Você está na página 1de 182

Édison Martinho da Silva Difante

Jelson Becker Salomão | Lutecildo Fanticelli


Marcio Renan Hamel
(Org.)

RECONHECIMENTO
E TOLERÂNCIA EM
SOCIEDADES
MULTICULTURAIS

EDITORA
UNIVERSIDADE DE PASSO FUNDO

José Carlos Carles de Souza UPF Editora


Reitor
Karen Beltrame Becker Fritz
Rosani Sgari Editora
Vice-Reitora de Graduação
CONSELHO EDITORIAL
Leonardo José Gil Barcellos
Vice-Reitor de Pesquisa e Pós-Graduação Altair Alberto Fávero (UPF)
Andrea Oltramari (UFRGS)
Bernadete Maria Dalmolin Alvaro Sanchez Bravo (UNIVERSIDAD DE SEVILLA)
Vice-Reitora de Extensão e Assuntos Carlos Alberto Forcelini (UPF)
Comunitários Carlos Ricardo Rossetto (UNIVALI)
Agenor Dias de Meira Junior Cesar Augusto Pires (UPF)
Vice-Reitor Administrativo Cleci Teresinha Werner da Rosa (UPF)
Fernando Rosado Spilki (FEEVALE)
Gionara Tauchen (FURG)
Giovani Corralo (UPF)
CORPO FUNCIONAL Héctor Ruiz (UADEC)
Helen Treichel (UFFS)
Daniela Cardoso Jaime Morelles Vázquez (UCOL)
Coordenadora de revisão José Otero G. (UAH)
Cristina Azevedo da Silva Jurema Schons (UPF)
Revisora de textos Karen Beltrame Becker Fritz (UPF)
Kenny Basso (IMED)
Sirlete Regina da Silva Leonardo José Gil Barcellos (UPF)
Coordenadora de design Luciane Maria Colla (UPF)
Rubia Bedin Rizzi Paula Benetti (UPF)
Designer gráfico Sandra Hartz (UFRGS)
Telmo Marcon (UPF)
Carlos Gabriel Scheleder Verner Luis Antoni (UPF)
Auxiliar administrativo Walter Nique (UFRGS)
Édison Martinho da Silva Difante
Jelson Becker Salomão | Lutecildo Fanticelli
Marcio Renan Hamel
(Org.)

RECONHECIMENTO
E TOLERÂNCIA EM
SOCIEDADES
MULTICULTURAIS

2017

EDITORA
Copyright© dos autores

Daniela Cardoso
Cristina Azevedo da Silva
Mara Rúbia Alves
Revisão de textos e revisão de emendas

Sirlete Regina da Silva


Rubia Bedin Rizzi
Projeto gráfico, diagramação e
criação da capa

Este livro, no todo ou em parte, conforme determinação legal, não pode ser reproduzido por qualquer meio
sem autorização expressa e por escrito do(s) autor(es). A exatidão das informações e dos conceitos e as
opiniões emitidas, as imagens, as tabelas, os quadros e as figuras são de exclusiva responsabilidade do(s)
autor(es).

UPF EDITORA
Campus I, BR 285 - Km 292,7 - Bairro São José
Fone/Fax: (54) 3316-8374
CEP 99052-900 - Passo Fundo - RS - Brasil
Home-page: www.upf.br/editora
E-mail: editora@upf.br

UPF Editora afiliada à

Associação Brasileira
das Editoras Universitárias
Sumário

Introdução...................................................................................................................... 7
Ética e Reconhecimento: contribuições da filosofia
e psicologia social................................................................................................ 10
Guilherme Witeck
Marcio Renan Hamel
Tolerância e liberdade de acordo com as leis de Platão........23
Lutecildo Fanticelli
Marina Broch
Política, utopia e fundamentalismo: desafios ao
multiculturalismo................................................................................................. 43
Gilvan Luiz Hansen
Gilvan Luiz Hansen Júnior
Justiça política em Rawls: a relação entre estabilidade
e tolerância ...............................................................................................................57
Jelson Becker Salomão
Aline Kerber Nunes
A questão da cidadania passiva na doutrina do
direito de Immanuel Kant: a narrativa de um contexto
histórico ...................................................................................................................... 82
Édison Martinho da Silva Difante
Felipe Favaretto
Os instrumentos e mecanismos nacionais de proteção
de minorias na sociedade contemporânea multicultural
e o papel da revisão periódica universal.......................................102
Gabriela Werner Oliveira
Isabela Bohnen
(In)Tolerância e reconhecimento: as mulheres e suas
religiões nas sociedades multiculturais.........................................123
Gabriela Mesa Casa
Laura Venturini da Luz
Do Senegal ao Rio Grande do Sul: integração e
multiculturalismo............................................................................................... 142
Aline Dip Toniolo
Luis Vaccari
A função da tolerância na mediação............................................... 168
Aline Trindade do Nascimento
Elias Benetti Fortuna
Introdução
A presente obra é resultado dos trabalhos desenvolvidos
no projeto de pesquisa denominado Reconhecimento e Tolerân-
cia em Sociedades Multiculturais, ligado ao Grupo de Pesquisa
Dimensões do Poder e Relações Sociais do Programa de Pós-Gra-
duação em Direito da Faculdade de Direito da Universidade de
Passo Fundo. O projeto propõe-se a realizar uma investigação
acerca da diversidade cultural e do reconhecimento, consideran-
do a relação para com os direitos humanos e sua característica
de universalidade dentro do contexto das relações sociais que se
estabelecem na sociedade ocidental, que, contemporaneamente,
é pós-convencional e pós-tradicional. O estudo, sob o enfoque fi-
losófico-jurídico, é de grande relevância social na medida em que
os resultados advindos dessa pesquisa possam contribuir para a
melhor compreensão das relações sociojurídicas bem como para
a compreensão de alcance e limites dos direitos fundamentais,
especificamente na sociedade brasileira, que é permeada por di-
ferentes etnias e grupos sociais que reivindicam maior espaço
político ao mesmo tempo que reclamam direitos específicos.
Em uma época marcadamente órfã de utopias e de enorme
crise das instituições jurídicas, políticas e sociais, foi esquecida
até mesmo a necessária discussão acerca da emancipação social,
que, desde Marx, foi palco de grandes e acirradas discussões nos
meios acadêmicos. O pós-guerra traz um novo e desafiador cená-
rio de esperança e, ao mesmo tempo, de exclusão, fome e miséria,
tendo o Direito assumido um importante papel na configuração
estatal como um sistema capaz de garantir, de certa forma, as
promessas não cumpridas da Modernidade.
Nesse contexto, o estado democrático de direito aparece no
limiar do século XXI bastante enfraquecido, após ter experimen-
tado algumas formas conceituadas como mais ou menos sociais.
Após a forte queda do comunismo, o Estado tipicamente liberal
também fracassou no sentido social, mostrando-se incapaz de ab-
sorver demandas sociais coletivas, perpetuando a fome crônica, a
miséria, o abandono e a proteção de uma pequena elite burguesa
por seus tribunais. A configuração mais recente do famigerado
estado de bem-estar social (Wolfarthstaat / Welfare State, em ter-
minologia europeia) também esbarrou em falta de competência
estrutural, e até mesmo orçamentária, quando o objetivo era sa-
nar demandas sociais graves e, há muito, reclamadas. Assiste-se,
assim, a partidos de esquerda assumirem o poder com nítidos
discursos de caráter social, mas com práticas políticas neolibe-
rais, mantendo a lógica da acumulação do capital por grandes
conglomerados, atendendo às reivindicações de isenções tribu-
tárias de multinacionais, dando pouca ou nenhuma atenção às
questões que dizem respeito às relações étnico-sociais bem como
ao alcance dos direitos humanos fundamentais.
Eis o cenário contemporâneo! Chega-se ao momento ao
qual Habermas denominou, em Diagnósticos do tempo, de “es-
gotamento das energias utópicas”, e que está desafiando o esta-
do democrático de direito e suas instituições jurídico-políticas e,
concomitantemente, o próprio Direito enquanto ciência. Pensar o
Direito nesse contexto significa pensar as possibilidades de reco-
nhecimento e inclusão do outro, enquanto probabilidades eman-
cipatórias para sujeitos de Estados-nação com problemas sociais
graves, bem como pensar as soluções para problemas que estão
se desenvolvendo tanto em níveis nacionais como internacionais.
Os direitos humanos, a interculturalidade, a ética, a moral,
o poder e o fundamento do direito são alguns dos temas aborda-
dos pelos pesquisadores da presente coletânea em uma aguçada
análise filosófico-jurídica com base na reflexão de importantes
pensadores da Filosofia do Direito, no intuito de ofertar ao leitor

Reconhecimento e tolerância em sociedades multiculturais

8
abordagens pontuais sobre a temática investigada. Agradece-
mos, assim, a todos os colegas pesquisadores que se dispuseram
a contribuir para esta obra.
A todos, o nosso muito obrigado!

Prof. Dr. Lutecildo Fanticelli


Professor colaborador

Prof. Dr. Marcio Renan Hamel


Coordenador do projeto de pesquisa Reconhecimento e Tole-
rância em Sociedades Multiculturais
Programa de Pós-Graduação em Direito da
Universidade de Passo Fundo

Édison Martinho da Silva Difante et al.

9
Ética e Reconhecimento:
contribuições da filosofia e
psicologia social1

Guilherme Witeck*
Marcio Renan Hamel**

O ser-aí, ao qual sempre importa ser, seria pois, na sua


própria autenticidade, ser-para-outro. O aí do ser-aí é
mundo que não é o ponto de um espaço geométrico, mas
a concretude de um lugar habitado, onde uns estão com
os outros e para os outros.
Emmanuel Lévinas

Jamais dominaremos a natureza completamente, e nos-


so organismo, ele próprio uma parte dessa natureza,
sempre será uma formação transitória, limitada em sua
adaptação e em sua operação.
Sigmund Freud

*
Graduando em Direito pela Universidade de Passo Fundo, estudante pesquisador
do pprojeto de pesquisa Reconhecimento e Tolerância em Sociedades Multicultu-
rais, bolsista Pivic. E-mail: g.witeck@gmail.com
**
Mestre em Direito, Cidadania e Desenvolvimento pela Universidade Regional do
Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul. Doutor em Ciências Jurídicas e Sociais
pela Universidade Federal Fluminense, com pós-doutorado no PPG em Direito da
Universidade Regional Integrada do Alto Uruguai e das Missões, Campus Santo
Ângelo. Professor de Introdução à Teoria do Direito, Filosofia do Direito, Herme-
nêutica e Argumentação Jurídica na Universidade de Passo Fundo. Coordenador
do projeto de pesquisa Reconhecimento e Tolerância em Sociedades Multiculturais.
E-mail: marcio@upf.br
1
Artigo produzido no projeto de pesquisa Reconhecimento e Tolerância em Socieda-
des Multiculturais.
Introdução
Em tempos de sociedades multiculturais, em que a di-
versidade cultural se aprofunda diante da universalidade dos
direitos humanos, cada vez mais, assiste-se a uma heteroge-
neidade espontânea e, ao mesmo tempo, incontrolável. A com-
pressão tempo-espaço, já presente no último quarto do século
XX, como decorrência da revolução tecnológica dos novos meios
de transportes, que facilitou os deslocamentos globais e, além
disso, as migrações, o movimento de refugiados, de ciganos e
também de situações internas do Estado-nação, como a questão
indígena e quilombola, torna tensas as relações interpessoais no
que tange ao respeito e ao reconhecimento do outro enquanto hu-
mano e cidadão.
A partir de tal conjuntura social, os direitos de cidadania
diluem-se para muitas pessoas que se encontram em situação
de não respeito e reconhecimento, e torna-se necessário repensar
o alcance e os limites do direito como detentor da característica
da universalidade normativa, mas também a partir da própria
bilateralidade da norma.
Para tanto, propõe-se uma reflexão com base nas contri-
buições da filosofia e da psicologia social, no sentido de apontar
para a possibilidade do reconhecimento do outro a partir da res-
ponsabilidade pessoal de cada sujeito, em particular mediante
a simples presença do outro, e, dessa forma, como decorrência,
melhorar a eficácia dos direitos culturais da pessoa humana.

Aproximações à filosofia de Lévinas


Conforme Hutchens (2007, p. 35-41), a ética de Lévinas,
é uma ética da responsabilidade, assim, nós nascemos em um
mundo de relacionamentos sociais que não escolhemos, ao mes-
mo tempo que não podemos ignorá-los. Pode-se dizer que essa
Guilherme Witeck, Marcio Renan Hamel

11
tarefa da relação com os outros (relações sociais) é uma das mais
difíceis tarefas do humano, mas, para Lévinas, responder à outra
pessoa significará estar conscientemente sensível ao seu estra-
nhamento.
Lévinas entende a experiência como uma leitura, uma com-
preensão do sentido, ou seja, uma hermenêutica, de maneira que
denomina sua filosofia de ética da ética. Assim, “[...] a relação
com o Outro questiona-me, esvazia-me de mim mesmo e não ces-
sa de esvaziar-me, descobrindo-me possibilidades sempre novas”
(LÉVINAS, 2012, p. 49). Nisso, encontra-se o que o filósofo cha-
ma de movimento para o outro, ou seja, a direção para o outro.
Nessa proposta ética, o outro é sentido, e é por ele que a sig-
nificação se introduz no ser, donde a compreensão do outro é uma
hermenêutica, uma exegese. O outro nos chama, nos convoca,
nos desafia a compreendê-lo e, portanto, a lhe dar sentido, pois o
outro, diante de mim, não se encontra incluído na totalidade do
expresso.
Por isso Lévinas (2012, p. 53) defende que o “eu” diante do
outro é infinitamente responsável, e o “eu” não pode se furtar a
essa responsabilidade, como se o templo da criação estivesse so-
bre seus ombros. Mediante reconhecida influência de Heidegger,
Lévinas entende que “o ser requer o homem como uma pátria ou
um solo requer seus atóctones” (2012, p. 96).
Já Heidegger (2000, p. 15), em sua fenomenologia herme-
nêutica, ensinou que o esquecimento das questões que interro-
gam pelo ser pode causar prejuízos. E sobre o que se pode per-
guntar? O autor enfatiza que “todo o perguntar é um buscar” e
“perguntar é buscar conhecer o que é” e “como é”. Aquele de quem
se pergunta na pergunta que se desenvolve é o ser.
A filosofia heideggeriana mostrou que o homem compreen-
de o ser, e a existência é compreensão do ser. Para Heidegger, a
própria questão sobre o ser foi esquecida, pois a tradição filosófica

Ética e Reconhecimento: contribuições da filosofia e psicologia social

12
não pergunta mais pelo ser. A grande virada da fenomenologia
hermenêutica reside no fato de Heidegger distinguir ser e ente,
pois não são a mesma coisa. O ser é o horizonte no qual o ente se
manifesta e, assim, deve ser pensado, buscado, no horizonte da
temporalidade. Nas palavras de Stein:
Heidegger parte de uma intuição fundamental que comanda sua ana-
lítica existencial e sua interrogação direta sobre a questão do ser e da
verdade. Essa intuição se resume na palavra grega aletheia. Nela se
esconde e dela emerge toda a ambivalência da compreensão do ser na
finitude e nela reside a verdadeira dimensão em que repousam o ser e
a verdade. A partir de aletheia se revela o verdadeiro alcance do método
fenomenológico, assim como o filósofo compreende. A fenomenologia,
no sentido heideggeriano, é o caminho que sustenta a finitude da com-
preensão do ser e a compreensão da finitude do ser-aí (2001, p. 24).

Daí a produção da filosofia de Lévinas entender que, em


Heidegger, a essência do ser é a explosão de sentido, ou seja, não
é outra coisa que não manifestação, expansão em lugar, em mun-
do. No entanto, essa manifestação requer o homem, pois ela se
confia ao homem enquanto tarefa, devendo o homem manter-se
na abertura do ser. Por isso, Lévinas dá conta da ideia de que o
outro nos chama, nos provoca, e sua simples presença convida-
-nos à responsabilidade pelo estranho que está à frente.
Em uma forma crítica à modernidade e à absolutização do
“eu” moderno, Lévinas defende que, em sua deposição, a ética
significa a espiritualidade da alma e, portanto, a questão do sen-
tido do ser um apelo à justificação. O “eu” é visto pelo filósofo
como a própria crise do ente no humano. Crise do ser, crise do
humanismo. A responsabilidade é a excelência da proximidade
na sua socialidade. Dessa forma,
[...] o humano é o retorno à interioridade da consciência não inten-
cional, à má consciência, à sua possibilidade de temer à injustiça, de
preferir a injustiça sofrida à injustiça cometida e de preferir o que
justifica o ser àquilo que o assegura (LÉVINAS, 2010, p. 117).

Guilherme Witeck, Marcio Renan Hamel

13
Eis a fenomenologia de Lévinas a partir da presença do ou-
tro. Do simples fato da presença do outro (ou do rosto de outrem,
como fala Lévinas), surge a responsabilidade por outrem, ao qual
devo ir ao encontro antes de estar presente em mim mesmo, an-
tes mesmo de voltar a mim. Qual o significado desse antes? Para
Lévinas, seria pela própria memória representada, mantendo
acesa a teoria platônica da reminiscência e, dessa forma, assegu-
rada a referência ao pensamento pela percepção.
Pela teoria da reminiscência, presente no diálogo Fédon,
Platão2 demonstra que a alma aprende porque ela nasce várias
vezes e, com isso, ela recebe várias informações do mundo sensí-
vel. No momento em que a alma estiver no mundo inteligível (das
ideias), ela irá contemplar as coisas em si. Por isso, então, que
aprender é recordar:
E, por conseguinte, sobre o ponto que segue estamos também de acor-
do: que o saber, se se vem a produzir em certas circunstâncias, é uma
rememoração? Que circunstâncias sejam estas, vou dizer-te: se vemos
ou ouvimos alguma coisa, ou experimentamos, não importa que outra
espécie de sensação, não é somente a coisa em questão que conhecemos,
mas temos também a imagem de uma outra coisa, que não é objeto do
mesmo saber, mas de outro. Então, diz-me, não teremos razão em pre-
tender que aí houve uma recordação, e uma recordação daquilo mesmo
que tivemos a imagem? (Phd. 73c-d.).

Assim, “[...] a ontologia deveria, pois, ser interpretada não


só como saber que duplica o ser, mas como o último retorno da

2
Há um total de quarenta e quatro Diálogos atribuídos a Platão e um grupo de
treze Cartas, mas apenas vinte e oito desses Diálogos e só a Carta Sétima são real-
mente considerados autênticos pela tradição. Como abreviação será usada aqui
aquela que, de certo modo, é considerada a abreviação internacional dos Diálogos
platônicos. Para fins de facilitação da leitura, segue então a lista dos Diálogos ci-
tados neste texto e das suas respectivas abreviações: Leis: Lg.; Parmênides: Prm.;
República: R. e Fédon: Phd. As citações acompanharão, de igual modo, o padrão
internacional, isto é, a abreviatura seguida da paginação clássica de cada Diálogo.
Ressalte-se, também, que é habitual entre os estudiosos da filosofia platônica,
grafar os Diálogos no modo itálico. Esse último detalhe facilita, por exemplo, a
diferenciação entre um Diálogo e um pensador que dá o nome a esse Diálogo. Esse
é o caso, por exemplo, do Diálogo Parmênides, no qual o dialogante protagonista é
exatamente o pensador Parmênides.
Ética e Reconhecimento: contribuições da filosofia e psicologia social

14
identidade do ser a si mesma, como retorno ao Uno” (LÉVINAS,
2010, p. 179). Para Lévinas, é na relação pessoal, do eu ao ou-
tro, que o acontecimento ético conduz além ou se eleva acima do
ser. Lévinas está entre os filósofos que questionam a finitude e
também a finalidade da vida humana, e o faz a partir de uma
perspectiva de uma ética da alteridade, com que se encontrará
uma significativa contribuição da psicologia social, resultando
em uma base teórica forte para uma teoria do reconhecimento
do outro.

Contribuições da psicologia social


De acordo com a análise realizada por Erich Fromm (1977,
p. 43), Freud viu o homem como um sistema fechado, movido por
duas forças: a autopreservação e os impulsos sexuais. A primei-
ra fase apresenta aumento da tensão e desconforto, enquanto a
segunda reduz a tensão acumulada, gerando o que é sentido de
forma subjetiva como prazer. O homem, no contexto tratado, é
um ser isolado, cujo interesse está centrado na satisfação do seu
ego e no seu interesse libidinal.
No entanto, mesmo como um ser isolado, com interesse ego-
ísta, Fromm reconhece que, “secundariamente, o homem tam-
bém é um ser social, porque necessita de outras pessoas para
a satisfação de seus impulsos libidinais, assim como para a sua
autopreservação” (1977, p. 43).
Para Fromm, Freud provavelmente pressentiu que as espe-
ranças do pensamento iluminista eram ilusões, concluindo que
o homem, por natureza, estava inclinado a ser destrutivo. Nes-
se sentido, o Freud do século XX seria um pessimista, diante de
uma sociedade surpreendida pela rápida e imprevisível mudan-
ça, em que:

Guilherme Witeck, Marcio Renan Hamel

15
[...] a dificuldade em compreender o sistema “homem'' manifesta-se
basicamente em duas direções. Primeiro, com as mesmas dificuldades
que o conceito de sistema encontra no pensamento derivado do senso
comum. Exige que se pense em termos de processos e se abandone o
antiquado modelo de pensamento em função de causa e efeito. A outra
dificuldade reside no fato de, para a maioria das pessoas, ser difícil
aceitar a ideia de forças subjacentes no comportamento manifesto
(FROMM, 1977, p. 81).

Sobre a finalidade da vida humana, Freud diz que seu pro-


pósito foi questionado várias vezes, embora “jamais obteve uma
resposta satisfatória e talvez nem sequer admita” (2014, p. 61).
Para Freud,
[...] não conseguimos entender por que as disposições que nós mesmos
criamos não deveriam antes representar proteção e benefício para to-
dos nós. [...] uma grande parte da culpa pela nossa miséria é de nossa
chamada cultura (2014, p. 81).

Freud questiona a cultura do mundo moderno, ao se per-


guntar se o ser humano torna-se neurótico porque não é capaz de
suportar o grau de frustração que a sociedade lhe impõe a serviço
dos ideais culturais, e, ao contrário, se suprimir ou reduzir essas
exigências significaria o retorno à possibilidade de ser feliz.
Nesse sentido, importante análise de Erich Fromm acerca da
psicanálise da sociedade contemporânea indica que a necessidade
de um sentimento de identidade é tão vital que o homem não pode-
ria ter saúde mental, se não encontrasse algum modo de satisfazê-
-la. O sentimento de identidade do homem desenvolve-se no proces-
so de sair dos vínculos primários que o ligam à mãe e à natureza.
Segundo o autor, a cultura ocidental desenvolveu-se no sentido de
criar as bases do pleno sentimento de individualidade, assim:
Buscaram-se e encontraram-se muitos substitutivos para o verdadei-
ro sentimento individual de identidade. A nação, a religião, a classe e
a ocupação servem para proporcionar um sentimento de identidade.
“Sou estadunidense”, “sou protestante”, “sou um homem de negócios”
são as fórmulas que ajudam o indivíduo a ter um sentimento de iden-
tidade depois de haver desaparecido a primitiva identidade do clã e

Ética e Reconhecimento: contribuições da filosofia e psicologia social

16
antes de haver adquirido um sentimento de identidade verdadeira-
mente individual. [...] A necessidade de experimentar um sentimento
de identidade nasce da condição mesma da existência humana e é
fonte dos mais intensos impulsos (FROMM, 1974, p. 72).

Fromm (1974, p. 72) chama a atenção para o fato de que


a partir da existência dos substitutivos, na medida em que sou
como os demais e em que esses me consideram uma pessoa “nor-
mal”, eu posso me sentir como “eu”. Trata-se de uma forma de
identidade gregária, que descansa no sentimento de vinculação
indubitável com a multidão. Essa uniformidade e essa conformi-
dade permanecem encobertas pela ilusão de individualidade.
Quanto às relações sociais, Freud analisa a presença do
outro como um estranho que é hostil à minha presença e que é
moldado pelas realizações e disposições que designam a ideia de
“cultura”, situação com dois fins: a proteção do homem contra
a própria natureza e a regulamentação das relações sociais dos
homens entre si. Para Freud:
[...] esse estranho não é apenas geralmente indigno de amor; tenho de
confessar honestamente que ele tem mais direito a minha hostilidade,
até a meu ódio. Ele não parece ter o mínimo amor por mim, não de-
monstra por mim a menor consideração. Caso lhe possa trazer algum
proveito, não hesitará em me prejudicar, e ao fazê-lo também não ser
perguntará se o montante de seu proveito corresponde ao tamanho do
dano que me provoca (2014, p. 121).

Segundo Freud, a existência dessa inclinação agressiva,


que pode ser percebida em nós mesmos e, com razão, pressu-
posta nos outros, é o fator que perturba nosso relacionamento
com o próximo e força a cultura a dispêndios. Em consequência
dessa hostilidade primária dos homens, a sociedade aculturada
está constantemente ameaçada pela ruína (2014, p. 124-125).
Freud afirma que a inclinação agressiva do ser humano é uma
disposição de impulsos original e independente, desse modo, a
cultura encontra nessa inclinação o seu grande empecilho (2014,
p. 141). Por isso, Freud afirma que “se o indivíduo perde o amor
Guilherme Witeck, Marcio Renan Hamel

17
do outro, do qual depende, também perde a proteção contra mui-
tos perigos, e se expõe, sobretudo, ao risco de que esse outro pre-
potente lhe mostre a sua superioridade em forma de punição”
(2014, p. 146).
Uma das principais contribuições da psicologia e, especifica-
mente, da denominada psicologia social é o universal sentimento
de uma necessidade de reconhecimento da criatura humana. A
literatura psicanalítica, desde seu início até a atualidade, aborda
a questão do reconhecimento. A esse exemplo, Freud deixou clara
a importância que atribuía aos vínculos que se estabelecem entre
o indivíduo e seus semelhantes (ZIMERMAN, 1999, p. 163). Con-
forme Zimerman, é indispensável para o crescimento mental do
sujeito que ele desenvolva com as demais pessoas:
[...] um tipo de vínculo no qual reconheça que o outro não é um mero
espelho seu, que é autônomo e tem idéias, valores e condutas diferen-
tes das dele, que há diferença de sexo, geração e capacidades entre
eles, sendo que essa condição de aceitação das diferenças somente
será atingida se ele ingressar exitosamente na posição depressiva,
conforme a concepção de M. Klein (1999, p. 166).

Dessa forma, surge também a importância de ser reconheci-


do pelos outros, pois todo ser humano está vinculado a objetos, e
ele necessita vitalmente de reconhecimento dessas pessoas para
a manutenção de sua autoestima. Assim, não é possível conceber
qualquer relação humana em que não esteja presente a necessi-
dade de alguma forma mútua de reconhecimento (ZIMERMAN,
1999, p. 167).
Zimerman esclarece a ideia de reconhecimento. Os filósofos
já tinham uma intuição desse fato, como bem se pode notar na
filosofia de Platão, que acreditava no poder que a narrativa tem
de tocar a alma, considerando que o mundo das ideias está den-
tro de nós. Dessa forma, “[...] conhecer é reconhecer aquilo que
já preexistia no sujeito e que este pensava que estava fora dele”
(ZIMERMAN, 1999, p. 166).

Ética e Reconhecimento: contribuições da filosofia e psicologia social

18
Por isso, segundo Zimerman (1999, p. 167), a importância
expressiva do reconhecimento alude a uma necessidade crucial
de todo ser humano, em qualquer idade, circunstância, cultura,
época ou geografia, em sentir-se reconhecido e valorizado pelos
demais, de modo a existir enquanto individualidade.
Assim, a psicologia social aproxima-se do humanismo de
Heidegger e de Lévinas, pois trata o tema do reconhecimento
diante do plano do ser, do existir, pois para essas filosofias a exis-
tência desde já é a própria compreensão do ser.
Conforme evidencia Uslar (1977), a psique não pode ser
encontrada na forma de objeto, mas é, antes de qualquer coisa,
realidade viva do nosso estar-no-mundo corporal, temporal e co-
letivo. Por isso, a memória não será um processo subjetivo dentro
do Eu, mas, sim, uma relação com a própria realidade passada,
de maneira que “o ser psíquico está sempre entrelaçado no ainda-
-não-ser do futuro e o já-não-ser mais do passado” (1977, p. 276).
Por isso, Uslar entende que todo encontro verdadeiro é uma
confrontação imediata com o ser de você, em que o acontecimento
do encontro é a própria realidade psíquica. É quando se sente a
presença corporal do outro, não apenas como reflexo, mas, sim,
no agir conjuntamente, no convívio diário, quando a palavra so-
nora (linguagem) não é só a expressão do conceito, mas o contato
com a realidade mesma, pois “deve-se levar em consideração que
a linguagem é uma realidade da coexistência” (1977, p. 279).
Nesse sentido, a psicologia social de Uslar também está
muito próxima do humanismo de Heidegger, que propõe que o
ser é a proteção que guarda o homem em sua essência existente,
de tal forma, para a sua verdade, “que ela instala a ex-sistência
na linguagem. É por isso que a linguagem é particularmente a
casa do ser e a habitação do ser humano” (2005, p. 81).
Os aportes tratados na presente pesquisa, com base em al-
guns estudos da filosofia e da psicologia social, são significativos

Guilherme Witeck, Marcio Renan Hamel

19
para uma reflexão interdisciplinar sobre a ética, a identidade e o
reconhecimento. A filosofia e a psicologia social oferecem catego-
rias importantes para (re)pensar o papel do direito contemporâ-
neo quanto à questão do reconhecimento.
O direito contemporâneo precisa cada vez mais de uma
aproximação com a ética, a filosofia e a psicologia sociais, no sen-
tido de melhor trabalhar a concretização dos direitos culturais,
transformando o direito posto em uma dogmática de luta, mas de
luta emancipatória, cujo espaço de reflexão deve ser normativo,
mas também, e principalmente, axiológico, ético e de total res-
ponsabilidade pelo outro.
Conforme evidencia o sociólogo português Boaventura de
Sousa Santos (2007, p. 11), a consciência de direitos é uma cons-
ciência complexa, por implicar não só a questão da igualdade,
mas, também, da diferença cultural.

Considerações finais
A partir da presente pesquisa, torna-se possível apontar al-
gumas notas conclusivas, quais sejam:
I – A forma estabelecida pelo dogmatismo jurídico de
igualdade necessita uma reflexão compensatória base-
ada nas contribuições da filosofia e da psicologia social.
II – A proposta de uma ética da responsabilidade formu-
lada por Emmanuel Lévinas, a partir da ideia de que
a simples presença do outro me torna responsável por
ele, já me obriga a compreendê-lo em suas particulari-
dades e, portanto, a respeitá-lo e dele também cuidar.
III – A contribuição da psicologia, com base em estudos de
Freud, sobre o universal sentimento de uma necessida-
de de reconhecimento, por parte da criatura humana,
e de Fromm, acerca da psicanálise e da sociedade con-
temporânea, abre a porta para uma ideia de reconheci-

Ética e Reconhecimento: contribuições da filosofia e psicologia social

20
mento. Por isso a importância atribuída por Freud aos
vínculos que se estabelecem entre o indivíduo e seus
semelhantes, e por Fromm à necessidade de identida-
de e reconhecimento, enquanto necessidade mesma da
existência humana.
IV – Em decorrência disso, Uslar entende, então, que a psi-
que não pode ser encontrada enquanto objeto, mas é,
antes de tudo, realidade viva do nosso estar-no-mundo
corporal, temporal e coletivo. Atribui, ainda, grande im-
portância à linguagem, como realidade da coexistência.
V – Nesse sentido, a psicologia social também se aproxima
do escrito humanista de Heidegger, filósofo para quem
a própria existência está na linguagem.
VI – Dessa forma, pensar o reconhecimento do outro em so-
ciedades multiculturais marcadas por diferentes etnias,
religiões, comportamentos e, ainda, permeadas por mi-
grações e guerras civis, em uma nova e paradoxal remo-
delação do Estado-nação, significa repensar a forma pela
qual o direito pode contribuir para a igual consideração
do outro a partir da melhor concretização dos direitos
culturais. Isto é, levar a cabo a aproximação do direito
com a ética, por meio das contribuições da filosofia e da
psicologia social, as quais nos mostram que a responsa-
bilidade do “eu” pelo “outro” é a chave para uma reali-
dade do coexistir.

Referências
FREUD, Sigmund. O mal-estar na cultura. Tradução de Renato Zwick. Por-
to Alegre: L&PM, 2014.
FROMM, Erich. A crise da psicanálise: ensaios sobre Freud, Marx e psicolo-
gia social. Tradução de Álvaro Cabral. Rio de Janeiro: Zahar, 1977.
_______. Psicanálise da sociedade contemporânea. Tradução de L. A. Bahia
e Giasone Rebuá. Rio de Janeiro: Zahar, 1974.
Guilherme Witeck, Marcio Renan Hamel

21
HEIDEGGER, Martin. Carta sobre o humanismo. Tradução de Rubens Edu-
ardo Frias. São Paulo: Centauro, 2005.
_______. El ser y el tiempo. Traducción de José Gaos. México: Fondo de Cul-
tura Económica, 2000.
HUTCHENS, B. C. Compreender Lévinas. Tradução de Vera Lúcia Mello
Joscelyne. Petrópolis: Vozes, 2007.
LÉVINAS, Emmanuel. Entre nós: ensaios sobre alteridade. Tradução de
Pergentino Stefano Pivatto et al. Petrópolis: Vozes, 2010.
_______. Humanismo do outro homem. Tradução de Pergentino Stefano Pi-
vatto et al. Petrópolis: Vozes, 2012.
STEIN, Ernildo. Compreensão e finitude: estrutura e movimento da interro-
gação heideggeriana. Ijuí: Editora Unijuí, 2001.
PLATÃO. Banquete, Fédon, Sofista, Político. Pessanha, J. A. M. (Org.). São
Paulo: Abril Cultural, 1983. (Coleção Pensadores).
SANTOS, Boaventura de Sousa. Para uma revolução democrática da justi-
ça. São Paulo: Cortez, 2007.
USLAR, D. von. Pressupostos ontológicos da psicologia. In: GADAMER,
Hans-George; VOGLER, P. Antropologia psicológica: o homem em sua exis-
tência biológica, social e cultural. São Paulo: USP, 1977. (Nova Antropolo-
gia, v. 5).
ZIMERMAN, David E. Fundamentos psicanalíticos: teoria, técnica e clínica
– uma abordagem didática. Porto Alegre: Artmed, 1999.

Ética e Reconhecimento: contribuições da filosofia e psicologia social

22
Tolerância e liberdade de
acordo com as leis de Platão

Lutecildo Fanticelli*
Marina Broch**

Introdução
Com este texto, pretende-se mostrar que o pensamento polí-
tico de Platão foi, sobretudo na sua última fase, um pensamento,
na verdade, tolerante e liberal, como o de qualquer outro atenien-
se de sua época. Tanto o cidadão Platão quanto o Platão filósofo
propriamente dito, em última instância, revelaram-se como se-
res normais, ou seja, como pessoas moderadas. Essa é uma tese
que, com efeito, poderá ser considerada heterodoxa, pois Platão é
normalmente tido como um inimigo da sociedade aberta. É bem
verdade que nos próprios Diálogos ele se declara um opositor do
regime democrático, aliás, sobretudo nas Leis. Mas, felizmente,
essa sua oposição é ela própria uma contradição, pois a filosofia,
como um todo, só pode ser produzida em uma democracia. Afinal,
na filosofia de Platão, como na de qualquer outro filósofo, é pos-
sível encontrar muitas contradições. Ele não dá um nome para
a sua cidade imaginária, mas estabelece algumas bases, que, ao
que parece, são próprias de uma sociedade livre. Enfim, um filó-
sofo só é um filósofo porque vive em um mundo livre.

*
Licenciado em História pela Universidade Regional de Blumenau. Mestre em Filo-
sofia pela Pontifícia Universidade Católica Rio Grande do Sul. Doutor em Filosofia
pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos. Professor da área de ética e conheci-
mento na Universidade de Passo fundo. E-mail: lutecildo@gmail.com
**
Graduanda em Direito pela Universidade de Passo Fundo, estudante pesquisadora
do projeto Reconhecimento e Tolerância em Sociedades Multiculturais. Bolsista Pi-
vic Universidade de Passo Fundo. E-mail: marinabrochaiesec@gmail.com
A primeira seção mostra o fascínio de Platão em relação à
educação. Nesse caso, o que ele tinha em vista era sempre a per-
feição entre os cidadãos. Ou seja, a educação era para ele o dis-
positivo maior para atingir a excelência. A segunda seção tenta
resolver um velho problema da filosofia platônica: a questão da
imutabilidade de algumas determinações por ele apresentadas
em sua filosofia política. É que, de fato, uma lei ou qualquer ou-
tra norma apresentada como inalterável acaba por deixar uma
imediata impressão de pretensão ao dogma. A filosofia ou mesmo
a ciência enquanto normal e salutar, por sua própria natureza,
repele qualquer pretensão ao dogma. O recurso para a resolução
será exatamente a teoria das ideias do próprio Platão, que por
si mesma alega perenidade. Afinal, as ideias são por si perenes,
imutáveis e perfeitas. Contudo, o que se pretende é mostrar que
tais características não são, de modo algum, manifestas no objeto
sensível propriamente concreto, mas, por assim dizer, no senti-
mento enquanto ação emitida pela psique humana.
A quarta seção apresenta algumas características da cidade
imaginária, por meio das quais é possível pressupor uma socie-
dade liberal, entre elas, como o próprio título já aponta, o suposto
princípio de tolerância religiosa e a possibilidade de enriqueci-
mento financeiro, desde que não implique prejuízo à virtude. A
quinta seção, de certo modo, é um mero complemento das seções
anteriores, ou mesmo uma espécie de arremate. É que, de fato,
todas as possíveis qualidades antes tratadas pressupõem uma
democracia, isto é, pressupõem que a cidade imaginária tratada
nas Leis era uma democracia. Aliás, vez por outra, usar-se-á o
termo Magnésia como sinônimo dessa cidade. Embora Platão não
tenha lhe dado esse nome, trata-se de um hábito entre os estudio-
sos contemporâneos.
A sexta e última seção aborda uma filosofia completamente
contemporânea. Afinal, John Rawls, como bom norte-americano,
é por excelência o grande representante do liberalismo contempo-
râneo. O platonismo político é, em princípio, visto como uma antí-
Tolerância e liberdade de acordo com as leis de Platão

24
tese de tudo o que se pretende por liberalismo ou por positivismo.
Contudo, como já foi ressaltado, este trabalho visa mostrar que
Platão não é bem essa antítese.

O fascínio platônico pela educação


dos homens
O programa educacional descrito nas Leis consiste em uma
das principais razões que nos leva a pensar que Platão defen-
de um ideário democrático. Embora no próprio Diálogo existam
críticas diretas à democracia, o seu ideário defendido acaba por
desembocar em algum tipo de democracia. Em princípio, é preci-
so ter em mente que no mundo não há apenas um único modelo
de democracia, mas vários. Por isso mesmo, também será im-
portante que se tenha em mente uma noção bem clara daquilo
que os antigos gregos e o que nós, no século XXI, entendemos por
democracia. É certo que tanto para nós quanto para eles a demo-
cracia consiste em um sistema político que pressupõe a liberdade
individual. E, nesse caso, vale ressaltar que está em questão um
tipo de liberdade muito pretendido nos dias atuais: a liberdade
de expressão.1
Poder-se-ia, no entanto, alegar que um programa educacio-
nal muito bom não é garantia de que a sociedade a ser formada
será uma sociedade livre. O socialismo moderno e o próprio nazi-
fascismo podem comprovar isso muito bem. Sabe-se, de fato, que
a educação nos países sob o regime socialista, por exemplo, era
algo prioritário, e, ao mesmo tempo, o que se experimentou fo-

1
Há, com efeito, muitos autores que sequer reconhecem que a antiga Atenas era uma
boa democracia. Isso tem muito a ver com o fato de as mulheres, as crianças, os
escravos e os estrangeiros não serem incluídos entre os cidadãos. Nesse caso, para
eles, a democracia nada valia. Contudo, esse tipo de juízo poderá ser uma atitude
precipitada. Sobre a importância e os méritos da democracia ateniense conferir Fer-
reira (1990, p. 203-208). Aliás, os escravos que viviam na cidade, diz Ferreira (1990,
p. 65), levavam uma vida semelhante à dos cidadãos.
Lutecildo Fanticelli, Marina Broch

25
ram ditaduras impiedosas. Aliás, em plena Grécia antiga, existiu
uma sociedade controvertida e que muitas vezes nos faz lembrar
as ditaduras do século XX. Estamos falando da velha Esparta.
Contudo, a filosofia política de Platão não era um modelo espar-
tano. Ele, de fato, nutria alguma admiração por Esparta, mas
isso tem a ver, sobretudo, com a ordem e a organização existente
naquela pólis.2 Mas a sua pólis ideal traçada nas Leis, indiscu-
tivelmente, era bem distinta da pólis espartana. O próprio texto
nos mostra claramente (Lg. II 666d-667a).3
Nas Leis, Platão também salienta outro fator determinan-
te, que, de certo modo, parece culminar muito mais em uma
democracia: o fator persuasão. Muitas vezes, não nos parece
claro, mas a filosofia política de Platão não é, de modo algum,
uma cartilha para as ditaduras. Se há na filosofia de Platão
alguma tendência para a criação de uma sociedade aristocrá-
tica, então, trata-se de uma aristocracia não ditatorial. A força
e a violência, com certeza, não faziam parte do programa pla-
tônico para governar e para manter a ordem (Lg. IV 715b-c),
mas a persuasão sim. E, enfim, os cidadãos, na sua cidade imagi-
nária, uma vez persuadidos e corretamente educados, iriam cum-
prir as leis estabelecidas de modo espontâneo.

2
Alguns dos poucos benefícios que os cidadãos usufruem sob uma ditadura e que
rapidamente nos vêm à mente são a segurança pública e a eficiência nas medi-
das governamentais. Nesse caso, quando, por alguma sorte, o ditador é um homem
sensato e inteligente, a sua administração até poderá deixar uma herança aceitá-
vel. O regime espartano, como o próprio Platão reconhece, era ambíguo e de difícil
definição. Megilo alega que ele tem semelhança tanto com a tirania quanto com a
democracia. Cf. Lg. IV 712e.
3
Nas Leis, a educação infantil já não mais pressupunha programas tão austeros. Às
crianças não se deveria dispensar nem muito mimo nem muita rigidez. Cf. Lg. VII
791d; 792b; 793a.
Tolerância e liberdade de acordo com as leis de Platão

26
A questão da imutabilidade das leis
promulgadas em Magnésia e a sua
relação com a imutabilidade das Ideias
Nas Leis, Platão sequer faz menção às Ideias e, aliás, para
alguns estudiosos, naquela fase, ele já havia renunciado a essa
teoria.4 De qualquer modo, o que se pretende com esta seção não
é tratar da teoria das Ideias, mas da questão da pretensão da
imutabilidade das leis promulgadas por Platão. Na verdade, não
trataremos de todas as leis, pois essa imutabilidade, como já ire-
mos observar, estava prevista apenas para algumas leis. A teoria
das Ideias, desse modo, servirá apenas como recurso para resol-
ver um antigo problema. Em princípio, Leis é um diálogo que
trata quase que estritamente de filosofia política e, consequente-
mente, de filosofia do direito.
Uma sociedade com leis imutáveis é, sem dúvida, uma so-
ciedade utópica e dificilmente exequível. Nas Leis, com efeito,
Platão defende uma espécie de sistema político no qual muitas
das leis, por ele sugeridas, deveriam ser imutáveis. Ou seja, a
sua pólis idealizada deveria suster-se, em parte, sempre sob os
mesmos decretos. Eis, então, uma questão normalmente esqueci-
da por muitos estudiosos da filosofia antiga: essa imutabilidade
das leis não é a imutabilidade da lei proibitiva ou descritiva en-
quanto tal. A imutabilidade em Platão é a imutabilidade da ex-
celência enquanto excelência prática. Não é o mandamento espe-
cífico no sentido literal, que tem de ser inalterado, mas a prática

4
Supostas alusões parecem ocorrer em alguns casos isolados e bem sucintos. Cf. Lg.
IX 859e-860a. Saunders (1997, p. 465) fala em possíveis menções às Ideias exata-
mente no final do Diálogo. No Parménides, um Diálogo também da maturidade, o
próprio Platão faz um grande ataque à sua famigerada teoria. Mas, ainda assim,
não se pode falar em renúncia, pois, provavelmente, parecia tratar-se de um mero
artifício de Platão. Provavelmente, ele pretendeu pô-la à prova em público. Cf. Prm.
126a-137b.
Lutecildo Fanticelli, Marina Broch

27
da excelência. No ideal platônico ou, mais precisamente, no ideal
socrático-platônico, o mais importante é que os cidadãos sejam
felizes, mas felizes por serem virtuosos. Os dialogantes definem
um enorme leque de leis a ser cumprido na cidade fundada em
pensamento. Muitas dessas leis, como se pode observar, até mes-
mo aludem aos mandamentos dados por Moisés ao povo hebreu.5
Muitas delas são verdadeiras prescrições ou mesmo proibições
muito claramente direcionadas a um momento particular. A lei
pertinente ao parricídio, por exemplo, parece querer pressupor
alguma incondicionalidade absoluta. Em geral, o parricida era
punido com muito rigor. A pena capital estava prevista para a
maior parte dos casos (Lg. IX 856c; 873b-c). Uma única exceção
era quando a própria vítima, ou seja, o pai ou a mãe, antes de
morrer, decidia formalmente perdoar o filho (Lg. IX 869a-b).6
Com efeito, parece-nos simplesmente um absurdo imaginar que
leis desse tipo nunca pudessem ser alteradas.
É óbvio que faltou clareza por parte de Platão ao refletir
sobre a sua cidade maravilhosa. No entanto, cabe a nós, enquan-
to estudiosos, não só das Leis, mas também dos demais Diálo-
gos, ter clareza do que realmente pretendia Platão. Para isso,
então, podemos recorrer à teoria das Ideias. A imutabilidade das
leis de que ele muito falava é reflexo da indelebilidade das suas

5
A comparação entre os escritos platônicos e os escritos bíblicos nunca é muito bem
sucedida, porque, em princípio, Moisés fora, em essência, um profeta que alegava
receber os mandamentos diretos de Deus. Embora Platão invoque os deuses com
frequência, suas leis são cogitadas a partir da pura razão.
6
Para os casos de conjucídios, e mesmo para os uxoricídios, contudo, o que a lei previa
era o exílio (Cf. Lg. IX 877c). No contexto da educação musical, em princípio, tam-
bém eram vetados quaisquer tipos de mudanças (Lg. VII 799b). A severidade das
leis, muitas vezes, tinha a ver com o fator religioso. Sempre quando se implicava
ou envolvia as divindades, o crime parecia tomar o teor daquilo que para os povos
antigos era considerado impiedade (Cf. Lg. VIII 829d). Os feiticeiros, por exemplo,
deviam ser punidos com a morte (Lg. XI 833d-e). Mas, em regra, no pensamento
político de Platão, as punições de qualquer espécie deveriam ser evitadas da melhor
forma possível. O primordial era educar a fim de formar cidadãos bons, os quais não
precisariam ser punidos (Lg. IX 880d-e).
Tolerância e liberdade de acordo com as leis de Platão

28
Ideias metafísicas. A contemplação da ideia do Bem, inalcançável
a qualquer um na sublime Kallipolis, passa a ser, de certo modo,
substituída pela vida ativa dos cidadãos de Magnésia. Agora,
em vez de contemplação, fala-se no viver virtuoso7 por parte de
toda a pólis. Outrora, só o diminuto escol dos sacratíssimos guar-
diões-chefes era educado com o objetivo de contemplar o Bem
(R. VII 540a-b), agora toda a pólis, ou pelo menos uma enorme
parte dela, era educada com o objetivo de atingir a excelência
(Lg. X 963a).
De acordo com a teoria das Ideias, cada coisa que conhece-
mos no dia a dia é uma réplica de uma ideia. A cama, por exem-
plo, sobre a qual uma pessoa dorme, é projetada sob uma Cama
Ideal, que é em si e por si existente no mundo só de Ideias (R. VI
507b; X 597c-d). A Laranja Ideal, por sua vez, também é indelével
e imutável, ou seja, é indestrutível, perfeita e sempre a mesma.
Cada ideia é, portanto, algo perfeito e acabado. E, devido a isso,
ela é também a mesma para todos. Em outros termos, a ideia
pressupõe uma objetividade absoluta, pois ela é a mesma para
todos. A beleza em si, por exemplo, é bela para todas as pessoas.
No mundo sensível, as coisas são múltiplas e relativas. Há, por
exemplo, muitas camas neste nosso mundo real, no mundo das
Ideias só há uma. Em nosso mundo sensível, há muitas rosas,
porém, no mundo das Ideias só há uma: a Rosa-Em-Si. No mundo
sensível, a beleza é, muitas vezes, uma qualidade relativa a cada
preferência pessoal. Contudo, a Beleza Ideal é bela indistinta-
mente para cada pessoa. Ela, enfim, pressupõe uma qualidade de
beleza objetiva em todas as esferas.8

7
A aretê para Platão sempre valeu mais do que todo o ouro do mundo. Nas Leis, esse
ideal permanece (Cf. Lg. V 728a). Embora o pensamento de Platão tenha evoluído
e amadurecido, em alguns pontos, eles sempre foram os mesmos. A sua ética não
parece haver sofrido qualquer alteração.
8
A Linha divida e a Caverna são dois símiles interessantes por meio dos quais Platão
versa sobre a sua metafísica, que pressupõe as Ideias (Cf. R. VI 509e-510a-e; VII
514a-516b; VII 533e-534a).
Lutecildo Fanticelli, Marina Broch

29
Agora vejamos como essa objetividade das Ideias pode ser
mais bem explicada, superando todo tipo de relativismo existente
no nosso mundo real. Consideremos o seguinte: um determinado
homem considera bela uma mulher X, outro homem considera
bela outra mulher, muito diferente, a mulher Y. E cada um, ao
mesmo tempo, enxerga fealdade na mulher preferida pelo outro.
Agora consideremos que esse “achar” subjetivo vale para
todos os tipos de preferências entre as pessoas. Um mesmo café,
por exemplo, é considerado doce para uma pessoa e amargo para
outra. Contudo, há uma certeza: cada pessoa sente consigo aquilo
que sente. A beleza que uma determinada mulher enxerga em
um homem X é uma beleza enxergada e pronto. Há uma beleza
que é sentida, ou seja, que é, de fato, percebida e nutrida por
alguém. Trata-se de uma experiência abstrata e completamente
pessoal, mas que é sentida e é real. Outra mulher que acha belo
um homem Y, de igual modo, passa pela mesma experiência. Há,
portanto, uma beleza em ação, para ambas as mulheres. A bele-
za em questão é como se fosse algo projetado a partir de dentro,
como se cada uma das mulheres a extraísse de seu interior e a
dirigisse a um homem específico. O que se observa, portanto, é
que, de algum modo, o que está em questão é realmente uma
beleza única e objetiva. Em síntese, a beleza é algo realmente
imutável, pois é a mesma satisfação de beleza experienciada por
pessoas distintas. E, de igual modo, esse exemplo também serve
para todas as outras subjetividades humanas. Em outros termos,
Platão, com a teoria das Ideias, parecia ter pretendido tratar da-
quilo que hoje é também chamado de intersubjetividade.
A imutabilidade requerida em relação às leis precisa ser
entendida como imutabilidade concretizada, ou seja, para este
mundo sensível. Contudo, não significa a imutabilidade literal de
uma lei específica. O que Platão certamente pretendia era que a
cidade atingisse a excelência e que, consequentemente, todos se

Tolerância e liberdade de acordo com as leis de Platão

30
tornassem felizes. É inadmissível supor que, enquanto pensador
político, ele exigisse a imutabilidade das leis no sentido literal.
Ainda no livro IV em 709a-b, o Ateniense alega que as leis são, de
fato, modificadas devido a muitos fatores, entre eles: as guerras,
as privações e as doenças.
Qualquer adversário da filosofia política platônica teria ra-
zão ao desconfiar de que essa exigência de imutabilidade tende
ao dogmatismo. Com efeito, seria ridículo se a faixa etária para
o casamento e para as funções públicas, prescritas no Diálogo,
tivesse que ser seguida ao pé da letra, independente do tempo
e do espaço (Lg. IV 721a-d; VI 785b). Suponhamos que, em uma
sociedade atual, fosse determinado que só se ouvisse um único
estilo musical, sem nenhuma mudança qualquer. Essa sociedade,
por assim dizer, iria parar no tempo, pois a música, como qual-
quer outra arte, é algo que se vivencia e que evolui naturalmente.
Em alguns casos, o próprio Platão reconhece que as suas
prescrições não poderiam ser imutáveis. Aliás, certas regras dis-
cutidas para a educação infantil, sequer poderiam ser decretadas
como leis, mas simples lições e conselhos (Lg. VII 788a). Como se
pode observar, é então o próprio Platão quem admite a maleabi-
lidade no que se refere às leis. Contudo, essa abertura é somente
prescrita para alguns casos. Em alguns trechos, o Ateniense ale-
ga que os guardas da lei não poderiam de modo algum permitir
mudança. Contudo, aqueles que conhecem a filosofia platônica
reconhecem que Leis é um diálogo tolerante. Afinal, em A Re-
pública, a obra-prima de Platão, o mais famoso dos Diálogos, a
rigidez política é ainda muito maior.
Se essa leitura está correta, a proibição das mudanças tão
relutante na filosofia platônica pode, então, ser compreendida por
meio de um recurso simples: a teoria das Ideias. As Leis, como já
observado, não a mencionam, contudo não a negam. Em síntese,
no derradeiro Diálogo, pragmático e bem menos utópico, a mais

Lutecildo Fanticelli, Marina Broch

31
importante teoria platônica pode, de algum modo, ser posta em
prática, embora sequer seja mencionada.
Desse modo, poderemos alegar que as próprias Ideias me-
tafísicas também podem ser trazidas a este mundo. Aliás, elas já
estão neste mundo, de alguma maneira, elas estão. O belo objeti-
vado e percebido em casos específicos representa a Ideia de Belo.
O sentir (o achar belo) que é experienciado pelo sujeito é o belo
imutável. Embora o objeto físico e sensível possa tornar-se feio, a
beleza sentida e percebida é imutável. Enfim, admitamos então
que, mesmo que as coisas sensíveis mudem interruptamente, a
apercepção é algo imutável. Em suma, a excelência é sempre a
mesma, una e uma só.

Tolerância religiosa, xenofilia e o


enriquecimento virtuoso
A sociedade imaginária descrita nas Leis vige sob um regi-
me mais ou menos parecido com a social-democracia de alguns
países europeus. É possível assegurar que, nela, as pessoas
teriam liberdade de culto, liberdade para filosofar e, até certo
ponto, também para enriquecer. Platão parecia acreditar convic-
tamente que, uma vez exitosa, a educação por si formaria uma
sociedade de homens e mulheres que agiriam com autonomia mo-
ral (Lg. XII 964d). Em princípio, a nobre Magnésia seria mais
uma cidade grega que se beneficiaria de toda a boa tradição já
existente. Todavia, teria de passar por uma renovação minuciosa,
visto tratar-se de uma colônia grega fundada a partir dos crité-
rios mais refinados possíveis. Teria de ser construída a partir de
pressupostos bem rigorosos. De certo modo, seria como se nos
dias atuais, alguns milionários, com recursos próprios, projetas-
sem e construíssem uma cidade e para ela enviassem somente
moradores escolhidos do modo mais seleto possível.

Tolerância e liberdade de acordo com as leis de Platão

32
Como qualquer legislador sensato, Platão estava ciente de
que as relações entre as nações pressupunham sempre o princí-
pio de reciprocidade (Lg. XII 950a-b). Aliás, isso parece algo óbvio
a qualquer época e a qualquer lugar. Em outros termos, qual-
quer filósofo da política, certamente, apercebe-se que nenhum
país subsiste isoladamente. Mas ele também recorria aos deuses
a fim de fundamentar parte dos princípios legislativos. A ques-
tão da imigração pode ser citada como exemplo. É que o próprio
pai do Olimpo, Zeus Xênios, era considerado um deus protetor
dos estrangeiros. Trata-se de uma observação curiosa, pois Zeus,
embora representante máximo do povo grego, é também ao mes-
mo tempo invocado como um defensor dos bárbaros. Aliás, Zeus
Xênios tanto é defensor dos estrangeiros quanto punidor dos na-
tivos que porventura os afligem (Lg. V 730a).
No ideário platônico, a riqueza não é, em essência, algo re-
comendável ou desejável como uma condição para os cidadãos.
Ou seja, em uma sociedade composta só de homens virtuosos, não
haveria lugar para a riqueza de bens materiais. Aliás, essencial-
mente, para Platão, a sociedade justa, no sentido mais preciso,
é, com efeito, a sociedade comunista. Contudo, ele próprio esta-
va cônscio de que se tratava de algo simplesmente inexequível
(Lg. XII 965a). Na República, ele a traçou como uma política
exclusiva da classe dos guardiões. Mas, nas Leis, a sua políti-
ca era, de fato, bem menos utópica e, aliás, até certo ponto, ela
era exequível. Ele até menciona o comunismo, mas não o in-
clui em seu programa político e sequer o discute intensamente
(Lg. V 739b-d). A riqueza poderia existir, mas sem excesso, e a
pobreza, de igual modo, certamente, deveria ter um limite defini-
do; a indigência deveria ser uma prática proibida (Lg. XI 936b-c).
Platão acreditava muito no poder da educação e no seu resultado
efetivo por meio do cumprimento das leis promulgadas.

Lutecildo Fanticelli, Marina Broch

33
E é a partir desse ponto que podemos também pressupor
que o ideário platônico era o de uma classe média. A sua des-
confiança em relação à riqueza tem muito a ver com o alto preço
que se paga para atingi-la. Em sua opinião, a riqueza era algo
irreconciliável com a excelência moral. Ele se apercebia que os
homens são muito propensos à desonestidade e nunca conseguem
se tornar muito ricos agindo com honestidade. É óbvio que isso
não significava que ele seria contra a riqueza ou contra a sofisti-
cação oriunda da riqueza, mas contra a perda da excelência em
prol da riqueza material (Lg. V 743b-e). Em tese, na sua pólis
ideal estava prevista a existência de quatro classes sociais. Pla-
tão estava de acordo que a riqueza era um bem, desde que os
homens fossem capazes de se tornar ricos sem perder a virtude.
Mas, certamente, também supunha que as tentações diante dos
bens materiais são enormes e, consequentemente, a ruína era
sempre algo certo. Diante do dilema de não ser possível concreti-
zar uma sociedade totalmente igualitária, uma vez que nós não
somos realmente iguais, ele, então, estabeleceu quatro classes
sociais (Lg. V 744c-d).
Se a riqueza é sinônima de provisões, recusá-la então se-
ria um contrassenso. Ao certo, a sociedade ideal platônica teria
de ser composta só por cidadãos ricos. Aliás, poder-se-ia mesmo
supor que se Platão quisesse aperfeiçoar sua utopia, ele defende-
ria um comunismo composto só por cidadãs e cidadãos ricos. Em
princípio, é forçoso supor que se uma cidade for composta por ho-
mens inteiramente justos, eles conseguiriam alcançar um nível
de riqueza não embasado na injustiça.9
Diante disso, é possível afirmar então que Platão apreciava
a liberdade. Mas isso certamente não significa que ele possa ser
considerado como um liberal no sentido contemporâneo. Algu-
mas rotulações não são cabíveis, uma vez que estamos há mais

9
É a cupidez pela riqueza que, ao que parece, também desvia os cidadãos até mesmo
da prática do esporte. Cf. Lg. VIII 831b-d.
Tolerância e liberdade de acordo com as leis de Platão

34
de dois milênios distantes da Grécia clássica. Alguns conceitos e
alguns tipos de liberdade só foram realmente atingidos na época
contemporânea, entre eles, o próprio liberalismo. Desse modo, é
certo que não podemos dizer que Platão era um liberal, nem um
militante feminista, nem um militante da causa homossexual
e nem um defensor do cosmopolitismo. Ele era, acima de tudo,
um pensador grego que viveu a própria época. Aliás, é possível
assegurar que a sua filosofia era muito progressista, no sentido
em que defendeu alguns valores que hoje são consagrados como
típicos de uma sociedade democrática. De outro modo, ele era
também um escravagista, pois o escravagismo era o sistema eco-
nômico vigente naqueles dias, era um nacionalista, pois em seu
tempo ainda não havia o cosmopolitismo ou a política da globa-
lização.10 No entanto, o seu ideário prescrevia a necessidade de
relações políticas com o exterior e salientava a importância do
princípio da boa vizinhança. Sobre a questão da religiosidade,
não é necessário dizer muita coisa, pois a religião grega, além
de politeísta, não era nem um pouco proselitista ou de caráter
missionário. Todavia, como já foi observado, ele prescreveu penas
duríssimas para alguns tipos de crimes de impiedade.11
O ideário platônico, embora longe de ser um ideário liberal,
acaba por aludir ao ideário maçônico, que, por sua vez, teve papel
importante na implantação dos Estados liberais modernos. É que
Platão era um apaixonado teísta e, de alguma forma, até mesmo
um teocentrista.12 No entanto, abria espaço para os ateus e para
os deístas. Preferira, ele, que todos acreditassem em Deus, mas

10
Contudo, logo depois de sua morte, Alexandre Magno iria colocar toda a Grécia sob
um regime cosmopolita. Os estoicos, pouco mais tarde, é que iriam defender uma filo-
sofia cosmopolita e, de certo modo, complementariam a filosofia socrático-platônica.
11
Entenda-se por impiedade a irreverência contra as coisas sagradas.
12
A certa altura, quando o Ateniense, seu verdadeiro porta-voz, engrandecia a su-
blimidade dos deuses e rebaixava o ser humano pela sua efemeridade, Megilo, seu
interlocutor, tentou repreendê-lo (Cf. Lg. VII 803c-804b). O conhecimento em as-
tronomia, por exemplo, era importante, pois podia evitar a prática da blasfêmia por
parte dos homens. É que os astros eram considerados deuses, cada planeta era uma
divindade (Lg. X 886d-e). Uma blasfêmia desse tipo ocorria quando alguém supu-
nha que os astros moviam-se como errantes pelo espaço.
Lutecildo Fanticelli, Marina Broch

35
reconhecia que a fé religiosa não é algo que se impõe. Para esse
caso, então, a sua preferência era recorrer à persuasão.13 Em sua
opinião, o espaço sideral, com toda a sua beleza e perfeição, era
uma boa prova da existência de Deus (Lg. XII 966d-967a).

Magnésia: uma democracia ao


modo platônico
Como é notório, existem e, de fato, existiram muitas mo-
dalidades de democracia. A de Platão é apenas mais uma entre
muitas outras. Ele certamente relutava em aceitar o termo de-
mocracia, mas sempre que se pensa em uma sociedade livre é
preciso pressupor esse fator. Ele poderia ter dado o nome que
quisesse ao sistema escolhido para a sua cidade ideal, mas teria
que acatar muitos princípios já presentes na velha democracia
ateniense. De uma coisa ele não poderia se esquecer: a demo-
cracia ateniense, embora cheia de máculas, era a conquista de
todo um povo. Não se tratava de um sistema criado por um único
homem, mas por gerações inteiras. Assim como ele, na verdade,
não conseguiu prescindir radicalmente dos poetas tradicionais,
também não conseguiria prescindir dos pontos positivos conquis-
tados pela democracia.
Muitas vezes, uma mera palavra parece ser o suficiente
para provocar-nos alguma repugnância. E esse parece ter sido
o caso de Platão em relação à democracia. Ele teve motivos de
sobra para isso, mas, enquanto homem racional, também tinha
motivos para compreender que ela, dentre todos os males, tinha
de ser o preferível. Poder-se-ia, diante disso, afirmar que a re-
pugnância platônica então representava uma espécie de atitude

13
Ao menos um pouco de laicidade existia no pensamento platônico, pois ele também
reconhecia que, em uma época em que as sociedades já eram compostas por homens
deístas e ateístas, a religião não poderia servir como embasamento único para as leis
(Lg. XII 948c-de).
Tolerância e liberdade de acordo com as leis de Platão

36
precipitada ou simplesmente uma atitude infantil. Em outras
palavras, as suas críticas representam a atitude de um pensador
que, por assim dizer, perdera o juízo diante das mazelas do sis-
tema democrático.14 Cioso com a perfeição em tudo, era natural
que pretendesse também uma sociedade real tão perfeita quanto
possível. É óbvio que muitos dos chamados sistemas democrá-
ticos atuais seriam classificados como desprezíveis aos olhos de
Platão. Em princípio, um dos principais fatores que implicaram
nessa rejeição platônica tinha a ver com o excesso de liberdade.
Em outros termos, a anarquia, ou seja, o descontrole e a desor-
dem estabelecida.
Uma das primeiras reações de um cidadão comum diante
das mazelas sociais é, muitas vezes, desejar um governo forte.
Aliás, trata-se de uma reação natural e espontânea. Contudo,
não se pode dizer que se trata de uma reação racional. Em nossos
dias, qualquer pessoa que tenha um mínimo de informação e de
bom senso sabe que é preciso lutar sempre pela manutenção da
liberdade.
Vale a pena ressaltar que a democracia ateniense não era,
de fato, uma democracia madura. Os gregos antigos não conhe-
ceram, nem nós, brasileiros, conhecemos, uma democracia com-
pletamente civilizada, isto é, uma democracia realmente justa e
organizada.
Como Platão viveu na Antiguidade, e naqueles idos vigia
o escravagismo, era natural que ele também fosse um escrava-
gista, como qualquer outro pensador grego da época. O código
penal que ele preparou para Magnésia, por exemplo, fazia res-
trições sempre injustas em relação aos escravos. Quando um es-

14
Platão alega que na própria democracia não é bem o povo quem governa. Aliás,
da mesma forma que, na oligarquia e na tirania, a classe dominante democrática,
composta por poucos, na realidade, não outorga o poder à plebe, pois a teme. Signi-
ficando com isso que, em essência, os democratas também não acreditam no povo.
Mas, na sua cidade ideal, alega ele que haveria liberdade (independência) e ócio
(Lg. VIII 832c).
Lutecildo Fanticelli, Marina Broch

37
cravo cometia a mesma infração cometida por um homem livre, a
pena para ele, em regra, era mais pesada (Lg. IX 869d-e; 872b-c;
XI 915a-b). As suas deliberações a respeito da classe escrava-
gista são até interessantes, contemplam algum tipo de piedade.
Às vezes, parece-nos que Platão tinha até mesmo algum peso na
consciência e também abordava a questão com algum cuidado.
Entretanto, é preciso prestar atenção a outro ponto muito
mais importante. É bem provável que Platão sempre pretendesse
que todos os cidadãos fossem livres. Todos, sem exceção. Levando
em consideração a sua nacionalidade grega, acrescida à sublime
ética socrática, é quase que impossível esperar que o seu ideário
político não conduzisse a esse fim. A sua repulsa por algumas
classes sociais, como pelos trabalhadores citadinos e, sobretudo,
pelos escravos, tinha uma razão óbvia. Ele certamente supunha
que esses sujeitos exerciam a sua função e pertenciam às respec-
tivas classes devido ao fato de não serem virtuosos.
Em parte, suas Leis parecem aludir ao sistema católico me-
dieval, mas, ao mesmo tempo, também parecem aludir a um Es-
tado ilustrado dos tempos pós-reforma. É que se, por um lado,
as muitas proibições se assemelham àquelas dos períodos tene-
brosos do cristianismo, por outro, Platão não aceitava, de modo
algum, as práticas de indulgências ou qualquer coisa parecida
(Lg. X 907b; 909a; 910c-d).
Enfim, se existem muitas modalidades de democracia, Mag-
nésia deveria ser uma delas. Com isso, não se pretende dizer que
ela era a melhor de todas. Meyer (2011, p. 356-357), ao que pare-
ce, prefere classificá-la como um sistema híbrido de democracia
e monarquia.15 E essa opinião não pode ser totalmente refutada,
uma vez que nos tempos modernos ficou muito bem comprovado
que a democracia pode coexistir com a monarquia.

15
Para Saunders (1997, p. 488), o sistema político de Magnésia era uma aristocracia.
Chase (1933), por sua vez, estabelece um verdadeiro e interessante paralelo entre o
sistema político de Magnésia e o da própria Atenas.
Tolerância e liberdade de acordo com as leis de Platão

38
O ideário político das Leis e a teoria
da justiça rawlsiana
Nesta seção, o que se pretende é apresentar uma síntese
da filosofia rawlsiana com o objetivo de suscitar a reflexão. Mas,
para isso, é preciso ter em mente que as Leis de Platão repre-
sentam uma filosofia política para a democracia. Assinala-se, de
igual modo, que a democracia contemporânea é uma herança dos
antigos gregos. Platão era um legítimo filósofo ateniense, e a fi-
losofia do direito e a filosofia política, em nossos dias, são uma
continuação daquilo que nos foi legado pelos gregos.
Em Uma teoria da justiça, John Rawls (1997) apresenta a
possibilidade de uma teoria da justiça tendo em vista o conceito de
equidade, buscando assim a resposta para questões acerca da li-
berdade e das desigualdades dos sistemas políticos democráticos.16
Utilizando uma análise do justo sobre o bem, Rawls demonstra
que os anseios por igualdade e os princípios de justiça não devem
depender de concepções particulares e de liberdades individuais
e, para que seja possível construir uma sociedade justa e equitati-
va atendendo ao interesse geral, apresenta o véu da ignorância,17
que é essencial para que se desconsiderem os interesses pessoais
e os preconceitos a fim de que não influenciem nas escolhas e se
concilie a maior liberdade individual com a igualdade de direito
para todos os componentes daquela sociedade.
Assim, Rawls apresenta princípios formadores de uma so-
ciedade justa que tratam da estrutura básica da sociedade, go-

16
A aplicabilidade da equidade é justificada quando Rawls (1997, p. 33) diz que, uma
vez que todos estão em uma situação semelhante e ninguém pode designar princí-
pios para favorecer sua condição particular, os princípios da justiça são o resultado
de um consenso ou de um ajuste equitativo.
17
O véu da ignorância funciona como um sistema em que as partes da causa fazem um
contrato acerca das estruturas sociais e das liberdades, sem saber o papel que elas
próprias ocuparão nesse espaço.
Lutecildo Fanticelli, Marina Broch

39
vernando a atribuição de direitos e deveres e regulando as vanta-
gens econômicas e sociais:
Primeiro: cada pessoa deve ter um direito igual ao mais abrangente sis-
tema de liberdades básicas iguais, que seja compatível com um sistema
semelhante de liberdades para as outras. Segundo: as desigualdades
sociais e econômicas devem ser ordenadas de tal modo que sejam ao
mesmo tempo (a) consideradas como vantajosas para todos dentro dos
limites do razoável, e (b) vinculadas à posição e cargos acessíveis a todos
(RAWLS, 1997, p. 64).

A teoria de Rawls é muito discutida pela sua grande impor-


tância, tendo em vista o pragmatismo e a laicidade que a cons-
titui. Tendo como exemplo a aplicabilidade por meio do enfren-
tamento dos juristas aos dilemas aos quais confrontam, com si-
tuações que abrangem temas relacionados a diferentes religiões,
etnias ou culturas. A necessidade de descobrir princípios norte-
adores justos e eficazes é, igualmente, de grande importância,
especialmente para que se consiga caminhar gradativamente ao
encontro de sociedades pacíficas, estáveis e justas.
Rawls cria um regime de formação da sociedade a partir
da teoria que utiliza o supracitado véu da ignorância, no qual os
indivíduos não merecem a priori os méritos que lhes são intrín-
secos. Esses mesmos indivíduos são implementados na sociedade
de maneira completamente diferente daquela que Platão sugere
em suas sociedades imaginárias. É que nas sociedades democrá-
ticas rawlsianas, a liberdade não é vista como objeto de grande
restrição, por meio do qual se busca a diminuição das desigual-
dades sociais.
Platão, por sua vez, descreve um sistema regido por homens
talentosos ou, mais precisamente, por cidadãos virtuosos. Para
ele, uma sociedade justa é a que designa cada componente segun-
do suas aptidões, sendo que, para a composição do governo, são
destinados aqueles com maior qualificação, ou seja, os indivíduos
cujas capacidades intelectuais sejam mais bem desenvolvidas.

Tolerância e liberdade de acordo com as leis de Platão

40
Nas Leis, como já salientado em seções anteriores, ele traça mui-
to mais o perfil dos magistrados e dos supervisores de educação
do que o dos dirigentes da pólis, dando assim maior enfoque a
esse setor da sociedade. É que o diálogo trata da educação vi-
sando à formação de um governo perfeito. No que se refere ao
fator liberdade, mais propriamente dito, Platão sugeria algumas
restrições aos cidadãos em geral, pois acreditava que era exata-
mente assim que se implementava um Estado justo.
Rawls traça uma teoria cujos princípios visam atingir uma
sociedade justa por intermédio de uma democracia com direitos
considerados basilares, entre eles, os direitos civis, políticos e so-
ciais.18 Platão, apesar das contradições e das frequentes obscu-
ridades em torno do fator democracia, visa, assim como Rawls,
uma sociedade justa. É claro que ambos viveram em épocas e
em culturas muito distintas, por isso, não é tarefa muito simples
estabelecer um parâmetro entre as duas filosofias. Qualquer ten-
tativa nesse sentido, de algum modo, está sujeita a fazer uma
comparação injusta.

Considerações finais
Enfim, é possível concluir que Platão, na verdade, esboçou
nada mais que uma cidade democrática grega. Ele relutou fe-
rozmente em chamá-la de tal modo, mas, no fundo, tratava-se
mesmo de uma democracia, embora distinta e retocada. Como
já assinalado, existem diversos tipos de democracia. O fator li-
berdade oscila em cada caso. Nos dias atuais, ser um democrata
ou um mero defensor da democracia é algo elegante e louvável.

18
Os direitos civis, políticos e sociais são constituintes do Estado democrático e se
referem ao exercício das liberdades individuais, à participação do cidadão como
componente de uma sociedade, assim como todos os outros direitos que garantem
ao cidadão o exercício dos direitos fundamentais, como saúde, alimentação, traba-
lho, moradia, lazer e segurança, entre outros elencados na Constituição brasileira
(BRASIL, 1988).
Lutecildo Fanticelli, Marina Broch

41
Mas, nos dias de Platão, era diferente. Enfim, a comparação en-
tre os dois pensadores, isto é, entre Platão e Rawls, consiste em
tarefa realmente difícil, uma vez que viveram em épocas muito
distintas. Na sociedade em que vivemos, temos uma concepção de
liberdade e de democracia muito peculiar. Assim sendo, estamos
sujeitos a emitir juízos injustos em relação a ambos os pensado-
res, sobretudo em relação a Platão.

Referências
BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Bra-
sil. Brasília, DF: Senado, 1988.
CHASE, Alston Hurd. The influence of Athenian institutions upon the
Laws of Plato. Harvard Studies in Classical Philology, Cambridge, v. 44,
p. 131-192, 1933.
FERREIRA, José Ribeiro. A democracia na Grécia antiga. Coimbra: Miner-
va, 1990.
MEYER, Susan Sauvé. Platão e a lei. In: BENSON, Hugh H. (Org.). Platão.
Porto Alegre: Artmed, 2011. p. 348-361.
PLATÃO. Diálogos de Platão. Tradução de C. Alberto Nunes. Belém: Uni-
versidade Federal do Pará, 1980. v. 1-13. (Coordenação de Benedito Nunes).
RAWLS, John. Uma teoria da justiça. São Paulo: Martins Fontes, 1997.
SAUNDERS, Trevor J. Plato’s later political thought. In: KRAUT, R. (Org.).
The Cambridge companion to Plato. 5. ed. Cambridge: Cambridge Universi-
ty Press, 1997. p. 464-492.

Tolerância e liberdade de acordo com as leis de Platão

42
Política, utopia e
fundamentalismo:
desafios ao multiculturalismo

Gilvan Luiz Hansen*


Gilvan Luiz Hansen Júnior**

Introdução
A política, enquanto esfera constitutiva da sociedade, ao
longo da modernidade, assumiu a condição de lugar privilegiado
para as disputas entre grupos pelo exercício do poder e pela con-
secução de propostas de gestão das relações atinentes os estado.
Entretanto, bem mais do que o mero embate pelo exercício
do governo, o que se põe em jogo na política, em última instância,
são contraposições de concepções de sociedade, com as imbrica-
ções antropológicas, econômicas, jurídicas, militares, religiosas e
até mesmo estéticas inerentes a ela. Em suma, o que está em con-
fronto são as utopias sociais, a partir das quais ocorre a definição
dos projetos e das ações voltados ao delineamento dos rumos das
coletividades.
A política é o espaço das utopias, mas quando essas se apre-
sentam de forma substancial, sem margem para o debate das
alternativas e como modelos acabados de organização social, ad-

*
Professor doutor do Departamento de Direito Privado da Universidade Federal Flu-
minense. Docente da graduação em Direito, do mestrado e doutorado em Justiça
Administrativa e do mestrado e doutorado em Ciências Jurídicas e Sociais. E-mail:
gilvanluizhansen@id.uff.br
**
Mestrando do Programa de Pós-Graduação em Justiça Administrativa da Universi-
dade Federal Fluminense. E-mail: gilvan_hansen@hotmail.com
quirem um caráter fundamentalista, tornando a aniquilação um
resultado perturbador ao qual a política conduz.
A reflexão que aqui propomos procura analisar a relação en-
tre política, utopia e fundamentalismo, estabelecendo possíveis
conexões e distanciamentos entre esses elementos, especialmen-
te em contextos políticos contemporâneos, em que expressões
fundamentalistas mostram-se presentes e pujantes, combatendo
possibilidades multiculturais e de pluralidade. Para dar conta
desse propósito, primeiramente, analisamos a relação entre polí-
tica e utopia, para, em seguida, abordar o fundamentalismo como
componente que permeia a política e as utopias a ela vinculadas.

Política e utopia
Para que possamos abordar a relação entre política e uto-
pia, convém, primeiramente, definir o que entendemos quando
utilizamos ambas as expressões.

O sentido da política
Do modo como interpretamos a política, estamos distinguin-
do duas faces complementares: a face teórica e a face prática. A
face teórica da política remete ao modo como as pessoas compre-
endem as relações entre si na sociedade e como elas vislumbram
parâmetros tanto para o diagnóstico das diferentes situações vi-
venciadas quanto para a crítica ao que está posto enquanto ex-
periência individual e coletiva nas instituições sociais. Ademais,
tem a ver com a maneira como essas pessoas entendem que deva
ou possa ser a gestão do conjunto das relações e das instituições
em sociedade.
Sob esse prisma, a face teórica da política aponta para uma
série de elementos e percepções que servem de aporte às escolhas
e às decisões, no âmbito prático, no que tange ao encaminhamen-
Política, utopia e fundamentalismo: desafios ao multiculturalismo

44
to do “funcionamento” social. Essa série de elementos é baseada
em aspectos factuais, a partir de uma ótica própria a eles, apre-
sentada por uma pessoa ou por um grupo, mas que se traduz
também contrafactualmente, à medida que essa pessoa ou esse
grupo “leia” nos fatos algo que lhe desagrade e entenda necessá-
ria ou legítima a modificação dos fatos, das relações ou das insti-
tuições para melhor atender às suas expectativas de organização
social mais harmônica, justa ou adequada.
A face prática da política, por sua vez, envolve a gama de
medidas e atitudes tomadas por uma pessoa ou por um grupo no
sentido de fazer valer, no cotidiano das relações e das institui-
ções, aquelas expectativas que julgam adequadas.
O exercício prático da política, nesse sentido, pressupõe a
consecução de ações e o engendrar de estratégias que tornem
eficaz e eficiente a efetivação das expectativas que as pessoas
ou grupos têm em relação à sociedade. Dentre tais estratégias,
por exemplo, estão os processos de construção de convencimen-
tos acerca das concepções que se queiram implantar, bem como
as ações de governo compatíveis para a viabilização das decisões
tomadas, em uma intrincada rede de experiências de poder.

A utopia e sua expressão na política


Quando utilizamos o termo utopia, enquanto não lugar
(u-topos), não o compreendemos no sentido pré-moderno, como
uma quimera irrealizável, ou como a noção medieval de “tempo
novo”, a se realizar apenas no paraíso, pós-morte e decorrente de
um juízo final.
Enquanto no Ocidente cristão o “tempo novo” assinalara a
eternidade vindoura, a surgir apenas com o dia do juízo final, da-
qui adiante, “novo tempo” designa a própria época atual. A atu-
alidade concebe-se recorrentemente como uma passagem para o
novo: ela vive na consciência de transitoriedade dos acontecimen-
Gilvan Luiz Hansen, Gilvan Luiz Hansen Júnior

45
tos históricos e na expectativa de outra configuração do futuro
(HABERMAS, 1987, p. 103).
Interpretamos a concepção de utopia na perspectiva moder-
na de um “não lugar ainda”, de um projeto alternativo ao que
há e que se apresenta como caminho racional e possível de ser
construído e engendrado pela conjugação dos esforços coletivos e
pelas iniciativas de todos e de cada um.
[...] a história é concebida como um processo mundial que gera pro-
blemas. Nele, o tempo é entendido como um recurso escasso para a
superação prospectiva dos problemas que o passado nos legou. Passados
exemplares nos quais o presente pudesse confiantemente orientar-se
esvaneceram-se (HABERMAS, 1987, p. 103).

Sob esse prisma, a utopia está impregnada de uma perspec-


tiva contrafactual que se contrapõe ao factual e que desafia as
pessoas em sociedade a discutir, repensar, reconfigurar o factual.
A atitude por nós denominada factual consiste na aceitação do estado
de coisas existente e na adoção das regras vigentes nos “jogos” par-
tilhados socialmente como adequadas. A atitude contrafactual, por
sua vez, implica na inconformidade ao estado de coisas existente, por
entendê-lo como patológico ou deficiente em termos de realização dos
potenciais individuais ou coletivos da espécie humana. Enquanto a
primeira atitude leva o ser humano a uma adaptação conformada ao
modus vivendi de seu tempo, a segunda impele o mesmo à proposição
de modos de vida alternativos com relação ao que ele percebe como não
aceitável para a sua realização.
A atitude contrafactual, ainda que possa ter uma manifestação exterior
e pública que traduza a indignação psicológica frente a coisas que não
nos pareçam adequadas ou toleráveis, está impregnada de elementos
morais e racionais. Isso porque, quando avaliamos o que está acon-
tecendo o fazemos a partir de parâmetros racionais, amparados em
expectativas mútuas de convivência. Adotamos, deste modo, a postura
do participante, do ator social que vê um fato ou situação e se manifesta
no sentido de que aquilo não deveria ser daquela maneira, mas de outra.
Em suma, a atitude contrafactual é a expressão de uma perspectiva
utópica (HANSEN, 2004, p. 125).

A política, segundo a nossa proposta de leitura, é o campo


por excelência do embate entre factualidade e contrafactualidade

Política, utopia e fundamentalismo: desafios ao multiculturalismo

46
e, assim sendo, o terreno no qual projetos utópicos de sociedade
reivindicam seu espaço, legitimidade e possibilidade de realização.
Isso, a princípio, tem sido característica presente nos es-
tados de direito modernos, em especial nos assim denominados
estados democráticos de direito: o embate em torno de propostas,
projetos, visões de mundo, que é travado no seio das instituições
e que, quando implementado um dado projeto, não elimina ou
exclui a possibilidade de questionamentos, críticas e de outros
projetos com propostas alternativas de sociedade.
Entretanto, esse traço da política na modernidade parece es-
tar se confrontando de forma cada vez mais intensa, tensa e dra-
mática com um fenômeno igualmente milenar, mas que adquire
espaço nas sociedades contemporâneas: o fundamentalismo.
Passemos, pois, a analisar o fundamentalismo como fenô-
meno político.

O fundamentalismo como
fenômeno político
Qualquer que seja o projeto político construído por uma co-
letividade, ele está impregnado de convicções de fundo (no sen-
tido germânico de Grund). Essas convicções, por sua vez, são
compostas de valores, crenças, símbolos, expectativas, desejos,
necessidades, que adquirem possibilidade de acontecer quando
se apresentam publicamente e reivindicam para si a legitimida-
de de seu acontecer.
Legitimidade significa que há bons argumentos para que um ordena-
mento político seja reconhecido como justo e equânime; um ordena-
mento legítimo merece reconhecimento. Legitimidade significa que um
ordenamento político é digno de ser reconhecido. Com essa definição,
sublinha-se que a legitimidade é uma exigência de validade contestá-
vel; e que é (também) do reconhecimento (pelo menos) factual dessa
exigência que depende a estabilidade de um ordenamento de poder
(HABERMAS, 1990, p. 219-220).

Gilvan Luiz Hansen, Gilvan Luiz Hansen Júnior

47
O caráter contestável de uma pretensão contida nos proje-
tos de sociedade parece ser condição de possibilidade para que
encontre guarida nos estados democráticos de direito.
Todavia, quando uma pessoa ou grupo assume uma perspec-
tiva substancial com relação ao seu projeto, encarando-o como o
único modo possível e verdadeiro de realizar a sociedade, assume
o que aqui denominamos postura fundamentalista. Na posse de
verdades absolutas e inquestionáveis, ancoradas em concepções
ontológico-metafísicas, tendem a se colocar na posição de ruptura
com qualquer tipo de diálogo ou na negação de qualquer forma de
interlocução, como se isso fosse o natural, o normal.
No caso das concepções ontológico-metafísicas, o discurso justificador do
poder político se funda na noção da natureza de cada coisa, inclusive da
humana, ou ainda no poder absoluto da divindade, seja ela organizadora
do cosmos ou criadora do mundo. Em nome da natureza, algumas pes-
soas são guindadas à condição de governantes, de líderes ou de nobres,
enquanto outras são alijadas da participação política efetiva, cumprindo
papéis serviçais aos que estão no poder. Quando, porém, alguém ousa se
levantar contra este status quo, ele é visto como aberração, como anti-
natural, ou então como herege. Neste caso, é combatido como inimigo,
não como despossuído de direitos, mas como alguém que tem direitos
predeterminados e que são definidos e “protegidos” pelo governo, mas
que reivindica direitos que não lhe cabem, posto que a divindade ou
a natureza não respaldam tal pretensão; por isso, cabe ao governo
proteger este alguém inclusive contra ele mesmo, já que ele está fora
de si (alienado, possuído por demônios, praticante de bruxaria, louco,
doente) (HANSEN, 2015, p. 107).

A consequência de uma postura fundamentalista e do fun-


damentalismo político enquanto fenômeno crescente é o risco imi-
nente de eliminação da alteridade, de aniquilação da diferença.
Aquilo que aqui denominamos aniquilação consiste na extinção do con-
flito pela eliminação de uma das partes em litígio. É a negação absoluta
e total do outro, que pode ocorrer pelo seu extermínio físico, psicológico
ou ético-moral. Como isso pode ocorrer?
O outro é visto como uma ameaça à existência do eu, seja porque se nega
a se submeter incondicionalmente e irrestritamente ao controle e direção
dada pelo sujeito, seja porque questiona, com suas atitudes e sua presen-
ça, o modo de ser do ego, expondo as fragilidades e inseguranças deste.
Política, utopia e fundamentalismo: desafios ao multiculturalismo

48
Nestas circunstâncias, a presença do outro se torna insuportável e o
ego tende a eliminá-lo, a exterminar a sua presença. A eliminação é
física quando se dá pelo assassinato, pela tortura, pela guerra ou outros
mecanismos violentos de teor similar. A dimensão psicológica desta
aniquilação se dá pela negação da personalidade do outro, ou seja, pelo
combate sistemático ao modo a partir do qual o outro se expressa no
mundo (ao sorriso do outro, aos gestos deste, às preferências musicais,
etc.), através do ataque permanente à manifestação do outro ou ainda,
o que é mais sutil e não menos cruel, pela redução do outro à invisibili-
dade, ao não-ser, ao fazer de conta que o outro não está presente e não
existe como alguém passível de interlocução. Finalmente, a eliminação
ético-moral se dá pela negação da pessoa do outro, entendendo-se na
acepção jurídica do termo a expressão “pessoa”, enquanto instância
portadora de dignidade, de valores e de direitos; nesse caso, não há
qualquer reconhecimento do papel do outro que extrapole a esfera da
mera objetificação, coisificação, pois o outro é uma coisa que eu uso e
descarto, ou simplesmente não é (HANSEN, 2014, p. 35).

Pelo exposto, pode-se inferir que o fundamentalismo é um


fenômeno que põe em xeque o próprio significado e a possibilida-
de de política enquanto lugar de definição dos projetos de socie-
dade. E alguém poderia, de forma rápida e ingênua, localizar o
fenômeno do fundamentalismo como experiência geograficamen-
te localizada, em estados não democráticos ou nos quais o direito
sequer é reconhecido.
Todavia, esse é um fenômeno que nos parece presente tam-
bém nos assim chamados estados democráticos de direito, com sin-
tomas como o recrudescimento da intolerância, o aumento da vio-
lência e da segregação (étnica, sexual, religiosa, social, etc.). E os
movimentos reivindicatórios de massas não são necessariamente
indícios de reação a essa atitude fundamentalista, mas, por vezes,
a incrementam e se tornam, também elas, sua expressão.
A presença de corpos reunidos, postos em marcha ou em uma cerca, é
dissolvida pela inclusão simbólica das consciências em redes de comuni-
cação cada vez mais abrangentes: a massa concentrada transforma-se no
público disperso das mídias de massas. Os congestionamentos e fluxos
de trânsito físicos continuam a inchar enquanto a rede eletrônica das
conexões individuais torna anacrônicas as massas aglomeradas nas
ruas e praças (HABERMAS, 2001, p. 54-55).

Gilvan Luiz Hansen, Gilvan Luiz Hansen Júnior

49
A sensação que surge é de que o mundo está fora de contro-
le. Mas as soluções que se apresentam são ideológicas, são falsas
saídas, à medida que apelam para novas formas de obscurantis-
mo e de dominação, com soluções baseadas na força.
O mundo em que nos encontramos hoje [...] em vez de estar cada vez
mais sob nosso comando, parece um mundo em descontrole. Além disso,
algumas das influências que, supunha-se antes, iriam tornar a vida
mais segura e previsível para nós, entre elas o progresso da ciência e da
tecnologia, tiveram muitas vezes o efeito totalmente oposto. A mudança
do clima global e os riscos que a acompanham, por exemplo, resultam
provavelmente de nossa intervenção no ambiente. Não são fenômenos
naturais. A ciência e a tecnologia estão inevitavelmente envolvidas em
nossas tentativas de fazer face a esses riscos, mas também contribuíram
para criá-los (GIDDENS, 2007, p. 14).

Nessa ânsia por encontrar respostas, além da religião, um


importante manancial tem sido a ciência. Porém, muitas vezes,
a ciência e a tecnologia são pensadas como instrumentos para
a viabilização dessa nova ordem mundial, politicamente corre-
ta, higienizada, clean, asséptica, insípida e inodora, baseada em
uma visão eugênica liberal.1
As intervenções eugênicas de aperfeiçoamento prejudicam a liberdade
ética na medida em que submetem a pessoa em questão a intenções
fixadas por terceiros, que ela rejeita, mas que são irreversíveis, impe-
dindo-a de se compreender livremente como o autor único da sua própria
vida (GIDDENS, 1991, p. 39).

Diante desse horizonte, cabe-nos a indagação: existe ainda


possibilidade de pensarmos a política em bases tais que suplan-
tem posturas fundamentalistas? São possíveis ainda utopias so-
ciais pensadas no âmbito da política?

1
Sobre o tema, consultar: HABERMAS, Jürgen. O futuro da natureza humana. 2. ed.
Tradução de Karina Jannini. São Paulo: Martins Fontes, 2010; e também: HABER-
MAS, Jürgen. Entre naturalismo e religião. Tradução de Flávio Beno Siebeneichler.
Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2007.
Política, utopia e fundamentalismo: desafios ao multiculturalismo

50
Parecem-nos afirmativas as respostas para ambas as ques-
tões. Todavia, desde que pensadas a partir de alguns elementos
balizadores procedimentais, e não substanciais.

Conclusão: política e utopia em


perspectivas e desafios
O primeiro desafio é o resgate da reflexividade no campo
político e a garantia de espaços para a sua presença na sociedade.
Assim, pensamos nos moldes propostos por Giddens:
A reflexividade da vida social moderna consiste no fato de que as prá-
ticas sociais são constantemente examinadas e reformadas à luz de
informação renovada sobre estas próprias práticas, alterando assim
constitutivamente seu caráter. [...] Diz-se com freqüência que a moder-
nidade é marcada por um apetite pelo novo, mas talvez isto não seja
completamente preciso. O que é característico da modernidade não é
uma adoção do novo por si só, mas a suposição da reflexividade indis-
criminada – que, é claro, inclui a reflexão sobre a natureza da própria
reflexão (1991, p. 39).

Somente a garantia de espaços para a reflexividade é que


permite a construção de legitimidade para os projetos políticos,
seja daqueles que encontram implementação e se tornam prá-
ticas governamentais, seja daqueles que pretendem um dia ad-
quirir essa condição e se colocam como projetos utópicos alter-
nativos.
A exigência ou pretensão de legitimidade liga-se à conservação, no sen-
tido de integração social, da identidade normativamente estabelecida
de uma sociedade. As legitimações servem para satisfazer esta preten-
são, ou seja, para mostrar como e por que instituições existentes (ou
propostas) estão aptas a empregar a força política, de modo a realizar
os valores constitutivos da identidade de uma sociedade (HABERMAS,
1997b, p. 224).

A ampliação dos espaços de efetiva discussão dos projetos


de sociedade e das ações a serem implementadas em uma coleti-

Gilvan Luiz Hansen, Gilvan Luiz Hansen Júnior

51
vidade implica a adoção de procedimentos que tornem possível a
participação dos afetados pelos projetos em questão.
O discurso pressupõe a participação simétrica dos concernidos competen-
tes na comunicação isenta de qualquer coação. Participante competente
na comunicação é aquele com a capacidade de distinguir confiadamente
entre ser e aparência, essência e fenômeno, ser e dever-ser (DUTRA,
2002, p. 165).

E isso significa a garantia, também sob o ponto de vista


jurídico, da participação política e do acesso à comunicação como
elementos significativos da constituição de identidade de uma co-
letividade.
Na medida em que os direitos de comunicação e de participação políti-
ca são constitutivos para um processo de legislação eficiente do ponto
de vista da legitimação, esses direitos subjetivos não podem ser ti-
dos como os de sujeitos jurídicos privados e isolados: eles têm que ser
apreendidos no enfoque de participantes orientados pelo entendimen-
to, que se encontram numa prática intersubjetiva de entendimento.
É por isso que o conceito de do direito moderno – que intensifica e,
ao mesmo tempo, operacionaliza a tensão entre facticidade e valida-
de na área do comportamento – absorve o pensamento democrático,
desenvolvido por Kant e Rousseau, segundo o qual a pretensão de
legitimidade de uma ordem jurídica construída com direitos subjeti-
vos só pode ser resgatada através da força socialmente integradora
da “vontade unida e coincidente de todos” os cidadãos livres e iguais
(HABERMAS, 1997a, p. 53).

É exatamente nesse cenário que se mostra imprescindível


a democracia, enquanto condição de possibilidade para a socia-
bilidade humana e para a viabilização de elementos como plu-
ralismo, multiculturalismo, diferença, visto que só é possível o
consenso quando podemos dissentir, e a dissensão implica a pos-
sibilidade de ser, viver e pensar diferente do outro sem que isso
implique risco de aniquilação. A decisão de uma maioria prevale-
ce, mas deve levar em conta e preservar a possibilidade de exis-
tência e manifestação das minorias.

Política, utopia e fundamentalismo: desafios ao multiculturalismo

52
A regra da maioria, segundo a qual questões específicas são decididas
em tribunais colegiados, em parlamentos ou órgãos de autonomia ad-
ministrativa, constitui um bom exemplo para um aspecto importante
de uma regulamentação jurídica de processos de deliberação. A regra
da maioria mantém uma relação interna com a busca da verdade,
na medida em que a decisão tomada com maioria forma apenas uma
cesura numa discussão em andamento, fixando de certa maneira o
resultado provisório de uma formação discursiva da opinião. [...] A
partir daí, a decisão da maioria tem que surgir sob a premissa de que
os objetos do conflito foram abordados de maneira qualificada, isto é,
sob os pressupostos comunicativos de um discurso correspondente.
Somente então pode-se considerar o seu conteúdo como o resultado
racionalmente motivado, porém falível, de uma argumentação que foi
suspensa em relação às coerções institucionais de decisão – podendo
ser retomada em princípio. As reservas contra decisões da maioria, que
têm conseqüências irreversíveis, apóiam-se na interpretação segundo
a qual a minoria inferiorizada só dá o seu consentimento e autorização
para a maioria, se ficar assegurada a possibilidade de que ela possa
vir a conquistar maioria no futuro, na base de melhores argumentos,
podendo assim modificar a decisão ora tomada. Em geral, as decisões
da maioria são limitadas por meio de uma proteção dos direitos funda-
mentais das minorias; pois os cidadãos, no exercício de sua autonomia
política, não podem ir contra o sistema de direitos que constitui esta
mesma autonomia (HABERMAS, 1997a, p. 223-224).

Outro conceito que passa a ter significado crescente, em


complementaridade ao de democracia, é o de poder comunicativo,
uma vez que se torna imprescindível, no prisma aqui esboçado,
que as pessoas concernidas por normas, políticas, programas,
ações e projetos possam participar ativamente do processo de
construção das alternativas que lhes são atinentes, desde o pro-
cesso de deliberação e definição até o momento da implantação,
da supervisão e fiscalização. É graças ao exercício do poder comu-
nicativo que o poder social e o poder administrativo encontram
seus adequados limites, a fim de não se tornarem instrumentos
de injustiças e opressões, beneficiando grupos de interesses espe-
cíficos (econômicos, políticos, jurídicos ou de outra ordem).

Gilvan Luiz Hansen, Gilvan Luiz Hansen Júnior

53
O poder comunicativo se constitui através dos meios discursivos dis-
persos de uma opinião pública que pode chegar a um consenso sobre
metas políticas em discursos pragmáticos, valores compartilhados em
discursos éticos ou normas de ação em discursos morais. [...] O poder
administrativo consiste na substituição da violência que os indivíduos
possuem no estado natural pela violência organizada do estado civil,
permite a constituição das instâncias do estado de direito, a legislação,
a administração e a justiça como ordem legal e, por fim, estabelece
faculdades e competências que autorizam ao estado de direito a tomar
decisões vinculantes. [...] o poder social que mede a possibilidade de
um ator impor seus próprios interesses nas relações sociais inclusive
contra a resistência dos demais, o qual surge através da pressão que
exercem os grupos de interesse para influenciar na legislação, na ad-
ministração e na justiça. Habermas entende que o poder social compete
com o poder comunicativo pela influência sobre o poder administrativo,
mas, apesar de que o poder social pode representar tanto os interesses
de grandes grupos econômicos ou vir manipulado pela publicidade e os
meios de comunicação, por um lado, como dar expressão a interesses
generalizáveis a exemplo das questões ecológicas ou sociais, por outro,
tem que ser neutralizado desde a perspectiva normativa da legislação
(DURÃO, 2002, p. 134-135, tradução nossa).

Por fim, cabe salientar que uma interpretação da política


e da utopia social que supere o fenômeno fundamentalista, nos
moldes como a efetuamos neste texto, implica o resgate da cida-
dania, entendida como atividade e como prática republicana, com
reconfigurações discursivas.
A força e o poder não se originam do mercado ou do Estado, mas do
poder gerado comunicativamente em meio à práxis de autodetermi-
nação dos cidadãos do Estado e legitima-se pelo fato de defender essa
mesma práxis através da institucionalização da liberdade pública. A
justificação existencial do Estado não reside primeiramente na defesa
dos mesmos direitos subjetivos, mas sim na garantia de um processo
inclusivo de formação da opinião e da vontade, em que cidadãos livres
e iguais chegam ao acordo mútuo quanto a quais devem ser os objetivos
e normas que correspondam ao interesse comum. Com isso, exige-se do
cidadão republicano mais que a orientação segundo seus respectivos
interesses próprios (HABERMAS, 2002, p. 272-273).

Política, utopia e fundamentalismo: desafios ao multiculturalismo

54
Referências
DURÃO, Aylton Barbieri. Derecho y democracia: la crítica de Habermas a
la filosofía política y jurídica de Kant. 2002. Tese (Doutorado em Filosofia)
– Facultad de Filosofía y Letras, Universidad de Valladolid, Vallandolid,
2002.
DUTRA, Delamar V. Kant e Habermas: a reformulação discursiva da moral
kantiana. Porto Alegre: EdiPUCRS, 2002. (Coleção Filosofia, n. 137).
GIDDENS, Anthony. As conseqüências da modernidade. Tradução de Raul
Fiker. São Paulo: Editora Unesp, 1991. (Biblioteca Básica).
_______. Mundo em descontrole. 6. ed. Tradução de Maria Luiz X. de A. Bor-
ges. Rio de Janeiro: Record, 2007.
HABERMAS, Jürgen. A constelação pós-nacional: ensaios políticos. Tradu-
ção de Márcio Seligmann-Silva. São Paulo: Littera Mundi, 2001.
_______. A inclusão do outro: estudos de teoria política. Tradução de George
Sperber e Paulo Astor Soethe. São Paulo: Loyola, 2002.
_______. A nova intransparência. Novos Estudos CEBRAP, n. 18, p. 103-114,
set. 1987.
_______. Direito e democracia: entre facticidade e validade. Tradução de
Flávio Beno Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1997a. v. I.
(Biblioteca Tempo Universitário, n. 101).
_______. Direito e democracia: entre facticidade e validade. Tradução de
Flávio Beno Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1997b. v. II.
(Biblioteca Tempo Universitário, n. 102).
_______. Para a reconstrução do materialismo histórico. 2. ed. Tradução de
Carlos Nelson Coutinho. São Paulo: Brasiliense, 1990.
_______. Consciência moral e agir comunicativo. Tradução de Guido Antonio
de Almeida. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1989. (Biblioteca Tempo Uni-
versitário, 84 – Série Estudos Alemães).
_______. La nueva intimidad entre cultura y política. La necesidad de revi-
sión de la izquierda. Introdução e tradução de Manuel Jiménez Redondo.
2. ed. Madrid: Tecnos, 1996.
_______. Entre naturalismo e religião. Tradução de Flávio Beno Siebenei-
chler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2007.
HANSEN, Gilvan Luiz. Direitos humanos, natureza e política: um enfo-
que discursivo. In: RIBEIRO, Luís Antonio Cunha; HANSEN, Gilvan Luiz
(Org.). Natureza e política. Niterói: Light, 2015. p. 105-115.

Gilvan Luiz Hansen, Gilvan Luiz Hansen Júnior

55
_______. Gestão de conflitos. In: OLIVEIRA, Rosana Therezinha Queiroz de
(Org.). Gestão Universitária. Niterói: EDUFF, 2014. p. 35-45.
________. Os elementos utópicos na concepção habermasiana de situação
ideal de fala. In: MÜLLER, Maria Cristina; CENCI; Elve Miguel (Org.).
Ética, política e linguagem: confluências. Londrina: Cefil, 2004. p. 124-138.

Política, utopia e fundamentalismo: desafios ao multiculturalismo

56
Justiça política em Rawls:
a relação entre estabilidade
e tolerância

Jelson Becker Salomão*


Aline Kerber Nunes**

Introdução
Sociedades democráticas têm no pluralismo de visões de
mundo um dos seus traços distintivos. Essa multiplicidade de
vozes explica, pelo menos em parte, a existência de conflitos de
toda ordem. Sinceramente, a própria dinâmica das sociedades
democráticas releva a carência de um arranjo institucional ca-
paz de efetivamente incorporar e equilibrar a relação dos ideais
de liberdade e igualdade. Divergências que permanecem na tra-
dição do pensamento democrático demonstram isso. O nível de
complexidade que as modernas sociedades atingiram evidencia
que o simples consentimento não se constitui mais em um prin-
cípio de legitimação suficientemente consistente. Notadamente,
processos genuinamente democráticos não se resumem a meros
mecanismos de manifestação de preferências particulares, mas
envolvem, antes, a deliberação pública das questões de interesse
geral. Estruturar satisfatoriamente o conjunto de instituições so-

*
Doutorando em Filosofia na Universidade Federal de Santa Catarina. Professor da
Universidade de Passo Fundo. E-mail: jelson@upf.br
**
Acadêmica de Direito na Universidade de Passo Fundo. Estudante pesquisadora no
projeto de pesquisa Reconhecimento e Tolerância em Sociedades Multiculturais.
Bolsista Pivic Universidade de Passo Fundo. E-mail: alineknunes@gmail.com
ciais fundamentais constitui-se, nessa medida, tarefa altamente
complexa, até porque, em um regime democrático constitucional,
a normatividade precisa ter sua legitimidade fundada na autono-
mia política dos cidadãos.
A concepção de justiça política desenvolvida por John Rawls
(1921-2002) representa um esforço sistemático substantivo nesse
sentido. O procedimento de justificação e legitimação democrá-
tica construído por esse liberal norte-americano recupera ele-
mentos estruturantes do contratualismo clássico. Na esteira do
pensamento político de Locke, Rousseau e Kant, Rawls reconhece
na noção de autonomia o teor normativo necessário à construção
de uma concepção de justiça política compatível com a realidade
pluralista das sociedades contemporâneas. Cidadãos são, pois,
autônomos na medida em que se acham submetidos às normas
que estabeleceram para si. Defende, dessa forma, que uma con-
cepção de justiça adequada deve verter da própria cultura políti-
ca das sociedades democráticas, de modo que é tarefa da filosofia
política tornar explícitos conteúdos normativos implícitos no sen-
so comum político.
A teoria de justiça política de Rawls admite a possibilidade
da coexistência de múltiplas concepções de bem, não raras vezes,
divergentes e conflitantes entre si. Contrasta, nesse sentido, com
as concepções de justiça fundadas no pensamento grego, tradi-
cionalmente orientadas por uma única noção de bem. O filósofo
assume o pluralismo como uma realidade produzida por insti-
tuições livres e duradouras. Todavia, rejeita a ideia de que uma
doutrina abrangente (comprehensive doctrine), por mais razoável
que seja, possa garantir, por si só, a unidade e a estabilidade
(stability) em uma sociedade plural e democrática. “Apenas uma
concepção política de justiça que se pode razoavelmente esperar
que todos os cidadãos endossem pode servir de base à razão e à

Justiça política em Rawls: a relação entre estabilidade e tolerância

58
justificação públicas” (PL, IV, § 1).1 Isso significa, em última ins-
tância, que o problema da estabilidade social está estreitamente
relacionado com o problema dos limites do pluralismo.
Nessa linha de pensamento, o autor examina as possiblida-
des de uma sociedade justa e estável ao longo do tempo, respei-
tando o fato de os cidadãos estarem profundamente divididos por
distintas concepções de mundo. Ele baseia-se na ideia de que a
estabilidade em uma sociedade democrática e pluralista depende
de um consenso normativo que exprima, sobretudo, um compro-
misso com as ideias de liberdade e igualdade. Isso permite ante-
ver, de certa forma, porque a noção de tolerância (toleration) é tão
importante para o liberalismo político de Rawls. Convém lembrar
que a ideia de tolerância é introduzida no pensamento moderno
como política de Estado, quando conflitos gerados pela incompa-
tibilidade entre discursos sobre verdades religiosas antagônicas
ameaçavam a paz social. Não obstante o lapso de tempo, a noção
de tolerância ainda é invocada sob um sentido estratégico-instru-
mental. Ocorre que, em contextos sociais democráticos e pluralis-
tas, tal sentido mostra-se deveras impreciso, porquanto se põe à
distância das ideias de autonomia e de respeito recíproco.
O exame da concepção de justiça política de Rawls revela,
entretanto, um entrelaçamento entre as noções de tolerância e
razoabilidade (reasonableness). A noção de razoabilidade está as-
sociada a um raciocínio moral, que tem como fito dar conta do
problema da estabilidade política em sociedades modernas mar-
cadas pelo pluralismo de visões de mundo. Mais do que uma fun-
ção descritiva, a razoabilidade tem um caráter normativo: além
de definir o que é o razoável, serve de elemento orientador do
senso de justiça. A razoabilidade representaria, assim, um traço
característico de pessoas tolerantes. No que segue, a pretensão

1
As obras de John Rawls serão citadas de acordo com as seguintes abreviaturas:
Uma teoria da justiça (TJ) e O liberalismo político (PL).
Jelson Becker Salomão, Aline Kerber Nunes

59
é demonstrar que a noção liberal de tolerância delineada pelo
filósofo, da categoria do político, constitui-se um ponto de apoio
indispensável às pretensões de consolidação de uma sociedade
justa e estável, orientada por um regime democrático constitu-
cional. Nessa perspectiva, o texto recupera, primeiramente, as
bases do construtivismo político de Rawls, expondo a estrutura
e o conteúdo da concepção política da justiça como equidade. Na
sequência, examina alguns dos aspectos centrais da tese do libe-
ralismo político para explicar como a noção liberal de tolerância
é assumida pelo filósofo e como se dá a sua relação com a estabi-
lidade.

Estrutura e conteúdo de uma


concepção de justiça política
A influência das ideias de Rawls transcende às fronteiras
da filosofia moral e da teoria política. Foi, inegavelmente, a pu-
blicação de Uma teoria da justiça, em 1971, que o colocou entre os
mais celebres pensadores do século XX. Nessa, que é a sua mais
importante obra, a justiça como equidade (justice as fairness) é
apresentada como uma teoria alternativa à hegemônica doutrina
utilitarista, pelo menos em termos de justiça social. Calcado no
argumento de que “os direitos assegurados pela justiça não estão
sujeitos à negociação política ou ao cálculo de interesses sociais”
(TJ, § 1), o norte-americano sustenta a inviolabilidade da pessoa.
O primado deontológico do justo sobre o bem vem a ser, assim,
um dos pressupostos fundamentais da sua concepção de justiça.
Contudo, por seu viés neocontratualista, a tese da justiça como
equidade não ficou imune a críticas. Autores ligados a correntes
neoaristotélicas e neo-hegelianas, entre outras, dirigiram-lhe va-
riadas e incisivas objeções. Rawls sempre se mostrou receptivo
a elas, prova disso são os diversos artigos publicados depois de
1971 na intenção de revisar ou esclarecer aspectos obscuros de

Justiça política em Rawls: a relação entre estabilidade e tolerância

60
sua argumentação original. O denso diálogo com perspectivas te-
óricas divergentes levou Rawls a transformar, por assim dizer, a
justiça como equidade em uma concepção política, dentre outras
possíveis.
O projeto político-filosófico de Rawls busca estabelecer as
bases filosóficas e morais para instituições democráticas, justi-
ficando um modo possível de equilibrar a relação entre liberda-
de e igualdade.2 Em termos práticos, a teoria da justiça como
equidade tem a pretensão de oferecer os fundamentos de uma
estrutura institucional capaz de preservar a essência da cultura
democrática, explicitando de forma adequada como ela pode ser
sistematicamente coordenada, de maneira que todos os cidadãos,
tidos como pessoas livres e iguais, a considerem legitimamente
justificada. Na sua forma mais elaborada, a teoria da justiça de
Rawls busca articular uma série de ideias intuitivas fundamen-
tais que se acham latentes na cultura política das sociedades de-
mocráticas. No conjunto, essas ideias pretendem explicitar uma
concepção política de pessoa, como também a relação do indiví-
duo com as principais instituições sociais, à luz de princípios fun-
damentais de justiça.
A ideia de sociedade tem um papel nuclear na concepção
de justiça como equidade. Considerada a mais fundamental de
todas, em torno dela se articulam outras noções, valores e princí-
pios que dão forma e conteúdo à concepção de justiça como equi-
dade. Definida como um sistema equitativo de cooperação (fair
system of social cooperation), a sociedade tem como finalidade
mais elementar promover o bem daqueles que dela participam.

2
Rawls tem em vista a histórica tensão envolvendo as duas formas predominantes de
se compreender a noção de liberdade e sua relação com a ideia de igualdade. Benja-
min Constant (1767-1830) foi, possivelmente, quem melhor distinguiu essas duas
ideias quando as designou como “liberdade dos modernos” e “liberdade dos anti-
gos”. A chamada “liberdade dos modernos”, representada pela corrente liberal mais
próxima a Locke, atém-se prioritariamente à proteção das liberdades civis, além de
determinados direitos fundamentais que dizem respeito à proteção da pessoa e da
propriedade. Na esteira do pensamento de Rousseau, a tradição republicana defen-
de mais incisivamente a “liberdade dos antigos”, que tende a liberdades políticas
iguais e a valores da vida em comunidade.
Jelson Becker Salomão, Aline Kerber Nunes

61
Trata-se de “[...] uma associação mais ou menos autossuficiente
de pessoas que em suas relações mútuas reconhecem certas re-
gras de conduta como obrigatórias e que, na maioria das vezes,
agem de acordo com elas” (TJ, § 1). A ideia de cooperação implica,
em primeiro plano, a existência de dispositivos reguladores da
conduta reconhecidos publicamente por seus destinatários. Na
medida em que especifica a forma como as instituições básicas
devem distribuir direitos e deveres, a cooperação também se acha
vinculada à ideia de reciprocidade. Como Rawls explica:
[...] a ideia de reciprocidade situa-se entre a ideia de imparcialidade,
que é de natureza altruísta (ser motivado pelo bem geral), e a ideia
de benefício mútuo, entendendo-a no sentido de que cada um deve se
beneficiar em relação à situação atual ou em relação à situação futura,
considerando-se as coisas como são (PL, I, § 3).

A cooperação contempla, dessa forma, um tipo de relação


social em que todos se beneficiam, o que a torna uma ideia ca-
racterística de uma sociedade bem-ordenada (well-ordered socie-
ty). Dado que a vida em sociedade caracteriza-se não apenas pelo
conflito, mas também pela identidade de interesses, a ideia de
cooperação demanda, por fim, uma concepção de bem que expres-
sa os fins que se pretende alcançar.
Essa definição de sociedade requer, por conseguinte, a es-
pecificação de uma concepção de pessoa condizente com o ideal
que a orienta. Do ponto de vista da cultura política democrática,
a relação que caracteriza tal sistema se dá, pois, entre pessoas li-
vres e iguais, comprometidas com a cooperação social ao longo da
vida. Para Rawls, a disposição de cooperar ativamente pressupõe
duas faculdades morais fundamentais, quais sejam: a capacidade
de ter um senso de justiça e a capacidade de assumir uma concep-
ção de bem em particular. Ter um senso de justiça possibilita ao
cidadão propor e agir segundo princípios de justiça, a partir dos
quais são especificados os termos equitativos de cooperação so-
cial. Possuir uma concepção de bem, de outra parte, significa ter
“uma concepção dos fins e objetivos que são merecedores de nosso
empenho devotado, junto com uma ordenação desses elementos

Justiça política em Rawls: a relação entre estabilidade e tolerância

62
que deve nos servir de guia ao longo de toda a vida” (PL, III, §3).
Uma concepção de bem tende a se constituir e a ser interpretada
a partir de uma doutrina abrangente de natureza moral, religiosa
ou mesmo filosófica. A ideia de igualdade assenta-se, dessa forma,
na consideração de que pessoas livres e iguais são dotadas de tais
capacidades em um grau mínimo necessário à cooperação social.
Cabe salientar que cidadãos percebem-se como livres porque
concebem a si e aos outros como capazes não só de ter, mas tam-
bém de reformular a qualquer momento a concepção de bem ado-
tada. Por conta disso, Rawls observa que mudanças na concepção
bem professada não alteram a identidade pública3 do indivíduo;
ou seja, do ponto de vista da justiça política, direitos e deveres per-
manecem inalterados. Graças à faculdade da liberdade, cidadãos
se veem, ademais, no direito de reivindicar nas instituições pú-
blicas as condições necessárias à realização da concepção de bem
adotada. A negação desse aspecto da faculdade moral da liberda-
de representa a negação da condição de pessoa; a morte social do
indivíduo.4 Cidadãos consideram-se, enfim, livres porque se veem
responsáveis pelos objetivos que propõem para si, de forma que
também são capazes de adequar suas reivindicações aos limites
que os princípios fundamentais de justiça estabelecem. Trata-se,
em síntese, de uma concepção política que expressa a compreen-
são que as pessoas têm de si e da sociedade da qual participam.
As ideias fundamentais de sociedade e de pessoa moral dão
sentido à tese da primazia do justo sobre o bem. O primado do
justo traduz, a rigor, uma forma razoável de delimitar formas de
vida e planos individuais aceitáveis. Isso remete ao exame do mo-

3
Segundo Rawls (PL, I, §5.2), além de uma identidade pública, pessoas livres também
possuem uma segunda forma de identidade. Todo cidadão assume compromissos
baseados em valores que transcendem o político; são valores que dizem respeito à
esfera não pública. São tipos diversos de compromissos e vínculos que dão forma e
sentido ao modo de vida adotado, mas que constituem uma mesma identidade moral.
4
A escravidão é um exemplo de morte social apontado por Rawls (PL, I, §5.3), ao
lembrar que leis voltadas à eventual proteção da integridade física de escravos não
representam exatamente o reconhecimento de suas faculdades morais, mas interes-
ses dos seus senhores. Destaca, assim, a importância do papel das faculdades morais
para uma concepção política de justiça.
Jelson Becker Salomão, Aline Kerber Nunes

63
delo procedimental de justificação e legitimação de princípios de
justiça pensados por Rawls, que possibilitam o estabelecimento
dos termos equitativos de cooperação no âmbito da justiça como
equidade. Vale lembrar que, para o norte-americano, a justiça
como equidade precisa realizar a função prática da filosofia polí-
tica: pensar os conflitos de época com vistas a esclarecer o modo
mais adequado de funcionamento das instituições sociais. Ao fim
e ao cabo, a filosofia política deve promover a reconciliação5 entre
cidadão e mundo social; deve levá-lo a reconhecer criticamente
que o mundo social, entendido como forma de vida institucional-
mente organizada, é a forma mais adequada para a realização da
liberdade. O procedimento de fundamentação dos princípios de
justiça de Rawls consiste de dois momentos distintos, porém com-
plementares: o dispositivo da posição original (original position)
e o método do equilíbrio reflexivo (reflective equilibrium).
Notadamente, na vida cotidiana, as pessoas estabelecem
acordos sob condições relativamente claras. Essas condições são,
frequentemente, referendadas pela estrutura institucional de
sociedade democrática. Com base nisso, Rawls postula, sob ní-
tida influência da teoria contratualista moderna, que os termos
equitativos de cooperação social devem verter de um acordo hi-
potético e a-histórico, celebrado entre indivíduos simetricamente
situados, que representam uma linha contínua de reivindicações.
Nessa linha, concebe uma conjectura moral em que cidadãos, ti-
dos como pessoas livres e iguais, deliberam sobre que princípios
de justiça seriam os mais apropriados para regular a estrutura
básica da sociedade (basic structure of society). A estrutura básica
da sociedade, à medida que representa o modo pelo qual são dis-
tribuídos os direitos e os deveres fundamentais que determinam
a partilha dos benefícios e dos encargos provenientes da coopera-
ção social, passa a ser o objeto primário da justiça.

5
A noção de reconciliação (Versöhnung) é assumida por Rawls em sentido precisa-
mente hegeliano, à medida que se pauta pelo uso público da razão.
Justiça política em Rawls: a relação entre estabilidade e tolerância

64
As condições formais de tal acordo são modeladas pelas
restrições que a noção do justo impõe à noção de bem. Questões
contingenciais anteriores não podem, dessa forma, interferir na
definição de princípios de justiça. Isso implica em dizer que as ca-
pacidades de negociação das partes devem ser idênticas, por isso
que o uso da força, a coerção e o embuste são inadmissíveis. Esse
contexto de absoluta equidade que caracteriza a posição original
é assegurado pelo véu de ignorância (veil of ignorance), cujo pa-
pel é limitar drasticamente o espectro de informações das partes,
impossibilitando-as de conhecer, principalmente, sua posição so-
cial, seu gênero, as doutrinas que professam, etc. Por trás do véu
de ignorância, as partes se acham, portanto, livres da influência
de fatores naturais e sociais, ou mesmo constrangimentos vindos
de seus pares. Trata-se de um exemplo de “justiça procedimen-
tal pura”, posto que não se dispõe de um critério independente e
previamente estabelecido do justo. “A justiça procedimental pura
significa que, em sua deliberação racional, as partes não se veem
obrigadas a aplicar ou subscrever nenhum princípio do direito e
da justiça que seja dado de antemão”, observa Rawls (PL, II, § 5).
O justo, nesse caso, é definido pelas próprias condições do pro-
cedimento. Assim, se o procedimento for equitativo, o resultado
produzido será, por consequência, justo (fair).
É significativo destacar que o dispositivo da posição original
não contempla tão somente elementos do contratualismo lockeano,6
também manifesta a forte influência da filosofia prática de Kant. O
status quo na posição original descreve um procedimento de repre-
sentação da concepção kantiana de autonomia. Em Uma teoria da
justiça, Rawls detalha essa sua interpretação nos seguintes termos:

6
Diferentemente de como acontece na teoria de Locke, a abordagem contratualista
de Rawls não se preocupa em estabelecer as condições para fundação da sociedade
civil, a partir de um suposto “estado de natureza”, e a posterior constituição do
Estado. A rigor, a perspectiva de Rawls busca especificar as bases de um procedi-
mento de justificação pública de princípios de justiça reguladores de uma estrutura
institucional preexistente.
Jelson Becker Salomão, Aline Kerber Nunes

65
Kant acreditava, julgo eu, que uma pessoa age de modo autônomo
quando os princípios de suas ações são escolhidos por ela como a ex-
pressão mais adequada possível de sua natureza de ser racional igual
e livre. Os princípios que norteiam suas ações não são adotados por
causa de sua posição social ou de seus dotes naturais, ou em vista do
tipo particular de sociedade em que ela vive ou das coisas específicas
que venha a querer. Agir com base em tais princípios é agir de modo
heterônomo. Ora, o véu de ignorância priva as pessoas que ocupam a
posição original do conhecimento que as capacitaria a escolher princípios
heterônomos (§ 40).

A conduta pautada por princípios de justiça reflete, segundo


o norte-americano, a autonomia racional que caracteriza a posi-
ção original. É nesse sentido que a justiça como equidade admite
que os princípios fundamentais de justiça equiparam-se a impe-
rativos categóricos à medida que servem como critérios objetivos
na orientação da conduta. O caráter específico de uma doutrina
kantiana fica explícito, portanto, na forma como a posição origi-
nal modela a distinção entre o razoável e o racional.
Em Kantian constructivism in moral theory (1980), Rawls
procura aprimorar sua argumentação acerca da posição original,
um dos aspectos mais contestados do seu esquema de justifica-
ção dos princípios fundamentais de justiça. O artigo traz uma
caracterização melhor detalhada do construtivismo kantiano,7 na

7
Ao qualificar a teoria da justiça como equidade como “kantiana”, Rawls não tem
em mente estabelecer uma identidade com aquela doutrina; pretende apenas es-
tabelecer uma analogia. O construtivismo político de Rawls distingue-se do cons-
trutivismo moral de Kant por, pelo menos, quatro razões. Em primeiro lugar, a
doutrina kantiana constitui uma perspectiva moral abrangente. Como tal, revela-se
incompatível com a justiça como equidade, pois não é capaz de fornecer a necessária
base pública de justificação. A ideia de autonomia é outro aspecto que diferencia seu
modelo construtivista do construtivismo moral kantiano: o liberalismo político pre-
tende ser uma visão política autônoma. De acordo com Rawls, “uma visão política é
autônoma quanto representa ou expressa a ordem dos valores políticos como aquela
que está baseada nos princípios da razão prática, em conjunção com as concepções
políticas apropriadas de sociedade e de pessoa” (PL, III, § 2.1). Trata-se, em síntese,
de uma noção doutrinal de autonomia. Ademais, diferentemente do construtivismo
moral de Kant, as noções de sociedade e de pessoa apresentam-se como ideias fun-
damentais de natureza política. O construtivismo moral e o construtivismo político,
por último, diferem entre si quanto aos seus objetivos. “A justiça como equidade
tem por objetivo tornar manifesta uma base pública de justificação com respeito a
questões de justiça política, dado o fato do pluralismo razoável” (PL, III, § 2.2).
Justiça política em Rawls: a relação entre estabilidade e tolerância

66
qual a condição de liberdade e igualdade se apresenta como con-
dição de possibilidade do agir razoável e racional e, por extensão,
da participação ativa da cooperação social. Há, segundo o autor,
uma relação direta entre os termos equitativos e a ideia de bem,
de um lado, e a capacidade de ter um senso de justiça e a capaci-
dade de ter e revisar uma concepção de bem professada, de outro.
O filósofo quer demonstrar, em última análise, o entrelaçamento
que existe entre os elementos fundamentais da cooperação e as
faculdades morais da noção de pessoa.
Nessa linha, o construtivismo político rawlsiano busca ofe-
recer a estrutura e o conteúdo da concepção política da justiça
como equidade, apoiando-se tanto na razão prática quanto na ra-
zão teórica. No entendimento de Rawls,
[...] se quisermos encontrar um fundamento para o acordo público,
teremos de descobrir uma maneira de articular ideias e princípios
familiares numa concepção de justiça política que, em certo sentido,
terá de diferir da forma conhecida (PL, I, § 1.3).

Assim, com vistas a tornar mais precisa a ideia de autono-


mia em uma sociedade bem-ordenada, complementa-se a noção
de racional (rational) introduzindo a noção de razoável (reasona-
ble). Para o filósofo, o razoável é constitutivo da ideia de socieda-
de bem-ordenada, tendo em vista o papel que exerce na determi-
nação dos termos equitativos da cooperação social. A rigor, ambos
estão presentes na ideia de cooperação: o racional assume um
sentido subjetivo, ao passo que o razoável incorpora o sentido da
intersubjetividade de que a ideia de cooperação necessita. Essa
centralidade na especificação dos termos equitativos de coope-
ração explica-se pelo fato de o razoável não apenas pressupor o
racional, mas também determiná-lo.
A introdução da noção do razoável permite uma compre-
ensão mais clara da função da posição original no processo de
justificação dos princípios de justiça. Trata-se de um artifício de

Jelson Becker Salomão, Aline Kerber Nunes

67
representação: um experimento mental. Dada a sua natureza
dedutiva, o dispositivo da posição original serve à formulação
das “condições equitativas sob as quais os representantes de ci-
dadãos livres e iguais devem especificar termos equitativos da
cooperação social que se apliquem ao caso da estrutura básica
da sociedade” (PL, I, § 4.3). Seu caráter mediador permite desen-
volver a ideia de sociedade, a ponto de se identificar princípios
de justiça que especifiquem direitos e liberdades básicas, como
também formas de igualdade condizentes com a ideia de cidadãos
definidos como pessoas livres e iguais. A posição original consti-
tui, por tudo isso, uma situação de absoluta igualdade e impar-
cialidade, a partir da qual as partes podem escolher a estrutura
sociopolítica mais adequada, dentre as muitas possíveis.
Nessas condições, seria razoável que as partes situadas na
posição original escolhessem os dois princípios de justiça (PL, I, § 1),
cujo conteúdo normativo orientaria as deliberações acerca de
questões fundamentais, a conhecer:
I. Cada pessoa tem um direito igual a sistema plenamente adequado
de direitos e liberdades iguais, sistema esse que deve ser compatível
com um sistema similar para todos. E, neste sistema, as liberdades
políticas, e somente estas liberdades, devem ter seu valor equitativo
garantido; e,
II. As desigualdades sociais e econômicas devem satisfazer duas exigên-
cias: em primeiro lugar, devem estar vinculadas a posições e cargos
abertos a todos em condições de igualdade equitativa de oportunida-
des; em segundo lugar, devem se estabelecer para o maior benefício
possível dos membros menos privilegiados da sociedade.

Tais princípios seriam capazes de assegurar o valor equi-


tativo das liberdades políticas fundamentais e a igualdade equi-
tativa de oportunidades, além de equilibrar desigualdades so-
cioeconômicas por meio do chamado “princípio da diferença”. No
conjunto, os princípios da justiça como equidade destacam o viés
igualitário do liberalismo rawlsiano.

Justiça política em Rawls: a relação entre estabilidade e tolerância

68
O dispositivo da posição original vem a ser, assim, a primei-
ra instância de justificação dos princípios de justiça. Como ponto
de vista moral imparcial, enuncia uma decisão racional e unâni-
me, fundada em razões idênticas. Delimita, dessa forma, o que
possa ser “razoável para todos”, posto que não está em questão a
coerência dos princípios de justiça com os juízos particulares das
distintas doutrinas abrangentes, nem das variadas concepções de
bem. Entretanto, Rawls tem consciência de que as condições em
que princípios de justiça são definidos precisam ser compatíveis
com as nossas convicções mais profundas. Estender a situação
de equidade que caracteriza a posição original a um acordo sobre
os princípios de justiça destinados a regular a estrutura básica
de uma sociedade bem-ordenada é algo premente. Em vista dis-
so, Rawls articula em seu procedimento um segundo momento:
o método do equilíbrio reflexivo, cuja finalidade é equacionar as
tensões entre moralidade e eticidade política, na base do que pos-
sa ser “razoável para nós” (ourselves).
Com o método do equilíbrio reflexivo, não apenas os prin-
cípios de justiça são publicamente justificados, mas também as
próprias condições equitativas delineadas na posição original.
Com esse recurso, Rawls pensa ser possível formar a base da ra-
zão pública, redundando no que designa como consenso sobre-
posto (overlapping consensus). O método citado permite conciliar
os princípios de justiça, as ideias intuitivas e a multiplicidade de
doutrinas abrangentes razoáveis. Isso quer dizer que os princí-
pios de justiça definidos sob as condições equitativas da posição
original são agora justificados por razões distintas. O método do
equilíbrio reflexivo vem a ser, assim, um teste complementar de
justificação, à medida que testa a coerência dos juízos dos cida-
dãos sobre demandas políticas, de forma a torná-los mais autô-
nomos e consistentes. Nas melhores condições, esse segundo ní-
vel de justificação dos princípios de justiça produz o que Rawls

Jelson Becker Salomão, Aline Kerber Nunes

69
chama de juízos bem-ponderados (well-considered judgements).
A ideia diretiva nesse estágio é a reconciliação mediante a razão
pública. É dessa forma que o procedimento construtivista preten-
de dar cabo da histórica tensão entre a “liberdade dos modernos”
e a “liberdade dos antigos”. Contudo, o construtivismo político
de Rawls quer oferecer não apenas o conteúdo para uma base
pública de justificação, também pretende demonstrar as razões
em função das quais esse conteúdo pode ser racionalmente en-
dossado por cidadãos livre e iguais, membros de uma sociedade
democrática pluralista.

A tolerância razoável: a possibilidade


da estabilidade pelas razões certas
Em Uma teoria da justiça (RAWLS, 2008), assimilar um sis-
tema justo de cooperação mútua fundado nos princípios de justi-
ça, qualquer que seja a concepção de bem afirmada, representa
algo racional. É uma defesa da efetividade de tais princípios, no
sentido de demonstrar a possibilidade da estabilidade em uma so-
ciedade bem-ordenada. Ocorre que esse argumento deu margem
para que se interpretasse a justiça como equidade em termos de
uma “doutrina filosófica abrangente”, expondo certa incongruên-
cia com a ideia de sociedade democrática, marcada pelo pluralis-
mo de doutrinas abrangentes razoáveis e divergentes. Ciente da
improbabilidade de cidadãos de regimes democráticos aceitarem
uma única concepção de justiça, Rawls reconhece as transfor-
mações produzidas pelo fenômeno do pluralismo nas sociedades
modernas. Por conta disso, promove uma ampla e profunda refor-
mulação da tese da justiça como equidade, abandonando deter-
minadas pretensões iluministas. Ambiguidades que tornavam a
justiça como equidade pouco realista levam-no a reconsiderar a
ideia de estabilidade antes defendida.

Justiça política em Rawls: a relação entre estabilidade e tolerância

70
Assim, no contexto do liberalismo político, uma sociedade é
considerada “bem-ordenada” quando efetivamente for regulada
por uma concepção pública de justiça. É o caso em que todos e
cada um dos cidadãos aceitam os mesmos princípios de justiça. A
implementação de tais princípios de justiça é, dessa forma, uma
questão publicamente reconhecida, o que, segundo Rawls, está
implícito na própria ideia de regulação efetiva. Ademais, cida-
dãos de uma sociedade bem-ordenada apresentam, na maioria
das vezes, um senso de justiça igualmente efetivo, pois agem se-
gundo o que prescrevem as instituições fundamentais; essas con-
sideradas justas. De modo geral, uma sociedade bem-ordenada
dispõe de uma concepção de justiça que evidencia um ponto de
vista comum, a partir do qual demandas políticas e sociais são
tratadas.
Nessa linha, O liberalismo político (2011) precisa explicar
como a sociedade bem-ordenada, concebida na obra de 1971, deve
ser entendida, uma vez reconhecido o fato do pluralismo razoável
(fact of reasonable pluralism). Deve demonstrar, além disso, como
uma sociedade bem-ordenada, organizada em torno de uma dou-
trina liberal, é capaz de acomodar múltiplas concepções políticas
razoáveis. Cumpre, dessa maneira, identificar que concepção de
justiça apresenta as condições necessárias à determinação dos
termos equitativos de cooperação social destinados a reger a re-
lação entre cidadãos livres e iguais. Importa demonstrar também
quais são os fundamentos da noção liberal de tolerância, dado o
seu teor normativo. Daí o problema de base do liberalismo políti-
co: como é possível existir, ao longo do tempo, uma sociedade jus-
ta e estável de cidadãos livres e iguais que permanecem profun-
damente divididos por doutrinas religiosas, filosóficas e morais
razoáveis? O desafio consiste, então, em determinar uma base
comum para a estabilidade, o que implica em ajustar a ideia de
sociedade bem-ordenada às condições histórico-sociais da cultura

Jelson Becker Salomão, Aline Kerber Nunes

71
democrática que resultaram no fato do pluralismo razoável. Os
princípios de justiça devem ser publicamente justificados para
que tenham sua legitimidade assegurada. A justiça como equida-
de, em última instância, precisa apresentar feições de uma dou-
trina eminentemente política, e não moral.
Uma concepção política de justiça distingue-se de uma dou-
trina moral em três aspectos fundamentais. Apesar de não ser
moralmente neutra, uma concepção política aplica-se unicamen-
te ao âmbito institucional de uma sociedade democrática. Seu
objetivo último é a estrutura básica da sociedade, ou seja, “[...]
as principais instituições políticas, sociais e econômicas de uma
sociedade e o modo como se combinam em um sistema único de
cooperação social de uma geração às seguintes” (PL, I, § 2). Uma
concepção de justiça deve ser, por conseguinte, autossuficiente
(freestanding political conception) e precisa evidenciar completa
independência em relação a qualquer doutrina abrangente ra-
zoável. Na medida em que tem seu foco no âmbito político, tal
concepção representa uma justificação parcial (pro tanto), con-
trastando, assim, com doutrinas abrangentes. Por fim, uma con-
cepção de justiça expressa seu conteúdo mediante ideias e prin-
cípios fundamentais que constituem a “cultura de fundo” de uma
sociedade civil. Trata-se, precisamente, da cultura do social, que
compreende as principais instituições políticas de uma sociedade
democrática bem como as formas consolidadas de interpretá-las.
Assim entendida, uma concepção política de justiça mostra-
-se compatível com o pluralismo razoável, pois abarca as ideias
intuitivas de sociedade como um sistema equitativo de coopera-
ção, de pessoa moral livre e igual e de sociedade bem-ordenada.
Notadamente, tais ideias vinculam-se às noções de estrutura bá-
sica, posição original e justificação pública. Segundo a interpre-
tação liberal que Rawls faz da Filosofia do direito de Hegel, essas
três ideias recuperam a distinção entre o pluralismo da sociedade

Justiça política em Rawls: a relação entre estabilidade e tolerância

72
civil e a unidade do Estado (MAFFETTONE, 2010). Além disso,
elas permitem diferenciar mais claramente uma “concepção de
bem”, que se limita ao plano individual, de uma “doutrina abran-
gente”, que é ampla, em função do seu caráter social. Uma con-
cepção política de justiça conserva, portanto, o primado do justo
sobre o bem, limitando doutrinas abrangentes, sem se ocupar de
concepções do bem.
Dessa forma, a justiça como equidade apresenta-se como
uma resposta plausível à primeira questão fundamental levanta-
da pelo liberalismo político. Ela reúne, segundo Rawls, as condi-
ções que uma concepção de justiça política requer para a especi-
ficação dos termos equitativos de cooperação social, reguladores
das relações entre cidadãos livres e iguais, racionais e razoáveis.
A justiça como equidade abdica, nessa medida, do status de con-
cepção verdadeira para ser uma concepção política razoável, den-
tre outras possíveis. Ao articular ideias intuitivas fundamentais
e princípios de justiça, o filósofo pensa ter demonstrado que uma
sociedade justa é possível. Entretanto, importa explicitar como
tal sociedade democrática e liberal pode ser estável, dadas as cir-
cunstâncias em que cidadãos livres e iguais adotam doutrinas
religiosas, filosóficas e morais divergentes e conflitantes.
Uma sociedade justa e estável, em A theory of justice, re-
sulta da conformidade entre teoria e fins. A estabilidade é apre-
sentada como solução para o “problema de congruência” entre o
ponto de vista da justiça e o ponto de vista do bem.8 Na visão de
Rawls, o senso de justiça dos cidadãos tende a promover, em lon-
go prazo, seu ideal de bem assumido. Isso equivale a dizer que a

8
De acordo com Maffettone (2010), além do argumento sobre a o chamado “problema
da congruência”, discutido na Parte III de A theory of justice, Rawls também apre-
senta outro argumento sobre a estabilidade, que não é objeto de revisão em Political
liberalism. Na Parte I daquela obra, o filósofo apoia-se na “condição de publicidade”
que caracteriza a justiça como equidade, para defender que, à medida que os princí-
pios de justiça tornam-se conhecimentos em uma sociedade bem-ordenada, tendem
a promover o desenvolvimento do senso de justiça dos cidadãos.
Jelson Becker Salomão, Aline Kerber Nunes

73
observância dos princípios de justiça é uma expressão racional do
interesse individual de cada um. Quando todos, no interesse de
agir de modo justo, respeitam os princípios de justiça, qualquer
que seja a concepção de bem assumida, a estabilidade se realiza.
Nesse sentido, a estabilidade significa uma consequência da con-
vergência entre a justiça como equidade e os interesses morais
(highest moral sentiments) de cada um. Assim, em uma sociedade
bem-ordenada pelos princípios da justiça como equidade, os cida-
dãos endossam e se esforçam em agir conforme tais princípios.
Em suma, a própria estabilidade dos princípios motiva os agen-
tes a conduzirem-se segundo as prescrições institucionais.
Essa noção de estabilidade é mais um sinal da forte influên-
cia da filosofia kantiana no pensamento de Rawls. Como Maffet-
tone (2010) faz notar, a opção pelo modelo kantiano9 transforma
uma noção de estabilidade com caráter psicossocial e institucio-
nal em uma noção essencialmente moral. Como tal, não se atém
primordialmente à ordem social, pois não se define como um fator
estruturante de um sistema político. Ela tem a ver, antes, com a
relação ética entre cidadãos e sociedades justas, o que a distancia
significativamente da noção de estabilidade de Hobbes, que aspi-
ra fundamentalmente à paz social. Todavia, não se pode perder
de vista que o equívoco de Rawls foi, justamente, pressupor que
os fundamentos morais da sua teoria pudessem ser compatíveis
com o pluralismo que sua perspectiva liberal defende. O reconhe-
cido “déficit de realidade” da ideia de sociedade bem-ordenada
apresentada em A theory of justice estende-se, assim, à noção de
estabilidade.
A estabilidade constitui, notoriamente, um aspecto funda-
mental do projeto político-filosófico de Rawls. Não é por outra ra-
zão que um dos seus principais objetivos em Political liberalism

9
Vale lembrar que, na base da noção de vontade boa (ein guter Wille), Kant se preo-
cupava em saber como uma constituição justa seria possível.
Justiça política em Rawls: a relação entre estabilidade e tolerância

74
seja o de demonstrar a possibilidade de uma sociedade bem-orde-
nada e estável. Trata-se de um problema que, segundo Rawls, a
filosofia política não pode deixar de tratar. Persuadido pelo fato
do pluralismo razoável, o filósofo assume não ser possível, no
contexto de uma democracia liberal, que todos os cidadãos inte-
ressados na estabilidade endossem o argumento da congruência.
Dessa forma, procede a uma significativa revisão no argumento
da congruência, começando pela distinção entre uma concepção
de bem e uma doutrina abrangente. “A relação com a teoria da
justiça como equidade muda se, ao invés de considerarmos uma
concepção de bem, a avaliarmos a partir de uma doutrina abran-
gente”, como destaca Maffettone (2010, p. 257). Distinguir uma
concepção de bem de uma doutrina abrangente significa, nesse
sentido, delimitar os âmbitos da moralidade e do político.
Concepções de bem, cabe lembrar, apresentam como traço
característico irrenunciável a racionalidade. Uma concepção de
bem manifesta essa característica por meio de sua coerência in-
terna, como também pelo grau de razoabilidade que apresenta.
Esses aspectos são definidos pela chamada teoria estreita (thin)
do bem, ou teoria do “bem como racionalidade”. Uma teoria dessa
natureza justifica-se pelo fato de que, em sociedades plurais, é
natural que as pessoas não compartilhem uma única concepção
de bem. A teoria do bem como racionalidade expressa, dessa for-
ma, uma perspectiva individual e formal daquilo que pode ser
considerado bem no contexto de um plano racional de vida. Uma
concepção de bem se satisfaz, portanto, com um procedimento de
justificação, alcançando uma estabilidade de caráter moral.
Doutrinas abrangentes, por contraste, têm um caráter
substancial e coletivo. Determinada doutrina abrangente pode,
ou não, ser razoável. Para o liberalismo político, entretanto, in-
teressa apenas aquelas doutrinas que apresentam um nível sig-
nificativo de razoabilidade. Três aspectos definem uma doutri-

Jelson Becker Salomão, Aline Kerber Nunes

75
na abrangente razoável como tal (PL, II, § 3). Como exercício da
razão teórica, uma doutrina abrangente é razoável quando es-
trutura de modo coerente uma série de valores, conferindo certa
inteligibilidade a uma visão de mundo. Depois, no que concerne à
razão prática, uma doutrina abrangente é considerada razoável
à medida que seleciona certos valores tidos como mais signifi-
cativos em relação a outros, principalmente quando há conflito
entre eles. Por fim, uma doutrina abrangente é tida como razo-
ável quando, pertencendo ou derivando de uma tradição de pen-
samento, tende a aprimorar-se à luz de razões suficientemente
boas. De maneira geral, uma doutrina define-se como abrangente
na medida em que é compatível com uma concepção pública de
justiça, o que pressupõe não apenas um procedimento de justifi-
cação, mas também de legitimação. A estabilidade desejada, nes-
se caso, tem sentido estritamente político.
Uma vez que se propõe a assegurar direitos e liberdades
fundamentais, a justiça como equidade pretende minimizar a
possibilidade de conflitos entre doutrinas abrangentes razoáveis
antagônicas. O liberalismo político, por essa razão, defende que
a estabilidade de uma sociedade justa só pode ser alcançada me-
diante o equilíbrio entre uma concepção política de justiça e dou-
trinas abrangentes razoáveis. Rawls, inclusive, salienta:
[...] o problema da estabilidade não é levar os que rejeitam uma concep-
ção a acatá-la ou a agir em conformidade com ela por meio de sanções
efetivas, se necessário, como se o problema consistisse em encontrar
maneiras de impor essa concepção uma vez que estivéssemos conven-
cidos de sua validade (PL, IV, § 3.2).

Trata-se, na verdade, da defesa de um consenso legítimo em


torno de questões políticas básicas. Isso passa pela identificação
das bases de um acordo minimamente satisfatório entre as varia-
das doutrinas abrangentes razoáveis: uma condição necessária à
implementação dos poderes coercitivos em uma democracia cons-
titucional.
Justiça política em Rawls: a relação entre estabilidade e tolerância

76
Quando os adeptos das distintas doutrinas abrangentes
razoáveis respeitam a prioridade do justo, ao conciliarem sua
concepção de bem com a concepção política, a estabilidade ocor-
re pelas razões certas. A justificação pública apresenta-se, dessa
forma, como condição de possibilidade do consenso sobreposto e,
por extensão, da formação de uma razão pública (public reason).
Dadas a sua profundidade (depth) e a sua amplitude (breadth),
o consenso sobreposto é capaz de abarcar ideias como sociedade
como sistema equitativo de cooperação, pessoal moral, além das
demais questões relativas à estrutura básica da sociedade, ates-
tando a razoabilidade de uma concepção política de justiça. Em
um consenso sobreposto, somente valores políticos estão em ques-
tão. Valores políticos podem, obviamente, ter conteúdo moral,
entretanto, nem todos os valores morais têm conteúdo político.
Convém destacar que mesmo doutrinas abrangentes razoá­veis,
diferentemente de uma concepção política, não oferecem as con-
dições requeridas para um consenso, pois mantêm valores que se
situam fora dos limites do âmbito político. Valores desprovidos de
natureza política devem ficar, portanto, restritos às respectivas
doutrinas abrangentes. Embora dependa do apoio de tais doutri-
nas, uma concepção política – cabe insistir – deve ser autossufi-
ciente (freestanding), pois o domínio do político precisa ser autô-
nomo. Interessam apenas valores políticos porque eles exprimem
a média, por assim dizer, dos interesses das diversas doutrinas
abrangentes razoáveis. São esses valores que, em última análise,
norteiam a especificação dos termos equitativos de cooperação.
É dessa forma que o conteúdo da concepção de justiça en-
contra seu fundamento na cultura política democrática, fazen-
do-se imediatamente acessível à compreensão do cidadão. Como
concepção política, a justiça como equidade oferece, por meio dos
princípios de justiça, justamente aqueles valores políticos cons-
titutivos da estrutura básica da sociedade; valores que são pas-

Jelson Becker Salomão, Aline Kerber Nunes

77
sivos da aceitação de pessoas razoáveis. Não obstante, os valores
que asseguram a legitimidade política de um arranjo institucio-
nal distinguem-se, de certo modo, dos valores de uma doutrina
abrangente em particular. Desse modo, bem-ordenada é a socie-
dade cuja estrutura básica é regulada pelos princípios da justiça
como equidade, que, uma vez publicamente legitimados, tendem
a desenvolver em seus membros um senso de justiça robusto, ca-
paz de conter as tendências à injustiça. Com isso, Rawls pensa
ter demonstrado a viabilidade de dois dos pressupostos funda-
mentais de uma sociedade justa e estável.
Notável é o papel central que a noção de razoabilidade (rea-
sonableness) ocupa na estrutura da concepção de justiça política
rawlsiana. Articulada com outras ideias e princípios, a razoabi-
lidade confere unidade à concepção política da justiça como equi-
dade, sem ela, não seria possível uma sociedade justa e estável
(RASMUSSEN, 2004). Ela caracteriza as noções de pessoa e de
doutrina abrangente, por exemplo, explicitando as propriedades
fundamentais que permitem defini-las como razoáveis. Além des-
sa função descritiva, a razoabilidade apresenta pretensões de va-
lidade normativa que se tornam manifestas na ideia de reciproci-
dade. A disposição de propor e cumprir os termos equitativos de
cooperação, assim como de reconhecer os limites da capacidade de
juízo (burdens of judgment) e de aceitar suas consequências para o
uso da razão pública, vincula a razoabilidade ao senso de justiça,
que deve orientar as escolhas do agente. A noção de razoabilidade
apresenta, assim, um aspecto ético-político e outro epistemológico.
A propósito, é o aspecto ético-político que expõe o caráter
essencialmente público da razoabilidade, possibilita ao indivíduo
tomar consciência da vida política. É em função dessa noção que
o sujeito percebe que a política não se resume à obtenção de re-
sultados, mas à habilidade de construir relações estáveis com os
outros. Como o autor explica:

Justiça política em Rawls: a relação entre estabilidade e tolerância

78
Pessoas razoáveis [...] não são motivadas pelo bem comum como tal,
e sim desejam, como um fim em si mesmo, um mundo social em que
elas, na condição de pessoas livre e iguais, possam cooperar com todos
os demais em termos que todos possam aceitar. Elas insistem em que
a reciprocidade prevaleça nesse mundo, de modo que cada pessoa se
beneficie juntamente com as demais (PL, II, § 1).

Com efeito, pessoas são razoáveis quando buscam, volunta-


riamente, estabelecer os parâmetros normativos reguladores da
vida institucional e, sobretudo, quando cumprem efetivamente os
termos do acordo, já que não levam em conta apenas vantagens
imediatas, mas também os possíveis ganhos futuros. Por compre-
ender as faculdades morais que caracterizam a noção política de
pessoa, a razoabilidade revela uma disposição em reconhecer e
respeitar a autonomia do outro.
O viés normativo que acompanha a noção de razoabilidade
permite entender melhor a noção liberal de tolerância, bem com
a sua relação com a questão da estabilidade de uma sociedade
justa. Uma vez que cidadãos razoáveis são capazes de reconhe-
cer as limitações de sua capacidade de julgar aquilo que pode
ser justificado por outros a partir de suas doutrinas abrangen-
tes razoáveis, é plausível afirmar que a tolerância defendida por
Rawls define-se como uma capacidade ético-política que viabiliza
o intercâmbio de razões, na base da reciprocidade. A razoabili-
dade pressuposta na noção liberal de tolerância manifesta-se,
fundamentalmente, no reconhecimento dos limites da capacida-
de de juízo. Ora, de outro modo, o pluralismo razoável de dou-
trinas abrangente seria impossível. Os limites da capacidade de
juízo estão na base do uso público da razão, na medida em que
dirigem o exercício legítimo dos direitos políticos em um regime
constitucional. A ideia de limites da capacidade de juízo explica,
ademais, o fato do permamente desacordo razoável no que tange
a questões práticas e justifica, por fim, a necessidade de poder
coercitivo do Estado.

Jelson Becker Salomão, Aline Kerber Nunes

79
Afirmar a universalidade de uma doutrina abrangente, mes-
mo razoável, é abrir caminho para a opressão. Determinados va-
lores defendidos por doutrinas abrangentes precisam, assim, ter
seus limites consensualmente estabelecidos. Todavia, suprimir
valores que constituem a identidade de uma doutrina abrangente
opositora, quando essa é razoável, fazendo uso do poder político, é
absolutamente condenável em uma sociedade que aspira ser de-
mocrática e pluralista. “Numa democracia, os fundamentos da to-
lerância e da cooperação social sobre uma base de respeito mútuo
ficam ameaçados quando as distinções entre esses diversos modos
de vida e ideia não são reconhecidas”, salienta Rawls (2000, p. 195).
Ser tolerante, nessa perspectiva, significa praticar voluntariamen-
te a virtude da razoabilidade, mediante a proposição dos termos de
um acordo mínimo, ante o reconhecimento da impossibilidade de
um acordo pleno. Orientada pela noção de razoabilidade, a tolerân-
cia liberal constitui-se uma das condições de possibilidade de um
acordo legítimo, respondendo, assim, o problema da estabilidade.

Considerações finais
A justiça como equidade interpretada em termos de uma
concepção política de justiça encontra sustentação no primado do
justo sobre o bem. Isso fica evidente na defesa da inviolabilidade
da pessoa e na necessidade de neutralidade moral do Estado. Ao
especificar a natureza política da teoria de justiça como equida-
de, Rawls deixa entrever a centralidade da noção de razoabilida-
de na arquitetônica do seu liberalismo político. A dupla função
da razoabilidade – descritiva e normativa – assegura, segundo o
autor, a possibilidade de uma estrutura institucional necessária
à coexistência justa e estável de cidadãos livres e iguais, que pro-
fessam doutrinas abrangentes razoáveis distintas e conflitantes.
A justificação pública figura, assim, como a pedra de toque de
uma ordem institucional legítima.
Justiça política em Rawls: a relação entre estabilidade e tolerância

80
Importa frisar, por fim, que a proposta teórica do liberalismo
político, embora não seja moralmente neutra, ao postular a assun-
ção de princípios liberais básicos, permite uma melhor distinção
entre o ponto de vista público e os pontos de vista (não públicos)
das doutrinas abrangentes razoáveis. Com isso, deixa claro que a
noção liberal de tolerância não se confunde com um mero modus
vivendi, mas como uma virtude de pessoas razoáveis. As confe-
rências que constituem o Political liberalism apresentam, nessa
perspectiva, os termos mediante os quais a concepção política de
justiça pode servir de lastro para a consolidação de uma razão
pública, indispensável às deliberações políticas que tratam de ele-
mentos constitucionais fundamentais (constitucional essentials),
assim como de questões de justiça básica. Ainda que a sua tese
permaneça suscetível a objeções, é inegável que a concepção de
justiça política de Rawls desenvolveu significativamente a ideia
de cidadania introduzida pela tradição liberal, ao delinear uma
compreensão aprimorada da relação entre liberdade e igualdade.

Referências
MAFFETTONE, Sebastiano. Rawls: an introduction. Malden: Polity Press,
2010.
RASMUSSEN, David M. Defending reasonability: the centrality of rea-
sonability in the later Rawls. Philosophy & Social Criticism, Boston, v. 30,
n. 5-6, p. 525-540, 2004.
RAWLS, John. O liberalismo político. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2011.
_______. Uma teoria da justiça. 3. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2008.
WERLE, Denilson L. Justiça e democracia: ensaios sobre John Rawls e Jür-
gen Habermas. São Paulo: Singular; Esfera Pública, 2008.
WOOD, Allen W. Kant’s ethical Thought. New York: Cambridge University
Press, 2012.
_______. Kantian ethics. New York: Cambridge University Press, 2011.

Jelson Becker Salomão, Aline Kerber Nunes

81
A questão da cidadania passiva
na doutrina do direito de
Immanuel Kant: a narrativa de
um contexto histórico

Édison Martinho da Silva Difante*


Felipe Favaretto**

Introdução
O presente estudo tem por objetivo investigar, mesmo que
brevemente, a questão da cidadania passiva da filosofia do direi-
to de Immanuel Kant. Parte-se do pressuposto de que, em gran-
de medida, o pensamento de Kant referente a essa questão está
diretamente vinculado aos padrões da sociedade do século XVIII
bem como sofre influência da ideia de desígnio natural.
Metodologicamente, o texto está dividido em quatro partes:
primeiramente, com a intenção de apresentar uma leitura con-
textualizada, busca-se fazer uma breve análise referente à época
em que Kant viveu. Em um segundo momento, a partir da aná-
lise da obra Antropologia de um ponto de vista pragmático, na
qual Kant descreve a mulher física e intelectualmente inferior
ao homem, é proposta a interpretação de que tal descrição serve
de base ou de fundamento para a condição da mulher na teoria
do estado civil de direito. Partindo desse pressuposto, nas duas

*
Doutor em Filosofia pela Universidade Federal de Santa Maria. Professor na Uni-
versidade de Passo Fundo. E-mail: difante@upf.br
**
Mestrando em Direito na Universidade de Passo Fundo. E-mail: 102427@upf.br
últimas partes, tomando por referências principais A metafísica
dos costumes e o opúsculo Sobre a expressão corrente: isto pode
ser válido na teoria, mas nada vale na prática, nas quais Kant
estabelece a diferenciação entre cidadania passiva e ativa, mes-
mo tendo consciência de que a primeira contradiz a definição de
cidadão em geral.

Recorte temporal: a época de Kant


O conhecimento precisa ser contextualizado, sob pena de
não ser corretamente interpretado, pois ele é fruto de um mo-
mento histórico. Como afirma Mara Rodrigues, ao se referir a pa-
radigmas, “em todo processo de desenvolvimento das sociedades,
os atos humanos seguem em harmonia com um entendimento ou
concepção de mundo” (RODRIGUES, 2010, p. 1).
Neste texto, busca-se tratar do enquadramento histórico
de Kant a fim de demonstrar que suas afirmações são de cunho
narrativo. Nessa medida, procura-se, com base em uma contex-
tualização espaço-temporal, demonstrar que Kant não estava
construindo conceitos de cidadania, mas apenas transcrevendo
como ela acontecia em sua época. Também se explana aqui, su-
cintamente, alguns comentários do autor acerca da Revolução
Francesa, buscando, assim, criar um elo entre Kant e seu próprio
contexto histórico. Dessa forma, objetiva-se garantir melhor com-
preensão do texto, evitando críticas desnecessárias.
Partindo-se da definição de exercício da cidadania, é im-
prescindível referir-se à diferença entre a antiga e a moderna
representação. Na antiga, os contemplados eram os estamentos
ou grupos sociais concretamente identificados, diferindo da re-
presentação moderna, representada sempre por uma “coletivida-
de global, seja ela a nação ou o povo, considerada como um todo
homogêneo, sem divisões internas” (COMPARATO, 2010, p. 156).
Assim, para o cidadão exercer a cidadania (ativa), era ne-
cessário, por si próprio, prover-se de sustento e proteção, isto
Édison Martinho da Silva Difante, Felipe Favaretto

83
é, algo ligado à ideia de independência financeira por meio de
seus próprios negócios (excetuando-se os servidores do Estado).
Ao indivíduo que estivesse sob a direção ou o sustento de outros
indivíduos, restava tão somente o condicionamento à cidadania
passiva. Nessa perspectiva, evidenciada a restrição do sufrágio
por motivos de ordenação social, observa-se uma forma evidente
de desigualdade política.
O contexto em que Kant estava inserido, a Prússia oriental,
hoje Alemanha, na época não passava por boa situação econô-
mica e encontrava-se fortemente estruturada pelo pensamento
religioso luterano.1 Os intelectuais alemães, apesar de estarem
cientes das limitações do sistema/estrutura feudal, sentiam-se
impossibilitados de estabelecer um ambiente revolucionário, de-
vido ao engajamento à crença fundamentada no luteranismo. O
Estado deveria ser visto como “intocável”, como o pai soberano
que deve ser respeitado, protegido e temido.
Os intelectuais alemães tinham entusiasmo pelo processo
revolucionário da França, no entanto, posicionavam-se com vá-
rias reservas, principalmente com referência à violência empre-
gada na revolução (FONSECA, 2010). A Revolução Francesa foi
um marco histórico, combateu as desigualdades e, consequente-
mente, promoveu também uma espécie de mudança social, isto é,
consolidou no poder uma classe ascendente: a burguesia.2 Como
afirma Hobsbawm, “[...] [s]e a economia do mundo do século XIX

1
“[O] pensamento alemão fazia sua a teoria de Lutero, que, justificando o Estado
pelo pecado, ordena a obediência incondicional ao Estado patriarcal e absoluto”
(DROZ, 1949 apud TERRA, 2003, p. 101-102). “A desproporção entre idealidade
e realidade na sociedade alemã, entre teoria e prática, é um reflexo do modo como
a sociedade alemã estava economicamente limitada, e que isso teria sido um fator
determinante para ‘atestar’ a incapacidade dos alemães de realizarem uma mudan-
ça drástica no cenário político e econômico guiada pelos ideais do esclarecimento:
‘razão e liberdade’” (GOLDMANN, 1979 apud FONSECA, 2010, p. 22).
2
Pode-se afirmar, nessa perspectiva, que antes da revolução a sociedade francesa
possuía forte caráter feudal, tanto em suas estruturas políticas e administrativas
quanto econômicas e sociais e era também fortemente marcada pela lógica dos pri-
vilégios, legitimada pela teoria do direito divino. Um exemplo disso seria a nobreza
ocupar os melhores postos no exército, na justiça, no clero e nas mais importantes
funções administrativas.
A questão da cidadania passiva na doutrina do direito de Immanuel Kant: a narrativa de um contexto histórico

84
foi constituída principalmente sob a influência da Revolução In-
dustrial britânica, sua política e ideologia foram constituídas
fundamentalmente pela Revolução Francesa” (1996, p. 9).
A sociedade francesa era dividida em três estados. O pri-
meiro era o clero, o segundo a nobreza, que concentrava a riqueza
e os privilégios, o terceiro estado era composto pelo povo (cam-
poneses em sua maioria) e pela burguesia, sobre os quais recaía
a maioria dos tributos. A desigualdade social era enorme. A cor-
rupção, o descaso e a arbitrariedade das elites parasitas emper-
ravam o desenvolvimento do país e geravam forte insatisfação
popular e burguesa. Todo esse quadro de decadência do Antigo
Regime combinou-se a uma aguda crise econômica, política e so-
cial em fins do século XVIII, agravada ainda mais pelas quebras
nas colheitas de 1788, que provocaram grande crise de alimentos.
Importante é a questão referente à cidadania pré e pós-Re-
volução Francesa. Antes, o voto era por ordem social, isto é, como
a sociedade estava dividida em três estados, cada um possuía o
direito a um voto. Cabe destacar que o clero e a nobreza eram
aliados, o que criou conflito entre os privilegiados (clero e nobre-
za) e o povo. Já no período pós-revolução, como descreve Michel
Vovelle, a barreira entre cidadãos ativos e cidadãos passivos ex-
cluía pelo menos metade dos franceses (classes populares):
[...] de início fica de fora metade dos adultos, as mulheres, que não tem
direito de voto [...] embora todos fossem cidadãos, alguns deles, os ci-
dadãos ativos, eram mais cidadãos que outros, os cidadãos passivos. As
ordens não existiam mais, porém assistia-se ao surgimento de classes de
acordo com a riqueza, já que era preciso pagar um imposto equivalente
a três dias de trabalho para ser ao menos considerado cidadão e, dessa
forma, poder votar nas eleições locais e nacionais. Era preciso ser ainda
mais rico para ser elegível [...] trata-se do sufrágio (modo de eleição)
censitário (de acordo com a riqueza) (VOVELLE, 2007, p. 50-51).

Conforme Ricardo Terra, “Kant se destaca dos outros pen-


sadores de sua época na medida em que, sem deixar de fazer a

Édison Martinho da Silva Difante, Felipe Favaretto

85
crítica aos crimes da Revolução,3 continua seu defensor até o fim
da vida” (2003, p. 103). Na obra A religião nos limites da simples
razão, de 1793, Kant faz a seguinte menção:4
Confesso que não consigo acomodar-me à essa expressão de que se ser-
vem também homens prudentes: Certo povo (a caminho da elaboração
de uma liberdade legal) não está maduro para a liberdade; os servos
de um proprietário rural não estão ainda amadurecidos para a liber-
dade. [...]. De acordo com semelhante pressuposto, porém, a liberdade
nunca terá lugar; pois não se pode para ela amadurecer se antes não
se foi posto em liberdade (há que ser livre para alguém se poder servir
convenientemente das próprias forças na liberdade). As primeiras
tentativas serão, decerto, grosseiras, ligadas até ordinariamente a
um estado mais molesto e mais perigoso do que quando se estava sob
as ordens, mas também sob a previdência, de outro (Rel., B 292-293,
p. 189-190, grifo do autor).5

Decodificando o escrito, pode-se entender “um povo em vias


de elaborar sua liberdade legal” como sendo o povo francês. Já na
passagem que diz ser “necessário ser livre para poder servir-se
utilmente de suas forças na liberdade”, sugere-se a interpretação
de que Kant toma a posição favorável à Revolução Francesa.
É relevante destacar algumas posições defendidas por Kant
em relação a alguns aspectos da Revolução Francesa, como a de-

3
Segundo a perspectiva de Fábio Comparato, os revolucionários já não são os que
se revoltam para restaurar a antiga ordem política, mas os que lutam com todas
as armas – inclusive e sobretudo a violência – para induzir o nascimento de uma
sociedade sem precedentes históricos. A convicção de fundar um mundo novo, que
não sucedesse o antigo, mas a ele se opunha radicalmente, levou, aliás, os revolucio-
nários à destruição sem remorsos de um número colossal de monumentos históricos
e obras de arte em todo o território do reino (COMPARATO, 2010).
4
Embora não estejamos tratando aqui da questão da religião nos escritos de Kant, é
de grande relevância mencionarmos essa passagem, pois nela Kant deixa clara sua
posição, de que nem todos os seres humanos estão preparados para usufruir de sua
liberdade, isto é, para a independência de outrem, logo, para a cidadania.
5
Os textos de Kant serão citados de acordo com as seguintes abreviaturas: A religião
nos limites da simples razão (Rel.), Antropologia de um ponto de vista pragmáti-
co(Anth.), Lições de ética (VE), Metafísica dos costumes (MS), Observações sobre o
sentimento do belo e do sublime (Beobach.), Resposta à pergunta: que é esclarecimen-
to (WA), Sobre a expressão corrente: isto pode ser válido na teoria, mas nada vale
na prática (TP). As citações apresentam a paginação referente à edição de Wilhelm
Weischedel, de 1968, seguida da paginação de sua respectiva tradução, exceto as
citações da Antropologia, que seguem a paginação referente à edição da Akademie-
-Ausgabe, seguida daquela referente à tradução utilizada.
A questão da cidadania passiva na doutrina do direito de Immanuel Kant: a narrativa de um contexto histórico

86
fesa do contrato originário e da onipotência do Estado, enqua-
drando-se, nesse aspecto, às ideologias de outros intelectuais ale-
mães. Para Kant:
Toda a oposição ao poder legislativo supremo, toda a sedição para
transformar em violência o descontentamento dos súditos, toda a
revolta que desemboca na rebelião, é num corpo comum o crime mais
grave e mais punível, porque arruína o seu próprio fundamento (TP,
A 254-255, p. 85-86).

Essa passagem demonstra que, para Kant, é de grande rele-


vância o cumprimento da legislação positiva, isso para a própria
condição da possibilidade da manutenção/existência do Estado.
Na mesma direção, Kant enfatiza que:
[...] nenhuma coação se deve exercer por parte do povo contra o soberano,
porque então o próprio povo seria o soberano supremo; por conseguinte,
o povo não dispõe de nenhum direito de constrangimento (de resistência
em palavras ou em atos) a respeito do chefe de Estado (TP, A 262, p. 89).

Nesse e em outros aspectos, fica evidenciado que Kant pen-


sou de acordo com a sua época, ficando, nessa ocasião, com o pa-
pel de narrador dos acontecimentos e das ideologias do século
XVIII, mas sem deixar de demonstrar certo entusiasmo com a
Revolução Francesa. Pode-se dizer que, segundo ele, essa revo-
lução consistiu em um primeiro passo para o esclarecimento da
humanidade.6
No escrito Resposta à pergunta: que é esclarecimento, de
1784, Kant escreve que:

6
Segundo Domenico Losurdo, “[...] a admiração de Kant pela Revolução Francesa é
explicitamente reconhecida em todo o seu alcance, mas igualmente, através de uma
operação sutilmente mistificadora, essa admiração fica despojada de qualquer au-
têntico significado político” (2015, p. 27-28). O comentador é levado a essa afirma-
ção pelo fato de que Kant, em certo sentido, nega o direito de resistência. Contudo,
ele mostra-se um democrata que defende a resistência do povo ao soberano.
Édison Martinho da Silva Difante, Felipe Favaretto

87
[...] [s]e for feita então a pergunta: ‘vivemos agora em uma época escla-
recida [aufgeklärten]’?, a resposta será: ‘não, vivemos em uma época de
esclarecimento [Aufklärung]’. Falta ainda muito para que os homens,
nas condições atuais, tomados em conjunto, estejam já numa situação,
ou possam ser colocados nela, [...]. Somente temos claros indícios de
que agora lhes foi aberto o campo no qual podem lançar-se livremente
a trabalhar e tornarem progressivamente menores os obstáculos ao
esclarecimento [Aufklärung] geral ou a saída deles, homens, de sua
menoridade, da qual são culpados (WA, A 491, p. 69-70).

Antes disso, quando fala que a imensa maioria dos homens


considera a passagem à maioridade difícil e perigosa, Kant men-
ciona também o belo sexo, isto é, as mulheres, como fazendo par-
te da humanidade, de modo que elas também são chamadas a
sair de sua posição de menoridade (WA, A 482, p. 64). Nesse sen-
tido, vale dizer que ele é consciente quanto ao estado em que se
encontra a maior parte da humanidade, ao mesmo tempo em que
aponta para uma época vindoura.
Para Kant, a ideia de progresso moral da espécie humana é
o pano de fundo de toda a sua teoria da história. Nessa medida, é
necessário, primeiro, que o homem assuma um estado civil, pos-
teriormente em uma instituição de estado de direito e só então,
finalmente, pode ser possível a moralização da humanidade, ao
que parece, incluindo homens e mulheres, pobres e ricos.

As bases antropológicas presentes


na teoria do estado civil
A Antropologia de um ponto de vista pragmático, segundo
consta na Introdução à tradução brasileira, “foi escrita entre
1796 e 1797, mas a última versão, organizada pelo próprio Kant,
surgiu em 1798” (MARTINS, 2006, p. 11). A obra remete ao pe-
ríodo pré-crítico do pensamento kantiano, pois, no final da dé-
cada de 1760, Kant extrai de seu curso de metafísica um curso

A questão da cidadania passiva na doutrina do direito de Immanuel Kant: a narrativa de um contexto histórico

88
autônomo sobre antropologia,7 ministrado pela primeira vez no
semestre de inverno de 1772/1773 e em todos os subsequentes
semestres de inverno até 1796. Portanto, foi a partir de cursos
ministrados por Kant, em um período de mais de vinte anos, que
a Antropologia foi composta.
A Antropologia:
[...] revela-se independente da filosofia crítica, visto que na referência
direta ao real para mediar o conhecimento, Kant a apresentou como
uma Antropologia para a práxis da vida e para a “experiência comum”,
e por isso, ela pode ser entendida como uma teoria da práxis da vida
(MARTINS, 2006, p. 12).

Pelo próprio contexto do início dos cursos de antropologia,


a obra mencionada está muito ligada ao período pré-crítico kan-
tiano, mais precisamente à obra Observações sobre o sentimento
do belo e do sublime (1993), pois Kant utiliza-se basicamente da
mesma metodologia: o método empírico observacional. A partir
da “forma social, para a qual o homem deve se formar em inten-
ção pragmática, é a humanidade que se realizaria na sociedade
mundial civil, sendo esta um princípio regulativo dos fins huma-
nos” (MARTINS, 2006, p. 13). Pode-se dizer que a Antropologia
traz em si “uma articulação peculiar entre natureza, liberdade,
cultura e mundo” (TERRA, 2003, p. 165).8 A Antropologia foi ela-
borada em um período de mais de vinte anos, ou seja, foi escrita

7
A antropologia, tema das aulas ministradas em todos os semestres de inverno, rece-
beu de Kant diversas denominações: ciência empírica aplicada, ‘observação própria
da vida comum’, ‘viagem’ e ‘leitura de relatos de viagens’. Ele também considerou
como meios auxiliares da antropologia ‘a história mundial, as biografias e até peças
de teatro e romances’, assim como a ‘observação de que os homens realmente fazem
ou deixam de fazer’ (MARTINS, 2012, 145).
8
Na Antropologia de um ponto de vista pragmático, Kant trata, entre outros aspec-
tos, do conhecimento referente ao humano, isto é, do homem enquanto cidadão do
mundo. Segundo ele, “uma doutrina do conhecimento do ser humano sistematica-
mente composta (antropologia) pode ser tal do ponto de vista fisiológico ou pragmá-
tico” (Anth., 119, p. 21, grifo do autor). O conhecimento fisiológico do homem tende
à explicação de que ele é o que a natureza faz dele; o conhecimento pragmático é
referente ao homem enquanto ser de livre atividade, que faz ou pode fazer de si
mesmo o que quiser.
Édison Martinho da Silva Difante, Felipe Favaretto

89
no período em que floresceu a sua filosofia crítica. Contudo, é
um contrassenso básico “querer que a antropologia faça papel de
crítica” (TERRA, 2003, p. 173).
No que diz respeito especificamente à mulher, já que esse
texto foi escrito tendo por base a observação da sociedade e rela-
tos de viagens, certamente, Kant vai se manifestar a respeito das
mulheres de acordo com os padrões de sua época. Pela própria
metodologia empregada na investigação, não há como encontrar-
mos nela uma visão diferente:9
A mulher é declarada civilmente incapaz em qualquer idade; o marido
é seu curador natural. [...]. Pois ainda que no tocante à fala, a mulher
tenha pela natureza de seu sexo saliva o suficiente para defender a si
mesma e a seu marido diante de um tribunal (no que diz respeito àquilo
que lhes pertence), e, portanto, possa ser declarada literalmente mais
que capaz de falar por si própria, ainda assim as mulheres não defen-
dem pessoalmente os seus direitos, nem exercem por si mesmas seus
deveres cívico-estatais, mas somente mediante um responsável, assim
como tampouco convém a seu sexo ir à guerra, e essa menoridade legal
no que se refere ao debate público, a torna tanto mais poderosa no que
se refere ao bem-estar doméstico: porque aqui entra o direito do mais
fraco, que o sexo masculino, já por sua natureza, se sente convocado a
defender (Anth., 209, p. 106-107, grifo do autor).

Essa assimetria entre homem e mulher, proclamada como


igualdade por Kant, consiste na maior desigualdade jurídica e
culmina em uma espécie de “tutela legal” da mulher (MARCIL,
1995, p. 572). Segundo essa interpretação, trata-se, portanto, de
um acordo com a natureza humana, de um domínio legítimo. To-
davia, a natureza confiou à mulher o seu penhor mais caro, a sa-
ber, tanto a reprodução quanto a conservação da espécie e, além
disso, instituiu a feminilidade para aprimoramento da cultura e
para o refinamento da humanidade, em última instância, para a
moralização.

9
“A antropologia não será, pois, história da cultura nem análise sucessiva de suas
formas, mas prática ao mesmo tempo imediata e imperativa de uma cultura com-
pletamente dada. Ela ensina o homem a reconhecer em sua própria cultura a escola
do mundo” (FOUCAULT, 1961 apud TERRA, 2003, p. 165).
A questão da cidadania passiva na doutrina do direito de Immanuel Kant: a narrativa de um contexto histórico

90
Nos assuntos externos, a mulher é inferiorizada. Já no que
diz respeito aos assuntos domésticos, Kant diz que os homens,
mais precisamente os doutos, “gostam de ser mantidos no estado
de menoridade por suas mulheres” (Anth., 210, p. 107). A meno-
ridade feminina “trata-se de uma ‘menoridade legal no que se
refere ao debate público’; no lar isso não se coloca, lá sua posição
é de um ser poderoso” (MARTINS, 2005, p. 64).
Com certeza, Kant fala da mulher com base no pensamento
corrente do século XVIII. Ainda no que se refere à fragilidade e
à delicadeza das mulheres, Kant afirma que “[...] a mulher não
ficaria satisfeita se o sexo masculino não parecesse prestar ho-
menagem aos seus encantos” (Anth., 152, p. 51). Nesse sentido,
continua afirmando que a mulher, de certo modo:
[...] no que diz respeito à arte de dominar mediatamente, [...] por meio
do amor que infunde ao masculino, a fim de usá-lo para seus propósitos,
ela não [...] comporta violência alguma, mas sabe dominar e cativar o
seu súdito por meio da própria inclinação deste. – Não que a parte femi-
nina de nossa espécie esteja livre da inclinação a dominar a masculina
(justamente o contrário é verdade), e sim porque não se serve, para esse
fim, do mesmo meio que a parte masculina, a saber, da prerrogativa
da força (que é entendida aqui pela palavra dominar), mas do atrativo
contido na inclinação que a outra parte tem de ser dominada (Anth.,
273, p. 171, grifo do autor).

O pano de fundo principal utilizado por Kant em sua expo-


sição sobre as mulheres na Antropologia é o seguinte:
[...] em todas as máquinas que devem produzir com menos força o
mesmo tanto que outras produzem com força maior, é preciso pôr arte
. Pode-se, por isso, admitir de antemão que a providência da natureza
terá colocado mais arte na organização da parte feminina que na da
masculina, porque, não apenas para juntar os dois na mais estreita
união física, mas também, como seres racionais, para o fim que mais
interessa a ela mesma, a saber, a conservação da espécie, ela dotou o
homem de mais força que a mulher e os muniu, além disso, naquela
qualidade (de animais racionais), de inclinações sociais para manter
duradouramente sua comunidade sexual numa união doméstica (Anth.,
303, p. 198, grifo do autor).

Édison Martinho da Silva Difante, Felipe Favaretto

91
Kant também deixa claro que, em qualquer relação, sem-
pre uma parte deve estar submetida à outra. Isso se segue da
instituição do estado civil. Em pelo menos algum aspecto, uma
parte deve ser superior para dominar e governar. Com esse dis-
curso temos que “considerar que o pensamento kantiano acerca
da natureza humana não só reflete uma aceitação irrestrita da
sociedade patriarcal quanto à concepção de menoridade [legal] do
gênero feminino” (MARTINS, 2005, p. 63).
No progresso da civilização, cada uma das partes tem que ser superior
de maneira heterogênea: o homem tem de ser superior à mulher por sua
capacidade física e sua coragem, mas a mulher, por seu dom natural de
dominar a inclinação do homem por ela; [...]. Por isso, na antropologia
a especificidade da mulher é um objeto de estudo [...], mais que a do
sexo masculino (Anth., 303, p. 199, grifo do autor).

Essas qualidades ou características femininas não foram


criadas pelo estado civil, pelo menos é isso que Kant nos faz com-
preender. Contudo, o mundo civilizado somente as desenvolveu
ou ajudou no processo de torná-las mais conhecidas ou evidentes
(DIFANTE; CASSOL; BORGES, 2014, p. 188).
As características do sexo feminino podem ser mais bem
compreendidas com base em uma ideia de plano secreto da na-
tureza:
Só se pode chegar à característica desse sexo utilizando como princípio
não aquilo que tomamos por nosso fim, mas aquilo que era o fim da
natureza na instituição da feminilidade, e uma vez que, mesmo por
intermédio da tolice dos homens, e no entanto conforme o propósito
natural, tal fim tem de ser sabedoria, esses seus supostos fins podem
servir também para indicar o princípio dela, que não depende de nossa
escolha, mas de um propósito superior que ela tem para com o gênero
humano. São eles: 1. A conservação da espécie, 2. A cultura e o refina-
mento da sociedade por meio da feminilidade (Anth., 305-306, p. 201,
grifo do autor).

Ora baseado no pensamento cristão, ora por uma suposta


designação da natureza, na Antropologia, Kant reforça aquilo

A questão da cidadania passiva na doutrina do direito de Immanuel Kant: a narrativa de um contexto histórico

92
que havia sido exposto nas Observações. Segundo consta no es-
crito pré-crítico:
[...] [o] estudo laborioso ou a especulação penosa, mesmo que uma mulher
nisso se destaque, sufocam os traços que são próprios a seu sexo. [...]. A
uma mulher que tenha a cabeça entulhada de grego, [...], ou que trave
disputas profundas sobre mecânica [...] só pode mesmo faltar uma barba,
pois com esta talvez consigam exprimir melhor o ar de profundidade a
que aspiram (Beobach., 51-52, p. 49).

Na Antropologia, o discurso é praticamente o mesmo. Kant


afirma que as mulheres “necessitam de seus livros como de seu
relógio, a saber, elas o portam a fim de que se veja que possuem
um, ainda que geralmente esteja parado ou não tenha sido acer-
tado” (Anth., 307, p. 203, grifo do autor).
Embora a passagem supracitada carregue em si uma ima-
gem depreciativa, Kant atribui uma nobre função ao sexo femini-
no, pragmática, por assim dizer: “O sexo feminino tem de aprimo-
rar e disciplinar a si mesmo naquilo que diz respeito ao prático; o
masculino não sabe fazê-lo” (Anth., 308, p. 203). Mesmo com essa
série de declarações preconceituosas e machistas, Kant menciona
que a mulher não significa “mero meio de satisfação da inclina-
ção do outro sexo” (Anth., 309, p. 204).
Sem dúvida, visto que a mulher deve ser rainha do lar e
o homem aquele que se ocupa com os afazeres externos à vida
doméstica, Kant é taxativo ao dizer que “a mulher deve dominar
e o homem governar; pois a inclinação domina e o entendimento
governa” (Anth., 209, p. 205, grifo do autor). Seguindo esse pen-
samento patriarcal, reflexo do período em que viveu, Kant acres-
centa mais uma vez que a natureza dotou o ser humano, incluso
o sexo feminino, “de dispositivos em vista de seu fim, o qual não
é nada menos que a conservação da espécie” (Anth., 310, p. 205).
Para a consecução desse plano último da natureza, há que se
sair do estado de natureza e adentrar no estado civil. Com isso, a
mulher precisaria ser atraente e bela, diferentemente do estado

Édison Martinho da Silva Difante, Felipe Favaretto

93
de natureza, ao passo que o homem deveria ser forte e viril, para
protegê-la.10 Ao homem, no estado civilizado, caberia também um
ofício “para iniciar uma vida familiar com uma mulher” (Anth.,
325, p. 219).

A dominação na sociedade doméstica


Após essa breve caracterização antropológica, que serve
de base para o desenvolvimento de uma teorização da socieda-
de, passa-se ao primeiro aspecto da cidadania passiva, a saber, a
questão referente ao sexo feminino, que é claramente exposta na
Metafísica dos costumes, de 1798, mais precisamente na Doutri-
na do direito. Parece contraditório ao filósofo do esclarecimento,
ao falar na perspectiva do direito pessoal, que esse direito:
[...] é aquele da posse de um objeto externo, como uma coisa e do seu uso
como uma pessoa. O que é meu ou teu em termos deste direito é o que é
meu ou teu domesticamente, e a relação das pessoas na relação doméstica
é a de uma comunidade de seres livres que formam uma sociedade de
membros de um todo chamado de lar (composto por pessoas que per-
manecem em comunidade entre si) sob influência mútua. [...]. Do ponto
de vista do objeto, a aquisição de acordo com esse princípio apresenta
três tipos: um homem adquire uma mulher; um casal adquire filhos e
uma família adquire criados. Tudo o que é adquirido desta maneira é
também inalienável e o direito dos possuidores desses objetos é o mais
pessoal de todos os direitos (MS, AB 105-106, p. 121, grifo do autor).

Surge, então, na Doutrina do direito, uma teoria do direito


na sociedade doméstica, ou seja, o direito na composição familiar.
Restringir-se-á, nesta seção, unicamente a alguns pontos, toman-
do por referência a situação da mulher nessa sociedade. Posta a

10
Ora, isso é reflexo de uma época e, mais ainda, essa forma de conceber as mulheres
perdura até hoje em muito da nossa sociedade, só que de um modo camuflado. Em
poucas palavras, quando se fala em tratamento diferenciado a senhoras ou a mu-
lheres em geral, isso nada mais reflete, mesmo nos dias atuais, do que a “proteção
à parte mais frágil”, e reside justamente no caráter do masculino o “poder dar essa
proteção” (Anth., 263, p. 161). Mesmo colocando de um modo abrupto, Kant mos-
tra-se atual (para seu tempo), ele simplesmente relata o convívio social de homens
e mulheres (DIFANTE; CASSOL; BORGES, 2014, p. 186).
A questão da cidadania passiva na doutrina do direito de Immanuel Kant: a narrativa de um contexto histórico

94
necessidade do contrato (do estado de direito), ou seja, a necessi-
dade de um estado civil de direito, para que a partir desse ponto
a humanidade alcance o seu fim derradeiro, que nada mais é do
que a moralização, deve haver também um contrato matrimonial.
No dizer de Kuno Fischer, não seria “possível pensar nada mais
prosaico, vulgar, comum e, no sentir de alguns homens, mais prá-
tico sobre o matrimônio que o que pensava Kant, quem carecia
por completo de sentido para compreender a sua parte poética e
sentimental” (FISCHER, 1883, p. 52-53).
Veja-se a seguinte passagem do próprio Kant:
Mesmo que se suponha que a finalidade dos que se casam seja o prazer
de usar mutuamente seus atributos sexuais, o contrato de casamento
não lhes é opcional, sendo sim um contrato necessário por força da lei
da humanidade, ou seja, se um homem e uma mulher desejam gozar os
mútuos atributos sexuais, devem necessariamente casar e isto é necessá-
rio de acordo com leis de direito da razão pura (MS, AB 107-108, p. 122).

Esse contrato, segundo o texto kantiano, implica “uma re-


lação de igualdade de posse, igualdade tanto na sua posse recí-
proca como pessoas [...] quanto também igualdade na sua posse
de bens materiais [...], daí somente na monogamia” (MS, AB 109,
p. 123, grifo do autor). Tanto as razões quanto a necessidade do
casamento monogâmico são óbvias, visto ser um contrato, o que
assegura a cada um dos cônjuges envolvidos a posse do outro (o
cônjuge). No caso da poligamia, sempre alguma parte, no caso
um dos membros do casamento, será desfavorecida, visto ceder
a si mesmo e receber apenas uma parte da outra pessoa, assim
se convertendo em mera coisa. Em Lições de ética, Kant explica:
Aprofundando um pouco mais [...] concluiremos que não se podem ter
duas mulheres nem sequer no matrimônio, já que a cada mulher lhe
corresponderia só a metade do homem a quem se entregou totalmente,
enquanto que este tem direito sobre toda sua pessoa (VE, 389, p. 208).

Além disso, como é atestado na Doutrina do direito:

Édison Martinho da Silva Difante, Felipe Favaretto

95
A aquisição de uma esposa ou de um marido, assim, não ocorre nem
via facto (através da relação) sem um contrato que o preceda, nem via
pacto (através de um mero contrato de casamento sem a relação sexual
que o suceda), mas via lege, ou seja, como a consequência jurídica da
obrigação de não se envolver na união sexual, exceto através da posse
recíproca das pessoas, que é realizada somente através do uso mútuo
de seus atributos sexuais (MS, AB 111, p. 124, grifo do autor).

Ao menos nesse aspecto, pode ser percebida certa relação


de igualdade. Vale frisar que Kant fala em mulher adquirir um
marido, ou seja, não é somente o homem que adquire uma mu-
lher. Segue-se que Kant ora coloca homem e mulher em relação
de igualdade e, em outros momentos, principalmente no que diz
respeito à vida social, fora de casa, coloca a mulher em uma enor-
me desvantagem.
Para concluir a exposição referente à representação da
mulher na filosofia política de Kant, seria pertinente apresen-
tar uma passagem da Doutrina da virtude, embora a referência
principal tenha sido a Doutrina do direito. A doutrina do direito
em Kant deve ter por fundamento uma doutrina moral, embora
ambas sejam coisas distintas. No dizer de Kant:
Há impulsos na natureza que tangem à animalidade do ser humano.
Através deles a natureza visa: a) a preservação do indivíduo humano,
b) a preservação da espécie e c) a preservação da capacidade do indiví-
duo humano de desfrutar a vida, a despeito de ainda apenas ao nível
animal. Os vícios que aqui se opõem a esse dever para consigo mesmo
são o suicídio, o uso não natural de sua inclinação sexual e o consumo
excessivo de alimento e bebida, a ponto de debilitar sua capacidade de
fazer um uso proveitoso de seus poderes (MS, A 68, p. 62, grifo do autor).

Nesse sentido é colocada a necessidade do contrato matri-


monial, isto é, do estado civil de direito, pois é somente com isso
que as inclinações e os impulsos “animais” podem ser controlados
devidamente.
Pode-se dizer que o fazer uso de uma pessoa como uma coi-
sa, como um meio para o meu ou seu próprio fim, ainda assim não

A questão da cidadania passiva na doutrina do direito de Immanuel Kant: a narrativa de um contexto histórico

96
infringe a sua personalidade, no que diz respeito ao uso recíproco
dos órgãos sexuais:
Mas este fim, como a condição sob a qual tal uso é legítimo, tem que ser
moralmente necessário. Um homem não pode desejar uma mulher a fim
de a gozar como uma coisa, ou seja, a fim de obter imediata satisfação
numa relação meramente animal com ela, nem pode uma mulher entre-
gar-se a ele para isso, sem que ambos renunciem às suas personalidades
(na coabitação carnal ou bestial), isto é, isso pode ser feito somente sob a
condição do casamento. Visto que o casamento é uma entrega recíproca
da própria pessoa à posse da outra, é mister que seja primeiramente
concluído para que nem uma nem outra seja desumanizada através do
uso corporal que uma faz da outra (MS, B 165, p. 202, grifo do autor).

De modo semelhante àquilo que é exposto na Antropologia,


em resumo, poderíamos dizer que Kant, na Metafísica dos costu-
mes, trabalha também pautado por uma ideia de designação da
natureza, segundo a qual o homem é superior física e intelectual-
mente à mulher. A mulher é declarada igual somente no âmbito
do casamento, no que diz respeito à coabitação dos sexos, que
tem por meta unicamente a “procriação, isto é, a preservação da
espécie” (MS, A 78, p. 268).

A concepção kantiana de
cidadania passiva
Na segunda parte da Doutrina do direito, quando Kant
trata do direito público, mais precisamente na Seção I, intitula-
da Direito do Estado, é introduzida a ideia de cidadão. “A única
qualificação para ser cidadão é estar apto a votar” (MS, B 196,
p. 156). Aqui, encontra-se uma questão intrigante, pois estar
apto a votar implica a independência de alguém que, além de
ser membro do povo, deseja ser não apenas uma parte da coisa
pública. Contudo, é difícil pensarmos em independência quando
Kant declara a existência de duas classes de cidadãos no Estado:
os ativos e os passivos. O próprio Kant tem consciência de que
Édison Martinho da Silva Difante, Felipe Favaretto

97
“o conceito de cidadão passivo pareça contradizer o conceito de
cidadão em geral” (MS, B 196, p. 157).
Para um melhor esclarecimento da questão, é conveniente
trazer uma passagem do opúsculo, de 1793, Sobre a expressão
corrente: isto pode ser válido na teoria, mas nada vale na práti-
ca:11
Ora, quem tem o direito de voto nesta legislação chama-se um cidadão
(citoyen), isto é, cidadão do Estado (Staatsbürger), e não cidadão da
cidade (bourgeois). A única qualidade que para tal se exige, além da qua-
lidade natural (de não ser nem criança nem mulher), é ser o seu próprio
senhor (sui iuris), por conseguinte, é possuir alguma propriedade (a que
se pode juntar também toda a habilidade, ofício, ou talento artístico,
ou ciência) que lhe faculte o sustento (TP, A 245, p. 80, grifo do autor).

Seguindo o texto kantiano da Doutrina do direito, da cida-


dania estão excluídos:
[...] um aprendiz no serviço de um mercador ou artesão, um criado
doméstico (distinto de alguém a serviço do Estado), [...], um menor
(naturalitervelciviliter), todas as mulheres e, em geral, qualquer um
cuja preservação existencial (sustento e proteção) depende não da ad-
ministração de seus próprios negócios, mas das providências de outrem
(exceto o Estado). A todas estas pessoas falta personalidade civil, e suas
existências são, por assim dizer, tão-só inerências (MS, B 197, p. 157).

Da mesma forma, o lenhador, o ferreiro, o professor parti-


cular “são meros serventes da coisa pública porque têm que es-
tar sob a direção ou amparo de outros indivíduos e, assim, não
dispõem de independência civil” (MS, B 197, p. 157). Isso é mais
bem esclarecido à medida que se retoma o assunto a partir do
texto Sobre a expressão corrente: isto pode ser válido na teoria,
mas nada vale na prática. No momento em que se fala de in-
dependência, surge a questão do ordenamento social com suas
desigualdades. Segundo a exposição de Kant:

11
Praticamente a mesma passagem é retomada por Kant, anos mais tarde, em Meta-
física dos costumes.
A questão da cidadania passiva na doutrina do direito de Immanuel Kant: a narrativa de um contexto histórico

98
[...] [a] igualdade universal dos homens num Estado, como seus súditos,
é totalmente compatível com a maior desigualdade na qualidade ou nos
graus da sua propriedade, quer na superioridade física ou intelectual
sobre os outros ou em bens de fortuna que lhe são exteriores e em di-
reitos em geral (de que pode haver muitos) em relação aos outros; de
maneira que o bem-estar de um depende muito da vontade do outro
(o do pobre depende da do rico), um deve obedecer (como a criança aos
pais, ou a mulher ao homem) e o outro dá-lhe ordens, um serve (como
jornaleiro), o outro paga (TP, A 238, p. 76-77).

Segue-se que a existência dessa hierarquia dita ou pressu-


põe o ordenamento social. Kant não é o responsável por isso, ele
é, por assim dizer, apenas um porta-voz de sua época. Cidadãos
são aqueles que se mantêm a partir de sua própria profissão e
seus bens, e isso não foge aos padrões da sociedade europeia do
século XVIII; praticamente todas as mulheres estariam excluí-
das dessa condição, assim como todos aqueles menos abastados
financeiramente. Ainda, a independência (sibisufficientia) de um
membro da sociedade se dá à medida que ele pode ser considera-
do colegislador.
Relativamente ao ponto da própria legislação, todos os que são livres
e iguais sob leis públicas já existentes não devem considerar-se como
iguais no tocante ao direito de dar estas leis. Os que não são capazes
deste direito estão, no entanto, enquanto membros do corpo comum,
obrigados à observância de tais leis e, por isso mesmo, participam na
proteção que elas garantem; só que não é como cidadãos, mas como
protegidos (TP, A 244, p. 80, grifo do autor).

Sob um olhar retrospectivo quanto a essa questão, pode-


-se dizer que Kant é apenas um interlocutor instrutivo em ter-
mos históricos. Herdeiro de Rousseau, mas também de Thomas
Hobbes e de John Locke, Kant pertence “àquilo que comumente se
designa como tradição contratualista” (ALVES, 2010, p. 207-208,
grifo do autor). Nessa medida, ele pode ser colocado como um tri-
butário de sua época, que não é responsável pela caracterização
e pela condição da mulher, nem pelo modelo de sociedade de seu
tempo.

Édison Martinho da Silva Difante, Felipe Favaretto

99
Considerações finais
Mesmo que brevemente, esta exposição buscou mostrar
um pouco do pensamento kantiano em relação à cidadania. Com
efeito, e isso não representa uma defesa, mas uma tentativa de
leitura contextualizada, poder-se-ia dizer que o modo como Kant
aborda a questão da cidadania nada mais representa do que o
reflexo do contexto histórico em que ele está inserido. Equivocada
seria a tentativa de interpretar Kant e sua doutrina como algo
independente de sua época, isto é, de acordo com os parâmetros
atuais, mesmo com a certeza de que ainda hoje vigora uma hie-
rarquia baseada na desigualdade e na dominação.

Referências
ALVES, Pedro M. S. Kant e o feminismo. In: FERREIRA, Maria L. R. O
que os filósofos pensam sobre as mulheres. São Leopoldo: Unisinos, 2010.
p. 203-223.
COMPARATO, Fábio Konder. A afirmação histórica dos direitos humanos.
7. ed. São Paulo: Saraiva, 2010.
DIFANTE, Édison M. da S.; CASSOL, Francielle M.; BORGES, José F. M.
Sobre a pseudo-representação da mulher nas Observações e na Antropologia
de Immanuel Kant. In: PICHLER, Nadir A.; GUIMARÃES, Willian. Filoso-
fia, homoafetividade e mulheres: questões emergentes. Passo Fundo: Méri-
tos, 2014. p. 171-192.
FISCHER, Kuno. Vida de Kant. In: KANT, Immanuel. Crítica da razão
pura. Tradução de José Del Perojo. Madrid: [s. n.], 1883. p. 1-55.
FONSECA, Thiago S. Kant e a Revolução Francesa: direito de resistência e
entusiasmo. 2010. Monografia (Graduação em Filosofia) – Departamento de
Filosofia, Universidade Federal da Bahia, Salvador, 2010.
HOBSBAWM, Eric, J. A Revolução Francesa. Tradução de Maria Tereza Lo-
pes Teixeira e Marcos Penchel. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1996.
KANT, Immanuel. A metafísica dos costumes. Tradução de Édson Bini. Bau-
ru: Edipro, 2003.
_______. A religião nos limites da simples razão. Tradução de Artur Morão.
Lisboa: Edições 70, 1992.

A questão da cidadania passiva na doutrina do direito de Immanuel Kant: a narrativa de um contexto histórico

100
_______. Antropologia de um ponto de vista pragmático. Tradução de Clélia
Aparecida Martins. São Paulo: Iluminuras, 2006.
_______. Lecciones de ética. Tradução de Roberto R. Aramayo y Concha R.
Panadero. Barcelona: Crítica, 2002.
_______. Observações sobre o sentimento do belo e do sublime. Tradução de
Vinícius de Figueiredo. Campinas: Papirus, 1993.
_______. Resposta à pergunta: que é ‘esclarecimento’? (Aufklärung). In:
_______. Textos seletos. Tradução de Floriano de Souza Fernandes. 7. ed.
Petrópolis: Vozes, 2011. p. 63-71.
_______. Sobre a expressão corrente: isto pode ser válido na teoria, mas nada
vale na prática. In: _______. À paz perpétua e outros opúsculos. Tradução de
Artur Morão. Lisboa: Edições 70, 1988. p. 57-102.
_______. Werke in Zwölf Bänden. Herausgegeben von Wilhelm Weischedel.
Frankfurt amMain: Suhrkamp, 1968.
LOSURDO, Domenico. Autocensura e compromisso no pensamento político
de Kant. Tradução de Ephrain Ferreira Alves. São Paulo: Ideias & Letras,
2015.
MARCIL, Louise. Possessionoumenon et réciprocité. Kant et la femme dans
la Métaphysique des Moeurs. In: INTERNATIONAL KANT CONGRESS, 8,
1995, Memphis. Proceedings... Memphis: 1995. p. 567-576. v. 2.
MARTINS, Clélia A. A antropologia kantiana e a antropologia de um ponto
de vista pragmático. In: SANTOS, Robinson dos; CHAGAS, Flávia C. (Org.).
Moral e antropologia em Kant. Passo Fundo: Ifibe; Pelotas: UFPel, 2012.
p. 145-164.
_______. A natureza humana na Antropologia. In: BORGES, Maria de L.;
HECK, José (Org.). Kant: liberdade e natureza. Florianópolis: UFSC, 2005.
p. 51-70.
_____. Introdução à Antropologia. In: KANT, Immanuel. Antropologia de
um ponto de vista pragmático. Tradução de Clélia Aparecida Martins. São
Paulo: Iluminuras, 2006. p. 11-17.
RODRIGUES, M. E. F. Os paradigmas da ciência e seus efeitos na composi-
ção dos campos científicos: a instituição da ciência da informação. DataGra-
maZero, Rio de Janeiro, v. 11, p. 1-20, 2010. Disponível em: <http://dgz.org.
br/ago10/Art_02.htm>. Acesso em: 3 jun. 2015.
TERRA, Ricardo. Passagens: estudos sobre a filosofia de Kant. Rio de Janei-
ro: UFRJ, 2003.
VOVELLE, Michel. A Revolução Francesa explicada à minha neta. Tradu-
ção de Fernando Santos. São Paulo: Unesp, 2007.

Édison Martinho da Silva Difante, Felipe Favaretto

101
Os instrumentos e mecanismos
nacionais de proteção de
minorias na sociedade
contemporânea multicultural e
o papel da revisão
periódica universal

Gabriela Werner Oliveira*


Isabela Bohnen**

Introdução
A multiculturalidade é uma das características mais mar-
cantes das sociedades contemporâneas, ensejando um grande
desafio a ser superado pelos Estados: encontrar o ponto ótimo
de equilíbrio entre o respeito e a proteção às diferenças e a pre-
servação da unidade/integridade nacional. Esse desafio é ainda
mais acentuado ao se levar em consideração o fato de que o de-
senvolvimento dos Estados não ocorreu de maneira uniforme, o
que leva a diferenças significativas na escolha de políticas públi-
cas internas e acirra o debate na arena internacional. Aliada a

*
Doutoranda em Direito na Universidade de São Paulo. Mestre em Direito pela Uni-
versidade Federal de Santa Catarina. Professora na Faculdade de Direito da Univer-
sidade de Passo Fundo. Advogada. E-mail: wogabriela@gmail.com
**
Graduanda em Direito na Universidade de Passo Fundo. Estudante pesquisado-
ra do projeto Reconhecimento e Tolerância em Sociedades Multiculturais, bolsista
CNPq. E-mail: isa.bohnen@hotmail.com
essa questão, encontra-se outra, de natureza subjetiva: o medo
por parte da população dos Estados sobre o que vem do exterior
de suas fronteiras e pode representar uma ameaça, seja de qual
tipo for, em potencial.
Nessa perspectiva, o objetivo do presente artigo é analisar
os instrumentos e mecanismos nacionais para a proteção de mi-
norias bem como o papel da Revisão Periódica Universal na me-
lhoria e fiscalização da situação dos direitos humanos no Brasil.
Assim, faz-se necessário, primeiramente, tecer breves considera-
ções acerca da multiculturalidade na sociedade contemporânea
de modo a contextualizar a temática central do trabalho. Ressal-
ta-se o papel da tolerância para uma convivência harmoniosa e
para o reconhecimento do outro enquanto sujeito de direito, me-
recedor da mesma tutela jurídica.
Por sua vez, o segundo tópico é destinado a aspectos fun-
damentais acerca das minorias. Para tanto, inicia-se com as pri-
meiras manifestações de proteção das minorias, passando pelo
sistema da Liga das Nações até a atual proteção conferida pela
Organização das Nações Unidas (ONU). Discorre-se acerca das
dificuldades conceituais, sobre as espécies de minorias e, igual-
mente, sobre o conceito emergente de grupos vulneráveis, com
vistas a propiciar visão geral do tema.
Por fim, trata-se sobre os principais mecanismos governa-
mentais nacionais de proteção das minorias assim como, no to-
cante à esfera internacional, sobre a Revisão Periódica Universal
do Conselho de Direitos Humanos da ONU e sua função de com-
plementação aos mecanismos já existentes.1 Sob esse viés, faz-se
uma análise dos dois ciclos de revisão do Brasil e da importância

1
Por certo, não se ignora a importância dos demais instrumentos internacionais uni-
versais, bem como dos instrumentos e mecanismos regionais, com destaque especial
para as cortes regionais de direitos humanos. Contudo, em razão da amplitude e
complexidade do tema, fez-se um recorte necessário para não tornar a análise por
demasiado superficial.
Gabriela Werner Oliveira, Isabela Bohnen

103
que esse mecanismo representa para a proteção dos direitos hu-
manos, incluídas aqui as minorias.

Reflexões acerca das sociedades


multiculturais contemporâneas
O termo multiculturalismo é objeto de acirrados debates in-
telectuais e não encontra consenso em sua definição. Assim, faz-
-se necessário esclarecer que ao se utilizar a expressão sociedade
multicultural, no presente trabalho, não se pretende adentrar no
mérito das correntes culturalistas. Objetiva-se tão somente con-
textualizar a conjuntura pós-moderna vivenciada pela sociedade,
na qual coexistem culturas – ou civilizações, conforme defendido
por Onuma (1997) – diversas, com características étnicas, lin-
guísticas e/ou religiosas peculiares.
Diante disso, as diferenças tornam-se visíveis e a possibili-
dade de conflitos acentua-se. Nesse contexto, não há como tratar
de multiculturalismo sem que haja a presença fundamental da
tolerância, visto que, para que sociedades multiculturais convi-
vam pacificamente, diante das diferenças, a base da relação am-
para-se no ato de tolerar o diverso. Segundo John Rawls (1997,
p. 235), é possível conceber um fenômeno chamado “tolerância
para com os intolerantes”, cuja fundamentação requer dos gru-
pos minoritários e excluídos da ordem social, fruto de uma into-
lerância alheia, que não revidem na forma de mais intolerância,
salvo no caso de ela ser necessária, como forma de proteção.
Entretanto, há que se observar o alerta feito por Bauman.
O sociólogo explica que o multiculturalismo é a prática defendida
pela teoria do pluralismo cultural, que não passa de uma teori-
zação do descaso para com a diferença. Para o autor, embora o
multiculturalismo seja “orientado pelo postulado da tolerância li-
beral, pela preocupação com o direito das comunidades à auto-a-

Os instrumentos e mecanismos nacionais de proteção de minorias na sociedade contemporânea multicultural e...

104
firmação e com o reconhecimento público de suas identidades por
escolha ou por herança”, atua como força conservadora, pela qual
são transformadas em diferenças culturais desigualdades que de
outro modo não seriam aceitas. Dessa forma, para que o reconhe-
cimento seja efetivo, é necessário que tenha como sustentáculo
a prática da redistribuição. Não há que se confundir, portanto, o
multiculturalismo com o multicomunitarismo2 (BAUMAN, 2003,
p. 97-98).
No que tange às divisões culturais, deve-se atentar ao fato
de que muitos modos são encarados como dominantes em detri-
mento de outros, o que acarreta na existência das chamadas mi-
norias, que serão analisadas no tópico a seguir. A questão primor-
dial referente aos indivíduos/grupos elencados como minorias
está na necessidade de procurarem a garantia de seus direitos.
Isso porque a não tolerância das maiorias para com os grupos
minoritários – ou entre os próprios grupos minoritários – pode
levar a um cenário de violação de direitos.
Nessa perspectiva de direitos humanos e de proteção de mi-
norias, faz-se premente tratar do acesso à justiça. Visto que a
exclusão de certos grupos minoritários não se dá simplesmente
no meio político e na vida cotidiana, mas também quando diz
respeito ao acesso à justiça, que deve ser revelado pelos aspectos
formal e substancial. Ou seja, mais do que estar explicitado no
rol das garantias constitucionais (art. 5º, XXXV, da Constituição
federal de 1988), necessita-se que haja efetivo acesso para que
todos possam recorrer aos seus direitos de forma igualitária, sem

2
Sobre o assunto, afirma Bauman (2003, p. 98): “Alain Touraine sugeriu que o ‘mul-
ticulturalismo’ como postulado de respeito pela liberdade de escolha entre uma va-
riedade de possibilidades culturais fosse separado de algo inteiramente diferente
(se não manifestamente, pelo menos em suas conseqüências): uma visão mais bem
chamada de multicomunitarismo. O primeiro pede respeito pelo direito de os indi-
víduos escolherem seus modos de vida e seus compromissos; o segundo supõe, ao
contrário, que o compromisso dos indivíduos é um caso encerrado, determinado
pelo pertencimento comunitário e portanto não passível de negociação. Confundir
as duas vertentes no credo culturalista é, porém, tão comum quanto equivocado e
politicamente perigoso”.
Gabriela Werner Oliveira, Isabela Bohnen

105
inferioridade a grupos vulneráveis, que emergem de uma socie-
dade marcada pelo multiculturalismo. De acordo com Cappelletti
e Garth:
A justiça, como outros bens, no sistema do laissez-faire, só podia ser
obtida por aqueles que pudessem enfrentar seus custos; aqueles que
não pudessem fazê-lo eram considerados os únicos responsáveis por
sua sorte. O acesso formal, mas não efetivo à justiça, correspondia à
igualdade, apenas forma, mas não efetiva (1998, p. 9).

Em função de uma garantia de proteção assegurada pelo


mencionado princípio, pode-se aferir que há uma tentativa de
preservação de garantias a todos, uma vez que o respeito ao mul-
ticulturalismo e a tolerância para com o “outro”, que pode ou não
possuir um estilo de vida cultural e socialmente distinto, acar-
retariam em uma aceitação das minorias sem que fossem exclu-
ídas e, até mesmo, ignoradas, não apenas no meio social, como
também no jurídico. Daí surge a questão do universalismo, isto
é, os direitos humanos fundamentais devem ser resguardados a
todos em um âmbito universal, visto que cada ser humano é, em
certa medida, absoluto, irredutível a outro e, portanto, infungível
(MADERS; AGELIN, 2014).
No entanto, as controvérsias que surgem dessa concepção
dizem respeito a correntes relativistas, que defendem que a pro-
teção de direitos fundamentais e inerentes ao ser humano em
cenário universal acaba por intervir no modo em que muitas
culturas espalhadas pelo mundo encaram esses direitos. Muitas
dessas culturas ferem direitos humanos, a maioria calcada em
defesas culturais e que, ao serem analisadas pelos universalis-
tas, deveriam, para que o resguardo dos direitos humanos fosse
efetivo, controlar e até mesmo cessar algumas dessas práticas
violadoras, independentemente de quais justificativas sejam da-
das (PIOVESAN, 2006, p. 12).

Os instrumentos e mecanismos nacionais de proteção de minorias na sociedade contemporânea multicultural e...

106
É certo que não podem ser ignoradas as críticas dirigidas
aos direitos humanos, de que teriam caráter essencialmente oci-
dental e seriam impostos pelas potências hegemônicas ao restan-
te do mundo, ignorando a diversidade cultural existente. Con-
tudo, acredita-se que é preciso ir além da visão maniqueísta de
universalismo/relativismo. O que se tem em pauta, justamente,
é a necessidade de, diante do mundo multiculturalista que se
desenvolveu, proteger grupos minoritários, que, assim como as
maiorias, possuem o direito de serem respeitados, considerados
e, inclusive, reconhecidos. Aqui, a base da tolerância é o reconhe-
cimento aliado à redistribuição a que se refere Bauman.
Na mesma linha, Onuma propõe uma perspectiva transci-
vilizacional para entender o mundo e aplicar o direito (interna-
cional). O autor utiliza a palavra civilização no mesmo sentido
de cultura, fazendo o alerta de que o termo deve ser entendido
enquanto noção funcional, a fim de evitar possíveis abusos ideo-
lógicos (1997, p. 30). De acordo com o autor, o mundo, no século
XXI, será multipolar e multicivilizacional, razão pela qual se faz
primordial o diálogo entre as civilizações, envolvendo sujeitos
estatais, organizações internacionais, organizações não governa-
mentais, empresas multinacionais e mídia. Destarte, há que se
encarar o mundo a partir de uma visão que supere aquela pura-
mente ocidental (ONUMA, 2010).
Embora, em termos teóricos, o que se sugere aqui possa pa-
recer simplório, na prática, sua concretização expõe os problemas
estruturais das sociedades contemporâneas e as relações que nela
se desenvolvem. Assim, torna-se imprescindível que os mecanis-
mos jurídicos sejam acionados de maneira a garantir os direitos
das minorias, temas que serão explorados nos tópicos seguintes.

Gabriela Werner Oliveira, Isabela Bohnen

107
Considerações gerais acerca da
proteção de minorias
A temática acerca das minorias religiosas inaugurou as tra-
tativas de proteção de minorias em âmbito internacional, fato que
teve reflexos no âmbito interno dos Estados. Isso porque o Tra-
tado de Augsburgo, de 1555, é tido como o primeiro documento
conhecido a registrar a proteção de minorias religiosas, sendo
seguido por outros tratados, como o Tratado de Osnabruque, de
1648. Com a Revolução Francesa e a Declaração dos Direitos do
Homem e do Cidadão, de 1789, tem-se o contexto histórico ideal
para que os preceitos de igualdade e tolerância religiosas fossem
amplamente reforçados (CASELLA, 2013, p. 182).
Não obstante, é no pós-Primeira Guerra Mundial que a
proteção de minorias ganha relevância, mais especificamente no
âmbito da Liga das Nações, que cria um verdadeiro sistema de
proteção. Tal sistema era baseado em tratados bilaterais, multi-
laterais e declarações unilaterais (ERMACORA, 1983, p. 258),
e foi alvo de inúmeras críticas.3 Ressalta-se que, nesse cenário,
além das minorias religiosas, as minorias de raça e de língua
também eram protegidas, o que representa mudança substancial
no contexto internacional. Além disso, protegia-se não somente
os indivíduos, mas as minorias enquanto coletividades, sendo
que a garantia do sistema cabia à Liga das Nações (CASELLA,
2013, p. 183).

3
Woodrow Wilson propôs que constasse no Pacto da Liga das Nações um sistema de
obrigações, por meio do qual se garantisse o tratamento igualitário para maiorias
e minorias, a ser cumprido por todos os Estados. Contudo, o Conselho Supremo
entendeu que seria melhor tratar a questão nos tratados de paz e acordos territo-
riais, caso a caso. Isso fez com que houvesse diferença entre as imposições feitas a
determinados Estados em detrimento de outros. Desse modo, Iugoslávia, Romênia
e Polônia foram forçadas a aceitar obrigações maiores do que, por exemplo, as gran-
des potências Alemanha e Itália, o que gerou protestos por parte daquelas (JONES,
1949, p. 604-605).
Os instrumentos e mecanismos nacionais de proteção de minorias na sociedade contemporânea multicultural e...

108
Entretanto, a instabilidade política marcante do período fez
com que se tornasse visível a falha da Liga das Nações na conse-
cução de seus objetivos. A Segunda Guerra Mundial evidenciou
ainda mais a necessidade de uma proteção efetiva às minorias,
tarefa essa que foi incumbida à Organização das Nações Unidas.
No seio desta, a proteção de minorias é tratada como temática
pertencente aos direitos humanos fundamentais, com abrangên-
cia universal, sem um sistema próprio (CASELLA, 2013, p. 184).
Nesse sentido, para que a ONU pudesse tratar a questão de
modo eficaz, era imprescindível que se chegasse a uma definição
para o termo “minoria”. A grande dificuldade estava em encon-
trar um conceito que fosse politicamente aceito pelos Estados,
para além da técnica científica. Face às tentativas malsucedidas,
essa problemática foi relegada à Subcomissão para a Prevenção
da Discriminação e a Proteção das Minorias (ERMACORA, 1983,
p. 269-271). A definição que seria mais amplamente adotada é
apresentada em 1977 pelo relator especial da Subcomissão sobre
Prevenção da Discriminação e Proteção de Minorias, Francesco
Capotorti, segundo o qual minoria seria:
Um grupo numericamente inferior ao restante da população do Esta-
do em uma posição não-dominante, cujos membros – sendo nacionais
do Estado – possuem características étnicas, religiosas ou linguísti-
cas diferentes daquelas do restante da população e mostram, mesmo
que implicitamente, um senso de solidariedade, dirigido a preservar
sua cultura, tradições, religião ou língua4 (UNITED NATIONS, 1979,
p. 96, tradução nossa).

Por conseguinte, depreende-se que a definição de minoria


é formada por elementos objetivos e subjetivos. Dentre os pri-
meiros, figuram: (1) a inferioridade numérica do grupo, que deve

4
“A group numerically inferior to the rest of the population of a State, in a non-do-
minant position, whose members – being nationals of the State – possess ethnic, re-
ligious or linguistic characteristics differing from those of the rest of the population
and show, if only implicitly, a sense of solidarity, directed towards preserving their
culture, traditions, religion or language.”
Gabriela Werner Oliveira, Isabela Bohnen

109
estar em (2) posição não dominante, (3) nacionais do Estado, com
(4) características étnicas, religiosas ou linguísticas diversas do
restante da população. Já os elementos subjetivos dizem respeito
ao senso de solidariedade, com vistas à preservação de suas ca-
racterísticas peculiares.
Já em 1992, a Assembleia Geral da ONU adota a Declaração
sobre os Direitos das Pessoas Pertencentes a Minorias Nacionais
ou Étnicas, Religiosas e Linguísticas. Esse documento específico
sobre a proteção de minorias, embora não preveja uma definição
do que seria “minoria”, indica, no bojo de seus artigos – e também
no próprio título da declaração –, três categorias de minorias: (1)
nacionais ou étnicas, (2) religiosas e (3) linguísticas.5 Tal provisão
vai ao encontro do artigo 276 do Pacto Internacional de Direitos
Civis e Políticos, de 1966. Mais recentemente, a doutrina e a prá-

5
Alguns autores, como Félix Ermacora, distinguem minorias nacionais, étnicas e ra-
ciais. Assim, de acordo com Ermacora (1983, p. 294-295): “(a) a religious minority in
the meaning of United Nations law may be considered as a group of persons who ma-
nifest (profess) religious thoughts which differ from a State religion; differs from the
religion manifested by the majority of a people, which is in opposition to an atheistic
behaviour of the majority of a population in particular if there is not complete fre-
edom of religious tolerance in a given country and if the members of the religious
group want to uphold their religion; (b) a racial minority in the meaning of United
Nations law is considered a group with its own history, its own culture, even with
its own language whose members are self-conscious about being members of such
groups and who differ from the majority of a population in particular by biological
factors; (c) a linguistic minority in the meaning of United Nations law maybe con-
sidered as a group whose persons use a language in writing and/or orally, in private
and in public which differs from the use of the language in a given territory and whi-
ch is not considered the national language; the aim of this group is directed towards
upholding and taking care of this language; (d) an ethnic minority in the meaning
of United Nations law maybe considered as a group with its own language, its own
culture and its own history which is self-conscious as a group and whose members
want to uphold its particularities; (e) a national minority – in spite of the fact that
governmental experts and also Capotorti have not found a definition which makes
a national minority different from an ethnic or a linguistic minority – is a group of
persons who besides the characteristics of an ethnic minority, have the will to exer-
cise as a group those rights which give minorities the possibility to take part in the
policy-decisions process within a given territory or even in the national context of a
State without being on an equal footing with other ethnics in this State”.
6
Artigo 27 - Nos Estados em que haja minorias étnicas, religiosas ou linguísticas, as
pessoas pertencentes a essas minorias não poderão ser privadas do direito de ter,
conjuntamente com outros membros de seu grupo, sua própria vida cultural, de
professar e praticar sua própria religião e usar sua própria língua.
Os instrumentos e mecanismos nacionais de proteção de minorias na sociedade contemporânea multicultural e...

110
tica construíram a ideia de minorias sexuais, como sendo aquela
baseada em orientação sexual e identidade de gênero, sem haver,
no entanto, previsão específica pela ONU. De fato, essa temática
ainda é incipiente nos trabalhos da organização.
Nessa perspectiva, é necessário mencionar que importante
conceito tem emergido na jurisprudência da Corte Europeia de
Direitos Humanos, o de grupos vulneráveis, podendo-se visuali-
zar três características principais para sua aplicação. A primeira
delas é a de que o conceito é relacional, ou seja, leva em conta as
circunstâncias sociais nas quais o indivíduo se insere, tais como
forças sociais, históricas e institucionais, que originam ou sus-
tentam a vulnerabilidade do grupo. A segunda característica é a
da particularidade, analisa-se o indivíduo enquanto membro de
um grupo que é vulnerável por circunstâncias determinadas. A
terceira característica é a existência de dano, cujos indicadores
são o preconceito e a estigmatização (PERONI; TIMMER, 2013,
p. 1063-1065).
Dessa maneira, é possível perceber que o conceito de gru-
pos vulneráveis é mais amplo do que o de minorias, permitindo
incluir grupos que não se enquadrariam nessa última definição,
tais como deficientes mentais, portadores de HIV, dentre outras
coletividades. A adoção de tal conceito pode ser salutar para com-
bater de modo mais eficiente a violação aos direitos humanos de
grupos que se encontram em situação de maior vulnerabilidade,
mas que não preenchem os requisitos para serem considerados
minorias. Assim, evita-se o esvaziamento desse conceito, que en-
frenta desafios consideráveis de respeito e efetivação. Sob essa
perspectiva, o próximo tópico trata acerca dos principais meca-
nismos nacionais de proteção de minorias bem como nos que se
referem à esfera internacional, dentro da Revisão Periódica Uni-
versal.

Gabriela Werner Oliveira, Isabela Bohnen

111
Os instrumentos e mecanismos
nacionais de proteção de minorias e a
Revisão Periódica Universal
Conforme visto no tópico precedente, a problemática em tor-
no da proteção de minorias ganhou proeminência após a Segun-
da Guerra Mundial. Não somente o direito internacional, mas,
igualmente, o direito interno dos Estados passou a prever nor-
mas de proteção e promoção dos direitos humanos das minorias.
Nessa perspectiva, o principal instrumento brasileiro que consa-
gra a proteção e os direitos das minorias é a Constituição federal
de 1988. Já no preâmbulo, a Carta Magna ressalta o objetivo da
instituição de “um Estado Democrático, destinado a assegurar o
exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segu-
rança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça
como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e
sem preconceitos” (BRASIL, 1988, p. XIX), disposição confirmada
no artigo 1º, inciso III, que preceitua a dignidade da pessoa hu-
mana como fundamento da República Federativa do Brasil.
Além disso, o artigo 3º, inciso IV, assinala como objetivo fun-
damental a promoção do bem de todos, “sem preconceito de origem,
raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação”.
E o artigo 4º, inciso VIII, elenca o repúdio ao racismo como um dos
princípios regentes do Brasil nas relações internacionais. Por sua
vez, o artigo 5º prevê que “todos são iguais perante a lei, sem dis-
tinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos es-
trangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à
liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade [...]” (BRASIL,
1988), e elenca importante rol de direitos e garantias individuais.7

7
Desse rol, destacam-se, entre outros, os incisos VI e VIII, conforme segue: “VI - é in-
violável a liberdade de consciência e de crença, sendo assegurado o livre exercício dos
cultos religiosos e garantida, na forma da lei, a proteção aos locais de culto e a suas
liturgias; [...] VIII - ninguém será privado de direitos por motivos de crença religiosa
ou de convicção filosófica ou política, salvo se as invocar para eximir-se de obrigação
legal a todos imposta e recusar-se a cumprir prestação alternativa, fixada em lei”.
Os instrumentos e mecanismos nacionais de proteção de minorias na sociedade contemporânea multicultural e...

112
Adiante, os artigos que tratam de minorias em seu aspecto
geral são fundamentalmente os de número 2158 e 2169, compre-
endidos no Título VIII (Da ordem social), Capítulo III (Da educa-
ção, da cultura e do desporto), Seção II (Da cultura).
Vê-se que, a exemplo da ONU, o Brasil não possui sistema
próprio de proteção de minorias, inserindo a questão, em nível
constitucional, de modo – quase sempre – genérico, no âmbito da
proteção dos direitos e garantias fundamentais. Nas palavras de
Costa:
É alentador que as conquistas do direito internacional em favor da
proteção do ser humano venham a projetar-se no direito constitucional,
enriquecendo-o, e demonstrando que a busca de proteção cada vez mais
eficaz da pessoa humana encontra guarida nas raízes do pensamento
tanto internacionalista quanto constitucionalista. [...]. A realidade,
porém, mostra que a violência contra a cidadania no País assume di-
mensões, formas e alcance nunca dantes verificadas. Por isso, superar a
distância entre o Brasil normativo – abstrato – e o Brasil real – concreto
– é o grande desafio que enfrenta a Nação (1996, p. 175).

Além das normas de proteção de minorias constantes na


Constituição federal de 1988, vigoram normas infraconstitucio-

8
“Art. 215. O Estado garantirá a todos o pleno exercício dos direitos culturais e aces-
so às fontes da cultura nacional, e apoiará e incentivará a valorização e a difusão das
manifestações culturais.
Parágrafo 1º: O Estado protegerá as manifestações das culturas populares, indíge-
nas e afro-brasileiras, e das de outros grupos participantes do processo civilizatório
nacional.
Parágrafo 2º: A lei disporá sobre a fixação de datas comemorativas de alta significa-
ção para os diferentes segmentos étnicos nacionais”.
9
“Art. 216. Constituem patrimônio cultural brasileiro os bens de natureza material
e imaterial, tomados individualmente ou em conjunto, portadores de referência à
identidade, à ação, à memória dos diferentes grupos formadores da sociedade brasi-
leira, nos quais se incluem:
I - as formas de expressão;
II - os modos de criar, fazer e viver;
III - as criações científicas, artísticas e tecnológicas;
IV - as obras, objetos, documentos, edificações e demais espaços destinados às mani-
festações artístico-culturais;
V - os conjuntos urbanos e sítios de valor histórico, paisagístico, artístico, arqueoló-
gico, paleontológico, ecológico e científico”.
Gabriela Werner Oliveira, Isabela Bohnen

113
nais de proteção. Cita-se, a título ilustrativo, a Lei nº 7.716/1989,10
que estabelece punições para crimes resultantes de discrimina-
ção ou preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência na-
cional, bem como a Lei 2.889/1956,11 que dispõe sobre a preven-
ção do genocídio e que também objetiva proteger coletivamente
etnias em seu direito à existência, o que implica tutelar não ape-
nas a vida, mas igualmente a subsistência e sua reprodução físi-
ca e cultural. Ressalva-se que a proteção aos índios é tratada de
modo específico no direito internacional, razão pela qual se optou
por não se abordar essa temática na legislação brasileira.
Desse modo, a partir das legislações constitucional e infra-
constitucional têm-se os fundamentos para a implementação de
políticas públicas inclusivas, visando à efetiva participação das
minorias na sociedade, de forma justa e igualitária, bem como
da possibilidade de recorrer aos mecanismos judiciais para a ga-
rantia ao respeito dos direitos e à devida reparação em caso de
violação.12

10
Em 1951, foi promulgada a Lei Afonso Arinos, que considerava crime a recusa de
atender clientes, fregueses ou estudantes em estabelecimento comercial hoteleiro
ou educacional, em razão de preconceito de raça ou de cor. Em 1989, foi promulgada
nova lei (Lei nº 7.716), que está em vigor até hoje, e que sofreu pequenas alterações
pela Lei nº 8.081, de 1990, e pela Lei nº 9.459, de 1997. São punidas as condutas de
impedir acesso a cargo público, negar emprego em empresa privada, recusar aluno
em escola pública ou privada, impedir acesso a transportes públicos, impedir ou
obstar por qualquer meio ou forma o casamento ou convivência social, tudo isso em
decorrência da discriminação ou preconceito em virtude das condições já citadas.
Também pune a incitação à discriminação ou preconceito, bem como a sua divulga-
ção nos meios de comunicação. Essa lei conta com 22 artigos dos quais quatro foram
vetados.
11
Lei 2.889/1956 (de prevenção ao genocídio):
“Art. 1º - Quem, com intenção de destruir no todo ou em parte, grupo nacional,
étnico, racial ou religioso, como tal:
a) Matar membros do grupo;
b) Causar lesão grave à integridade física ou mental de membros do grupo;
c) Submeter intencionalmente o grupo a condições de existência capazes de ocasio-
nar-lhe a destruição física total ou parcial;
d) Adotar medidas destinadas a impedir os nascimentos no seio do grupo;
e) Efetuar a transferência forçada de crianças de um grupo para outro grupo”.
12
Disponível em: <http://www.dhnet.org.br/dados/cursos/dh/br/pb/dhparaiba/5/mino-
rias.html>. Acesso em: 25 jan. 2016.
Os instrumentos e mecanismos nacionais de proteção de minorias na sociedade contemporânea multicultural e...

114
No que diz respeito à esfera internacional, o sistema onu-
siano ganha destaque em função da universalidade de seu alcan-
ce, inserindo a proteção de minorias na problemática mais ampla
dos direitos humanos. Nesse sentido, é possível identificar que
dentre as maiores preocupações da ONU estão a sobrevivência
e existência das minorias, a promoção e proteção da identidade
das minorias, a igualdade e não discriminação assim como a par-
ticipação efetiva e significativa das minorias na sociedade (UNI-
TED NATIONS, 2010, p. 7). Para tanto, diversos instrumentos13
e mecanismos14 foram criados com o intuito de assegurar que tais
objetivos sejam alcançados.
Para os fins do presente artigo, em razão da amplitude e
complexidade do tema, optou-se por focar no Conselho de Direitos
Humanos da ONU, mais precisamente no mecanismo da Revisão
Periódica Universal. Esse conselho foi instituído pela Resolução

13
Tais como: Convenção sobre a Prevenção e Punição do Crime de Genocídio; Declara-
ção sobre Minorias; Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos; Pacto Interna-
cional de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais; Comentário Geral nº 14 (2000)
do Comitê sobre Direitos Econômicos, Sociais e Culturais sobre o direito à obtenção
dos mais altos padrões de saúde; Convenção Internacional sobre a Eliminação de to-
das as Formas de Discriminação Racial; Convenção Contra a Tortura e Outros Tra-
tamentos ou Penas Cruéis, Desumanos ou Degradantes; Convenção internacional
para a proteção de todas as pessoas contra desaparecimentos forçados; Princípios
e Diretrizes Básicos sobre o Direito à Compensação e Reparação para Vítimas de
Graves Violações de Direitos Humanos Internacionais e Graves Violações de Di-
reito Internacional Humanitário; Convenção sobre discriminação da Organização
Internacional do Trabalho; Declaração sobre direitos e princípios fundamentais no
trabalho da UNESCO; Convenção sobre a proteção e promoção das expressões da
diversidade cultural; Convenção para salvaguardar o patrimônio cultural intangível
da UNESCO;
14
Nesse sentido, citam-se os seguintes: Comitê de Direitos Humanos; Comitê sobre
Direitos Econômicos, Sociais e Culturais; Comitê sobre a Eliminação da Discrimina-
ção Racial (Convenção Internacional sobre a Eliminação de todas as Formas de Dis-
criminação Racial); Comitê sobre os Direitos da Criança; Comitê sobre a Eliminação
da Discriminação contra Mulheres; Comitê sobre a Proteção dos Direitos de todos os
Trabalhadores Migrantes e Membros de suas Famílias; Comitê sobre os Direitos das
Pessoas com Deficiência; Comitê contra a Tortura; Subcomitê sobre Prevenção de
Tortura; Comitê sobre Desaparecimento Forçado; Especialista Independente sobre
questões de minoria; Fórum sobre questões de minorias; Revisão Periódica Univer-
sal do Conselho de Direitos Humanos; Comitê sobre Convenções e Recomendações
do Conselho Executivo da UNESCO; Comitê de Especialistas sobre a Aplicação das
Convenções e Recomendações e o Comitê de Conferência sobre a Aplicação de Pa-
drões da Organização Internacional do Trabalho.
Gabriela Werner Oliveira, Isabela Bohnen

115
nº 60/251 da Assembleia Geral, em 15 de março de 2006, como
órgão subsidiário da Assembleia Geral, em substituição à Comis-
são de Direitos Humanos.15 A importância do diálogo intercivi-
lizacional e o papel das organizações não governamentais, das
organizações internacionais, dos Estados e da mídia na promoção
da tolerância e dos direitos humanos são enfatizados no preâm-
bulo da resolução, bem como a universalidade, a indivisibilidade
e a interdependência. Dentre as finalidades do conselho, estão:
promover o respeito universal à proteção dos direitos humanos e
das liberdades fundamentais, indistintamente e de forma justa e
igual, para todos os indivíduos e tratar de situações que violem
esses direitos, fazendo recomendações.16

15
O Conselho consiste em 47 membros, eleitos por maioria pela Assembleia Geral,
respeitando uma distribuição geográfica equitativa entre os grupos: dos Estados
africanos, dos Estados asiáticos, dos Estados da Europa oriental, dos Estados do
Caribe e da América Latina, dos Estados da Europa ocidental e demais Estados. O
mandato é de três anos e o candidato não pode ser reeleito imediatamente após dois
mandatos consecutivos.
16
O parágrafo 5 enumera as principais funções do Conselho de Direitos Humanos,
conforme segue: “5. Decides that the Council shall, inter alia: (a) Promote human
rights education and learning as well as advisory services, technical assistance and
capacity-building, to be provided in consultation with and with the consent of Mem-
ber States concerned; (b) Serve as a forum for dialogue on thematic issues on all
human rights; (c) Make recommendations to the General Assembly for the further
development of international law in the field of human rights; (d) Promote the full
implementation of human rights obligations undertaken by States and follow-up to
the goals and commitments related to the promotion and A/RES/60/251 3 protec-
tion of human rights emanating from United Nations conferences and summits; (e)
Undertake a universal periodic review, based on objective and reliable information,
of the fulfilment by each State of its human rights obligations and commitments in
a manner which ensures universality of coverage and equal treatment with respect
to all States; the review shall be a cooperative mechanism, based on an interactive
dialogue, with the full involvement of the country concerned and with considera-
tion given to its capacity-building needs; such a mechanism shall complement and
not duplicate the work of treaty bodies; the Council shall develop the modalities and
necessary time allocation for the universal periodic review mechanism within one
year after the holding of its first session; (f) Contribute, through dialogue and coo-
peration, towards the prevention of human rights violations and respond promptly
to human rights emergencies; (g) Assume the role and responsibilities of the Com-
mission on Human Rights relating to the work of the Office of the United Nations
High Commissioner for Human Rights, as decided by the General Assembly in its
resolution 48/141 of 20 December 1993; (h) Work in close cooperation in the field
of human rights with Governments, regional organizations, national human rights
institutions and civil society; (i) Make recommendations with regard to the promo-
tion and protection of human rights; (j) Submit an annual report to the General
Assembly” (UNITED NATIONS, 2012).
Os instrumentos e mecanismos nacionais de proteção de minorias na sociedade contemporânea multicultural e...

116
Ainda de acordo com a resolução (UNITED NATIONS,
2006), um dos mecanismos a serem utilizados pelo Conselho é o
da Revisão Periódica Universal, que detém informações objetivas
e confiáveis fornecidas pelo Estado sob revisão e pela sociedade
civil interessada acerca do cumprimento “de suas obrigações e
compromissos em direitos humanos em uma maneira que assegu-
re a cobertura universal e tratamento igual com respeito a todos
os Estados”. Compreende a revisão de todos os Estados-parte do
conselho, sendo um mecanismo cooperativo, realizado por meio
de um diálogo cooperativo entre os países, contando com a plena
participação do país sob revisão, com o objetivo de complementar
a atuação dos mecanismos previstos em tratados.
A revisão tem por objetivos auxiliar na melhoria da situação
de direitos humanos, no cumprimento de obrigações e compromis-
sos estatais nesse tocante, avaliar os desenvolvimentos positivos
e desafios enfrentados pelo Estado e compartilhar melhores prá-
ticas entre Estados e demais envolvidos. A periodicidade da revi-
são do primeiro para o segundo ciclo foi de quatro anos (UNITED
NATIONS, 2006). Para cada ciclo, de cada Estado, um grupo de
três países (troika), de grupos regionais diferentes, é designado
para facilitar cada revisão e elaborar o relatório final. Durante
os procedimentos, outros países podem elaborar questões para o
Estado sob revisão. O relatório final é adotado pelo plenário do
Conselho, contendo um resumo do que foi realizado durante a re-
visão, conclusões e/ou recomendações, e os compromissos volun-
tários assumidos pelo Estado sob revisão (UNITED NATIONS,
2007). Ademais, de suma relevância é o fato de a sociedade civil
também poder enviar informações, conferindo diferentes pontos
de vista à revisão.
O primeiro ciclo de revisão do Brasil ocorreu em 2008, com
a troika Gabão, Arábia Saudita e Suíça. Após o diálogo interativo
com outros membros do Conselho de Direitos Humanos, quinze

Gabriela Werner Oliveira, Isabela Bohnen

117
recomendações foram adotadas, com o apoio do Brasil, sobre te-
mas como redução de pobreza e desigualdade social, abuso de po-
der e uso excessivo da força, condições de penitenciárias, tortura,
violência contra a mulher, trabalho e escravidão infantil, reforma
agrária, comunidades indígenas, acesso a informações públicas
pelos cidadãos, melhoramento do sistema judicial, integrar pers-
pectiva de gênero no processo de acompanhamento da revisão,
entre outros pontos (UNITED NATIONS, 2008).
A partir do segundo ciclo, que teve início em junho de 2012,
a periodicidade da revisão passou a ser de quatro anos e meio.
O segundo ciclo de revisão do Brasil foi realizado em 2012, e a
troika designada para facilitar a revisão foi composta por China,
Equador e Polônia. Pode-se visualizar um aumento significativo
no número de recomendações, que chegou a 170, assim como um
maior detalhamento em cada uma delas. Dentre outros temas
abordados, estão criação de instituições para direitos humanos
em conformidade com os Princípios de Paris, direito dos migran-
tes e refugiados, direito dos trabalhadores, políticas sociais para
mulheres, crianças, afrodescendentes, povos indígenas, idosos,
pessoas com deficiência, quilombolas, homossexuais e transexu-
ais, tortura, melhora no sistema judiciário, tráfico de pessoas,
índios e sistema prisional (UNITED NATIONS, 2012).
Desse modo, observa-se a importância desse mecanismo,
por ser um verdadeiro fórum intergovernamental de direitos hu-
manos, contando com a interatividade de Estados diversos e da
sociedade civil, não apenas no apontamento de falhas e violações
de direitos humanos, como também na troca de experiências e
programas que se mostraram bem-sucedidos no âmbito interno
de cada um. Especificamente no que diz respeito às minorias,
tem-se mais uma instância internacional de proteção e fiscaliza-
ção da implementação das recomendações adotadas.

Os instrumentos e mecanismos nacionais de proteção de minorias na sociedade contemporânea multicultural e...

118
Considerações finais
A proteção de minorias não é uma temática recente na
agenda dos Estados. Entretanto, pode-se observar uma evolução
significativa nessa matéria, que anda em compasso com a evolu-
ção do próprio Estado-nação e do conceito de soberania estatal.
Assim, inicialmente, a proteção de minorias não era um fim em
si mesmo, mas objetivava delimitar direitos e obrigações entre
Estados. Essa configuração começa a ser transformada com o
sistema de proteção de minorias da Liga das Nações e tem sua
maturação com a proteção no seio da ONU. O foco passa, então, à
necessidade da proteção e da promoção dos direitos humanos das
minorias, independentemente do Estado em que se encontrem.
Tal proteção é ainda mais premente na sociedade contem-
porânea, caracterizada pela multiculturalidade. Diversos fenô-
menos contribuíram para essa configuração societal, tais como
a globalização, os avanços tecnológicos que permitiram a troca
de informações em tempo real, os avanços econômicos e políticos
que possibilitaram o intercâmbio não somente comercial, mas
também cultural entre os países. Há ainda as guerras civis, as
ditaduras, as fortes crises econômicas ou os desastres naturais
que forçam milhares de indivíduos a deixarem o seu país em
busca de melhores condições de vida. E isso apenas para citar
alguns fatores. Diante desse contexto, é imprescindível a união
de esforços de entidades governamentais, intergovernamentais e
não governamentais para assegurar a convivência pacífica com
as diferenças.
O objetivo de proteção de minorias é assegurar que seus
direitos sejam reconhecidos e concretizados. Desse modo, é im-
perioso que tais direitos sejam positivados, tanto em nível inter-
nacional como em nível nacional, em normas constitucionais e
infraconstitucionais. Por meio desses instrumentos, é possível a

Gabriela Werner Oliveira, Isabela Bohnen

119
criação de mecanismos que propiciem o cumprimento dos deve-
res e das obrigações dos Estados bem como a fiscalização de suas
atuações. Esse é o caso da legislação brasileira, pela implemen-
tação de políticas públicas e pelo acesso ao Poder Judiciário. En-
tretanto, não são ignoradas as deficiências e lacunas existentes
em ambos.
Nesse sentido, o mecanismo da Revisão Periódica Univer-
sal mostra-se propício para complementar os esforços envidados
pelo Brasil na proteção e promoção dos direitos humanos, por
meio do compartilhamento das boas práticas entre os Estados e
das recomendações feitas, após um diálogo interativo não apenas
entre Estados, como também com a participação da sociedade ci-
vil. Com os dois ciclos de revisão pelos quais o Brasil já passou,
percebe-se a preocupação com os mais diversos temas ligados a
direitos humanos, o que inclui a proteção de minorias e grupos
vulneráveis, embora quanto às minorias nem sempre se faça de
maneira explícita.
Conclui-se, assim, que o diálogo e a tolerância são concei-
tos-chave para o avanço na proteção de minorias e nos direitos
humanos como um todo, sendo ponto comum entre doutrinadores
de diferentes linhas teóricas assim como entre ativistas e o pró-
prio Conselho de Direitos Humanos da ONU. Por conseguinte, os
mecanismos nacionais e internacionais de proteção e promoção
dos direitos humanos têm papel fundamental na desconstrução
de paradigmas que não mais condizem com a realidade social
multicultural e na mudança do próprio inconsciente coletivo, vi-
sando ver o outro como igual, apesar de suas diferenças.

Os instrumentos e mecanismos nacionais de proteção de minorias na sociedade contemporânea multicultural e...

120
Referências
BAUMAN, Zygmunt. Comunidade: a busca por segurança no mundo atual.
Tradução de Plínio Dentzien. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2003.
BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Bra-
sil. Brasília, DF: Senado Federal, 1988.
CAPPELLETTI, Mauro; GARTH, Bryant. Acesso à justiça. Porto Alegre:
Fabris, 1998.
CASELLA, Paulo Borba. A proteção internacional dos direitos das mino-
rias: o caso da minoria por orientação sexual e identidade de gênero. In:
JUBILUT, Liliana Lyra; BAHIA, Alexandre Gustavo Melo Franco; MAGA-
LHÃES, José Luiz Quadros (Coord.). Direito à diferença: aspectos teóricos
e conceituais da proteção às minorias e aos grupos vulneráveis. São Paulo:
Saraiva, 2013. p. 179-188.
COSTA, Álvaro Augusto Ribeiro. Dificuldades internas para a aplicação
das normas internacionais de proteção aos direitos humanos no Brasil. In:
TRINDADE, Antônio Augusto Cançado. A incorporação das normas inter-
nacionais de proteção dos direitos humanos no direito brasileiro. Brasília;
São José da Costa Rica: Imprensa, 1996. p. 175-190.
ERMACORA, Felix. The protection of minorities before the United Nations.
Boston: RCADI, 1983. t. 182. p. 247-370.
JONES, Mary Gardiner Winer. National minorities: a case study in in-
ternational protection. Law and Contemporary Problems, Durham, v. 14,
p. 599-626, 1949.
MADERS, Maria Angelita; AGELIN, Rosana. Multiculturalismo e direito
em foco. Santo Ângelo: Furi, 2014. v. II.
ONUMA, Yasuaki. Towards an intercivilizational approach to human rights:
for universalization of human rights through overcoming of a westcentric
notion of human rights. Asian Yearbook of International Law, Pohang, v. 7,
p. 21-82, 1997.
_______. A transcivilizational perspective on international law: questioning
prevalent cognitive frameworks in the emerging multi-polar and multi-civ-
ilizational world of the Twenty-first Century. The Hague: BRILL, 2010.
p. 81-418. (Recueil des Cours, v. 342).
PERONI, Lourdes; TIMMER, Alexandra. Vulnerable groups: the promise
of an emerging concept in European Human Rights Convention Law. Inter-
national Journal of Constitutional Law, New York, v. 11, n. 4, p. 1056-1085,
2013.

Gabriela Werner Oliveira, Isabela Bohnen

121
PIOVESAN, Flávia. Direitos humanos e o direito constitucional internacio-
nal. Porto Alegre: Emagis, 2006. (Caderno de Direito Constitucional).
RAWLS, John. Uma teoria da justiça. Brasília: Universidade de Brasília,
1997.
UNITED NATIONS. General Assembly A/HRC/8/27. Universal Periodic Re-
view: report of the Working Group on the Universal Period Review: Brazil,
of 22 May 2008. Disponível em: <http://www.ohchr.org/EN/HRBodies/UPR/
Pages/BRSession1.aspx>. Acesso em: 15 ago. 2015.
_______. General Assembly A/HRC/21/11. Human Rights Council. Report
of the Working Group on the Universal Periodic Review: Brazil, of 9 July
2012. Disponível em: <http://daccess-dds-ny.un.org/doc/UNDOC/GEN/
G12/151/15/PDF/G1215115.pdf?OpenElement>. Acesso em: 15 ago. 2015.
_______. General Assembly. Resolution 60/251 on the Human Rights Coun-
cil. Adopted on 15 March 2006. Disponível em: <http://daccess-dds-ny.un-
.org/doc/UNDOC/GEN/N05/502/66/PDF/N0550266.pdf?OpenElement>.
Acesso em: 15 ago. 2015.
_______. Human Rights Council. Resolution 5/1 on the Institution-building
of the United Nations Human Rights Council. Adopted on 18 June 2007.
Disponível em: <http://www.ohchr.org/EN/HRBodies/UPR/Pages/Backgrou-
ndDocuments.aspx>. Acesso em: 15 ago. 2015.
_______. Office of the High Commissioner. Minority Rights: International
Standards and Guidance for Implementation. New York; Geneva: United
Nations, 2010. Disponível em: <http://www.ohchr.org/Documents/Publica-
tions/MinorityRights_en.pdf>. Acesso em: 8 abr. 2015.
_______. Sub-Commission on Prevention of Discrimination and Protection
of Minorities. Study on the rights of persons belonging to ethnic, religious
and linguistic minorities. New York: United Nations, 1979. Disponível
em: <http://daccess-dds-ny.un.org/doc/UNDOC/GEN/NL7/903/66/PDF/
NL790366.pdf?OpenElement>. Acesso em: 8 abr. 2015.

Os instrumentos e mecanismos nacionais de proteção de minorias na sociedade contemporânea multicultural e...

122
(In)Tolerância e reconhecimento:
as mulheres e suas religiões
nas sociedades multiculturais

Gabriela Mesa Casa*


Laura Venturini da Luz**

Introdução
A pós-modernidade é marcada por uma série de fatores que
modificaram drasticamente a sociedade ao longo dos anos, tais
como a massificação dos meios de comunicação, a globalização, o
desenvolvimento econômico acelerado e o crescente surgimento
de megalópoles (BARTH, 2007, p. 90), o que facilitou a circula-
ção de pessoas das mais diversas nacionalidades em territórios
estrangeiros, ou seja, uma mistura entre diferentes povos e cul-
turas em uma escala cada vez maior.
O multiculturalismo impõe que sejam repensados conceitos
como igualdade e diversidade bem como os limites dos direitos
de cada pessoa, levando em conta, sobretudo, as suas diferenças
culturais, o que, muitas vezes, implica em direitos civis. Se, em
uma sociedade que habita uma mesma região e um mesmo país,

*
Mestranda em Direito na Universidade de Passo Fundo. Licenciada em Filosofia
pela Universidade Federal da Fronteira Sul. Graduada em Direito pela Univer-
sidade Comunitária da Região de Chapecó. Professora de Filosofia na Federação
das Indústrias do Estado de Santa Catarina/Serviço Social da Indústria. E-mail:
gabrielamesacasa@gmail.com
**
Mestranda em Direito pela Universidade de Passo Fundo. Graduada em Direito
pela Universidade de Passo Fundo. Pós-graduada em Ciências Penais pela Anhan-
guera – Universidade para o Desenvolvimento do Estado e da Região do Pantanal.
Advogada. E-mail: laura.vluz@gmail.com
já é difícil de equacionar as tensões advindas das características
pessoais de cada um, tais como religião, orientação sexual e opi-
nião política, torna-se ainda mais complexo quando, em cada polo
das relações, existem pessoas totalmente diferentes, oriundas de
culturas, muitas vezes, conflitantes entre si e que precisam, de
alguma forma, conviver de maneira harmoniosa e equilibrada,
considerando que, como pano de fundo desse cenário, tem-se um
Estado democrático de direito, em que seus princípios e valores
devem ser preservados.
Existe a tendência, cada vez maior, de rotular os problemas
sociais sempre em polos extremos e contrapostos – bem e mal,
homens e mulheres, brancos e negros, esquerda e direita –, como
se a alternativa sempre fosse ter de escolher uma posição. Mas
será que essa é a melhor solução? Fazer com que se escolha um
lado e então discutir e debater até que um lado saia vencedor e
outro perdedor.
A sociedade contemporânea e os conflitos dela advindos não
são de fácil solução, como a proposta dual apresentada. Não é
possível solucionar tensões sociais por intermédio de extremis-
mos, quer sejam de natureza política, ideológica ou social, em
razão da própria subjetividade do ser humano. Em um contexto
multicultural, é de extrema importância que as condutas adota-
das sejam cada vez mais ambivalentes à custa de escolhas radi-
cais (TOURAINE, 2011, p. 70), pois não há razões para decidir
entre posições opostas se for possível uma decisão que comporte,
simultaneamente, elementos positivos e negativos de cada lado.
É possível afirmar que se está diante do surgimento de no-
vas categorias sociais, “porque os problemas culturais adquiri-
ram tal importância que o pensamento social deve organizar-se
ao redor deles” (TOURAINE, 2007, p. 9). Dentre os diversos con-
flitos sociais e culturais que podem surgir, destacam-se os confli-
tos decorrentes da religião, cada vez mais presentes na sociedade

(In)Tolerância e reconhecimento: as mulheres e suas religiões nas sociedades multiculturais

124
atual, marcados, sobretudo, pelo fundamentalismo e extremis-
mo, que tem resultado em destruição de direitos em grande esca-
la e até mesmo conflitos armados entre países.
Importante esclarecer que nem todo conflito ou tensão de
origem religiosa é marcado pelo extremismo e radicalismo, mas o
presente estudo ficará adstrito, principalmente, ao choque cultu-
ral e religioso da cultura do Ocidente com o Oriente, com enfoque
relacionado às mulheres, devido ao fato de o islamismo – princi-
pal religião do Oriente Médio – ser extremamente radical com o
gênero feminino. Seus seguidores são radicais não apenas com as
mulheres, mas na sua forma de ver o “outro”, buscando, por meio
das relações de poder, estabelecer e impor sua forma de pensar ao
restante do mundo, o que fica bem evidenciado na crise atual dos
refugiados, sobretudo na Europa, e com o crescente número de
atentados terroristas ocorridos nos Estados Unidos e na França
recentemente.
Dessa forma, o presente estudo terá como ponto de partida
a análise da tolerância nas relações sociais e na sociedade como
um todo, partindo do pressuposto da complexidade e da diferença
entre os seres humanos bem como da relação existente entre a
tolerância e o reconhecimento do “outro” e trabalhando conceitos
como ambivalência e assimetria.
Em um segundo momento, será analisado, mais especifica-
mente, a (in)tolerância religiosa com relação às mulheres islâmi-
cas na tensão cultural entre Ocidente e Oriente, sob dois aspec-
tos: a prática de alguns costumes religiosos islâmicos no Ocidente
e a forma como essas mulheres se sentem fora de seu território,
se há aceitação ou negação das pessoas com relação a elas.
Por último, discutir-se-ão as sociedades multiculturais e os
novos desafios contemporâneos advindos desse fenômeno, bus-
cando a melhor forma que as tensões sociais e os conflitos cultu-
rais, especialmente aqueles que implicam em conflitos de direi-

Gabriela Mesa Casa, Laura Venturini da Luz

125
tos, podem ser solucionados, levando em conta a plena democra-
cia e o estado democrático de direito, sem esquecer o respeito e
as práticas culturais e religiosas do “outro” que aqui se encontra.
Dessa forma, a grande questão que se busca responder é
como equacionar as tensões culturais advindas do encontro entre
Ocidente e Oriente, sobretudo quanto às práticas religiosas das
mulheres islâmicas, como o uso da burca, os direitos do marido
sobre a mulher, dentre outros aspectos, tendo em vista estarem
em solo brasileiro ou europeu.
Por fim, importa destacar que as violações cometidas em
nome da religião tomam proporções mundiais, assim como a pro-
blemática relacionada ao gênero, que não tem como origem exclu-
siva a religião. Esses dois pontos ficam mais acirrados com o fenô-
meno da convivência de pessoas de diferentes povos – o multicul-
turalismo –, justificando assim a importância da presente análise.
É preciso discutir novas formas de relacionamento entre as cultu-
ras, possibilitando uma convivência em harmonia e equilíbrio.

(In)Tolerância: o reconhecimento
do outro
Atualmente, as sociedades estão cada vez mais multicultu-
rais, pois os Estados são formados por indivíduos com caracterís-
ticas culturais individuais, cada um com sua religião, sua opinião
política, sua orientação sexual, ou seja, cada indivíduo tem uma
forma de ver e pensar a sociedade. Isso ocorre por diversos fatores,
dentre eles, estão os fatores históricos, como o processo de coloni-
zação dos Estados, e os fatores mais atuais, como a globalização e
até mesmo o grande fluxo imigratório decorrente de guerras, crises
econômicas e desastres ambientais. Ocorre que os Estados estão
ignorando as diversas culturas e, na maioria das vezes, seus re-
presentantes não sabem como se posicionar em diversas situações.
Dessa forma, tem-se o pressuposto da necessidade de discussão
(In)Tolerância e reconhecimento: as mulheres e suas religiões nas sociedades multiculturais

126
sobre a complexidade das diferenças entre os indivíduos, levando
em consideração a tolerância e o reconhecimento do “outro”.
A reflexão sobre tolerância e reconhecimento do “outro”,
conforme o professor Nilson Machado, vai além do conhecimento
da existência do outro, não basta somente a ideia de que “eu sou
o sujeito e o outro permanece como objeto” (MACHADO, 2013,
p. 2). É necessário, também, compreender o outro, permitir-se
ter empatia pelo outro, no entanto, ainda é insuficiente para
evidenciar uma atitude tolerante, “[...] a compreensão do outro
costuma ocorrer por meio da assimilação de suas características
pelo referencial daquele que compreende como se realizasse certa
tradução de seus horizontes na linguagem compreensiva” (MA-
CHADO, 2013, p. 2).
Porém, a ideia de tolerância deve consistir em atitudes sig-
nificativas de respeito e reconhecimento do outro:
A assimetria é, portanto, um elemento imprescindível para o reconhe-
cimento do outro, para o respeito a sua perspectiva, o que caracteriza
efetivamente a ideia de tolerância. Não se trata de dissolver o outro em
minhas análises, de situá-lo em meu cenário, de traduzi-lo em minha
linguagem, de apreendê-lo em minhas categorias; trata-se de respeitá-lo
como outro, de reconhecer a legitimidade do cenário que vislumbra,
diverso do meu, de colocar-me em disponibilidade para a comunicação
com ele ainda que continuemos a falar línguas diferentes, ou a alimentar
diferentes projetos (MACHADO, 2013, p. 3, grifo do autor).

Dessa forma, compreende-se, em um contexto geral, que to-


lerância é o respeito e o reconhecimento pela liberdade individual
do outro. Em 1995, a Organização das Nações Unidas elaborou
a Carta de Declaração de Princípios sobre a Tolerância, na qual
apresenta a ideia de tolerância, afirmado que “[...] a tolerância é,
antes de tudo, uma atitude ativa fundada no reconhecimento dos
direitos universais da pessoa humana e das liberdades fundamen-
tais do outro” (ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS, 1995).
Levando em consideração que a discussão sobre conceito
de tolerância é inesgotável, apresenta-se uma breve explanação

Gabriela Mesa Casa, Laura Venturini da Luz

127
sobre a ideia de tolerância. No primeiro momento, a partir do
filósofo John Locke, que, em 1689, publicou a Carta acerca da
tolerância, na qual defende a separação entre Estado e Igreja. A
seguir, aborda-se a teoria de Stuart Mill, conforme o texto Ensaio
sobre a liberdade, publicado em 1859. E, por fim, as principais
ideias acerca da tolerância segundo John Rawls, conforme expos-
to em sua obra Uma teoria da justiça.
Conforme a teoria de Locke, Estado e Igreja são instituições
que devem ser separadas: “[...] considero isso necessário sobretu-
do pra distinguir entre as funções do governo civil e da religião, e
para demarcar as verdadeiras fronteiras entre a Igreja e a comu-
nidade” (1973, p. 11). A função do governo civil é de preservar e
assegurar os bens civis (como a vida e a liberdade) da sociedade.
Já o dever da religião é controlar a vida dos homens conforme a
virtude e a piedade, pois a Igreja é uma sociedade livre e volun-
tária, sua finalidade é a salvação da alma. Segundo o filósofo,
ninguém nasce membro de uma igreja, mas, sim, voluntariamen-
te une-se àquela em que acredita ter encontrado a verdadeira
religião (LOCKE, 1973, p. 12).
Segundo Locke, tanto a Igreja quanto o Estado têm deveres
sobre o respeito à tolerância:
Primeira, nenhuma igreja se acha obrigada, pelo dever de tolerância, a
conservar em seu seio uma pessoa que, mesmo depois de admoestada,
continua obstinadamente a transgredir as leis estabelecidas por essa
sociedade. Segundo, nenhum indivíduo deve atacar ou prejudicar de qual-
quer maneira a outrem nos seus bens civis porque professa outra religião
ou forma de culto. Todos os direitos que lhe pertencem como indivíduo,
ou como cidadão, são invioláveis e devem ser-lhe preservados. Terceiro,
Afirmo, contudo, que não importa a fonte da qual brota sua autoridade,
deve confinar-se aos limites da Igreja, não podendo de modo algum abarcar
assuntos civis, porque a Igreja está totalmente apartada e diversificada
da comunidade e dos negócios civis. Quarto, não é cuidado magistrático,
quero dizer (se posso assim denominá-lo), o qual consiste em prescrever
por meio de leis e obrigar por meio de castigos; ao contrário, o cuidado
caritativo, que consiste em ensinar, admoestar e persuadir, não pode ser
negado a homem algum. Portanto, o cuidado da alma de cada homem
pertence a ele próprio, tem-se de deixar a ele próprio (1973, p. 11-12).
(In)Tolerância e reconhecimento: as mulheres e suas religiões nas sociedades multiculturais

128
As ideias de Locke ao abordar a tolerância evidenciam que
ela deve ser praticada por todos, mas principalmente pelos reli-
giosos, pois em hipótese alguma se deve praticar a violência em
favor ou defesa da religião. E o Estado não deve interferir na
religião, que deve ser escolhida livremente pelos cidadãos.
Para o filósofo John Stuart Mill, a tolerância está ligada
à liberdade individual. O objetivo do autor é demonstrar “que a
única finalidade justificativa da interferência dos homens, indi-
vidual e coletivamente, na liberdade de ação de outrem, é a auto-
-proteção” (MILL, 1991, p. 33).
A liberdade é compreendida pelo filósofo, em primeiro lu-
gar, como a liberdade de pensar e sentir, ou seja, a liberdade de
opinião sobre qualquer assunto (moral, científico ou religioso),
em segundo lugar, como a liberdade de dispor da nossa vida para
seguirmos nosso próprio caráter. Por fim, a liberdade dos indiví-
duos de seguir a liberdade dentro dos mesmos limites. Nas pala-
vras de Mill:
Tal esfera é a esfera adequada da liberdade humana. Ela abrange,
primeiro, o domínio íntimo da consciência, exigindo liberdade de
consciência no mais compreensivo, sentido, liberdade, de pensar, e de
sentir, liberdade absoluta de opinião e de sentimento sobre quaisquer
assuntos, práticos, ou especulativos, científicos, morais ou teológicos
[...]. Em segundo lugar, o princípio requer a liberdade de dispor o plano
de nossa vida para seguirmos nosso próprio caráter de, agir como prefe-
rirmos, sujeitos às consequências que possam resultar [...]. Em terceiro
lugar, dessa liberdade, de cada indivíduo segue-se a liberdade, dentro,
dos mesmos limites de associação entre os indivíduos, liberdade de se
unirem para qualquer propósito que não envolva dano (1991, p. 37-38).

Assim, nenhuma sociedade poderá ser considerada livre, in-


dependente de qual seja a sua forma de governo, se nela não hou-
ver respeito às liberdades citadas. E é por meio da tolerância que
haverá a possibilidade de usufruir de condições para que exista a
liberdade individual. Portanto, para Mill, a liberdade individual
é necessária para todo ser humano, contudo, deve haver limites

Gabriela Mesa Casa, Laura Venturini da Luz

129
de tolerância a partir do momento que a conduta de algum indi-
víduo passar a causar prejuízo à sociedade ou a outro indivíduo,
sendo o Estado responsável por esse controle (FAVARIM, 2007).
Para o filósofo John Rawls (2008), é possível explicar a liber-
dade por meio de três itens: “os agentes que são livres, as restri-
ções ou limitações de que estão livres e aquilo que têm liberdade
para fazer ou não fazer” (2008, p. 247-248). Dessa forma, para o
autor, a liberdade consiste em um sistema de normas públicas, as
quais definem os direitos e deveres que a sociedade deve seguir.
A justiça como equidade (teoria defendida pelo autor) ofe-
rece argumentos a favor da liberdade de consciência, que podem
ser generalizados para defender, de forma adequada, o princípio
da liberdade igual, pois:
Da perspectiva da convenção constituinte, esses argumentos levam à
escolha de um regime que garanta a liberdade moral, a liberdade de
pensamento e a de crença, e de prática religiosa, embora essas liberdades
sempre possam ser reguladas pelo interesse do Estado na segurança e
na ordem pública (RAWLS, 2008, p. 260).

Logo, o Estado não deve favorecer nenhuma religião como


também nenhuma penalidade pode ser vinculada a alguma en-
tidade religiosa. “Rejeita-se a ideia de um Estado confessional”
(RAWLS, 2008, p. 261), pois o Estado é uma associação constituí-
da de cidadãos iguais. A opção dada por Rawls é a organização de
associações específicas, que podem ter suas atividades e discipli-
nas internas, sendo que seus membros têm a plena liberdade de
querer ou não continuar afiliados à religião.
A ideia de Rawls sobre a tolerância aos intolerantes está
ligada à estabilidade de uma sociedade bem-ordenada. “É da
posição de cidadania igual que as pessoas aderem às diversas
associações religiosas e é de dessa posição que devem conduzir
suas discussões entre si” (RAWLS, 2008, p. 270). Assim, os cida-
dãos livres não devem se considerar incapazes de terem senso
de justiça, ao menos que seja para garantir a própria igualdade.
(In)Tolerância e reconhecimento: as mulheres e suas religiões nas sociedades multiculturais

130
Mas, caso haja alguma “seita intolerante em uma sociedade bem
ordenada as outras pessoas devem ter em mente a estabilidade
inerente a sua instituição” (RAWLS, 2008, p. 270).
Portanto, mesmo que a seita intolerante não tenha o direito
de reclamar da intolerância, a sua liberdade deve ser restringida
somente quando os tolerantes acreditarem que a sua segurança
ou das instituições da liberdade estiverem em perigo. “O princí-
pio básico é estabelecer uma constituição justa que garanta as
liberdades da cidadania igual” (RAWLS, 2008, p. 271).

(In)Tolerância religiosa e as
mulheres islâmicas
Quando o assunto é religião, surgem as mais diversas dis-
cussões, sobretudo quando a religião interfere e influencia deci-
sões políticas e jurídicas. A problemática fica ainda mais acentu-
ada quando se tenta discutir e avançar em questões relacionadas
aos direitos das mulheres. No Brasil, temos alguns exemplos des-
sa situação. Pode-se citar, por exemplo, o aborto. Aliás, vale res-
saltar que o aborto, muitas vezes, acaba por se tornar um tema
de difícil discussão.
Com o fenômeno do multiculturalismo, surgem outras ten-
sões relacionadas à religião. A principal delas é a presença do islã
em todo o mundo, e boa parte dessa situação deve-se à migração.
“Hoje o islã já é considerado a segunda maior comunidade reli-
giosa em países de formação protestante, como Estados Unidos
(cerca de 6 milhões de muçulmanos), França, (5 milhões), Alema-
nha (2,5 milhões) e Holanda (500 mil)” (RIBEIRO, 2012, p. 107).
Já no Brasil, no censo de 2000, realizado pelo Instituto
Brasileiro de Geografia e Estatística, foi constatada a presença
de quase 28 mil brasileiros que se declararam seguidores do is-
lamismo; no censo de 2010 verificou-se um crescimento de 30%

Gabriela Mesa Casa, Laura Venturini da Luz

131
desse número, com destaque para o fato de que quase 60% são do
sexo masculino (RIBEIRO, 2012, p. 108). Os números apresenta-
dos são significativos.
Os dados são apenas ilustrativos, para se ter dimensão do
choque de ideias e as discussões daí advindas que serão objeto de
análise deste estudo. Importa, sobretudo, a relação da religião
islâmica e sua interação entre os gêneros masculino e feminino.
A relação entre gêneros presente nas sociedades e comunidades mu-
çulmanas encontra-se no meio de uma disputa política e ideológica
fortíssima. De um lado situam-se os críticos ao que consideram um modo
de vida arcaico que tolheria os direitos das mulheres, sendo que o véu
apresentar-se-ia como o símbolo da opressão feminina pelos homens
(CASTRO, 2008, p. 82).

A utilização do véu por mulheres muçulmanas em países


sem essa cultura, como Brasil e França, é objeto de discussão e
divergência de opiniões, pois a questão primordial é justamente
estabelecer o significado da utilização do véu. Se o uso for enten-
dido como símbolo de diminuição e subordinação da mulher ao
homem e aos preceitos religiosos, como permitir a sua utilização,
se tais preceitos não são compatíveis com os valores e princípios
brasileiros?
De outro modo, como proibir a utilização da vestimenta
para mulheres muçulmanas, ou não, que vivem de acordo com os
preceitos islâmicos? Também não seria uma violação à liberdade
religiosa prevista na Constituição federal e também um desres-
peito à cultura dessas pessoas? Além disso, a proibição também
não seria partir do pressuposto genérico de que todas as mulhe-
res que utilizam o véu sentem-se inferiorizadas e subordinadas
aos homens? É possível que a sociedade ocidental possa falar em
nome delas, saber como se sentem e decidir sua forma de viver?
São muitas as perguntas que merecem ser debatidas pela
sociedade como um todo na busca de alternativas satisfatórias,
harmoniosas e não radicais, capazes de garantir a liberdade reli-

(In)Tolerância e reconhecimento: as mulheres e suas religiões nas sociedades multiculturais

132
giosa e o direito fundamental à cultura, de forma que as pessoas
em uma comunidade sintam-se reconhecidas como ser humano,
independentemente da sua origem ou religião.
Um fato importante sobre essa problemática foi o Projeto de
Lei nº 524, do governo francês, em 2010, que proibiu a utilização
da burca,1 bem como do niqab,2 em locais públicos, abertos e des-
tinados aos serviços públicos, sob dupla justificativa, primeiro por
ferir as tradições e a cultura do país, como a liberdade das mulhe-
res, e segundo, seria pela segurança do país, pela associação do
uso da burca e do niqab ao terrorismo (FERREIRA, 2013, p. 184).
É necessário refletir se o referido projeto garante a autono-
mia às mulheres muçulmanas, pois, basicamente, partiu-se do
princípio de que toda mulher que utiliza a referida vestimenta
é submissa e precisa ser “salva” pelo Ocidente. Há quem enten-
da que a proibição consiste em uma violação por si só: “Ao fazer
tais proibições, estamos deixando de reconhecer e de respeitar as
diferenças étnicas e religiosas. A desculpa de proteger essas mu-
lheres não convence a comunidade, nem os Direitos Humanos”
(FERREIRA, 2013, p. 184). Contudo, há quem entenda que o uso
da burca é que é uma violação por si só, como Dawkins esclarece:
Um dos espetáculos mais tristes de nossas ruas hoje em dia é a ima-
gem de uma mulher encoberta por uma forma negra dos pés à cabeça,
espiando o mundo através de uma nesga minúscula. A burca não é só
um instrumento de opressão de mulheres e de repressão de liberdade
e de sua beleza; não é só um símbolo da crueldade flagrante masculina
da trágica submissão feminina (2007, p. 458).

Há, ainda, quem argumente que o islamismo de forma geral


vem sendo perseguido pelos países ocidentais, conforme Castro:

1
Vestimenta islâmica usada no Afeganistão e no Paquistão.
2
Vestimenta islâmica utilizada mais na península árabe.
Gabriela Mesa Casa, Laura Venturini da Luz

133
O islã vem sendo alvo de um processo de “demonização” de toda uma
religião e seu conjunto de fiéis, e uma das principais estratégias empre-
gadas visando sua deslegitimação refere-se justamente à imposição do
rótulo de “opressor de mulheres”. As mulheres muçulmanas no Brasil
definem sua identidade em resposta à imagem difundida pela mídia
brasileira, extremamente influenciada pela mídia norte-americana,
ao mesmo tempo em que enfrentam o patriarcalismo no interior da
comunidade étnico-religiosa (2008, p. 82).

Importante para a discussão é “ouvir” a opinião de uma im-


portante mulher muçulmana. A socióloga Fátima Mernissi traz à
reflexão o aspecto da sexualidade relacionado à vestimenta:
A sexualidade da mulher seria tão agressiva, que o homem deveria
proteger-se, escondendo a mulher debaixo de um véu, ao passo que os
ocidentais interpretam esse fato como sinal de dependência. Em suma,
segundo, Mernissi, o véu é um instrumento para limitar a agressividade
sexual da mulher e as reformas a serem feitas, devem estabelecer a paz e
limitar os atos de agressão de ambos os lados (TOURAINE, 2011, p. 140).

Assim, quando práticas conflitantes estão em discussão,


não se pode apenas observar um lado da questão. Quando mu-
lheres de origem islâmica, ou de qualquer outra origem, estão
no ocidente, não se pode decidir o modo como irão viver sob o pa-
radigma ocidental. É preciso, antes de tudo, compreender o que
essa prática representa para elas, permitindo que ambos os lados
possam manifestar suas opiniões. A partir do momento que se
busca a compreensão do conflito, a decisão será mais mediada do
que radical.
Dessa forma, há que se considerar que dentro da cultura e
das regras islâmicas é impossível para uma mulher, no seu país
de origem, por exemplo, sair à rua com saias sem serem ofendi-
das (TOURAINE, 2011, p. 140). Esse é apenas um dos diversos
exemplos que demonstram a desigualdade de gênero. É fato que
a cultura islâmica é, sim, em grande parte, opressora das mu-
lheres, porém, tal constatação não autoriza que sejam adotadas
medidas radicais das práticas culturais, quando essas mulheres
estejam em território ocidental.
(In)Tolerância e reconhecimento: as mulheres e suas religiões nas sociedades multiculturais

134
Não apenas nos conflitos da vestimenta, mas em todos os
demais advindos do choque cultural, o que se deve buscar é a
tolerância para com o “outro”, e isso tem de ser encontrado por
meio do reconhecimento. É preciso reconhecer o outro como su-
jeito para poder respeitar e, sobretudo, tolerar as diferenças cul-
turais.
Por fim, tem-se que levar em consideração que “as crenças
religiosas são geralmente embasadas na desconfiança em rela-
ção às mulheres, mas é necessário evitar cair nos excessos dos
fundamentalismos que identificam suas crenças com uma forma
particular de organização social e política” (TOURAINE, 2011,
p. 156). O mundo multicultural exige que se busque o diálogo na
intermediação dos conflitos, pois decisões radicais, que partam
do ponto de vista de um único paradigma, correm o risco de ser
mais violadoras ao indivíduo do que a própria prática que está
sendo proibida com o argumento de que viola direitos.

Sociedades multiculturais: desafios


contemporâneos e busca
de alternativas
O debate sobre o pluralismo jurídico não é novo, porém, no
decorrer das últimas décadas sua discussão aparece renovada,
após o novo constitucionalismo latino-americano, fenômeno so-
ciopolítico e jurídico que ocorre nos países latino-americanos e
que desencadeou um rompimento com o constitucionalismo tra-
dicional e conservador, a partir das novas constituições da Co-
lômbia, Venezuela, Bolívia e Equador (FERREIRA; PAVI; CAO-
VILLA, 2013).
A partir do momento da fixação do homem em um determi-
nado lugar, ele deixa de ser nômade e passa a viver em grupos, o
que torna indispensável a criação de normas para regular o con-
Gabriela Mesa Casa, Laura Venturini da Luz

135
vívio, pois a multiplicidade de grupos existentes acaba gerando
uma multiplicidade de direitos. Assim, consequentemente, surge
o pluralismo jurídico (MALISKA, 2000). Na perspectiva de Wolk-
mer, repensar a questão do pluralismo jurídico nada mais é:
[...] do que a tentativa de buscar uma outra direção ou um outro re-
ferencial epistemológico que atenta a modernidade em fins do século
XX, pois os alicerces de fundamentação – tanto a nível das Ciências
Humanas quanto da Teoria Geral do Direito – não acompanham as
profundas transformações sócias e econômicas por que passam as so-
ciedades políticas pós-industriais e as sociedades de industrialização
recente (1994, p. 156).

Assim, para Wolkmer (1994), o pluralismo é como um pa-


radigma alternativo no que diz respeito à cultura jurídica, isso
faz pensar e adequar a proposta prática-teórica, considerando as
condições existenciais, materiais e culturais refletidas pela glo-
balização.
O pluralismo deve ser visualizado, tanto como um fenômeno de possi-
bilidades e dimensões de universalidade cultura, quanto um modelo
que incorpora condicionantes inter-relacionados (formal e material)
adequado às especificidades e às condições históricas de micro e macro
sociedade políticas. Torna-se imperioso, quando da análise de sociedades
periféricas como a brasileira, a opção por um pluralismo inovador, um
pluralismo jurídico permeado pelas condições materiais e pelos confli-
tos sociais e, ao mesmo tempo, determinante do processo de práticas
cotidianas insurgentes e do avanço da auto-regulação do próprio poder
societário (WOLKMER, 1994, p. 156-157).

Esse novo pluralismo, com características participativas,


proposto por Wolkmer (1994, p. 157), tem seu fundamento basea-
do em uma nova racionalidade e uma nova ética, de novas neces-
sidades desejadas, a descentralização do Estado para Sociedade.
“É, portanto, a dinâmica interativa de um espaço público aberto
e democrático” (1994, p. 157).
Considerando o multiculturalismo no tópico anterior, per-
cebe-se que o modelo atual do direito é ineficiente ao contexto da
realidade social dos Estados. É nesse sentido que se deve debater

(In)Tolerância e reconhecimento: as mulheres e suas religiões nas sociedades multiculturais

136
sobre as pluralidades das fontes materiais do direito, pois em
Estados multiculturais não faz mais sentido reduzir a fonte do
direito exclusivamente na lei. Para Wolkmer:
Ao contrário da concepção unitária, homogênea e centralizadora denomi-
nada de “monismo”, a formulação teórica e doutrinária do “pluralismo”
designa a existência de mais de uma realidade, de múltiplas formas de
ação prática e da diversidade de campos sociais com particularidades
próprias, ou seja, envolve o conjunto de fenômenos autônomos e elemen-
tos heterogêneos que não se reduzem em si (1994, p. 158).

Ocorre que, cada vez mais, a sociedade está complexa e a di-


versidade dos grupos inseridos nela faz surgir uma multiplicida-
de de direitos que devem ser atendidos, baseados nos princípios
do estado social, plural e democrático, das mais diversas formas
e interesses. Assim, é de suma importância a participação da so-
ciedade no que diz respeito aos direitos comuns, rompendo, dessa
forma, com o paradigma centralizador do poder.
Nesse sentido, Wolkmer propõe uma concepção de plura-
lismo jurídico fundado em uma nova perspectiva para o direito,
ou seja, um novo paradigma fundamentado em uma perspectiva
pluralista democrática (MALISKA, 2000). Essa diversidade cul-
tural modifica as formas de interação humana e dá nova configu-
ração às sociedades, fazendo com que, muitas vezes, ocorra a rup-
tura dos laços sociais, trazendo maior sensação de insegurança
e gerando questionamentos acerca das instituições tradicionais,
como família, escola e trabalho. Tudo isso decorre da dificuldade
do ser humano em conviver e aceitar o diferente.
A religião encontra-se, atualmente, como protagonista de
diversas disputas sociais tanto internamente, nas sociedades,
como também externamente, entre países. Nessa perspectiva, é
de extrema importância que se busque o respeito e o reconheci-
mento a todas as pessoas, independentemente de sua origem e de
suas práticas religiosas. Mas de que forma é possível aceitar as
diferenças? Segundo Touraine:

Gabriela Mesa Casa, Laura Venturini da Luz

137
O tema das diferenças culturais não ocupa um lugar expressivo nas
reflexões daqueles que querem, sobretudo, reconhecer a justaposição
de grupos, tendo crenças, costumes e línguas diferentes. Isso porque
não existe outra solução se não a tolerância, que pode ser exercida pela
cultura mais forte ou ser imposta por um poder político laico, como no
caso da França. A importância desse tema aumenta quando é mais
estreitamente ligado a outros aspectos da sociedade como no islã. Tra-
ta-se então de partilhar os valores da Modernidade entre os grupos de
gêneros diferentes separados (e atravessados) por grandes diferenças,
mas que devem ser reconhecidos como iguais a partir do momento em
que eles se conectam da mesma maneira aos princípios fundamentais
da Modernidade (TOURAINE, 2011, p. 183).

Portanto, o problema das vestimentas islâmicas no Oci-


dente, como todas as demais questões advindas das sociedades
multiculturais, deverá ser analisado com cautela e discutido com
as partes envolvidas. Eis que o choque cultural, por vezes, pode
gerar conflitos de direitos e interesses e, conforme já mencionado,
decisões radicais, em nome de uma suposta liberdade e garantia
de direitos, se analisadas apenas sob o paradigma ocidental, po-
dem ser mais violadoras ainda.

Considerações finais
Dessa forma, após esta abordagem, não restam dúvidas de
que a tolerância só é alcançada a partir do reconhecimento da
existência do outro. Não basta que tal reconhecimento se opere
no âmbito da razão prática, em que há o sujeito e o outro visto
como objeto. Para reconhecer o outro além da perspectiva de ob-
jeto, é necessária a capacidade de se colocar no lugar do outro e
de analisar o problema com base na percepção das relações que
se estabelecem do ponto de vista do outro.
A vida política e social institui-se a partir da negociação
de valores e da busca da articulação entre projetos individuais
e coletivos, fazendo com que os segundos estejam de acordo com
os interesses dos primeiros. Porém, a diversidade é um elemen-

(In)Tolerância e reconhecimento: as mulheres e suas religiões nas sociedades multiculturais

138
to cada vez mais presente nas sociedades contemporâneas, quer
pela globalização, quer pelo multiculturalismo, e a tendência é
que esse fator torne-se crescente. A grande questão que se coloca
é como manter a harmonia e o equilíbrio nessa articulação coleti-
va, de forma que todos os interesses individuais sejam preserva-
dos, sempre com respeito à diversidade.
É muito difícil discutir e equacionar as relações sociais con-
siderando as diferenças individuais quando o assunto é religião,
porém, essa reflexão é necessária a fim de minimizar os choques
culturais inevitáveis nas sociedades multiculturais. Práticas e
costumes orientais, advindos de religiões, muitas vezes, radicais,
como alguns dos seguidores do islamismo, entrarão em conflito,
não apenas em termos culturais, mas, muitas vezes, em termos
de direitos individuais, com as práticas e os costumes ocidentais.
A expressão maior desse choque cultural entre Oriente e
Ocidente é o uso do véu em países ocidentais democráticos, cujos
habitantes passam a enxergar o problema pelo viés unicamente
ocidental. Porém, essa é uma forma de visualizar a questão de
forma generalizada, como se todas as mulheres que utilizam a
vestimenta fossem dominadas, submissas, sem enxergar a ques-
tão pela perspectiva da própria mulher islâmica.
Importa ressaltar que não se está aqui defendendo ou não a
utilização do véu e o que isso representa, o que se pretende é cha-
mar a atenção e fazer a reflexão sobre a necessidade urgente de
discussões dialogadas com as partes envolvidas, sobre a impor-
tância de se exercitar a tolerância com a diferença e, sobretudo,
de reconhecer o “outro” diferente como sujeito de direitos, uma
vez que a sociedade multicultural exige uma postura mais flexí-
vel e menos radical na solução das tensões daí advindas.

Gabriela Mesa Casa, Laura Venturini da Luz

139
Referências
BARTH, Wilmar Luiz. O homem pós-moderno, religião e ética. Teocomu-
nicação, Porto Alegre, v. 37, n. 155 p. 89-108, mar. 2007. Disponível em:
<http://revistaseletronicas.pucrs.br/fzva/ojs/index.php/teo/article/viewFi-
le/1775/1308>. Acesso em: 19 nov. 2015.
CASTRO, C. M. Muçulmanas no Brasil: reflexões sobre a relação entre re-
ligião e dominação de gênero. Mandrágora, São Bernardo do Campo, v. 14,
p. 80-96, 2008. Disponível em: <https://www.metodista.br/revistas/revistas-
-ims/index.php/MA/article/viewFile/698/699>. Acesso em: 10 nov. 2015.
DAWKINS, Richard. Deus, um delírio. Tradução de Fernanda Ravagnini.
São Paulo: Companhia das Letras, 2007.
FAVARIM, Flávia Negri. Limites da tolerância nos conflitos entre grupos
religiosos. 105 f. Dissertação (Mestrado em Direito) – Universidade Meto-
dista de Piracicaba, Piracicaba, 2007. Disponível em: <https://www.unimep.
br/phpg/bibdig/aluno/down.php?cod=256>. Acesso em: 3 dez. 2015.
FERREIRA, Francirosy C. Barbosa. Diálogos sobre o uso do véu (hijab):
empoderamento, identidade e religiosidade. Perspectivas, São Paulo, v. 43,
p. 183-198, jan./jun. 2013 . Disponível em: <http://seer.fclar.unesp.br/pers-
pectivas/article/view/6617>. Acesso em: 17 nov. 2015.
FERREIRA, Bruno; PAVI, Carmelice Faitão Balbinot; CAOVILLA, Maria
Aparecida. O pluralismo jurídico e o acesso à justiça diante o fenômeno do
novo constitucionalismo latino americano. In: FÓRUM INTEGRADO DE
ENSINO, PESQUISA E EXTENSÃO DA ACAFE, 4, 2013. Anais..., Chape-
có: Argos, 2013. p. 1008.
LOCKE, John. Carta acerca da tolerância: segundo tratado sobre o governo.
2. ed. São Paulo: Abril Cultural, 1973.
MACHADO, Nílson José. Sobre a ideia de tolerância. Instituto de Estudos
Avançados da Universidade de São Paulo, 2013. Disponível em: <www.iea.
usp.br/artigos>. Acesso em: 12 nov. 2015.
MALISKA, Marcos Augusto. Pluralismo jurídico e direito moderno: notas
para pensar a racionalidade jurídica na modernidade. Curitiba: Juruá,
2000.
MILL, John Stuart. Sobre a liberdade. 2. ed. Petrópolis: Vozes, 1991.
ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS. Declaração de princípios sobre a
tolerância. 1995. Disponível em: <http://www.dglnet.org.br/direitos/sip/onu/
paz/dec95.htm>. Acesso em: 1 dez. 2015.
RAWLS, John. Uma teoria da justiça. 3. ed. São Paulo: Martins Fontes,
2008.

(In)Tolerância e reconhecimento: as mulheres e suas religiões nas sociedades multiculturais

140
RIBEIRO, Lidice Meyer Pinto. A implantação e o crescimento do islã no
Brasil. Estudos de Religião, São Bernardo do Campo, v. 26, n. 43, p. 106-135,
2012. Disponível em: <http://www.metodista.br/revistas/revistas-ims/index.
php/ER/article/viewFile/3082/3273>. Acesso em: 22 out. 2015.
TOURAINE, Alain. O mundo das mulheres. Tradução de Francisco Morás.
3. ed. Petrópolis: Vozes, 2011.
_______. Um novo paradigma: para compreender o mundo hoje. Tradução de
Gentil Avelino Titton. Petrópolis: Vozes, 2007.
WOLKMER, Antônio Carlos. Pluralismo jurídico. São Paulo: Alfa-Omega,
1994.

Gabriela Mesa Casa, Laura Venturini da Luz

141
Do Senegal ao Rio Grande
do Sul: integração e
multiculturalismo

Aline Dip Toniolo*


Luis Vaccari**

Introdução
A presente pesquisa visa abordar a questão das dificuldades
encontradas pelos imigrantes senegaleses ao optarem por migrar
para o Rio Grande do Sul, no tocante à observância de seus direi-
tos humanos, inclusive pelo fato de haver ausência de previsão
constitucional acerca de seus direitos.
O fluxo imigratório configura-se um fenômeno recente, em-
bora tenha origem no Brasil Colônia. Não se presenciou somente
a imigração para o território brasileiro, verificou-se, também, um
fluxo de emigrantes brasileiros para outras partes do globo, como
a Europa.
É imprescindível que sejam atendidos os direitos e as ne-
cessidades do imigrante em solo brasileiro, com a defesa de seus
direitos no ordenamento jurídico, bem como com a implementa-

*
Mestra em Direito pelo Programa de Pós-Graduação em Direito pela Universida-
de de Passo Fundo. Bolsista Prosup Capes. Integrante do Projeto Reconhecimento
e Tolerância em Sociedades Multiculturais. Advogada. E- mail: alinediptoniolo@
gmail.com
**
Graduando em Direito na Universidade de Passo Fundo. Mediador voluntário no
projeto de extensão Paifam do curso de Direito da Universidade de Passo Fundo.
Estudante pesquisador do Projeto Reconhecimento e Tolerância em Sociedades Mul-
ticulturais. Bolsista Pivic Universidade de Passo Fundo. E-mail: 131682@upf.br
ção de políticas públicas dirigidas à integração dos imigrantes
senegaleses no Rio Grande do Sul.
A problemática apontada nesta pesquisa refere-se à ausên-
cia de previsão constitucional de tutela dos direitos dos imigran-
tes senegaleses que escolhem o Brasil para residir, em especial
no estado do Rio Grande do Sul, enfrentando uma série de bar-
reiras para a sua reinserção na sociedade, problemas que vão
da questão da cidadania ao momento de exercer suas atividades
laborais. Além disso, há dificuldades de adaptação desses imi-
grantes aos costumes brasileiros e até mesmo de compreensão da
língua brasileira.
Dessa maneira, o método de abordagem a ser utilizado neste
trabalho será o dedutivo. Além disso, volta-se à pesquisa biblio-
gráfica, à doutrina, aos artigos e às leis, às propostas de emendas
à Constituição, almejando evidenciar a importância de implantar
políticas públicas voltadas ao atendimento dos direitos humanos
dos imigrantes senegaleses que adotam o Brasil para residir e
buscar melhor condição de vida.
Nesse sentido, a relevância desta pesquisa justifica-se pelo
fato de o tema suscitar reflexões acerca da importância da legis-
lação pátria zelar pelos direitos dos imigrantes, visto que a imi-
gração é um direito fundamental da humanidade.

A imigração sob a ótica da


fragilidade jurídica
Sabe-se que a imigração é um fenômeno que extrapola ele-
mentos temporais e espaciais, apresentando como requisito pri-
mordial o movimento populacional por longo espaço de tempo.
Assim, a imigração deve ser vista como um fenômeno que resulta
em um fato social totalizante, que abrange diversas experiências
humanas e que é condutor de mudanças sociais que se refletem

Aline Dip Toniolo, Luis Vaccari

143
em diversos aspectos: jeito de ser, dimensões religiosas, fatores
étnicos e identitários.
Nesse sentido, as migrações sofrem influência de fatores
financeiros e demográficos preponderantes devido aos mais va-
riados processos políticos e culturais dos países de origem dos
imigrantes, embora não seja possível criticar a política desses
países, pois o aspecto político desse processo é apenas uma parce-
la dos motivos que levam ao fluxo imigratório.
Segundo Tedesco (2003, p. 31), os fatores que corroboram
para as imigrações são: “movimentos de conquistas de território,
colonizações, grupos nômades, invasões, processos de ocupações
variados, organizações políticas nacionais”. Cabe destacar que as
imigrações podem ocasionar reações diversas, como discrimina-
ções nos mais diversos aspectos, sejam eles religiosos, étnicos ou
culturais.
O direito de imigrar se reflete em vários sentidos, sob os as-
pectos de integração social, econômica, política e cultural. As imi-
grações impulsionam as diversidades em um território, de modo
que é necessária uma ampla reflexão em “termos de estrutura
social, de intercultura e suas manifestações (língua, símbolos,
ritos, tradições...), das formas variadas de racismo (cultural, de
classe, de diferenças, etc.)” (TEDESCO, 2003, p. 32).
A imigração favorece a combinação de diferentes culturas,
tidas como impossíveis de se mesclarem. Entretanto, os fluxos
imigratórios podem apresentar como consequência as mais di-
versas formas de segregação aos imigrantes, motivo pelo qual se
mostra necessário que o ordenamento jurídico volte sua atenção
aos direitos dos imigrantes. Conforme as palavras de Bauman:

Do Senegal ao Rio Grande do Sul: integração e multiculturalismo

144
Para habitantes do Primeiro Mundo, as fronteiras dos Estados foram
derrubadas, como foram para as mercadorias, o capital e as finanças.
Para os habitantes do Segundo Mundo, os muros constituídos pelos
controles de imigração, as leis de residência, a política de “ruas limpas”
e “tolerância zero” ficaram mais altos; os fossos que os separam dos lo-
cais de desejo e da sonhada redenção ficaram mais profundos, ao passo
que todas as pontes, assim que se tenta atravessa-las, revelam-se as
pontes levadiças. Os primeiros viajam à vontade, divertem-se bastante
viajando [...], são adulados e seduzidos a viajar, sempre recebidos com
sorriso e de braços abertos. Os segundos viajam às escondidas, muitas
vezes ilegalmente, às vezes pagando por uma terceira classe superlota-
da, ainda por cima são olhados com desaprovação, quando não presos
e deportados ao chegarem (1997, p. 27).

Por essa razão, torna-se imperioso que o Poder Judiciário


ampare os direitos dos estrangeiros, de modo a inibir os estere-
ótipos sobre os imigrantes. A imigração dos senegaleses no Rio
Grande do Sul é considerada de cunho laboral, pois escolhem o
Rio Grande do Sul, em especial a região Centro-Oeste, com o in-
tuito de trabalhar e enviar dinheiro para seus familiares, que
permaneceram nos locais de origem. No entanto, não há previsão
na seara trabalhista de leis que regulem as garantias desses in-
divíduos que escolhem o Brasil para trabalhar.
Além disso, os imigrantes são vinculados à noção de laboro,
bem como de indivíduos de transitoriedade curta, aptos a voltar
aos países de origem assim que reunirem as condições de retor-
nar ao convívio familiar. Ocorre que a ideia de transitoriedade
obsta a integração dos imigrantes no país estabelecido. No enten-
dimento de Sayad (2008, p. 33-34), os imigrantes são rotulados
pela sociedade do país que optam por morar como pessoas com
baixa qualificação laboral, com pouca escolaridade, bem como são
considerados como não civilizados.
Conforme Bourdieu (1991, p. 12), o imigrante sempre foi
visto como “uma figura ambivalente: é vizinho, mas é e está dis-
tante, exerce fascínio e temeridade, incluso e excluso; revela mu-
danças e desejos, estratégias de imutabilidade cultural e social,

Aline Dip Toniolo, Luis Vaccari

145
de comportamento e comunicação”. Assim, é possível afirmar que
o imigrante é tido como um indivíduo ambivalente, exercendo
influência sobre a sociedade que escolheu para viver, mas carre-
gando suas raízes e seus costumes da terra de origem.
Nas palavras de Tedesco, observa-se que:
O estrangeiro, nesse sentido, é um sujeito-síntese, uma configuração
entre familiaridade e estranhamento, emoção/afetividade e indiferença,
engajamento e liberdade, suspeição e perigo; é um recém-chegado e
que terá de definir sua situação/localização e representação no mundo;
alguém que tem grande tendência a permanecer nas margens, uma
vez que seu mundo natural é outro e a sociedade de acolhimento não
consegue lhe assegurar inclusão, mas atrai e está no centro das atenções
(TEDESCO, 2010, p. 29).

Nesse sentido, importa mencionar que o imigrante traz


consigo resquícios de distanciamento e comprometimento, o que
configura a ambiguidade citada. Assim, se os imigrantes são aco-
lhidos pela sociedade, isso não representa que eles sejam par-
te integrante do país receptor. Considere-se quantos imigrantes
exercem atividades laborais, mas não têm direitos trabalhistas.
No entendimento de Simmel (1977, p. 66), há uma luta que
forma a relação do imigrante; esse conflito fortifica a existência
social e corrobora para que nos países hospedadores formem-se
sociedades com caráter multicultural. Por isso, o estrangeiro irá
trazer consigo uma ideia de distância e de proximidade, portando
uma diversidade cultural.
Dessa maneira, a presença do estrangeiro conduz os países
receptores a repensar a questão da cidadania e da proteção dos
direitos dos imigrantes. Diante disso, mostra-se importante que
o ordenamento jurídico tutele as garantias desses indivíduos que
aparentam viver desterritorializados e que se busquem formas
de integrá-los na sociedade, seja no mercado de trabalho ou no
ambiente educacional.
No tocante aos direitos dos imigrantes no ordenamento jurí-
dico brasileiro, evidencia-se que não há observância da igualdade
Do Senegal ao Rio Grande do Sul: integração e multiculturalismo

146
defendida na Constituição federal brasileira. Segundo Montes-
quieu (2000 apud RODRIGUES, 2000, p. 78 ), “[...] assim como
o céu está afastado da Terra, o verdadeiro espírito de igualdade
o está do espírito de igualdade extrema”. Ainda, Montesquieu
(2000 apud RODRIGUES, 2000, p. 79) aponta que “[...] os ho-
mens nascem numa verdadeira igualdade, mas não podem per-
manecer nela. A sociedade faz com que a percam e apenas re-
tornem à igualdade pelas leis”. Contudo, o ordenamento jurídico
brasileiro é frágil no que diz respeito aos direitos dos imigrantes.
Cabe ressaltar que essa fragilidade quanto aos direitos dos es-
trangeiros inicia-se na questão de cidadania.
Marshall (1967, p. 76), compreende que “a cidadania é um
status concedido àqueles que são membros integrais de uma co-
munidade. Todos aqueles que possuem status são iguais com di-
reitos e obrigações pertinentes ao status”. Entretanto, o conceito
de cidadania possui um vínculo estreito com o direito. Nesse sen-
tido, no plano teórico, poder-se-ia relatar que os indivíduos que
são cidadãos seriam os portadores de direitos. Dessa maneira,
os direitos da cidadania caracterizar-se-iam como direitos do ser
humano, representando uma conquista social (CORRÊA, 2002,
p. 217).
Conforme o entendimento de Dal Ri:
A cidadania é um instituto comum a todos os modernos ordenamentos
jurídicos estatais. A doutrina de Direito Público e, particularmente,
aquela de Direito Internacional, apresentam com frequência uma
orientação político-liberal, e entendem a cidadania como uma conjunção
entre o vínculo jurídico da pessoa com o Estado e a sua titularidade de
direitos políticos (2010, p. 7).

Nessa acepção, a cidadania permite às pessoas viver em


condições dignas bem como exercer a democracia de modo a va-
lorizar a vida plena. Contudo, a cidadania presume que os indi-
víduos estejam unidos politicamente, visando inibir a exclusão.
Diante disso, é possível observar que a cidadania origina um vín-

Aline Dip Toniolo, Luis Vaccari

147
culo jurídico, fazendo com que todos os indivíduos sejam protegi-
dos pelo ente estatal, corroborando para o nascimento de direitos
e deveres do ser humano. Consoante ensina Lafer:
[...] a cidadania é o direito a ter direitos, pois a igualdade em dignidade
e direitos dos seres humanos não é um dado. É um construído da convi-
vência coletiva, que requer o acesso ao espaço público. É este acesso ao
espaço público. É este acesso ao espaço político que permite a construção
de um mundo através do processo de asserção dos direitos do homem.
[...] De fato, o processo de asserção dos direitos humanos, enquanto
invenção para a convivência coletiva exige um espaço público, a que só
tem acesso por meio de cidadania (1988, p. 22).

Convém ressaltar que a cidadania é a condição do ser hu-


mano que fixa obrigações e deveres às pessoas, evidenciando-se
a necessidade de um espaço público, que contribui para a igual-
dade entre os seres humanos. Contrariamente, o espaço privado
corrobora para a desigualdade entre as pessoas (CORRÊA, 2002,
p. 220). Nesse aspecto, a cidadania é imprescindível para dar ori-
gem a um espaço público que gere espaços de vivência e plenitude
para cada indivíduo, possibilitando a igualdade de condições e
respeitando as diferenças de cada ser humano.
No entanto, embora haja essa discussão acerca de uma re-
flexão e mudança na questão da cidadania, destaca-se que há
no ordenamento jurídico o Estatuto do Estrangeiro e várias pro-
postas de emenda à Constituição (PECs) visando à observância
de alguns direitos dos imigrantes. Entretanto, essas propostas
restringem-se à questão do voto dos imigrantes, sem atenção à
reinserção desses indivíduos em solo brasileiro.
Assim, não há previsão de leis sobre matérias trabalhistas
ou outras garantias aos imigrantes, apenas há menção nas PECs
sobre os imigrantes poderem exercer seu direito de voto, isto é,
escolher seus representantes para governar o país receptor. Po-
rém, como os imigrantes podem votar em território brasileiro,
se sequer têm direitos e garantias fundamentais previstos no

Do Senegal ao Rio Grande do Sul: integração e multiculturalismo

148
ordenamento jurídico? Isso demonstra o quanto o ordenamento
jurídico brasileiro é frágil no tocante aos direitos dos imigrantes.
Importa referir que em alguns países, como o Chile, a Vene-
zuela, a Colômbia, o Paraguai e o Uruguai, é permitido aos imi-
grantes participar do processo eleitoral. No Brasil, os imigrantes
são impedidos de escolher seus representantes, o que nega seu
direito à cidadania bem como lesa a proteção legal de seus di-
reitos. Dessa maneira, ao não observar o direito de sufrágio aos
imigrantes residentes no Brasil, lesam-se seus direitos humanos.
Para melhor compreensão acerca do direito ao voto de es-
trangeiros, faz-se mister salientar as PECs nº 33, de 2002; nº 14,
de 2007; nº 88, de 2007; nº 25, de 2012. Além dessas, a PEC mais
recente é a nº 347, de 2013. Enfatiza-se que todas essas propostas
abordam a questão do direito ao voto de imigrantes (BRASIL,
2007a, p. 1).
A PEC nº 33, de 2002, que origina uma nova alínea no § 1º
do artigo 14 da Constituição federal, oferece uma nova interpre-
tação ao § 2º e ao inciso I do § 3º do referido artigo, almejando con-
ceder facultativamente aos imigrantes a participação no processo
eleitoral. Consequentemente, os estrangeiros que quisessem vo-
tar poderiam fazê-lo (BRASIL, 2009, p. 14).
Em seguida, tem-se a PEC nº 401, de 2005, que objetiva-
va alterar o § 2º do artigo 14 da Constituição federal brasileira,
permitindo o alistamento eleitoral dos estrangeiros residentes no
Brasil por um tempo superior a cinco anos. Entretanto, essa PEC
foi arquivada no ano de 2007, com base no artigo 105 do Regi-
mento Interno da Câmara dos Deputados (BRASIL, 2005, p. 1).
Outrossim, há a PEC nº 14, de 2007, que propunha a mo-
dificação dos parágrafos 1º, 2º e 3º do artigo 14, propiciando aos
estrangeiros o direito ao voto facultativo nas eleições municipais.
Ainda, essa PEC esperava permitir aos imigrantes a candidatura

Aline Dip Toniolo, Luis Vaccari

149
a vereador municipal. Importa destacar que essa PEC encontra-
-se apensada à PEC nº 573, de 2006 (BRASIL, 2007a, p. 1).
Nesse sentido, há a PEC nº 88, de 2007, que previa a al-
teração do § 2º do artigo 14 da Constituição federal brasileira.
Os imigrantes que residissem no Brasil, mas que não se natu-
ralizassem, não tinham direitos de cidadania, pois não votavam
em território brasileiro. Logo, essa PEC permitiria o direito de
alistamento eleitoral, concedendo aos estrangeiros residentes de
forma legal no país, e com mais de 16 anos de idade, o direito
de decidir quem governaria o país por meio do direito ao voto.
Atualmente, a PEC encontra-se aguardando o estabelecimento
de comissão temporária pela Mesa (BRASIL, 2007b, p. 1).
Além disso, há a PEC nº 25, de 2012, que prevê a modifica-
ção dos artigos 5º, 12 e 14 da Constituição federal, concedendo
aos estrangeiros garantias inerentes aos brasileiros e permitindo
aos imigrantes que optaram por residir com caráter permanente
no Brasil o direito de participar ativa e passivamente do processo
eleitoral nas eleições municipais. Importa referir que essa PEC
encontra-se em tramitação (BRASIL, 2012, p. 1).
Ainda, há a PEC nº 347, de 2013, que propõe a modificação
do § 2º do artigo 14 da Constituição federal brasileira. Essa PEC
foi originada visando extinguir o tratamento diferenciado con-
ferido aos estrangeiros residentes no Brasil no que diz respeito
ao exercício de voto. Destarte, por meio dessa PEC, esperava-se
possibilitar aos imigrantes residentes no país por mais de quatro
anos e em situação regularizada em solo brasileiro o direito ao
voto. Atualmente, essa PEC encontra-se apensada à PEC nº 119,
de 2011 (BRASIL, 2013, p. 1).
Por conseguinte, analisaram-se as PECs que conferem tra-
tamento ao direito ao voto dos imigrantes, visto que eles optaram
pelo território brasileiro e, como exercem funções laborais, con-
tribuem para a economia, almejam melhores condições de vida,

Do Senegal ao Rio Grande do Sul: integração e multiculturalismo

150
fazem jus ao direito ao sufrágio universal, merecendo tutela legal
aos seus direitos, bem como são dignos de tratamento legal igual
ao conferido aos cidadãos brasileiros, pois o artigo 5º da Constitui-
ção federal brasileira elenca que “todos são iguais perante a lei,
sem distinção de qualquer natureza [...]” (BRASIL, 2009, p. 13).
Diante do exposto, como falar em gozar de direitos, se o imi-
grante não tem acesso ao sufrágio universal, não podendo votar.
Aliás, não se trata só de direito ao voto, mas faz-se necessário que
haja uma reflexão acerca da cidadania, pois o Brasil recebe um
fluxo cada vez maior de imigrantes. Por essa razão, os imigran-
tes que optam por residir no território brasileiro não podem ficar
desassistidos de direitos e garantias fundamentais.
Dessa maneira, é inadmissível que, no Brasil, não haja pre-
visão de normas de direitos trabalhistas para estrangeiros bem
como proteção de outros direitos humanos conferidos aos cida-
dãos brasileiros. As PECs preveem apenas o direito ao voto dos
imigrantes, e não fazem qualquer menção a outros direitos e ga-
rantias do ser humano. Diante disso, evidencia-se que o ordena-
mento jurídico brasileiro é frágil no que concerne ao direito dos
imigrantes, pois resta claro que não há proteção legal do direito
dos imigrantes no solo brasileiro.
Após essa abordagem acerca da ausência de previsão de di-
reitos aos imigrantes em solo brasileiro, passa-se a expor sobre o
direito de imigrar como um direito humano.

O direito de imigrar como um direito


humano: a desatenção à imigração
senegalesa no Rio Grande do Sul
Na primeira parte desta pesquisa, foi possível perceber que
o ordenamento jurídico brasileiro mostra-se frágil no tocante à
previsão de direitos aos imigrantes que optam por residir no país.
Aline Dip Toniolo, Luis Vaccari

151
Observa-se que no estado do Rio Grande do Sul, nas regiões Nor-
te e Centro-Oeste, há um intenso fluxo de imigrantes senegaleses
que escolhem o estado para residir e exercer atividades laborais.
Os imigrantes senegaleses configuram-se como refugiados,
pois abandonam sua terra natal, fugindo de conflitos e buscan-
do melhores condições de vida, exercendo atividades laborais e
enviando dinheiro aos seus familiares que se encontram no país
de origem. Muitos imigrantes vivem na ilegalidade no Brasil,
trabalham na informalidade, sem ter seus direitos trabalhistas
reconhecidos, e passam por muitas dificuldades, como será apre-
sentado no tópico a seguir.
O direito de imigrar é um direito humano e deve ser obser-
vado em sua plenitude, objetivando assegurar condições dignas
de sobrevivência aos imigrantes. Assim, quando a população imi-
grante senegalesa fica desassistida na sociedade, observa-se que
se ferem os direitos humanos. O direito de imigrar é um direito
humano. Todavia, os refugiados senegaleses no Brasil criam de-
safios tanto no aspecto socioeconômico como no aspecto jurídico.
Esses desafios devem-se à não observação de direitos e garantias
desses refugiados, situação que afronta o artigo 3º, IV, da Magna
Carta de 1988, que fixa a obrigação do Estado de “Promover o
bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, ida-
de e quaisquer outras formas de discriminação” (BRASIL, 2009,
p. 13).
Frisa-se que os direitos humanos decorrem dos direitos fun-
damentais, tendo uma pretensão universal e geral, que se esten-
de a todos os seres humanos. Segundo Moraes, os direitos huma-
nos consistem em:
[...] um conjunto institucionalizado de direitos e garantias do ser humano
que tem por finalidade básica o respeito a sua dignidade, por meio de
sua proteção contra o arbítrio do poder estatal e o estabelecimento de
condições mínimas de vida e desenvolvimento da personalidade humana
(MORAES, 2014, p. 54).

Do Senegal ao Rio Grande do Sul: integração e multiculturalismo

152
Assim, os direitos fundamentais propiciam o surgimento
dos direitos humanos, garantias com caráter universal e ineren-
tes ao ser humano. Esses direitos dividem-se em gerações ou di-
mensões, sendo que uma dimensão ou geração não se sobrepõe à
outra, assim, elas interagem. Nesse sentido, os direitos humanos
corroboram para o surgimento de outros direitos, e não para uma
sucessão de direitos.
Nas palavras de Sarlet (2003, p. 85), os direitos fundamen-
tais e os direitos humanos possuem igual delimitação conceitual
para muitos tratados e acordos nacionais e internacionais. Con-
vém destacar que, mesmo havendo divergências entre esses di-
reitos em razão de sua delimitação conceitual, esses direitos não
se excluem, sendo exercidos de maneira concomitante e simultâ-
nea, devendo ser zelados e respeitados por toda a sociedade.
Desse modo, entendimento semelhante apresenta Piovesan:
Partindo-se de um critério metodológico, que classifica os direitos hu-
manos em gerações, adota-se o entendimento de que uma geração de
direitos não substitui a outra, mas com ela interage. Isto é, afasta-se a
ideia da sucessão “geracional” de direitos, na medida em que se acolhe
a ideia de expansão, cumulação e fortalecimento dos direitos humanos
consagrados, todos essencialmente complementares e em constante
dinâmica de interação (1999, p. 123).

Nesse sentido, evidencia-se que os direitos humanos repre-


sentam uma unidade, um emaranhado de valores, que não po-
dem ser analisados individualmente, sob pena de perderem seu
significado. Por essa razão, caso não haja a concretização de ga-
rantias econômicas, sociais e culturais, direitos civis e políticos
resumir-se-ão a aspectos formais, bem como os direitos civis e po-
líticos dissociados da obediência à liberdade perdem o seu sentido
(PIOVESAN, 1999, p. 124).
Em decorrência disso, os direitos do homem são nortea-
dos por um vetor principiológico de suma importância nos tex-
tos constitucionais, inclusive na Constituição federal brasileira,

Aline Dip Toniolo, Luis Vaccari

153
princípio que consistiu em um alicerce para os outros direitos
humanos. Esse princípio denomina-se princípio da dignidade da
pessoa humana.
À vista disso, o princípio da dignidade da pessoa humana
é considerado valor supremo do texto constitucional, estando re-
presentado pelo artigo 1º, III da Constituição federal, do qual se
extrai que o ente estatal é democrático e destina-se “a assegurar
o exercício dos direitos sociais e individuais”, corroborando para
fundamentar a república federativa brasileira (SANTOS, 1999,
p. 20).
A delimitação conceitual de dignidade da pessoa humana
apresenta diversas formas. Importante contribuição traz Nunes
(2009, p. 48), quando afirma que “[...] dignidade é um conceito
que foi sendo elaborado no decorrer da história e chega ao início
do século XXI repleta de si mesma como um valor supremo, cons-
truído pela razão jurídica”.
Destarte, a dignidade possui valor jurídico, pois defende a
tutela de todos os indivíduos, independente de credo, raça ou con-
dição econômica. Diante disso, por meio da dignidade da pessoa
humana, almeja-se coibir quaisquer atos que lesem o homem.
Evidencia-se que a dignidade humana não se restringe a fatores
tais como nacionalidade ou outras contingências, como algumas
doutrinas apontam, mas consiste em uma garantia que prega a
proteção do ser humano. Camargo afirma que:
[...] pessoa humana, pela condição natural de ser, com sua inteligência
e possibilidade de exercício de sua liberdade, se destaca na natureza e
diferencia do ser irracional. Estas características expressam um valor
e fazem do homem não mais um mero existir, pois este domínio sobre
a própria vida, sua superação, é a raiz da dignidade humana. Assim,
toda pessoa humana, pelo simples fato de existir, independentemente
de sua situação social, traz na sua superioridade racional a dignidade
de todo ser (1994, p. 27).

Por isso, é possível afirmar que a dignidade da pessoa hu-


mana é um princípio basilar e que merece plena atenção por
Do Senegal ao Rio Grande do Sul: integração e multiculturalismo

154
parte de todos os agentes sociais. Logo, a dignidade da pessoa
humana é um princípio de suma relevância para o ordenamento
jurídico brasileiro e deve ser respeitado sob todos os aspectos, em
especial quando se trata dos imigrantes.
O Brasil é signatário de diversos tratados internacionais de
direitos humanos e participa da Convenção das Nações Unidas,
no que diz respeito ao Estatuto dos Refugiados. Aliás, o Brasil
promulgou, em meados de 1997, a Lei de Refúgio, Lei nº 9.474.
Esse diploma legal expande a delimitação conceitual de refugia-
do, diferentemente do teor da Declaração de Cartagena, abran-
gendo como uma das hipóteses de refúgio qualquer violação aos
direitos humanos, segundo o Alto Comissariado das Nações Uni-
das para Refugiados (ACNUR) (2016, p. 1).
A partir de meados de 2002, o Brasil passou a integrar a
Convenção das Nações Unidas, referente ao Estatuto dos Apátri-
das, de 1954, e no término de 2007 aderiu à Convenção da ONU
sobre o apátrida, de 1961. Outrossim, a Lei nº 9.474, de 1997,
estabeleceu o Comitê Nacional para Refugiados (Conare). O Co-
nare é incumbido das seguintes atribuições: formular políticas
públicas para os refugiados, corroborar para a integração desses
indivíduos no território brasileiro, fornecer documentos de iden-
tificação e de trabalho aos refugiados, dar liberdade de locomoção
em solo brasileiro e garantir direitos civis (ACNUR, 2016).
O número de imigrantes que almejam adquirir condição de
refugiados no Brasil, em 2013, dobrou em relação a 2012; foram
5.256 em 2013. Em relação a 2010, o aumento foi de 800%. Es-
pera-se que, em 2014, o número de solicitações chegue a 15 mil
(TEDESCO; MELLO, 2015, p. 152). Segundo dados do ACNUR,
o Brasil:

Aline Dip Toniolo, Luis Vaccari

155
[...] possui atualmente (em outubro de 2014) 7.289 refugiados reco-
nhecidos, de 81 nacionalidades distintas (25% deles são mulheres) –
incluindo refugiados reassentados. Os principais grupos são compostos
por nacionais da Síria, Colômbia, Angola e República Democrática do
Congo (RDC). Este perfil vem mudando gradualmente desde 2012,
quando o país adotou uma cláusula de cessação de refúgio aplicável
aos angolanos e liberianos, com base em orientação global expedida
pelo ACNUR em junho do mesmo ano. Conforme a portaria do Minis-
tério da Justiça nº 2.650 (de outubro de 2012), estes estrangeiros estão
recebendo a residência permanente no país, em substituição ao status
de refugiado (2016, p. 1).

Convém mencionar que ocorreu uma elevação expressiva


no número de refugiados no Brasil. Até meados de 2014, já ha-
via aproximadamente 8.267 solicitações de refúgio, sendo em sua
maioria de imigrantes da África e Ásia. Além disso, observa-se
que há uma expansão no número de refugiados reconhecidos no
Brasil, visto que essa população continua crescendo (ACNUR,
2016).
Salienta-se que o desenvolvimento de um país encontra-se
vinculado ao desenvolvimento cultural, jurídico e intelectual. Por
sua vez, os estrangeiros, quando ingressam no território brasilei-
ro, introduzem sua cultura e se submetem aos costumes locais.
Dessa maneira, o imigrante senegalês deve ser visto como um
homem de direitos, que contribui com a economia e a cultura do
país. Nesse sentido, quando se fala em participação política, re-
mete-se à democracia.
Segundo o entendimento de Sancho:
La Declaración sobre el Derecho al Desarrollo advierte ya en su preám-
bulo esa pluridimensionalidad, al afirmar que el desarrollo es un proceso
global, económico, social, cultural y político. A estas cuatro dimensiones
habremos de añadir hoy la dimensión ambiental.
Ciertamente no puede olvidarse la dimensión política, que podemos sub-
titular como desarrollo y democracia. Porque el desarrollo significa sobre
todo participación, como nos dice claramente la Declaración de 1986,
en su art. 2, párrafo 3. En todo caso la libre participación se produce
sobre todo en tres momentos: El de la adopción de decisiones públicas
del tipo que fuere, el de la ejecución de las mismas y finalmente el del
control de esa ejecución. Esta participación potencia a la sociedade civil,
a los agentes no estatales (2007, p. 191).

Do Senegal ao Rio Grande do Sul: integração e multiculturalismo

156
Diante disso, é possível salientar que os imigrantes não são
obstruções para o grupo social. Veja-se que os estados e/ou regiões
abastadas necessitam cada vez mais de imigrantes e as regiões
carentes passam a acumular esses estrangeiros. Por isso, há uma
imensa procura por imigrantes de um lado e uma imensa oferta
de outro, mesmo que, nesse equívoco econômico, as demografias
e, em especial, a parcela de imigrantes pobres não desempenhem
as aspirações de mercado (TEDESCO; MELLO, 2015, p. 17).
Assim, se o direito de imigrar é um direito do ser humano,
porque não atentar aos direitos dos imigrantes senegaleses? Sa-
lienta-se que a maioria dos imigrantes senegaleses que optam
por residir no Brasil tem o objetivo de trabalhar, para melhorar
sua condição de vida e auxiliar os familiares que ficaram no país
de origem. Os imigrantes senegaleses que escolhem o Rio Grande
do Sul sofrem com a ausência de legislação que tutele seus direi-
tos, já que eles abandonam a terra natal e se submetem a novos
costumes, convivendo com os indivíduos de outro país, passando
por muitas dificuldades. Logo, ser estrangeiro não é uma situa-
ção fácil, pois há adversidades a serem enfrentadas bem como a
falta de previsão legal para zelar por seus direitos.
Em consequência disso, há incertezas quanto às normas le-
gais e às leis que regem a condição legal dos imigrantes, o que
acarreta que os estrangeiros estejam destituídos de resguardo
político e jurídico. Em virtude disso, a aspiração dos imigrantes
passa a ser a legitimação de sua permanência no país em que
optaram viver (TEDESCO; MELLO, 2015, p. 151).
Conforme aponta Freud:
O estrangeiro é o estranho que nos habita e que pouco sabemos; é o
nosso inconsciente e, por isso, no encontro do estrangeiro/imigrante com
o hospedeiro há resistência para a alteridade do outro, pois implicaria
em abrir-se à nova cultura e reconhecer o outro, estranhar-se e permitir
o balanço de nossa prévia segurança (1976, p. 25).

Aline Dip Toniolo, Luis Vaccari

157
Assim, a imigração origina uma existência multicultural
que corrobora para a principal característica das sociedades atu-
ais. Em virtude disso, o multiculturalismo define o globo e a or-
ganização da esfera social, manifestando demandas de reconhe-
cimento das diferentes culturas no território. O resultado disso
observa-se na construção de identidades no interior das regiões
receptoras de imigrantes. As sociedades dessas regiões serão
compostas por autóctones e estrangeiros estabelecendo referen-
ciais simbólicos (TEDESCO; MELLO, 2015, p. 250).
É inegável que a interculturalidade constrói um vínculo en-
tre indivíduos das mais diferentes culturas, que dividem sabe-
res. Consequentemente, os autóctones impulsionam um amplo
conhecimento acerca dos imigrantes (TEDESCO; MELLO, 2015,
p. 251). Igualmente, a interculturalidade floresce em meio a um
cenário amplamente competitivo, capitalista e que reflete, mui-
tas vezes, na exploração laboral de classes menos favorecidas,
inclusive em um momento em que muitos agentes sociais que
detém o poder criminalizam estrangeiros, construindo muralhas
para impedir a entrada de imigrantes em seus países.
Entretanto, a interculturalidade não se restringe apenas
aos fluxos migratórios, abrangendo acontecimentos históricos,
noções de sociedade, identidade cultural, convivência entre os
agentes sociais nas intituladas sociedades multiculturais. Isso
resulta em uma transmutação, de modo que o imigrante fica con-
fuso em relação à sua própria identidade. Dessa maneira, Tedes-
co aponta que:
O imigrante tem dificuldade em absolutizar sua identidade, aliás, sua
situação de imigrante não lhe permite isso; fazem parte de sua perfor-
mance de imigrante os limites e a necessidade do outro, assim como
para os autóctones; possui uma sociabilidade de trânsito e muito de
transição (2010, p. 277).

Destarte, evidencia-se a importância de abandonar os ve-


lhos estereótipos e não ver o imigrante senegalês como uma fon-
Do Senegal ao Rio Grande do Sul: integração e multiculturalismo

158
te de recursos econômicos ou como uma ameaça interferente na
estrutura social. Outrossim, é preciso deixar de lado discrimina-
ções e quaisquer formas de racismo. Frisa-se, ainda, que a inter-
cultura cria as mais variadas emoções e altera concepções acerca
de vínculo familiar, atividades laborais, setor educacional, etc.
Após constatar que a imigração é um direito humano e não
apenas um fenômeno que corrobora para que haja intercultura-
lidade nas sociedades multiculturais, passa-se a expor acerca da
imigração senegalesa no Rio Grande do Sul e a necessidade de
reinserção desses indivíduos na esfera social.

A imigração senegalesa no
Rio Grande do Sul: implantação de
políticas públicas voltadas
aos direitos humanos
Há uma forte predominância da imigração senegalesa no
Rio Grande do Sul. Esse fluxo imigratório justifica-se por diversos
motivos, porém, especialmente, por fatores econômicos, pois, no
Rio Grande do Sul, os imigrantes senegaleses acreditam que po-
dem encontrar emprego. Consequentemente, ao arrumar um em-
prego, muitos imigrantes senegaleses almejam guardar dinheiro
para enviar a seus familiares que continuaram em Senegal.
Convém destacar que os imigrantes senegaleses ingressam
no Brasil por várias entradas, entre as quais se destacam: via Ar-
gentina e Uruguaiana ou Bolívia e Acre. Há também estrangei-
ros que obtiveram vistos oficiais e entraram por Fortaleza, São
Paulo e Rio de Janeiro (TEDESCO; MELLO, 2015, p. 136).
Entre algumas razões que contribuíram para a migração
de senegaleses para o Brasil, destacam-se a expansão da erosão
costeira e salinização da terra, a reduzida lucratividade e escas-

Aline Dip Toniolo, Luis Vaccari

159
sez da atividade da pesca. Acrescentam-se a esses fatores a baixa
rentabilidade dos produtos agrícolas, as secas e o fim da cober-
tura vegetal. Nesse aspecto, percebe-se que a migração acaba
alterando as relações familiares, sociais e culturais, bem como
modifica os costumes dos imigrantes senegaleses (TEDESCO;
MELLO, 2015, p. 137).
Segundo Tedesco e Mello (2015, p. 131), “[...] de acordo com
informações colhidas na unidade regional do Departamento da
Polícia Federal de Passo Fundo, havia, até o mês de dezembro de
2014, o registro de passagem de aproximadamente 450 imigran-
tes”. De acordo com o presidente da Associação de Senegaleses
em Passo Fundo:
[...] havia (em novembro de 2014) aproximadamente 580 senegaleses na
região; segundo o presidente, em 2013, havia um contingente maior, em
torno de 700, porém, muitos migraram para outros estados ou cidades
como Caxias do Sul e Chapecó, ou mesmo para outros estados como Per-
nambuco, São Paulo e Mato Grosso (TEDESCO; MELLO, 2015, p. 132).

Os imigrantes senegaleses chegam ao Rio Grande do Sul e,


muitas vezes, não ficam muito tempo em um município ou mesmo
no próprio estado. Por essa razão, torna-se difícil precisar o nú-
mero exato de imigrantes senegaleses no Rio Grande do Sul. Nes-
se aspecto, além da questão financeira, do auxílio recebido para
emigrar, grande parcela dos imigrantes senegaleses afastou-se
de seus entes queridos, de relacionamentos sociais, de tradições
e costumes, para buscar condições dignas de vida, enfrentando
muitas dificuldades para se inserir na sociedade hospedadora.
Além disso, a burocracia para regularização da situação de
refugiado ou de estrangeiro enfrentada pelos imigrantes sene-
galeses é uma tarefa árdua. No momento em que os imigrantes
chegam ao país, deparam-se com o despreparo dos funcionários
estatais. A ausência de informações e de esclarecimento sobre
seus direitos, a falta de legislação, a concessão de vistos sem pa-
râmetros objetivos estão entre as principais reclamações dos imi-
Do Senegal ao Rio Grande do Sul: integração e multiculturalismo

160
grantes senegaleses, quando situados no sul do país (TEDESCO;
MELLO, 2015, p. 151).
Observa-se que provar a situação de refugiado não é uma
tarefa fácil. Para tanto, é necessário que o imigrante comprove
perseguição em algum âmbito (religioso, político, racial, entre ou-
tros), fato difícil de ser comprovado, pois o Senegal é considerado
um país em que impera a democracia. Além disso, muitos imi-
grantes senegaleses, para chegarem ao Brasil, caem em mãos de
máfias, que abusam da fragilidade desses imigrantes cobrando
altas somas para liberar vistos de entrada.
Nas palavras de Tedesco e Mello (2015, p. 153),
[...] há imigrantes que tiveram que desembolsar dinheiro para entrar no
Brasil, pois os imigrantes senegaleses passam pelo crivo das mediações
mafiosas, que para viabilizar os vistos de entrada, cobram altos valores.

Além dessas armadilhas das máfias, os senegaleses aca-


bam defrontando-se com problemas de adaptação, dificuldades
em manter suas práticas religiosas e obstáculos de comunicação
na região em que se estabelecem.
Desse modo, a permanência longe dos vínculos familiares
corrobora para a alteração de mecanismos consolidados nas tra-
dições sociais dos senegaleses e no seio familiar em particular.
Evidencia-se, assim, que a emigração põe ameaça à estrutura da
figura masculina de pai/esposo. Aliás, os obstáculos superados pe-
los imigrantes somam-se aos problemas financeiros dos familia-
res que ficaram em Senegal (TEDESCO; MELLO, 2015, p. 160).
No tocante ao mercado de trabalho, muitos imigrantes se-
negaleses não conseguiram manter-se em atividades laborais
semelhantes às que mantinham em seu país de origem. Entre
as principais atividades laborais executadas pelos senegaleses,
citam-se: encanador, chapeador, pintor, auxiliar de obras de cons-
trução civil e vendedor ambulante (TEDESCO; MELLO, 2015,
p. 147).

Aline Dip Toniolo, Luis Vaccari

161
No que concerne à moradia, frisa-se que os senegaleses
habitam moradias coletivas. Consoante Tedesco e Mello (2015,
p. 147), os imigrantes senegaleses optam por residir em “apar-
tamentos, casas, porões de casas, na grande maioria em espaços
periféricos da cidade onde às exigências para alugar e os preços
são mais favoráveis aos imigrantes”.
Em uma entrevista, um líder senegalês fala sobre os imi-
grantes senegaleses:
O Senegalês vive meio fechado e em grupo, porque tem receio de se
misturar; já se vive em grupo para não precisar do outro dos daqui. A
língua não ajuda a se expressar, então fica junto com os parceiros no
país, do Senegal, não é. Com isso, nem os daqui se misturam e ninguém
quer saber muito do outro. Dizem que estão aqui para trabalhar e deu,
mas se houvesse mais integração, aprenderiam a língua mais rápido.
Quando eu vim aqui quase não tinha senegalês e eu fiquei no meio
dos brasileiros e aprendi a falar em pouco tempo. [...]. Eu digo sempre
para eles se integrarem, é melhor para eles e os daqui ficam sabendo
que fomos pacíficos, solidários e trabalhadores (TEDESCO; MELLO,
2015, p. 242).

Todavia, os imigrantes senegaleses valorizam muito a soli-


dariedade, procuram não deixar nenhum de seus compatriotas
passar fome. Tedesco e Mello apresentam uma entrevista com
o líder do grupo de imigrantes estabelecidos em Passo Fundo,
principal centro de concentração de imigrantes senegaleses no
Rio Grande do Sul:
Eu mesmo tenho dificuldade de saber; uns chegam e outros saem, depois
retornam ou não. [...]. Na minha empresa no último mês mais de 200
enviaram dinheiro aos familiares. [...]. A religião é importante para
nós, com ela os parceiros migram com mais segurança porque têm a
solidariedade, tem a ajuda, ninguém que é Muride no mundo todo fica
sem um teto para dormir e um prato de comida para comer se tem outro
já lá do grupo (TEDESCO; MELLO, 2015, p. 160).

Percebe-se que a maioria dos imigrantes senegaleses que


vem para o Rio Grande do Sul é jovem, representando uma forte
mão de obra, e por isso são vistos por muitos brasileiros como

Do Senegal ao Rio Grande do Sul: integração e multiculturalismo

162
uma ameaça às vagas a serem preenchidas no mercado de traba-
lho. Porém, ressalta-se que esses imigrantes acabam ocupando
vagas laborais desprezadas pelos indivíduos das regiões onde se
estabelecem, de modo que não se configuram como um perigo.
Ademais, os imigrantes senegaleses defrontam-se com os
inconvenientes da língua, visto que muitos não entendem o idio-
ma falado no Brasil, não conseguindo comunicar-se normalmen-
te. Ainda, passam por diversos preconceitos e discriminações.
Nesse sentido, Ambrosini explica que:
Os imigrantes são geralmente jovens, sozinhos, e adaptados ao trabalho.
Por esta razão, a imigração é encorajada por uma mão invisível pelas
empresas que colocam prazerosamente imigrantes em numerosos postos
de trabalho disponível e não prazerosos. Basta ver as estatísticas. Os
imigrados trabalham mais, todos trabalham, não permanecem jamais
na mendicância, e, pelo fato de serem jovens e hábeis não têm tanta
necessidade de médicos, comparados ao resto da população. Dizendo de
uma forma simples: eles custam pouco e dão lucro (2005, p. 73).

Diante de tantos desafios enfrentados pelos imigrantes se-


negaleses e da ausência de uma legislação para tutelar seus direi-
tos, por que não investir em políticas públicas para reintegrá-los
na sociedade? Veja-se que imigrar é um direito humano, porém,
os imigrantes enfrentam muitas adversidades nas sociedades
hospedadoras. Constata-se que uma das principais dificuldades
a que estão sujeitos os imigrantes diz respeito ao afastamento do
vínculo familiar. Sabe-se que é na entidade familiar que o indi-
víduo molda a sua identidade e define a sua personalidade. No
entendimento de Honneth, percebe-se que:
Ao lado da totalidade de uma família é colocada, de certo modo analiti-
camente, uma série de identidades familiares semelhantes, de sorte que
resulta daí um primeiro estado de convívio social; na medida em que
cada uma das famílias co-existentes deve se “apoderar de uma porção
de terra” para seu “bem” econômico, ela exclui necessariamente a outra
de seu uso comum da própria terra (2003, p. 82-83).

Aline Dip Toniolo, Luis Vaccari

163
Em seguida, os imigrantes senegaleses tem de se adaptar a
novas tradições e costumes bem como a uma nova forma de vida.
Os imigrantes laboram, mas não têm tutelados os seus direitos
trabalhistas. Verificou-se, no primeiro tópico, que, para os imi-
grantes, há propostas de emendas à Constituição versando sobre
o direito de voto. No entanto, como eles poderão votar se não há
proteção de outros direitos e se nem sequer eles estão inseridos
na sociedade? Assim, os imigrantes senegaleses vivem em con-
dições desiguais perante os indivíduos da sociedade brasileira.
Mas, como garantir condições de igualdade aos indivíduos que
escolheram residir no Brasil, em especial no Rio Grande do Sul,
se não for por meio de políticas públicas?
De acordo com Rawls (1993), deveria ser observada a ques-
tão da cidadania, que é definida por garantias, pela liberdade e
pelo vetor principiológico da igualdade equitativa de oportunida-
des. Dessa maneira, Rawls explica que, “[...] quando o princípio
equitativo de oportunidades é satisfeito, todos são cidadãos iguais
e o problema das liberdades fundamentais é resolvido, tendo por
referência a cidadania igualitária que se resume na igualdade de
oportunidades” (1993, p. 125).
Diante disso, ao criar políticas públicas para integrar os
imigrantes senegaleses na sociedade, programas como cursos
técnicos para reinserção no mercado de trabalho e cursos de lín-
guas, visando ao ensino do idioma brasileiro, seriam algumas
medidas que auxiliariam a melhorar as condições de vida desses
imigrantes em solo brasileiro.
Veja-se, já que eles escolheram residir no Brasil, não há ra-
zões para deixá-los desassistidos e desprovidos de uma legislação
que resguarde seus direitos. Igualmente, os imigrantes senegale-
ses merecem um tratamento igualitário ao conferido aos indiví-
duos que compõem a sociedade que os hospeda, fato que melhora-
ria a convivência social, trazendo benefícios não apenas para os
imigrantes, mas também para a população local.

Do Senegal ao Rio Grande do Sul: integração e multiculturalismo

164
Considerações finais
A imigração é um fenômeno que acarreta efeitos no tempo e
no espaço, bem como se configura como um direito do ser huma-
no. Constata-se um enorme fluxo de imigrantes senegaleses in-
gressando no Brasil, enfrentando diversos problemas, sendo que
a maior concentração está no Rio Grande do Sul.
Além disso, a maior parcela de imigrantes caracteriza-se
como jovens que vêm em busca de emprego, para ganhar dinhei-
ro e enviar para seus familiares que permaneceram no país de
origem. Entretanto, quando chegam ao Brasil, esses imigrantes
deparam-se com novos costumes e tradições, além de outras difi-
culdades de adaptação.
Ainda, os imigrantes senegaleses sofrem com a ausência de
uma legislação que resguarde seus direitos, em especial, que re-
gule os direitos trabalhistas de imigrantes. Há várias propostas
de emenda à Constituição propondo que se conceda aos imigran-
tes direito ao voto. No entanto, isso é pouco, diante de direitos e
garantias a que fazem jus os imigrantes. Logo, já que eles opta-
ram pelo Rio Grande do Sul, seria justo que tivessem seus direi-
tos e garantias resguardadas, como também que usufruíssem de
iguais direitos aos dos indivíduos brasileiros.
Para haver igualdade, algumas medidas básicas seriam ne-
cessárias, que consistiriam em políticas públicas de inserção dos
imigrantes senegaleses na sociedade multicultural. Como políti-
cas públicas, poder-se-iam citar: cursos profissionalizantes para
reinserção no mercado de trabalho, ensino do idioma brasileiro e
a criação de leis que zelassem pelos direitos dos imigrantes.
Assim, por meio dessas medidas simples, seria possível me-
lhorar a qualidade dos imigrantes senegaleses, garantindo-lhes
condições mínimas de dignidade e bem-estar social. Além disso,
seriam observados os direitos humanos, visto que o direito de
imigrar é um direito humano que merece plena proteção legal.

Aline Dip Toniolo, Luis Vaccari

165
Referências
ALTO COMISSARIADO DAS NAÇÕES UNIDAS PARA REFUGIADOS.
Dados sobre o refúgio no Brasil. Balanço até abril de 2016. Disponível em:
<http://www.acnur.org/t3/portugues/recursos/estatisticas/dados-so>. Acesso
em: 25 jun. 2015.
AMBROSINI, M. L´immigrations em Itale. Le cas I´aide à domicili em Lom-
bardie. Migrations Société, Paris, v. 17, n. 102, p. 71-88, nov./déc. 2005.
BAUMAN, Zygmunt. O mal-estar da pós-modernidade. Rio de Janeiro:
Zahar, 1997.
BOURDIEU, Pierre. A imigração ou os paradoxos da alteridade. In: SAYAD,
A. A imigração. São Paulo: Edusp, 1991. p. 9-12.
BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Bra-
sil. Brasília: Senado Federal, 2009.
_______. Proposta de Emenda à Constituição nº 14, 8 de março de 2007. Dá
nova redação ao § 5º do art. 40 e ao § 8º do art. 201 da Constituição Federal.
Brasília, DF, 2007a. Disponível em: <http://www.camara.gov.br/proposico-
esWeb/fichadetramitacao?idProposicao=344176>. Acesso em: 27 jun. 2015.
_______. Proposta de Emenda à Constituição nº 25, de 15 de maio de 2012.
Altera os arts. 5º, 12 e 14 da Constituição Federal para estender aos estran-
geiros direitos inerentes aos brasileiros e conferir aos estrangeiros com resi-
dência permanente no País capacidade eleitoral ativa e passiva nas eleições
municipais. Brasília, DF, 2012. Disponível em: <http://www.senado.leg.br/
atividade/materia/detalhes.asp?p_cod_mate=105568>. Acesso em: 28 jun.
2015.
_______. Proposta de Emenda à Constituição nº 88, de 4 de outubro de 2007.
Dá nova redação ao § 2º do art. 14 da Constituição Federal, de modo a per-
mitir o alistamento eleitoral de estrangeiro residentes no Brasil. Brasília,
DF, 2007b. Disponível em: <http://www.senado.gov.br/atividade/materia/de-
talhes.asp?p_cod_mate=82695>. Acesso em: 27 jun. 2015.
_______. Proposta de Emenda à Constituição nº 347, de 2013. Altera a re-
dação do inciso III do art. 208 da Constituição Federal. Brasília, DF, 2013.
Disponível em: <http://www.camara.gov.br/proposicoesWeb/fichadetramita-
cao?idProposicao=428932>. Acesso em: 29 jun. 2015.
_______. Proposta de Emenda à Constituição nº 401, de 31 de maio de 2005.
Altera a redação do § 2° do art. 14 da Constituição Federal. Brasília, DF,
2005. Disponível em: <http://www.camara.gov.br/proposicoesWeb/fichade-
tramitacao?idProposicao=287461>. Acesso em: 27 jun. 2015.
CAMARGO, A. L. Chaves. Culpabilidade e reprovação penal. São Paulo:
Sugestões Literárias, 1994.
CORRÊA, Darcísio. A construção da cidadania: reflexões histórico-políticas.
3. ed. Ijuí: Unijuí, 2002.
Do Senegal ao Rio Grande do Sul: integração e multiculturalismo

166
DAL RI, Luciene. A construção da cidadania no Brasil: entre Império e Pri-
meira República. Espaço Jurídico, Joaçaba, v. 11, n. 1, p. 7-36, jan./jun. 2010.
FREUD, S. O estranho. Rio de Janeiro: Imago, 1976. (Obras Completas, v. XXI).
HONNETH, Axel. Luta por reconhecimento: a gramática moral dos conflitos
sociais. Tradução de Luiz Repa. São Paulo: Editora 34, 2003.
LAFER, Celso. A reconstrução dos direitos humanos: um diálogo com o pen-
samento de Hannah Arendt. São Paulo: Companhia das Letras, 1988.
MARSHALL, T. H. Cidadania, classe social e status. Tradução de Meton
Porto Gadelha. Rio de Janeiro: Zahar, 1967.
MORAES, Alexandre de. Direito constitucional. 30. ed. São Paulo: Atlas,
2014.
NUNES, Rizzatto. O princípio constitucional da dignidade da pessoa huma-
na: doutrina e jurisprudência. 2. ed. rev. e ampl. São Paulo: Saraiva, 2009.
PIOVESAN, Flávia. A Constituição brasileira de 1988 e os tratados interna-
cionais de proteção dos direitos humanos. In: BOUCAULT, Carlos Eduardo
de Abreu; ARAUJO, Nadia de. Os direitos humanos e o direito internacio-
nal. Rio de Janeiro: Renovar, 1999. p. 115-138.
RAWLS, John. Uma teoria da justiça. Lisboa: Presença, 1993.
RODRIGUES, Luis Fernando de Abreu. O espírito das leis. Curitiba: Juruá, 2000.
SANCHO, Àngel G. Chueca. Ius migrandi y el derecho humano al desarrolho.
Eikasia, Revista de Filosofia, Oviedo, v. 2, n. 8, enero 2007. Disponível em:
<http://www.revistadefilosofia.org/11angelchueca.pdf>. Acesso em: 15 jul. 2015.
SANTOS, Fernando Ferreira. Princípio constitucional da dignidade da pes-
soa humana: uma análise do inciso III, do art. 1º, da Constituição federal de
1988. São Paulo: Instituto Brasileiro de Direito Constitucional, 1999.
SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais. Porto Alegre:
Livraria do Advogado, 2003.
SAYAD, Abdelmalek. L`immigrazione oi paradossi dell’alterità. Verona:
Ombre Corte, 2008.
SIMMEL, Georg. Sociologia: estúdios sobre las formas de socialización. Ma-
drid: Castilla, 1977.
TEDESCO, João Carlos. Estrangeiros, extracomunitários e transnacionais:
paradoxos da alteridade nas migrações internacionais. Passo Fundo: UPF
Editora, 2010.
_______. Imigração e integração cultural: interfaces – brasileiros em Verona,
Itália. Passo Fundo: UPF Editora, 2003.
TEDESCO, João Carlos; MELLO, Pedro Alcides Trindade de. Senegaleses
no Centro-Norte do Rio Grande do Sul: imigração laboral e dinâmica social.
Porto Alegre: Letra & Vida, 2015.

Aline Dip Toniolo, Luis Vaccari

167
A função da tolerância
na mediação

Aline Trindade do Nascimento*


Elias Benetti Fortuna**

A paz não pode ser mantida à força.


Somente pode ser atingida pelo entendimento.
Albert Einstein

Introdução
A resolução amigável dos conflitos por meio da mediação
ganha cada vez mais força no cenário atual, uma vez que consiste
em uma alternativa célere e eficaz de resolução de conflitos. As-
sim, a proposta deste trabalho é analisar os mecanismos neces-
sários para a resolução dos conflitos por meio da mediação e, so-
bretudo, compreender o papel da tolerância nesse procedimento.
Para tanto, na primeira parte, analisa-se o conceito de me-
diação, a função do mediador na realização desse procedimento
e apresentam-se os princípios que fundamentam esse instituto.
Além disso, busca-se distinguir a mediação da conciliação e da
arbitragem, de modo a evitar que o leitor permaneça com dúvidas
quanto a esses três meios alternativos de resolução de conflitos.

*
Mestranda em Direito na Universidade de Passo Fundo. Bolsista da Capes/Prosup.
E-mail: alineh.nascimento@hotmail.com
**
Acadêmico de Direito na Universidade de Passo Fundo. Estudante pesquisador no
projeto de pesquisa Reconhecimento e Tolerância em Sociedades Multiculturais.
Bolsista Pivic Universidade de Passo Fundo. E-mail: eliasbenetti@hotmail.com
Na segunda parte, estuda-se a função da tolerância na me-
diação, quando se procura destacar os benefícios que as atitudes
tolerantes e cooperativas podem trazer para a sociedade, sobre-
tudo durante a realização da mediação. Além disso, são apresen-
tadas algumas considerações sobre as consequências negativas
da intolerância, bem como algumas sugestões sobre como deses-
timular atitudes intolerantes na vida em sociedade.

A mediação
Sabe-se que o acesso à justiça é uma garantia fundamental,
que não se pode confundir com o acesso ao Judiciário. O acesso
à justiça está mais relacionado com a satisfação do usuário com
o resultado do processo do que com o mero acesso ao Poder Judi-
ciário, que está preocupado com a efetiva solução do conflito por
meio da adequada participação do Estado. Conforme informações
do Conselho Nacional de Justiça, pesquisas recentes demons-
tram que a satisfação dos usuários com o devido processo legal
depende fortemente de sua participação na seleção dos processos
a serem utilizados para dirimir o conflito. Tais estudos revelaram
que a participação aumenta significativamente a percepção de
justiça (BRASIL, 2015, p. 35).
É evidente que nenhuma sociedade é perfeitamente homo-
gênea. Conflitos e desacordos são partes integrantes das relações
sociais e não necessariamente sinais de instabilidade e rompi-
mento. Por vezes, o conflito traz mudanças, estimulando ino-
vações; enquanto em outras, resulta em desacordos, discórdias,
controvérsias, turbulências, assim como em choques e enfrenta-
mentos (MORAIS; SPENGLER, 2012, p. 52-53). Uma situação
conflituosa geralmente é fruto de uma complexa imbricação de
inúmeras causas e, para solucionar o conflito, é importante in-
tervir em cada uma das causas que compõem o desacordo (MUL-
LER, 2007, p. 147).
Aline Trindade do Nascimento, Elias Benetti Fortuna

169
Ocorre que a cultura da judicialização dos conflitos ainda
persiste no Brasil, de modo que é comum esperar que o Judiciário
apresente a solução, diga quem tem mais direitos, mais razão ou
quem é o vencedor do litígio. Engessa-se com o intuito de se obter
a solução da lide em prol da segurança, ignorando que a reinven-
ção cotidiana e a abertura de novos caminhos são inerentes a um
tratamento democrático (MORAIS; SPENGLER, 2012, p. 69-70).
O resultado disso é visto nas inúmeras demandas judiciais em
tramitação, no sobrecarregamento do Judiciário e na ineficaz
prestação da tutela jurisdicional.
Por isso, estudar a mediação é interessante, pois esse mé-
todo alternativo de solução de conflitos tem gerado resultados
positivos para a sociedade, haja vista que por meio dele é possível
o reestabelecimento do diálogo entre os envolvidos, auxiliando na
resolução pacífica do problema. Seu objetivo não é tão somente o
acordo, mas restabelecer a comunicação, aproximar, estimular a
ponderação entre as partes. Assim também esclarece Luis Alber-
to Warat:
Parece-me importante salientar que o procedimento da mediação se
efetua sempre em nome do acordo: o que não significa que o acordo
seja importante. Diferentemente dos outros procedimentos jurídicos
e sociais, que se emprega como formas alternativas de resolução de
disputas, a mediação não tem como objetivo prioritário a realização
de um acordo. No meu entender, a função prioritária da mediação é
a produção da diferença, instalando o novo na temporalidade (2004,
p. 63).

É necessário ressaltar que o termo meio alternativo de reso-


lução de conflitos não é utilizado com unanimidade pela literatu-
ra, pois alguns pesquisadores entendem que o mais adequado é
se referir à mediação como um meio complementar de resolução
de conflitos, isso porque, como já dito, nem sempre resulta em
um acordo e pode servir de suporte para uma futura composi-
ção do litígio. No presente estudo, não se pretende aprofundar

A função da tolerância na mediação

170
o assunto, de modo que ambos os termos serão utilizados como
sinônimos.
A mediação é procedimento consensual, que auxilia as pes-
soas envolvidas a se encorajar a resolver uma divergência, são
elas as responsáveis pela tomada de decisão que melhor as sa-
tisfaça. A mediação representa, assim, um mecanismo de com-
posição de conflitos utilizado pelas próprias partes, que, movidas
pelo diálogo, podem encontrar uma alternativa moderada, eficaz
e satisfatória (SALES, 2010, p. 20). Esse instituto apresenta uma
proposta transformadora, pois ela não busca uma decisão de um
terceiro, mas a resolução pelas próprias partes, que recebem o
auxílio do mediador para administrá-lo. Esse procedimento não
se preocupa com o litígio, em outras palavras: com a verdade for-
mal contida nos autos. Visa, sobretudo, ajudar as partes a redi-
mensionar o conflito, aqui entendido como conjunto de condições
psicológicas, culturais e sociais que determinaram um choque de
atitudes e interesses no relacionamento das pessoas envolvidas
(WARAT, 2004, p. 60).
Nesse sentido:
A mediação é definida como um processo no qual se aplicam integral-
mente todas as técnicas autocompositivas e no qual, em regra, não há
restrição de tempo para sua realização. Naturalmente, há um planeja-
mento sistêmico para que o mediador possa desempenhar sua função
sem tais restrições temporais (BRASIL, 2015, p. 132).

Os envolvidos em um conflito não são obrigados a participar


da mediação, de modo que lhes é permitido continuar, suspender,
abandonar e retornar as negociações. Optar pela mediação é uma
faculdade apenas das partes, qualquer ato coercitivo é incompatí-
vel com esse procedimento de resolução de conflitos.
O papel desempenhado pelo mediador é fundamental para
o êxito da mediação. Ele consiste em um terceiro imparcial, que
tem a função de mediar o conflito entre os mediandos, auxiliando-
-os na resolução da demanda. Sua função não é apresentar uma
Aline Trindade do Nascimento, Elias Benetti Fortuna

171
proposta de acordo, mas ajudar na construção do entendimento
das partes. Atua como um facilitador da comunicação e busca
estimular os participantes a ponderarem. Para tanto, ele se situa
entre as partes divergentes, no meio, por isso é designado como
mediador.
O mediador é intermediário que se empenha em restabelecer a comu-
nicação entre ambos, levando-os à reconciliação. O mediador não está
investido de qualquer poder de coerção para impor uma solução aos
protagonistas. A mediação visa permitir que os dois adversários se
apropriem de “seu” conflito, numa cooperação mútua para gerenciá-lo,
controla-lo e solucioná-lo. O mediador é um “facilitador” da comunicação
entre os dois adversários para que possam expressar-se, escutar-se,
compreender-se e chegar a um acordo.
[...] o mediador não é neutro, é equitativo: procura dar a cada um o que
lhe é devido, para, assim, ganhar a confiança dos dois adversários e
facilitar o diálogo entre eles (MULLER, 2007, p. 152-153, grifo do autor).

É por meio do auxílio do mediador que os envolvidos podem


compreender as fraquezas de seus problemas e tratar o confli-
to satisfatoriamente. Por constituir um mecanismo consensual,
a mediação ajuda as partes a apropriarem-se do poder de gerir
seus conflitos, diferentemente da jurisdição tradicional, na qual
esse poder é conferido àqueles investidos das funções jurisdicio-
nais (MORAIS; SPENGLER, 2012, p. 132).
Embora o mediador exerça influência ao conduzir as comu-
nicações e/ou a negociação, é interessante destacar que as par-
tes podem se comunicar diretamente durante a mediação. Além
disso, o mediador pode e deve contribuir para a criação de op-
ções que superem a questão monetária, sendo permitido discutir
assuntos que não estão diretamente ligados à disputa, mas que
afetam a dinâmica dos mediandos (BRASIL, 2015, p. 21).
Também é importante destacar que a atuação do mediador
é regida por princípios fundamentais, que estão previstos no arti-
go 1º do Código de Ética de Conciliadores e Mediadores Judiciais:

A função da tolerância na mediação

172
Artigo 1° - [...] I – Confidencialidade – Dever de manter sigilo sobre
todas as informações obtidas na sessão, salvo autorização expressa
das partes, violação à ordem pública ou às leis vigentes, não podendo
ser testemunha do caso, nem atuar como advogado dos envolvidos,
em qualquer hipótese; II – Decisão informada – Dever de manter o
jurisdicionado plenamente informado quanto aos seus direitos e ao
contexto fático no qual está inserido. III – Competência – Dever de
possuir qualificação que o habilite à atuação judicial, com capacitação
na forma desta Resolução, observada a reciclagem periódica obrigatória
para formação continuada; IV – Imparcialidade – Dever de agir com
ausência de favoritismo, preferência ou preconceito, assegurando que
valores e conceitos pessoais não interfiram no resultado do trabalho,
compreendendo a realidade dos envolvidos no conflito e jamais aceitando
qualquer espécie de favor ou presente; V – Independência e autonomia
- Dever de atuar com liberdade, sem sofrer qualquer pressão interna ou
externa, sendo permitido recusar, suspender ou interromper a sessão
se ausentes as condições necessárias para seu bom desenvolvimento,
tampouco havendo dever de redigir acordo ilegal ou inexequível; VI –
Respeito à ordem pública e às leis vigentes – Dever de velar para que
eventual acordo entre os envolvidos não viole a ordem pública, nem
contrarie as leis vigentes. VII – Empoderamento – Dever de estimular
os interessados a aprenderem a melhor resolverem seus conflitos futu-
ros em função da experiência de justiça vivenciada na autocomposição.
VIII – Validação – Dever de estimular os interessados perceberem-se
reciprocamente como serem humanos merecedores de atenção e respeito
(BRASIL, 2010, p. 1).

Além dos princípios inerentes à função de mediador, existem


princípios básicos da mediação, que devem ser utilizados durante
todo o procedimento de resolução de conflitos. São eles: princípio
da voluntariedade, da autonomia, da privacidade, da informali-
dade, da economia financeira e de tempo e o da colaboração.
O princípio da voluntariedade esclarece que compete aos
envolvidos em um conflito escolher o método de mediação que
melhor lhes convir, estabelece que as partes são livres para optar
pela mediação, vedando qualquer ato coercitivo.
O princípio da autonomia assegura que a tomada das de-
cisões deve partir exclusivamente dos envolvidos, de modo que
eles encontrem a melhor solução para o problema. Nesse sentido,
Warat (2004, p. 60-63) refere que a autonomia da vontade pode

Aline Trindade do Nascimento, Elias Benetti Fortuna

173
ser estimulada pelo mediador, a ele não compete oferecer a solu-
ção do conflito, mas é sua atribuição auxiliar na manutenção e na
orientação do processo.
Já o princípio da privacidade assegura a essência sigilosa
da mediação. É dever do mediador informar às partes que ne-
nhum assunto tratado nas seções de mediações será público. As-
sim, busca-se deixar os envolvidos à vontade, com o intuito de
possibilitar o reestabelecimento da confiança e da comunicação.
Nesse sentido, entende Lilia Sales:
A mediação é um processo sigiloso e esse fato deve ser esclarecido às
partes desde o primeiro momento da mediação. O sigilo das informações
possibilita que as pessoas tenham considerável conforto ao discutir de
forma profunda e aberta os seus conflitos. O mediador não deve, em
hipótese alguma, revelar a terceiros o conteúdo do que foi discutido
(2010, p. 57).

Por princípio da informalidade entende-se que a mediação


é um processo informal, uma vez que não há normas formais que
conduzem o procedimento, existindo apenas orientações e prin-
cípios que devem ser observados. Tal informalidade possibilita a
análise do caso concreto, ou seja, da situação dos envolvidos, do
aspecto emocional, das circunstâncias, para que por meio de uma
análise profunda e atenta ajude no sucesso do procedimento.
Outro importante princípio é o da economia financeira e de
tempo, que procura esclarecer que a celeridade pode interferir no
custo processual, isso porque litígios morosos geralmente acar-
retam em custos para o Judiciário e, consequentemente, para as
partes. É conveniente mencionar que a demora na prestação da
tutela jurisdicional muitas vezes prejudica a realização da justi-
ça. Percebe-se, assim, que a agilidade da mediação é econômica
para as partes, tanto no âmbito financeiro, quanto no temporal,
além de estimular o sentimento de justiça entre os mediandos.
Ademais, existe também o princípio da colaboração, que
busca ressaltar que na mediação não há competição, pelo contrá-

A função da tolerância na mediação

174
rio, é necessário que os envolvidos estejam cientes de que cada
lado tem de ceder para que ambos saiam vencedores. Esse prin-
cípio é importante porque propicia a efetiva solução do conflito,
uma vez que assevera a importância da colaboração entre os en-
volvidos.
Convém também mencionar as semelhanças e as diferenças
entre a conciliação e a mediação. Ambas são semelhantes sob o
aspecto da celeridade e da resolução pacífica do conflito. Todavia,
diferem-se no que tange ao papel desempenhado pelo terceiro,
haja vista que o conciliador pode apresentar propostas de acordo.
Nota-se, também, que na conciliação a solução do conflito é su-
perficial quando comparada à mediação. Assim também enten-
dem Morais e Spengler:
[...] a diferença fundamental entre conciliação e mediação reside no
conteúdo de cada instituto. Na conciliação, o objetivo é o acordo, ou seja,
as partes, mesmo adversárias, devem chegar a um acordo para evitar o
processo judicial ou para nele pôr um ponto final, se porventura ele já
existe. Na conciliação, o conciliador sugere, interfere, aconselha, e na
mediação, o mediador facilita a comunicação sem induzir as partes ao
acordo. Na conciliação, resolve-se o conflito exposto pelas partes sem
analisá-lo com profundidade. Muitas vezes, a intervenção do concilia-
dor ocorre no sentido de forçar o acordo (MORAIS; SPENGLER, 2012,
p. 115).

Distintamente da conciliação, a mediação não tem como ob-


jetivo principal o acordo, que, muitas vezes, é consequência da
aproximação e do diálogo entre as partes, seu foco está em propi-
ciar a aproximação e a ponderação entre as partes.
Além disso, é importante diferenciar a mediação da arbitra-
gem. Embora ambas se constituam importantes ferramentas de
resolução de conflitos, na arbitragem, há instrução processual e
prolação de sentença. Apresenta, portanto, semelhanças com o
sistema judiciário, embora, na arbitragem, sejam as partes que
elegem o juiz arbitral. A respeito desse instituto, Morais e Splen-
ger entendem que:

Aline Trindade do Nascimento, Elias Benetti Fortuna

175
A arbitragem aparece como um sistema alternativo de extrema im-
portância, pois como se verá, o Estado confere as mesmas algumas
“faculdades jurisdicionais”, como outorgar às decisões arbitrais força
de coisa julgada, sem a necessidade de homologação das mesmas pelos
tribunais estatais (2012, p. 185).

Nesse sentido, Carlos Alberto Carmona esclarece que a ar-


bitragem pode ser conceituada como uma “intervenção de uma
ou mais pessoas que recebem seus poderes de uma convenção
privada, decidindo com base nela, sem intervenção estatal, sendo
a decisão destinada a assumir a mesma eficácia da sentença ju-
dicial” (2009, p. 31).
Desse modo, verifica-se que para optar pela mediação é ne-
cessário compreender que o desenvolvimento das hostilidades só
poderá prejudicar os envolvidos em um conflito, que um acordo
amigável pode apresentar um desfecho positivo ao conflito que
os opõe. O que se tem percebido é que o caráter autoritário da
intervenção judiciária, em vez de amenizar o conflito, pode agra-
var o problema. Geralmente, as decisões da justiça cortam o nó
de um conflito, designando um vencedor e um perdedor: há uma
parte que ganha o processo e outra que perde, e as duas deixam
o tribunal mais adversárias do que nunca. Em contrapartida, a
mediação não se preocupa em julgar um fato passado, mas toma-
-o como ponto de apoio para superá-lo, possibilitando aos adver-
sários/mediandos vencer antigas desavenças e recriar um futuro
livre das discórdias do passado (MULLER, 2007, p. 152).

A função da tolerância na mediação


Sabe-se que a mediação, assim como as outras práticas de-
mocráticas de tratamento dos conflitos, necessita, essencialmen-
te, da adesão social para obter o êxito pretendido. O tratamento
de um conflito é considerado democrático se os arranjos concretos
que lhe dão forma forem aceitos pelos conflitantes enquanto tal.

A função da tolerância na mediação

176
Lamentavelmente, não é o que ocorre na prática, conforme dito
no início deste texto, a sociedade persiste em recorrer ao Judiciá-
rio para resolver seus conflitos, ocorre que o modelo de jurisdição
atual, na maioria das vezes autoritário, repele o consenso. O com-
promisso significa composição negociada de discordâncias. As
próprias regras do jogo democrático requerem um trabalho con-
tínuo de composição de demandas e de interesses, que pode ocor-
rer mediante negociação. Nos sistemas jurisdicionais de ordem
negociada, as partes mantêm do início ao fim o controle sobre o
processo e o resultado. Nesse modelo, o direito não desaparece,
mas se transforma, torna-se mais flexível, adaptado às situações
concretas (MORAIS; SPENGLER, 2012, p. 129).
É nesse sentido que a tolerância revela-se importante na
resolução dos conflitos, sobretudo, para a mediação. Ser toleran-
te significa aceitar o que é diferente, compreender que existem
opiniões e comportamentos diversos, é uma atitude fundamental
para se viver em sociedade. Assim, ao participar da mediação,
cada uma das partes, ao exercer a tolerância, compreende mais
facilmente a situação do outro, e, portanto, fica mais simples en-
contrar uma solução adequada para ambos os envolvidos.
Infelizmente, a tolerância ocupa pouco espaço nas relações so-
ciais da atualidade. Basta assistir ao noticiário ou acessar a inter-
net e logo se vê que a sociedade passa por diversas crises (a maio-
ria vinculada à violência) e grande parte dessa situação deve-se à
ausência de atitudes cooperativas e tolerantes. Essa sociedade é a
denominada por Bauman como líquido-moderna, para ele, vive-se:
[...] num mundo em que poucas pessoas continuam a acreditar que
mudar a vida dos outros tenha alguma relevância para a sua; [...] Em
um mundo assim, não restam muitos fundamentos sobre os quais os
indivíduos em luta possam construir suas esperanças de resgate e a
que possam recorrer em caso de fracasso pessoal. Os vínculos humanos
são confortavelmente frouxos, mas, por isso mesmo, terrivelmente pre-
cários, e é tão difícil praticar a solidariedade quanto compreender seus
benefícios, e mais ainda suas virtudes morais (BAUMAN, 2007, p. 30).

Aline Trindade do Nascimento, Elias Benetti Fortuna

177
A preservação e o respeito à individualidade são valores a
serem protegidos. No entanto, existe um grande risco ao se ad-
mitir o individualismo, a postura egocêntrica e exclusivista, que
costuma redundar em convivência predatória. Por isso, é essen-
cial ressaltar que reconhecer as diferenças não implica exaltar
as desigualdades. Homens e mulheres são diferentes, mas não
devem ser desiguais. A igualdade é um constitutivo ético, já a di-
ferença resulta do biológico ou de uma história que também pode
ser alterada para melhor (CORTELLA, 2014, p. 65-66).
John Locke certa vez disse que não é a diversidade de opini-
ões que deve ser evitada, mas a recusa de tolerância para com os
que têm opiniões diversas (LOCKE, 1973, p. 33), por isso, repelir
a intolerância e trabalhar em prol de uma mudança de mentali-
dade é imprescindível para sociedade atual. Assistir a uma resig-
nada aceitação é muito pouco para melhorar a vida em sociedade,
necessita-se de acentuada disposição de todos para mudança em
prol da cooperação e da tolerância (MORAIS; SPENGLER, 2012,
p. 119).
O problema é que as pessoas, ainda na infância, não foram
e não são estimuladas a interagir de forma cooperativa. Pelo con-
trário, o estímulo geralmente é no sentido de incitar a competição,
isso é possível notar até mesmo nas brincadeiras pedagógicas de
matemática ou português, que são feitas de forma a estimular o
aprendizado por meio da competição (BRASIL, 2015, p. 61).
É evidente que a rivalidade das pessoas apenas agrava o con-
flito e conduz ao impasse da violência. A violência tem forte pro-
babilidade de destruir o objeto que constitui a causa da disputa.
Negociar revela-se ótima alternativa, pois se preocupa em deter-
minar quem possui direitos sobre o objeto e quais são os direitos.
É justamente por isso que estimular a luta não violenta cria as
condições de uma negociação relativa ao objeto, respeitando-se os
direitos de ambos os rivais (MULLER, 2007, p. 150-151). Por isso:

A função da tolerância na mediação

178
[...] é necessário esforçar-se por irrigar toda a sociedade com a “cultura
da não-violência”, e a cultura começa pela educação. Esta desempenha
papel determinante na iniciação da criança a uma cidadania respon-
sável. Infelizmente, não é a cidadania política que se vê no horizonte
instaurado pelo sistema educativo dominante, mas a competitividade
econômica. Na própria concepção desse sistema, o conhecimento não
apenas acha suplantado, mas praticamente expulso pelo saber tecnoló-
gico. O objetivo almejado é permitir que os jovens cheguem ao mercado
de trabalho com a qualificação técnica exigida para ter melhores chances
de encontrar emprego (MULLER, 2007, p. 157).

É fundamental educar as crianças para a não violência, mas,


para isso, o primeiro passo é que a educação se inspire nos princí-
pios, nas regras e nos métodos da não violência: a educação para a
não violência começa pela não violência da educação. A escola pode
ser um lugar privilegiado para se destruir os preconceitos discri-
minativos em relação aos “outros”, aos que pertencem a outra raça,
outro povo, outra religião. Transmitir às crianças noções estereo-
tipadas sobre o diferente é o mesmo que armar sua inteligência e
seus braços, é ensinar-lhes a guerra. É uma exigência essencial da
pedagogia desarmar o olhar das crianças em relação aos “outros”,
em particular àqueles que se despojam de qualquer hostilidade
para com “os outros-que-são-diferentes”; para ensinar-lhes a ser
tolerantes e amáveis para com os outros, sem perder a capacidade
de formular um juízo crítico em relação ao que possa ser criticável
em seu comportamento (MULLER, 2007, p. 158-159).
Percebe-se com isso que estimular a tolerância desde os
primeiros anos de vida do ser humano é imprescindível. Os re-
sultados dessa educação não violenta serão percebidos em longo
prazo e, provavelmente, surtirão inúmeros efeitos positivos para
o convívio em sociedade e, em um futuro próximo, até mesmo,
para a própria justiça.

Aline Trindade do Nascimento, Elias Benetti Fortuna

179
Considerações finais
A mediação tem se mostrado como uma das melhores alter-
nativas para o restabelecimento do equilíbrio entre os envolvi-
dos, pois propicia economia financeira e de tempo, além de evitar
o desgaste emocional das partes, pois abstém os envolvidos de
recorrer ao Poder Judiciário por meio de demandas que, muitas
vezes, podem ser longas e desgastantes.
Nota-se que, ao realizar a mediação, os conflitantes enfren-
tam o problema em conjunto, não delegam a tarefa a um terceiro,
para que ele decida de forma arbitrária, mas chegam a uma deci-
são de maneira autônoma e equitativa, que, geralmente, atende
aos seus anseios e às suas expectativas.
Em relação às distinções entre mediação, conciliação e arbi-
tragem, percebe-se que a principal diferença concentra-se no cará-
ter transformador da mediação, haja vista que nela, diferentemen-
te da conciliação e da arbitragem, não se objetiva apenas terminar
o conflito, mas se preocupa com o restabelecimento do diálogo en-
tre as partes, de modo a auxiliar os envolvidos a reconstruir con-
juntamente uma relação que, até então, estava conflituosa.
Viu-se que a arbitragem consiste em uma transação na qual
os envolvidos elegem um terceiro (o árbitro) para decidir o confli-
to, dessa forma, o árbitro, por meio da análise das versões apre-
sentadas pelas litigantes, exerce uma função similar a do juiz e
decide a controvérsia.
Já a conciliação tem a finalidade de realizar o acordo entre
as partes, sendo que o conciliador exerce a função de negociador.
Nesse método de resolução de conflitos, tanto as partes quanto
o conciliador participam da negociação, sendo que esse último
também pode sugerir uma solução para o caso em divergência.
Também ficou evidenciada a importância da tolerância para
a mediação, uma vez que ela auxilia no reestabelecimento do diá-

A função da tolerância na mediação

180
logo, permitindo aos envolvidos compreender melhor a problemá-
tica em que se encontram inseridos. Ser tolerante é fundamental
para respeitar aquilo que é diferente, para compreender que exis-
tem opiniões e comportamentos diversos, é essencial para viver
dignamente em sociedade.
A complexidade do mundo contemporâneo nos coloca frente
a interesses que têm características distintas, por isso estimular
a tolerância e a cooperação é fundamental para que essas dife-
renças não resultem em desigualdades, pois, para haver justiça,
é necessário que todos tenham paz. Diante disso, percebe-se que
a mediação é importante porque pode auxiliar as partes a re-
construírem uma relação pacífica, superando as adversidades e
solucionando o conflito por meio de atitudes cooperativas e pon-
deradas.

Referências
BAUMAN, Zygmunt. Tempos líquidos. Tradução de Carlos Alberto Medei-
ros. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2007.
BRASIL. Conselho Nacional de Justiça. Manual de mediação judicial. 5. ed.
Brasília: CNJ, 2015. (Organização de André Gomma de Azevedo).
BRASIL. Resolução 125 de 29 de novembro de 2010. Anexo III: Código de
Ética de Conciliadores e Mediadores Judiciais. In: Conselho Nacional de
Justiça, Brasília. DF, 29 nov. 2010. Disponível em: <http://www.cnj.jus.br/
busca-atos-adm?documento=2579>. Acesso em: 16 maio 2017.
CARMONA, Carlos Alberto. Arbitragem e processo: um comentário à Lei
9.307/96. 3. ed. São Paulo: Atlas, 2009.
CORTELLA, Mário Sergio. Não se desespere: provocações filosóficas. 7. ed.
Petrópolis: Vozes, 2014.
LOCKE, John. Carta acerca da tolerância. Tradução de Anoar Aiex. São
Paulo: Abril Cultural, 1973.
MORAIS, Luiz Bolzan de; SPENGLER, Fabiana Marion. Mediação e arbi-
tragem: alternativas à jurisdição. 3. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado,
2012.
MULLER, Jean-Marie. O princípio da não-violência: uma trajetória filosófi-
ca. Tradução de Inês Polegato. São Paulo: Palas Athena, 2007.
Aline Trindade do Nascimento, Elias Benetti Fortuna

181
SALES, Lilia Maia de Morais. Mediare: um guia prático para mediadores.
3. ed. Rio de Janeiro: GZ, 2010.
WARAT, Luis Alberto. Surfando na pororoca: o ofício do mediador. Florianó-
polis: Fundação Boieteux, 2004. v. III.

A função da tolerância na mediação

182

Você também pode gostar