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Copyright © Editora CirKula LTDA, 2020.

1° edição - 2020

Revisão, Normatização e Edição: Mauro Meirelles


Diagramação e Projeto Gráfico: Mauro Meirelles
Capa e Ilustrações: Luciana Hoppe
Tiragem: 500 exemplares para distribuição on-line.

Todos os direitos reservados à Editora CirKula LTDA. A reprodução não auto-


rizada desta publicação, no todo ou em parte, constitui violação de direitos
autorais (Lei 9.610/98).

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Eloenes Lima da Silva
Viviane Castro Camozzato
Marta Campos de Quadros
(Organizadores)

(RE)EXISTÊNCIAS
JUVENIS NA ARTE
DA VIDA

Porto Alegre
2020
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dos extras acesse:

www.cirkula.com.br/re-existencias-juvenis

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CONSELHO EDITORIAL

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José Rogério Lopes
Jussara Reis Prá
Luciana Hoppe
Marcelo Tadvald
Mauro Meirelles

CONSELHO CIENTÍFICO

Alejandro Frigerio (Argentina) - Doutor em Antropologia pela Universi-


dade da Califórnia, Pesquisador do CONICET e Professor da Universidade
Católica Argentina.
André Luiz da Silva (Brasil) - Doutorado em Ciências Sociais pela Ponti-
fícia Universidade Católica de São Paulo e professor do Programa de Pós-
-Graduação em Desenvolvimento Humano da Universidade de Taubaté.
Antonio David Cattani (Brasil) - Doutor pela Universidade de Paris I -
Panthéon-Sorbonne, Pós-Doutor pela Ecole de Hautes Etudes en Sciences
Sociales e Professor Titular de Sociologia da UFRGS.
Arnaud Sales (Canadá) - Doutor d’État pela Universidade de Paris VII e Pro-
fessor Titular do Departamento de Sociologia da Universidade de Montreal.
Cíntia Inês Boll (Brasil) - Doutora em Educação e professora no Depar-
tamento de Estudos Especializados na Faculdade de Educação da UFRGS.
Daniel Gustavo Mocelin (Brasil) - Doutor em Sociologia e Professor Ad-
junto da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).
Dominique Maingueneau (França) - Doutor em Linguística e Professor
na Universidade de Paris IV Paris-Sorbonne.
Estela Maris Giordani (Brasil) - Doutora em Educação, Professora Associada
da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM) e pesquisadora da Antonio
Meneghetti Faculdade (AMF).
Hilario Wynarczyk (Argentina) - Doutor em Sociologia e Professor Titu-
lar da Universidade Nacional de San Martín (UNSAM).
José Rogério Lopes (Brasil) - Doutor em Ciências Sociais pela Pontifícia
Universidade Católica de São Paulo e Professor Titular II do PPG em Ciên-
cias Sociais da Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos).
Ileizi Luciana Fiorelli Silva (Brasil) - Doutora em Sociologia pela FFLCH-
USP e professora da Universidade Estadual de Londrina (UEL).
Leandro Raizer (Brasil) - Doutor em Sociologia e Professor da Faculdade
de Educação da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).
Luís Fernando Santos Corrêa da Silva (Brasil) - Doutor em Sociologia
pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul e Professor do Programa
de Pós-Graduação Interdisciplinar Ciências Humanas da UFFS.
Lygia Costa (Brasil) - Pós-doutora pelo Instituto de Pesquisa e Plane-
jamento Urbano e Regional da Universidade Federal do Rio de Janeiro,
IPPUR/UFRJ e professora da Escola Brasileira de Administração Pública e
de Empresas (EBAPE) da Fundação Getúlio Vargas (FGV).
Maria Regina Momesso (Brasil) - Doutora em Letras e Linguística e Pro-
fessora da Universidade do Estado de São Paulo (UNESP).
Marie Jane Soares Carvalho (Brasil) - Doutora em Educação, Pós-Douto-
ra pela UNED/Madrid e Professora Associada da UFRGS.
Mauro Meirelles (Brasil) - Doutor em Antropologia Social e Pesquisador
do Laboratório Virtual e Interativo de Ciências Sociais (LAVIECS/UFRGS).
Silvio Roberto Taffarel (Brasil) - Doutor em Engenharia e professor do
Programa de Pós-Graduação em Avaliação de Impactos Ambientais em
Mineração do Unilasalle.
Stefania Capone (França) – Doutora em Etnologia pela Universidade de
Paris X- Nanterre e Professora da Universidade de Paris X-Nanterre.
Thiago Ingrassia Pereira (Brasil) - Doutor em Educação e Professor do
Programa de Pós-Graduação Profissional em Educação da UFFS e do Pós-
-Graduação Interdisciplinar em Ciências Humanas da UFFS.
Wrana Panizzi (Brasil) - Doutora em Urbanisme et Amenagement pela
Universite de Paris XII (Paris-Val-de-Marne), em Science Sociale pela Uni-
versité Paris 1 (Panthéon-Sorbonne) e Professora Titular da UFRGS.
Zilá Bernd (Brasil) - Doutora em Letras e Professora do Programa de Pós-
-Graduação em Memória Social e Bens Culturais da Universidade LaSalle.
Sumário

09 Apresentação
Eloenes Lima da Silva, Viviane Castro Camozzato
Marta Campos de Quadros

14 Somos Poesia
Maria Conceição Rosa dos Santos

15 Prática Teatral na Escola: Resistência Estudantil


no Jogo entre Repetição e Criação
Fabiano Hanauer Abegg

33 A Imbecilidade tomou Forma e Poder


Alessandro Varela dos Santos

34 Aspectos da Modernidade Desigual e Segregada:


a Política nas Periferias de São Paulo
Marco Antonio Bin

57 Selfie/C`est La Vie
Machado Bantu

58 #LibertemRafaelBraga: Juventude, Ativismo


e Modos de Resistência na Cultura Digital
Liége Barbosa
Marcilene Forechi

77 Sim, Eu me Faço Forte


Alessandro Varela dos Santos

78 Ser uma Nerd/Geek, Vestir-se como uma Nerd/


Geek: um Estudo sobre a Pedagogia
Cultural da Internet
Angela Dillmann Nunes Bicca
Ana Paula de Araújo Cunha
Andreza da Rosa Borchardt
97 Dias de Epitáfio
Pedro Dziedzinski

98 Pedagogias da Resistência: Experiências de


Ocupação Noturna no Parque Farroupilha
Eloenes Lima da Silva

122 Esperança é um Combustível de Luta Radical


Alessandro Varela dos Santos

123 Condição de Juventude e a Potência


Ético-Política dos levantes
Viviane Castro Camozzato

138 Sobre os Organizadores

139 Sobre os Autores


APRESENTAÇÃO

O real é aquilo que resiste.


Comitê Invisível (2014)

E o que é resistir? Criar é resistir...


Deleuze (1988-89)

Como entender as múltiplas e diversificadas formas de ser


e estar jovem no século XXI? O eterno “por vir”, endereçado
às juventudes que buscam futuros seguros e programados em
uma existência estável, há muito se dissipou. Condição que pode
ser identificada tanto pelas realidades juvenis vividas em meio a
constantes incertezas, quanto pelos discursos pautados pela pers-
pectiva de um mundo adulto que não mais consegue normatizar
seus comportamentos, entender suas práticas culturais ou classi-
ficá-los através de faixas etárias. As dificuldades para categorizar
as juventudes contemporâneas não permite mais arraigá-las em
uma etapa “desviante” da vida como unicamente definidora de
suas experiências e condutas sociais.
A movimentação das juventudes explicita modus vivendi
dinâmicos, dissemina relações de intensa interatividade, transi-
ta pelos tempos e espaços contemporâneos, estreita, e não raro,
desafia as relações entre si e com o mundo. As ações das juven-
tudes provocam (des)construções na organização política em seu
sentido tradicional, inaugurando vivências micropolíticas. Ser e
estar jovem na contemporaneidade necessita coragem e possibi-
lita conferir à existência o valor de um ato político que configura
ações cotidianas como resistência.
O conceito de “resistência” assume perspectivas e análises
que têm destacado sua pluralização e multiplicação, possibilitan-
do denominá-la como resistência(s). As resistências contemporâ-
neas são móveis e fluidas, não se pautam somente pela intencio-
9
nalidade de quem resiste e do reconhecimento por parte dos alvos
(RE)EXISTÊNCIAS JUVENIS NA ARTE DA VIDA

dessa ação; são resistências que enfatizam complexas relações de


poder, envolvem a construção de subjetividades fragmentadas;
são resistências locais, atuando tanto no âmbito individual ou co-
letivo. Estão envoltas com a própria existência dos atores con-
temporâneos e, nem sempre, procuram reprisar ideias “esquer-
distas” ou “subversivas”. Podem ser encontradas nas pequenas
lutas cotidianas, liberando outros potenciais políticos que modifi-
cam as existências diárias. As resistências podem ser produzidas
por meio de atividades locais, enfatizando individualidades e co-
letividades construídas no interior de culturas em contextos es-
pecíficos. Freire Filho (2007, p. 19) assinala que, desde os anos de
1980, esses modos de resistência estão relacionados com “ações
mais prosaicas e sutis, gestos menos tipicamente heroicos da vida
cotidiana, não vinculados a derrubadas de regimes políticos ou
mesmo a discursos emancipatórios”. Perspectivas que permitem
vincular o conceito de resistência com a multiplicidade das exis-
tências cotidianas, instaurando outras formas de pensar, de agir
e sentir, criando distintos significados as práticas, experiências
culturais e modos de vida juvenis.
Nessa perspectiva, a ideia de “arte” também encontra aqui
a possibilidade de pluralização como arte estendida à vida. Arti-
cula-se, assim, aos movimentos que direcionam ao alargamento
das possibilidades de constituição de si – seja a partir de aprendi-
zagens com a potencialidade de espaços, tempos e materialidades
diversas, seja por constituições que acontecem por intermédio
de relações com outras pessoas. Como salienta Bauman (2009, p.
163), na obra que inspirou parte do título do livro aqui apresen-
tado: “somos todos artistas de nossas vidas.”
O livro (Re)existências juvenis na arte da vida foi pensado e
organizado a partir de perspectivas plurais, orbitando em torno
de teorias e metodologias que têm se pautado da expansão de
conceitos e ideias para uso em distintas pesquisas no campo da
Educação. A ideia para este livro surge das pesquisas de Mestra-
do e de Doutorado realizadas pelos autores, das leituras de obras,
textos e artigos sobre juventudes; nasce dos encontros e conver-
sas em seminários e eventos; emerge dos insights ao caminhar e 10
(RE)EXISTÊNCIAS JUVENIS NA ARTE DA VIDA

observar a cidade como palco das culturas juvenis; advém dos


convívios com alunos adolescentes em sala de aula e dos projetos
com jovens de regiões periféricas. Enfim, a ideia para este livro
e para os artigos nele publicados pode ser encontrada nessas ex-
periências que atravessam nossos corpos e suscitam a paixão de
trabalhar com o tema das juventudes contemporâneas.
Investigar práticas teatrais como potências criadoras e
criativas, possibilitando o inesperado e o desejo, em cotidianos
escolares quase sempre formatados é o que pretende Fabiano
Abegg no texto Prática teatral na escola: resistência estu-
dantil no jogo entre repetição e criação. O campo dos “Estu-
dos da Performance” (SCHECHNER, 2000) como teoria aberta,
inconclusa, que não possui delimitações, que borra fronteiras, é
utilizado pelo autor como argumentação central em busca de
apresentar algumas experiências da prática teatral dos alunos
de uma escola estadual do Rio Grande do Sul. As práticas tea-
trais escolares funcionam como inventivas brechas, rachando a
estrutura cotidiana escolar marcada pela pedagogia da repeti-
ção, pois o valor do tempo de ensaio, do processo, interessa mais
do que a culminância do espetáculo.
Marco Antonio Bin apresenta em seu artigo Aspectos da
Modernidade Desigual e Segregada um levantamento etno-
gráfico das “vozes periféricas” compostas por jovens e não-jovens
trabalhadores em territórios de precariedade na cidade de São
Paulo. O autor expõe como os componentes históricos e sociais
criaram um horizonte político onde o controle econômico do-
minante proporcionou uma ilusória sensação de pertencimento,
mascarando, com isso, a exploração desses trabalhadores. Embo-
ra o prefeito de São Paulo os tenha chamado de “vagabundos”, é
essa “ralé brasileira”, como denominou Souza (2009), que vende
a baixos preços sua força de trabalho em espaços urbanos mar-
cados por hierarquias e racionalidades capitalistas estratégicas.
#LibertemRafaelBraga: juventude, ativismo e modos
de resistência na cultura digital traz à cena o caso Rafael Bra-
ga, que foi preso em 2013 a partir do movimento de protestos
que se espalhou no Brasil. A partir desse personagem – dentre 11
(RE)EXISTÊNCIAS JUVENIS NA ARTE DA VIDA

tantos outros que poderíamos elencar – de um país profunda-


mente desigual e injusto com a parcela pobre e negra da popu-
lação, as autoras Liége Barbosa e Marcilene Forechi tecem uma
análise acerca dos novos modos de resistência contemporânea
com a cultura digital.
Na esteira das discussões sobre a ampliação dos lugares do
ensinar-aprender no campo da Educação, as autoras Angela Dill-
mann Nunes Bicca, Ana Paula de Araújo Cunha e Andreza da
Rosa Borchardt exploram, no artigo Ser uma nerd/geek, ves-
tir-se como uma nerd/geek: um estudo sobre a pedagogia
cultural da Internet, o processo de constituição e ampliação des-
tes lugares na contemporaneidade a partir de sites da Internet.
Análise essa, que deixa evidente, pelo menos, em sites em língua
portuguesa, o quanto os mesmos funcionam como uma forma de
pedagogia cultural de gênero.
Como experiências juvenis de ocupação em um parque
público podem configurar formas pedagógicas de resistência
frente ao medo e a insegurança em espaços-tempos noturnos
na metrópole? Essa é questão principal de Eloenes Silva em
seu texto Pedagogias da Resistência na Noite: aprendendo
a ocupar o Parque Farroupilha, RS. Ao articular teoricamente
os conceitos de “experiência de aprendizagem” (ELLSWORTH,
2005) e de “resistência” (FREIRE FILHO, 2007) o texto analisa
como a música, os “abraços grátis”, o artesanato e outras cenas
realizadas à noite em um parque público de Porto Alegre, RS,
configuram-se em experiências pelas quais são aprendidas ou-
tras formas de existir e resistir por meio de ocupações em locais
públicos esvaziados na noite.
Por fim, em Condição de juventude e a potência ético-
-política dos levantes, Viviane Castro Camozzato dialoga com
o vídeo-manifesto Juventude é Revolução, dos coletivos artísticos
“Sarau Preto no Branco” e “Sarau Verso em Versos”. Neste, a
partir da noção de levante e sua materialidade em gestos, pala-
vras e ações, a autora discute a reivindicação de que a juventude
precisa de mais justiça e igualdade social, tendo o conhecimento
como condição para uma vida mais igualitária e justa na socieda- 12
(RE)EXISTÊNCIAS JUVENIS NA ARTE DA VIDA

de. Afinal, se a juventude se apresenta como revolução é porque


o acesso à informação e ao conhecimento são entendidos como
disparadores e criadores de resistências e (re)existências.
Ademais, organizam e alinhavam os artigos que compõem
o livro os poemas de Maria Conceição Rosa dos Santos, Machado
Bantu e Pedro Dziedzinski e as imagens produzidas por Alessan-
dro Varela dos Santos, atestando que as (re)existências podem se
manifestar de diferentes formatos.
Esperamos, assim, com a partilha deste livro, que os leito-
res e leitoras se inspirem para pensar em modos de resistir e (re)
existir em tempos tão inquietantes e difíceis como o que estamos
passando. E que, possamos, desse modo, dar continuidade à ne-
cessária articulação entre a arte da vida e a potencialidade das
(re)existências juvenis.

Referências
BAUMAN, Z. A arte da vida. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2009.
ELLSWORTH, E. Places of Learning: media, architecture, pe-
dagogy. London; New York: Routledge, 2005.
FREIRE FILHO, J. Reinvenções da Resistência Juvenil: os es-
tudos culturais e as micropolíticas do cotidiano. Rio de Janeiro:
Mauad X, 2007.
SCHECHNER, R. Restauración de la conducta. In: ______. Perfor-
mance: teoria&practicasinterculturales. Buenos Aires: Libro de
Rojas, 2000. Pp.107-191.
SOUZA, J. Ralé Brasileira – quem é e como vive. Belo Horizonte,
Editora da UFMG, 2009.

13
Somos Poesia

Decidi não sofrer


E fazer da arte, a resistência.
Quando a dor bater à porta
Vou recitar o poema do livro
Vou lembrar do graffiti no muro
Vou arriscar um passo de Hip Hop
Vou entrar numa roda de capoeira.
Apesar da aridez do momento
A fratura exposta
O nervo sangrando
A pupila dilatada
O medo não vai me paralisar,
Não vou calar.
Algumas vozes se levantarão
Não vou esconder minha identidade
Reconheço quem caminha a meu lado
Esses, irão colorir as ruas da cidade

Em processo de cura
Preciso ser política-poética
Sem me importar com a rima
ou a métrica
Preciso levar mensagem
Sinal de fumaça,
rítmica,
mímica
Estética e ética.
A Resistência está em toda parte
No artista de rua
Nos malabares
Na coragem
Na conexão das artes.
A democracia será reinventada
no ar que se respira
No amor que transborda
e transpira
Na musicalidade da luta
No empoderamento das massas.
Somos a maioria
humanizada em afeto
em solidariedade e empatia
Somos POESIA!
14
Maria Conceição Rosa dos Santos
PRÁTICA TEATRAL NA ESCOLA:
RESISTÊNCIA ESTUDANTIL NO JOGO
ENTRE REPETIÇÃO E CRIAÇÃO

Fabiano Hanauer Abegg

Que a arte me aponte uma resposta


Mesmo que ela mesma não saiba
E que ninguém a tente complicar
Pois é preciso simplicidade pra fazê-la florescer.

(Oswaldo Montenegro)

Diante das muitas tensões que habitam a escola, nos seus


confrontos entre aquilo que desejam fazer com o espaço escolar
e aquilo que a escola poderia fazer de si mesma, parece eminente
especular aqueles gestos mínimos do cotidiano e seus possíveis
movimentos. Neste texto pretendo investigar as práticas tea-
trais escolares como uma dessas potências para fortalecer, nes-
tes confrontos e nestas tensões, a possibilidade do inesperado, o
desejo por modos outros de se fazer o escolar.
A partir disso, pergunto: de que modo se tornaria possível
ampliar e estimular os espaços para a criação no ambiente esco-
lar a partir das práticas teatrais? Apresento como central para
esta discussão a noção de Performance. Pois ela traz em si estes
dois momentos da tensão entre aquilo que se preserva e aquilo
que trai a possibilidade de preservação. A noção de Performance
introduz nesta discussão esta ginga entre repetição e invenção.
Ou seja, mesmo no espaço escolar onde o desejo por repetição e
formatação aparecem como hegemônicos acontecem movimen-
tos, escapes, brechas para a criação.
Sobremaneira, com vistas a facilitar a exposição divido o
texto em duas partes. Uma primeira, em que apresento os argu-
mentos centrais dos Estudos da Performance para, na segunda par-
te, resgatar algumas experiências da prática teatral dos alunos 15
(RE)EXISTÊNCIAS JUVENIS NA ARTE DA VIDA

na Escola Emília1 como uma forma de estimular a criação neste


ambiente pautado pela repetição.

Performance: um vasto campo de estudo

Sobre os Estudos da Performance, Schechner(2000) discute


o fato de se tratar de um campo complexo de estudos que se de-
senvolve marcado por um certo paradoxo: ao mesmo tempo em
que se afirma como disciplina acadêmica, o que supõe um campo
delimitado de estudo, a Performance se caracteriza por ser uma
disciplina complexa, um campo de estudo amplo, interdisciplinar
e intercultural. Ressalta ainda a atualidade temática dos Estudos
da Performance em um tempo no qual tudo acaba se convertendo
em um tipo de entretenimento, tanto as guerras, como o gênero
e mesmo a política, entre outros que poderiam ser citados, “um
modo de compreender o cenário deste mundo confuso, contradi-
tório e extremamente dinâmico é examiná-lo como Performance.
E isso é precisamente o que fazem os estudos da Performance”
(SCHECHNER, 2000a, p. 12).
Com esta possibilidade de se estabelecer o uso da investi-
gação dos objetos como Performance se ampliam ainda mais os
limites do seu vasto campo de estudos, não há fixidez, e nem deli-
mitação precisa de suas fronteiras, a interdisciplinaridade marca
todo o seu trabalho. Esta amplitude, esta abertura do campo de
pesquisa dos Estudos da Performance não envolve categorias bem
definidas, pois seus estudos envolvem todas as atividades huma-
nas que são caracterizadas pelo autor como “sendo de segunda
vez”, como “conduta restaurada”, “atividades que não se realizam
pela primeira vez e, sim, pela segunda vez e ad infinitum” (SCHE-
CHNER, 2000a, p. 13). Esta característica marca os estudos da
Performance, tanto nas artes, como na vida cotidiana, nas cerimô-
nias, nos jogos, nos rituais, é sempre um processo que envolve
repetição e construção.
1 Escola Estadual de Ensino Médio Emília Viega da Rocha que se situa em Mo-
rungava, região que compreende parte da Zona rural do município de Gravataí,
RS. Trabalho como professor nesta escola desde o ano 2000, ela foi objeto de 16
pesquisa da minha dissertação (ABEGG, 2013) e da minha tese (ABEGG, 2018).
(RE)EXISTÊNCIAS JUVENIS NA ARTE DA VIDA

Apesar de ser uma categoria vinculada à repetição, a res-


tauração das condutas é sempre de segunda vez. Neste sentido,
é possível perceber algo de singular no estudo dos eventos hu-
manos como Performance, pois o fato de ser repetição justamente
traz consigo a noção de que nada se repete sem algum tipo de
variação. Estudar algo como Performance é utilizar as suas pers-
pectivas, os seus termos, as suas noções e características próprias
para estudar este objeto de estudo determinado.
Um dos traços característicos mais marcantes dos estudos
da Performance é que eles se definem como “inter...”, como rela-
ções, como “entre”, como borramento fronteiriço. Segundo Sche-
chner (2000), isto faz com que estes estudos se definam a partir
de um paradoxo: como campo de estudo acadêmico se espera que
se defina, se delimite o que cabe dentro desta disciplina, mas a
sua característica principal é estar aberta, ser inconclusa, não ter
delimitações, se fazer a partir de possíveis intercâmbios não pre-
vistos de antemão.
Com isto, aparece de maneira mais forte a característica dos
estudos da Performance como uma teoria aberta. A partir disto,
fica cada vez mais difícil estabelecer a diferença entre os fatos e
as aparências, entre o profundo e o superficial, entre as ilusões e
as realidades. Tudo é compreendido como construção, não só a
realidade social, como também a física e biológica.

Performance como conduta restaurada

O comportamento restaurado ou conduta restaurada, se-


gundo Schechner, é algo que está sempre em movimento, é algo
vivo, reconstrói-se, reacomoda-se, independente dos possíveis
sistemas causais que as possam ter originado. “A conduta restau-
rada é a característica mais importante da Performance” (SCHE-
CHNER, 2000b, p. 107). A conduta restaurada não depende, não
tem uma relação direta e muito menos causal com quem as rea-
liza. Justamente por serem independentes de seus atores, estas
condutas podem ser manipuladas, transformadas, transmitidas,
refeitas. “A Performance significa nunca pela primeira vez. Signi- 17
(RE)EXISTÊNCIAS JUVENIS NA ARTE DA VIDA

fica por segunda vez e ad infinitum. A Performance é conduta duas


vezes atuada” (SCHECHNER, 2000b, p. 108).
Estas noções introduzidas pelos Estudos da Performance po-
dem nos fazer pensar modos de “descongelar”, de suspender ou
simplesmente questionar, esta crença (ou essa certeza) de que se-
jam possíveis ações humanas tão programadas e com resultados
tão seguros quanto são prometidos nos programas de reformas
do ensino que vem sendo impostos às escolas a um certo tempo
pelas avaliações externas e, no contexto do ano de 2018, pela im-
posição de uma BNCC que esvazia o currículo de seus conteúdos
básicos, especialmente na área de Ciências Humanas e nas Artes.
Como um processo que envolve constância e transmissão
de um lado e, de outro, escolhas e variações, a Performance parece
apresentar uma falsa ambiguidade: entre o que se preserva e o
que se inova. Conforme Schechner, este assunto não é fácil, pois
as escolhas se desenvolvem como um tipo de ilusão, um ator pode
negar-se a atuar conforme o que foi estabelecido e pensará que
fez uma escolha. Deixará se conduzir, entretanto, por “uma ilusão
de escolha” (SCHECHNER, 2000b, p. 109). Deste modo “a con-
duta restaurada se pode usar como uma máscara ou um vestido”
(SCHECHNER, 2000b, p. 109). As partituras das Performances
podem e são modificadas constantemente. Elas não são um acon-
tecimento natural, são modelos de escolhas humanas, tanto cole-
tivas como individuais.
As condutas humanas são sempre de segunda ordem, são
comportamentos restaurados, são condutas restauradas porque
não existe uma essência individual a ser preservada, não existe
uma essência humana que define todos os seres humanos, muito
menos uma essência singular e individual que definiria o que cada
pessoa é para além de seus condicionamentos externos. O que
existe, o que acontece, é que cada um de nós executa em seu co-
tidiano diferentes papéis. Mesmo quando temos absoluta certeza
de estarmos sendo singulares, absolutamente autênticos, estamos
performando este papel que nos caracteriza em um determinado
contexto específico, mas que em breve se modificará, pois, em
breve estaremos desempenhando outro papel: pai, filho, profes- 18
(RE)EXISTÊNCIAS JUVENIS NA ARTE DA VIDA

sor, aluno, cliente, paciente, ator, expectador etc. Tanto em nossa


vida cotidiana, como em um transe ritualístico ou em uma ativi-
dade institucional ou mesmo em um palco teatral, estamos sem-
pre assumindo um papel. Este papel partiturado antes de nós será
executado e, por mais que o modifiquemos, estaremos contribuin-
do para que essas condutas se restaurem, pois, ao restaurarmos
um modo de nos conduzirmos, esta atividade implica justamente
elementos que estão sendo repetidos, executados, construídos,
sempre como não sendo pela primeira vez.
Os Estudos da Performance estão envolvidos pela tarefa ur-
gente de constituir um vocabulário e uma metodologia que en-
tre em sintonia com esta característica evanescente e imediata da
Performance. Talvez olhar o ambiente escolar como um lugar de
Performances possa nos ajudar a ver estes intensos movimentos
de modificação de si mesmo, de repetição e de mudanças nos mo-
dos de se viver na escola e de se experimentar e saborear novos
caminhos, nem únicos e nem permanentes, mas apenas possíveis.
Talvez algumas destas experiências, algumas destas modifica-
ções aconteçam em uma relação de proximidade com as práticas
teatrais desenvolvidas na escola.

As práticas teatrais na Escola Emília

Antes de falar especificamente das experiências de cria-


ção com as práticas teatrais realizadas na escola, parece per-
tinente questionar os caminhos e desgastes pelos quais essas
práticas passam até chegarem na escola. Quais os trajetos pelos
quais uma pedagogia do ator promete se transformar em uma
pedagogia teatral? E, depois, por quais modos essa Pedagogia
Teatral promete melhorar a vida das pessoas? Utilizo o texto
de Gilberto Icle (2009) para discutir o processo de banalização
de algumas técnicas de ensaio dos atores nos procedimentos
de Ensino de Teatro nas escolas, para, em seguida, descrever
como o Ensino de Teatro e as práticas teatrais na Escola Emí-
lia tem desenvolvido algumas mínimas experiências de modifi-
cação no ambiente escolar. 19
(RE)EXISTÊNCIAS JUVENIS NA ARTE DA VIDA

Ao descrever o movimento de passagem da Pedagogia do


Ator para a Pedagogia Teatral, Gilberto Icle discute alguns des-
locamentos que perpassam as práticas teatrais contemporâneas,
dando especial atenção às modificações pelas quais elas passam
até serem conformadas em Práticas de Ensino. Destaco uma de
suas afirmações sobre as mudanças na abrangência da noção de
improvisação, para o autor ao final do século XIX e no século XX
a improvisação se constituiu como uma técnica para a criação.
Anteriormente, o ator exercitava-se para repetir um papel, nesse
momento em diante enfatiza-se nas técnicas do ator a capacidade
de interpretação do papel, ou seja, a improvisação como uma téc-
nica importante para que o ator consiga desenvolver uma inter-
pretação singular de seu papel em cena (ICLE, 2009, p. 5).
Esse trabalho com a técnica da improvisação na sua ori-
gem realizava-se com processos demorados, exigindo tempo
para o estudo e o aprimoramento do texto e das técnicas de
interpretação teatral. Para que o espetáculo acontecesse era
preciso um grande número de horas de ensaio, de trabalho, de
continuidade e de aprimoramento. “Nesse aspecto, a Pedago-
gia Teatral costuma se generalizar da Pedagogia do Ator como
uma prática rápida, muitas vezes na modalidade de workshop,
com algumas poucas horas (ICLE, 2009, p. 5). Além disso, ao
se referir a passagem do diretor pedagogo ao líder espiritual
e de sua banalização nas práticas de ensino escolares, Icle de-
monstra a obviedade da relação desse tipo de prática com o
Ensino de Teatro “Não se trata de “ensinar” stricto sensu teatro
aos atores alunos, mas de orientar um processo poético no qual
se constitua um modo específico de fazer que atenda antes ao
anseio de compreensão do fenômeno teatral do que o acúmulo
de técnicas” (ICLE, 2009, p. 6).
Uma característica importante da Pedagogia Teatral que
emerge dessa passagem do diretor pedagogo para o líder espi-
ritual é o valor do tempo de ensaio, do processo, que passa a ser
mais importante do que a realização do espetáculo, entendido
agora como culminância do trabalho pedagógico que foi desen-
volvido (ICLE, 2009, p. 6-7). 20
(RE)EXISTÊNCIAS JUVENIS NA ARTE DA VIDA

A constituição do currículo escolar, de seus conteúdos, de


suas metodologias, de seus procedimentos pedagógicos, é, em ge-
ral, resultado de caminhos e descaminhos. Por mais que se repita
que a escola deve oferecer a seus alunos acesso a uma herança,
a um conjunto de conhecimentos, a uma cultura produzida até
o momento, a forma como essas disciplinas, esses componentes
curriculares, esse conjunto de criações e descobertas chegam até
o ambiente escolar passa por uma série de desdobramentos, de
desgastes, difíceis de serem mapeados. Dito de outra forma, o que
ensinamos em nossa sala de aula não é a matemática dos mate-
máticos, nem a história dos historiadores, muito menos a filosofia
dos filósofos. Todos esses conteúdos passam pelo filtro (filtro não
é uma boa metáfora, pois ele supõe que algo seja retido, mas o que
ocorre tem muito mais a ver com simplificações e acréscimos, tal-
vez liquidificador seja mais interessante) da constituição de uma
pedagogia. Por que seria diferente com o Ensino de Teatro? Tal-
vez seja diferente com o Ensino de Teatro porque dele se espera
a transformação das pessoas, acredita-se que fazer teatro huma-
niza, o texto de Gilberto Icle me auxilia nessa resposta quando
descreve o desgaste ou a banalização dessas noções teatrais até
chegarem na prática de ensino escolar.

Seminário Integrado como Ensino de Teatro

O processo que ocorre na Escola Emília não é muito dife-


rente. Nesta escola também ocorreram muitas formas pelas quais
as práticas teatrais se fizeram e se fazem presentes na escola: au-
xiliando didaticamente alguns componentes curriculares, orna-
mentando eventos escolares, na formação de um grupo de teatro
estudantil, na realização de saraus literários, mascarado no com-
ponente curricular Seminário Integrado denominado Expressão
Corporal e Escrita, na organização de festivais de esquetes e tal-
vez de outros modos ainda não identificados.
Na Escola Emília, alguns acreditam no poder redentor da
prática teatral, que seria uma prática capaz de disciplinar, de re-
dimir e de motivar. A arte (teatro, música, dança, plástica) e as 21
(RE)EXISTÊNCIAS JUVENIS NA ARTE DA VIDA

manifestações culturais (oficinas de capoeira e artesanato) são


vistas como a esperança de tornar os alunos mais disciplinados,
devidamente ajustados, evitando os descaminhos da vida, como
as drogas e a criminalidade. Mas, quando eu e os alunos nos en-
contramos para ensaiar, nada disso importa. O que importa é es-
tarmos ali, juntos, convivendo, partilhando vidas, exercitando os
jogos teatrais, montando nossos espetáculos, sempre muito cri-
ticados pelos jurados dos festivais2. Esta nossa prática teatral na
escola parece ser recebida como uma visita inesperada e inde-
sejada e acaba permanecendo como um inquilino barulhento e
inoportuno. Ruídos e descompassos que contribuem para sermos
um pouco diferentes nas nossas práticas escolares.
Após a defesa da Dissertação de Mestrado no final de feve-
reiro de 2013, tornei a trabalhar 40 horas na Escola Emília. Era
o momento da implementação do Ensino Médio Politécnico que
ampliou de 25 para 30 horas a carga horária semanal dos alunos.
Ocorria a polêmica de como desenvolver as aulas de Seminário
Integrado com a função interdisciplinar, integradora dos conteú-
dos das áreas do conhecimento que compõem o núcleo comum
(fragmentados no sistema de ensino tradicional), relacionando o
que é ensinado pelos componentes curriculares com o mundo do
trabalho, através de uma metodologia que conduzisse a iniciação à
pesquisa científica. A equipe diretiva da escola me convidou para
organizar uma proposta que relacionasse as ideias da Dissertação
auxiliando na proposição de uma formação humana integral para
os alunos, obedecendo às orientações anunciadas no documento
enviado pela SEDUC/RS. A sugestão delas era que eu organi-
zasse um plano de estudo que utilizasse as técnicas de ensaio dos
atores como contribuição para a formação integral dos alunos.
Assim começou a experiência do Seminário Integrado como aula
de Expressão Corporal e Escrita com o objetivo de complementar
as atividades didáticas da área de Linguagens e suas Tecnologias,
2 Escrevi sobre as experiências de teatro na Escola Emília na Dissertação, descre-
vi o processo de constituição e dissolução do grupo de teatro estudantil Garras de
Anjo (ABEGG, 2013). Neste texto vou me restringir a falar sobre as experiências
com teatro que ocorreram na escola a partir de 2013, quando se deu a constituição 22
de outro grupo teatral na escola, o grupo EVR ENCENA.
(RE)EXISTÊNCIAS JUVENIS NA ARTE DA VIDA

utilizando os jogos teatrais para realizar exercícios tanto de ex-


pressão escrita como de expressão corporal. Esta disciplina seria
realizada em um período (45 minutos) de aula em todas as turmas
do Ensino Médio tanto pela manhã como à noite (como são 11
turmas, somaria onze períodos no total). Além desta disciplina,
também haveria Seminário Integrado Preparação para o Mercado de
Trabalho (espécie de estudo das profissões) e Seminário Integrado
Matemática Aplicada, que seriam ministradas por outros profes-
sores.

Registros do espetáculo Entre Chico e Vinícius durante o Sa-


rau Literário de 2013

Fonte: Acervo da escola (2013).

Além do tempo exíguo de apenas um período para desen-


volver as atividades, algo que dificultou o andamento deste traba-
lho foi o fato das aulas acontecerem à noite, ou seja, fora do turno
escolar. Assim, poucos alunos se faziam presentes, justificando
suas ausências, de modo especial pela falta de transporte. Estas
aulas contavam, portanto, com um número reduzido de alunos.
Contudo, estes poucos alunos que se faziam presentes engaja-
vam-se nas aulas de maneira muito qualitativa e comprometiam-
-se muito com o trabalho. Foi isto que tornou possível encerrar
o ano de 2013 realizando o I FESTIEVR (Primeiro Festival de
Esquetes Emília Viega da Rocha), em dezembro daquele ano. Foi
uma noite muito agradável com a participação de toda a comu-
nidade escolar, foram apresentados três esquetes e alguns atores
que trabalham na cidade no grupo Atuatores e no grupo Coopera-
tiva do Teatro contribuíram como jurados do festival (após cada
apresentação havia um tempo de diálogo entre o grupo que apre-
sentou e os jurados, oportunizando um contato daqueles alunos
com a visão de teatro destes atores). Um dos jurados ficou tão 23
(RE)EXISTÊNCIAS JUVENIS NA ARTE DA VIDA

empolgado com a atividade que se ofereceu para ministrar ofici-


nas de teatro na escola no ano de 2014.
No ano de 2014 o número de períodos das aulas de Expres-
são Corporal e Escrita aumentou, nos segundos e terceiros anos
passamos a ter dois períodos por turma e, como as aulas aconte-
ciam no turno normal, podíamos contar com a participação de
toda a turma. Algumas turmas constituíram-se em equipes de
trabalho direcionadas aos espetáculos que foram sendo monta-
dos, havia alunos ensaiando a parte da atuação, outros trabalhan-
do na estrutura (figurino, cenário, iluminação, adereços etc.) en-
quanto outros coordenavam. Em geral, estes trabalhos possuíam
uma interdisciplinaridade, no caso dos segundos anos com a área
de Ciências Humanas (espetáculos como Pão e Circo envolvia te-
máticas de política contemporânea, Joana D’arc sobre história
medieval e feminismo e Revolução Permanente tendo como temá-
tica central a História do Rio Grande do Sul), no caso dos tercei-
ros anos com a área de Linguagens (O Pagador de Promessas), no
caso dos primeiros anos com o Projeto Mitologia em Cena. Isto
permitiu que o II FESTIEVR (Segundo Festival de Esquetes da
Escola Emília Viega da Rocha) acontecesse em julho de 2014 com
a apresentação de 10 esquetes: Joana D’arc: Força e Ternura, Pão
e Circo, O Construtor do Muro, A origem do Bem e do Mal, A Lenda
de Obá, Medéia: o amor louco, Revolução Permanente, O Sobrado, O
Pagador de Promessas, Casal e Fria.
Estas atividades teatrais realizaram uma série de deslo-
camentos no ambiente escolar, especialmente na alteração das
posturas dos professores. Para ensaiar os trabalhos os alunos
começaram a alterar certas regras dos tempos e dos espaços es-
colares. Aquela grade congelada com quantidade determinada
de períodos para cada componente curricular (com a hegemo-
nia da Matemática e da Língua Portuguesa) começou a ficar bem
embaralhada. Os espaços fixos para cada turma também foram
desobedecidos. Alguns professores juntavam suas turmas para
realizar o trabalho. Alguns alunos saíam da sua turma e ficavam
certos períodos em outra sala para poder ensaiar. Os professores
envolvidos nestes projetos percebiam as intensidades e os ga- 24
(RE)EXISTÊNCIAS JUVENIS NA ARTE DA VIDA

nhos pedagógicos, os processos de desenvolvimento dos alunos,


enquanto outros colegas enxergavam estas mudanças como algo
que estava desorganizando o ambiente escolar, diziam que corría-
mos o risco de perder o controle sobre os alunos e de transformar
a escola em um lugar de desordem.

Registro do momento final do FESTIEVR de 2014

Fonte: Acervo do autor (2014).

Ainda neste mês de julho de 2014, chegou à escola a notícia


de que a FUNDARC (Fundação Municipal de Arte e Cultura de
Gravataí) iria retomar a tradição dos festivais de teatro estudan-
til interrompida desde 2008. Começamos a mobilizar a comuni-
dade escolar para levarmos alguns de nossos esquetes para apre-
sentarmos no teatro do SESC de Gravataí. Não poderíamos levar
todos os esquetes, então priorizei os terceiros e segundos anos.
As turmas 201, 203 e 302 ficaram bem empolgadas com a ideia e
começaram a se organizar para as apresentações que seriam em
novembro. Quando anunciei para as turmas dos primeiros anos
esta situação, argumentando que eles teriam outros dois anos
para participar, em geral os alunos reagiam positivamente, mas
fui surpreendido pelo posicionamento de uma aluna que queria 25
(RE)EXISTÊNCIAS JUVENIS NA ARTE DA VIDA

muito participar do festival e não queria esperar até o próximo


ano. Neste momento falo de mim, estranhando que eu tenha sido
este professor que não queria deixá-la participar do 15º FESTIL
(Festival de Teatro Estudantil de Gravataí). Com certeza, este
evento gerou alguma modificação no meu modo de ser professor3.
Eu não tinha nem mesmo listado esta aluna como uma possível
participante do grupo de teatro, pois a mesma, até ali, nem estava
entre os destaques do teatro da escola. Eu respondi dizendo que
não teria tempo de acompanhar e coordenar um quarto grupo.
Ela argumentou que bastava eu inscrever o grupo dela no Fes-
tival que eles iriam ensaiar e melhorar o espetáculo até o dia da
apresentação, mesmo que eu não pudesse ajudar. E assim acon-
teceu. Somente nos últimos ensaios deste grupo é que consegui
participar. E das quatro peças que a nossa escola apresentou no
FESTIL, a peça dirigida pelo grupo desta menina foi a única que
ganhou indicação para um tipo de premiação (melhor figurino e
indicação de melhor ator).
No ano de 2016, quando esta aluna estava no terceiro ano,
constituiu-se como uma liderança na escola, participou ativamen-
te do grupo de teatro e no momento da nossa greve4 de profes-
sores foi uma das alunas que apoiou o nosso movimento e junto
com outros alunos (não só do teatro) realizou mobilizações na
escola para discutir a importância das nossas reivindicações. Este
grupo de alunos, inclusive, iniciou, mas não efetivou, o movimen-
to de ocupação da escola, seguindo o exemplo de outras quatro

3 Essa experiência que relato aqui como exemplo de modificação da prática do-
cente, com certeza poderia ser seguida de outras narrativas de meus colegas que
passaram por momentos semelhantes a este.
4 As atitudes do governo têm desrespeitado a nossa profissão. Nesse ano de 2016,
os problemas se agravaram e optamos por mais um período de greve: “Estou em
greve! Assembleia do CPERGS Sindicato deflagrou greve por tempo indetermi-
nado. Após vários abusos do governo (parcelamento dos salários, atrasos nos re-
passes de verbas para as escolas, alterações nos benefícios adicionais, alteração no
pagamento do difícil acesso etc.), nossa categoria não pode mais silenciar, precisa-
mos reagir, a ferramenta de luta possível continua sendo a greve. Por enquanto,
na Escola Emília somos poucos que aderimos ao movimento de greve. Em geral,
os professores das Ciências Humanas (...) e um professor de Matemática” (Diário 26
de Campo, dia16 de maio de 2016).
(RE)EXISTÊNCIAS JUVENIS NA ARTE DA VIDA

escolas do nosso município que foram ocupadas pelos alunos (Es-


colas Estaduais Heitor Vila Lobos, Barbosa Rodrigues, Morada
do Vale I, Padre Nunes). Trago aqui esta narrativa como um pe-
queno movimento que aconteceu junto à prática teatral na escola.
Uma aluna que, através de sua participação no teatro da escola,
assume o papel de liderança estudantil.
Nossa participação neste festival foi o momento máximo
das experiências de 2014, sabíamos que a apresentação seria mais
um momento saboroso como aqueles tantos ensaios, pesquisas
e exercícios que fizemos antes. Mas estar ali apresentando no
maior palco de teatro da cidade seria um evento único com um
sabor singular. Para os demais (direção, professores, alunos, pais,
funcionários) que foram nos assistir aquilo parecia um milagre.
Foi neste momento que ocorreu uma certa exclamação: “É só
deixar fazer!”. Em novembro de 2014, a escola compareceu ao
Festival Municipal de Teatro Estudantil com quatro trabalhos,
quando, em geral, cada escola, com muita dificuldade, levava ape-
nas um espetáculo. Após a quarta apresentação, única que a dire-
tora teve a possibilidade de assistir5, enfrentamos, mais uma vez,
as críticas dos jurados. Quase no término do debate, chamei a
diretora até a frente de todos para agradecer, pois o seu apoio foi
fundamental para esta realização. Estávamos todos muito emo-
cionados e ficamos muito contentes quando, além de ouvirmos
elogios a nossa apresentação, escutamos a sua confissão sobre a
mais importante estratégia para que este tipo de trabalho peda-
gógico seja possível: “É só deixar fazer!”
Este testemunho da diretora nos fez acreditar que seria
preservado o espaço para a realização do teatro na escola no pró-
ximo ano e encerramos o ano letivo de 2014 ansiosos com as mui-
tas possibilidades de ampliação destas vivências em 2015. Mas
o ano de 2015 iniciou com mudanças implementadas pelo novo
governo que determinou a redução da carga horária de teatro nas
oito turmas de Ensino Médio, que diminuiu de 13 para 7 perío-

5 Ao ler este texto, a diretora da escola pediu que fosse acrescentado que, se ela as-
sistisse todos os espetáculos, as vices não poderiam ter ido assistir. Por isto, ela optou 27
por um revezamento dos membros da gestão durante as apresentações do Festil.
(RE)EXISTÊNCIAS JUVENIS NA ARTE DA VIDA

dos semanais (não mais como um período de aula e, sim, como


oficinas realizadas no turno inverso). Ao receber a notícia destes
pormenores, escrevi um texto e fui até a escola entregar pessoal-
mente à diretora, reivindicando a manutenção do teatro na es-
cola. Foi quando me deparei com outra exclamação: “Não tem
como!”. Em março de 2015, o ano letivo começa com alterações
na presença do teatro na escola, redução de carga horária, reali-
zação das aulas no turno inverso, apenas com parte dos alunos.
Tendo em vista a chegada de uma nova supervisora, pergunto à
mesma se posso convidar os alunos para ensaiar um espetáculo
para apresentarmos nos festivais. Como resposta, ouço: “Não tem
como!”. Na sequência, pergunto o porquê. Ela justifica dizendo
que isto iria afetar a carga horária dos professores e dos alunos e
que isto iria atrapalhar a organização do espaço escolar etc. Para
concluir, diz “você entende, professor? Não tem como6!”.
Algumas perguntas retóricas sobre estas duas exclama-
ções: de que modo se opera esta derrota do “é só deixar fazer”
pelo “não tem como”? O que está implicado no procedimento
“como é difícil deixar fazer”? Estas duas exclamações não
seriam também os dois lados da mesma moeda? Quando alguém
diz que é “só deixar fazer” talvez esteja dizendo que não precisa
participar, que o resultado não depende de sua ação, que não
vai fazer nada para que isto aconteça, bem como não irá fazer
movimentos para impedir.
Apesar da redução do número de períodos para a prática
teatral e das aulas serem no turno inverso, dificultando o aces-
so, no ano de 2015 desenvolveu-se um processo que culminou
na constituição de um grupo de teatro que permanece orgânico
na escola. Conseguimos a autorização para utilizarmos um pe-
ríodo de aula para ensaiarmos nas quartas-feiras à noite (mas
eu acabava ensaiando sempre três períodos, dois deles fora da
minha carga horária). Todos os alunos do Ensino Médio foram
convidados. Iniciamos o ano com trinta e cinco alunos e con-

6 Ao mostrar este texto para a diretora da escola, ela pediu que se destacasse que
essas mudanças aconteceram por imposições do novo governo que não deixou 28
margem de negociação com a direção da escola.
(RE)EXISTÊNCIAS JUVENIS NA ARTE DA VIDA

cluímos com sete7. Após alguns jogos teatrais e exercícios de


escrita, começamos a montar alguns trabalhos a partir das con-
tribuições dos alunos. Isto resultou em um esquete teatral inti-
tulado Dois Mundos que teve sua primeira apresentação em uma
sexta à tarde, durante evento de homenagem às mães. Havia di-
vidido o grupo em subgrupos e cada um organizava o ensaio da
sua apresentação. Devido ao esvaziamento, alguns espetáculos
não foram apresentados. Em julho, à noite, durante o intervalo,
fizemos uma apresentação dos personagens para os alunos do
noturno. Em forma de monólogo cada personagem foi se apre-
sentando. No segundo semestre, apesar das dificuldades de re-
cuperação das aulas por causa da greve, passamos a concentrar
nossa atenção para apresentação no 16º FESTIL. Tínhamos o
espetáculo Dois Mundos organizado, mas os alunos insistiram
em levar mais um esquete, optando por ensaiar o texto escrito
por Daniel Assunção (professor de matemática, escritor, diretor
do grupo Cooperativa do Teatro) intitulado Ensaio Ilógico.
No dia 07 de novembro de 2015, em uma manhã de sábado,
das 8h às 12h e 30min, ocorreu o III FESTIEVR. A palavra mila-
gre me vem como primeira explicação para o sucesso deste evento
escolar. Não gosto desta palavra. Ela joga a atividade no campo do
feito de qualquer forma, talvez até passe a impressão de um certo
desleixo. Deixar as coisas à mercê do acaso parece ser uma confissão
da falta de planejamento, algo que aprendi como sendo fundamen-
tal na Pedagogia e na Arte Teatral. Mas todo nosso planejamento
e trabalho possuem suas limitações. Ocorreu, como acontece em
algumas estreias teatrais, um algo a mais nas apresentações deste
dia. É preciso dizer, então, que este Festival continua sendo um
acontecimento. Não apenas o momento congelado daquela manhã
de sábado, mas muito mais pelos movimentos, deslocamentos, que
ele produz no ambiente escolar ao longo dos processos pedagógi-
cos que envolvem toda a escola ao longo do ano letivo.

7 Este processo de esvaziamento é comum em muitos grupos que se iniciam a


partir de oficinas de teatro. No caso relatado existe um fator a mais que contribuiu
para estas desistências: a falta de transporte e condições de segurança. Devido 29
a isto muitos responsáveis pelos alunos acabavam proibindo a sua participação.
(RE)EXISTÊNCIAS JUVENIS NA ARTE DA VIDA

Foto do grupo EVR ENCENA no camarim do SESC/Gravataí


no Festil de 2015

Fonte: Acervo do autor (2015).

Se traçarmos um paralelo comparativo entre o festival de


2014 e o de 2015, a sensação será de visível decadência: 12 es-
quetes em 2014, apenas 5 em 2015; 12 grupos em 2014, apenas
3 em 2015; autonomia total dos grupos em 2014, meu envolvi-
mento direto como coordenador e motivador em 2015; entre ou-
tros fatores. Mas, se levarmos em consideração que em 2015 o
teatro lutou para sobreviver e permanecer na escola teremos de
reconhecer que o impossível (não aquilo que seria irrealizável,
mas o que afirmamos como irrealizável) se tornou mais uma vez
possível. Não como resultado do acaso, mas como ressonância
das muitas lutas empreendidas e de um movimento intenso de
disputa. Queriam nos convencer de que não seria possível, “não
tem como”, mas conseguimos mostrar que sempre há como. “Di-
zem que é a última canção, mas eles não nos conhecem. Só será a
última canção, se deixarmos que seja8”.
Um fato diferencial muito positivo foi a presença de dois
grupos teatrais ao longo da manhã: o grupo de teatro da Em-
8 A frase aparece no final do filme Dançando no Escuro (Dancer in theDark. Dirigi- 30
do por Lars von Trier. Produzido por Vibeke Windeløv, 2000).
(RE)EXISTÊNCIAS JUVENIS NA ARTE DA VIDA

presa de Transportes Viamão, que esteve presente pela primeira


vez em nossa escola e trouxe uma comédia intitulada “Educando
para o Trânsito”; e o grupo Cooperativa do Teatro que já se faz
presente desde o primeiro Festival em 2013. A integração, a troca
de experiências entre os grupos e a partilha disto com os alunos
animou nossa manhã. O grupo de Viamão manifestou em vários
momentos ao longo da manhã a sua surpresa e encantamento
com o trabalho realizado em nossa escola.
Algumas intuições me atravessam: como nessa luta pela pre-
sença do teatro na escola existem confrontos entre forças, entre
posições, entre sonhos, desejos e frustrações. Momentos de inten-
sa atividade teatral despertam o sonho de que haverá mais espaço,
mais incentivo para a criação teatral na escola. Porém, o que se per-
cebe é um crescente cerceamento das atividades artísticas na escola.
E quanto mais percebemos um esforço de bloquear a presença do
teatro na escola, mais percebemos, de outro lado, a intensificação do
desejo de se fazer teatro, mais os alunos se mobilizam em torno des-
te desejo da prática teatral. Encontram formas, momentos, fazem
parcerias com alguns professores e, como um gesto de resistência,
se recusam a aceitar a morte do teatro na escola. Estou olhando com
estranheza para este movimento pendular da luta entre a intensi-
ficação da prática teatral e os movimentos de cerceamento de sua
presença na escola. Ainda em 2015, participamos do 16º FESTIL
de 16 a 19 de novembro. Tivemos uma noite cultural na escola no
dia 15 de dezembro. Também fomos convidados para apresentar na
Câmara de Vereadores do município. Assim, o ano letivo de 2015 foi
concluído com as sempre renovadas promessas da direção da escola
de, no próximo ano, priorizar a prática teatral no espaço escolar.
Diante de tudo que foi apresentado até aqui, retomando a
questão inicial: de que modo se tornaria possível ampliar e esti-
mular os espaços para a criação no ambiente escolar a partir das
práticas teatrais? E após descrever a noção de Performance como a
possibilidade de se perceber não apenas a repetição mas também os
escapes e vazios que possibilitam a criação, acredito que esses rela-
tos de experiências da prática teatral escolar contribuem para dar
a ver, ao menos em parte, aquilo de genuíno que acontece no espa- 31
(RE)EXISTÊNCIAS JUVENIS NA ARTE DA VIDA

ço escolar apesar dos governos, apesar das interferências do meio


empresarial. Apesar de muitos apesares, existe algo que acontece,
algo que se inventa no meio escolar. Ao menos é o que este texto
“faz pulsar” quando narra as experiências várias, as formas outras
do fazer escolar que se tornaram possíveis na Escola Emília. Tal-
vez tenhamos ensaiado na Escola Emília algumas possibilidades de
se “fazer a escola outra na escola mesma” (GALLO, 2015, p. 447).
Aliás, este texto de Sílvio Gallo está em sintonia com este esforço
de dar a ver aquilo que a escola elabora, inventa e produz.

Referências
ABEGG, F. H. Movimentos de formação docente na escola: en-
tre experiências de docência e ensaios de teatro. [Dissertação
de Mestrado].Porto Alegre: UFRGS, 2013.
ABEGG, F. H. Docência em Cena: Experiências de formação
continuada e práticas teatrais na escola. [Tese de Doutorado].
Porto Alegre: UFRGS, 2018.
GALLO, S. Pensar a escola com Foucault: além da sombra da vigi-
lância. In: CARVALHO, A. F; GALLO, S. (Orgs.). Repensar a edu-
cação: 40 anos após Vigiar e Punir. São Paulo: Livraria da Física,
2015. Pp. 427-449
ICLE, G. Da Pedagogia do Ator à Pedagogia Teatral: verdade, ur-
gência, movimento. O Percevejo online, v. 1, n. 2, pp. 1-9, 2009.
SCHECHNER, R. Hacia una poética de la Performance. In: ______.
Performance: teoria&practicas interculturales. Buenos Aires:
Universidad de Buenos Aires, 2000c. Pp. 71-106.
SCHECHNER, R. ¿Que son los Estudios de Performance y por que
hay que conocerlos? In: ______. Performance: teoria&practicas
interculturales. Buenos Aires: Libro de Rojas, 2000a. Pp.11-20.
SCHECHNER, R. Restauración de la conducta. In: ______. Perfor-
mance: teoria&practicas interculturales. Buenos Aires: Libro de
Rojas, 2000b. Pp. 107-191. 32
33
ASPECTOS DA MODERNIDADE
DESIGUAL E SEGREGADA: A POLÍTICA NAS
PERIFERIAS DE SÃO PAULO

Marco Antonio Bin

Para que a alienação se torne um poder


‘insuportável’, isto é, um poder contra o qual
se faz uma revolução, é necessário que tenha
produzido a massa de humanidade como massa
totalmente ‘destituída de propriedade’, e que se
encontre, ao mesmo tempo, em contradição com
um mundo de riquezas e de cultura existente de
fato.

Karl Marx, A Ideologia Alemã

Introdução1: sobre as inconsistências da ‘nova classe média’


nos territórios da precariedade

Em março de 2017 a Fundação Perseu Abramo divulgou


a pesquisa Percepções e Valores Políticos nas Periferias de São
Paulo2, que teve como principal objetivo compreender “os ele-
mentos que têm formado a visão de mundo e o imaginário social
nas periferias da cidade de São Paulo” (FUNDAÇÃO PERSEU
ABRAMO, 2017, p. 4). Para tanto, partiu-se de uma hipótese ini-
cial que abordava um primeiro momento, as novas dinâmicas so-
cioeconômicas criadas nos governos Lula (2003-2010) e Dilma
(2011-2016), baseadas na ampliação dos mercados de trabalho e
de consumo, bem como à distribuição de renda e mobilidade so-
cial, e um segundo momento, decorrente da retração econômica
1 Artigo revisado e ampliado, originalmente apresentado nas XII Jornadas de
Sociologia na Faculdade de Ciências Sociais da Universidade de Buenos Aires,
realizadas entre 22 e 25 de agosto de 2017.
2 Disponível em: https://fpabramo.org.br/publicacoes/publicacao/percepcoes- 34
-e-valores-politicos-nas-periferias-de-sao-paulo/.
(RE)EXISTÊNCIAS JUVENIS NA ARTE DA VIDA

como desdobramento da crise do capitalismo mundial, onde as


classes populares passaram a “reagir informada por horizontes
menos associativistas e comunitaristas e mais por diretrizes mar-
cadas pelo individualismo e pela lógica da competição” (FUNDA-
ÇÃO PERSEU ABRAMO, 2017, 3).
A questão levantada em diversos debates nas mídias e em
encontros das esquerdas foi se, com a expansão dos empregos
formais, mobilidade social e mais consumo, as classes populares
se aproximaram da ideologia liberal. Se sim, como se desenvolveu
esse processo? O certo é que as mídias tradicionais e as mais à
direita no espectro político passaram a considerar o fracasso das
políticas do PT no governo, como o caso do MBL (Movimento
Brasil Livre), de orientação liberal, que em suas páginas na in-
ternet decretava que “Pesquisa do PT mostra que periferia é de
direita” (BENTES, 2017).
Os debates mais à esquerda fizeram leituras que no geral
rechaçaram essa possível compreensão de um liberalismo ideoló-
gico em gestação nas classes populares. Conforme Ivana Bentes,
“o que estamos vendo (ao longo da pesquisa) é o declínio, como
modelo subjetivo, da figura do ‘trabalhador’ do chão de fábrica,
uma esquerda fordista que precisa se reinventar (...)” (BENTES,
2017). As repercussões, vindas dos setores intelectuais e da aca-
demia, assumiram uma postura muitas vezes “hierárquica”, ao
conceber as periferias como um objeto de observação antropoló-
gico, desconsiderando a mobilização de seus anseios, sua visão de
mundo original e transformadora.
Bentes, embora se coloque frontalmente contra a interpre-
tação de uma periferia liberal em razão dos últimos pleitos elei-
torais – eleições gerais em 2014 e eleições municipais em 2016
– não se furtou em dizer que “o pragmatismo popular brasileiro
não cabe nas polarizações e está em disputa” (BENTES, 2017),
deixando no ar uma delicada sugestão de que a escolha popu-
lar não transcorre necessariamente em função de seus interesses,
ainda que fragmentados, individualizados, mas a partir da disputa
das “estruturas superiores”, entre os agentes e as instâncias polí-
ticas de direita e de esquerda. 35
(RE)EXISTÊNCIAS JUVENIS NA ARTE DA VIDA

Já para o sociólogo Gabriel Feltran, da UFSCar3, a perda


de votos das esquerdas nas periferias ocorreu em decorrência do
abandono das práticas políticas desenvolvidas pelas comunidades
de base ligadas à Igreja Católica e pelos Sindicatos, e pior, “quan-
do (as esquerdas) se tornaram moralmente iguais aos demais po-
líticos tradicionais” (FELTRAN, 2017). Na entrevista, Feltran
destaca um aspecto presente na fala de alguns entrevistados por
mim, sobre a inexistência do voto ideológico, tão em relevância
nos debates intelectualizados. Segundo o sociólogo, “é um voto
que concebe o mundo a partir da proximidade, da relação pessoal,
da confiança na ética do candidato, um voto próximo e moral”
(FELTRAN, 2017), e não há como formar interpretações morais
de condenação por esse pragmatismo.
Para alguns autores, o equívoco começa ao se considerar a
distribuição de renda e a mobilidade social ocorrida nos anos Lu-
la-Dilma como o surgimento de uma “nova classe média”. Como
afirma Marilena Chauí, os programas sociais do PT não consti-
tuíram uma nova classe média no Brasil, mas a criação de uma
nova classe trabalhadora, e discorre sobre a questão,

Esta nova classe trabalhadora é que absorve a ideologia da


classe média: o individualismo, a competição, o sucesso a
qualquer preço, o isolamento e o consumo. Sendo assim, não
é que exista uma nova classe média, mas sim uma nova classe
trabalhadora que é sugada pelos valores da classe média já
estabelecida (CHAUÍ, 2013).

Já tínhamos neste depoimento, três anos antes da crise ins-


titucional que depôs Dilma Rousseff, uma percepção da assimila-
ção de valores da classe média pelas classes populares, ou como a
autora denomina, nova classe trabalhadora. O economista Marcio
Pochmann compartilha do mesmo ponto de vista, ao realizar um
extenso trabalho sobre o Governo Lula, em trabalho minucio-
so que avalia as políticas econômicas e sociais que produziram
expansão do emprego formal, redução da pobreza e consequen-
3 Entrevista disponível em https://apublica.org/2017/04/as-esquerdas-perde- 36
ram-votos-na-periferia-quando-deixaram-de-ser-esquerdas-diz-pesquisador/.
(RE)EXISTÊNCIAS JUVENIS NA ARTE DA VIDA

temente da desigualdade da renda, além de programas sociais


bem-sucedidos (dentre eles, o Bolsa Família; o Luz para Todos;
Minha Casa, Minha Vida etc.) que resultaram na retomada da
mobilidade social. Para Pochmann, ainda que tenha havido mu-
danças no padrão de consumo e melhoria na distribuição de renda
na base piramidal da sociedade brasileira, tal como ocorreu ante-
riormente nos países industrializados europeus que adotaram o
padrão fordista de desenvolvimento (1950-1973, os anos doura-
dos do capitalismo), não houve a “constituição de uma nova classe
social, tampouco permite que se enquadrem os novos consumido-
res no segmento da classe média” (POCHMANN, 2014, p. 71).
O sociólogo Jessé Souza vai mais longe em seu argumen-
to questionador sobre essa hipotética ascensão de uma nova
classe média. Em sua análise, o fato de um professor universi-
tário e um trabalhador industrial qualificado auferirem renda
similar não significa que estilos de vida ou hábitos de consumo
semelhantes, e que também não garantiria um pertencimento
de classe, e assim, haveria “muitas diferenças entre o estilo de
vida da classe média estabelecida e os trabalhadores precariza-
dos e superexplorados que estão longe de ser transpostas”4. No
mesmo texto, observa um outro ponto importante, a zona de
estratificação social intermediária, que possui uma renda entre
R$ 1.000 e R$ 5.000 impediria análises mais criteriosas, “as de-
nominações ‘classe C’ e ‘nova classe média’ são infelizes, posto
que transmitem a impressão de que o Brasil está se tornando
aquilo que não é: um país em que os remediados são a maioria
e no qual a pobreza vai tornando-se um problema residual”, e
conclui dizendo que essa sub-gente5 ou na verdade, mais apro-
priadamente, batalhadores da periferia, como camada social é
uma incógnita politicamente, e em sua luta pela autoconfiança,
4 Disponível em: https://fpabramo.org.br/2017/04/20/o-brazil-nao-conhe-
ce-o-brasil/.
5 Em seu livro “Ralé Brasileira – quem é e como vive”, Jessé Souza define essa
camada como “uma classe inteira de indivíduos, não só sem capital cultural ou
econômico em qualquer medida significativa, mas desprovida, esse é o aspecto
fundamental, das precondições sociais, morais e culturais que permitem essa 37
apropriação” (SOUZA, 2009, p. 21).
(RE)EXISTÊNCIAS JUVENIS NA ARTE DA VIDA

pelo autorrespeito, pela autoconfiança, “não são como desejam


os arrivistas de direita ou os bovaristas de esquerda”.
O importante dessa explanação é a evidência de que as ca-
madas urbanas mais pobres da população, concentradas às mar-
gens dos bairros com mais infraestrutura de serviços, não incor-
poraram de maneira completa as conquistas sociais e os valores
pertencentes às classes médias, como o tempo livre para os filhos
como forma efetiva de acesso ao conhecimento escolar (capital
cultural), e com isso propiciar além da formação progressiva do
espírito crítico, as oportunidades em um mercado de trabalho
qualificado. Tais tipos de herança imaterial da classe média não
são considerados em uma sociedade cada vez mais impregnada
por valores estatísticos, por uma visão economicista reproduzi-
da principalmente pelos meios de comunicação hegemônicos, e
assim “o que vai ser chamado de ‘mérito individual’ mais tarde
e legitimar todo tipo de privilégio não é um milagre que ‘cai do
céu’, mas é produzido por heranças afetivas de ‘culturas de classe’
distintas, passadas de pais para filhos” (SOUZA, 2009, p. 23). As
classes média e alta exploram o corpo dos subcidadãos da ‘ralé’ a
baixo preço, e com isso acumulam o tempo necessário para ser re-
investido em trabalho produtivo e reconhecido. Como contrapar-
tida, o estigma do fracasso permanece atado à ralé, como signo de
sua hipotética incompetência atávica, compreendida muitas vezes
como preguiça ou falta de vontade de vencer, em um mercado
cada vez mais competitivo.
Com base nessa conjunção de argumentos questionadores
do surgimento de uma ‘nova classe média’, proponho na sequência
uma rápida abordagem histórica, política e econômica da conjun-
tura social brasileira, e com apoio de breve levantamento etnográ-
fico, sugerir uma aproximação da realidade cotidiana dos territó-
rios de precariedade (periferias) na cidade de São Paulo a partir de
seus moradores, objetivando: 1) compreender o voto das pessoas
de baixa renda que trabalham/circulam nos bairros mais centrais
da cidade; 2) avaliar as dinâmicas de circulação e comunicação no
espaço urbano; e, 3) observar a influência dos meios de comunica-
ção e das redes sociais na construção de uma consciência de mundo 38
(RE)EXISTÊNCIAS JUVENIS NA ARTE DA VIDA

sob o ponto de vista do cidadão de baixa renda. Esse conjunto de


análises busca consolidar a percepção de uma profunda desigualda-
de social na metrópole, sob as políticas liberais.

O processo histórico e social

Creio que nessa discussão seja relevante destacar o compo-


nente histórico de nossa formação. O discurso dos grupos diri-
gentes que por meio de um golpe institucional assumiram o Po-
der Legislativo e Poder Executivo em 2016, recolocaram na prática
do dia os interesses econômicos das classes dominantes, às ex-
pensas das classes trabalhadoras. Uma demonstração cabal desse
projeto é o esforço em se convalidar a toque de caixa as reformas
trabalhista e da previdência. Em matéria votada e aprovada ante-
riormente, os investimentos públicos já tinham sido congelados
por 20 anos e esse Estado ora regido pelos interesses do capital,
oferece como adequação contábil apenas a reposição da inflação
anual6. Se colocamos à mesa a referência do processo histórico
de nossa formação social, é fácil observar as incompletudes de
ordem social e política da nossa Nação. Conforme Darcy Ribeiro,

Com efeito, a grande herança histórica brasileira é a façanha


de sua própria constituição como um povo étnica nacional
e culturalmente unificado. E também o malogro dos nossos
esforços de nos estruturarmos solidariamente como um
povo que existia para si mesmo. Na raiz desse fracasso
das maiorias está o êxito das minorias, que ainda estão aí,
mandantes (RIBEIRO, 2010, p. 247/248).

Ribeiro discorre sobre um horizonte político nada favorável


para o oprimido, que sempre se viu submetido pelas minorias di-

6 Sobre esta Proposta de Emenda Constitucional (PEC 241) votada e aprovada em


fins de 2016 na Câmara e no Senado, podemos destacar: a) congelamento do salário
mínimo, reajustado apenas pelo índice de inflação do ano fiscal anterior; b) limite aos
investimentos em educação e saúde, que cresciam anualmente acima do índice de
inflação. Com essas medidas, a população mais pobre tende a ser mais prejudicada,
pois a consequência é o inevitável sucateamento da rede pública de educação, bem 39
como a rede pública de saúde (SUS), onde o atendimento não exige plano de saúde.
(RE)EXISTÊNCIAS JUVENIS NA ARTE DA VIDA

rigentes, que os manejou historicamente conforme seus interesses.


Em outras palavras, os fluxos financeiros proporcionados pelos
avanços tecnológicos ampliaram o grau de dependência as carac-
terísticas de nosso povo, que não existe para si, mas sim para os
outros, na proporção em que sua espoliação trabalhista permite a
remessa de substanciosos excedentes econômicos aqui produzidos
a custo reduzido. Pela rigidez da matriz produtiva, profunda desi-
gualdade econômica e restrita mobilidade profissional, as classes
dominantes mantendo o controle da economia, manipulam os fa-
tores de uma institucionalidade não só injusta como retrógrada, e
para Darcy Ribeiro, “a sociedade brasileira não conforma um re-
manescente arcaico da civilização ocidental (...), mas um dos seus
‘proletários externos’, conscritos para prover certas matérias-pri-
mas e para produzir lucros exportáveis” (RIBEIRO, 2010, p. 251).
Aprofundando esse cenário econômico descrito por Darcy
Ribeiro, podemos acrescentar as análises de dois importantes
pensadores marxistas brasileiros. O primeiro, Ruy Marini (2012),
analisou a inserção da economia brasileira na geopolítica do ca-
pital do ponto de vista de uma dialética da dependência. Segundo
Marini, somos uma economia subimperialista, atrelada aos inte-
resses estratégicos do capital internacional, como hospedeira de
empresas transnacionais, cuja produção é voltada para os merca-
dos externos. Para que isso se realize com sucesso, há uma supe-
rexploração do trabalhador, o que de maneira sintética faz com
que a acumulação se processe com a produção de mais-valia ab-
soluta, vale dizer, diminuição dos salários, fim da estabilidade no
emprego, aumento das horas trabalhadas etc. O mesmo processo
de perdas de direitos trabalhistas ocorridas pós-golpe de 1964
regressam agora, novamente sob circunstâncias excepcionais,
decorrentes do golpe institucional de 2016.
Na mesma linha de reflexão, a socióloga Vânia Bambirra
discorre sobre as decisões políticas de nossas classes dominantes,
sempre vinculadas a uma situação de dependência, sendo que seus
setores mais lúcidos compreenderam a que para manter o sistema
de exploração, era indispensável aceitar essa realidade de classes
dominantes-dominadas, e acrescenta, 40
(RE)EXISTÊNCIAS JUVENIS NA ARTE DA VIDA

É possível afirmar que, enquanto se aprofunde a dependência


econômica através do domínio do capital estrangeiro nos
setores-chave da economia, aprofunda-se também a dependência
política, na medida em que as decisões mais cruciais devem ter
o capital estrangeiro como ponto de referência básico, devendo
por ser por ele referendadas (BAMBIRRA, 2015, p. 145).

O debate de cunho nacional-desenvolvimentista expresso


por Darcy Ribeiro, Ruy Marini e Vânia Bambirra mesmo pro-
cessado nos anos 1960 e 1970 possui um forte apelo na atuali-
dade, onde a presença de uma classe dominante-dominada se
impõe política e economicamente, sob os interesses do mercado
internacional. A dominação oligárquica nacional, hoje em par-
ceria com os conglomerados transnacionais, promove reformas
no trabalho e na previdência, a abertura de compra de terras na
Amazônia, o congelamento dos investimentos públicos em pes-
quisa, a venda de ativos nacionais ou parte deles, como nossas
reservas de petróleo, em sintonia com sua submissão aos dese-
jos do capital financeiro, sendo possível identificar neste estágio
a perda do controle do território.

O urbano e seu território

Para discutirmos a formação do território e seus desequilí-


brios estruturais, indispensável para a discussão presente sobre as
periferias, seria importante uma breve abordagem conceitual do
espaço urbano. Para Henri Lefebvre, o urbano define-se “como o
lugar onde as pessoas tropeçam umas nas outras, encontram-se
diante e num amontoado de objetos, entrelaçam-se até não mais
reconhecerem os fios de suas atividades, enovelam suas situações
de modo a engendrar situações imprevistas” (LEFEBVRE, 2004,
p. 46), lugar onde se expressam os conflitos, lugar onde se ex-
pressam os desejos como resultado das necessidades humanas,
ainda que permaneça marcado pela hierarquia e racionalidade
industrial (a ordem da coesão e repressão), e por uma ideologia
urbanística constituída pela estratégia capitalista de produção do
espaço, via especulação imobiliária. 41
(RE)EXISTÊNCIAS JUVENIS NA ARTE DA VIDA

Do espaço urbano em sua dinâmica social para o território7.


Para Milton Santos, o território “é o chão e mais a população, isto
é, uma identidade, o fato e o sentimento de pertencer àquilo que
nos pertence. O território é a base do trabalho, da residência, das
trocas materiais e espirituais e da vida sobre os quais ele influi”
(SANTOS, 2000, p. 98). Conforme já discutido em outro momen-
to (BIN, 2009) o território da cidade de São Paulo, submetido
à organização espacial resultante dos interesses da classe domi-
nante, passa ao longo dos anos 1930-70 de:

a) uma conformação ‘centro-periferia’ que define claramente uma


centralidade político-administrativa, onde também se concen-
tram os bairros residenciais das classes de média e alta renda, e
subcentros populares, em áreas mais distantes e menos atendidas
em equipamentos urbanos, para

b) uma segregação social que fragmenta o território de acordo


com as conveniências dos empreendimentos imobiliários, seguin-
do um vetor de desenvolvimento expresso por um eixo centro-
-sudoeste (fig. 1).

Em relação a esse aspecto, observa Flávio Villaça,

A tendência à segregação segundo uma única região geral da


cidade não é necessária apenas para propiciar o controle do
mercado e do Estado, (mas também) para o desenvolvimento
de uma ideologia que auxilie a dominação do Estado e do
mercado, de maneira a facilitar a produção (...) de uma cidade
melhor que ‘a outra’ (VILLAÇA, 2001, p. 339).

Assim, a iniciativa privada em consonância com as facili-


dades proporcionadas pelo poder público, aprofunda a urbaniza-
ção segregada que oferece as melhores condições para o deslo-
camento das classes de média e alta renda, em outras palavras,
7 Milton Santos distingue assim espaço e território: “Podem as formas, durante
muito tempo, permanecer as mesmas, mas como a sociedade está sempre em mo-
vimento, a mesma paisagem, a mesma configuração territorial, nos oferecem, no 42
transcurso histórico, espaços diferentes (SANTOS, 1996, p. 77).
(RE)EXISTÊNCIAS JUVENIS NA ARTE DA VIDA

acessibilidade privilegiada para o automóvel, produção de espa-


ço altamente desigual. Trata-se da luta pelo controle do tempo
de deslocamentos, vantagem pela energia despendida, vantagem
na luta pelo espaço. Tudo isso dentro de uma leitura ideológica,
que faz com que os investimentos em infraestrutura nas regiões
da cidade onde há concentração de camadas de alta renda, sejam
compreendidos pela população como um todo que se trata de in-
vestimento para a cidade, legitimando-se assim o espaço desigual.
A esse respeito, diz José Whitaker Ferreira,

As classes dominantes procuram fazer com que seus


interesses, e as ideias que os consolidam, se tornem interesses
e ideias não mais daquela classe em particular, mas de todas
as classes. Assim, a ideologia age como um instrumento para
fazer destas ideias, ideias universais e por isso mesmo, ideias
dominantes, que acabam por esconder os conflitos inerentes
à sociedade de classes (FERREIRA, 2007, p. 48).

Fig. 1 – Distribuição de Empregos formais em São Paulo 43


(RE)EXISTÊNCIAS JUVENIS NA ARTE DA VIDA

Creio ser uma definição bem próxima da cegueira analisa-


da por Lefebvre, a cegueira do não ver, as apreensões cotidianas
condicionadas pelas “ideias dominantes” constituindo-se nos ele-
mentos cegantes, a oferecer aquilo não apreendido e analisado – o
inquieto desconhecido – por si só o elemento cegado. Essa hipó-
tese será importante na consideração dos aspectos que norteiam
a conjuntura dos cidadãos das periferias, seja em suas escolhas
políticas, seja em sua visão de mundo, os quais apresento a seguir.

Os argumentos políticos das periferias

Conforme os pontos apresentados no resumo, a proposta


deste texto é estabelecer uma aproximação da realidade cotidiana
das periferias, compreendendo a partir de sua voz as impressões
políticas desse morador que faz parte das estatísticas econômicas
do país, porém segue à margem da participação política. Em outras
palavras, persiste em sua luta por direito à representação e cidada-
nia em pleno século XXI. Um pouco após a pesquisa da Fundação
Perseu Abramo ser divulgada nos meios de comunicação, ocorre-
ram inúmeras manifestações nas mídias, como também nos círcu-
los acadêmicos e intelectuais. O Instituto Casa da Cidade realizou
um debate no dia 21 de abril de 2017, onde estiveram presentes
mais de 70 pessoas, incluindo representantes de movimentos so-
ciais e jornalistas de mídias digitais. Na mesa, cinco pessoas, apenas
uma representante negra e das periferias, Graça Xavier, da União
Nacional por Moradia Popular; na plateia, menos de um quarto
eram cidadãos oriundos dos territórios de precariedade, direta-
mente relacionados com o tema da noite. Ou seja, um debate inte-
lectualizado, situado em um bairro classe-média (Vila Madalena),
em horário proibitivo (19 horas de uma quinta-feira) para o acesso
de participantes dos distanciados territórios de precariedade. O
mal-estar da pesquisa mobilizava a intelligentsia gauche paulistana
em busca de respostas aos problemas apontados e que pareciam
afligir mais a classe média de esquerda e as estruturas diretivas do
PT. Na pesquisa da Fundação Perseu Abramo são várias as inter-
pretações feitas sob um viés descolado da realidade cotidiana das 44
(RE)EXISTÊNCIAS JUVENIS NA ARTE DA VIDA

periferias, mais uma vez colocada ao reboque do contexto político.


Por exemplo, uma das constatações da entrevista diz que “o consu-
mo se torna um meio de constituição da identidade e naturalização
de ascensão”, e em seguida, “muitos desejam ser empreendedores”
(FUNDAÇÃO PERSEU ABRAMO, 2017, p. 23).
Gisele, negra, jornalista e militante em movimentos peri-
féricos, é a primeira a falar no evento, “sobre esse conceito das
periferias serem conservadoras e auto empreendedoras, qual a
diferença das relações de empreendedorismo ou de iniciativa pró-
pria dos mutirões e as iniciativas para se abrir o pequeno negó-
cio?”8. Podemos aqui citar Lúcio Kowarick (2009) que descreve
o processo de autoconstrução das moradias nas periferias de São
Paulo desde a crise habitacional e dos conflitos urbanos e sindi-
cais, conduzidos pelo então legalista Partido Comunista, em fins
dos anos 1940,

em decorrência da conjugação desses processos, durante cerca


de meio século a confecção de moradias pelos proprietários
do lote tornou-se a modalidade dominante de habitação
das camadas trabalhadoras, postergando o aparecimento
mais volumoso de favelas até a década de 1980. Antes deste
momento, nos anos 1940, a autoconstrução já era fenômeno
comum (...) (KOWARICK, 2009, p. 164).

Em complemento ao seu artigo sobre autoconstrução de mo-


radias em áreas periféricas, Kowarick apresenta o trabalho etno-
gráfico realizado em três loteamentos do bairro Jardim Ângela,
zona sul de São Paulo, em 2001-2002. Diante de tanta precariedade
descrita, falta de saneamento básico, transporte, posto médico, e no
lugar do poder público, o assédio do tráfico de drogas, era grande
o esforço pela conquista da moradia própria no lote adquirido, feita
em mutirão familiar ou com a ajuda de amigos nos horários livres,
uma forma de amenizar os gastos com aluguel. Como diz Marli,
moradora do local, “é, pela casa valeu. Pelo resto não. O meu sonho
é esse, terminar a casa. É um sonho. Sonho mesmo! Sonho! Porque
a realidade é outra” (KOWARICK, 2009, p. 186).
45
8 Depoimento de Gisele, no debate no Instituto Casa da Cidade, 21.04.2017.
(RE)EXISTÊNCIAS JUVENIS NA ARTE DA VIDA

Um sonho é sempre, em qualquer tempo, a realização de um


desejo fortemente acalentado, de modo que a pesquisa da Funda-
ção Perseu Abramo não esclarece de que maneira o empreende-
dorismo atual das periferias surge como resultado da assimilação
da ideologia liberal. Gisele, com o microfone, tateia na busca pelas
palavras que expressem com o máximo cuidado seu pensamento,
pois sabe que ali não é o seu lugar, não está no meio de sua gente,
traz outra polêmica em sua fala, “não é novidade (que as) igrejas
estejam presentes no território, o problema é que a esquerda (que
esteve nas igrejas) agora não está mais”9. Sua crítica aqui se re-
fere ao abandono do projeto de formação política que ocorreu na
igreja católica dos anos 1970, a partir das Comunidades Eclesiais
de Base (CEBs) que na época colaboraram muito para um pen-
samento de esquerda, consolidado na formação do Partido dos
Trabalhadores (PT), em 1981. Desse modo, o surgimento massi-
vo das igrejas neopentecostais apenas responde a uma demanda
espiritual não atendida pela Igreja Católica, como também nas
carências de infraestrutura, não atendidas pelo poder público. Gi-
sele complementa, denunciando os efeitos que a pesquisa como
um todo teve junto ao povo das periferias, “Infelizmente tudo o
que foi dito só aponta o dedo, criminaliza e gera problemas para
quem vive nas periferias”10.
Guilherme, negro, jovem morador das periferias, confeitei-
ro, empreendedor, também fez suas críticas, pontuadas pelo cui-
dado semântico e por um tom conciliador, embora incisivo,

A gente não tem muito tempo para estudar (o ensinamento) da


escola, ciências, matemática, geografia, quanto mais a política
em si. A gente tem uma exigência social e profissional muito
maior, e que demanda um esforço racional que muitas vezes
não é entendido por vocês (...). Até que ponto (essa pesquisa)
foi feita para solucionar (problemas) ou para manter um
padrão que já existe? Até quando vocês querem que a gente
pare de entender o que é liberalismo político e que a gente
entenda o que realmente é política?11
9 Depoimento de Gisele, no debate no Instituto Casa da Cidade, 21.04.2017.
10 Depoimento de Gisele, no debate no Instituto Casa da Cidade, 21.04.2017. 46
11 Depoimento de Guilherme, no debate do Instituto Casa da Cidade, 21.04.2017.
(RE)EXISTÊNCIAS JUVENIS NA ARTE DA VIDA

Guilherme começou sua fala com uma frase instigante,


“quando ouvi a palavra liberalismo não fazia a menor ideia do que
significava”12, o que sugere a evidente dissociação dos conteúdos
ideológicos na prática da vida cotidiana nas periferias. Primei-
ro porque não existe, ou é muito frágil, uma orientação política
adequada nas escolas que permita o discernimento por parte do
aluno do que seja esquerda e direita. E também porque não há
uma discussão adequada do tema nos meios de comunicação. Em
suma, não há formação política. Na pesquisa esse aspecto surge
em dois depoimentos anônimos e que para muitos aparece como
motivo de galhofa: “Direita é alguém direito, correto. Esquerda é
quem vive reclamando”; e também, “Eu acho que a direita é quem
está no poder e a esquerda é a oposição!” (FUNDAÇÃO PESEU
ABRAMO, 2017, p. 14). Nos dois exemplos se demonstra a des-
preocupação pelo significado dos termos “esquerda” e “direita”,
pois isso não soluciona problemas, como diz Guilherme. Em ou-
tras palavras, até que ponto a pesquisa – ou a prática política – vai
começar a fazer diferença? O pior dos distanciamentos é aquele
que ignora a realidade e nesse sentido, a esquerda se ausentou de
seus princípios éticos e sociais.

O prefeito Doria e a subcidadania brasileira

Quando pergunto a Maurício, 26 anos, atendente de lan-


chonete, morador no bairro Jardim Ângela, zona sul de São Pau-
lo, em quem votou para prefeito em 2016, ele simplesmente me
diz “o pior é que votei em Doria”. De maneira sintética e mesmo
trágica, a afirmação denota a sua decepção, “pois ele está tiran-
do tudo do povo”. Alexandre, 36 anos, jornaleiro, morador no
bairro Brasilândia, zona oeste de São Paulo, também votou em
Doria. Além dessa concordância política, o que mais ambos têm
em comum? Eles moram a mais de uma hora do lugar em que
trabalham, na região da avenida Paulista (central); interagem
com as mídias digitais e têm uma vaga compreensão política do
que seja direita e esquerda. Significa dizer que o voto traduz
47
12 Depoimento de Guilherme, no debate do Instituto Casa da Cidade, 21.04.2017.
(RE)EXISTÊNCIAS JUVENIS NA ARTE DA VIDA

simpatia momentânea (Maurício), ou um hábito adquirido (Ale-


xandre, que antes votou em Geraldo Alckmin para governador e
Aécio Neves para presidente, ambos do PSDB), longe de alguma
convicção ideológica ou de princípios.
Milton Cruz, 79 anos, protético aposentado, morador em
Itaquera, zona leste, a uma hora de seu trabalho hoje, como ambu-
lante na avenida Paulista vendendo seus carrinhos em miniatura,
foi outro entrevistado que votou em Doria para prefeito. Anterior-
mente, em Alckmin para governador e “Temer para presidente”,
sendo que Temer foi vice na chapa de Dilma, do PT, verificando-
-se aqui uma das incongruências observadas nas respostas da et-
nografia realizada para este artigo13. Milton sustenta que critica o
PT desde a greve dos metalúrgicos, no longínquo ano de 1980, e
que o partido “comprou o povo do Nordeste com o bolsa-família”,
uma afirmação recorrente entre os que formam opinião a partir
de notícias políticas produzidas pelas mídias hegemônicas.
Nesta altura, cabe indagar quem é esse personagem, João
Doria, que em sua primeira experiência como candidato a uma
eleição majoritária venceu em 1º turno? Em linhas gerais, trata-se
de um empresário e publicitário, filho de deputado federal, funda-
dor e presidente do Grupo Doria onde destaca-se a Lide – Grupo
de Líderes Empresariais. Possuía até recentemente no canal aber-
to um programa, Show Business, onde entrevistava empresários
e políticos. Com poucos meses de governo, esteve envolvido em
dois acontecimentos de repercussão midiática: o primeiro, quan-
do em nome de um programa de governo, “Cidade Limpa”, não só
determinou o apagamento de grafites e pichações de locais públi-
cos, como solicitou punições para grafiteiros e pichadores, consi-
derando estes como bandidos. O outro fato político, mais grave e
inconsequente, foi uma brutal ação na Cracolândia, região central
da cidade, onde se concentram usuários de crack e moradores
em situação de rua. Sob a justificativa de capturar traficantes, a
Polícia Militar agiu de forma violenta, reprimindo pessoas e des-
truindo de modo implacável seus pertences. Comparando a ação
13 Trata-se de um número parcial de entrevistados, uma vez que para a conformação 48
final da pesquisa qualitativa, se prevê um universo não inferior a 30 entrevistados.
(RE)EXISTÊNCIAS JUVENIS NA ARTE DA VIDA

com um pogrom nazista, Aldo Fornazieri, professor da Escola de


Sociologia e Política de São Paulo, descreve o que se passou,

Na ação espetaculosa do prefeito contra a Cracolândia foram


presos 38 traficantes e apreendidas algumas armas. O que
consta é que nenhum desses presos é um grande traficante,
um chefe do tráfico em São Paulo (...). Não satisfeito com o
desastre de sua violência contra doentes indefesos, o prefeito
quis ir mais longe no seu autoritarismo. Anunciou internações
forçadas de dependentes químicos e buscou o respaldo na
Justiça para perpetrar este ato contra a liberdade das pessoas
e contra os direitos civis de doentes (FORNAZIERI, 2017).

No dia da ação policial, as imagens veiculadas pelas mí-


dias digitais eram as de um lugar varrido por um tsunami, onde
barracas, colchões, roupas, bens pessoas jaziam inapelavelmente
espalhados pelas ruas desertas, transformados em montes de
lixo. Ao longo das calçadas, fileiras assustadoras de caminhões-
-caçamba aguardavam para retirar o que outrora foram perten-
ces de pessoas abandonadas pelo poder público. Essa ação tru-
culenta foi na verdade uma espécie de representação simbólica
do prefeito eleito João Doria, que gosta de se definir como um
gestor e não como um político, e que tem a reputação de não
discutir suas decisões, mas implementá-las de modo impositivo.
Recentemente acusou trabalhadores que lutam por seus direitos
de vagabundos e preguiçosos14.
O mito do self-made man que encarna é a grande chancela
publicitária para esses tempos de políticas neoliberais e de culto à
meritocracia. Na verdade, com seus métodos concorrenciais e suas
práticas autoritárias, Doria deixa de ser um expoente da pós-mo-
dernidade neoliberal para, retrocedendo cem anos, se aproximar
do liberalismo evolucionista de Herbert Spencer. Considerando
os acontecimentos da Cracolândia, cabem ao atual prefeito paulis-
tano as palavras de Dardot e Laval, ao se referirem à essência do
liberalismo de Spencer:
14 “Doria, que chama trabalhador de ‘vagabundo’, foi trabalhar de helicóptero”,
disponível em: https://www.brasil247.com/geral/doria-que-chama-trabalhador- 49
-de-vagabundo-foi-trabalhar-de-helicoptero.
(RE)EXISTÊNCIAS JUVENIS NA ARTE DA VIDA

O ponto decisivo que permite a passagem da lei da evolução


biológica para suas consequências políticas é a prevalência na
vida social da luta pela sobrevivência (...). Daí a assimilação
da concorrência econômica a uma luta vital geral, que é
preciso deixar que se desenvolva para que a evolução não
seja interrompida; daí as principais consequências que
examinamos antes, em especial as que condenavam a ajuda
aos mais necessitados, que deveriam ser abandonados à
própria sorte (DARDOT e LAVAL, 2016, p. 52-53).

De outra parte, convém reiterar que a prática da democracia


moderna esteja em concordância com o pluralismo político e dessa
forma, descartando o que Chantal Mouffe denomina uma relação
antagonística. Nessa circunstância, as identidades coletivas são de-
terminadas por uma relação nós/eles, onde o embate se dá sem o
reconhecimento de um adversário, mas de um inimigo. Disso resul-
ta que a política deixa de ser a luta entre distintos pontos de vista,
para se transformar em verborragia de um lado só, com a consoli-
dação do consenso. A onda desse liberalismo irredutível que avan-
ça na América do Sul e do qual João Doria é um de seus adeptos,
compreende o poder como uma forma de promover o consenso –
via demonização ou o não-reconhecimento do oponente, a pobreza
do debate que pode explicar o crescente desinteresse pela política,
refletido nos altos índices de abstenção eleitoral. De acordo com
Mouffe, “para agir politicamente, as pessoas precisam ser capazes
de se identificar com uma identidade coletiva que ofereça uma ideia
de si próprias que elas possam valorizar” (MOUFFE, 2015, p. 24).
A complexa realidade do povo brasileiro, mestiço, pobre e
trabalhador, descartado como gênese e fundamento do nosso pro-
cesso histórico e social, se encontra imobilizado em um feixe de
transformações que o reduzem a mero espectador da cena polí-
tico-econômica. De um modo geral, os descompassos de nossa
modernidade desigual se definem pela manutenção dos desequi-
líbrios sociais, que nestes tempos sombrios de predomínio dos in-
teresses do capital financeiro, regem espoliações e falsas expecta-
tivas, aprofundando a distinção das classes sociais que compõem
nossa sociedade. Ainda conforme Jessé Souza, 50
(RE)EXISTÊNCIAS JUVENIS NA ARTE DA VIDA

O privilégio positivo do “talento inato” das classes alta e


média é transformado em privilégio negativo de toda uma
classe social (a ralé) que se produz e se reproduz como
classe de indivíduos com um “estigma inato”. Essas são as
pessoas que estão sempre a um passo — ou com os dois
pés dentro — da delinquência e do abandono. Essa classe
é moderna. Não é o “jeitinho brasileiro” de 500 anos
atrás que a cria, mas a impossibilidade afetiva, emocional,
moral e existencial de “incorporação” dos pressupostos
indispensáveis à apropriação tanto de capital cultural
quanto de capital econômico (SOUZA, 2009, p. 25).

E assim, por mais que o discurso oficial dos próceres neoli-


berais sobre medidas de modernização do trabalho, da previdên-
cia, da economia, ganhe amplitude, desconfiamos diante dos fatos
expostos pela realidade cotidiana de nossas ruas, as mesmas ruas
descritas por João do Rio com lirismo em seus enigmas, “Qual de
vós já passou a noite em claro ouvindo o segredo de cada rua?
Qual de vós já sentiu o mistério, o sono, o vício, as ideias de cada
bairro?” (RIO, 2007, p. 23).
Ranulfo Farias, negro, 64 anos, pintor e atualmente vendendo
a força de trabalho puxando uma carroça, é como um dos persona-
gens de João do Rio, que passa o tempo a ouvir os segredos das ruas
e, contra todos os prognósticos, acumular gradualmente capital
cultural. Nesse sentido se assemelha a Lara, 21 anos, transexual que
vive capturando latinhas de refrigerante para reciclagem e faz seu
trabalho com a leveza de quem sente a alma das ruas. Ambos per-
correm dezenas de quilômetros por dia e parecem retornar sempre
ao mesmo ponto, não muito longe da Avenida Paulista, que não os
repele, mas igualmente não aceita. Nesse tom de impasse, um puxa
sua carroça enquanto a outra carrega seu saco de latinhas, ambos
dormitam nas periferias do mundo. Ainda que rigoroso na descri-
ção de sua apreensão do mundo, Ranulfo não relaciona sua condição
precária de morador em situação de rua com a atávica ausência de
políticas públicas. Acompanha as notícias do mundo pelo rádio, pela
TV, não sente falta de um aparelho para navegar na internet, mas
ainda quer ter um celular para entrar em contato com as pessoas. 51
(RE)EXISTÊNCIAS JUVENIS NA ARTE DA VIDA

Sua solidão perene em meio à multidão indiferente criou uma crosta


de desconfiança, e ao mesmo tempo de interesse por tudo.
Lara se informa pelos jornais, os distribuídos de graça no
metrô, e assiste a TV no bar de uma amiga. Gosta de navegar pela
internet quando tem dinheiro para o crédito, possui 3.000 amigos
no Facebook, o que mostra que os acessos digitais estão ao alcance
e de alguma forma permitem a formação de uma rede, gosta de
política, mas não entende muito, “eu trabalhando, tá ótimo, tenho
21 anos e nunca trabalhei de carteira assinada, negra trans e em
situação de rua, fica complicado trabalhar”. Lara votou em Dilma
para presidente, não votou para prefeito porque tem seu registro
eleitoral no Rio de Janeiro, no subúrbio de Bonsucesso, de onde
veio caminhando, 18 dias a pé.
Já Ranulfo se informa pela mídia hegemônica, TV e rádio,
e faz questão de saber sobre a política. É forte sua decepção, mas
coloca-se a disposição para falar do tema, “nunca votei no PT,
quando vi meu candidato (Maluf, conservador) estampado jun-
to com a Marta (na época, do PT) ali no outdoor, eu falei, ‘mas
nunca você ganha o meu voto’ e não votei mais”. Procuro explo-
rar essa posição, ele não facilita e expõe um arrazoado com sua
firme dicção, “direito adquirido não se mexe”, questionando as
mudanças projetadas pelo governo atual, “agora aos 65 eles que-
rem mais 15 anos de contribuição (...) então vou ter de morrer ali
debaixo”, apontando para a carroça.
São os invisíveis das camadas miseráveis, ou na definição de
Jessé Souza, da ralé brasileira. Têm perfeita consciência de que vi-
vem sob a pretensa ilusão da liberdade e igualdade, e o que fazem é
negociarem sua cidadania da forma que melhor lhes convir. O sofri-
mento da dor da discriminação não mais os alcança – provavelmente
a nenhum dos entrevistados para este artigo. As formas do embate
adversarial, tal como sugere Mouffe, é um sentimento que permane-
ce adormecido na alma, a postos para despertar quando provocados,
ainda que sob uma argumentação política contraditória. De todo
modo, raramente aparece a dor, exceto talvez no caso de Mauricio
Oliveira, negro, 57 anos, trabalhador terceirizado de limpeza, hoje
com contrato no metrô. Mora no Jardim Planalto, periferia da zona 52
(RE)EXISTÊNCIAS JUVENIS NA ARTE DA VIDA

leste, a cerca de uma hora do trabalho na avenida Paulista. Participa


das redes digitais, principalmente WhatsApp e Facebook, e diver-
te-se jogando videogame. Gosta de ler jornal e assiste o noticiário
de TV a cabo. Normalmente vota em quem não vai ganhar pois “se
perder não me ajuda e se ganhar também não”. E conclui com uma
fala espontânea, “com a roupa de serviço, chega quem quiser perto
de mim, mais alto, mais baixo... agora no meu normal, muito difícil
chegar alguém perto”. Essa, provavelmente, a sua dor profunda.
Significativo observar como os grandes meios de comunica-
ção, a mídia eletrônica e impressa, além de prevalecer em seu dis-
curso dominante, desempenham um papel claramente parcial na
abordagem da discussão política, que resultam em análises pouco
abrangentes e elucidativas sobre os processos sociais. Em sua mais
recente obra “A Elite do Atraso – da Escravidão à Lava Jato”, Jessé
Souza reserva a parte final para demonstrar a importância da pro-
dução intelectual e da informação como formadoras de uma domi-
nação simbólica por parte das elites, e a mídia tendo participação
fundamental nessa elaboração de uma interpretação tendenciosa
da vida social, de acordo com seus interesses de classe. Souza ex-
plicita em sua maneira contundente como se dá o processo,

A história da sociedade brasileira contemporânea não pode


ser compreendida sem que analisemos a função da mídia e da
imprensa conservadora. É a grande mídia que irá assumir a
função dos antigos exércitos de cangaceiros, que é assegurar
e aprofundar a dominação da elite dos proprietários sobre o
restante da população. (...) Substitui-se a violência física, como
elemento principal da dominação social, pela violência simbólica,
mais sutil, mas não menos cruel (SOUZA, 2017, p. 214).

Sem dúvida essa sutilidade passa pelo modelo de vida so-


cial que se impõe de modo voraz nos últimos anos, notadamente
na América Latina, subordinado aos ditames de um liberalismo
acerbado, que como vimos nos remete ao liberalismo evolucio-
nista de cem anos atrás, demonstrado nos recentes retrocessos
trabalhistas e previdenciários. A difusão pelos meios de comuni-
cação hegemônicos desse modelo político e econômico se conjuga 53
(RE)EXISTÊNCIAS JUVENIS NA ARTE DA VIDA

com o esforço de uma elite financeira em consolidar seu poder,


amparado no uso ideológico em detrimento do uso informativo,
com restrição do caráter prospectivo e opinativo e a ampliação de
uma espécie de censura, travestida no aprofundamento da mani-
pulação. Como relata o jornalista Pascual Serrano, “a mídia não
exerce o direito à liberdade de expressão, mas o direito à censura,
na medida em que decide o que nós, cidadãos, vamos conhecer e o
que não” (MORAES; RAMONET; SERRANO, 2013).

Notas finais

Não precisamos mais de quarenta ou cinquenta anos para


desvelar a ação irresponsável das classes hegemônicas em 1964,
quando elas intervieram de modo acintoso para tomar o poder a
contrapelo das normas institucionais. Passam-se poucos meses
para vir à tona a ruptura institucional de 2016, para a sociedade
civil tomar plena consciência dos desdobramentos políticos, cujo
processo tratou de subtrair os direitos trabalhistas e previdenciá-
rios sobretudo da população menos favorecida do país.
As vozes periféricas presentes neste texto mostram-se sin-
tonizadas com seu tempo, em sua maioria muito atuantes, ao cons-
tituírem inúmeros coletivos e movimentos digitais, estimulando
a identidade associativa nas comunidades. Porém, se constata de
maneira crescente o comportamento mais individualizado, resul-
tado da disseminação de uma ideia enviesada de empreendedoris-
mo, o que não significa adesão a uma ideologia liberal, como pode
sugerir a pesquisa da Fundação Perseu Abramo.
Neste cenário difuso, as mídias hegemônicas de nosso país
comandam o relato ideológico dos fatos, ao produzirem a infor-
mação pautada pelos interesses corporativos. O que se apresenta
como falta, na apreensão solidária da realidade cotidiana, é justa-
mente uma formação educacional pública que proporcione a base
para a compreensão da opressão social, o senso crítico que per-
mita ao cidadão despossuído se dar conta da contradição social e
cultural a que é submetido, e romper com o modo de dominação
alienante exercida ao longo dos últimos cinco séculos. 54
(RE)EXISTÊNCIAS JUVENIS NA ARTE DA VIDA

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55
(RE)EXISTÊNCIAS JUVENIS NA ARTE DA VIDA

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VILLAÇA, F. O espaço intra-urbano no Brasil. São Paulo:
Fapesp, 2001.

Conteúdo Extra: Moradores das periferias


entrevistados na região da Avenida Paulista.

Utilize o QR CODE ao lado para acessar.


56
Selfie/C`est La Vie

Onde Tem uma negra


Rindo
Onde viva um negro
Visto
Onde vive o índio
Convívio
Onde a palavra atinja
A poesia habite
Livre
(ali andou o início).

Onde o ar transgrida
O par do peito
A janela
E vire brisa

E os pássaros colidam
E com asas andem juntos.
Quando o conhecimento seja
O ambício
É lá que eu resido
É lá que eu vivo.

Machado Bantu 57
#LIBERTEMRAFAELBRAGA:
JUVENTUDE, ATIVISMO E MODOS DE
RESISTÊNCIA NA CULTURA DIGITAL

Liége Barbosa
Marcilene Forechi

Introdução

O caso Rafael Braga nos parece emblemático para pensar


em possíveis modos de resistência contemporâneos ligados à ju-
ventude e também nos modos como essas resistências se manifes-
tam e se articulam na cultura digital, ao alcançarem um número
incalculável de pessoas e abarcarem uma pluralidade de pautas e
reivindicações. Para os grupos e movimentos envolvidos, defen-
der a liberdade de Rafael Braga foi uma forma não apenas de de-
nunciar, mas de resistir à seletividade e ao preconceito arraigado
no Poder Judiciário, no sistema penal e na sociedade brasileira de
forma geral. Também foi uma maneira de incorporar, a partir de
um caso concreto, pautas relacionadas ao genocídio da juventude
negra, à violência e aos direitos humanos. Defender a liberdade
de Rafael Braga se constituiu, em última instância, em uma de-
fesa da própria democracia, uma vez que o jovem (negro, pobre
e à época em situação de rua) foi preso no contexto das manifes-
tações de Junho de 2013, acusado de portar material explosivo.
Rafael é conhecido como o primeiro e único condenado pelos pro-
testos de 2013 no Brasil.
Neste texto, buscamos refletir, a partir do caso Rafael Bra-
ga, como as manifestações de resistência se articulam à cultura
digital. Para isso, traçamos um breve panorama sobre tópicos
como juventude, ativismo digital e resistência, para, em seguida,
apresentarmos o caso e apontarmos as peculiaridades que nos
fazem pensar sobre esses novos jeitos de expressar e praticar re-
sistência na contemporaneidade. Nesse sentido, pensamos que as 58
(RE)EXISTÊNCIAS JUVENIS NA ARTE DA VIDA

resistências contemporâneas apresentam um caráter líquido, pois


acontecem no ambiente fluído da internet e das redes sociais digi-
tais. Ao mesmo tempo, no âmbito brasileiro e no que diz respeito
ao caso específico de Rafael Braga, tais resistências se mostram
em certa medida permanentes. Afinal, elas constituem um movi-
mento mais amplo de lutas articuladas que ganhou corpo a partir
das manifestações de Junho de 2013 e continuou reverberando
ao longo do tempo e a cada novo episódio da batalha judicial que
permeia a vida de Rafael e sua família. Por sua simbologia, este
caso permanece sendo acompanhado a cada desdobramento –
mesmo com a passagem de alguns anos e sem a intensidade das
primeiras mobilizações.

Juventude, mobilizações pós-modernas


e a potência dos coletivos

De tempos em tempos, no ciclo da história, os jovens emer-


gem ligados a movimentos de resistência e aparecem à frente de
manifestações contra certas verdades estabelecidas na e pela sua
era. Acontecimentos históricos construíram, ao longo do tempo,
a ideia de rebeldia associada à juventude1 que, em diferentes tem-
pos e contextos, ganhou destaque tanto pela sua forma de atuação
quanto pelo reconhecimento de seu papel de protagonista. Jovens
são retratados como personagens que marcaram e estimularam
transformações, além de inaugurarem novos espaços de contes-
tação da condição político-social então existente. Nesse sentido,
há uma relação entre a vitalidade dos jovens e a política, apontada
por Ribeiro (2007) quando enfatiza que os jovens fazem parte
da revolta, da indignação moral e ética. Eles seriam como uma

1 Entendemos que juventude diz respeito a uma suposta fase de transição entre
a infância e a vida adulta. Trata-se de um conceito elástico que ultrapassa marca-
ções etárias ou critérios biológicos – pois incorpora outras dimensões. Assumi-
mos a ideia de juventude como uma construção sociocultural, que tem a ver com
as experiências vivenciadas pelos sujeitos e como estas são significadas e narradas
em cada contexto histórico-social. Pesquisas e abordagens no campo teórico dos
Estudos Culturais têm mostrado os múltiplos modos de ser/estar/sentir-se jo- 59
vem na contemporaneidade.
(RE)EXISTÊNCIAS JUVENIS NA ARTE DA VIDA

fonte de energia que renova e dá “sangue novo” à política. Sob


ótica semelhante, Marques e Oliveira salientam o papel político
que a juventude realiza em todas as sociedades, independente de
contexto político e econômico. Para ele, “o desabrochar da con-
dição jovem, em uma sociedade em crise, potencializa os jovens
enquanto catalisadores da insatisfação social” (2013, p. 126).
Falar sobre juventude significa refletir sobre uma cate-
goria que tem sido representada de forma ambivalente na con-
temporaneidade, sendo apontada, ao mesmo tempo, como causa
e solução para os problemas do mundo em uma espécie de de-
monização e celebração. Como lembra Giroux, a juventude sig-
nifica tanto a salvação e a expectativa de dias melhores, quanto
a perdição e a desgraça: “louvados como símbolo de esperança
no futuro e, ao mesmo tempo, execrados como uma ameaça à
ordem social existente, os jovens têm se tornado objetos de am-
bivalência, presos entre discursos contraditórios e espaços de
transição” (1996, p. 124).
Sejam eles percebidos como a fonte de inúmeros problemas
sociais ou como sua solução, o fato é que os jovens assumiram
uma posição de destaque e vanguarda em diversos momentos
históricos – o que provavelmente contribuiu para a invenção do
espírito contestador e inovador atribuído à juventude. Em nível
mundial, tivemos, por exemplo, a Revolução Francesa (1789 –
1799), os Movimentos de 1968 (Maio francês e Primavera de
Praga), o Protesto na Praça da Paz Celestial na China (1989) e a
Primavera Árabe (2010). Já em relação ao Brasil é possível des-
tacar a Marcha dos Cem Mil (1968), o Movimento das Diretas Já
(1983 – 1984), o Movimento dos caras-pintadas (1992) e, recen-
temente, as Manifestações2 de Junho de 2013.
É relevante dar ênfase às Manifestações de Junho de 2013
porque, enquanto mobilizações da contemporaneidade, elas apre-
sentaram uma configuração específica que nos interessa com-
preender. Para Maffesoli (2014), as mobilizações de Junho de 2013
foram explosões momentâneas da pós-modernidade, intensas e
2 Sobre movimentos de juventude no Brasil e no mundo que tiveram jovens impli- 60
cados em posições de vanguarda e liderança, ver a dissertação de Barbosa (2015).
(RE)EXISTÊNCIAS JUVENIS NA ARTE DA VIDA

diferentes entre si, mas, ao mesmo tempo, muito efêmeras. Um


aspecto que merece destaque na configuração desses movimen-
tos tem a ver com o papel dos fóruns e redes sociais digitais que
alteram o conceito de opinião pública. Compartilhamos a visão de
Maffesoli de que não existe mais uma única opinião pública, mas
o que ele chama de “um mosaico de opiniões públicas”, ou seja,
uma variedade de opiniões que se mostram em toda a parte da
internet, nos blogs, nas redes. Haveria, portanto, uma diferença
entre a opinião publicada e a opinião pública: “Antes, as opiniões
publicadas eram apenas as opiniões das elites, e isso fazia delas ‘a
opinião pública’. Hoje, há uma fragmentação que é contemplada
pela internet” (MAFFESOLI, 2014).
O autor argumenta, ainda, que as novas tecnologias pro-
porcionaram mobilidade às tribos urbanas que, por sua vez, se
transformaram em comunidades interativas. As redes sociais
digitais propiciaram a realização de movimentações-relâmpago
que, mesmo não sendo programáticas, deixaram marcas (MA-
FFESOLI, 2014). Na onda dos protestos de Junho de 2013, ob-
servou-se o quanto a cultura digital e em rede esteve implicada
nas mobilizações, a partir do momento em que as redes sociais
digitais foram efetivamente utilizadas no trabalho de divulga-
ção dos acontecimentos e na articulação para a convocação dos
manifestantes às ruas.
Dessa forma, consideramos o Junho de 2013 um marca-
dor simbólico ou uma espécie de catalisador, à medida em que,
a partir das manifestações, parece ter havido uma explosão de
coletivos3 midiáticos, culturais e políticos no Brasil. Não só de
coletivos, como também uma proliferação de diferentes pautas
que passaram a ter espaço e repercussão nas mídias digitais pelo
engajamento efetivo desses grupos na internet, como por exem-
plo: as causas feministas, os movimentos de empoderamen-
to dos negros e em combate ao racismo, a luta do movimento
3 Essa explosão de coletivos não significa que eles tenham surgido com as mídias
digitais. No caso do Brasil, o trabalho dos coletivos que já existiam ganhou mais
visibilidade e adesão a partir de junho de 2013. Ao mesmo tempo, novos coletivos
também se formaram e passaram a divulgar vídeos, fotografias, textos e temas 61
relacionados às suas pautas de reivindicação.
(RE)EXISTÊNCIAS JUVENIS NA ARTE DA VIDA

LBGTQIA+4 pelo direito à diversidade e contra a homofobia,


os coletivos independentes de mídia que produzem narrativas
alternativas às mídias tradicionais, entre tantos outros. Nesse
contexto, pensamos que, no panorama atual da comunicação e
das novas mídias, o ambiente digital é produtivo, propício e po-
tente para que esses grupos se criem, se manifestem, se disse-
minem, ocupem espaços discursivos e produzam suas próprias
narrativas – que muitas vezes são narrativas de resistência pro-
duzidas por jovens que integram tais coletivos.

Sobre ativismo digital e a atuação dos coletivos:


o caso Rafael Braga

Ao longo das manifestações de Junho de 2013, ganhou re-


levo a atuação dos grupos de jornalismo alternativo5 que exibi-
ram pela internet o que se passava nas ruas durante os protestos,
principalmente os episódios de violência, de repressão policial e
os depoimentos dos jovens desmentindo versões publicadas por
grandes emissoras e jornais. Os coletivos midiativistas ou midia-
livristas se constituem na mídia independente e alternativa que,
de alguma forma, conseguiu balançar a primazia da mídia tradi-
cional sobre a opinião pública (BARBOSA, 2015).
Estamos aqui falando de uma mídia ativista que, a partir
das manifestações de junho de 2013, ganhou espaço e revelou
sua potência ao exibir pela internet o que se passava nas ruas du-
rante os protestos. De acordo com Bezerra e Grillo (2014), esses
coletivos são formados por pessoas que possuem interesses co-
4 Sigla de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis, Transexuais, Transgêneros,
Queers, Intersexuais, Assexuais e outros, que consistem em diferentes tipos de
orientações sexuais e identidades de gênero. A sigla LGBTQIA+ também é utili-
zada como nome do movimento que luta pelo direito à diversidade sexual, contra
a homofobia, pela promoção de ações afirmativas, pela educação das pessoas sobre
a diversidade de orientações sexuais e identidades de gênero.
5 Jornalismo alternativo são práticas jornalísticas baseadas em uma comunicação
livre, “que se pauta pela desvinculação de aparatos governamentais e empresa-
riais de interesse comercial e/ou político-conservador. Não se trata unicamente
de jornais, mas de outros meios de comunicação, como rádio, vídeo, panfleto etc.” 62
(PERUZZO, 2009, p. 133).
(RE)EXISTÊNCIAS JUVENIS NA ARTE DA VIDA

muns e produzem um jornalismo voltado para debater questões


sociais e denunciar excessos das autoridades de governo. Quem
atua nos coletivos, o midiativista ou midialivrista, é considerado
por alguns autores o “hacker das narrativas”, ou seja, é a pessoa
que “produz, continuamente, narrativas sobre acontecimentos
sociais que destoam das visões editadas pelos jornais, canais de
TV e emissoras de rádio de grandes conglomerados de comuni-
cação” (ANTOUN e MALINI apud BEZERRA e GRILLO, 2014
p. 196). Tais coletivos têm como característica serem autônomos,
independentes de financiamento empresarial, e valerem-se das
novas tecnologias de informação e comunicação.
Nesse cenário, o coletivo Mídia Ninja6 despontou e ganhou
reconhecimento no Brasil e no exterior por seu desempenho na
cobertura dos protestos. Os jornalistas do coletivo transmitiram
as manifestações ao vivo usando smartphones e redes 4G e 3G,
sendo que cada repórter registrou os eventos através de strea-
ming7 ao vivo, pelo aplicativo Twitcasting. Os vídeos eram acessí-
veis ao vivo na internet, com links divulgados na página do grupo
no Facebook e espalhados rapidamente pela rede, onde milhares
de espectadores acompanhavam as transmissões. De acordo com
Auton e Malini (2013), o Mídia Ninja atingiu picos de 25 mil pes-
soas online acompanhando os acontecimentos.
Quando o ex-catador de recicláveis Rafael Braga, hoje com
30 anos, foi preso no dia 20 de junho de 2013 após a dispersão de
manifestantes no centro do Rio de Janeiro, o caso foi noticiado
pela grande imprensa como mais uma ocorrência de vandalis-
mo em que um dos “criminosos” era contido pela polícia para
6 A Mídia Ninja (Narrativas Independentes, Jornalismo e Ação) se define como uma
rede descentralizada de mídia independente que produz conteúdos e pautas invisibili-
zadas pela grande mídia. Sua forma de atuação se dá a partir de uma lógica colaborativa
de produção envolvendo jornalistas, fotógrafos, videomakers e designers e se caracteri-
za pelo ativismo sócio-político. O coletivo foi lançado oficialmente em março de 2013,
na cobertura do Fórum Mundial de Mídia Livre na Tunísia mas ganhou visibilidade
durante as manifestações de junho no Brasil. Atualmente, além da cobertura em tempo
real, pela Internet, a rede possui um portal de notícias e artigos de opinião feitos por
colunistas renomados da América Latina. Disponível em: http://midianinja.org.
7 Streaming ao vivo (Live streaming) é uma transmissão de dados ao vivo via in- 63
ternet ou rede de computadores.
(RE)EXISTÊNCIAS JUVENIS NA ARTE DA VIDA

a segurança dos demais e do patrimônio público e privado. Ele,


que improvisava lugares para dormir pelo centro da cidade – pois
muitas vezes não tinha como pagar a passagem de ônibus para
voltar para casa – foi preso durante um ato do qual não participa-
va (BRASIL DE FATO, 2018). Rafael foi condenado a cinco anos
de prisão por portar duas garrafas de desinfetante, consideradas,
pela polícia, artefatos potencialmente perigosos com os quais po-
deria produzir explosivos. Sua condenação foi mantida mesmo
depois de emitido um laudo do Esquadrão Antibomba da Polícia
Civil atestando que o produto encontrado com ele tinha possibi-
lidade ínfima de ser transformado em um coquetel molotov.
A defesa de Rafael conseguiu, em 2014, que a pena fosse
cumprida em regime semiaberto com uso de tornozeleira eletrô-
nica, mas, em janeiro de 2016, ele voltou a ser detido, acusado de
tráfico e associação para o tráfico (em uma abordagem policial
sem testemunhas). Segundo relato de Rafael, ele havia saído para
ir à padaria a pedido de sua mãe quando foi abordado por poli-
ciais da UPP8. Os militares teriam afirmado que ele era suspeito
de envolvimento com o tráfico daquela região e deveria, assim,
assumir as alegações. Ele teria sido espancado no caminho até a
delegacia e, chegando lá, imputaram a ele um “kit flagrante”, com
0,6g de maconha, 9,3g de cocaína e um rojão.
Surpreendentemente, a Justiça agiu rápido e Rafael foi sen-
tenciado, naquele mesmo mês, a 11 anos e três meses de prisão
por tráfico de drogas e associação ao tráfico. Foi após a primeira
condenação de Rafael Braga, que teve alguma repercussão em
matérias de jornais ativistas, que militantes de movimentos so-
ciais e coletivos ficaram cientes de que ele ainda estava preso e
começaram a se articular para ajudá-lo e divulgar o caso. Na mes-
ma época, a defesa de Rafael foi assumida pelo Instituto dos De-
fensores de Direitos Humanos (DDH).
Em setembro de 2017, o Superior Tribunal de Justiça (STF)
concedeu prisão domiciliar pelo período de seis meses para que

8 Sigla para Unidade de Polícia Pacificadora, política e estratégia implementada pelo


Governo do Rio de Janeiro, a partir do ano de 2008, com o objetivo de combater e 64
desarticular o crime organizado do tráfico de drogas nas comunidades e favelas.
(RE)EXISTÊNCIAS JUVENIS NA ARTE DA VIDA

Rafael pudesse tratar da tuberculose contraída na penitenciária


e, em dezembro do mesmo ano, o Superior Tribunal de Justiça
(STJ) concedeu habeas corpus para que ele cumprisse a pena em
regime domiciliar, por razões de saúde, até que estivesse curado
da doença. Em novembro de 2018, a 1ª Câmara Criminal do Tri-
bunal de Justiça do Rio de Janeiro absolveu parcialmente Rafael,
afastando a condenação ao crime de associação ao tráfico, porém
manteve a pena relativa ao crime de tráfico de drogas. Até maio
de 2020 Rafael permanecia em prisão domiciliar.

A expressão e produção da resistência:


algumas materialidades

A chamada grande mídia ou imprensa tradicional9 não con-


tava que o caso Rafael Braga iria repercutir tão amplamente nas
redes sociais digitais e que, passados alguns anos de sua prisão,
ainda reverberasse tanto e se articulasse à crise política e institu-
cional vivida atualmente pelo país. Inegável o protagonismo da mí-
dia alternativa, com destaque para o Mídia Ninja, na divulgação do
caso e na insistência em torná-lo visível nas redes sociais digitais e
em veículos alternativos. Várias mobilizações foram realizadas, em
diferentes direções, pedindo a liberdade do rapaz. A fim de tornar
visíveis algumas das materialidades da resistência empreendida
pelos coletivos na internet, selecionamos dois movimentos rela-
tivos ao Caso Rafael Braga por considerá-los significativos para
a abordagem dos novos modos de resistência. Além desses, tam-
bém destacamos a atuação do Mídia Ninja como coletivo atuante
na mobilização e potencialização das pautas relacionadas ao caso.

Campanha “Libertem Rafael Braga”

A mobilização de ativistas, militantes, coletivos e movimen-


tos sociais em torno da defesa da liberdade de Rafael Braga co-

9 Chamamos de imprensa tradicional os veículos de comunicação de massa, tele-


visão, jornais, rádio e revistas como modo de diferenciar sua atuação dos novos 65
veículos surgidos e popularizados na internet.
(RE)EXISTÊNCIAS JUVENIS NA ARTE DA VIDA

meçou logo após a notícia de sua condenação. Em 2014, houve


reuniões que buscaram concentrar ativistas do Rio de Janeiro e
algumas ações iniciais, tais como panfletagem e culto ecumênico,
em frente ao presídio Bangu, além de um Ato-Vigília, nos dias 25
e 26 de agosto, dia da decisão sobre a Apelação contra a prisão
dele. A partir daquele momento, se estabeleceu um movimento de
luta e resistência com um caráter fixo, horizontal e aberto através
da organização da Campanha Nacional pela Liberdade de Rafael
Braga, fruto de uma articulação entre a campanha local junto ao
Instituto dos Defensores dos Direitos Humanos (DDH) e o ex-
tinto Fórum de Enfrentamento ao Genocídio do Povo Negro.
A Campanha “Libertem Rafael Braga” pode ser considera-
da uma das ações de resistência mais efetivas e que apresentou
permanência considerável em relação a esse caso. No ambiente
digital, o ativismo da campanha foi exercido através de um site10
e uma página11 no Facebook, com conteúdo diversificado e que
produziu informações em torno de Rafael desde 2013 até os epi-
sódios mais recentes de sua trajetória com a Justiça. O site fun-
cionou como uma espécie de portal que disponibiliza todos os
textos publicados pela campanha, os panfletos distribuídos e os
vídeos produzidos (por diversos coletivos) sobre o caso até no-
vembro de 2017, além de adesivos, bottons, charges e cartazes.
O site também apresentava um calendário de eventos em prol
da causa com saraus, rodas de conversa, sessões de filmes, bata-
lhas de MC’s, mesas-debate e vigílias. Já no link “Como apoiar”,
era possível adquirir camisetas, bottons e imãs com o rosto de
Rafael estampado. Outra forma de as pessoas contribuírem em-
preendida pela campanha foi por meio do financiamento coleti-
vo “Uma casa para Rafael Braga”. O objetivo, conforme o texto12
informativo, era “deixar um legado para esta causa e para esta
família, que já está cansada de sofrer com as inúmeras injustiças
10 Página da Campanha “Libertem Rafael Braga”: https://libertemrafaelbraga.
wordpress.com/
11 Página da Campanha no Facebook: https://pt-br.facebook.com/liberdadera-
faelbragavieira/
12 Disponível em: https://libertemrafaelbraga.wordpress.com/2017/09/27/uma- 66
-casa-para-rafael-braga-financiamento-coletivo/
(RE)EXISTÊNCIAS JUVENIS NA ARTE DA VIDA

que recaem sobre Rafael”. As doações variavam de R$15 a R$3


mil e o objetivo era comprar uma casa no valor de R$ 60 mil. Ao
total, a campanha arrecadou R$ 101 mil.
A Campanha também promoveu reuniões semanais na Ci-
nelândia, no Centro da cidade do Rio de Janeiro. Também havia
a existência de núcleos de mobilização articulados por diferentes
lugares do país. No link “Campanha por Estado” é possível en-
contrar uma relação de campanhas locais que se espalharam pelo
Brasil e pelo exterior com mobilizações no Rio Grande do Sul,
Goiás, Espírito Santo, Ceará, Brasília e Alemanha, com páginas
no Facebook em inglês e japonês.
É importante destacar que, desde o início, a Campanha pela
Liberdade de Rafael Braga foi além da luta pela sua liberdade,
pois incorporou outras pautas ao longo da mobilização como, por
exemplo, a seletividade penal do Sistema Judiciário brasileiro, o
racismo e o genocídio do povo negro. A Campanha também criou
laços com a família de Rafael. Segundo o site13, “Dona Adriana,
mãe do rapaz, sempre esteve junto à Campanha. Além dos atos e
marchas pela liberdade, foram feitas mobilizações no sentido de
conseguir ajuda financeira para a família e para Rafael”. Pessoas
de todo o Brasil puderam contribuir através de uma conta pou-
pança criada pela Campanha no nome da mãe de Rafael. A página
no Facebook, que ainda possui mais de 50 mil seguidores, divul-
gava todas as informações sobre o andamento do caso, chamadas
para vigílias, atos e lançamento de novas etapas da campanha –
repercutindo também o conteúdo do site. Vale à pena destacar
que a figura de Rafael é bastante utilizada no site da Campanha.
Logo quando se acessa a página inicial, lá está Rafael a nos enca-
rar de frente e com um olhar franco. A mesma fotografia é utili-
zada para ilustrar bottons, cartazes e camisetas.

67
13 Disponível em: https://libertemrafaelbraga.wordpress.com/como-apoiar/
(RE)EXISTÊNCIAS JUVENIS NA ARTE DA VIDA

Fig. 1 – Imagem de Rafael Braga que estampou a campanha


pela sua liberdade.

Fonte: https://www.facebook.com/liberdaderafaelbragavieira/

30 dias por Rafael Braga

A Campanha “30 dias por Rafael Braga” foi lançada em 1º


de junho de 2017, quatro anos após sua prisão. A iniciativa reuniu
organizações e voluntários na Ação Educativa, próximo ao metrô
Santa Cecília, na cidade de São Paulo. As atividades se estende-
ram por todo o mês de junho e reuniram psicólogos, criminalistas
e jornalistas organizados em debates e exibição de filmes com
foco na seletividade carcerária, no racismo estrutural e no modo
como essas questões dizem respeito a toda a sociedade. A pági-
68
(RE)EXISTÊNCIAS JUVENIS NA ARTE DA VIDA

na14 no Facebook, conta, ainda com 12,6 mil seguidores. Uma das
organizadoras da ação, a historiadora Suzane Jardim, classificou
o caso Rafael Braga como urgente e simbólico. O caso foi con-
siderado político pelo DDH, uma vez que a história de Rafael é
a história de milhares de jovens negros e pobres moradores de
periferias das grandes cidades brasileiras.
No dia 31 de julho de 2017, a campanha 30 dias por Rafael
Braga junto com o Movimento Frente Alternativa Preta organi-
zou atos-vigílias para o dia 1º de agosto, quando 1ª Câmara do
Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro iria analisar um pedido de
habeas corpus para que Rafael Braga pudesse responder ao processo
em liberdade. Foram convocados atos nas cidades do Rio de Janeiro
e em Brasília. Também nesses episódios ficou evidente a dinâmica
das mobilizações na articulação redes-ruas, já apontada por Bar-
bosa (2015) nas manifestações de Junho de 2013. As convocações
para os atos-vigília pediam que as pessoas fizessem “barulho” nas
redes sociais digitais usando a hashtag15 #LibertemRafaelBraga.

Mídia Ninja

Ao pesquisarmos no Google pelos termos “Mídia Ninja” e


“Rafael Braga”, escritos juntos, surgem na tela mais de 60 mil
registros. As menções se referem tanto ao material postado na
página do coletivo no Facebook, que tem mais de dois milhões
de seguidores, e no site, com textos dos articulistas do coletivo,
quanto em outras publicações que têm como material jornalísti-
co fotos, audiovisuais e textos produzidos pelo Mídia Ninja. Isso
nos aponta o quanto o coletivo de mídia abraçou a causa de Ra-
fael Braga. Mais do que isso, percebemos que o Mídia Ninja tem
atuado como uma espécie de agência de notícias e imagens sobre
o tema, produzindo matérias para outros coletivos e repercutindo
a atuação desses coletivos também.
14 Disponível em: https://www.facebook.com/30DiasPorRafaelBraga/
15 Hashtag é um termo associado a assuntos que se deseja indexar em redes sociais
ao inserir o símbolo da cerquilha (#) antes da palavra, frase ou expressão. Quando a
combinação é publicada, transforma-se em um hiperlink que leva para uma página 69
com outras publicações relacionadas ao mesmo tema.
(RE)EXISTÊNCIAS JUVENIS NA ARTE DA VIDA

Em seu site16 oficial o Mídia Ninja se declara uma rede de


comunicação livre com uma linha editorial independente “(...)
que busca novas formas de produção e distribuição de informação
a partir das novas tecnologias e de uma lógica colaborativa de
trabalho”. O coletivo informa, ainda, que sua editoria defende “o
interesse público, a diversidade cultural e o direito à informação,
visibilizando pautas de comunicação, causas identitárias, cultura,
meio ambiente, juventude e outras que dialogam com os desafios
do século XXI”. Ao construir e propagar um tipo de jornalismo
alternativo a partir de uma editoria que se diz coletiva e autôno-
ma, o Mídia Ninja ganhou dimensão e reconhecimento.
Chama a atenção a quantidade de imagens produzidas pelo
Mídia Ninja que foram compartilhadas e publicadas por outros si-
tes de notícias e coletivos. Nesse caso, o Mídia Ninja tornou-se
referência na produção e distribuição de imagens. Sites como Carta
Capital, Sul 21, Brasil de Fato, Blog da Boitempo, Yahoo Notícias, Ge-
ledes e Jornalistas Livres, entre outros, foram alguns dos que ilustra-
ram seus textos com imagens produzidas pelo Mídia Ninja.
Além da representatividade e alcance por meio de suas
imagens, o Mídia Ninja possui uma rede de colunistas influen-
tes no país, que escrevem e gravam vídeos sobre seus temas de
interesse e atuação. Fazem parte do time de colunistas: políticos
(vereadores, deputados, senadores), jornalistas, rappers, you-
tubers, especialistas em Direito, vocalistas de bandas de rock,
ativistas trans, escritores, filósofos, produtores culturais, desig-
ners, curadores, professores universitários, líderes indígenas,
feministas, cineastas, estudantes secundaristas, líderes de reli-
gião de matriz africana e trabalhadoras sexuais, entre outros.
Essa ampla rede de articulistas pode ser comparada à criação
de uma Rede Ninja de Opinião17, responsável por articular suas
produções à de outros veículos de mídia independente e por ou-
tros atores e mídias sociais.
16 http://midianinja.org/
17 BITTENCOURT, M. C. A; GONZATTI, C. et al. Análise de Construção de
Sentido em Redes Digitais: a política das diferenças no caso da Rede Ninja de
Opinião. Intercom. Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comuni- 70
cação. 40º Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação, Curitiba (PR): 2017.
(RE)EXISTÊNCIAS JUVENIS NA ARTE DA VIDA

Resistências juvenis são (também) resistências midiatizadas

A expressão “resistência juvenil” ou “resistência jovem”,


talvez, não sobreviva a um escrutínio mais profundo, dadas as
múltiplas possibilidades de abordagem e de entrelaçamentos. Em
tempos de cultura digital, podemos pensar em ativismos como
produtos de resistência ou como movimentos de resistência. João
Freire Filho (2007) chama a atenção para um alargamento de
sentidos atribuídos ao termo “resistência” de modo que ele possa
ser usado para definir uma gama muito variada de movimentos e
manifestações. Isso se deve à pluralidade de pautas reivindicató-
rias que circulam no espaço público e que encontram no ambiente
digital terreno fértil para se propagarem.
Há resistências no plano pessoal, coletivo e institucional e em
diferentes cenários, do corte de cabelo às roupas, passando pelos
modos de consumir e de se manifestar politicamente, quase tudo
pode ser abraçado pelo termo resistência em suas articulações com
as relações de poder e os processos de subjetividade. Diante de
tantas possibilidades, João Freire Filho (2007) aponta para o que
pode ser uma das principais controvérsias sobre a conveniência do
uso do termo, pois para alguns autores a resistência supõe que haja
intencionalidade por parte de quem resiste e do reconhecimento
por parte dos alvos da resistência e de demais atores da socieda-
de. A dificuldade estaria em estabelecer esse nível de resistência e
as possibilidades de reconhecimento. Afinal, as resistências e seus
modos estão atrelados a questões culturais e a contextos específi-
cos. Uma mesma ação pode não ser considerada resistência para
determinados grupos e não ser reconhecida como tal.
As manifestações em torno do caso Rafael Braga são con-
sideradas por nós bastante significativas desses modos de resis-
tência que se utilizam das redes sociais digitais para se mate-
rializarem. Os diversos grupos – denominados coletivos ou não
– se mobilizaram para protestar pela liberdade e garantir que o
caso não caísse no esquecimento. Percebemos, nesse movimento,
uma dinâmica que envolve uma dimensão das ruas (na série de
eventos, passeatas, saraus, protestos) e que, ao mesmo tempo, é 71
(RE)EXISTÊNCIAS JUVENIS NA ARTE DA VIDA

também produzida nas redes (seja na convocação, na divulgação,


na produção, circulação e propagação de materiais audiovisuais).
Assim, levando em consideração que há uma participação expres-
siva de jovens nesses coletivos, acreditamos que essa juventude
está, de certo modo, criando e reinventando formas de resistência
que, nesse caso, acontecem no mundo digital.
Há um investimento político, cultural e midiático nesse jei-
to de fazer resistência – uma resistência que não acontece fora
da condição digital porque já é pensada com e através das mídias
sociais. Poderíamos, portanto, pensar na ideia de uma resistên-
cia midiatizada na qual as mídias não funcionam apenas como
instrumentos utilitários de divulgação e luta por determinados
causas, mas sim são experienciadas como parte do próprio pro-
cesso de resistir. Nessa direção, entendemos que as resistências
juvenis que se manifestam por meio dos coletivos são também
resistências midiatizadas, pois esses novos jeitos de resistir são
inventados, operam e se constituem já naturalizados nesse com-
plexo ambiente comunicacional que vivemos.
A criação de uma página pela liberdade de Rafael Braga, por
exemplo, pode ser considerada um ato de resistência que não se
limita a resistir a uma prisão considerada injusta. Trata-se de um
protesto contra todo um sistema excludente, que inclui a indústria
midiática, o sistema judiciário, o sistema educacional, o acesso ao
mercado de trabalho e a falta de eficácia do poder público em gerir a
vida das pessoas com menos recursos e, portanto, socialmente mais
vulneráveis. Como resistência, o movimento pela liberdade de Rafael
Braga ganhou contornos de ativismo digital, ao lançar mão das re-
des sociais digitais para provocar, engajar, fomentar e manter vivo o
debate. Nesse caso, se voltarmos à indagação de Freire Filho sobre a
intencionalidade, encontraremos a questão do reconhecimento.
João Freire Filho destaca que as resistências podem se ali-
nhar às perspectivas modernas ou pós-modernas. No primeiro
caso, o poder é algo que precisa ser combatido e as resistências
voltam-se para ele, numa relação binária entre os que têm o po-
der e os subalternos que resistem a ele e almejam conquistá-lo. O
poder, nesse caso, é fixo e institucionalizado. Numa perspectiva 72
(RE)EXISTÊNCIAS JUVENIS NA ARTE DA VIDA

pós-moderna, aponta o autor, enfatizam-se os “fluxos complexos


de relações de poder, subjetividades construídas, fragmentárias e
atividades locais e individualizadas” (2007, p. 16).
Como resistência o Caso Rafael Braga nos aponta para com-
plexidade das relações tecidas em meio a práticas culturais que se
dão mediadas pela tecnologia e pela internet. Práticas essas que se
valem de modos de agir e interagir próprio das redes sociais digi-
tais, e especialmente do Facebook e Instagram, e que se constituem
em modos de participação. Curtir, compartilhar, postar, marcar e
comentar são, nesse sentido, práticas culturais e não apenas usos
que se faz da tecnologia, transformando a participação nos movi-
mentos de resistência em um movimento híbrido que compreen-
de tanto as ações materializadas quanto a simples visualização de
conteúdo compartilhado. Como práticas culturais, as resistências
contemporâneas envolvem novos modos de ser e estar no mundo.
Ousamos pensar nas práticas de resistência como “resistências
líquidas”18, pelo modo como materializam suas ações, e, ao mesmo
tempo, como “resistências permanentes”, ao apontarem para o cená-
rio de profunda exclusão e desigualdade no Brasil. As práticas de re-
sistência encontram nas redes sociais digitais, consideradas espaços
de autonomia e participação, possibilidades de liberação da palavra,
num movimento permanente de substituições, rapidez e fluidez. Ao
mesmo tempo em que as pautas se modificam, se transformam e são
substituídas por outras rapidamente, o caráter permanente se mos-
tra ao constatarmos que a história de Rafael Braga permanece viva
na pauta desses coletivos – passados anos dos primeiros aconteci-
mentos. Os coletivos abraçaram o caso e o fizeram não ser esqueci-
do, investindo na estratégia da propagabilidade da pauta.
Uma das frases utilizadas amplamente como slogan da cam-
panha pela liberdade de Rafael é enfática ao dizer: “solidariedade
18 Usamos essa expressão tendo como inspiração o termo “Modernidade lí-
quida”, usado por Bauman (2001) para tratar da fluidez das relações em nosso
mundo contemporâneo. Modernidade Líquida se refere ao conjunt ao de rela-
ções e dinâmicas que se apresentam em nosso meio contemporâneo e que se
diferenciam das que se estabeleceram na modernidade, como construção que
atravessa um longo período da história. Pensar em liquidez, portanto, sugere 73
pensar em fluidez e volatibilidade.
(RE)EXISTÊNCIAS JUVENIS NA ARTE DA VIDA

é mais do que palavra escrita”. A mensagem deixa claro que para


ser solidário à causa ou envolvido na luta por ela é necessário ir
adiante – apenas comentários de apoio na rede social digital não
poderiam mudar a situação de Rafael. Há, portanto, uma dinâ-
mica entre as ruas e as redes que vai além da palavra escrita que
articula as campanhas, disseminando as informações no ambien-
te digital. O movimento de resistência nas redes sociais digitais
opera por uma dinâmica própria e se reinventa porque vai além
da liquidez, atravessa a questão do digital e ocorre na dimensão
concreta dos espaços públicos de forma permanente e engajada.
Por não ser uma situação isolada, mas efeito de um modo
de se fazer política no Brasil, e por explicitar o funcionamento da
seletividade penal e o racismo institucional no país (em especial
no que tange à juventude negra que vive nas periferias), reme-
morar o caso Rafael Braga, neste momento, também significa pôr
em evidência outros casos de ativismo digital e manifestação de
resistência que emergiram a partir deste. Como breves exemplos,
citamos mobilizações mais recentes a partir das hashtags #Ága-
thapresente19 e #JoãoPedropresente20 suscitadas pelas mortes de
19 Em 20 de setembro de 2019 a menina Ágatha Félix, de apenas 8 anos, foi atin-
gida pelas costas dentro de uma kombi quando voltava de um passeio com a mãe,
no Complexo do Alemão. Segundo reportagem, o laudo da Polícia Militar do RJ
afirma que um policial errou ao disparar contra motociclistas que não estavam
armados. Fonte: https://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2019/11/investiga-
cao-conclui-que-pm-atirou-na-menina-agatha-no-rio.shtml?origin=folha.
20 Em 20 de maio de 2020, o garoto João Pedro Pinto, 14 anos, foi baleado dentro
de casa em São Gonçalo, na região metropolitana do Rio de Janeiro, durante uma
operação da Polícia Federal com apoio da Polícia Civil e Militar. João Pedro brinca-
va com os primos quando agentes invadiram a casa e dispararam cerca de 70 tiros.
Um tiro de fuzil atingiu a barriga do menino, que foi levado de helicóptero para uma
base do Grupamento de Operações Aéreas do Corpo de Bombeiros, mas já chegou
morto, segundo os mesmos. De acordo com reportagem da Folha de São Paulo,
a família foi impedida de entrar no helicóptero e não recebeu informação alguma
sobre o menino, que ficou desaparecido por 17 horas até seu corpo ser localizado
por familiares no IML. Um primo de João Pedro iniciou uma mobilização pela in-
ternet para tentar localizar o garoto através da hashtag #procurasejoaopedro, que
rapidamente ficou entre os assuntos mais comentados no Twitter. A confirmação
da morte do menino causou grande comoção nas redes sociais, e entre autoridades
e artistas. Fonte: https://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2020/05/casa-onde- 74
-menino-de-14-anos-foi-morto-tem-cerca-de-70-marcas-de-tiro.shtml
(RE)EXISTÊNCIAS JUVENIS NA ARTE DA VIDA

uma criança e um adolescente negros, em suas comunidades, no


Rio de Janeiro, por circunstância de operações policiais violentas.
As condições político-sociais brasileiras, na atualidade, parecem
favorecer a continuidade de um sistema judicial falho em uma
sociedade profundamente desigual. Não à toa o termo “necropo-
lítica”21 passou a ser utilizado com cada vez mais frequência nas
narrativas midiáticas e pelos ativistas nas redes sociais digitais,
para problematizar as políticas de segurança pública em curso no
Brasil. Para Mbembe (2016), qualquer ato de violência é possível,
de agressões até a morte, quando se nega a humanidade ao ou-
tro. Talvez um dos maiores desafios, no contexto brasileiro, seja
como enfrentar um Estado que demonstra adotar uma política
de extermínio com sujeitos específicos e em ambientes bem de-
finidos: “Os lugares subalternizados com licença para matar tem
endereço e densidade negra”, analisa Borges (2019). Desse modo,
acreditamos na urgência de refletir sobre as potencialidades das
ferramentas da cultura digital como forma de amplificar vozes
até então silenciadas. As redes sociais digitais se tornam, assim,
instrumentos de ativismo e espaços de manifestações de resistên-
cia na contemporaneidade. Por fim, sem pretensão de encerrar
qualquer tema – mas na perspectiva de contribuir para a refle-
xão aqui proposta, acreditamos na existência de muitos outros
“Rafaeis” pelo Brasil afora. “Rafaeis” cujas histórias (com enredos
que se desenvolvem de maneira mais ou menos trágica) ganham
repercussão, provocam o debate, mobilizam para a prática e pres-
sionam o poder público por meio desses novos modos de resistên-
cia que emergem no bojo das mobilizações pós-modernas.

21 Necropolítica é um conceito desenvolvido pelo filósofo negro, historiador,


teórico político e professor universitário camaronense Achille Mbembe que, em
2003, escreveu um ensaio questionando os limites da soberania quando o Estado
escolhe quem deve viver e quem deve morrer. Disponível em: https://revistas. 75
ufrj.br/index.php/ae/article/view/8993
(RE)EXISTÊNCIAS JUVENIS NA ARTE DA VIDA

Referências
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nizadores do Caos”: a reinvenção da juventude nas narrativas
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VANNUCHI, P. (Orgs.). Juventude e Sociedade. Trabalho, Educação,
Cultura e Participação. São Paulo: Perseu Abramo, 2007. Pp. 19 – 33. 76
SER UMA NERD/GEEK, VESTIR-SE
COMO UMA NERD/GEEK: UM ESTUDO SOBRE
A PEDAGOGIA CULTURAL DA INTERNET

Angela Dillmann Nunes Bicca


Ana Paula de Araújo Cunha
Andreza da Rosa Borchardt

Para começar, alguns pontos

Ao circularmos por diferentes artefatos culturais podemos


ver a proliferação de grupos juvenis tais como os nomeados pelos
termos emo, punk, dark, gótico, nerd e geek. Esses grupos consti-
tuem comunidades juvenis que se assemelham a tribos urbanas
(MAFFESOLI, 2010), em razão de serem agrupamentos pre-
ponderantemente espontâneos, efêmeros e sazonais. São grupos
que organizam seus estilos de vida em função do lazer, do ócio,
do consumo e dos modos de vivenciar o tempo livre (LACOM-
BE, 2012; MATOS, 2011; CHAGAS, 2011; SALES e PARAÍSO,
2010; SCHMIDT, 2006; VELHO, 2006) e que não correspondem
a pessoas pertencentes a uma determinada faixa etária.
Os/as jovens nerd/geek, grupo que focalizamos neste texto,
têm elaborado uma quantidade significativa de sites para Internet
que se avolumam, particularmente desde os anos 2000. Esses sites
têm se constituído em espaços nos quais as pessoas aprendem/
ensinam sobre os mais diversos tópicos (PROVIN e FABRIS,
2011). Entre esses tópicos podemos citar as compreensões sobre
o que aceitar e gostar ou o que recusar, a que grupo pertencer,
como se comportar nas mais diversas situações e, em especial,
sobre os modos como se produzem feminilidades de jovens nerd/
geek relacionadas a certos modos de produzir um visual.
Essa compreensão de aprendizagem/ensinamentos advém de
uma importante ampliação do campo da Educação que tem assumi-
do como educativas (COSTA e WORTMANN, 2016; ANDRADE, 78
(RE)EXISTÊNCIAS JUVENIS NA ARTE DA VIDA

2013; CAMOZZATO, 2012; KELLNER, 2001) diferentes instân-


cias culturais, tais como filmes, textos publicitários, reportagens de
jornais e revistas, desenhos animados, programas de TV e de rádio,
charges, músicas, brinquedos, sites da Internet, entre muitos outros.
Estudos com tal caráter, inseridos no campo dos Estudos Culturais
de vertente pós-estruturalista, têm usado a expressão Pedagogias
Culturais para focalizar as aprendizagens e ensinamentos que não
estão restritos aos locais tradicionalmente associados à Educação e
examinar os modos como diferentes artefatos culturais estão impli-
cados na produção dos sujeitos contemporâneos.
Em trabalhos de pesquisa já realizados (BICCA, CUNHA
e ESTEVES, 2017; BICCA, CUNHA, JAHNKE e ESTEVES,
2014; BICCA, CUNHA, ROSTAS e JAHNKE, 2013; BICCA,
CUNHA, ROSTAS e ESTEVES, 2013; BICCA e ESTEVES,
2013), foram examinados sites em que jovens nerd/geek apontam
elementos sobre a produção de suas identidades culturais foca-
lizando o consumo de roupas, objetos de decoração, acessórios,
artefatos tecnológicos, bem como os textos midiáticos com os
quais interagem e o uso de expressões linguísticas particulares.
Examinando os sites produzidos por jovens nerd/geek, foi possí-
vel compreender que a produção de identidades culturais abarca,
além dos elementos apontados, questões relativas a gênero.
Para conduzir essa discussão é importante apontar que o
conceito de gênero surgiu para problematizar os efeitos produzi-
dos pelo binarismo homem/mulher, um binarismo que pressupõe
a existência de diferenças sexuais decorrentes da anatomia e da
fisiologia dos corpos. Com esse esforço pretendia-se, portanto,

[...] romper com a equação na qual a colagem de um determinado


gênero a um sexo anatômico que lhe seria “naturalmente”
correspondente resultava em diferenças inatas e essenciais, para
argumentar que diferenças e desigualdades entre mulheres
e homens eram social e culturalmente construídas e não
biologicamente determinadas (MEYER, 2010, p. 15).

Porém, essa discussão não foi suficiente para problematizar


o pressuposto de que a sociedade e a cultura agem sobre uma base 79
(RE)EXISTÊNCIAS JUVENIS NA ARTE DA VIDA

material que lhe seria anterior. Buscando deslocar-se de tal pres-


suposto, as discussões pós-estruturalistas recusam tratar o corpo
como uma entidade universal para enfatizar que ele é produto e
efeito dos modos como a linguagem funciona, sempre implicada
em relações de poder. Por esse motivo as discussões pós-estrutu-
ralistas consideram que o conceito de gênero passou

[...] a englobar todas as formas de construção social, cultural


e linguística implicadas com os processos que diferenciam
mulheres e homens, incluindo aqueles processos que produzem
seus corpos, distinguindo-os e separando-os como corpos
dotados de sexo, gênero e sexualidade (MEYER, 2010, p. 16).

Para essas discussões a linguagem não se limita a descrever


ações, situações e estados de coisas. A linguagem pode fazer com
que alguma coisa aconteça, em virtude de seu caráter performa-
tivo. Algumas afirmações podem ser usadas como exemplos de
sentenças que são necessárias para que algo aconteça: “Eu vos
declaro marido e mulher, prometo que te pagarei no fim do mês,
declaro inaugurado este monumento” (SILVA, 2000, p. 83).
No entanto, outras sentenças, mesmo que não realizem di-
retamente um ato como as exemplificadas acima, podem ser per-
formativas de algum modo. A repetição de sentenças que pare-
cem apenas descritivas pode acabar produzindo aquilo que essa
estaria apenas descrevendo. Por esse motivo,

[...] a linguagem que se refere aos corpos ou ao sexo não


apenas faz uma constatação ou uma descrição desses corpos,
mas, no instante mesmo da nomeação, constrói, “faz” aquilo
que nomeia, isto é, produz os corpos e os sujeitos (LOURO,
2004, p. 44).

Para Butler (2010, p. 154), a performatividade diz respeito


à “[...] prática reiterativa e citacional pela qual o discurso produz
os efeitos que ele nomeia”. Isso aponta para a dependência que os
enunciados performativos têm da sua repetição em uma variada
gama de circunstâncias em que produz o que, supostamente, es-
taria apenas nomeando e/ou descrevendo. 80
(RE)EXISTÊNCIAS JUVENIS NA ARTE DA VIDA

As sociedades, como esclareceram Butler (2010) e Prins e


Meijer (2002), nas suas práticas reiterativas e citacionais de enun-
ciados, produzem normas regulatórias que materializam o sexo
dos sujeitos a partir de uma ótica heterossexual. Essas normas
produzem possibilidades que são apropriadas pelos indivíduos, que
não são nunca exteriores ou anteriores a essas mesmas normas. Os
corpos, portanto, “importam” as normas e as materializam, tor-
nando os corpos inteligíveis culturalmente. O sexo, dessa forma, é
também um construto que resulta de normas que operam segundo
uma matriz heterossexual binária e hierárquica. Porém, é impor-
tante deixar claro que a repetição de que estamos falando

[...] é um processo constrangido e limitado desde seu início,


uma vez que o sujeito não decide sobre o sexo que irá assumir;
na verdade, as normas regulatórias de uma sociedade abrem
possibilidade que ele assume, apropria e materializa (LOURO,
2004, p. 44).

É, também, um processo que não apresenta finalização, mas,


isto sim, necessita de uma reiteração permanente podendo, em al-
gum momento, sofrer revisão e renovação. Ao considerar a ação da
linguagem, as abordagens pós-estruturalistas possibilitam refletir
sobre os modos como as sociedades produzem e/ou ressignificam,
como explicou Meyer (2010), as representações de feminino e de
masculino. Força, delicadeza, coragem ou gosto pelo embeleza-
mento, por exemplo, não estão inscritos sobre os corpos dos indi-
víduos, mas decorrem de jogos de poder que os constituem.
Dessa forma buscamos, neste texto, compreender como si-
tes escritos em língua portuguesa funcionam como uma forma
de Pedagogia Cultural juvenil de gênero que constitui um visual
referido como feminino e nerd/geek.

Tecendo a investigação de sites nerd/geek

A Internet tem propiciado a produção de uma grande varie-


dade de sites onde são publicizados textos muito diversos. Nesses
textos, no entanto, tem sido observada a possibilidade de uma 81
(RE)EXISTÊNCIAS JUVENIS NA ARTE DA VIDA

escrita que tende a ser informal, menos monitorada pelas normas


formais da língua portuguesa, e pautada pelas necessidades de
interações rápidas entre os/as internautas (MARCUSCHI e XA-
VIER, 2010). A diversidade dos textos que podem ser acessados
na Internet nos levou a refletir não apenas a respeito dos modos
como os sites são produzidos, mas, em especial, sobre a dificuldade
de delimitar o material que compõem o corpus de pesquisa.
Selecionar um material de pesquisa na Internet exige, como
mostraram Fragoso, Recuero e Amaral (2012), atentar para a
possível existência de milhões e bilhões de possibilidades, para as
diferenças entre essas possibilidades e, também, para o dinamis-
mo do que é veiculado em função de haver permanente possibili-
dade de alteração de qualquer publicação realizada. Assim, cada
site que acessamos pode não apenas combinar textos, imagens,
vídeos, sons, por exemplo, como também ter seu conteúdo modi-
ficado a qualquer instante.
Atentando para o objetivo de pesquisa, buscamos, durante
os meses de outubro, novembro, dezembro de 2015, através do
mecanismo de pesquisa do Google, localizar sites a partir do uso
dos descritores cultura nerd e cultura geek. Os sites localizados nes-
sa busca foram, por sua vez, salvos em suporte informático com
possibilidade de ser acessado off-line para posterior análise, mes-
mo que seu conteúdo seja modificado ou deixe de estar disponível
para acesso online. Esse recurso possibilitou localizar um total
de quarenta e cinco sites no referido período. Para a escrita deste
texto, selecionamos apenas cinco deles, por abordarem situações
relacionadas à presença de mulheres e meninas interessadas em
compor um visual que é associado aos grupos culturais nerd/geek.
Os sites selecionados para este estudo foram lidos como ar-
tefatos culturais produtivos, nos quais se processam práticas de
significação relativas, em especial, a questões de gênero. Assim,
atentamos para os modos como as feminilidades nerd/geek foram
representadas nos sites.
Quando referimos o termo representação não o estamos
tomando como sinônimo de imagens ou de palavras capazes de
refletir algo que exista no mundo real, como se fosse possível 82
(RE)EXISTÊNCIAS JUVENIS NA ARTE DA VIDA

produzir-se reflexões especulares do mundo através das várias


formas de linguagens existentes. A compreensão de represen-
tação tomada neste estudo, enunciada por Hall (1997) e conhe-
cida como abordagem construcionista da representação, confe-
re destaque ao modo como a linguagem é constitutiva de tudo
aquilo que expressa.
A representação, nessa acepção, não se configura como
“[...] um meio transparente de expressão de algum suposto re-
ferente” (SILVA, 2000, p. 91), mas, isto sim, pelo modo como
está implicada com os processos de produção de significados.
Por esse motivo, é importante referir que as coisas e os entes
do mundo não possuem um significado definitivamente esta-
belecido ou que corresponda a alguma suposta essência dessas
mesmas coisas e entes. Dessa forma, a representação aponta a
indeterminação e a instabilidade atribuídas à linguagem, com-
preendendo os processos pelos quais se produzem os significa-
dos, sempre atrelados a relações de poder.
Em função da relação entre processos de significação e rela-
ções de poder acima referidos, é importante indicar que estamos
nos afastando de qualquer compreensão de poder como negativo
e limitado ao ou localizado no Estado ou em alguma outra insti-
tuição capaz de agir como força malévola, ou seja, como uma for-
ma de proibição, que diz sempre não. Mas, diferentemente disso,
atentamos para os aspectos produtivos do poder, pois o “[...] que
faz com que o poder se mantenha e seja aceito é simplesmente
que ele não pesa só como uma força que diz não, mas que de fato
ele permeia, produz coisas, induz ao prazer, forma saber, produz
discurso” (FOUCAULT, 2004, p. 8).
Dizer que o poder é produtivo significa apontar o fun-
cionamento de jogos de correlação de forças capazes de es-
tabelecer critérios que legitimam e validam uma série de re-
presentações culturais, tais como aquelas que se referem a
feminilidades dos grupos nerd/geek, que focalizamos na análise
apresentada a seguir.

83
(RE)EXISTÊNCIAS JUVENIS NA ARTE DA VIDA

A composição de um visual feminino nerd/geek

Postagens1 realizadas nos sites que examinamos neste es-


tudo chamam a atenção para questões relativas a gênero em
diferentes situações, mas optamos por abordar aquelas em que
há referência à composição de um visual para mulheres e meni-
nas de todas as idades, um visual para as jovens nerd e geek. Os
excertos que destacamos a seguir apresentam indicações sobre
como é ou sobre como deve ser uma jovem nerd/geek. Para isso,
os textos das postagens são construídos com minuciosas instru-
ções sobre como agir para pertencer aos grupos nerd/geek, ins-
truções essas atreladas aos modos de compor um visual, mesmo
que, em muitos sites que examinamos, exista o registro de que a
aparência, considerada coisa fútil, não é o foco dos/as integran-
tes desses grupos culturais.

Ao renegarem uma vida de academia e coisas fúteis, as garotas


nerds ganham tempo para ler e estudar2.

Elas são inteligentes, têm assuntos legais, na maioria das


vezes não são fúteis, geralmente são bem sucedidas e estudos
comprovaram que mulheres mais intelectuais são menos
propensas a trair quando estão em um relacionamento3.

A moda Nerd Feminina vem com roupas clássicas usadas


por mulheres mais intelectuais, mas ganhando detalhes mais
modernos e descolados. O estilo mais colegial, e o clássico
óculos acompanham o visual. É um tipo de moda bem
recente, em vista que os nerds sofriam muito preconceito
antigamente. E quem diria, o que sofria preconceito ganhou
admiradores e até mesmo uma moda toda só pra eles4.

1 Os excertos foram transcritos dos sites examinados tal como foram redigidos
por seus autores/as, sem qualquer revisão linguística.
2 Fonte: As vantagens de se namorar com garotas nerds. Disponível em: <http://
macacovelho.terra.com.br/vantagens-de-se-namorar-com-garotas-nerds/>.
3 Fonte: Como arranjar uma namorada nerd. Disponível em: <https://atitude.
com/como-arranjar-uma-namorada-nerd/>.
4 Fonte: Moda Nerd Feminina. Disponível em: <http://www.mulherbeleza.com. 84
br/moda/moda-nerd-feminina/>.
(RE)EXISTÊNCIAS JUVENIS NA ARTE DA VIDA

As postagens transcritas enfatizam o interesse das jovens


por atividades tais como a leitura e o estudo, apontando, também,
para o afastamento do que pode ser considerado fútil. Tal ênfase
está fortemente atrelada à busca dessas jovens por se afastar dos
modos de cuidar da aparência que tem sido associada ao que seria
frívolo, por remeter ao luxo e à exuberância. Essa seria, portanto,
segundo o que é apresentado nas postagens, uma peculiaridade
que tornaria essas meninas e mulheres mais responsáveis, com-
prometidas e racionais do que as outras, sendo, inclusive, menos
propensas a trair!
Para refletir a respeito dessas questões, a partir das dis-
cussões pós-estruturalistas, partimos da compreensão de que a
produção e a manutenção do binarismo homem/mulher só pos-
sui sentido com o estabelecimento de uma norma heterossexual.
Uma norma que tem sido reafirmada mesmo quando há descon-
tentamento em relação ao preconceito vivenciado por alguns in-
divíduos que, na divisão que se faz do mundo, não ficam com a
posição mais vantajosa.
O problema é que a construção de binarismos, entre os quais
podemos citar homem/mulher, heterossexual/homossexual, me-
nino/menina, por exemplo, decorre dos esforços do pensamento
moderno de organizar o mundo a partir do estabelecimento de ca-
tegorias mutuamente excludentes, e esse processo leva a que essas
categorias nunca assumam o mesmo valor, sendo o primeiro termo
compreendido como hierarquicamente superior ao segundo.
Os binarismos, dessa forma, estão implicados com os sa-
beres científicos modernos que, pelo menos desde o século XIX,
têm servido para marcar o que é ou não é normal nos indivíduos,
a fim de explicar, identificar, hierarquizar, dividir, classificar, re-
grar e disciplinar os seus corpos. Trata-se, pois, de um processo
que faz surgir, entre outras coisas, a divisão dos corpos segundo
uma matriz heterossexual, como explicou Louro (2009).
Portanto, a existência e manutenção das posições hierárqui-
cas decorrentes desses binarismos não são naturais ou estáveis,
são dependentes dos modos como os corpos são significados. Ou,
dito de outro modo, dependente dos modos como a linguagem 85
(RE)EXISTÊNCIAS JUVENIS NA ARTE DA VIDA

funciona citando e reiterando uma norma regulatória que, como


explicou Butler (2010), é “importada” pelos corpos. Tratam-se de
normas que podem ser implicadas nos modos como as pessoas,
especialmente as jovens nerd/geek, se vestem, mesmo quando
afirmam não ser essa a sua maior preocupação.
Mas, dizer que a aparência não está em primeiro lugar na
escala de prioridades não significa que exista descuido com o que
vestir. A busca, apontada nos excertos, por enfatizar a intelectua-
lidade exclui as preocupações com o luxo e com a ostentação sem
eximir ninguém de determinados cuidados com o visual. Essa
estratégia cria formas de significar o ato de vestir como uma for-
ma de marcação de pertencimento a um grupo, detalhando suas
peculiaridades.

Antes de mais nada, você deve entender que nerd é um estilo


e geek é outro. As duas formas de se vestir são bastante
parecidas, em diversos aspectos: óculos grandes, roupas
listradas ou xadrez ou com bolinhas, sapatos coloridos ou all-
star. A grande diferença, no geral, está que nerd’s costumam
se vestir com roupas neutras ou coloridas, porém sem relação
a marcas, personagens ou cultura pop, já as geek’s se esbaldam
em camisetas com frases de filmes, personagens animados
e com arte de referência a música, filmes, games e seriados
normalmente produzidos por artistas da área e vendidos em
lojas especializadas5.

Um ponto a destacar é que essa estratégia de significar a


aparência funciona como uma forma de inscrever as jovens nerd/
geek no circuito de consumo, ao invés de excluí-las disso (BICCA
e ESTEVES, 2013). Associada a isso está a preocupação em mar-
car que nerd e geek constituem dois estilos distintos que inscrevem
no consumo algumas roupas e acessórios similares e outras que
não têm elementos comuns. Assim, as postagens destacadas aqui
mostram, também, que essas jovens estão alinhadas com preocu-
pações de autenticidade que não prescindem de fazer prescrições
pontuais sobre modos de ser e de aparecer.
5 Fonte: Mais dicas de mulher. Disponível em: <http://www.maisdicasdemulher. 86
com.br/moda-feminina-2014-nerd-e-geek/>.
(RE)EXISTÊNCIAS JUVENIS NA ARTE DA VIDA

Seja uma Nerd

1 Pense como uma nerd. Para ser uma verdadeira nerd, você
tem que saber como pensar como uma. Primeiro, você tem
que entender a definição positiva de nerd. Uma nerd não é
necessariamente alguém que usa óculos fundo de garrafa,
aparelho nos dentes, roupas esquisitas e sem combinação e
ama os professores e as tarefas de casa. Uma nerd é alguém
que é excepcionalmente inteligente ou conhecedora de um
certo assunto ou ramo da aprendizagem e que está confortável
em expressar o seu conhecimento para outras pessoas.
[...]
2 Aja como uma nerd. É crucial pensar como uma nerd, mas
você também precisa mostrar ao mundo o quão nerd você é
agindo como uma. Um nerd de verdade não tem vergonha
do seu conhecimento e fica animado para compartilhar
informações novas a qualquer momento. Um nerd está sempre
ocupado aprendendo como ser auto-consciente do que ele faz
ou diz.
[...]
3 Fale como uma nerd. Falar como uma nerd é tão importante
quanto agir como uma. Para convencer os outros de que você é
uma nerd, você terá de prestar atenção às coisas que você fala.
Você deve soar articulada e inteligente sempre que falar6.

As indicações incluem não apenas o que é necessário para


que uma jovem se reconheça como uma nerd/geek, mas para que
tornem isso visível para as outras pessoas. Em parte, esse esforço
decorre de que esses grupos culturais têm buscado questionar as
suas representações como desajustados sociais (BICCA, CUNHA,
ROSTAS e ESTEVES, 2013; BICCA e ESTEVES, 2013).
Mas, por outro lado, criou-se uma forma de “mostrar” que as
jovens nerd/geek, que não estariam preocupadas com sua aparência
do mesmo modo que outras pessoas, acabam valendo-se da compo-
sição de um visual peculiar. Refutar o que é frívolo, portanto, não
significa retirar da aparência toda sua importância. De acordo com
a postagem que transcrevemos acima e com sua continuação que
6 Fonte: Como Ser uma Nerd e se Vestir Como uma Quando se é uma Garota.
Disponível em: <http://pt.wikihow.com/Ser-uma-Nerd-e-se-Vestir-Como-uma- 87
-Quando-se-%C3%A9-uma-Garota>.
(RE)EXISTÊNCIAS JUVENIS NA ARTE DA VIDA

está transcrita a seguir, para ser nerd é necessário pensar, agir, fa-
lar e vestir-se de um modo peculiar. Exige ser inteligente, estudar
muito e “gostar que os/as outros/as saibam disso”.

Vista-se Como uma Nerd

1 Tenha o rosto de uma nerd. Seu rosto será a primeira


coisa que as pessoas verão e ele deve dizer às pessoas que
você é uma pensadora séria e uma verdadeira nerd. Você deve
se arrumar, mas também deve mostrar que não é obcecada
com sua aparência. Eis como fazer isso:

- Vá com calma na maquiagem. Prefira um look mais natural


para o seu rosto. Coloque uma leve camada de base com gloss
e talvez um pouco de rímel. Deixe para se arrumar mais para
ocasiões especiais.
- Lembre-se que ser nerd não significa não ter higiene. Você
ainda deve lavar seu rosto todos os dias e lavar seu cabelo
pelo menos um dia sim e outro não.
- Encontre um corte de cabelo nerd. Um cabelo nerd deve ser
simples. Você pode colocar seu cabelo pra trás e amarrá-lo num
rabo de cavalo, ou colocá-lo para frente. Você também pode
colocar maria-chiquinhas, ou um rabo de cavalo lateral. Apenas
para se certificar de que você está bem arrumada enquanto não
passa muito tempo se dedicando ao seu cabelo e maquiagem.
- Para maximizar seu estilo de cabelo nerd, use um elástico
de cabelo grosso.
- Use os óculos corretos. Quer você precise deles ou não,
óculos estilosos podem adicionar um dom nerd para o seu look.
Encontre um óculos que funcione com o formato do seu rosto.

2 Vista as roupas certas. Para se vestir como uma nerd,


você precisará ter roupas que sejam organizadas, limpas
e não muito exibidas. Uma garota nerd deve sempre estar
apresentável, mas não espalhafatosa. Eis como encontrar o
visual nerd correto:

- Use camisas folgadas. Tente um casaco folgado ou uma


camisa de botão folgada. se você usar algo mais apertado, use
um colete tricotado sobre ele.
- Use padrões simples. Uma garota nerd não passa muito tempo 88
(RE)EXISTÊNCIAS JUVENIS NA ARTE DA VIDA

escolhendo uma camisa muito ornamentada. Escolha cores


sólidas e discretas que sejam marrom, azul ou preto, ou vista um
padrão pálido. Evite cores chamativas como neon ou rosa shock.
- Vista calças simples. Suas calças não devem ser tão apertadas
a ponto de serem sexy, nem precisam ser tão folgadas que
fiquem caindo. Apenas escolha calças boas que tenham bom
caimento, como um jeans preto.
- Use calçados funcionais. Você geralmente não vê nerds
usando escarpins ou botas caras e da moda. Vista o que for
mais fácil e funcional para você, seja tênis, botas folgadas,
sandálias, crocs ou chinelos.
- Não vista nada que seja obviamente caro, ou tão coordenado
que você tenha passado horas escolhendo.
- Dê uma olhada no guarda-roupas da sua mãe para um
visual nerdretrô.

3 Tenha os acessórios nerds corretos. Embora uma


verdadeira nerd feminina não tenha tantos acessórios da
moda, há algumas coisas que ela pode vestir e carregar com
ela para ajudar a enfatizar o quão séria ela é. Eis o que você
deve adicionar ao seu looks:

- Uma mochila. Uma garota nerd sempre tem alguns livros


com ela, mesmo se ela estiver indo à praia.
- Use o mínimo de bijuteria possível. Uma garota nerd não
perde tempo colocando milhares de bijuterias. Se você tiver
um anel que pertenceu à sua avó, você pode tentar usá-lo.
- Uma caneta e um bloco de anotações. Uma garota nerd
deve estar pronta para anotar seus pensamentos a qualquer
momento.
- Um gravador de fitas. Se você prefere pensar alto, leve
consigo um gravador analógico para que você possa sempre
gravar suas ideias.
- Um relógio. Uma garota nerd é rápida e cuidados e sempre
sabe que horas são para que ela possa chegar em todos os
lugares um pouco antes7.

7 Fonte: Como Ser uma Nerd e se Vestir Como uma Quando se é uma Garota.
Disponível em: <http://pt.wikihow.com/Ser-uma-Nerd-e-se-Vestir-Como-uma- 89
-Quando-se-%C3%A9-uma-Garota>. Acesso em: 14 out. 2015.
(RE)EXISTÊNCIAS JUVENIS NA ARTE DA VIDA

Para mostrar aos/às outros/as que uma menina ou mulher


é uma nerd é necessário, ainda, como aponta o texto que dá conti-
nuidade à postagem anterior, usar maquiagem discreta, ter higie-
ne, ter corte de cabelo simples e usar óculos, mesmo que não seja
necessário corrigir a visão. Essas são orientações sobre o visual
que podem, também, valer para as garotas geek.
As recomendações relativas às roupas indicam que se deve
preferir peças largas, padrões de estamparia simples e cores dis-
cretas. Além disso, é importante evitar marcas caras, peças sen-
suais e que demonstrem alinhamento aos últimos lançamentos
das indústrias da confecção e calçadista. Essas são recomendações
que mostram a preferência por uma aparência discreta e retrô.
Compor um look nerd (ou geek) implica, ainda, alinhar discri-
ção, responsabilidade e intelectualidade pelos acessórios a serem
usados, que incluem livros, canetas, blocos de anotação e equipa-
mentos para gravação. Outros objetos, como os anéis, para merece-
rem lugar na composição do visual, necessitam ter alguma história
especial que os envolva. Porém, o mesmo não pode ser dito dos
relógios; eles são bons indicadores de que uma garota nerd é séria
e respeita, disciplinadamente, os horários de seus compromissos.
O que lemos nos excertos examinados é que, mesmo com
a preocupação explícita, em muitos espaços de manifestação dos
grupos culturais nerd/geek, de não ter a aparência como seu foco
de atenção, atentar para o visual continua sendo importante. O
que é recusado com força é o visual que remete ao luxo, à suntuo-
sidade e à sensualidade.
Existe, portanto, uma forte regulação da aparência realiza-
da a partir de instruções bem pontuais, como evitar roupas justas
ou estampas chamativas, que estabelecem o que Dussel (2007) re-
fere ser um regime de aparências, ou seja, um sistema que regula
como determinados sujeitos devem se mostrar publicamente para
que sejam considerados adequados a uma determinada situação.
Há, como podemos observar nos excertos transcritos, es-
pecialmente com relação às meninas e mulheres, uma regulação
acentuada do visual para que elas sejam consideradas “verdadei-
ras” integrantes dos grupos culturais nerd/geek. A vestimenta e 90
(RE)EXISTÊNCIAS JUVENIS NA ARTE DA VIDA

os acessórios constituem, dessa forma, uma poderosa forma de


regulação social que se vale de padrões identificáveis para marcar
profundamente o corpo de uma nerd ou geek moldando a sua rela-
ção consigo mesma e com os/as outros/as.
É importante destacar que esses padrões estão implicados
na constituição de jovens que pretendem ser associadas ao que
podemos referir como uma ordem da razão. Fazer isso se consti-
tui em um esforço para evitar associar essas mulheres e meninas
ao que colocaria a sentimentalidade e/ou a sensualidade em foco.
Walkerdine (2007, 1995), ao discutir os modos como as
compreensões existentes sobre razão e racionalidade estão impli-
cadas com o gênero, mostrou que a forma como a ciência moder-
na tomou os corpos humanos como objetos possibilitou respaldar
a ligação da razão ao masculino e da procriação ao feminino. Nes-
se contexto, ganhou força o entendimento de que a atividade de
raciocinar seria perigosa para as mulheres porque exauria suas
capacidades reprodutivas, algo que poderia, também, ameaçar o
futuro da espécie humana pelo risco da degeneração. Como disse
Walkerdine (2007, p. 14), “[...] que carga as meninas e mulheres
tiveram que suportar! Elas não somente se prejudicavam, elas
também estavam colocando em perigo a espécie”.
Por esse motivo não surpreende que ainda hoje persistam
compreensões que relacionam a racionalidade aos homens e aos
meninos. Aliás, como mostrou Walkerdine (1995), até mesmo o
sucesso das meninas em aulas de Matemática tem sido lido de
forma pejorativa. É frequente que se atribua, nas escolas, o bom
resultado de meninas na aprendizagem em Matemática como
efeito de muito esforço e de uma suposta maior capacidade para
seguir regras. Em relação aos meninos, em troca, há uma leitura
bem mais positiva, mesmo quando o resultado da aprendizagem
não é bom, pois se atribui o problema ao tipo de trabalho pedagó-
gico realizado e não à capacidade dos meninos.
Esses argumentos nos ajudam a desconfiar da compreen-
são de que o sucesso em qualquer atividade intelectual seria
algo natural para homens, requerendo deles bem menos esforço
do que teriam as mulheres. Ajudam, também, a problematizar a 91
(RE)EXISTÊNCIAS JUVENIS NA ARTE DA VIDA

necessidade das jovens que têm sucesso em atividades intelec-


tualizadas de empreender esforços para que essa característi-
ca seja notada. Talvez por isso, mesmo aquelas jovens que não
pretendem ter o visual como seu maior objeto de atenção, não
possam abrir mão de atentar para o modo como são vistas. De-
las parece se exigir “algo mais”!
Além disso, é curioso observar que os elementos visuais re-
queridos para associar as nerd e geek a essa ordem da razão são
similares aos que já foram requeridos, em diferentes situações,
para associar mulheres aos mais exigentes e rígidos padrões mo-
rais. As mulheres mais discretas e até mesmo recatadas têm sido
levadas a evitar o luxo e a suntuosidade bem como as vestimentas
que mostram mais o corpo, como mostrou Dussel (2005). Essas
regras visuais não seriam novas e, de formas diferentes, já foram
acionadas para deslocar os corpos femininos de significados liga-
dos ao que é fútil e frívolo. A criação de um estilo feminino juve-
nil que almeja ser associado à racionalidade recolocaria em cena
alguns códigos de vestimenta feminina que vêm, há muito tempo,
sendo atrelados a rígidos padrões morais.

Arremates

Compreendemos, a partir da análise desenvolvida, que gru-


pos juvenis nerd/geek praticam uma forma de pedagogia cultural
internáutica que produz formas de feminilidades relacionadas a re-
comendações sobre como compor seu visual. Essas recomendações
são direcionadas para a produção de uma aparência que se afaste,
ao máximo, do que tem sido constituído culturalmente como frívo-
lo e fútil por enfatizar o luxo, a suntuosidade e a exuberância.
O esforço de compor certo tipo de visual levaria, segundo
os sites examinados, a uma forma de “aparência” que estaria me-
nos ligada à preocupação com a própria aparência. Ou, como po-
demos argumentar, preocupar-se com a aparência significa aten-
tar a certos tipos de visual, mas não todos.
Especialmente para as meninas e mulheres nerd/geek,
essa composição de visual enfatiza a preocupação em destacar 92
(RE)EXISTÊNCIAS JUVENIS NA ARTE DA VIDA

qualificativos que têm sido fortemente atrelados aos meninos


e aos homens, tais como a intelectualidade e a capacidade de
raciocínio lógico. Sendo assim, para que as jovens possam re-
meter a si mesmas a tais atributos, é necessário realizar esfor-
ços extras, criando uma forma de regulação da aparência que
gira em torno do que podemos nomear de ordem da razão,
afastando-se ao máximo do que tem sido associado à senti-
mentalidade e/ou à sensualidade.

Referências
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dagogias Culturais: um ensaio de análise. Canoas. In: Anais do 2o
Seminário Internacional de Estudos Culturais e Educação. Ca-
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96
Vibro as entranhas de ferro e
a noite é somente
o que deve este cubículo enluarado
atingem-me canecas às costelas magras,
berros açoitam a carne cinzenta
sou e anuncio a chacina pedra-perene

de que mais preciso?


peço cigarros à próxima visita
de que preciso? que não empunhes a caneca
que não me apareças do escuro para o banho de sol

que me subvertas em silêncio de dentro para fora


pois escrevo à parede dias de epitáfio.

Pedro Dziedzinski

97
PEDAGOGIAS DA RESISTÊNCIA:
EXPERIÊNCIAS DE OCUPAÇÃO NOTURNA
NO PARQUE FARROUPILHA

Eloenes Lima da Silva

Dentro do parque sentiu-se liberto da cidade,


embora ainda prisioneiro da noite.
(Érico Veríssimo,1982 [1954])

Fonte: acervo pessoal do autor. Foto por Cristiano Guimarães.

Noite de sexta feira. Dirijo-me ao Parque Farroupilha,


também conhecido como Parque da Redenção, na região
central da cidade de Porto Alegre, RS. O motivo: a realização
do encontro noturno Serenata Iluminada. Chego ao local e
percebo centenas de pessoas em volta do lago espelho d’água.
Os ocupantes, jovens em sua maioria, estão sentados ou
deitados na grama, outros estão flanando pelo parque, onde
conversam, beijam, abraçam, cantam, tocam, dançam e recitam
poesias em saraus improvisados ao ar livre. Bebidas, comidas e 98
(RE)EXISTÊNCIAS JUVENIS NA ARTE DA VIDA

outros produtos artesanais são comercializados, aumentando a


interação entre os participantes naquele espaço-tempo público
noturno (Noturnos de Campo, Porto Alegre, RS)

Adentrando as pedagogias da noite

A imagem e as anotações expostas na abertura deste texto


destacam fragmentos de observações junto ao evento noturno
conhecido como Serenata Iluminada. Registrados sob a forma de
noturnos de campo, referência ao espaço-tempo em que a produ-
ção empírica da pesquisa1 foi realizada, as interações vividas pe-
los participantes daquele evento proporcionaram distintas expe-
riências por meio da ocupação coletiva realizada no maior parque
público da cidade de Porto Alegre, RS. A iniciativa consistiu em
buscar outras formas de compartilhamento em um lugar conheci-
do pela sua insegurança à noite, utilizando e encontrando naque-
le espaço-tempo público a possibilidade de organizar e viabilizar
formas coletivas de sociabilidade.
Com o objetivo de resgatar outros modos de conviver à
noite, o evento conhecido como Serenata Iluminada é realizado
periodicamente no Parque Farroupilha. “Ocupando o parque
para pensar a convivência em Porto Alegre” é a descrição des-
se encontro noturno divulgado via redes sociais na internet. O
evento é apresentado como uma causa cujo propósito visa “à
ocupação dos espaços públicos da cidade, em prol de mais segu-
rança, do direito à cidade, para que todos possam compartilhar
os parques, as ruas, com os amigos, vizinhos, familiares, enfim,
com todas as pessoas, também à noite”2.
Para Margulis (2005), na oposição entre dia/noite, entre
luz/escuridão, entre os tempos que regulam as normas da ro-
tina diária e o período noturno, as juventudes aproximam os
1 Este texto é um recorte da tese de doutorado Pedagogias da Noite Experiên-
cias de aprendizagem em lugares noturnos de Porto Alegre/RS. Vinculada
teoricamente ao campo dos Estudos Culturais e Educação, a pesquisa foi realizada
junto ao Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal do
Rio Grande do Sul, sob orientação da Profa. Dra. Marisa Vorraber Costa.
2 Conforme descrição divulgada na página oficial do evento. Disponível: ht- 99
tps://www.facebook.com/pg/SerenataIluminada/about/?ref=page_internal.
(RE)EXISTÊNCIAS JUVENIS NA ARTE DA VIDA

significados do espaço urbano. Desse modo, para o mesmo au-


tor, a noite se apresenta para muitas culturas juvenis como uma
sensação de “ilusão liberadora”, em que procuram distancia-
mentos do tempo diurno “regulamentado”, elegendo um tempo
conquistado, um tempo especial e propício para suas práticas, na
maioria das vezes consideradas transgressoras, ou, como for-
mas de resistência frente ao medo que assola os espaços e os
tempos noturnos na maioria das cidades.
Os índices de insegurança urbana têm se agravado em
Porto Alegre, provocando o retraimento da vida noturna e pú-
blica dessa cidade. No início de 2015 o descontrole sobre a cri-
minalidade e violência já era anunciado na capital rio-granden-
se3. Em 2016, Porto Alegre constava entre as 10 cidades mais
violentas do mundo, e, em meados de 2017, o Brasil ocupava a
quarta posição no ranking da violência com essa cidade seguin-
do na lista das mais violentas do mundo4. No final desse mesmo
ano, Porto Alegre contou com o maior número de assassinatos
por 100 mil habitantes5. Em tais circunstâncias, a população
aprende a viver por meio de rotinas diárias, orientando-se por
estratégias e práticas de proteção, convivendo cotidianamente,
com roubos, furtos e homicídios causados por esses diferentes
tipos de violência urbana.
Sob essas condições, usufruir dos espaços públicos tem se
tornado uma prática quase irrealizável, praças e parques são in-
viabilizados e esvaziados durante a noite, perdendo muito seu po-
tencial como local para convívio social coletivo, prevalecendo cada
vez mais modos de vida que se caracterizam pela privacidade dos
lugares fechados. Nesse contexto, a constante sensação de medo
causado pela insegurança toma conta do cotidiano, direcionando
3 Disponível em: https://gauchazh.clicrbs.com.br/geral/noticia/2015/04/vio-
lencia-assusta-e-desafia-porto-alegre-4744455.html.
4 Disponível em: https://www.sul21.com.br/jornal/porto-alegre-esta-entre-as-
-10-cidades-mais-violentas-do-mundo-em-ranking-de-criminalidade/; https://
gauchazh.clicrbs.com.br/seguranca/noticia/2017/04/porto-alegre-e-listada-en-
tre-as-cidades-mais-violentas-do-mundo-9762767.html.
5 Disponível em: http://correiodopovo.com.br/Noticias/Policia/2017/10/632997/
Porto-Alegre-e-a-terceira-capital-com-maior-taxa-de-assassinatos-por-100-mil-ha- 100
bitantes.
(RE)EXISTÊNCIAS JUVENIS NA ARTE DA VIDA

as atitudes mais ordinárias da população, atuando como uma con-


dição pedagógica que orienta os modos de viver durante a noite
da cidade. As pedagogias da noite apresentam modos de condução
distintos daqueles que a cidade proporciona durante o dia.
Os usos e entendimentos do conceito de pedagogia na con-
temporaneidade têm proporcionado transformações, atualizações
e condições para seu funcionamento, englobando outras formas
de conhecimentos, práticas e aprendizagens, sendo possível de-
nominá-la como pedagogia(s) devido a constante pluralização e
expansão do seu campo de atuação. Amparo-me, inicialmente em
Giroux e MacLaren (1995, p. 144), pois segundo os autores

existe pedagogia em qualquer lugar em que o conhecimento


é produzido, em qualquer lugar em que existe a possibilidade
de traduzir a experiência e construir verdades, mesmo que
essas verdades pareçam redundantes, superficiais e próximas
do lugar-comum.

Visualizar como formas plurais de pedagogias são coloca-


das em atuação torna-se possível por meio da identificação de
experiências vividas em contextos socioculturais e com suas ve-
racidades específicas. Albuquerque Junior (2010), no artigo inti-
tulado Pedagogia: a arte de erigir fronteiras busca ampliar o
leque de possibilidades para se pensar outras formas de educação
e de pedagogia. O autor afirma que

[...] vivemos em sociedades e culturas em que uma


multiplicidade de pedagogias opera no cotidiano, visando
elaborar subjetividades, produzir identidades, adestrar e dirigir
corpos e gestos, interditar, permitir e incitar ou ensinar hábitos,
costumes e habilidades, traçar interditos, marcar diferenças
entre o admitido e o excluído, valorar diferencialmente e
hierarquicamente gostos, preferências, opções, pertencimentos
etc. (ALBUQUERQUE JÚNIOR, 2010, p. 1).

Ao oferecer entendimentos e usos do conceito de pedago-


gia, os autores nos permitem lançar um olhar para aqueles modos
de viver em diversos contextos socioculturais implicados com a 101
(RE)EXISTÊNCIAS JUVENIS NA ARTE DA VIDA

condução e a modelagem dos sujeitos nos espaços e tempos con-


temporâneos. Segundo Camozzato e Costa (2013), a pedagogia
opera como uma modelagem, esculpindo os modos de atuação
dos sujeitos, investindo e atuando sobre todos os aspectos e âm-
bitos da sua vida, elaborando e reelaborando práticas e formas de
atuar sobre nós mesmos, os outros e o mundo.
A partir de tais reflexões podemos considerar que os usos e
entendimentos do conceito de pedagogia na contemporaneidade
têm proporcionado transformações, atualizações e condições para
seu funcionamento. As experiências pedagógicas traduzidas aqui
são aquelas em que são produzidas aprendizagens como formas
de existir, mas também de resistir frente ao medo e a insegurança
urbana. Pedagogias da Resistência que encontram sua potência
e são produzidas por meio de atividades locais, coletivas e públi-
cas, subvertendo subjetividades e modos de viver construídos no
interior de culturas massivamente individualistas. Assim, a ques-
tão central deste texto consiste em analisar como determinadas
experiências de ocupação coletiva em um parque municipal dão
visibilidade a Pedagogias da Resistência que são colocadas em
funcionamento em espaços e tempos públicos contemporâneos na
noite de Porto Alegre.
O texto foi organizado a partir de dois movimentos. Além
de salientar a importância do Parque Farroupilha como lugar
para as experiências vividas em seu espaço e tempo público são
abordados na primeira parte os conceitos de “lugares de apren-
dizagem” (ELLSWORTH, 2005) 6 e de “resistência” (FREIRE
FILHO, 2007) e suas possíveis articulações com as distintas for-
mas pedagógicas que a noite da cidade apresenta. O segundo
movimento apresenta as “cenas noturnas” compostas a partir das
abordagens e observações in loco durante o evento Serenata Ilu-
minada. Nesta parte, amparado em autores como Certeau (1998),
Yi-Fu Tuan (1983), Maffesoli (2003, 2004) e Harvey (2014),
são analisados como a música executada ao ar livre, os “abraços
grátis”, a campanha “POA me faz sorrir” e as trocas artesanais
configuram experiências de aprendizagem, atuando para a pro-
102
6 Neste texto, a traduções desta autora são de minha responsabilidade.
(RE)EXISTÊNCIAS JUVENIS NA ARTE DA VIDA

dução de singulares formatos de resistências em espaços-tempos


públicos e noturnos. As considerações finais do texto reforçam a
importância de tais experiências, pois elas tornam visível o fun-
cionamento das Pedagogias da Resistência na noite.

Parque Farroupilha: lugar de aprendizagem


e de resistência juvenil

A história do Parque Farroupilha segue os processos de mo-


dernização urbana desde as décadas finais do século XIX. Tem-
pos em que os espaços públicos de Porto Alegre eram marcados
por transformações como a construção do Viaduto Otávio Rocha
e abertura da Avenida Borges de Medeiros. Realizações arquite-
tônicas que instauravam ares de novidade, mesmo que para isso
fosse necessário expulsar as populações “indesejáveis”, seguindo
os discursos higienistas vigentes na época, deslocando os habitan-
tes da região central de Porto Alegre para as periferias da cidade
(FRANCO, 2006). Em meio a essas mudanças, o Parque Farrou-
pilha, até então chamado de Parque da Redenção em homenagem
à abolição da escravatura que ocorreu em 1884 na cidade de Porto
Alegre, passou a homenagear a Revolução Farroupilha em 1935.
Desde uma extensa várzea que servia como logradouro público na
primeira década do século XIX, passando por fases de reurbaniza-
ção em meados do século XX, o Parque Farroupilha também so-
freu por épocas com o abandono dentre as décadas de 1970 a 1980
(FRANCO, 2006). Situação que foi paulatinamente revertida com
a implantação da feira de artesanato que ocorre semanalmente aos
domingos no parque, conhecida como Brique da Redenção.
“Lindo local, porém meio perigoso na noite”7, “Parque da
Redenção perde o encanto quando o sol se põe”8. Os depoimen-
tos destacam a atual situação do Parque Farroupilha, retratando
a insegurança e o medo de transitar pelo lugar e atestando as
7 Disponível em: https://www.tripadvisor.com.br/ShowUserReviews-g303546-d-
555100-r169939459-Farroupilha_Park_Redencao-Porto_Alegre_State_of_Rio_
Grande_do_Sul.html.
8 Disponível em: https://www.sul21.com.br/jornal/parque-da-redencao-perde- 103
-o-encanto-quando-o-sol-se-poe/.
(RE)EXISTÊNCIAS JUVENIS NA ARTE DA VIDA

condições contemporâneas do seu cotidiano noturno. Noites em


que seu território serve para o tráfico de drogas, realização de
roubos e furtos e até mesmo de assassinatos, conforme notícia de
um jornal de circulação regional. Somados à falta de iluminação
pública, de vigilância e de abandono, esses acontecimentos desta-
cam-se como principais causas para as violências urbanas ocor-
ridas nesse lugar. Demarcado pelo consequente esvaziamento de
seus espaços e de seus tempos, o Parque Farroupilha enfraquece
seu potencial como local de lazer e de convívio social, necessitan-
do outros modos de reocupação.
Harvey (2014, p. 135), em sua obra intitulada Cidades
Rebeldes, comenta que o “ressurgimento da ênfase na perda
da comunalidade urbana reflete os impactos aparentemente pro-
fundos da recente onda de privatizações, cercamentos, controles
espaciais, policiamento e vigilância na qualidade da vida urbana
em geral” [grifo meu]. Essa busca da “comunalidade”, segundo
Harvey (2014), mesmo que tenha nascido de um processo urbano
influenciado e dominado por interesse de classes capitalistas, tem
sido encontrada nas práticas de apropriação dos diversos espaços
da cidade por parte da população, pois potencializa a criatividade,
novas formas de relações sociais e os novos bens comuns.
Feixa (2003, s/p), por sua vez, afirma que a presença cons-
tante das culturas juvenis na vida cotidiana é “consubstancial
à sua razão de ser, afastadas das instituições e estruturas de
poder, sua identidade configura-se no campo da sociabilidade,
do lazer, da festa e da ocupação do espaço”. Conforme esse mes-
mo autor, “o espaço e o tempo são dimensões fundamentais da
experiência humana que estruturam os referentes simbólicos
de cada cultura e que orientam os indivíduos em sua biografia”
(FEIXA, 2003, s/p), pois quase sempre atribuem, às situações
“objetivas” e aos lugares físicos, determinadas funções e signifi-
cados em busca de legitimar seus processos de convívio social.
As perspectivas desses autores, tanto aquela a respeito do di-
reito a uma vida comum proposta por Harvey (2014) quanto a
de constituição das identidades juvenis por meio de sua relação
com os lugares urbanos como exposta por Feixa (2003), podem 104
(RE)EXISTÊNCIAS JUVENIS NA ARTE DA VIDA

se aliar com os objetivos dos jovens participantes do encontro


noturno Serenata Iluminada.
As iniciativas de ocupação coletiva noturna procuram
romper as fronteiras que a insegurança da noite urbana delimi-
ta, permitindo considerar o Parque Farroupilha como um lugar
que proporciona inúmeras experiências, aproximando-nos do
conceito de “lugares de aprendizagem” elaborado por Ellsworth
(2005). Identificar um “lugar de aprendizagem” pressupõe um
foco nos significados e nas condições que determinados ambien-
tes, comportamentos ou eventos apresentam para a produção de
conhecimentos permanentemente em construção, possibilitando,
com isso, a produção de distintas experiências de aprendizagem
(ELLSWORTH, 2005). Ainda segundo Ellsworth (2005) tem-se
que determinados lugares podem ser denominados e identifica-
dos como de aprendizagem, uma vez que acionam sentidos, pos-
sibilitando sensações entre pensar, sentir e agir.
Para a Ellsworth (2005), em determinados lugares, as ex-
periências de aprendizagens são produzidas pelos movimentos
de interação entre os sujeitos e o mundo e pelos quais o self não
se encontra submisso, mas em transição, através de caminhos
desconhecidos em que pensar, ser e estar estão emaranhados em
processos de aprendizagem que se encontram continuamente
em construção. Ao levar em conta tudo que é exterior ao self,
tudo que é externo ao “eu” e como isso é processado subjetiva-
mente, as experiências de aprendizagem podem ser entendidas
como forma de atuação que é vivida tanto individual quanto
coletivamente. Movidas através do tempo e do espaço, entre as
possibilidades de conhecimentos que são oferecidas, as expe-
riências de aprendizagem funcionam como aberturas para mu-
danças de comportamentos por meio da realização de práticas
sociais e convívios comuns coletivos.
Assim como as experiências vividas em lugares de aprendi-
zagem, as formas que a ideia de “resistência” assume na contem-
poraneidade podem ser entendidas a partir de perspectivas e aná-
lises que tem destacado sua pluralização e multiplicação sendo
possível denominá-las como resistência(s). Polimorfismo no qual 105
(RE)EXISTÊNCIAS JUVENIS NA ARTE DA VIDA

as permanentes constituições individuais e sociais do self também


parecem ter se tornado componente crucial nos diversos modos
de atuação e identificação das resistências contemporâneas. Frei-
re Filho (2007, p. 52) salienta que as resistências se encontram
vinculadas com “experiências (mesmo que temporárias) de em-
poderamento e atualização significativas do self, de relativização
de identidades e de recusa das formas normais ou convencionais
de comunicação e relacionamentos sociais cotidianos”. Se consi-
derarmos que esses movimentos “exteriores” são indispensáveis
para a constituição “interior” e subjetiva de um self em atuação
constante com os outros e com o mundo, é profícua a articulação
entre experiências de aprendizagem e os distintos entendimentos
de “resistência” na contemporaneidade.
Posicionar-se dessa perspectiva requer a identificação da-
quelas formas de resistência que nem sempre são intencionais,
pois muitas vezes seus alvos são difíceis de identificar e motiva-
dos pelas circunstâncias pelas quais os atores sociais estão en-
volvidos. A perspectiva moderna de resistência, em que as es-
truturas de poder das classes “dominantes” sejam eles o Estado,
o patriarcado ou grupos institucionalizados política e economi-
camente são enfrentados pelos subordinados está ligada à ideia
de modificação e de alteração dos modos de vida e desenvolvi-
mento social coletivo e individual (FREIRE FILHO, 2007). Ain-
da que esse modo de entender o conceito de resistência não seja
totalmente desconsiderado, pois encontramos em contextos de-
nominados como “macropolíticos” diversas formas de lutas para
transformação nas relações de poder, as resistências assumem na
contemporaneidade características cada vez mais fragmentárias,
partindo de ações cotidianas executadas e vividas em âmbitos
considerados “micropolíticos”.
As resistências podem ser produzidas por meio de ativida-
des locais, enfatizando subjetividades e individualidades cons-
truídas no interior de culturas em contextos específicos. Freire
Filho (2007, p. 19) assinala que desde os anos 1980, esses modos
de resistência estão relacionados com “ações mais prosaicas e su-
tis, gestos menos tipicamente heroicos da vida cotidiana, não vin- 106
(RE)EXISTÊNCIAS JUVENIS NA ARTE DA VIDA

culados a derrubadas de regimes políticos ou mesmo a discursos


emancipatórios”. Entre umas das ações presentes nas múltiplas
formas de resistência destacadas por Freire Filho (2007) consta a
reconfiguração dos significados dos espaços públicos como zonas
autônomas para a realização de festas, feiras, shows musicais e
outros encontros entre indivíduos e grupos sociais. Se conside-
rarmos tais tipos de iniciativas como outras trans-formações, como
transitórias ações individuais e coletivas, veremos que seu funcio-
namento pode configurar atos de resistências locais, cotidianas
e organizadas segundo demandas e necessidades em contextos
específicos. Essas formas de resistir na contemporaneidade estão
vinculadas a um “presenteísmo”, como destaca Maffesoli (2003),
pois não refletem grandes feitos revolucionários ou busca de um
amanhã que será conquistado, almejando liberdades futuras, mas
são resistências vividas no momento presente, nos instantes em
que tais práticas e experiências são realizadas, no “aqui e agora”.
Concluída a exposição dos principais conceitos que embasa-
rão as discussões analíticas seguintes, partimos para o segundo mo-
vimento do texto. Visando identificar como são aprendidas outras
formas de resistência na noite do Parque Farroupilha, a produção
empírica é apresentada por meio das “cenas noturnas” compostas
a partir da observação e do registro das práticas sociais realizadas
pelos participantes do evento noturno Serenata Iluminada.

Cenas noturnas no parque à noite

A observação e as abordagens aos participantes, registrados


durante a Serenata Iluminada, permitiu agrupar práticas, destacar
detalhes e descrever sujeitos visando à composição das cenas no-
turnas no Parque Farroupilha. As cenas destacam experiências
por meio da interação com a música, a divulgação da campanha
“POA me faz sorrir” e os “abraços grátis” e as trocas sociais que
movimentam o “saber-fazer pessoal” através das produções arte-
sanais. A discussão analítica das cenas evidencia como essas ex-
periências de aprendizagem possibilitam visualizar as pedagogias
da resistência na noite. 107
(RE)EXISTÊNCIAS JUVENIS NA ARTE DA VIDA

Cena 1 – Música ao vivo no parque à noite

Fonte: Acervo pessoal do autor. Foto por Cristiano Guimarães

No livro Notas sobre a pós-modernidade: o lugar faz o


elo, Maffesoli (2004, p. 48) afirma que, através da fecundidade
da sinergia entre espaço, tempo e as sociabilidades, existe a pos-
sibilidade “das pessoas sentirem e experimentarem em comum”.
Vivências sociais que são celebradas, pois os espaços da cidade
são constituídos por diversos “altares”, lugares que fazem o elo
e “onde as pessoas se reúnem, se reconhecem umas às outras e,
com isso, conhecem a si mesmas” (MAFFESOLI, 2004, p. 58).
Por isso, não podemos atribuir somente uma dimensão física aos
espaços, já que eles existem a partir dos discursos que os dizem e
os veem; um espaço que também é imaginado, pois sua “natureza”
física é inseparável da cultura que o compõe. Esse mundo ima-
ginado, segundo o Maffesoli (2004, p. 58), diz respeito “a fluxos
afetivos, às manifestações estéticas, aos movimentos éticos, em
suma, a toda esta órbita do sensível, do sensual, do colorido, do
brilho do artificial, do dionisíaco [...]” que marca as experiências
sociais do espaço vivido. 108
(RE)EXISTÊNCIAS JUVENIS NA ARTE DA VIDA

Nas contemporâneas e nem sempre pacatas noites da cidade


a música permite, ao ouvinte ou ao músico executor, a produção de
distintas formas de interação com o lugar e com os demais partici-
pantes, proporcionando um “encontro” com os muitos outros que
também ocupam os lugares noturnos. Ouvir o ritmo sonoro, movi-
mentar o corpo de acordo (ou não) com a música executada em um
lugar público noturno, geralmente considerado inseguro naquele
horário, produz a sensação de estar em meio aos outros e onde
existe a possibilidade de se “sentir” seguro. A sensação produzi-
da pela interação através da música durante o evento noturno no
Parque Farroupilha permitia a abertura de um espaço-tempo pelo
qual o indivíduo aprendia com outro e com o lugar. A experiência
proporcionada pela música diante das condições daquele lugar no-
turno pode ser definida pelo que Maffesoli (2004, p. 49) denomina
como “ligância” social. Esse termo, oriundo do idioma francês, vai
adquirir o sentido como “aquilo que me liga ao outro”, além de sua
significação inglesa “que remete à confiança que podemos sentir
em meio aos outros, ou, ainda, à confiança que experimento com
terceiros diante de algo que nos é externo”. Assim, continua o mes-
mo autor, “o meio, misto como é, seria condição de possibilidade
da existência humana, a partir da existência social e da existência
natural. Isso equivale a dizer que o ‘eu só toma consciência de si’
como relação” (MAFFESOLI, 2004, p. 49 [grifos do autor]).
Para o geógrafo chinês Yi-Fu Tuan (1983), a música execu-
tada em espaços públicos proporciona a abertura de um “espaço
de indiferenciação”, atuando na transição da experiência indivi-
dual do sujeito com o meio e com os outros através das sensações.
A música, nesse espaço de transição, proporciona movimentos
conjuntos entre corpo/mente/cérebro, ativando sentidos que
não seriam acionados se a música fosse ouvida e sentida em fones
de ouvido ou de forma solitária. Nessas condições, aprender a
partir da experiência da música vai além da audição sonora, ela
aciona os demais sentidos: movimenta o corpo, desinibindo o su-
jeito, incitando-o ao contato com os demais em sua volta. A mú-
sica vai agir como um invólucro sonoro que permite “embalar” as
vivências em um lugar público noturno. 109
(RE)EXISTÊNCIAS JUVENIS NA ARTE DA VIDA

Essa condição de “embalagem”, de “envelopamento” que o


corpo adquire por meio das diferentes configurações do espaço e
do tempo em lugares noturnos nos aproxima do conceito de em-
bodiment. O embodiment funciona como a “incorporação” de todos
os componentes presentes em um lugar, integrando movimentos
e sensações em que não mais se separam corpo/mente, tempo/
espaço, sujeito/objeto (ELLSWORTH, 2005). O embodiment é
o que permite a efetivação de nossas experiências nessa relação
com o outro e com o mundo por meio dos aspectos tanto exterio-
res quanto aqueles que são interiorizados pelo sujeito. Segundo
Ellsworth (2005), uma experiência de aprendizagem é produzi-
da por meio da composição de sensações cuja duração indefinida
subverte o espaço e o tempo em uma fabricação inconstante por
meio da transição produzida pelos sentidos com o lugar. É dessa
maneira que a audição e a visão são acionadas pela música, pelas
artes performáticas ou por demais práticas em que corpo/mente
estão em funcionamento, produzindo sensações que colocam em
interação o indivíduo com os lugares em que se encontram.
Ellsworth (2005) considera as experiências vivenciadas como
construtoras de sensações, pois o “corpo” dos lugares de aprendi-
zagem encontra o corpo dos sujeitos por meio de redes de relações
de interação. Em uma experiência de aprendizagem, o corpo atua
como estrutura orgânica da ação, onde o cérebro é o órgão que
transmite estímulos em forma de pensamentos e a mente é a res-
ponsável pelas sensações durante essa ação pensada e realizada.
Todo esse movimento é inseparável, produzido simultaneamente
durante uma experiência de aprendizagem, pois como afirma Ells-
worth (2005, p. 1) é a fusão do pensar-sentir, a “sensação encarnada
de fazer sentido, a experiência vivida das nossas aprendizagens que
fazem o que chamamos de conhecimento”9.
A atuação conjunta entre corpo/mente/cérebro procura
romper com o entendimento de que o indivíduo pensa, age e sente
separadamente. Essa distinção é crucial para entender a centrali-

9 Passagem completa no original: What has already happened was once very
much alive: the thinking–feeling, the embodied sensation of making sense, the 110
lived experience of our learning selves that make the thing we call knowledge.
(RE)EXISTÊNCIAS JUVENIS NA ARTE DA VIDA

dade do trabalho das sensações para a produção de experiências


de aprendizagem, pois o acionamento de todos os sentidos é o
que permite ao sujeito se encontrar plenamente vivo e atuante em
um lugar. Para Ellsworth (2005, p. 17), a atuação do pensamento,
das ações e dos sentimentos são componentes convidativos para
vivenciar as experiências de aprendizagem, pois, ao se colocarem
simultaneamente em suspensão e animação, produzem no sujeito
“um intervalo de mudança, considerando uma pessoa que tem
sido para uma em que ainda não se transformou”10.
Mesmo que os músicos não utilizassem um “palco”, a sua
apresentação produzia uma cena noturna no parque que cons-
tituía um dos “altares” apontados por Maffesoli (2004) e onde
a interação a partir da música adquiria a função da celebração
prazerosa do que acontecia ali. A música, como uma sensação de
prazer estimulada pelas condições de sua execução naquele lugar,
possibilitava a aproximação dos participantes entre si, proporcio-
nando, ainda que momentaneamente, uma mudança significativa
na forma de percepção e interação no parque à noite.

10 No trecho original: They invite the sensation of a mind/brain/body simul-


taneously in both suspension and animation in the interval of change from the 111
person one has been to the person that one has yet to become.
(RE)EXISTÊNCIAS JUVENIS NA ARTE DA VIDA

Cena 2 - “POA me faz sorrir” e os “abraços grátis”

Fonte: Acervo pessoal do autor. Foto por Cristiano Guimarães


112
(RE)EXISTÊNCIAS JUVENIS NA ARTE DA VIDA

A nossa campanha se chama POA ME FAZ SORRIR e ela


consiste em fazer com que as pessoas se lembrem de alguns
momentos e alguns lugares que já as fizeram sorrir em Porto
Alegre. Então, a gente pede para as pessoas mandarem suas
memórias afetivas, mandarem o lugar que as faz felizes, para
que a gente possa mostrar para outras pessoas e talvez essas
outras pessoas tenham a iniciativa de viver, de conhecer, de
ir nesses lugares, de ter esperança de que Porto Alegre possa
ser um lugar bom de novo.

Em meio ao burburinho de vozes e envolto pelo som dos ins-


trumentos musicais tocados ao vivo no parque foi possível registrar
o depoimento de duas jovens que relatavam de forma empolgada
sua campanha. Embora considerando louvável o objetivo das reali-
zadoras do projeto “POA me faz sorrir”, visando aproximar pessoas
através de lembranças pessoais positivas em busca da “felicidade”
que teria se dissolvido em lugares públicos urbanos, que outras ex-
periências aquelas práticas e modos de convivências noturnas po-
deriam identificar? A mesma conduta por parte das meninas seria
possível durante uma escura e quase solitária noite naquele mesmo
espaço-tempo? Essas questões podem ser pensadas sob a perspecti-
va de que aquelas ações apontam para além de um evento noturno
em um parque público da cidade. O Parque Farroupilha à noite, ilu-
minado e ocupado por inúmeros outros sujeitos, transformara-se em
um lugar que proporciona experiências de aprendizagem coletivas e
distintas daquelas que são vividas durante o período diurno.
A entrega de um panfleto como possibilidade de aproxima-
ção, os olhares que se cruzam, a fala e escuta atenta são ações que
personificam o intento das meninas para com seus abordados, prá-
ticas realizadas através da interação que aquele lugar noturno pos-
sibilita. Na continuidade daqueles contatos (quase) demorados em
que os corpos se aproximavam em encontros fortuitos com os de-
mais sujeitos que também ocupam o parque, podemos vislumbrar
experiências de aprendizagem implicadas com os distintos forma-
tos que as Pedagogias da Resistência podem assumir na noite.
Talvez a procura do “lugar feliz” proposto pelas meninas nun-
ca fosse encontrado... porque ele já estava ali, presente naqueles en- 113
(RE)EXISTÊNCIAS JUVENIS NA ARTE DA VIDA

contros e sensações, que embora fugazes e efêmeros, pareciam iden-


tificar suas experiências. As “utopias” do lugar sonhado estavam no
viver ativo de possibilidades que podiam acontecer a cada encon-
tro com os outros naquele parque. O lugar da felicidade buscada,
imaginada e desejada, se realizava ali, onde cada aproximação, cada
prática produzia experiências pelas quais as meninas aprendiam a
resistir na noite. Elas, as meninas, é que fabricavam sorrisos, possi-
bilitando felicidades, apreendendo por meio de uma afortunada ex-
periência vivida naquele lugar. Como ação de resistência, as práticas
de ocupação realizadas pelas meninas seguiam preenchendo aquele
topos, que em outras noites era esvaziado pelo medo.
Durante a caminhada investigativa pelo parque foi possível
observar em diferentes grupos uma forma de intervenção urba-
na que tem se tornado bastante comum em lugares públicos da
cidade: os “abraços grátis”11. Distribuídos naquele local, o gesto
poderia parecer incomum e até arriscado caso fosse executado
durante outra noite em um parque público da cidade. Os meni-
nos dos “abraços grátis” divulgavam sua intenção com um car-
taz grafado à mão. Ação que, segundo seus realizadores, é usada
como forma de demonstrar tanto seu descontentamento frente
às tentativas para cercar com muros, grades ou outras delimita-
ções físicas aquele espaço público, quanto às constantes práticas
violentas e de vandalismo realizados ali durante a noite. Embora
singular e instantânea, a realização daquela ação parecia assumir
uma sutil forma de resistência frente à insegurança e ao medo que
provocam o esvaziamento dos espaços públicos noturnos para o
lazer, a diversão, as atividades laborais e qualquer outra prática
social que poderia ser realizada à noite naquele parque.
A potência que emerge desses contatos físicos, e “grátis”, ca-
racteriza aquilo que Maffesoli (2004, p. 40) denomina como “comu-
nhão sensível ou afetiva que vem substituir a sociedade puramente
utilitária”. Nessas experiências sociais repousa uma “razão sensí-
11 Freehugs ou “abraços grátis” é considerado um tipo de intervenção urbana e
surgiu em Sidney, na Austrália, com um único indivíduo conhecido como Juan
Mann que decidiu sair pelas ruas, oferecendo abraços a pessoas desconhecidas
em lugares públicos, usando um cartaz de papelão nas mãos com a mensagem 114
“freehugs” (GUSCHIKEN e MARTINS, 2012).
(RE)EXISTÊNCIAS JUVENIS NA ARTE DA VIDA

vel”, pois a sensibilidade deposita ênfase na vida e na experiência,


mas também no banal e no cotidiano, acentuando e pluralizando
as razões e as sensações. Para Maffesoli (2004), é na fusão da ex-
periência, da vivência e da coletividade que podemos encontrar o
fundamento e a legitimidade da razão que entra em sinergia com o
sensível. Os espaços e os tempos imaginados, sentidos e praticados
estão repletos de vivências cotidianas, de experiências plurais que
se fundem por meio do contato com o outro, pois “é essa experiên-
cia do outro, a experiência de sua vivência através da minha que
fundamenta a compreensão dos diferentes ‘mundos’ constitutivos
de um dado período” (MAFFESOLI, 2004, p. 42).
Além deles, outras pessoas utilizavam o contato do abraço
como uma iniciativa que parecia se expandir na tentativa de criar
um ambiente marcado pela vivência do toque, pela experiência de
uma sensação tátil onde o corpo era receptivo, distanciando-se de
condutas marcadas pela agressividade, aproximando-se, como afe-
tos que se espalhavam naquele espaço-tempo noturno. O abraço
mobiliza a aprendizagem do encontro; instaura o saber da procura
pelo outro; interrompe, ainda que brevemente, o ritmo alucinan-
te do espaço-tempo urbano. No parque à noite, a demora de um
abraço recuperava o instante de um encontro afetivo, um contato
sensível que atravessa e permanece no corpo do outro. Aprender a
capturar os “instantes eternos”, como Maffesoli (2003, p. 61) cha-
ma esses intervalos de suspensão e interrupção do tempo em que
saímos da “temporalidade racional e liberal que caracteriza a ativi-
dade diurna”. Na prática dos “abraços grátis” era preciso aprender
a arte da espera e a espera era apre(e)ndida, pois seus realizadores
estavam em um lugar que proporcionava o prolongamento dos ins-
tantes. Experiências de aprendizagem que escapam da insegurança
urbana imposta em espaços e tempos públicos noturnos, configu-
rando modos de viver individuais e coletivos, liberando outras po-
tencialidades para existir e resistir na noite.

115
(RE)EXISTÊNCIAS JUVENIS NA ARTE DA VIDA

Cena 3 – Práticas artesanais no parque à noite:


o “saber-fazer pessoal”

Em minha caminhada pelo parque, percebi a comercialização


de bebidas, alimentos e outros produtos fabricados artesanalmente
em alguns pontos do local. Cachaças, cervejas, café e outras bebidas e
comidas eram expostas durante o encontro noturno no parque, evi-
denciando uma produção em que as habilidades de cunho “pessoal”
ou “artesanal” assumiam preponderância, distanciando-se dos pro-
dutos industrializados e comercializados em outros lugares públicos.
Sarlo (2014) afirma que as irregularidades provam a singu-
laridade do artesanato, atestando os saberes de seus realizadores
e as qualidades daquilo que “leva a marca de uma mão”. Certeau
(1998), por sua vez, destaca que o conceito de “popular” foi inscrito
para identificar uma hierarquização entre o trabalho científico e
industrial sobre a produção que não tem por finalidade exclusiva o
lucro. Por isso, argumenta Certeau (1998), certas práticas e sabe-
res que são aprendidas e repassadas fora de tais sistemas laborais
vigentes têm sido relegados à “marginalidade” social, baseando-se
por outros modelos socioeconômicos. Nessa perspectiva, o Certeau
(1998, p. 88) considera as práticas produzidas de uma forma arte-
sanal como uma “arte” que subverte a força da economia contem-
porânea, fugindo dos tempos industriais e dos fins lucrativos, pois
suas táticas populares tanto desviam para seus fins próprios a “or-
dem efetiva das coisas” quanto instituem um “saber-fazer pessoal”.
Ao expandir a ideia de práticas artesanais, as perspectivas
de Certeau (1998) e Sarlo (2014) possibilitam entendê-las tanto
como outras “economias” que vão muito além de comercializa-
ção, mas como experiências, produzindo aprendizagens por meio
de interações sociais. Para Certeau (1998), a ordem de um fazer
pessoal, ao ser explorada tanto por um poder dominante quan-
to negada por discursos socialmente vigentes, desvia-se de sua
função institucional e é representada como arte. Por meio dessa
“representação” que as invenções do artesanato proporcionam,
insinua-se um estilo de “trocas sociais”, configurando-se como
uma singular forma de resistência vivida tanto como estética que 116
(RE)EXISTÊNCIAS JUVENIS NA ARTE DA VIDA

se aproxima da arte, quanto uma ética que nega os sentidos so-


cioeconômicos da ordem estabelecida (CERTEAU, 1998).
Produzidas durante a Serenata Iluminada realizada no Par-
que Farroupilha, as práticas artesanais funcionavam como poten-
tes ações de resistência. Ao distanciar-se do mundo dos objetos
idênticos fabricados por máquinas e produzidos dentro de uma
mesma lógica socioeconômica, a produção artesanal estava arti-
culada tanto às condições do lugar quanto pela realização daque-
le evento noturno. Articulação que permitia identificar tanto os
“fazeres” da produção de manufaturas, de artefatos, de objetos,
quanto os “saberes” que vão além da comercialização, constituin-
do-se como “trocas sociais” em um lugar noturno.
Se por um lado as produções artesanais exibiam naquele
lugar sua própria materialidade, exteriorizada por meio dos ob-
jetos, artefatos e produtos, por outro, podia-se encontrar ali com
as experiências de aprendizagem são vividas, identificando não
somente quem fabrica um artefato, mas quem os personaliza com
um fazer próprio, bem como aquele que participa no ato da tro-
ca. Ao funcionarem como “troca social” que estabeleciam outra
“economia”, as práticas artesanais observadas movimentavam
experiências de aprendizagem pela comunicação, reciprocidade,
amizade, vínculos, convívios e demais relações sociais à noite.
Nesse sentido, as práticas artesanais, como sugere Certeau
(1998), podem ser consideradas “práticas desviacionistas”, pois a
sua produção, personalização e formas de escambo estão articula-
das às condições que se apresentam em um lugar público à noite,
desviando-se das tradicionais lógicas comerciais. Da mesma for-
ma, seus praticantes não são apenas produtores ou fazedores de
objetos para formas de consumo caracterizadas pelas leis de mer-
cado contemporâneas. O que a composição daquela cena noturna
no parque permitiu identificar foram experiências vividas como
estratégias de relacionamentos, prevalecendo aproximações com
o outro pelas quais são aprendidos outros modos de convivência.
Como “desvio” da ordem estabelecida, as práticas artesanais no-
turnas funcionam como ações de resistência que buscam ocupar
lugares noturnos e públicos. 117
(RE)EXISTÊNCIAS JUVENIS NA ARTE DA VIDA

Considerações Finais

O que possuem em comum as cenas noturnas compostas


durante o evento Serenata Iluminada realizado no Parque Far-
roupilha? A música executada ao vivo, produzindo sensações de
segurança; a campanha “POA me faz sorrir” e os abraços grátis
atuando como possibilidade de viver e “transformar” o lugar; o
artesanato como um “saber-fazer pessoal” que se distancia da or-
dem de mercado padrão, expondo outras formas de produção e
consumo que movimentam trocas sociais. Cenas compostas pela
observação de práticas realizadas durante a ocupação noturna em
parque onde os encontros, as trocas, a aproximação física e os
relacionamentos afetivos proporcionavam a identificação de dis-
tintas e singulares experiências de aprendizagem.
Vivida simultaneamente e permitindo fusões entre o indi-
vidual e o coletivo, a experiência de ocupação no parque à noite
transformava, ainda que momentaneamente, um espaço perigoso
e assustador em um lugar de convivência pública, onde os parti-
cipantes podiam de sentir seguros. Ao se configurar como expe-
riência de aprendizagem, a sensação de segurança era vivida no
espaço-tempo de um lugar onde as demais noites são continua-
mente marcadas pelo medo. Sentir-se em segurança entre e com os
outros, proteger-se pela sensação do “estar junto” são estratégias
que funcionam como experiências possíveis para aprender a viver
e lidar com as condições que determinados lugares públicos pro-
porcionam durante a noite.
Na coletividade, na busca da união e interação por meio da
comunhão, transição sensível com o outro, os jovens ocupantes do
encontro aprendiam outras formas de relação consigo e com o ou-
tro por meio da transitoriedade dos espaços-tempos de um parque
à noite. As amizades, as trocas, os encontros, a música e as demais
interações instauram a potência dos convívios afetivos, do que é
sentido e praticado, produzindo experiências nas quais os parti-
cipantes aprendem a conviver em um lugar público notório pela
insegurança à noite. O parque adquiria outros sentidos, diferindo
da “violência” e do “medo” vivido em lugares públicos. Abraços, to- 118
(RE)EXISTÊNCIAS JUVENIS NA ARTE DA VIDA

ques, gestos, olhares, vozes, movimentam corpo, cérebro e mente,


para a produção de práticas e ativação de sentidos que em momen-
tos diurnos dificilmente seriam vividos da mesma forma.
Produzidos por meio dessas experiências, tais movimentos
possibilitam outras formas de aprendizagem, ampliando e di-
versificando os formatos de existir e de resistir frente aos cos-
tumeiros discursos de “violência” e “insegurança” que limitam
a vida social e pública, principalmente em seu período noturno.
Analisar e identificar tais experiências de aprendizagem foi o que
possibilitou dar visibilidade ao funcionamento das pedagogias da
resistência, mostrando como outros formatos de pensar, de agir
e de sentir são colocados em ação em lugares noturnos da cida-
de. Experiências vividas individual ou coletivamente relaciona-
das com a materialização de ações sociais cotidianas, a aquisição
de conhecimentos e saberes, bem como com tudo aquilo que é
vivido, praticado e sentido. São experiências que proporcionam
aprendizagens, pois, articulam modos de ser e estar que colocam
os sujeitos “radicalmente em relação para si mesmo, para os ou-
tros e para o mundo” (ELLSWORTH, 2005, p. 2). Essa relação,
esse encontro com os outros e com mundo proporcionado pelas
nossas experiências, é o que nos direciona, orienta-nos, conduzin-
do nossos pensamentos, ações e sentimentos, funcionando como
modos pedagógicos de existência. Durante o evento realizado no
parque Farroupilha, os encontros possibilitaram outros modos
de condução da existência, funcionaram como modos pedagógi-
cos moldando outros modos de atuação e de condução dos jovens
frente ao esvaziamento da vida urbana noturna e pública. As Pe-
dagogias da Resistência na noite são inseparáveis, e estão articu-
ladas com as aprendizagens vividas naquele lugar à noite.
Por fim, é importante esclarecer que a ideia de pedagogia
apresentada neste texto se configura nas especificidades dos es-
paços e dos tempos noturnos investigados na cidade de Porto
Alegre, Brasil. Sua produção e funcionamento se encontram in-
dubitavelmente articulados às condições e características dos lu-
gares noturnos selecionados e analisados, bem como às práticas
realizadas pelos sujeitos nesses lugares. Assim, o desafio de dar 119
(RE)EXISTÊNCIAS JUVENIS NA ARTE DA VIDA

visibilidade a pedagogias atuantes durante um evento noturno


somente se tornou possível através da identificação das experiên-
cias de aprendizagem vividas tanto pelas relações dos sujeitos
entre si, quanto pelas condições proporcionadas em um parque
público urbano à noite.

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(RE)EXISTÊNCIAS JUVENIS NA ARTE DA VIDA

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121
CONDIÇÃO DE JUVENTUDE
E A POTÊNCIA ÉTICO-POLÍTICA
DOS LEVANTES

Viviane Castro Camozzato

Não temos, a toda hora, que levantar nossos


tantos fardos de chumbo? Não precisamos, para
tanto, levantar a nós mesmos e, forçosamente –
de tão vasto o fardo e de tão pesado o chumbo –,
levantarmo-nos todos juntos? Não há uma escala
única para os levantes: eles vão do mais minúsculo
gesto de recuo ao mais gigantesco movimento de
protesto (DIDI-HUBERMAN, 2017, p. 16)

Vivemos em um espaço-tempo forçosamente grotesco, em


que os fardos e os chumbos vêm de muitas frentes. Não pare-
ce haver abrigo seguro e, quando pensamos o contrário, logo tal
abrigo tende a desmoronar e evidenciar uma condição assusta-
dora: não há – e parece não ser possível vir a haver – segurança
absoluta. Mas há, pelo contrário, potências que se articulam, que
agem por contágio e nos reavivam frente à dormência e à aparen-
temente apatia predominante.
Frente a tal contexto, espero que a citação que abre este
texto ajude a armar um modo de interrogar as articulações entre
uma certa “condição de juventude” e a potência ético-política dos
levantes. Ao afirmar que “Não há uma escala única para os levan-
tes: eles vão do mais minúsculo gesto de recuo ao mais gigantes-
co movimento de protesto”, Didi-Huberman (2017, p. 16) incita
a pensar, a meu ver, numa condição de juventude – como possi-
bilidade, como devir – que implanta, como arte de dar forma à
própria vida, a coragem de articular resistências e (re)existências.
Articulação possível, cabe destacar, com parte das juventudes que
tem a coragem de reivindicar e criar vidas outras a partir de uma 123
(RE)EXISTÊNCIAS JUVENIS NA ARTE DA VIDA

cotidianidade em que a coragem de dizer a verdade e viver a par-


tir desse dito é marca e condição para a singularização.
Para operacionalizar tal discussão, trago o vídeo-manifes-
to Juventude é Revolução (SILVA, 2015), em que os coletivos
1

artísticos “Sarau Preto no Branco” e “Sarau Verso em Versos”


apresentam a reivindicação de que a juventude precisa de mais
justiça e igualdade social, tendo o conhecimento como condição
para uma vida mais igualitária e justa na sociedade. Se a juventu-
de se apresenta como revolução é porque o acesso à informação e
ao conhecimento são compreendidos como passíveis de alterarem
o regime social atual, incluindo as existências nele situadas.
Nesse vídeo-manifesto somos levados a transitar por entre
escadas e vielas de uma das muitas periferias de São Paulo, Brasil.
Periferia de um Brasil profundamente desigual, que tem cravado
na sua história diferentes processos que intentaram construir um
“mito da democracia racial”, assim como a noção de que o povo
brasileiro seria pacífico “por natureza”, além do rastro da centrali-
zação dos senhores da terra, da exploração dos trabalhadores e tra-
balhadoras e a consequente concentração de renda que tem atra-
vessado tempos e espaços de nosso país, dentre outros aspectos.
No início de Juventude é Revolução somos conduzidos
por um jovem que aparece em cena, sozinho, descendo uma viela.
A câmera está posta em um ponto interessante: no cruzamento
entre duas paredes. Desse ângulo não vemos o que tem após esse
cruzamento, mas apenas o encontro visual entre esses dois pon-
tos. Nesse momento assistimos este jovem descendo e avançando
sob a câmera – e sob nós, espectadores –, pronunciando: “O es-
tudo é o escudo. Conhecimento é libertador. E a poesia, ah, ah...
Salva vidas...”. Repete essa letra uma, duas, três, quatro vezes.
Na quinta vez mais três pessoas se juntam (dois homens e uma
mulher) e, nesse ponto de articulação, se cumprimentam com as
mãos e com abraços e prosseguem o deslocamento.

1 Compreendido, aqui, como uma manifestação pública feita em forma de vídeo. Os


manifestos costumam ser utilizados para declarações críticas acerca de temas e ques-
tões específicas. Importante considerar que na forma de vídeo os manifestos se ampli- 124
ficam no tempo e no espaço, ao mesmo tempo em que podem atingir grupos variados.
(RE)EXISTÊNCIAS JUVENIS NA ARTE DA VIDA

A meu ver, nessa abertura temos dois movimentos impor-


tantes para pensarmos na potência ético-política dos levantes, a
saber:

Movimento 1: o estudo como escudo, como possibilidade de


proteção frente aos “fardos” e “chumbos”. Em suma, o estudo
como possibilidade de reconhecer o estado em que se está e,
ao mesmo tempo, criar condições para a reinvenção da própria
existência num plano que é duplo: individual e coletivo.
125
(RE)EXISTÊNCIAS JUVENIS NA ARTE DA VIDA

Recordo, tendo isso em vista, o quanto a pedagogia é a “li-


nha de medida interior”, como diz Ferraro (2008). Isto pressupõe
compreender que a pedagogia e a ética são indissociáveis. Ferraro
(2008, p. 29) argumenta acerca disso ao salientar que a pedago-
gia é fruto de uma construção grega em um mesmo período em
que a ética era reafirmada a fim de produzir uma “revisão das
relações sociais na qual estava envolvida a Tragédia”. Ao tratar
disso, Ferraro (2008, p. 28) argumenta sobre o quanto a Tragé-
dia grega associava a um pagamento de dívidas e culpas do pai,
como um castigo para as gerações mais novas. As novas relações
sociais, revisadas, passaram a reafirmar o lugar pedagógico da
ética, uma vez que ela “é o discurso, a palavra, a reflexão acerca
do éthos, que, especificando-se como discurso de gênero e de gera-
ção, como passagem e transmissão geracional, convida a refletir
sobre o passado e o presente”. Enquanto a Tragédia lida com o
destino, a ética “conduz à qualidade das relações” (FERRARO,
2008, p. 29) e a um modo de assinalar no plano das existências
um cuidado que é, também, geracional.
Ao tratar de uma “condição de juventude”, sinalizo que as
juventudes não são homogêneas, visto que respondem a discursi-
vidades múltiplas, disformes, e que retraem ou expandem as suas
possibilidades de experimentação e criação no plano social. Aliás,
creio que podemos considerar que a condição de juventude sinaliza-
da pelo Juventude é Revolução se encontra mais próxima a uma
reativação constante do éthos: esse compreendido como um “den-
tro”, “o lugar no qual alguém se refugia, o abrigo”, mas também “a
guarida, o lugar no qual alguém se protege” (FERRARO, 2008, p.
31). Em relação a essas associações a um “dentro”, o “fora”, o “exte-
rior” também se destaca. A ética – bem como a pedagogia, enquan-
to indissociáveis, como já referido – diz respeito a “uma linha que
assinala um limite ao interior de algo que pode se tornar em bem
e em mal. Por isso, é a linha de medida” (FERRARO, 2008, p. 31).
Ora, as distinções entre o bem e o mal não são dadas, mas
construídas. Assim, vejo a atuação mútua de uma ética não ape-
nas individual, mas em relação com uma ética coletiva. No vídeo-
-manifesto a reivindicação do “estudo como escudo” se fortalece 126
(RE)EXISTÊNCIAS JUVENIS NA ARTE DA VIDA

na medida em que há um movimento que é, sobretudo, coletivo.


Jovens que reivindicam a uma geração periférica e fruto da enor-
me desigualdade social do Brasil ações voltadas ao presente e ao
futuro. Jovens que interrogam e que, ao fazerem isso, propiciam
que nós, espectadores, interroguemos juntos.
A pedagogia como “linha de medida interior”, como des-
tacado anteriormente, implica em pensar na relação pedagógica
estabelecida com esse movimento do vídeo-manifesto Juventude
é Revolução. A responsabilidade ética do vídeo-manifesto se rea-
firma uma vez que há sempre uma margem de indiscernibilidade
em qualquer relação pedagógica. Ou seja, trata-se de uma relação
sempre insegura, aberta, embora repleta de intencionalidades.
Trata-se, sobretudo, de um tipo de relação sem garantias. Con-
tudo, para mim se apresenta um eterno retorno: se a Juventude
é Revolução é justamente porque a indissociabilidade da ética e
da pedagogia se reafirmam. O individual e o coletivo se articulam
mutuamente. E isso, ainda mais, quando se trata de um debate
geracional em que se reafirma a vida ao pronunciar que há juven-
tudes constantemente inquietas, interrogadoras e que enfrentam
as agruras do tempo em que vivem. Um tempo que não está dado,
mas aberto a incessantes pequenas e potentes micro-revoluções.
É a partir dessa “condição de juventude” como renovação do
mundo e como contestação deste mesmo mundo que faz sentido
pensar e reafirmar “o estudo como escudo” e o “conhecimento como
libertador”. Uma aproximação à Paulo Freire2, para mim, se faz pre-
ciso, na medida em que ele traz o quanto somos sujeitos inacabados e
que, dando-nos conta disso, temos possibilidade de intervir no mun-
do e transformá-lo. Como fica salientado na bela passagem a seguir:

2 Faço uma relação, aqui, com o quanto esse importante intelectual brasileiro, re-
conhecido mundialmente por suas contribuições para a educação, vem sendo per-
seguido em nosso país. A reafirmação do estudo e do conhecimento como possibi-
lidade de questionar a realidade e reinventá-la estão comprometidos, atualmente,
no Brasil, por uma suposta “expertise” que reafirma a opinião não embasada, a
barbárie em forma de falas vazias e de afirmações infinitas que desacreditam os
questionamentos que produzem deslocamentos, inquietudes e que são condições
para um incessante repensar e se reinventar. As interdições da “linha de medida 127
interior” estão a todo vapor, infelizmente.
(RE)EXISTÊNCIAS JUVENIS NA ARTE DA VIDA

A matriz da esperança é a mesma da educabilidade do ser


humano: o inacabamento de seu ser de que se tornou
consciente. Seria uma agressiva contradição se, inacabado e
consciente do inacabamento, o ser humano não se inserisse
num permanente processo de esperançosa busca. Este
processo é a educação (FREIRE, 2000, p. 114).

Estamos vendo no Brasil – em conexão com alguns outros


lugares do mundo, aliás, mas de modos diferentes – a construção
discursiva de uma desvalorização da ciência, da cultura e da edu-
cação3. Grupos conservadores vêm investido maciçamente em
uma reformulação dos sentidos e significados sobre termos como
educação, currículo, ensino, docência, entre outros. Além disso,
tem sido recorrente uma cruzada moral à uma entrada de temas
transversais como gênero, sexualidade, mas também questões de
políticas de identidade de grupos diversos sociais, entre outras
discussões, na educação escolar e em outros setores da vida so-
cial. Considerando tal contexto, acredito que a reafirmação por
jovens negros e da periferia em relação à importância do estudo
se reafirma como um movimento e um gesto potente de levante.
Afinal, isso coaduna com a noção de que há brechas possíveis
dentro do regime social que podem, sim, serem desbravadas na
medida em que o estudo servir para desacomodar o instituído
como marca genuína de uma educação que ensine a ser presença
no mundo (FREIRE, 2000).
A reivindicação do lugar do estudo para os jovens da pe-
riferia pode aparecer como uma forma de desobediência ao que
vem se armando. Principalmente se pensado como um gesto de
levante frente a um país marcadamente desigual, como já desta-
cado, que associa de muitos e diferentes modos os jovens pobres e
marcados pela diferença em seus corpos – pela raça, pelos gestos,
pelo valor simbólico de suas vestimentas etc. – a uma condição de
3 Tem havido um forte desprezo por esse tripé no país. Opiniões vazias de perso-
nalidades políticas com um respaldo de manifestantes que pregam uma cruzada
de ódio a tudo o que representa o estudo, a construção criteriosa e a disseminação
de sentidos abertos pela arte. Aspirar ao conhecimento e ao embasamento cien-
tífico tem sido associado a uma predileção ao que chamam, erroneamente, como 128
“ideologia de esquerda”.
(RE)EXISTÊNCIAS JUVENIS NA ARTE DA VIDA

existência não acessível aos valores do estudo e do conhecimen-


to, aumentando a separação entre “nós” e “eles”, que é marca tão
cruel e permanente no Brasil.
Que a juventude pobre, negra e periférica brasileira possa
reivindicar o estudo e o conhecimento, vendo-os como liberta-
dores, é um movimento de levante que quero, aqui, demarcar – e
isso como campo de força, trincheira de luta em que reconhe-
cer que o acesso e a construção do conhecimento é condição de
mobilizar para as possibilidades dos levantes. Um espaço e um
modo de existência associado a uma transformação em relação a
si mesmo se apresenta frente às potencialidades que o estudo e o
conhecimento permitem. Um movimento de se abrir ao mundo e
ser, do mesmo modo, aberto por ele.

Movimento 2: se “a poesia, ah, ah... salva vidas”, como fica


manifestado, é porque a articulação com a arte não aparece no
vídeo-manifesto à toa, mas como condição para a singularização.
Ora, isso se deve justamente porque a arte, aqui, é entendida
como: (a) instigadora/disparadora do pensamento; (b) algo
que tem relação com a própria vida, na medida em que já dizia
Foucault, a partir dos gregos, sobre fazer da própria vida uma
obra de arte. A poesia, o vídeo-manifesto em si, evidenciam um
certo tipo de atitude frente a vida. Atitude de não passividade,
mas de resistência e (re)existência.

É certo que a arte é campo amplo de possibilidades de re-


invenção. As fecundas contribuições presentes na obra Levantes,
organizada por Didi-Huberman (2017), a partir da exposição de
mesmo nome que chegou ao Brasil junto com o livro serviram até
o momento como ponto de discussão transversal que, embora não
tenha sido exaustivamente aproveitada, espero que deixe fagu-
lhas neste texto. Por intermédio de uma intensa problematização
artística, social e filosófica acerca dos levantes, os textos escritos
e imagéticos de Levantes (Didi-Huberman, 2017) nos conduzem
a pensar o quanto há reivindicações feitas por coletivos, grupos
e indivíduos que questionam o estabelecido. Tais reivindicações
expressam-se por palavras, ações e gestos que não partem e nem 129
(RE)EXISTÊNCIAS JUVENIS NA ARTE DA VIDA

tem em comum lutas somente individuais, ensimesmadas. Pelo


contrário, evidenciam pautas por condições mais igualitárias e
dignas a grupos. Tais palavras, gestos e ações são marcados por
uma ético-política que implica, especialmente, um processo ativo
de construção de si em relação com os outros.
Há, assim, a colocação de formas de submissão em questão.
Os saberes-poderes são questionados e tem seu fio condutor na
potência de uma arte e crítica que se associam às investidas de
dar forma à própria vida. Só que, nesse caso, dar arte à própria
vida em conjunto, em relação com os outros. Eis aí, para mim,
uma importante conexão com as (re)existências na arte da vida.
Estilizar a própria vida é algo que faz ainda mais sentido quando
em sintonia com outras estilizações de si. Se um levante é potente
ele o é, ainda mais, quando as reivindicações passam por um nós
plural. Nem eu, nem ele. Mas um nós pronunciável e que age de
forma ética e política ao fazer jus à reinvenção de modos de vida.
Condição de juventude e ético-política dos levantes, posto que o
eu e o nós – tal como a ética e a pedagogia – são indissociáveis.
Em Juventude é Revolução há cumprimentos e uma ca-
minhada em conjunto. Não há partidas, mas mais um estar jun-
to, com chegadas e deslocamentos. Há, ainda, uma permanente
entoação coletiva evidenciando o quanto a coragem da verdade
exige um falar franco (GROS, 2004).

130
(RE)EXISTÊNCIAS JUVENIS NA ARTE DA VIDA

Essa movimentação de si com os outros no vídeo-manifes-


to, a qual apresenta um deslocamento real, físico, de um trajeto
a outro de uma viela periférica de São Paulo, também propor-
ciona um deslocamento interno. Uma movimentação que se dá
na própria constituição de si. E essa “linha de medida interior”
(FERRARO, 2008) me parece tão intensa seja para os próprios
envolvidos com a vídeo-manifestação quanto para quem, como
eu – como nós! –, estiver aberto às sensações num movimento
que é de abertura de si.
O trajeto evidencia, em alguns momentos, o gesto de punhos
cerrados para cima, como destacado na imagem anterior. Punhos
cerrados ao alto se articulam, em nossa memória imagética, aos sig-
nificados históricos que esse gesto tem representado. Lembro aqui,
mais especificamente, que em 1968 os atletas negros Tommie Smith
e John Carlos clamaram no pódio dos Jogos Olímpicos do México
a igualdade de direitos civis ao protestarem contra o preconceito
racial fortemente enraizado nos Estados Unidos. Após ganharem
medalhas Tommie e John subiram ao pódio e, durante a execução
do hino nacional de seu país, abaixaram a cabeça e colocaram ao alto
os seus punhos com uma luva preta. Tal gesto tem sido recorren-
temente associado, ainda, ao movimento dos Panteras Negras, que
consagraram o punho erguido à luta antirracista pelo mundo.
Trata-se, sobretudo, de um gesto que age como um dispara-
dor de acionamentos de imagens em série. Os punhos cerrados se
encadeiam a outros gestos que indicam o quanto o corpo é, tam-
bém, um texto. Por isso, em Juventude é Revolução o modo de
se movimentar, a posição dos braços, o jeito de olhar ou mesmo os
óculos para não capturar o jeito e a direção do olhar, entre outros,
são indícios de um corpo cultural que se expõe e se marca como
lugar de luta, de revolta, de resistência e (re)existência.
Um corpo cultural porque somos construídos sociocultu-
ralmente. Quando selecionei a expressão “condição de juventude”
para a movimentação desta discussão é porque sabemos o quan-
to ser/estar jovem é mais do que uma aparência física. O termo
“condição” faz, ao mesmo tempo, uma seleção, uma escolha. Quis
me aproximar de uma condição de juventude que se inquieta com 131
(RE)EXISTÊNCIAS JUVENIS NA ARTE DA VIDA

o campo do vivido. E isso por um motivo muito simples: não acho


que devemos jogar às crianças e jovens a responsabilidade pelos
descaminhos do mundo e das escolhas que fazemos. Entretanto,
ao mesmo tempo me inquieta e entristece constatar tanta inter-
dição no campo de possibilidades do ser/estar jovem. E digo isso
pensando no quanto os processos de normalização têm sido mui-
to fortes nas investidas para tentar desautorizar escolhas de vida
que tenham um furor pelo não normativo e pela criação de frestas
incessantes, de escolhas de liberdade.
E aqui sinalizo ao que Butler (2017, p. 26) refere como os atos
de um levante, que implicam “atos de se agrupar, mover, rebelar e
resistir”. Se pensarmos de forma conjuntural, em que medida temos
aprendizagens na esfera sociocultural que incitem a esse tipo de pro-
cesso? Junto com Silva (2018, p. 23), assumo a prudência de afir-
mar que compreendo as aprendizagens menos como “aquisição” ou
mesmo “transmissão”, mas “mais como experiências vividas como
‘interação’ e ‘transição’, como um processo de ‘diálogo’ com o outro
e com lugares onde corpo, mente e cérebro atuam conjuntamente na
experiência da aprendizagem e nos modos de condução dos sujeitos”.
A meu ver, portanto, o vídeo-manifesto Juventude é Revo-
lução se configura como um lugar de aprendizagem na medida em
que “diferentes experiências de si, com os outros e o mundo são co-
locadas em operação” (SILVA, 2018, p. 101). Silva (2018, p. 130) de-
marca o quanto “os lugares de aprendizagem subvertem sua função e
posicionamento fixo e instituído pelo pensamento racional, atuando
como interstícios na metrópole, promovendo aberturas para outros
espaços-tempos”. No vídeo-manifesto somos transportados para a
abertura a outros modos de compreender as Juventudes, a Educação,
o Conhecimento, o Estado, os Sentidos das Insurgências, a Esperan-
ça, em suma, outros modos de habitarmos os espaços-tempos.
Se com Silva (2018) articulo, aqui, experiência e lugares de
aprendizagem é porque a vida social contemporânea tem um for-
te componente pedagógico. Há décadas que vemos, no ocidente, a
amplitude do pedagógico: Aprender a ser (FAURE et Al., 1972),
fruto de um relatório da Comissão Internacional para o Desen-
volvimento da Educação, da UNESCO, já demarcava o quanto 132
(RE)EXISTÊNCIAS JUVENIS NA ARTE DA VIDA

as transformações técnico-científicas ampliaram os lugares do


aprender; Beillerot (1985), em A sociedade pedagógica, compôs
um panorama sobre o quanto nossas sociedades intencionavam,
fortemente, serem formadoras, o que desdobrou e inflacionou a
pedagogia, entre outros estudos que poderia destacar tanto do
exterior quanto do Brasil. Tais análises se atrelam, aliás, às dis-
cussões do campo dos Estudos Culturais em Educação sobre o
âmbito do que é chamado de pedagogias culturais. Isto é, a com-
preensão de que há “pedagogias atuantes em uma multiplicidade
de espaços, para além daqueles que delimitam territórios escola-
res ou escolarizados” (ANDRADE e COSTA, 2017, p. 3).
Ao analisar um vídeo-manifesto neste texto, não posso afir-
mar que a produção e disseminação do vídeo, com seus compo-
nentes discursivos, seja um levante. Mas posso, sim, pensar que
temos uma condição de juventude em aparição nesse vídeo-mani-
festo, e que fazem circular muitos indícios/traços/gestos de re-
sistência e (re)existência. E, afinal, para que nos sublevemos, não
é preciso condições específicas para isso? Um tipo de juventude
que é composta por estratégias de luta e estilização da existência
me parece uma força vital para modos outros de pensar e agir. E
isso com uma atualização importante: com os recursos necessá-
rios para atingir o maior número possível de pessoas via vídeo e
sua disseminação em diferentes plataformas.
Ellsworth (2005) comenta acerca da “força pedagógica” pre-
sente em diferentes lugares de aprendizagem – música, exposições,
filmes, entre outros – em que, mediante práticas e sensações os
sujeitos entrariam em uma relação de aprendizagem fruto de uma
conjunção potente entre corpo e mente. A meu ver, em Juventude
é Revolução tem uma “força pedagógica” que se mescla a um “fu-
ror pedagógico” a quem consegue conectar o seu próprio corpo e
mente com o vídeo-manifesto. Há, em suma, uma intencionalidade
educativa no vídeo-manifesto que possibilita abrir os sentidos para
as problemáticas que atravessam a produção e as condições concre-
tas de vida de parte importante e significativa dos jovens.

*** 133
(RE)EXISTÊNCIAS JUVENIS NA ARTE DA VIDA

Quero inserir a potência de pensar, mais uma vez, sobre a


questão da geração. No deslocamento visto no vídeo-manifesto,
inicialmente uma criança aparece no fundo do vídeo. Após, outras
se juntam ao grupo. Figuras enigmáticas, talvez. Mas, sobretudo,
figuras que trazem consigo a esperança de que o gesto do levante
seja conduzido adiante. Afinal, podemos pensar a educação como
um conjunto de processos amplos e diversos que produzem os
sujeitos no tecido social. Arendt (2009, p. 223) é comumente cita-
da ao referir que “a essência da educação é a natalidade, o fato de
que seres nascem para o mundo.” Parece fazer sentido, do mesmo
modo, pensar que produções como a de Juventude é Revolução
possibilitem a abertura para que, mediante as articulações entre
corpo e mente destacadas anteriormente, um furor e inquietação
se façam presentes para desalojar os espectadores do instituído.

No prosseguimento do vídeo, mais pessoas despontam.


Nessa movimentação de pessoas que vão se aproximando vejo o
gesto do levante e a noção de que é pela resistência que tornamos
possível a sobrevivência de nossa vontade de sermos sujeitos que
imaginam e sonham, apesar de tempos por demais sombrios. Se
considerarmos que os levantes dizem respeito a insurreições, ou
seja, a sublevações contras as ordens estabelecidas, o que implica
em oposição, rebeldia e, por que não, revolução – ainda que mi-
cro-revoluções diárias –, o vídeo-manifesto e a ação por contágio 134
(RE)EXISTÊNCIAS JUVENIS NA ARTE DA VIDA

que acontece no mesmo – com crianças sendo produzidas com a


força pedagógica do mesmo – agem tal como um coquetel molo-
tov que produz efeitos e deixa seus rastros.
Em aparição temos uma condição de juventude que resiste,
diz as suas palavras, levanta os seus fardos. Uma juventude que
não é simplesmente espectadora, mas agente em favor da potência
ético-política de resistir como condição para reexistir. Construir
outras formas de representação a partir da crítica, da coragem de
dizer a verdade e da reivindicação por escolher os modos de ser
representado aparece, assim, como possibilidade de alteridade. E,
ainda, como um legado para as gerações que advém.
Juventude é Revolução! Em relação a isso, o vídeo traz o
seguinte grito:

Ah, muito prazer!


Sou favela
Nascido e criado entre becos e vielas
O estado homicida fez de mim um suicida
Soldado do inferno
Narrador da era do holocausto
Juventude do gueto
Com informação
Perigo pro estado é nossa articulação

Repetem isso algumas vezes. E, nesse momento, mais para


o final do vídeo-manifesto, vão descendo corporalmente, baixan-
do... Nessa etapa eles são vários reunidos – crianças, jovens, adul-
tos. O tom vai baixando ao mesmo tempo. E de repente: Juventu-
de é Revolução! Repetido muitas vezes, com as pessoas subindo,
pulando, felizes, tom alto.
Um sopro de esperança frente a uma condição de juventude
como potencializadora de levantes, como condição de possibilida-
de de juventudes não totalmente capturadas pelos saberes-pode-
res do Capital, do mercado da aparência e de uma vida em que o
grande propósito é ter mais do que ser. Muito mais, justamente,
juventudes que criam gestos, palavras e ações que se desdobram e
agem por contaminação: os presentes e as diferentes gerações, os 135
(RE)EXISTÊNCIAS JUVENIS NA ARTE DA VIDA

espectadores de lá e de cá da tela, que como eu – nós, quem sabe?


– reafirmam o desejo de juventudes que não impeçam o precioso
trabalho de reinventar a si mesmo com os demais.
No final do vídeo-manifesto isso ecoa. E nessa cena aparece
eles se levantando, saltando, evidenciando, em suma, toda a potên-
cia de jovens que não se conformam com o estritamente planeja-
do, conformado... Jovens insubmissos, insurgentes. Ou seja, o que
aparece é uma – das muitas – juventude possível: aquela juventu-
de que se articula com a revolução, com os pequenos levantes que
sublevam os poderes instituídos. Nesse caso, poderes que marcam
os corpos e as almas de uma juventude que vive nas favelas e re-
giões pobres do país e que sofrem, diariamente, com os estigmas
de seus corpos-sujeito não refletirem uma condição de juventude
incessantemente representada de forma normativa e padronizada
pelos meios de comunicação e informação, por exemplo.
Desse modo, se juventude é revolução, é porque ela pode se
assentar em uma resistência ética. Uma resistência que precisa
ter a coragem de falar francamente: estado homicida, ser soldado no
inferno. Um Estado propositalmente lento e ineficaz para a cons-
trução efetiva de políticas públicas em nosso país. Mas, ao mesmo
tempo, uma juventude não conformada, mas ética e politicamente
ativa. Afinal, jogam a máxima de que a juventude com informa-
ção é perigo pro estado se articulada. E perigo porque juventude
articulada e com conhecimento é pirotécnica4. É condição para
levantes. Quem sabe não possamos ser nós, também, mais próxi-
mos da revolução?

4 “Eu sou um pirotécnico. Fabrico alguma coisa que serve, finalmente, para um
cerco, uma guerra, uma destruição. Não sou a favor da destruição, mas sou a fa-
vor de que se possa passar, de que se possa avançar, de que se possa fazer caírem
os muros. Um pirotécnico é, inicialmente, um geólogo. Ele olha as camadas do
terreno, as dobras, as falhas. O que é fácil cavar? O que vi resistir? Observa de
que maneira as fortalezas estão implantadas. Perscruta os relevos que podem ser
utilizados para esconder-se ou lançar-se de assalto. Uma vez tudo isto bem de-
limitado, resta o experimental, o tatear. Enviam-se informes de reconhecimento,
alocam-se vigias, mandam-se fazer relatórios. Define-se, em seguida, a tática que 136
será empregada” (FOUCAULT, 2006, p. 69-70).
(RE)EXISTÊNCIAS JUVENIS NA ARTE DA VIDA

Referências
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gogias culturais: invenção, disseminação e usos. Educação em re-
vista, v. 33, 11-23, 2017.
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BUTLER, J. Levante. In: DIDI-HUBERMAN, G. (Org.). Levantes.
São Paulo: Edições SESC São Paulo, 2017.
DIDI-HUBERMAN, G. (Org.). Levantes. São Paulo: Edições SESC
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FAURE, E. et Al. Aprender a ser. Lisboa: Portugal, 1972.
FERRARO, G. A linha, a medida e a espera do futuro interior. In:
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FOUCAULT, M. Eu sou um pirotécnico. In: POL-DROIT, R. Mi-
chel Foucault, entrevistas. São Paulo: Graal, 2006.
FREIRE, P. Pedagogia da indignação: cartas pedagógicas e ou-
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GROS, F. (Org.). Foucault: a coragem da verdade. São Paulo: Pa-
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SILVA, E. L. Pedagogias da Noite: experiências de aprendiza-
gem em lugares noturnos de Porto Alegre/RS. [Tese de Douto-
rado]. Porto Alegre: UFRGS, 2018.
SILVA, G. Juventude é revolução. Brasil, 2015 (6 min).
137
SOBRE OS ORGANIZADORES

Eloenes Lima da Silva


Doutor e Mestre em Educação (UFRGS).
Graduado em História e Especialista em
História Contemporânea (FAPA). Participante
dos grupos de pesquisa Núcleo de Estudos
Currículo, Cultura e Sociedade (NECCSO/
UFRGS) e DESLOGOGIAS – Educação,
Culturas e Pedagogias da Universidade
Estadual do Rio Grande do Sul (UERGS).
Professor das redes de ensino pública e privada
do Rio Grande do Sul.
E-mail: eloenessilva@gmail.com

Viviane Castro Camozzato


Doutora e Mestre em Educação (UFRGS);
licenciada em Pedagogia; Professora Adjunta da
UERGS. Coordenadora do Grupo de Pesquisa
DESLOGOGIAS – Educação, Culturas e
Pedagogias (UERGS/CNPq). Pesquisadora do
Núcleo de Estudos sobre Currículo, Cultura e
Sociedade (NECCSO/UFRGS/CNPq).
E-mail: vicamozzato@gmail.com

Marta Campos de Quadros


Pós-doutora (UNESP e UFRGS), Doutora
(UFRGS) e Mestre (ULBRA) em Educação,
professora substituta do Departamento de
Educação da FCT UNESP. Pesquisadora do
Núcleo de Estudos sobre Currículo, Cultura
e Sociedade (UFRGS), Grupo de Pesquisa
Formação de Professores, Políticas Pública
e Espaço Escolar (UNESP) e Grupo de
Pesquisa Geografia e Juventudes (UNESP).
Membro do Fórum Permanente de Educação
Municipal de Presidente Prudente (SP).
138
E-mail: radiocapelinha2@gmail.com
SOBRE OS AUTORES

Alessandro Varela dos Santos

Doutor e Mestre em Educação pela Universidade Luterana do


Brasil - ULBRA; jornalista e licenciado em História. Pesquisador
do Programa de Pós-graduação em Educação – Estudos Culturais
em Educação; integrante do grupo de Pesquisa DESLOGOGIAS
– Educação, Culturas e Pedagogias (UERGS/CNPq). Professor de
Ensino Médio da rede pública e privada.
E-mail: alevarela7575@gmail.com

Ana Paula de Araújo Cunha

Graduada em Letras – Licenciatura em Português e Inglês (UFPEL).


Mestre e Doutora em Letras - Linguística Aplicada / Aquisição da
Linguagem - (UFRGS). Aperfeiçoamento no International English
Institute (Nashville-Tennessee) e no Institute for Training and
Development (Amherst-Massachussetts), nos Estados Unidos.
Pós-Doutorado em Letras (UCPel). Docente do Programa de Pós-
Graduação em Educação (IFSUL). Líder do Grupo de Pesquisa
Linguagens Verbo/Visuais e Tecnologias.
E-mail: cpead.anapcunha@gmail.com

Andreza da Rosa Borchardt

Graduada em Engenharia Elétrica pelo Instituto Federal de


Educação Sul-riograndense. Mestranda em Engenharia Elétrica
com ênfase em Telecomunicações e Telemática pela Universidade
Estadual de Campinas. Atuou como bolsista iniciação científica –
CNPQ – entre 2017 e 2018.
E- mail: dezaborchardt@hotmail.com
139
(RE)EXISTÊNCIAS JUVENIS NA ARTE DA VIDA

Angela Dillmann Nunes Bicca

Graduada em Ciências com Habilitação em Física (UCPel).


Especialista em Lógica e Filosofia da Ciência (UCPel). Mestre e
Doutora em Educação pela linha de pesquisa Estudos Culturais em
Educação (PPGEDU/UFRGS). Docente dos cursos de Licenciatura
em Computação, Especialização em Educação, Especialização em
Linguagens Verbo-visuais e do Programa de Pós em Educação do
IFSUL. Líder do Grupo de Estudos em Educação e Cultura.
E-mail: angela.bicca@hotmail.com

Fabiano Hanauer Abegg

Doutor e Mestre em Educação (PPGEDU/UFRGS) na linha de


pesquisa Arte, Linguagem, Currículo. Graduado em Licenciatura
Plena em Filosofia (FAFIMC). Especialista em Estudos Africanos
e Afro-brasileiros (UNILASALLE). Professor de Filosofia,
História e Arte. É membro do grupo de estudo e pesquisa em Arte
e Docência - ARTEVERSA.
E-mail: hanauerabegg@gmail.com

Liége Barbosa

Graduada em Comunicação Social com habilitação em Jornalismo


(UCPel). Especialista em Ciências da Comunicação (UCPel).
Mestre em Educação (ULBRA). Doutoranda em Educação
(bolsista CNPq) na linha de pesquisa Estudos Culturais em
Educação (PPGEDU/UFRGS). Integrante do Núcleo de
Estudos sobre Currículo, Cultura e Sociedade (NECCSO/
UFRGS). Suas atividades de pesquisa focalizam temáticas que
envolvem conexões entre educação, juventude, mídias, literatura
e cultura contemporânea.
E-mail: liegebarbosa@gmail.com

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(RE)EXISTÊNCIAS JUVENIS NA ARTE DA VIDA

Machado Bantu

Rodrigo Abrahão Machado Gomes ou apenas Machado Bantu


nasceu em Porto alegre/RS e reside em Alvorada desde início
da adolescência, época que despertou escrever seus primeiros
versos. Tem 44 anos, filho de uma cozinheira aposentada e de um
motorista também aposentado. Cursou Publicidade e Propaganda
como ensino técnico e cursou Letras e Políticas Públicas na
UFRGS ambas ainda por completar.
E-mail: machadobantu@gmail.com

Marcilene Forechi

Doutora em Educação pelo Programa de Pós-Graduação em


Educação (PPGEdu) da Universidade Federal do Rio Grande do
Sul (UFRGS); Mestre em Educação pela Universidade Federal do
Espírito Santo (Ufes); bacharel em Comunicação Social - Jornalismo
pela mesma Universidade. Professora conteudista do Grupo Sagah/
Editora A, gestora cultural na Casa dos Açores do Estado do Rio
Grande do Sul e empreendedora.
E-mail: mfbernardez@gmail.com

Marco Antonio Bin

Pesquisador, docente e escritor. Doutor em Ciências Sociais pela


PUC de São Paulo. Membro participante do Grupo de Pesquisa
em Memória, Comunicação e Consumo (MNEMON) vinculado
ao PPGCOM da ESPM-SP. Como escritor, publicou Histórias
Invisíveis, em coautoria com Mônica Nunes (Ed. Horizonte, 2011) e
A Paixão Inútil (Ed. Patuá, 2019).
E-mail: marcobin@gmail.com

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(RE)EXISTÊNCIAS JUVENIS NA ARTE DA VIDA

Maria Conceição Rosa dos Santos

Nascida em Bagé (RS), formada em Pedagogia pela Universidade


Castelo Branco, integrante do Grupo de Poetas Cultura Sul e
MAB (Mulheres Artistas de Bagé) tendo participado de vários
Projetos em Antologias, Manifestos Poéticos, Fanzines e Saraus.
Considera-se Poeta-Cidadã em construção, as temáticas feminista
e de resistência marcam fortemente sua alma e sua escrita.
Através das palavras vê a grande possibilidade de levar mensagem
de ressignificação de conceitos.
E-mail: mariacrsantos_@hotmail.com

Pedro Dziedzinski

É natural de Barra do Ribeiro, Rio Grande do Sul. Publicou em


2017 o livro Frêmito-genitália, finalista do prêmio AGES de livro do
ano, pela editora Le Chien e Pealo, em 2019, pela editora Ornitor-
rinco. Atualmente reside em Porto Alegre e prepara a publicação de
seu terceiro poemário intitulado Contrato do Esquecimento.
E-mail: pedrodziedzinski@hotmail.com

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