seria a eternidade). Talvez o exemplo mais acessível seja o “infinito enquanto dure” do Soneto
da Fidelidade de Vinícius de Moraes.
23 NT: O termo surcontingence foi traduzido para o inglês como super-contingency, mas nos parece que o

prefixo “sur-” é aqui análogo à relação entre realismo e surrealismo. Talvez uma tradução aceitável seja
pensar, em analogia, em “surcontingênica”.
24 NT: Martin Heidegger parece ter sido o que primeiramente fez esta observação, mostrando, numa

forma elogiosa, que o mobilismo heraclitiano e o imobilismo parmenidiano não são tão diferentes
quanto parece à primeira vista. Meillassoux, ao contrário, enxerga esta fixidez do tornar-se de forma
negativa, como se fosse uma obrigação fixa do tempo ter de tornar-se eternamente. Alfred N. Whitehead
parece antecipar esta avaliação negativa de Meillassoux quando ele posiciona sua filosofia do organismo
contra teorias da “continuidade do tornar-se” (Whitehead, Processo e Realidade, p. 69).
25 NT: Aqui o público geral pode intuir porque o realismo especulativo, em todas as suas vertentes, se

aproxima do que Graham Harman apelidou de “realismo esquisito” (weird realism), onde é da razão das
coisas mesmas não ter uma razão tão humanoide, tão lapidada a nossos confortos, tão bem-comportada

Anãnsi: Revista de Filosofia, Salvador, v. 1, n. 1, 2020. 215


Quentin Meillassoux

Aqui, gostaria de enfatizar o tipo de ruptura que tento introduzir em relação a


ambas as principais modalidades da metafísica: “a metafísica da substância” e “a
metafísica do tornar-se”. Acredito que a oposição entre ser (concebido como substrato)
e tornar-se está incluída no princípio da razão, que é o operador toda metafísica. Este é
o sentido da oposição inicial nos pré-socráticos, entre Tales – que é um pensador da
arché concebida enquanto substrato, água por exemplo – e Anaximandro – que é um
pensador da arché como ápeiron, o que significa o tornar-se e destruição necessários
de toda e qualquer entidade. Pensadores do tornar-se como Heráclito, Nietzsche ou
Deleuze, são comumente considerados antimetafísicos, uma vez que a metafísica é
considerada como a filosofia dos princípios fixos, tais como substâncias e Ideias. Mas a
metafísica é na verdade definida por sua crença na necessidade determinada de
entidades ou de processos: coisas devem ser o que são, ou devem se tornar o que se
tornam porque há um motivo para isso (por exemplo, a Ideia, ou a Criatividade do
Universo). É por isso que a metafísica do tornar-se acredita em duas necessidades
metafísicas: a necessidade do tornar-se, ao invés da fixidez; e a necessidade de tornar-
se de tal e tal maneira, contra outros tornares igualmente concebíveis.

Ao contrário, a noção de Hipercaos é a ideia de um tempo tão completamente


liberto da necessidade metafísica que nada o restringe: nem o tornar-se, nem o
substrato. Esse tempo hipercaótico é capaz de criar e de destruir até o tornar-se,
produzindo, sem motivos, fixidez ou movimento, repetição ou criação. É por isso que
penso que, em última instância, a matéria da filosofia não é o ser ou o tornar-se,
representação ou realidade, mas uma possibilidade muito específica que não é um
possível formal, mas um possível real e denso, o qual chamo de “peut-être”, o “tal-
vez”26. Em francês, eu diria: “L'affaire de la philosophie n'est pas l'être, mais le peut-
être”. A preocupação principal da filosofia não é com o Ser, mas com o tal-vez. Este
peut-être, acredito, mas seria muito complicado demonstrar isso aqui, é muito próximo
ao peut-être final de Un Coup de dés27, de Mallarmé.

Se “facticidade” é o ab-soluto, então a “facticidade” deve ser pensada como


“Hipercaos”, um caos racionalista que é paradoxalmente mais caótico que qualquer
caos antirracionalista. Mas mesmo se aceitamos esse ponto, parece que temos um sério

segundo necessidades acessíveis por nós. Cf. Harman (2012), onde esta proximidade afetiva com o
estranho e o inusual é explorada por Harman na obra do autor de ficção favorito do quarteto original do
realismo especulativo: H.P. Lovecraft.
26 NT: A tradução oferece a chance de um trocadilho interessante. Meillassoux, um entusiasta de Hume,

segue este autor na defesa da importância filosófica da probabilidade, inclusive estatística (embora não
restrita a ela). Podemos, em analogia com a agência do Hipercaos, dizer que, nesta vez, ele agiu assim.
Naquela vez, agiu desta outra forma. Nada garante que o Hipercaos vai agir ou deixar de agir desta forma
nesta ou naquela vez. Este é um raciocínio que, embora fundado no “racionalismo” que Meillassoux
afirma professar, aponta diretamente para a necessidade do empírico, do experimento, do científico:
descobrir a maior ou menor probabilidade de tal vez em que o Hipercaos age ou não age de tal forma. O
tal-vez se torna um novo fundamento para a ciência.
27 NT: Este poema de Mallarmé foi traduzido por Haroldo de Campos como “Um lance de dados jamais

abolirá o acaso”.

Anãnsi: Revista de Filosofia, Salvador, v. 1, n. 1, 2020. 216


O Tempo sem o Tornar-se

problema: como esperamos solucionar o problema da ancestralidade com tal noção?


Este problema, de fato, consistiu em se descobrir um ab-soluto capaz de fundar a
legitimidade de um conhecimento científico da realidade em-si. Agora temos um ab-
soluto que é, acredito eu, capaz de resistir ao correlacionismo, mas esse ab-soluto
parece ser o contrário de uma estrutura racional do ser: ele é a destruição do princípio
da razão, por meio do qual tentamos explicar as razões dos fatos28.

Agora parece haver apenas fatos e não mais razão. Como se pode esperar
fundamentar as ciências com tamanho resultado? Penso que há um meio de se resolver
esse novo problema. Como podemos fazê-lo? Minha tese é a de que há condições
específicas da facticidade, as quais chamo de figuras: quero dizer, facticidade é para
mim a única necessidade das coisas, mas ser factual implica não ser qualquer coisa.
Algumas coisas, se existentes, não obedeceriam às estritas e necessárias condições
para serem uma entidade factual. É por isso que essas coisas não podem existir: pois se
existissem, seriam necessárias, e ser necessário, segundo o princípio da factialidade, é
impossível.

Deixe-me dar um exemplo. Tento demonstrar, em Depois da Finitude, que a não-


contradição é uma condição da contingência, pois uma realidade contraditória não
poderia mudar, já que ela seria o que já não é. Mais precisamente, imagine ou tente
conceber como seria um ser capaz de suportar qualquer contradição: ele tem a
propriedade X e, ao mesmo tempo, exatamente sob as mesmas condições, possui a
propriedade Não-X. O objeto é apenas vermelho, e não apenas vermelho como também
não-vermelho. E é o mesmo para qualquer propriedade que se possa conceber: b e não-
b, c e não-c etc. Agora, tente conceber que essa entidade tem de mudar, tornar-se algo
que não é. Ela seria concebível? Claro que não, já é tudo e seu oposto. Um ser
contraditório é perfeitamente necessário. É por isso que o Deus Cristão é, ao mesmo
tempo, o que é – Pai, infinito, eterno – e o que não é – o Filho, humano e mortal. Se se
quer pensar em algo necessário, deve-se pensar nele como contraditório, sem
nenhuma alteridade, nada fora do absoluto em que o absoluto poderia tornar-se. É por
isso também que, em última instância, o Absoluto hegeliano é efetivamente
contraditório: porque Hegel entendeu que um Ser que seja realmente necessário, tal
qual um Absoluto, deveria ser o que é e o que não é: deveria conter dentro de si o que
está fora de si. Tal Absoluto não teria alteridade, e, portanto, seria eterno (mas essa
certamente seria uma eternidade contraditória que não tem um tornar-se fora de si,
que tem, dentro de si, um eterno tornar-se eternamente passando em direção à
eternidade).

Ao contrário, sustento que a contradição é impossível – por isso sou um


racionalista – mas mantenho que é impossível porque a não-contradição é a condição
de um Caos radical, ou seja, o Hipercaos. Note que não reivindico que um ser
contraditório é impossível, porque seria absurdo ou sem sentido. Ao contrário, penso

NT: Meillassoux faz referência ao famoso princípio da razão suficiente do sistema Leibniz-wolffiano. Cf.
28

Meillassoux, 2006, p. 96 e ss.

Anãnsi: Revista de Filosofia, Salvador, v. 1, n. 1, 2020. 217


Quentin Meillassoux

que um ser contraditório não é ausente de sentido: pode-se defini-lo rigorosamente, e


se pode raciocinar sobre ele. Pode-se demonstrar racionalmente que uma contradição
real é impossível porque seria um ser necessário. Em outros termos, porque o princípio
metafísico da razão é absolutamente falso, é que o princípio lógico da não-contradição
é absolutamente verdadeiro.

A “logicidade” perfeita de tudo é uma condição estrita da ausência absoluta de


razão para qualquer coisa. É por isso que não acredito em metafísica em geral: porque
uma metafísica já acredita, de um jeito ou de outro, no princípio da razão. Um
metafísico é um filósofo que acredita na possibilidade de se explicar por que as coisas
devem ser o que são, ou por que devem necessariamente mudar, ou perecer, ou por
que as coisas devem mudar como mudam. Acredito no contrário – que a razão deve
explicar por que as coisas e por que o próprio tornar-se sempre podem se tornar o que
não são, e por que não há razão última para esse jogo. Nesse sentido, “especulação
factial” é também uma forma de racionalismo, mas um paradoxal: é um racionalismo
que explica por que as coisas devem existir sem a razão, e como precisamente elas
podem existir sem a razão29. Figuras são as tais modalidades necessárias da
facticidade; e a não-contradição é a primeira figura que deduzo do princípio da
factialidade. Isso demonstra que se pode raciocinar sobre a ausência de razão, se a
ideia mesma de razão está sujeita a uma transformação profunda; se se torna uma
razão liberta do princípio da razão; ou, mais exatamente, se é uma razão que nos
liberta do princípio da razão.

Agora, meu projeto é resolver um problema o qual não solucionei em Depois da


Finitude. É um problema muito difícil, o qual não posso explanar rigorosamente aqui,
mas posso evocar nessa simples questão: seria possível derivar, deduzir do princípio
da factialidade, a habilidade das ciências naturais de conhecer, por meio do discurso
matemático, a realidade em-si mesma, pela qual quero dizer o nosso mundo, o mundo
factual tal como é de fato produzido pelo Hipercaos, habilidade a qual existe
independentemente de nossa subjetividade? Responder esse problema muito difícil é
uma condição para uma resolução real do problema da ancestralidade – e isso constitui
a finalidade teorética do meu presente trabalho.
Recebido em: 10 de ago. 2020
Aceito em: 02 de set. 2020

29 NT: Esta metafísica paradoxal ganhou muitos adeptos diretos ou indiretos nas várias correntes do
realismo especulativo. Tristan Garcia (2014), no comentário de Jon Cogburn (2017) exerce uma
metafísica paradoxal onde fazer metafísica é fazer metafísica da totalidade, explicando porque esta
mesma totalidade é impossível. O projeto é elaborado de forma similar por Hilan Bensusan (2018), com
inspirações em ambos e na filósofa Anna Tsing. Bensusan e Tsing acreditam que a tarefa da metafísica é
oferecer uma visão maximamente geral sobre a realidade – visão esta que, paradoxalmente, deixa espaço
para outras visões maximamente reais. Ou, Bensusan (2017) coloca de forma diferente, é pensar uma
realidade maior composta de realidades menores, cada uma perspectivada e sem a obrigação de uma
coerência totalizante.

Anãnsi: Revista de Filosofia, Salvador, v. 1, n. 1, 2020. 218


O Tempo sem o Tornar-se

Bibliografia da Introdução

BENSUSAN, Hilan. A metafísica paradoxal dos outros. No Borders Metaphysics, 2017. Disponível em:
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Anãnsi: Revista de Filosofia, Salvador, v. 1, n. 1, 2020. 219


Universidade do Estado da Bahia
Departamento de Educação – Campus I
Anãnsi: Revista de Filosofia, Salvador, n.1, 2020

Estar com fome já é querer ser livre 1


Jean-Paul Sartre
Tradução: Flávio Rocha de Deus 2

Hoje em dia nada é mais desacreditado do que a liberdade. No passado, às vezes,


as pessoas vendiam sua liberdade por dinheiro. Hoje as pessoas a vendem mesmo que
em troca elas só possam esperar guerra ou morte.

Como as coisas chegaram a esse ponto? Porque as liberdades proporcionadas


pelas democracias burguesas são mistificações. Os direitos, ou melhor, os chamados
direitos que todos nós temos, em princípio, têm significado real apenas para uma
minúscula parte da população.

Por direito, cada membro da sociedade é livre para possuir coisas, mas, como é
livre para possuir o que possui, significa que o capitalismo é livre para possuir os
instrumentos de seu trabalho e o salário de seu trabalhador; como resultado, o direito
à propriedade leva ao sancionamento da regra da desigualdade social.

Por direito, somos todos iguais perante a lei, mas o desemprego, a pobreza, o
trabalho forçado, uma cultura imposta, os tribunais tendenciosos, os júris dominados
por classes e uma polícia que está nas mãos da classe dominante, todos significam que,
na realidade, essa igualdade também é uma mistificação.

Por direito, o trabalhador está integrado na coletividade nacional; dizem que


seus interesses são os mesmos dos capitalistas porque, quando o país está
prosperando, seu poder de compra é maior e, quando o país está em ruínas, ele sofre
como os demais. De fato, o produto e o próprio fruto de seu trabalho lhe escapam; ele é
um estranho em seu próprio local de trabalho que não poderia existir sem ele, e ainda
assim seu destino é determinado sem ele.

Por direito, todos temos a mesma liberdade de pensamento; mas qual é, de fato,
o significado da liberdade de pensamento para quem está morrendo de fome e frio ou

1 Texto original: SARTRE, Jean-Paul. “Avoir faim, c'est deja vouloir être libre”. Publicado na revista
Caliban. n. 20, 1948. Tradução realizada da Edição em inglês, de Adrian van den Hoven, publicada na
Sartre Studies International, v. 7, n. 2, p. 8-11, 2001.
2 Graduando em Filosofia pelo Departamento de Educação do Campus I (Salvador) da Universidade do

Estado da Bahia. E-mail: rocha.iflavio@gmail.com. Orcid: orcid.org/0000-0002-7523-5512.


Estar com fome já é querer ser livre

que é forçado a ler uma imprensa fanática e tendenciosa e onde as notícias e a


circulação de ideias não são livres? Ou quando campanhas de lavagem cerebral e
pânico, como as que estão sendo realizadas hoje, caem sobre ele?

Por direito, o voto do trabalhador, da classe média baixa ou do camponês vale o


mesmo que o de um chefão de indústria; mas, de fato, nem os ministérios nem as
assembleias legislativas representaram verdadeiramente a opinião pública de 1919 a
1940.

Portanto, a maioria da população não possui verdadeiramente direitos reais. A


liberdade como existe nas democracias burguesas é uma farsa, e aqueles que gozam
dos direitos abstratos que eles nos fornecem o fazem porque já possuem direitos
concretos; isto é, eles possuem poder econômico. Obviamente, por esses motivos, as
pessoas ficam compreensivelmente enojadas com a liberdade.

É compreensível que eles lhes digam: “Por que você precisa dessa liberdade, que
é expressa apenas por meio de grilhões e opressão? Você pode desistir. Porque o que
você quer, quando está com fome, é comer, e quando está com frio é carvão e roupas;
você está ameaçado pelo desemprego e, portanto, deseja segurança e não um direito
abstrato ao trabalho, mas garantias concretas em uma sociedade que tem pleno
emprego e deseja a paz”.

Entretanto, acrescenta-se: tudo isso só é possível com um governo autoritário


apoiado por uma burocracia onipotente que pode tomar decisões que não podem ser
apeladas. É assim que eles se opõem a um homem abstrato, aquele que vive em uma
democracia burguesa, com um homem concreto, que realmente está com fome, com
frio e não quer guerra, mas segurança no emprego. E pode-se acabar, ouvindo as
pessoas que afirmam que essas demandas concretas são contrárias às demandas da
liberdade democrática, sentindo vergonha de insistir na liberdade de homens que são
mal alimentados, sem carvão, sem sapatos e sem interior ou segurança externa.

No entanto, somos obrigados a acreditar que a liberdade não passa de uma


mistificação criada pela sociedade burguesa; somos forçados a pensar que devemos
abandoná-la totalmente como uma demanda e nos limitar apenas a demandas
concretas? Vamos, portanto, examinar essas demandas concretas.

É verdade que o problema básico da nossa sociedade, e talvez de todas as


sociedades até agora, é a pobreza. Nós não vivemos em sociedades ricas; nas nossas
sociedades, a pobreza torna ainda mais aguda à distribuição desigual da riqueza; e a
pobreza cresceu desde a guerra.

Existe uma maneira ofensiva de falar sobre liberdade que serve apenas para
fazer dessa liberdade uma arma contra demandas concretas. Quando, por exemplo,
uma pessoa conhecida declarou um dia, enquanto falava das demandas feitas pelas
massas, que elas eram uma expressão de seu materialismo sórdido, é óbvio o que esse
homem fez com esses valores, que a liberdade proporcionou uma arma contra essas

Anãnsi: Revista de Filosofia, Salvador, v. 1, n. 1, 2020. 221


Jean-Paul Sartre

demandas, e que ele desejava que soubesse que não era sórdido e acreditava na
liberdade democrática.

Mas vamos discutir essas mesmas demandas. Vejamos qual é o significado das
exigências de um homem mal alimentado, mal remunerado e com fome. Ele está
simplesmente tentando evitar um desconforto ou tem medo de morrer? É claro que no
fundo existe isso também, mas também existe o medo de se enfraquecer, de ser visto
como um homem enfraquecido, a raiva de ser forçado, apesar de si mesmo, de pensar
apenas em sua barriga, a raiva de ser preso em um impasse, de ser caçado e preso
como um rato. A fome é precisamente em si mesma a exigência de ser algo mais do que
uma barriga, de ser um homem. E não esqueça que um homem não está com fome
sozinho; quando esse homem está com fome, está com todos os camaradas que
pertencem à mesma classe, com aqueles que são tão mal pagos quanto ele; a fome de
alguém desempregado é a de todos os desempregados ao mesmo tempo. Aqui, nessa
mesma fome, no esforço de se livrar dela, a solidariedade está nascendo. Depois, há
também a raiva, porque outros estão comendo; esse sentimento que as pessoas
tentaram insultar, que foi chamado de inveja e ciúme de base, era, pelo contrário, um
desejo de igualdade e justiça. Fome, simplesmente fome que resulta em demandas por
aumento de salário, já é a demanda de um homem que quer se libertar da necessidade,
que quer se libertar de tudo o que o impede de ser homem. A fome já é uma demanda
por liberdade.

Vamos agora dar outro exemplo, a demanda por paz. Hoje, todos os homens, a
menos que sejam enganados, querem trabalhar em paz. Certamente, em primeiro
lugar, existe a idéia correta e digna de que alguém não quer morrer preso em aventuras
sangrentas; mas também existe o ódio de ver o próprio destino, o destino no qual
alguém tenta, através do trabalho, através do trabalho organizado, através do modo
como vive a vida, lutar contra as condições mais dolorosas e que podem ser varridas
pelo desconhecido. Forças que vêm de outro lugar onde e sobre o qual não se tem
controle. Existe também a ideia de que as pessoas querem ter seu destino em suas
mãos. Quer lide com a fome, demandas relacionadas às condições de trabalho ou
demandas de paz, em todos os casos, o que esses homens exigem e buscam é uma
liberdade concreta, ou seja, na situação em que se encontram cada um quer finalmente
ser capaz em uma sociedade sem classes de ser responsável por sua vida.

Tudo isso já é dado desde o início, em sua fome, na necessidade de segurança, na


demanda por trabalho. No entanto, quando você atende a essas necessidades e tem
como objetivo eliminar unicamente os desejos de seu estômago ou a necessidade de
segurança, você reduz as demandas da classe trabalhadora e da classe média. Você diz
a eles que lhes dará o suficiente para comer, mas não diz que o que eles querem é não
apenas comer o suficiente, mas comer para que possam ser livres.

Recebido em 10 de ago. 2020/ Aceito em 02 de set. 2020

Anãnsi: Revista de Filosofia, Salvador, v. 1, n. 1, 2020. 222


Universidade do Estado da Bahia
Departamento de Educação – Campus I
Anãnsi: Revista de Filosofia, Salvador, v. 1, n.1, 2020

Persona e a inútil busca pelo Ser: um olhar psicanalítico


sobre o ofício do ator e o problema da autenticidade

Laila Algaves Nuñez 1

O roteiro de Persona (1966), de Ingmar Bergman, é comovente desde o início.


Em um dos primeiros monólogos do filme — a fala da administradora do hospital
sobre a condição da atriz –, já está posta a sua principal questão: a autenticidade do ser.
A pergunta que ressoa para os espectadores é se esta fidelidade a si mesmo — mesmo
que ao estado momentâneo do “eu” — significa voltar-se para dentro, abstendo-se dos
padrões sociais que se impõem, ou se significa moldar-se para aparentar aquilo que
deseja ser e, por conseguinte, transformar-se naquilo que se parece. Vale, aqui,
mencionar, na íntegra, o poético discurso que abre a obra:
Eu entendo muito bem. O inútil sonho de ser. Não parecer, mas ser. Estar
alerta em todos os momentos. A luta: o que você é com os outros e o que você
verdadeiramente é. Um sentimento de vertigem e a constante fome de
finalmente ser exposta. Ser vista por dentro, cortada, até mesmo eliminada.
Cada tom de voz, uma mentira. Cada gesto, falso. Cada sorriso, uma careta. […]
Você pode se fechar, se fechar para o mundo. Então não tem que interpretar
papéis, fazer caras, gestos falsos… Acreditaria que sim, mas a realidade é
diabólica. Seu esconderijo não é à prova d’água. A vida engana em todos os
aspectos. Você é forçada a reagir. Ninguém pergunta se é real ou não, se é
sincera ou mentirosa. Isso só é importante no teatro. Talvez nem nele.

Através da angústia da protagonista, Elizabeth Vogler – a atriz que sentia-se


atriz a todo instante –, Bergman torna ainda menos claras as já bastante turvas
fronteiras entre o parecer e o ser. Faz-nos perguntar a nós mesmos se, ao longo de
nossas vidas, parecemos mais do que fomos. Nesse sentido, norteado pelo enigmático
enredo de Persona e pelos significantes que compõem toda a sua atmosfera — o
silêncio de Elizabeth, o título do filme e mesmo o nome da enfermeira, por exemplo –,
este trabalho se propõe a explorar os limites nebulosos da identidade, enquanto
criação individual e inscrição no código, e os efeitos que o aproximar-se do ser produz
sobre o parecer, e vice-versa.

1 Graduada em Cinema pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro e Mestranda em Estética e
Estudos Artísticos pela Universidade Nova de Lisboa. ORCID: orcid.org/0000-0001-7048-3907. E-mail:
laila.algaves@gmail.com
Laila Algaves Nuñez

Em seu ensaio intitulado A Pele de Cobra, o diretor reflete, atravessado por suas
memórias e fantasias pessoais, sobre o que de si existe em suas obras e sobre sua
relação com a arte. Para ele, a arte, no geral — para além do Cinema –, deve ser
experimentada através de uma relação que não é pré-codificada, que não busca —
porque, em última instância, não possui — sentido. Bergman chega a escrever,
inclusive, que a arte não detém mais a capacidade de determinar ou mesmo influenciar
o desenvolvimento de nossas vidas.

A arte, em suas palavras, é livre, “livre de vergonha, irresponsável, e como eu


disse: o movimento é intenso, quase febril, como, me parece, uma pele de cobra cheia
de formigas. A cobra já está morta há muito tempo, comida, desprovida de seu veneno,
mas sua pele se move, repleta de vidas intrusas.” Sua visão cética acerca do poder
transformador da arte pareceu, em muito, dialogar com a visão de Elizabeth Vogler
acerca de seu próprio ofício. A atriz, que, durante uma peça, se cala e se desculpa por
ter sentido vontade de rir, anuncia o seu despertar, naquele primeiro instante de
emudecimento, para a inutilidade e a insignificância de sua arte, “morta” e “repleta de
vidas intrusas”2.

O termo hipócrita nasceu nos palcos. Utilizado em grego para designar o ator —
hypokrites, significava, portanto, nada mais que aquele que desempenha papéis. Com
Platão, porém, o ator será aquele que afasta-se do conhecimento verdadeiro porque
produz uma imitação daquilo que já é, em si, uma cópia imperfeita do ideal. Como
evidência da vitória da perspectiva platônica sobre verdade e mimesis no pensamento
ocidental, pode-se verificar que a suspeição em relação ao uso de máscaras se
inscreveu na língua, vinculando-se, negativamente, ao ocultamento da verdade.
Articulado a acusações morais, o termo sofre, então, um deslocamento de sentido, e
passa a referir-se tão somente àquele que mente. Marca-se, aqui, uma diferença
fundamental entre aparência e verdade.

No cerne desta transformação está a desvalorização do trabalho expressivo do


ator. Quando atuação e mentira se confundem, encobre-se todo o esforço de
construção artística de um personagem, que demanda um reconhecimento e uma
análise não apenas das relações entre indivíduo e sociedade, como também da própria
constituição de si a partir dessas relações. O exercício do ator é, em certa medida,
extremamente idiossincrático. No que usa a máscara, apresenta a si mesmo. Liv
Ullmann, a atriz que interpreta Elizabeth Vogler, confirma esta ideia, em entrevista a
David Outerbridge:
Você tem que encontrar uma técnica com a qual toda noite você mostre ou
imite raiva pelo conhecimento profundo de experiências passadas de sua
própria raiva de modo que você possa visualizá-la, e visualizando-a você
realmente a sente. É o uso de sua própria raiva, é como sua raiva, mas
pertence ao personagem.3

2 BERGMAN, 1990, p. 112.


3 OUTERBRIDGE, 1979, p. 17.

Anãnsi: Revista de Filosofia, Salvador, v. 1, n. 1, 2020. 224


Persona (1966) e a inútil busca pelo Ser

Com a profunda associação moralista que se enraíza entre atuação e imitação,


passa-se a valorizar uma expressividade espontânea em detrimento da expressividade
artística, que cria personas. A noção de autenticidade começa, então, a se confundir com
espontaneidade. Dessa maneira, o poder do ator já não está mais tão disponível, nem
sua arte é mais necessária. É exatamente este o problema que se apresenta no início do
filme: a busca de Elizabeth, que sente que ser atriz é inútil, pela autenticidade
verdadeira. Seu emudecimento é, portanto, uma tentativa desesperada de,
supostamente livre das leis da linguagem, desacorrentar-se das aparências e transmitir
apenas aquilo que é genuíno e espontâneo, como o grito que emite com a possibilidade
de ser queimada.

A busca pela autenticidade é a busca pelo Ser mais essencial, aquilo que seria
imutável e, por conseguinte, verdadeiro. A sustentação de uma Verdade, em oposição
àquilo que é aparência e falso, é, no entanto, um mero artifício, útil à conservação do
homem comum, que precisa de crenças estáveis. Esta demarcação clara entre sujeito e
aparência “não passa de um preconceito moral”, como afirma o filósofo Friedrich
Nietzsche (1886), em Além do Bem e do Mal:
Admita-se ao menos o seguinte: não existiria nenhuma vida, senão com base
em avaliações e aparências perspectivas; e se alguém, com o virtuoso
entusiasmo e a rudeza de tantos outros filósofos, quisesse abolir por inteiro o
“mundo aparente”, bem, supondo que vocês pudessem fazê-lo — também da
sua “verdade” não restaria nada! Sim, pois o que nos obriga a supor que há
uma oposição essencial entre “verdadeiro” e “falso”? 4

Nesse sentido, redimensiona o ser humano a partir de uma ressignificação da


ideia de aparência, segundo a qual verdade e mentira se dissolveriam. “Máscara é
morada. Também é morada o rosto que a máscara reveste. […] A cadeia de máscaras
não termina”5. Máscara não é disfarce, é a própria configuração do sujeito. Elizabeth
nega a máscara porque ainda está compromissada com a ideia de uma identidade
verdadeira, essencial, de um Ser “com delimitações muito precisas”, o que exige,
necessariamente, “o afastamento de qualquer ameaça de ruptura”6.

O discurso, para a atriz, representa esta ameaça. A fala materializa o real.


Citando Clarice Lispector (1977), no conto Os desastres de Sofia: “As palavras me
antecedem e ultrapassam, elas me tentam e me modificam, e se não tomo cuidado será
tarde demais: as coisas serão ditas sem eu as ter dito”. Não à toa, no filme, as duas
cenas que talvez sejam as mais fortes e mais reais não acontecem visualmente, são
apenas detalhadamente descritas no monólogo de Alma: a traição da enfermeira com
dois desconhecidos na praia e a declaração sobre a maternidade indesejada de
Elizabeth, na sequência final. Inclusive, muitos dos que já assistiram a Persona pensam
que ambos os momentos são, de fato, exibidos no filme, tamanha a potência e a

4 NIETZSCHE, Além do Bem e o do Mal, s/d.


5 SCHÜLER, 2001, p. 178.
6 PEREIRA, 2011, p. 166.

Anãnsi: Revista de Filosofia, Salvador, v. 1, n. 1, 2020. 225


Laila Algaves Nuñez

verdade no discurso — palavra empregada, desta vez, para designar aquilo que é, de
fato, o real.

O emudecimento da personagem é o primeiro e principal elemento condutor de


toda a narrativa do filme. O motivo pelo qual a atriz teria optado pelo silêncio, durante
toda a película, permanece em suspenso. A princípio, pode indicar uma vontade de ser
outras pessoas, de abraçar a infinita possibilidades de caminhos e personas, de alcançar
um mutismo primitivo do qual qualquer discurso provém — que Lacan
denomina alíngua. Alíngua é a língua do desejo, da expressão indeterminada e ilimitada
da vontade humana. O que se manifestasse desta mudez seria, portanto, genuíno.

Paradoxalmente, o que se observa é que a transgressão de Elizabeth Vogler à


condição de alíngua é significante, justamente, do medo que sente diante desta
vastidão de sentidos, que se apresenta como um campo de vias infinitas que,
simultaneamente, ampliam e delimitam o ser. A atriz paralisa e se esgota em seu
silêncio porque ele é uma fuga de outros seres que são reais, constitutivos dela, e que
precisam, portanto, serem afirmados para tomar forma.

Alma, que não por acaso possui este nome, é esta figura de um ser inventivo, que
reconhece e articula suas múltiplas facetas em sua própria estrutura. Diferente de
Elizabeth, que supostamente está preocupada em atingir uma essência, uma natureza
íntima e pura, livre de “mentiras”, a enfermeira sabe que a liberdade nada tem a ver
com a Verdade, o que está claro em sua fala: “Is it really important that you don’t lie,
that you tell the truth, talk with a genuine tone of voice? Can you live without talking
freely? Lie and make excuses? Isn’t it better to give yourself permission to be lazy and
lie?”7. (PERSONA, 1966)

Em termos nietzschianos, Alma teria “se tornado aquilo que é”, expressão que,
de forma alguma, significa assumir uma identidade profunda desde sempre dada.
Significa, ao contrário, o desacorrentamento dos deveres do Ser, abrindo as condições
necessárias ao experimento consigo mesmo para uma auto-constituição radical. É o
vir-a-ser outros, aventurar-se na alteridade e, ao mesmo tempo, dominar esta vastidão
própria, impor uma ordem aos caos interno. É perder-se e criar-se. É fruir de sua
inteireza através de sua multiformidade. E para “que alguém se torne o que se é
pressupõe que não suspeite sequer remotamente o que é. Desse ponto de vista
possuem sentido e valor próprios até os desacertos da vida”8.

Não suspeitar do que se é pode parecer, numa leitura psicanalítica, o avesso


daquilo que se propõe na conhecida máxima freudiana “ali onde Isso era, é meu dever
que Eu venha a ser”. Entretanto, o não suspeitar de si, no sentido que Nietzsche

7 “É realmente importante que você não minta, que diga a verdade, que fale com um tom de voz genuíno?
Você pode viver sem falar livremente? Mentir e dar desculpas? Não é melhor se dar permissão para ser
preguiçoso e mentir?” (Tradução e Nota do Editor)
9 NIETZSCHE, Ecce Homo, s/d.

Anãnsi: Revista de Filosofia, Salvador, v. 1, n. 1, 2020. 226


Persona (1966) e a inútil busca pelo Ser

concebe, não significa deixar de revisar e suspender a si mesmo, mas, sim, reiterar tudo
aquilo que se descobre ser no trabalho constante de análise — sentido, portanto, em
completa ressonância àquele apresentado por Freud.

Alma e Elizabeth, na medida em que se aproximam cada vez mais, passam a ser
retratadas como a mesma pessoa. Talvez se possa afirmar que são duas personas de
uma mesma pessoa: Alma, que personifica o pecado e a imoralidade sob um aspecto
quase infantil e inocente; Elizabeth, madura, introvertida, marcada por uma repressão
profunda de seus desejos. Em algum aspecto, se assemelham, respectivamente, à
configuração do Isso e do Supereu na construção do Eu.

São os dois polos das várias dicotomias que se apresentam no filme: rosto-
máscara, realidade-aparência, eu-outro, real-imaginário, palavra-silêncio, alma-corpo,
sombra-luz. Em última instância, são as várias dicotomias que nos constituem como
seres humanos, sendo a principal delas o conflito psíquico entre Elizabeth, aquela que
recalca e adoece, e Alma, aquela de onde provém a cura.

Referências

BERGMAN, Ingmar. Images: My Life in Film. Nova Iorque: Arcade, 1990, p. 112.

LISPECTOR, Clarice. Os desastres de Sofia. 1977. Versão Digital. Disponível em <beatr


ix.pro.br/index.php/os-desastres-de-sofia-clarice-lispector/>. Acesso: nov. 2016.

NIETZSCHE, Friedrich. Ecce Homo, s/d. Versão Digital. Disponível em: <lusosofia.net/
textos/nietzsche_friedrich_ecce_homo.pdf>. Acesso: nov. 2016.

NIETZSCHE, Friedrich. Além do Bem e o do Mal, s/d. Versão Digital. Disponível em:
<neppec.fe.ufg.br/up/4/o/Al__m_do__Bem_e_do_Mal.pdf>. Acesso: nov. 2016.

PERSONA. Direção: Ingmar Bergman. AB Svensk Filmindustri: 1966. P&B. (125 min).

OUTERBRIDGE, David. Liv ullmann sem falsidades. Rio de Janeiro: Nórdica, 1979.

PEREIRA, Cássia Maria Chaffin Guedes. A perdão criadora. 212 f . Tese (Doutorado em
Psicologia). Departamento de Psicologia, Pontifícia Universidade Católica do Rio de
Janeiro. Rio de Janeiro, 2011.

SCHÜLER, Donaldo. Heráclito e seu (dis)curso. Porto Alegre: L&PM, 2001.

Recebido em: 29 de jun. 2020


Aceito em: 23 de ago. 2020

Anãnsi: Revista de Filosofia, Salvador, v. 1, n. 1, 2020. 227


Universidade do Estado da Bahia
Departamento de Educação – Campus I
Anãnsi: Revista de Filosofia, Salvador, v. 1, n.1, 2020

Estou Me Guardando para Quando o Carnaval Chegar:


tempo, trabalho e autonomia no Brasil contemporâneo

Franciele Oliveira Bispo (Fanny Oliveira) 1

E quem me vê apanhando da
vida duvida que eu vá revidar
Tô me guardando pra quando o
carnaval chegar
Eu vejo a barra do dia surgindo,
pedindo pra gente cantar
Tô me guardando pra quando o
carnaval chegar
Eu tenho tanta alegria, adiada,
abafada, quem dera gritar
Tô me guardando pra quando o
carnaval chegar…”
– Chico Buarque

Fonte: ESTOU (2019)

Uma tela em preto, acompanhada de narração em primeira pessoa. A atenção se dirige


por completo à audição. Nomes de cidades nordestinas são proferidos. Espacialidade é
o contexto. Há um súbito silêncio, que em seguida é quebrado pela continuidade da
narração que apresenta memórias em confronto com o tempo. As primeiras imagens
aparecem. São grandes totens que vão e vem enquanto uma trilha sonora nos
proporciona a sensação de nostalgia. O choque entre os tempos é gerado. Assim é o
convite aos espectadores no primeiro minuto de Estou me guardando para quando o
carnaval chegar (2019), dirigido pelo pernambucano Marcelo Gomes, conhecido no

1 Licenciada em Filosofia pela Universidade do Estado da Bahia. Atua como idealizadora do projeto
Zuruba de pesquisa e produção de imagens e suas relações sociais. Em suas realizações audiovisuais
atuou como diretora nos documentários Tríduo de Santo Antônio (2019), Lembranças de um não eu
(2019) e nas Web séries Vidas em branco (2018) e Diário de artista suburbano (2020). Atualmente dirige
a série Diz aí Juventudes do Canal Futura. E-mail: franciele.oliveira1996@gmail.com.
Estou Me Guardando para Quando o Carnaval Chegar

cenário do cinema nacional por produções como Cinema, aspirinas e urubus (2005) e
Viajo porque preciso, volto porque te amo (2009). Um dos horizontes das discussões que
envolvem o longa documental é sobre a propaganda que o neoliberalismo produz e
afirma: “Seja autônomo! Empreenda seu negócio e permaneça dono do seu tempo.”.
Essas são frases que manipulam e cooptam indivíduos diariamente, girando a chave da
subjetividade e ressignificando sonhos e realizações pessoais. A obra retrata o
desenvolvimento industrial na cidade de Toritama, situada no agreste do Pernambuco,
a 164 km de Recife. O local que é conhecido como a capital do Jeans, ocupa o segundo
lugar na produção do segmento no Brasil. A cidade permanece numa movimentação
frenética durante boa parte do ano, exceto no carnaval, quando quase todos os
moradores vão festeja-lo em outros locais, transformando a intensa velocidade do local
em silêncio e vazio.

Estou me guardando para quando o carnaval chegar tem seu roteiro e direção
executados sob a égide do confronto entre as memórias de infância e uma realidade
presente de Toritama. O confronto se estabelece quando, ao retornar à cidade depois
de muitos anos, o narrador encontra um cenário completamente distinto. As memórias
de infância, fixadas por um conjunto de imagens que apresentam a cidade como
símbolo de silêncio e calma, com atividades produtivas que se limitavam a criação de
gado e ao cultivo de mandioca e feijão, dão lugar a um espaço tomado por fábricas, um
incessante som produzido pelas máquinas de costura e o grande movimento de motos
e carros que executam o transporte das peças. A todo momento, o tempo, elemento
responsável por “costurar” a narrativa, nos interpela. Passado e presente como
dualidade temporal, quando confrontados, nos possibilitam a elaboração de críticas
sobre manipulação dos espaços que, por vezes, tornam-se irreconhecíveis física e
culturalmente.

De modo sintomático, na técnica, podemos perceber o tempo num trabalho


clichê, entretanto, bem executado, quando fotografia, som e montagem casam-se em
movimento e velocidade. As cenas demoradas que mostram movimentos repetitivos
dos trabalhadores em suas atividades, com auxílio de planos que oscilam entre grande,
médio e detalhe, câmera parada e takes que possuem duração equilibrada, colaboram
para a fixação das imagens. Tais cenas, que aparentam intenção sobre a percepção,
possibilitam um aumento no tempo de assimilação, permitindo o alargamento da
persistência retiniana e a conjugação de mais informações, conduzindo assim, a um
estado de certa contemplação e possibilitando o estabelecimento de uma crítica mais
densa. O som segue o mesmo padrão. Acompanha de modo muito presente o ritmo do
relógio entre repetições e pausas, conduzindo com fluidez nossas atenções. Estes
elementos em conjunto tornam-se um convite à reflexão, atravessando a razão com
uma analogia que percebe a semelhança entre as repetições de imagem e som e a
cíclica história de exploração dos trabalhadores.

Quando utilizado para compor o raciocínio da narrativa, o tempo mantém o


diálogo direto entre a questão da exploração dos trabalhadores pelas políticas

Anãnsi: Revista de Filosofia, Salvador, v. 1, n. 1, 2020. 229


Fanny Oliveira

amparadas no capitalismo e a falsa ideia de autonomia. Conseguimos acompanhar, a


partir das informações oferecidas pelo filme, que a produção anual de jeans em
Toritama chega a mais de 20 milhões de peças, entretanto, apesar do alto número de
pessoas que disponibilizam sua força de trabalho a esse tipo de ação, o percentual de
trabalhadores informais é imenso, o que nos permite enxergar como a desigualdade é
promovida também pelas relações sociais de produção. Apresentando o cotidiano das
facções – nome dado às fábricas nas quais o jeans é produzido e que estão situadas nas
garagens, quintais e salas das casas – da cidade, podemos aos poucos, adentrar aquelas
histórias e perceber o quão complexa é a construção que leva esses trabalhadores
informais, da grande indústria da moda, a acreditarem que são donos do seu tempo,
quando trabalham entre 12 e 14 horas por dia, se dividindo entre atividades de corte,
costura, modelagem e acabamento das peças, além de vendê-las na feira da cidade.

Agente da globalização, o advento da sociedade de consumo, que possui como


uma de suas características a ideia de flexibilidade do tempo diante do trabalho, vem
executando a destruição de funções fixas, principalmente para os trabalhadores
informais. A maioria das atividades são aceitas em razão da sobrevivência. Assim,
“Neste cenário de desprezo pelos direitos de cidadania [...] de degradação [...]
da qualidade de vida, de marginalização de largos segmentos da população, de
desmantelamento das organizações dos trabalhadores e de crescentes níveis
de desemprego, [...] [se desenvolve] o fenômeno da informalidade”
(MALAGUTI, 2001, p. 62, 63).

Temos a possibilidade de analisar bem esta imagem, a partir da narrativa de


Léo, persona que ganha destaque do filme. Léo é um homem que trabalha desde muito
jovem, e conta que já desempenhou diversas funções para suprir suas necessidades
básicas. Em algum momento de sua fala, ele afirma que a partir de sua experiência em
diversas funções, sabe que o melhor do mundo é trabalhar sendo seu próprio patrão, já
que isso lhe possibilita um maior controle sobre o tempo em que conduz suas
atividades, podendo, a sua escolha, dar uma “esticada” no serviço a fim de melhorar a
renda.

O filme realiza seu objetivo abordando o fenômeno anual que acontece na


cidade, a fuga dos moradores para o litoral no período do carnaval, no intuito de
aproveitar os únicos dias de descanso do ano. Este é o momento no qual as memórias
desse narrador reencontram a antiga Toritama calma, vazia e silenciosa. A obra narra
que, na década de 1980, existiam bandas, um teatro e uma biblioteca, que eram
responsáveis por movimentar culturalmente a cidade. Com o passar dos anos, movido
principalmente pela industrialização, os atrativos culturais desapareceram. Sem
alternativas de lazer, os retirantes do carnaval provocam um movimento dialético que
contrapõe, curiosamente, o nome da cidade (Toritama em tupi-guarani quer dizer terra
da felicidade), com o fenômeno anual, gerando a seguinte questão: se Toritama é a
terra da felicidade, por que todos fazem o possível para sair de lá no único momento de
descanso? As entrevistas constroem um panorama capaz de elucidar como padrões de
pensamento promovidos pela lógica social dominante, a partir dos requintes do

Anãnsi: Revista de Filosofia, Salvador, v. 1, n. 1, 2020. 230


Estou Me Guardando para Quando o Carnaval Chegar

neoliberalismo, atingem níveis de excelência no condicionamento dos indivíduos,


privando-lhes do acesso às necessidades mais básicas, que, por sua vez, sob
argumentos teológicos, são atribuídas a uma ordem divina, uma mente universal que é
responsável por guiar suas vivências. Assim, como afirmou o filósofo alemão Walter
Benjamin (2002), o capitalismo, com sua estrutura religiosa, de culto constante,
amparado na culpa e na dívida, e que possui no dinheiro sua divindade, torna-se essa
mente que conduz a massa de trabalhadores.

Os moradores de Toritama, estão condicionados a uma ordem cujo local de


moradia é “só trabalho”, como afirma uma das entrevistadas (que não é identificada
pelo nome). Estes trabalhadores que dormem e acordam trabalhando, que tem em suas
residências também os seus locais de trabalho, não possuem durante boa parte do ano,
a possibilidade de ócio. Deste modo, somos levados a refletir sobre o pacote de
“vantagens” oferecidas pelo neoliberalismo, que nos incita a viver em prol do consumo.
Uma das maiores finalidades com a renda gerada durante todo ano, comum aos
entrevistados, é festejar o carnaval distante de Toritama e consumir cultura e produção
de outros espaços, que oferecem vivências distintas às que possuem na cidade onde
moram. Para aqueles que não conseguem juntar a quantia suficiente, torna-se válido a
venda de qualquer item que possuam em casa, a fim de completar o valor requisitado à
viagem. Se você não consome toda a diversidade de produtos que o mercado lhe
oferece, por consequência não está vivendo de maneira correta, tornando-se infeliz.
Agora, os sonhos e a felicidade dependem do quanto você pode consumir. Toritama
vive a presentificação constante do trabalho, e esse modo de vivência não deixa brechas
para que esses trabalhadores possam sair do loop infinito de exploração, e só
vislumbram alguma alternativa de transgressão a esse sistema (aqui fica a indagação se
esse processo transgressor se dá de modo consciente ou não), quando ocorre
possibilidade de um afastamento físico daquele espaço. De modo alegórico, temos essa
representação em cena quando são mostrados manequins cinzas na vitrine, iluminados
por apenas um ponto de luz, enquanto vozes de diversas pessoas começam a falar
sobre seus sonhos, e de forma quase unânime essas vozes dizem que o tornar-se rico é
o maior sonho.

O neoliberalismo e sua atuação minimamente devastadora, impuseram na vida


desses indivíduos que trabalham nas fábricas, uma lógica baseada na constante
exploração de suas forças de trabalho, pincelada pelo poder de consumo, que são
mascarados pelo sedutor discurso do empreendedorismo clássico. O modelo de
trabalho autônomo, vendido na contemporaneidade de modo muito atraente, possui
como maiores elementos de sua propaganda a flexibilidade de horários, o imediato
retorno financeiro e a possibilidade de se transformar em seu próprio chefe. Com um
longo histórico no país, o trabalho autônomo sempre se fez a partir do fortalecimento
da pirâmide de classe social, sendo utilizado como instrumento de manipulação da
grande massa e fortalecendo os detentores dos grandes meios de produção. Os
modelos de trabalho se reinventam, mas a relações de exploração permanecem. Estou
me guardando para quando o carnaval chegar não inventa a roda para falar sobre esse

Anãnsi: Revista de Filosofia, Salvador, v. 1, n. 1, 2020. 231


Fanny Oliveira

panorama tão complexo, mas permite a partir de sua linearidade e porosidade, que
nossa razão visualize como as estratégias desse sistema agem e o que elas provocam,
tornando-se um material de cunho pedagógico, que possibilita enxergar de modo mais
organizado, as relações sociais de trabalho no Brasil contemporâneo. Como sua
conclusão, podemos pensar que o tempo que aqueles trabalhadores entregam a um
sistema que não identificam de forma límpida não pode ser tomado de volta, assim,
entregam além de sua força de trabalho também sua vida em busca de uma falsa
autonomia. O antigo vazio de Toritama que se dava nas ruas agora ganha outro lugar, o
da existência.

Referências

ESTOU Me Guardando para Quando o Carnaval Chegar. Direção e Roteiro de Marcelo


Gomes. 2019. (86 min).

MALAGUTI, Manoel Luiz. Crítica à razão informal – a imaterialidade do


assalariado. São Paulo: Boitempo Editora, 2001.

BENJAMIN, Walter. Capitalismo como religião. Organização de Michael Löwy.


Tradução: Nélio Schneider. 1ª Ed. São Paulo: Boitempo, 2013.

Recebido em: 12 de jul. 2020


Aceito em: 26 de ago. 2020

Anãnsi: Revista de Filosofia, Salvador, v. 1, n. 1, 2020. 232

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