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Revista de Filosofia
Programa de Educação Tutorial – PET-Filosofia da UFSJ
MEC/SESu/DEPEM
Departamento da Filosofia e Métodos – DFIME
Coordenadoria do Curso de Filosofia – COFIL
Número 4 – 2011
Anual
ISSN: 1984-0039
Empório São João Del Rei Nº. 4 p.1 – 70. Jan. a Dez./2011
ISSN: 1984-0039 conformidade com a proposta da Revista.
Número: 4. As teses expostas nos artigos são de inteira
Ano: 2011. responsabilidade de seus autores.
Distribuidor: Grupo PET Ciências Humanas,
Estética e Artes do curso de Filosofia da UFSJ Correspondências – críticas, sugestões,
Capa: Robson Pereira. colaborações, permutas etc. – deve-se dirigir à:
Tiragem: 500 exemplares Empório – Revista de Filosofia
Periodicidade: Anual Universidade Federal de São João del-Rei
Laboratório de Estética Ártemis, Grupo PET-
Filosofia da UFSJ
A Revista Empório está aberta a colaboração Campus Dom Bosco
externa, mas não se responsabiliza pela Telefone: (32) 3379-2486
publicação de todos os artigos que lhe são e-mail: revistaemporio@yahoo.com.br
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responsáveis por verificar se os artigos estão em CEP: 36.301-160
REVISTA DE FILOSOFIA Profa. Drª Magda Velloso Tollentino
COORDENAÇÃO GERAL
Profa. Dra. Glória M.F. Ribeiro (DFIME) CAPA
Robson Pereira (Egresso do curso de
COMISSÃO EDITORIAL Filosofia/UFSJ)
Grupo PET - Ciências Humanas, Estética e Artes
do Curso de Filosofia da UFSJ.
REITOR
CONSELHO EDITORIAL Prof. Dr. Helvécio Luís Reis
Apresentação...................................................................................................................05
Glória Ribeiro (DFIME/UFSJ).
My Private Apocalypse………………………...................................................................52
Prof. Dr. Gedley Braga (DAUAP/UFSJ).
APRESENTAÇÃO
Glória Ribeiro
DFIME – UFSJ
O Artista Inconfessável.
Resumo:
Embasado na ideia de que ensino de filosofia e transmissão de informação filosófica não são
sinônimos, de que a filosofia na escola deve estar atenta a todo um contexto de sentidos e
significações próprios do agir educativo e que não basta saber filosofia para saber promover
ações pedagógicas na área, o artigo explora a necessidade de pensarmos atentamente sobre a
filosofia e sua face pedagógica. Considerando que o tema costuma ser relegado ao
esquecimento, quando não é envolvido por uma atmosfera de mitos e por um número
considerável de preconceitos e equívocos, re/visitamos aqui seu sentido maior, seu porquê e para
que dentro da sociedade e do tempo por nós vividos. A ideia é apontar para o fato de que na
escola se exigem especificidades ao ato de ensinar que assumem novos contornos principalmente
depois do erguer de todas as considerações a respeito dos Quatro Pilares da Educação do Futuro
da UNESCO e de toda bagagem de discussão pedagógica que desde Paulo Freire apontam para
a necessidade da criticidade, da problematização da realidade e da reflexão apurada. Isso como
instâncias de sentido nas quais todas as áreas do saber devem mergulhar antes de traçarem suas
metas e objetivos.
Palavras-chave: Ensino de filosofia. Pedagógica. Aprendizagem filosófica.
a. Primeiras palavras
Em linhas gerais, faço aqui uma discussão a respeito do ensino de filosofia e dos
contornos gerais que o tipificam. A ideia é contribuir com as muitas questões que viemos fazendo,
principalmente depois da obrigatoriedade de se incluir a filosofia nos currículos do ensino médio.
Inclusão esta que, por sinal, é ainda a marca de tempos pretéritos em que se desprezou toda e
1
Dr. em Filosofia, professor da Universidade Federal de Pernambuco, professor PPG-FIL/UFPE, membro da Comissão
de Direitos Humanos Dom Helder Câmara e do Núcleo de Ciência e Cultura de Paz UFPE. Coordenador do GT-
Levinas ANPOF e do Centro Brasileiro de Estudos em Emmanuel Levinas. sandro_sayao@hotmail.com
2
Merleau-Ponty, M. Fenomenologia da percepção. São Paulo: Martins Fontes, 1999.
qualquer área do conhecimento que estimulasse o pensamento crítico e a reflexão apurada. De
um modo sutil, espero ainda provocar a discussão sobre o nosso papel enquanto filósofos
brasileiros, isso inspirado pelas excelentes questões e argumentos de Gonzalo Palácios da
Universidade Federal de Goiás, presentes no livro Filosofia e sociedade: perspectivas para o
ensino de filosofia3, que entre outras coisas chama atenção para a necessidade de abandonarmos
o papel de intérpretes e comentadores preocupados com o pensamento alheio, indiferentes ao
nosso corpo cultural e linguístico, para que possamos assumir o cultivo original das ideias, ou
seja, a reflexão filosófica por excelência.4
Como todos sabem, a filosofia e a sociologia foram tiradas dos currículos escolares
num momento político específico do Brasil, em que toda a crítica e subversão do pensamento
eram absolutamente rechaçadas. A ditadura militar, que a partir do golpe de 1964 instituiu uma
série de restrições à nação, com a desculpa da proteção da soberania nacional, decretou um
atraso de décadas ao povo brasileiro e ao pensar filosófico em nosso país. Atraso que se reflete
na infantilidade da nação frente a questões políticas, filosóficas, sociais entre outras, e na grande
precariedade do contexto educacional brasileiro, que em estado vegetativo morre lentamente. A
filosofia, a sociologia, as ciências políticas e as artes, sofreram golpes agudos que ainda se
arrastam até hoje. Não é atoa que em muitos casos algumas delas ainda se mantenham inócuas,
cultivando discursos pouco significativos ou aburguesados, absolutamente distantes das
demandas da nação. De um modo geral, gravita sobre nós a concepção de que devemos ser
“apenas” especialistas em autores estrangeiros, historiadores da filosofia, como se não fosse
possível ao Brasil fazer filosofia como fazem os norte-americanos, os franceses ou alemães.
Além disso, outro elemento importante se agrega a este processo de desvalorização,
principalmente da filosofia, que é exatamente as demandas atuais em que a superficialidade e a
transitoriedade do pensamento, são marcas de um contexto vivido em que tudo se resolve
facilmente. Vivemos sobre a égide do fluido, como nos diz o sociólogo polonês Zygmunt Bauman.
Tudo se desfaz e se desmancha no ar. E se aceitar a transitoriedade é algo positivo e válido, já
que todos aceitamos que a vida é realmente fluidez, por outro o pensamento fluido na sua pior
expressão se transforma numa atitude etérea, onde a opinião toma o lugar do pensamento
elaborado e os ditos comuns, na forma de preconceitos e crendices, assumem lugar de destaque.
No Brasil passamos por um desses momentos. Como uma nação que tem pouco acesso à leitura
e que é pouco estimulada para tal, nos entregamos facilmente à superficialidade. Note-se a
crescente quantidade de igrejas evangélicas que se alastram pelo território nacional
mercantilizando pactos com o divino e cultuando modos de pensar medievais, que demonstram a
puerilidade de nosso enfrentamento do real, e os grandes bolsões de miserabilidade intelectiva
mascaradas pelos dados do Inep e MEC que se contentam com o crescimento do número dos
3
Sardi, Sérgio, Gonzaga, Draiton e Carbonara, Vanderlei. (orgs). Filosofia e sociedade: perspectivas para o ensino de
filosofia. Ijuí: Ed. Unijuí,2007.
4
Destaco também a dedicação e o trabalho desenvolvido pelo professor Dr. Sérgio Augusto Sardi da PUCRS, que tem
contribuído sobremaneira com a discussão.
analfabetos funcionais.
Somos uma nação vulnerável por conta da precariedade da educação. A fragilidade do
sistema educacional brasileiro, que não precisa de especialistas para mostrar sua agonia, gesta
bolsões de miséria intelectual, que nos torna incapazes de pensar e resolver definitivamente
alguns dos nossos maiores problemas, além de nos manter prisioneiros de formas de pensar
arraigadas em estruturas míticas e religiosas. Somos hoje uma grande economia no mundo,
segundo os últimos dados do FMI, a sexta economia mundial, nosso território abunda em riquezas
naturais e humanas, não há como negar a criatividade, a riqueza de nossa cultura, e a coragem
de nosso povo; por outro lado, não afirmamos nossos maiores desejos de justiça e equidade
social porque nos mantemos prisioneiros de vícios e comportamentos toscos que facilmente
seriam abandonados se tivéssemos uma formação educativa adequada. A destruição de nossos
recursos naturais e da nossa própria cultura é resultado de um povo entregue a agonia do
egoísmo, às teias de um pensamento rudimentar que vive ainda prisioneiro das castas sociais,
nas quais para uns é reservado as glórias do mundo e para outros é relegado o mais penoso do
viver.
Obviamente sabemos que o esclarecimento nos moldes da modernidade, que no
passado seguiu os tramites de uma razão instrumental, não conduziu o mundo a estados de bem
viver e de solidariedade como o prometido. As luzes da racionalidade, a sabedoria cultivada,
foram em alguns momentos gestoras da própria agonia humana. Basta lembrar das duas grandes
guerras do início do século passado e de como as maiores atrocidades conhecidas surgiram a
partir de um povo esclarecido como a Alemanha. Neste sentido, não faço aqui uma defesa do
esclarecimento nos seus moldes iluministas, nem na formação educacional como adestramento
do pensamento para o cultivo de determinadas verdades que, como sabemos, são também
gestoras da barbárie (barbárie esclarecida gestoras de uma negra claridade). Um saber carente
autocrítica, um pensamento sem o atravessamento da responsabilidade infinita por todas as
formas de vida e o engendrar da reflexão e do conhecimento sem o alargamento das consciências
para além das tramas do egoísmo, são incapazes de instaurar a sabedoria que queremos. O amor
pela sabedoria, que Francis Bacon soube tão bem aproximar do poder ao afirmar que saber é
poder, não nos servirá para muita coisa, a não ser criar ainda mais meios de exploração e
destruição ambiental e social. O que defendo é exatamente o consolidar de uma sabedoria do
amor, ou seja, de meios nos quais possamos utilizar nossos recursos psíquicos, nossa inteligência
e razão para instaurar o desenvolvimento moral e intelectual que queremos. E por isso é preciso
pensar sobre a educação.
De um modo geral, professores e gestores encontram-se numa confusão imensa sobre
o que fazer na escola e sobre que caminho seguir. Há uma total falta de orientação, que se reflete
em aulas pouco instigantes e em momentos educacionais absolutamente inócuos, em que as
palavras acabam soltas ao vento sem reverberação e sem a promoção da reflexão, o que se
agrava quando falamos do ensino de Filosofia.
Embora desde Kant saibamos que não é possível ensinar filosofia, que a própria
transitoriedade do tempo nos impede de transmiti-la e que o filosofar deveria ser nossa grande
meta, insistimos na verbosidade da reprodução, na passividade da transmissão e no repasse
irrefletido de dados.5 Em linhas gerais, gravita ainda sobre nós o erro de se confundir
educação/ensino e transmissão de informação, o que se deve à manutenção de concepções
tradicionais que tomam a prática pedagógica como uma instância verticalizada de processos onde
há quem transmita a informação e quem a receba passivamente.
Em pleno século XXI ainda apostamos na linearidade dos processos e no cultivo da
reprodução da bagagem cultural como grande viés de sentido, o que é algo extremamente
presente principalmente com quem trabalha filosofia. Como filosofar exige na sua quase totalidade
o diálogo argumentativo com a tradição, confunde-se, por vezes, a necessidade do encontro com
o passado, o escavar de outros ditos e concepções, com o próprio ato de filosofar. Como já o
disse acima, não são raros os historiadores da filosofia entre nós, a prática da repetição é nossa
grande metodologia.
Nesta margem tênue, em que o ato e o talento da reflexão apurada, mediada pela
justificação e argumentação crítica devem ser estimulados e potencializados, muito há que se
dizer e argumentar. Há que se pensar sobre a prática do filósofo, suas implicações e
peculiaridades para posteriormente considerar a atividade pedagógica que em algum momento o
compete. A meu ver, não há filósofo que não seja ao mesmo tempo educador. Na base do agir
filosófico, mesmo que em dimensões especulativas pouco práticas, há uma intencionalidade
professoral de quem deseja algo para um outro, que se faz para o outro, mesmo que, por vezes,
de forma torta ou confusa, mesmo que de forma não assumida e não declarada. Obviamente que
assumo aqui um viés de sentido socrático não sofístico, em que fazer filosofia é transcender os
encantos da palavra, para assumir que filosofar é contribuir com o abandono humano das suas
muitas cavernas, na desmistificação dos seus muitos reinos e ilusões, mesmo que isso signifique
a crítica da metafísica e da ontologia como condição primeira, projeto como venho
desempenhando auxiliado pelas questões propostas pelo filósofo lituano/francês Emmanuel
Levinas e por um grupo de amigos como Ricardo Timm de Souza da PUCRS e Marcelo Fabri e
Paulo Costa da Federal de Santa Maria/RS.
Penso que o interessamento pela verdade é o interessamento pedagógico por
excelência. Na base da pretensão pela autenticidade e pela busca de sentidos, há um viés de
sentido educacional implícito, mesmo que de forma indireta. Deste modo, importa, de saída,
considerar a diferença radical entre o que seja pedagogia e pedagógica, isso a fim de alargar
nossos horizontes compreensivos a ponto de perceber a filosofia como uma atividade eminente
educativa, mesmo que não necessariamente escolar, mesmo que não diretamente envolvida com
as questões da ensinagem e da aprendizagem enquanto processos.
5
“...nunca se realizou uma obra filosófica que fosse duradoura em todas as suas partes. Por isso, não se pode em
absoluto aprender filosofia, porque ela ainda não existe.” Kant. Crítica da razão pura. São Paulo: Abril Cultural,
1983. p.407
b. Pedagogia e Pedagógica
c. Filosofia e Educação
A filosofia é o lugar da palavra, do discurso, da articulação das ideias pela via da razão
entremeada pela linguagem. Nela a contração do pensamento é distendida e tencionada a ponto
de aspirar o que não é ela, de pressentir suas próprias margens e de buscar um outro lado, que
por vias não propriamente intelectivas a possam ter traumatizado, erguendo suspeitas e gestando
intuições. Filosofar acaba sendo o distender em dito do dizer da vida, de suas reverberações e
possibilidades e deve ela também desacomodar, inquietar e desagregar. Há no fazer filosófico um
contorno de desadequação por excelência, em que pela palavra e pela articulação das ideias
desagregam-se verdades, por vezes, intocadas e mitificadas. O filósofo habita esta fenda na qual
as certezas são sempre fragilizadas pelo toque sutil da dúvida, o que lhe aproxima profundamente
de um tempo em que nada é pronto, em que as coisas estão sempre em construção. Um tempo
que sente o esgotamento dos dias e da obviedade e aspira por um outro lugar, por um de outro
modo, por um ainda não. O filósofo filosofa para um outro tempo, porque ele está absurdamente
ligado ao seu tempo. Sua importância como fermento das sociedades vem exatamente daí. Sua
face mais aguda é pressentir esgotamentos a ponto de intuir o novo.
No entanto, se habitar o tempo significa encontrar-se com a própria necessidade de
desagregação do imediato, do conhecido e do alcançável, de não aceitar sacralizações ou
verdades prontas, isso se faz na perspectiva de um contexto de convivência. O filósofo pensa a
partir de um determinado lugar que lhe dá sustentação e desde o qual suas palavras serão
acolhidas. E este lugar, este espaço de sociabilidade desde o qual ecoam suas palavras vai
indicar exatamente a tônica de relação que indicamos acima. Há aí um fim pedagógico como
inscrição de sentido elementar já no horizonte de sentido primevo, no qual se desdobraria o
próprio amor pela sabedoria, que desde muito justifica o fazer filosófico. E não é atoa que todos os
primeiros filósofos foram sempre grandes educadores e fundadores de grandes escolas
filosóficas.
Reforço que não falo ainda da relação entre filosofia e ensino como normalmente a
entendemos, que não me refiro ainda à relação entre filosofia e escola, mas do próprio fato de que
fazer filosofia é já estar dentro de um contexto de produção do conhecimento (poiesis) desde o
qual reverbera a construção de novos pensares e reflexões, assim como de novas posturas e
disposições frente ao mundo – isso na perspectiva de um outro, para-o-outro. A ideia é mostrar
que não há distinção entre o que move o filósofo na produção do conhecimento e o que move um
educador em sua presença diante do mundo. Em ambos o mote é o mesmo, em ambos se está
no horizonte da relação mestre/discípulo que caracteriza a pedagógica, embora com movimentos
peculiares e com características distintas de dimensões e amplitude diferenciadas; se, por um
lado, a filosofia habita o logos e o discurso, por outro, está sempre assentada sobre um horizonte
de sentido pedagógico de fundo.
Assim, se o lugar que a filosofia habita está definido, se o discurso é seu território e o
logos que lhe vivifica nasce dentro de determinadas disposições que a caracterizam como nascida
do espanto, da dúvida sistemática, da necessidade de transcender a opinião comum, assim como
do gestar e tencionar de novas possibilidades de se estar no mundo, tudo isto como corpus
significativo de um movimento teórico igualmente significativo, caberia agora falar da filosofia e do
seu encontro com outros processos pedagógicos. E neste ponto adentraria na questão específica
da filosofia na escola, ou melhor, da educação filosófica. O desafio agora seria discutir esse
“corpo” peculiar que se configura entre o topos e logos e o lugar/não-lugar histórico e cultural em
que esta se manifesta, para assim pensar em como esta pode ser compreendida junto a outros
processos educativos, no que se convencionou chamar de ensino de filosofia.
Primeiramente importa considerar que estamos diante de uma área de silêncio,
normalmente desconsiderada e não dita dentro das próprias academias universitárias.
Normalmente silenciamos a este respeito, mesmo dentro das faculdades e dos departamentos de
filosofia. Isso por não estarmos habituados a perguntar pelo ensino de filosofia e, muito menos, a
respeito da filosofia e sua relação com as escolas de ensino fundamental e médio.
Note-se que apenas em 11 de agosto de 2006, transcorridos algumas décadas de
abertura política, tivemos a homologação do Parecer CEB/CNE nº 38/2006 da lei 9.394/966 que
instituiu como obrigatória a implementação da filosofia e sociologia nos currículos escolares. Essa
obrigatoriedade fez com que não só déssemos o espaço merecido a duas áreas fundamentais à
formação humana, como fez com que filósofos e faculdades de filosofia tivessem que pensar
6
Estabelece as Diretrizes e Bases da Educação Nacional. (Título I – Da Educação; Título II – Dos princípios e fins da
educação nacional; Título III – Do direito à educação e do dever de educar (atrs 6º e 7º); Título IV – Da organização da
educação nacional (Art 8º ao 20);Título V – Dos níveis e das modalidades de educação e ensino (art 21 ao 60) e Título
VI – (arts. 61,62,64,65 e 67)
sobre o que fazer na escola. Sobre seu papel junto aos outros processos pedagógicos.
É importante considerar que normalmente as discussões que se fazem a esse respeito
se dão fora da casa filosófica, sendo essa tarefa repassada, em muitos casos, aos pedagogos,
como se fosse só deles o desafio de pensar sobre o ensino e, neste caso, sobre o ensino de
filosofia. Normalmente, o que se ouve é que ensino e educação são questões de didática, de
metodologia do ensino, de práticas pedagógicas – questões próprias do como ensinar e que, em
razão disso, não seria tarefa dos filósofos pensarem sobre o ensino de filosofia.
O interessante, no entanto, é que na sua quase totalidade os departamentos e
faculdades de filosofia no Brasil são os responsáveis pela formação de profissionais que vão atuar
como professores de filosofia nas escolas, tanto no ensino fundamental como médio. Embora todo
filósofo seja na sua quase totalidade professor, é como se fosse um demérito, uma descida na
escala hierárquica do status científico/acadêmico/filosófico, discutir, debater e se preocupar com a
questão. Isso quando não se assume uma postura de absoluto descaso e desleixo. E aqui falo
daqueles que não só se eximem da discussão, mas preferem dizer, mesmo sendo professores,
que isso não lhes compete e interessa. Isso sem esquecer ainda daqueles que assumem uma
postura antipedagógica como meta de vida, cultuando um profundo ostracismo a fim de se
sentirem mais, se fazendo quase inacessíveis. Isso por conta de desejo de se tornarem distantes,
de não estarem ao alcance – são os que se fazem “difíceis” para aparentarem complexidade para,
deste modo, se sentirem especiais, exóticos e por aí vai.
Considerando que no Brasil em sua maioria os cursos de filosofia são cursos de
licenciatura, que têm por mote formar profissionais voltados não só ao agir filosófico investigativo
e especulativo, mas profissionais capazes de estabelecer meios à aprendizagem, não refletir
seriamente sobre a questão é no mínimo irresponsabilidade. Assim como é ingenuidade acreditar
que os movimentos de produção do conhecimento, baseados na pesquisa e na investigação são
suficientes para fazer educação.
Paira sobre nós uma arraigada e ultrapassada concepção na qual se confunde
educação com transmissão de informação, o que desemboca na ideia de que basta saber
filosofia, acrescente-se a isto, saber e dominar a história da filosofia, para saber-se criar condições
para a aprendizagem em filosofia. O que é um grave equívoco. Embora uma não prescinda da
outra, elas não são a mesma coisa. O problema é quando as confundimos achando que essas
duas instâncias são no fundo a mesma coisa e que basta ter informação para que
automaticamente se possa repassá-las e, com isso, instaurar um contexto educativo por
excelência – o que é uma grande falácia.7 E aqui adentramos num contexto de grande confusão
que concerne ao fato de associarmos o que seja educação com os processos de transmissão de
dados informativos; de erroneamente acharmos que a educação filosófica se restringe ao repasse
de conhecimento de história da filosofia.
7
Vejam que falo aqui no repasse de informação, o que é algo absolutamente superado quando falamos nos novos
contornos da educação hoje. Utilizo esta expressão apenas como passagem, posteriormente a substituo.
Hoje em educação se fala na perspectiva do estímulo de habilidades e competências,
na dimensão de respeito à liberdade de todas as formas de ser no mundo, isso considerando
diferentes imersões em diferentes instâncias do conhecimento. Rompeu-se a unicidade do saber e
este se especializou e se pulverizou, apresentando diferentes necessidades e possibilidades e
hoje o que se pensa e fala em educação é exatamente a necessidade da formação plena do
humano, cuja visão de mundo e de realidade se dê sob diferentes perspectivas. Por isso
caminhamos para a inter e transdisciplinaridade.
A diferenciação das áreas e sua valorização na formação dos indivíduos, nos colocou
diante do fato de que educar não é criar prosélitos. O que vai desembocar no fato de que os
processos pedagógicos em filosofia não podem ter como única meta a formação de filósofos. Há
que se fazer filosofia, ou melhor, saber instaurar processos pedagógicos em filosofia, no que
chamo ser criação e contextos de alfabetização filosófica, para quem não deseja ser filósofo. E a
necessidade de se trabalhar filosofia para não filósofos, assim como uma ciência para não
cientistas ou uma matemática para não matemáticos, foi o que nos remeteu à necessidade de
pensar o “porquê” e o “para quê” de cada uma delas dentro do contexto educativo.
Via complexidade, a filosofia foi convidada a mergulhar num universo onde o que
interessa não é apenas um tipo de habilidade, mas múltiplas habilidades. Fala-se na escola, ao
menos a de ensino fundamental e médio, como uma escola formadora de homens e mulheres
plenos com visões múltiplas e não uma escola de filósofos. Essa é a grande questão. A partir
disso, a filosofia teve que pensar sobre que tipo de movimentos dela mesma seriam úteis dentro
da perspectiva da formação dos indivíduos das mais diferentes áreas. E aqui se suplantou o mero
interesse por conteúdos, ou mesmo a identificação com determinadas correntes do pensamento,
para se falar em movimentos da própria área do conhecimento capazes de fomentar habilidades e
competências indispensáveis na formação humana. E, por isso, fazer filosofia ou saber produzir
filosofia, tornou-se não necessariamente saber instaurar processos de ensino e aprendizagem
promotores do que hoje se pensa ser a educação ou o ensino. Sabemos da não rara existência de
ótimos pesquisadores que são péssimos educadores e professores desastrados. Saber instaurar
processos pedagógicos capazes de criar um determinado contexto educativo, em nosso caso
característico do processo de educação filosófica, exige muito mais do que o conhecimento de
uma determinada área. Para instaurar um contexto educativo há que se ter mais do que uma boa
bagagem cultural acumulada.
Como se pode perceber há aqui um número significativo de elementos que por sua
sinuosidade exigem atenção, para discuti-los farei em itens a defesa dos meus argumentos, penso
desta forma torná-los mais palpáveis – mais pedagógicos.
2. Saber filosófico e saber pedagógico: E, por isso, importa discutir a diferença dos
processos de produção do conhecimento filosófico e da própria atitude pedagógica em filosofia,
normalmente costumamos confundir ambas as coisas. A especulação filosófica no que concerne à
articulação e análise conceitual, o trato com teorias e categorias que está na base da produção do
conhecimento em filosofia, não significa por si mesma que se saiba instituir e promover a
pedagógica que falamos. Produzir conhecimento, no campo específico da filosofa hoje, não é de
forma alguma sinônimo de saber criar condições pedagógicas nas quais se instaura o que
comumente chamamos de Educação Filosófica. Embora a atividade filosófica tenha em sua base
a relação dual mestre/discípulo, que é base para se pensar a educação, não há como negar que
devem se associar a isto todo um contorno que agora diz respeito exatamente ao fazer educativo
específico na sala de aula, nas escolas. Se o que se delineou no inicio foi o reconhecimento de
que filosofar é no fundo estar conectado a pretensões de uma pedagógica, por outro não se pode
desconsiderar que em termos da filosofia na escola dever-se-á pensar agora em peculiaridades
em formas de um fazer específico, não descentrados dos ideais maiores da filosofia enquanto
área do conhecimento, mas que estes estejam atentos agora às singularidades das interações
específicas que esta vai estabelecer quando dentro do contexto escolar. Veja que aqui estou
chamando atenção agora ao próprio modo de fazer, aos recursos metodológicos.
Referências Bibliográficas:
ADORNO, HORKHEIMER. Dialética do esclarecimento. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1985.
DUSSEL, Enrique. Para uma ética da libertação latino-americana. Vol. III Erótica e pedagógica.
São Paulo: Edições Loyola, 1982.
DELORS (org.). Educação um tesouro a descobrir. UNESCO, 1998.
FREIRE, Paulo. Pedagogia do Oprimido. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987.
KANT. Crítica da razão pura. São Paulo: Abril Cultural, 1983.
MERLEAU-PONTY, M. Fenomenologia da percepção. São Paulo: Martins Fontes, 1999.
SAYÃO, S. A educação e a necessidade de novos territórios existenciais ao humano. In. Sardi
(org.) Filosofia e Sociedade. Ijuí: Editora Unijuí, 2007.
SARDI, DRAITON e CARBONARA (orgs). Filosofia e sociedade: perspectivas para o ensino de
filosofia. Ijuí: Ed. Unijuí,2007.
10
Construo em alguns artigos já publicados no Brasil a ideia da educação como espaço de abertura ao novo.
KANT E A CONCEPÇÃO DO HOMEM COMO “CIDADÃO DE DOIS MUNDOS”:
A CONSCILIAÇÃO ENTRE NATUREZA E LIBERDADE
Vanessa Brun Bicalho
Mestranda em Filosofia
Orientador: Dr. Luciano Carlos Utteich
UNIOESTE
Resumo: O artigo tem como objetivo apresentar a concepção kantiana do homem como “cidadão
de dois mundos”, isto é, aquela aparente idéia dualista fundada a partir da doutrina do Idealismo
Transcendental do Sujeito kantiano. É desde a compreensão da razão em sentido tríduo (como
razão teórica, razão especulativa e razão prática) que podemos conceber de que modo a
distinção efetuada entre “o que podemos conhecer” e “o que podemos pensar” reflete ou produz
consequências em relação à questão acerca “do que podemos fazer”. Ao falar do homem como
cidadão tanto do mundo sensível como do mundo inteligível, Kant é incisivo em assinalar o modo
pelo qual deve ser adotada tal perspectiva. Como opções há um modo de adotá-la como se
tratando de dois mundos ontologicamente separados ou somente como dois pontos de vista
conceitualmente adotados. O decorrer do estudo demonstrará que o filósofo admite somente uma
distinção conceitual, possível desde a esfera do puro pensamento. Para tanto, essa questão será
apresentada como atrelada ao problema da elucidação kantiana acerca da compatibilidade entre
natureza e liberdade no interior da filosofia crítica, além de demarcar as possibilidades de admitir
uma liberdade prática em prol do pensamento transcendental da mesma.
Considerações Iniciais
A exposição do desenvolvimento do conceito transcendental e prático da liberdade, na
justificativa de contrapor-se ao problema da causalidade condicionada da natureza, é o que torna
possível compreender a teoria kantiana da “dupla natureza” do sujeito. Quando Kant fala do
homem como “cidadão de dois mundos” refere-se, intrinsecamente, à distinção apresentada na
Dialética Transcendental da Crítica da Razão Pura (Kritik der reinen Vernunft, 1781)11 entre
causalidade pela natureza e causalidade pela liberdade, na qual admite a possibilidade de
compatibilizar natureza e liberdade no interior de seu sistema.
Ocorre que a afirmação da liberdade transcendental como uma espontaneidade absoluta
capaz de iniciar em si e por si mesma a totalidade da relação causal na esfera dos fenômenos
não tem sua realidade demonstrada por um recuo à experiência, porque se trata de um conceito
transcendental da razão (Vernunft), que não carece de nenhuma intuição e nem se aplica a
objetos da experiência por meio de categorias.
Diante do impasse de justificar a realidade desta causalidade incondicionada criada pela
11
A obra intitulada Crítica da Razão Pura doravante será chamada sempre de modo abreviado: CRP.
razão, Kant abre para as implicações práticas do conceito de liberdade, em detrimento do efeito
meramente especulativo do conceito transcendental da mesma. Ele funda assim a liberdade
prática sob o pensamento do seu conceito transcendental, em visto de que, dirá, a “supressão da
liberdade transcendental anularia simultaneamente toda a liberdade prática” (KANT, 2010, p.
464).
Apresenta-se nisso a indispensabilidade de se compreender o desenvolvimento do
conceito de liberdade a fim de se justificar o pensamento da “dupla natureza” do homem. Neste
sentido, a fundamentação kantiana dos “objetos” de experiência que a razão teórica (Verstand)
conhece é necessária e indispensável, mas por si não é suficiente em face do interesse e da
necessidade da razão (Vernunft) na busca de totalidade e sistematicidade. No dizer de Kant, a
possibilidade de se fundar outro uso da razão, fora do mundo dos fenômenos, torna capaz a
satisfação daquela necessidade ao se tratar de uma esfera de coisas puramente inteligíveis, cujo
uso não entra em conflito com o que se pode conhecer no seu exercício teórico. É daí que a
distinção entre “mundo sensível” e “mundo inteligível” traz a compatibilidade entre a natureza,
pensada pelo entendimento (Verstand), e a liberdade, pensada pela razão (Vernunft), na medida
em que o pensamento nestes domínios se constitui de modo diferente, sendo antes compatíveis
e não contraditórios, já que tratam-se de dois pontos de vista conceitualmente adotados.
12
A causalidade da natureza, exprime Kant, “repousa em condições de tempo, e o estado precedente, se sempre
tivesse sido, não teria produzido um efeito que se mostra pela primeira vez no tempo, a causalidade da causa do que
acontece ou começa, também começou e, segundo o princípio do entendimento, tem necessidade, por sua vez, de uma
causa” (KANT, 2010, p.462-463).
13
A respeito da causalidade incondicionada da liberdade, define Kant: “A liberdade é, neste sentido [sentido
especulativo da razão], uma idéia transcendental pura que, em primeiro lugar, nada contém extraído da experiência e
cujo objeto, em segundo lugar, não pode ser dado de maneira determinada em nenhuma experiência, porque é uma lei
geral, até da própria possibilidade de toda experiência” (KANT, 2010, p.463).
empiricamente a totalidade absoluta das condições de todas as relações de causalidade sensível,
isto não se mostra possível porque a razão (Vernunft) é a faculdade de que depende o
pensamento de tal causalidade, como a faculdade que tematiza o incondicionado e investiga uma
primeira causa como condição da natureza. Por isso a figura numênica é aquela que apresenta a
elucidação do problema da causalidade da natureza: ela mostra como devendo ser pensado fora
da esfera do conhecer o princípio incondicionado, que fundamenta toda causalidade fenomênica e
cujos efeitos se manifestam na natureza.
Ao situar-se exclusivamente na esfera numênica, o conceito de uma causalidade
incondicionada, garantida pelo conceito de liberdade transcendental, permite ser pensado. É
desde esta esfera puramente inteligível que também se deixam pensar os limites (Grenze) do
conhecimento no uso das categorias do entendimento, já que a razão teórica (Verstand) não dá
conta de conhecer esta totalidade (Cf. KANT, 2010, p.269).
Na dimensão especulativa da razão a liberdade tem de ser pensada, a fim de satisfazer
em sua plenitude o pensamento acerca do domínio dos objetos de conhecimento. Kant insere a
distinção entre conhecer (ordem do fenômeno) e pensar (ordem do noumeno) porque, embora
não seja possível conhecer o conceito transcendental de liberdade, é logicamente permitido
pensá-lo sem nenhuma contradição, como expressa na seguinte passagem:
Para conhecer um objeto é necessário poder provar a sua possibilidade (seja pelo
testemunho da experiência a partir da sua realidade, seja a priori pela razão).
Mas posso pensar no que quiser, desde que não entre em contradição comigo
mesmo, isto é, desde que o meu conceito seja um pensamento possível, embora
não possa responder que, no conjunto de todas as possibilidades, a esse
conceito corresponda ou não também um objeto. Para atribuir, porém, a um tal
conceito validade objetiva (possibilidade real, pois a primeira era simplesmente
lógica) é exigido mais. Mas essa qualquer coisa de mais não necessita ser
procurada nas fontes teóricas do conhecimento, pode também encontrar-se nas
fontes práticas (KANT, 2010, p.25).
Assim, na sistemática da razão pura, a partir da noção de coisa em si (Dinge an sich) Kant
procura legitimar a esfera do puro pensamento, já que devido a ela é assentado o estatuto da
distinção entre conhecer e pensar, apresentando com isso à razão especulativa a possibilidade de
um conhecimento em geral.
Desde aqui (dimensão inteligível) a razão abre o espaço para pensar o conceito de
liberdade como condição incondicionada à natureza empírica. Contudo, de modo necessário, para
validar a esfera inteligível da razão, pensada segundo o conceito de liberdade transcendental,
possível pela razão especulativa, Kant atrela o desenvolvimento da faculdade da razão pura
prática como elemento indispensável à elucidação do espaço do puro pensamento.
E, neste sentido, é justamente a correta compreensão da diferença entre as esferas do
conhecimento e do puro pensamento, e do conceito de liberdade, pensado do ponto de vista
especulativo, enquanto liberdade transcendental, e do ponto de vista prático, enquanto liberdade
prática, que faculta o caráter não contraditório da noção da “dupla” natureza humana. A partir da
transição do conceito de liberdade transcendental para o conceito prático da mesma dá-se por
garantido o esclarecimento acerca do desenvolvimento dos conceitos tomados por Kant para
explicitar o homem como “cidadão de dois mundos”.
a faculdade capaz de iniciar por si um estado, cuja causalidade não esteja, por
sua vez, subordinada, segundo a lei natural, a outra causa que a determine
quanto ao tempo. A liberdade é, neste sentido, uma ideia transcendental pura
que, em primeiro lugar nada contém de extraído da experiência e cujo objeto, em
segundo lugar, não pode ser dado de maneira determinada em nenhuma
experiência, porque é uma lei geral, até da própria possibilidade de toda a
experiência /.../ Como /.../ não se pode obter a totalidade absoluta das condições
na relação causal, a razão cria a ideia de uma espontaneidade que poderia
começar a agir por si mesma, sem que uma outra causa tivesse devido precedê-
la para a determinar a agir segundo a lei do encadeamento causal (KANT, 2010,
p.463).
14
Segundo Kant, o arbítrio humano quando é determinado independentemente dos impulsos sensíveis e unicamente
pela razão pura prática chama-se arbitrium liberum; em contraposição o arbítrio patologicamente afetado pelos impulsos
sensíveis que é chamado arbitrium sensitivum, o que não é o mesmo que um arbitrium brutum que é aquele unicamente
animal e por isso patologicamente necessitado (Cf. KANT, 2010, p.463)
15
Isto é, a razão especulativa jamais pode sequer admitir um uso, significado, objeto, ou mesmo realidade a idéia de
liberdade.
No dizer de Kant “prático é tudo aquilo que é possível pela liberdade” (KANT, 2010,
p.636). E isso demonstra o significado positivo deste conceito, no sentido de que só agora, pela
faculdade da razão pura prática, a liberdade adquire validade e demonstração.
Kant afirma na Crítica da Razão Prática (Kritik der praktischen Vernunft, 1788)16 que os
sentidos não são os únicos a determinar a vontade humana; o homem pode ultrapassar as
impressões sensíveis da faculdade sensível de desejar17, já que aí as reflexões sobre o que é
moral e útil dizem respeito à razão prática (vontade incondicionada). É por isso que a faculdade
da razão pura prática determina a vontade: ela dá leis objetivas a uma vontade capaz de agir
segundo a liberdade (autodeterminação ou héautonomia), e que exprime o que deve acontecer,
independentemente do que aconteça.
À base dessa perspectiva Kant demonstra o uso prático da razão, como o único capaz de
oferecer um critério universalmente válido para estabelecer a lei pura a priori para a ação. A lei
prática universal da ação permite pensar então a transição da liberdade definida em sentido
transcendental à definida em sentido prático, e possibilitada pela causalidade incondicionada dos
seres vivos enquanto “racionais” (liberdade da vontade).
Embora seja o sujeito dotado de entendimento (Verstand) e de razão (Vernunft), sua
vontade pode ser sensivelmente afetada, mas não necessita ser sensivelmente determinada, pois
a faculdade da razão pura prática é capaz de determinar a vontade “incondicionalmente”, sem
nenhum pressuposto ou inclinação sensível. Exclusivamente sob o conceito de liberdade
(causalidade incondicionada de sua vontade) pode o homem, como ser racional, pensar a si
como pertencendo ao mundo inteligível e sujeito autônomo e, também, pensar a si mesmo como
sujeito pertencendo ao mundo sensível e obedecendo às leis da esfera fenomênica.
A seguir apresenta-se a distinção conceitual trazida por Kant entre mundo sensível e
mundo inteligível. Ao contrário das interpretações que vêem nela um prejuízo para o Projeto da
Filosofia transcendental, será defendido aqui, que ela é crucial à demonstração do primado da
razão prática no sistema arquitetônico da razão.
3. A distinção entre Mundo Sensível (natura ectypa) e Mundo Inteligível (natura archetypa)
Na Fundamentação da Metafísica dos Costumes (Grundlegung zur Metaphysik der Sitten
1785)18 Kant enuncia a superioridade da razão (Vernunft) sobre o entendimento (Verstand),
afirmando que a faculdade da razão é “pura atividade” e espontaneidade, e se encontra acima do
entendimento. Mesmo que este último consista numa atividade própria, ele só pode retirar de si
conceitos que servem para submeter as representações sensíveis a regras e reuni-las numa
consciência. Logo, sem o uso da sensibilidade o entendimento não tem condições de pensar
16
A obra intitulada Crítica da Razão Prática doravante será chamada sempre de modo abreviado: CRPr.
17
Na CRPr Kant distingue uma vontade inferior, como princípios práticos materiais, são as máximas subjetivas
contingentes; de uma vontade superior, como princípios práticos formais, são as leis morais objetivas universais (Cf.
KANT, 2008a, p.38).
18
A obra intitulada Fundamentação da Metafísica dos Costumes doravante será chamada sempre de modo abreviado: FMC.
conceitual e determinadamente nada. O entendimento nunca pode tentar conhecer, determinar
ou sequer validar conceitos da ordem do inteligível, pois tal tarefa cabe só à razão (Vernunft):
esta é a única faculdade que pensa os conceitos transcendentais sem levar a contradições
(conflitos) naquilo que é capaz de fazer no uso puramente inteligível.
A faculdade pura da razão, segundo Kant:
mostra sob o nome das idéias uma espontaneidade tão pura que por ela
ultrapassa de longe tudo o que a sensibilidade pode fornecer ao entendimento; e
mostra a sua mais elevada função na distinção que estabelece entre mundo
sensível e mundo inteligível, marcando também assim os limites ao próprio
entendimento (KANT, 2008b, p.105-106).
Na CRPr Kant está convencido ao admitir que o mundo inteligível (natura archetypa) é o
arquétipo do mundo sensível (natura ectypa) e que por isto é o fundamento de toda natureza
sensivelmente determinada. Essa natureza inteligível, possível pelo pressuposto da liberdade, se
fundamenta sob a lei universal a priori da razão pura prática que, nas palavras de Kant, constitui:
A lei moral; a qual é, pois, a lei fundamental de uma natureza supra-sensível e de
um puro mundo inteligível cujo equivalente deve existir no mundo sensível sem,
no entanto, fazer dano às leis do mesmo. Esse mundo poder-se-ia chamar o
arquétipo (natura archetypa), que conhecemos simplesmente pela razão; o
segundo, porém, porque contém o efeito possível da ideia do primeiro enquanto
princípio de determinação da vontade, poderia chamar-se a reprodução (natura
ectypa) (KANT, 2008a, p.66-67).
É possível agora compreender em que sentido Kant determina dois diferentes pontos de
vista (duas diferentes esferas) sobre a concepção da dupla natureza do homem: o ser humano
não é somente sensível, nem somente inteligível; ele não pertence apenas ao mundo sensível,
nem tão pouco habita somente o mundo inteligível. Através da faculdade da razão pura prática o
sujeito se considera livre das inclinações e impulsos sensíveis e se deixa determinar unicamente
pela lei moral, deduzida pelo princípio da liberdade. A partir disso ele se torna capaz de
contemplar-se simultaneamente como “cidadão de dois mundos”, porque se revela capaz de
pensar a si como pertencente ao mundo sensível sujeito às determinações empíricas das leis da
natureza e como pertencente ao mundo inteligível pela idéia da liberdade da vontade.
Portanto, a natureza da razão, enquanto inteligível e fundamentando por isso a natureza
sensível do homem, não pode suprimir esta última, visto que o homem é simultaneamente finito
do seu ponto de vista teórico (mundo sensível) e infinito do seu ponto de vista supra-sensível
(mundo inteligível). A natureza sensível é o ponto de partida para o pensamento da liberdade e a
liberdade é a condição de possibilidade da natureza sensível. Por isso as duas esferas são
igualmente necessárias para a efetivação do sistema da unidade de razão em Kant.
Considerações Finais
A solução proposta ao problema da incompatibilidade entre natureza e liberdade se
soluciona ao serem apresentadas as alternativas que permitem concebê-las como existindo
simultaneamente. Embora se apresentem como completamente distintas e podendo ser
contraditórias, o elemento decisivo para concedê-las a partir de um pensamento harmônico reside
no fato de Kant não concebê-las como naturezas ontologicamente distintas e separadas.
A dupla concepção de mundo, trazida pelo filósofo, é só uma distinção realizada no puro
pensamento, isto é, são apenas dois “pontos de vista” de uma mesma razão, que se difere só no
seu uso. Kant introduz uma distinção no pensamento acerca do mundo inteligível, mostrando que
não é ultrapassado aqui nenhum limite factual, pois o pensamento de objetos inteligíveis
independe de intuições. Essa distinção entre natural e intelectual, a partir do caráter meramente
conceitual, Kant enfatiza na seguinte passagem da CRP, na qual diz:
A divisão /.../ do mundo em mundo dos sentidos e mundo do entendimento, não
pode, pois, ser aceite [em sentido positivo], embora os conceitos admitam, sem
dúvida, a divisão em conceitos sensíveis e conceitos intelectuais (KANT,
2010, p.270-271, grifos meus).
19
Se preferir pode-se entender o âmbito prático como o pensamento de uma esfera puramente inteligível.
portanto apenas um ponto de vista que a razão vê forçada a tomar fora dos fenômenos para se
pensar a si mesma como prática” (KANT, 2008b, p.115, grifos meus).
Portanto, por se tratar de duas esferas conceitualmente distintas, oriundas de uma mesma
razão, a passagem do mundo sensível ao mundo inteligível é possível pela idéia de liberdade
prática na ordem do pensamento puro. Sobre tal prerrogativa, afirma Kant na CRPr que:
A lei moral transporta-nos, em ideia, para uma natureza em que a razão pura, se
fosse provida de um poder físico a ela adequado, produziria o soberano bem, e
determina a nossa vontade a conferir a sua forma ao mundo sensível enquanto
conjunto dos seres racionais (KANT, 2008ª, p.67, grifos meus).
Enfim, após esta breve análise é possível determinar que o fio condutor de Kant para a
distinção do homem como “cidadão de dois mundos”, relativo aos dois diferentes usos da razão
segundo suas diferentes esferas (razão teórica - mundo sensível; e razão prática – mundo
inteligível) é o conceito de liberdade, cuja realidade é demonstrada pela lei apodítica da razão
pura prática e que se constitui, por isso, em pedra angular do sistema da razão pura.
Ao mesmo tempo, tal conceito justifica a tríade da razão em relação aquilo que podemos
conhecer (1), o que podemos pensar (2), e o que podemos fazer (3): o primeiro referindo-se à
natureza empiricamente condicionada (razão teórica), sob o domínio do entendimento (Verstand);
o segundo como abertura ao pensamento de objetos que não têm sentido empírico, pois
concernem ao âmbito especulativo da razão, que pensa as idéias transcendentais. E, por fim, no
uso dos conceitos inteligíveis da razão, a possibilidade de conceber a esfera prática, relativa ao
uso de conceitos para a ação e para o “fazer”, na esfera prática da razão, capaz de efetivar o
conceito de liberdade como causalidade incondicionada da vontade humana.
Portanto, só a partir da distinção apresentada por Kant na “Dialética Transcendental” entre
natureza e liberdade se pode começar a pensar a tríade dos usos da razão, conduzindo-nos a
partir disso ao pensamento do homem como cidadão de dois mundos. Pois, só através da
inquietação por uma causalidade incondicionada se justifica toda relação causal da natureza
sensível, inserida por Kant no conceito de liberdade como pedra angular do pensamento de um
possível sistema da razão.
Referências Bibliográficas
Obras de Kant:
KANT, I. Crítica da Razão Prática. Tradução: Artur Morão. 9ª Edição. Lisboa: Edições Setenta, 2008a.
_____. Fundamentação da Metafísica dos Costumes. Tradução: Paulo Quintela. Lisboa: Edições Setenta,
2008b.
_____. Crítica da Razão Pura. Tradução: Manuela Pinto dos Santos e Alexandre Fradique Morujão. 7ª
Edição. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2010.
Obras Secundárias:
ESTEVES, J. C. R. Kant tinha de compatibilizar Tese e Antítese da 3ª Antinomia da “Crítica da Razão
Pura”?. In: Analytica, Rio de Janeiro: UFRJ, v.2, n.1, 1997. p.123-173.
HÖFFE, O. Immanuel Kant. Tradução: Christian Viktor Hamm e Valerio Rohden. São Paulo: Martins Fontes,
2005.
NODARI, P. C. A teoria dos dois mundos e o conceito de liberdade em Kant. Caxias do Sul, RS: Educs,
2009.
PAVÃO, A. Liberdade Transcendental e Liberdade Prática na Crítica da Razão Pura. In: Síntese, Belo
Horizonte: v.29, n.94, 2002, p.171-190.
NIETZSCHE E A EDUCAÇÃO:
FORMAÇÃO DO GÊNIO E A ATUALIDADE DE SEU PENSAMENTO
RESUMO: Embora Friedrich Wilhelm Nietzsche não tenha dedicado seus esforços filosóficos
sobre o âmbito da educação, ele deixou importantes escritos a este respeito e cuja atualidade dos
mesmos chega a ser por vezes assustadora. Deste modo, pretende-se neste artigo fazer a
recuperação de alguns destes aspectos do pensamento nietzschiano sobre a educação e a
cultura, especialmente aqueles levantados na III Consideração Intempestiva: Schopenhauer como
educador ([1874] 2003). Como também, investigar: o que é entendido por gênio nesta III
Intempestiva. Quem é o gênio? Como se daria a sua formação? É possível o seu aparecimento na
atualidade? Objetiva-se ainda, repensar o ensino de Filosofia oferecido ao Ensino Médio e o
desenvolvimento de um ensino que possibilite uma filosofia ativa, criadora e afirmadora da vida,
do mesmo modo como Nietzsche nos propõe em seus escritos.
20
Em escritos posteriores como em Ecce homo: como alguém se torna o que é, por exemplo, Nietzsche argumenta que
além da educação seriam necessários outros aspectos para que o gênio venha a surgir, para alguém tornar-se mestre
de si mesmo. Seria necessário observar aspectos biológicos tais como: a vida sedentária e os maus hábitos de
alimentação, pois estes representam um pecado contra o espírito; aspectos climáticos e de localização: deveria se
privilegiar lugares de ar seco e puro, devido ao fato de que o gênio é condicionado pelo ar seco e pelo céu puro, possui
um metabolismo rápido e têm em si a capacidade de suprir-se de uma grande quantidade de energia. Assim, para que o
gênio surja é essencial, além da educação, pensar na relação que este estabelece com a natureza, visto que em
Nietzsche não há uma dualidade entre o homem e a natureza.
para servirem aos interesses do Estado, da ciência e do mercado (negociantes). Nietzsche aponta
que neste período há uma tendência que visa o aumento dos elementos comuns a todos os
indivíduos e equiparando-os de tal modo objetivam a obtenção de sua melhor utilidade ao invés
de despertá-los em suas singularidades enquanto seres humanos.
Mas, o que é preciso fazer para que, como propõe Nietzsche, a educação seja de fato algo
criativo, inventivo e que afirme a vida? A resposta a esta questão pode ser busca em grande
medida na III Consideração Intempestiva: Schopenhauer como educador, na qual o filósofo nos
apresenta vários aspectos que considera importante em relação à arte de educar e a educação
como um todo. Nietzsche inicia o primeiro capítulo desta obra fazendo uma crítica a propensão
dos seres humanos à preguiça, isto é, a inclinação que os homens têm a buscar conhecimentos
prontos, que não exigem esforço intelectual algum e a querer que os outros lhe revelem o que ele
é e qual caminho deve ser seguido para ele se tornar aquilo que é.
O filósofo aponta a opinião (alheia) como sendo aquilo que não permite que o homem se
descubra como aquilo que ele é, visto que é muito mais fácil apropriar-se da opinião de outrem a
criar a sua própria opinião. Por conseguinte, é fundamental que cada indivíduo assuma para si
próprio a responsabilidade da sua existência, ou seja, que ele se assuma como um ser autônomo
e atuante. Pois, como nos diz Nietzsche:
Ninguém pode construir no teu lugar a ponte que te seria preciso tu mesmo
transpor no fluxo da vida – ninguém, exceto tu. Certamente, existem as veredas e
as pontes e os semideuses que se oferecerão para te levar para o outro lado do
rio, mas somente na medida em que te vendesses inteiramente: tu te colocarias
como penhor e te perderias. Há no mundo um único caminho sobre o qual
ninguém, exceto tu, poderia trilhar. Para onde leva ele? Não perguntes nada,
deves seguir este caminho (NIETZSCHE, 2003, p. 140-141).
Nesse sentido, podemos afirmar que ninguém pode construir em nosso lugar as pontes
que devemos atravessar e ninguém pode fazer por nós esse caminho, pois devemos ir sozinhos,
trilhá-lo sozinhos. No entanto, há pessoas que nos ajudam na descoberta desse caminho e nós as
chamamos de educadores, de mestres. Os educadores são aquelas pessoas que nos indicam o
que nós próprios não conseguimos enxergar, são aquelas pessoas que nos fazem enxergar os
aspectos que até então não havíamos conseguido perceber, visto que encontram-se além de nós
mesmos; são aquelas pessoas que nos ensinam a aprender a ver. Portanto, o verdadeiro
educador é aquele que nos liberta de tudo o que nos torna pequenos e medíocres e a verdadeira
educação deve ser entendida como sinônimo de liberdade, de libertação. Libertação da mera
opinião, libertação do conhecimento pronto e engessado, libertação dos dogmas e dos ídolos,
libertação que nos emancipa e faz conhecer nosso verdadeiro ser.
Contudo, como alerta Nietzsche, nem todo mundo é ou pode ser educador, pois o
verdadeiro educador reúne algumas características específicas que não são comuns a todos os
homens21. O verdadeiro educador é, como dito anteriormente, um libertador, e é aí que está, para
o filósofo, o segredo de toda a verdadeira formação. Uma formação de verdade é aquela que não
está preocupada somente em desenvolver os dons e as habilidades de seus alunos, mas sim,
aquela que busca transformar o homem e o libertar de todos os males que o apequenam, que o
tornam medíocre e o afastam da natureza e da verdadeira cultura.
Todavia, o verdadeiro educador deveria ter em si, além das qualidades já citadas, a
genialidade22, isto é a capacidade de se educar contra a cultura de sua época e elevar-se acima
dela, reencontrar e purificar seu próprio ser, mover-se e viver com autenticidade e dar exemplos
na vida real e não somente pelos livros. Assim sendo, a educação não se daria como vemos
atualmente, por meio da instrução ou da transmissão do conhecimento, mas no modelo ou no
exemplo pessoal de vida, pois é a vida do filósofo que pode habilitá-lo a ser um educador e não,
como se entende habitualmente, o conhecimento que possui. Para Nietzsche, o filósofo educador
tem como função procurar os meios que possibilitam a promoção e a ascensão do gênio.
21
Nietzsche afirma que nem todo mundo pode ser educador e coloca-se, deste modo, contrário a cultura da época que
acreditava que para formar o estudante não era preciso que o educador soubesse nada além daquilo que era
necessário ao aluno saber para poder servir aos interesses do Estado, da ciência e do mercado, e para ensinar isso,
qualquer um poderia ser o educador. De tal fato decorrem as suas críticas ferrenhas contra os eruditos, os especialistas
e os filisteus da cultura, que viam a educação e a cultura como algo corrente, como uma mercadoria que pode ser
vendida e adquirida por um grande número de pessoas. Para Nietzsche somente um homem superior (homem que
ultrapassa os valores estabelecidos, que ultrapassa os limites do homem, é um além-do-homem, homem dotado de
virtudes incomuns e que não se ocupa com coisas terrenas) pode ser educador, pode ser mestre de outrem, pois
somente ele possui meios que o habilitam a servir como exemplo, como guia.
22
O termo genialidade é utilizado aqui para explicitar o fato de que para Nietzsche nem todos os homens podem se
tornar gênios, somente os homens superiores por natureza é que poderiam se tornar gênios, além disso, estes homens
elevados são produções esporádicas, existem em um número muito limitado na natureza. O termo também é utilizado
para explicitar que, embora o homem seja superior por natureza se ele não possuir um ambiente adequado que
possibilite o seu desenvolvimento ele não se tornará gênio e é aqui que se apresenta a importância de uma cultura e
educação elevadas, autênticas.
pode ser mestre de si mesmo.
Porém, neste momento poderíamos nos perguntar, como é que surgem estes mestres,
estes gênios? Se formos analisar os grandes gênios do passado, especialmente os gregos,
veremos que eles não tiveram grandes estabelecimentos de ensino, instituições poderosas que
contribuíssem para a sua formação, no entanto é exatamente isso que os fez grandes apesar de
sua época, ou seja, eles foram grandes, gênios porque foram contra a cultura de sua época,
contra o “sistema” que os mantinha presos, porque souberam se apropriar de conhecimentos
anteriormente elaborados e conferiram-lhes um novo significado, o que é uma tarefa indispensável
para a criação de novos conhecimentos, porque souberam se utilizar dos exemplos de culturas
passadas para conhecerem-se a si mesmo. Portanto, segundo Nietzsche, quem estivesse
disposto a lutar pela verdadeira cultura, a afirmar a vida, deveria preparar-se também para
enfrentar a resistência de seus contemporâneos, isto é, a resistência desta cultura massificante e
medíocre que valoriza exclusivamente a erudição.
Contudo, Nietzsche observa que o modelo de educação presente em seu tempo não abre
espaço para que estes mestres se façam presentes, além disso, tal modelo esforçava-se somente
para formar uma quantidade cada vez maior de funcionários para o Estado e assim beneficiava os
comerciantes, esforçava-se no intuito de formar pessoas comuns, produtoras e consumidoras de
uma cultura desprovida se sentido. Em vista destes aspectos negativos que não o deixam
vislumbrar um horizonte mais promissor para a educação, Nietzsche nos pergunta “onde é que
podemos buscar uma verdadeira formação (educação)?” Questiona ainda, quem são estes
mestres, guias estabelecidos para sempre que mostrariam o caminho que conduziria o homem a
tornar-se aquilo que ele é? Nietzsche encontra no filósofo Arthur Schopenhauer este modelo
exemplar de educador e de gênio a ser seguido, pois ele representava um exemplo raro de
pensador que soube manter uma coerência entre a vida (natureza) e a educação (pensamento).
A respeito de Schopenhauer, Nietzsche afirma:
Se eu quiser descrever como foi importante para mim o primeiro olhar que lancei
aos escritos de Schopenhauer, é preciso que me detenha um pouco a imagem
que me preocupou incontestavelmente na juventude, mas frequentemente e mais
decisivamente do que qualquer outra. Quando outrora eu me entregava, por
vontade própria, a fazer minhas promessas, imaginava que o terrível esforço, o
tremendo dever de me educar a mim próprio, me seria poupado pelo destino,
porque no momento propício encontraria um filósofo para me educar, um
verdadeiro filósofo a quem pudesse obedecer sem mais reflexão, porque se teria
nele mais confiança do que em si próprio (NIETZSCHE, 2003, p.142).
A ciência está para a sabedoria, assim como a virtude está para a santidade: ela é
fria e árida, ela não tem amor e ignora tudo com um profundo sentimento de
insatisfação e nostalgia. Ela é útil apenas para si mesma, tanto quanto é nociva a
seus servidores, na medida em que transpõe neles seu caráter próprio e assim
ossifica de alguma maneira a humanidade (NIETZSCHE, 2003, p.191).
Para Nietzsche, conforme vimos, educar é promover o surgimento do gênio, porém, o que
é realmente necessário para que o gênio surja, apareça? Para que o gênio surja é necessário
rebelar-se contra a cultura que se faz presente em cada época. É preciso um educador que sirva
de modelo de crítica da cultura. É preciso um educador que adote como característica a
preparação para a ascensão do gênio, sendo, portanto, a sua tarefa servir de modelo do gênio.
Quando lemos a III Consideração Intempestiva: Schopenhauer como educador de
Nietzsche ficamos a nos perguntar: será que é possível, dada a nossa cultura atual e a
organização educacional, surgir entre nós um mestre, um gênio que poderia nos conduzir ao
nosso próprio ser? Quem é o mestre que poderia nos mostrar o caminho para tornarmo-nos aquilo
que nós somos? Estas perguntas são difíceis de responder e poderíamos também nos frustrar
com uma resposta negativa para as duas questões, no entanto, dada a nossa falta de gênios na
atualidade, nós poderíamos utilizar para tanto os gênios que já nos antecederam, os grandes
guias que a história nos apresenta.
Segundo Nietzsche, para que o gênio surja é preciso que os jovens unam-se de algum
modo a um grande homem e vendo-o como um ser elevado, se voltem para ele de forma
amorosa, reconhecendo sua estreiteza diante da grandeza deste gênio. Esses gênios, esses
homens superiores a quem os jovens devem ligar-se possibilitarão o alargamento da razão por
meio do aprender a ver, estes laços e afinidades que os ligam aos homens comuns, enriquecerão
a todos com seus conhecimentos e exemplos. O educando somente descobrirá suas próprias
potencialidades na medida em que estabelecer um contato com o mestre e ao aprofundar e
libertar suas forças por meio da imitação criadora. Neste sentido, os mestres, os gênios são
modelos que devem ser criativamente imitados, não como simples repetição mecânica de atos,
mas “como pretextos para a experimentação de si, que se tem de saber abandonar a tempo”
(LAROSSA, 2002, p. 77).
Assim, pensando na educação fornecida aos nossos estudantes do Ensino Médio,
pensando especialmente em nossas aulas de filosofia, pergunto-me em que medida estamos
possibilitando que os estudantes tenham contato com os gênios que surgiram ao longo da
história? Em que medida estamos dando bons exemplos aos nossos jovens, isto é exemplos de
mestres que educaram a si mesmos, que foram gênios apesar da cultura adversa, ou seja, que se
tornaram gênios indo contra este sistema (cultura) que os impedia de conhecer seu próprio ser?
Analisando as aulas ministradas no Ensino Médio rapidamente perceberemos que estas ainda são
de caráter tradicional23 e alienante e que ainda ensina-se o que é determinado por uma força
exterior (Estado), reforçando o que Nietzsche tanto critica, que é uma cultura voltada para a
mediocrização e apequenamento dos alunos. Muitas vezes as aulas de Filosofia, as quais
poderiam possibilitar o contato com estes grandes mestres, restringem-se somente ao ensino da
história da filosofia, limitando-se somente a apresentar os sistemas filosóficos, os conceitos
desenvolvidos por determinado filósofo e não se apresenta a possibilidade de viver de acordo com
uma filosofia crítica tal como fora a do filósofo. Isto leva muitos alunos a desprezarem a filosofia,
julgando-a inútil e sem sentido.
Quanto aos nossos professores, percebe-se que estes em grande medida, em
23
Tradicional é aqui utilizado para expressar o fato de que as nossas aulas de filosofia sejam ainda em grande medida
burocráticas e monótonas, representando um empecilho à filosofia enquanto afirmação da vida, além disso, muitas
vezes nossas escolas não desenvolvam a língua materna, a cultura, causando a degeneração da educação autêntica.
decorrência da atual cultura, assemelham-se aos eruditos, pois não recebem uma formação de
qualidade ou são especialistas em uma determinada área ficando totalmente fechados em si
mesmos, e, consequentemente, não possuem atributos suficientes para fazer do seu trabalho
pedagógico algo que possibilite novas ideias e criações, que possibilite o desenvolvimento e a
ascensão do gênio por meio do contato com outros gênios. Deste modo, os professores ficam
geralmente atrelados àquilo que é mais fácil fazer, prefere-se ensinar somente história da filosofia
durante as aulas de filosofia ao invés de se atrever a pensar, questionar, a criar novos conceitos,
a ir contra esta cultura que nos torna cada vez mais inferiores. Assim, penso que ensinar filosofia
a partir de sua história é importante desde que voltemos ao passado como uma forma de
encontrar os grandes gênios, os grandes exemplos. O ato de revisitar o passado somente é válido
na medida em que o visitamos sem nos deixarmos levar pelo instinto de imitar ou reproduzir os
mestres, mas apenas quando os adotamos como um estímulo para uma ação transformadora, um
experimentar-se a si mesmo, um encontrar-se, um tornar-se aquilo que se é. Deste modo,
filósofos tais como Nietzsche e Schopenhauer, servem-nos como exemplos, exemplos de vida, de
mestres que venceram os perigos de sua época, de seres que se desafiaram a pensar de forma
autêntica, serena e livre, que se tornaram mestres de si mesmos.
Nesta perspectiva, as obras filosóficas devem ser lidas, apreciadas e discutidas nas aulas
de Filosofia para que os estudantes despertem em si mesmos os germes da sua própria
genialidade. Assim, a obra filosófica seria “apropriada” pelo leitor pelo que ela possui de vida e de
atualidade, e o estudante, a fim de vivê-la, seria estimulado a lançar-se sobre os desafios, a
pensar livremente, a viver conforme seus instintos e a utilizar as suas capacidades para expressar
sua linguagem, seu pensamento e sua própria vida. Deste modo, um aspecto importante para
possibilitar o surgimento dos gênios é evitar impor as nossas opiniões como sendo verdadeiras24,
e nos julgarmos superiores a eles assim como fazem os eruditos, deveríamos ser apenas aqueles
mestres que estão sempre à porta, pois segundo Nietzsche ninguém pode trilhar o caminho que o
próprio estudante deve trilhar para chegar a ser aquilo que ele é, ou seja, cada um é mestre de si
mesmo, o “guia”, o mestre somente mostra por onde andar, mas é o estudante que constrói o seu
próprio caminho e que o percorre. Neste sentido, o mestre é somente um modelo de vida, uma
fonte de inspiração, que leva cada um de nós a procurar o nosso próprio caminho, o nosso próprio
ser.
Conclusão
Nesta III Consideração Intempestiva: Schopenhauer como educador, utilizada como base
para explicitar as ideias aqui expostas, Nietzsche enfatiza que aos indivíduos superiores por
natureza devem ser possibilitados espaços nos quais eles possam se dedicar à aprendizagem da
24
Embora os estudantes devam, segundo Nietzsche, ligar-se a um mestre isto não significa apropriar-se das opiniões
do mestre, do guia como sendo suas. Isto já é criticado pelo filósofo no início da III Consideração Intempestiva:
Schopenhauer como Educador. Nietzsche apenas propõe que a educação se efetive por meio de um exemplo de vida e
que é o educando que escolhe o seu mestre, ou seja, é uma escolha de ordem pessoal do educando e não uma
imposição ou estabelecimento de caminhos por parte do mestre, do educador.
autêntica cultura e da formação de si, sem estarem preocupados em como podem ser úteis a
máquina da produção (do Estado e dos comerciantes), ou em atender as exigências burocráticas
da vida acadêmica, a qual impede os estudantes a desenvolverem suas potencialidades.
Nesta mesma intempestiva ele propõe que a educação é um duro caminho em direção à
elevação do homem, é um duro caminho para tornar-se aquilo que se é. Tais argumentos
implicam levar em consideração o fato de que antes de falar em Schopenhauer como educador
ele está falando em Nietzsche como educador, ou seja, em como ele próprio se tornou aquilo que
ele é. Para o filósofo a educação deveria ter como objetivo a superação contínua de si mesmo, o
crescimento contínuo e o gênio somente nasceria se estas condições lhe fossem possibilitadas,
se ele estiver imerso em um ambiente que favoreça a sua ascensão, que favoreça essa
superação de si.
Esse crescimento contínuo em busca daquilo que se é, é um processo solitário no qual o
mestre somente é um guia, uma fonte de inspiração criadora que deve ser abandonada com o
tempo. Isto, em parte, explica o fato de Nietzsche ter se distanciado de Schopenhauer após um
longo tempo de admiração e defesa de sua filosofia, pois quando Nietzsche tornou-se mestre de si
mesmo já não era mais preciso que houvesse um mestre que lhe servi-se de modelo, de guia.
Mas, ao mesmo tempo deve-se levar em consideração que somente é possível que surja o gênio
quando este se liga de alguma forma a outro gênio, assim como ele fez ao inspirar-se em
Schopenhauer.
Contudo, Nietzsche afirma que este homem superior (gênio em processo de
desenvolvimento) não encontra um ambiente apropriado para a sua ascensão, não encontra um
modelo educacional que possibilite tal surgimento, não encontra uma cultura com unidade de
estilo artístico suficiente para promover o surgimento do gênio, não encontra elementos que
possibilitem transformar sua filosofia em uma filosofia ativa e afirmadora da vida. Assim,
poderíamos nos perguntar novamente, é possível que em nossa época surja o gênio? Certamente
poderíamos responder que não, pelos motivos que já foram explicitados anteriormente, e tal
resposta nos leva ainda a pensar que Nietzsche estava certo em seu diagnóstico ao afirmar que
somente é possível desenvolver indivíduos superiores (mestres de si mesmo) quando se encontra
também presente neste cenário uma cultura autêntica que juntamente com a educação ofereça
todas as condições possíveis para a elevação do homem e que promova a afirmação da vida, tal
como a filosofia nietzschiana nos propõe.
REFERÊNCIAS:
AZEREDO, Vânia Dutra de (org). Nietsche: Filosofia e Educação. Ijuí: Ed. Unijuí, 2008 (Coleção Nietzsche
em Perspectiva).
LAROSSA, Jorge. Nietzsche & a Educação. Tradução de Alfredo Veiga-Neto. Belo Horizonte: Autêntica,
2002.
MOURA, Carlos Alberto Ribeiro de. Nietzsche: civilização e cultura. – São Paulo: Martins Fontes, 2005.
NIETZSCHE, Friedrich. Ecce homo: como alguém se torna o que é. Tradução, notas e posfácio: Paulo
César de Souza. – São Paulo: Companhia das letras, 1995.
_____. Escritos sobre Educação. Tradução de Noéli Correia de Melo Sobrinho. Rio de Janeiro: Ed. PUC-
Rio; São Paulo: Loyola, 2003.
O FUNDADOR DE VIRTU E A CONTINGÊNCIA25
26
Lucas Eugênio Rocha Medeiros
Resumo: Nosso objetivo é analisar a relação entre virtù e fortuna em Maquiavel, tomando como
ponto de partida o problema da fundação de um corpo político. Assumimos que o legislador pode
até certo ponto dispor de sua virtù para impor uma forma de governo sobre determinada matéria,
contudo, identificamos no pensamento do secretário florentino um espaço reservado às
circunstâncias nas quais se desenvolvem as ações do nomoteta. Dessa maneira, pretendemos
demonstrar que a fundação de um estado decorre de uma relação entre a habilidade política de
um legislador e as contingências históricas.
Palavras - chave: Filosofia Política. Republicanismo. Maquiavel.
I
O grande filósofo italiano do século XVI, Nicolau Maquiavel, é certamente um dos
pensadores políticos mais importantes de todos os tempos. Conjugando o elogio aos homens do
passado a um entendimento radicalmente novo da dinâmica da vida política, o secretário
florentino é responsável por desbravar novas terras na filosofia política, como observa N.
Bignotto27. Seu pensamento é fruto de um contexto bastante especial onde o humanismo clássico
passa a dirigir suas atenções para a vida cívica. Conforme nos mostra Hans Baron, o humanismo
cívico28 atingiu maturidade nos tempos do secretário da república florentina de modo que o
pensamento anterior a Maquiavel recebeu apropriação crítica em um cenário de intensas
transformações sociais e políticas29; e como observa Honohan, Maquiavel costura certos
25
Gostaria de agradecer vivamente ao meu orientador, o Prof. Helton Adverse, por sua dedicação honesta à minha
pesquisa, e suas correções pacientes.
26
Graduando em Filosofia pela UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS, bolsista do Grupo PET Filosofia –
UFMG, financiado com recursos do MEC / SeSu. Trabalho realizado sob a orientação do Prof. Dr. Helton Machado
Adverse. E-mail: lucasrochamedeiros@hotmail.com
27
Conforme nos mostra N. Bignotto, ao entender que os conflitos podem ser benéficos ao corpo político, Maquiavel
subverte uma idéia cara aos antigos: a valorização da concórdia. BIGNOTTO, Newton. Maquiavel Republicano, p. 84-
85.
28
O humanismo cívico é um termo difundido por H. Baron para se referir ao período histórico onde o humanismo
clássico assumiu uma característica peculiar: a valorização da vida ativa. “Amog those others elements, the most
important was a new position assumed by the Florentine city-state republic.” BARON, Hans. Crisis of the early Italian
Renaissance: civic humanism and republican liberty in an age of classicism and tyranny, p. 4.
29
“Within Florence itself, the historical ideas created by florentine humanists survived to reach maturity in the days of
Machiavelli, Guiccardini […]”Idem, p. 7.
argumentos já vistos no republicanismo de Cícero e de Aristóteles sem se referir explicitamente a
eles30. Além disso, de acordo com Pocock, ao apropriar-se do republicanismo de grandes
pensadores da antiguidade o secretário de Florença influencia largamente sua posteridade na
formulação de uma teoria republicana31, o que por sua vez nos permite corroborar a tese de que o
pensamento político de Maquiavel é de fato basilar para o a filosofia política moderna.
Cônscios de que o florentino é um autor relevante na tradição republicana, nosso trabalho
concentra atenção nas relações entre virtù e fortuna no seu pensamento32 optando por tratá-las
sob a ótica do problema da fundação. Quais seriam os limites encontrados pelo legislador ao
ordenar uma república, como sua virtù se relaciona com o momento histórico e contingências de
um contexto particular? Qual a dimensão exata da historicidade na vida política? Para responder a
essas questões, iremos nos apoiar principalmente em sua obra Discursos sobre a primeira década
de Tito Lívio, onde estas discussões aparecem mais nitidamente.
II
No primeiro Capítulo dos Discursos Maquiavel situa as condições necessárias para que
uma cidade tenha início. De acordo com o secretário florentino, todas as cidades são fundadas ou
por homens que são nascidos no lugar de fundação, ou por forasteiros33, sendo que no primeiro
caso a população que ocupa um espaço geográfico nota as vantagens de permanecer unida
contra ameaças externas e escolhe um dos seus para reinar sobre os outros. No segundo caso, o
forasteiro que funda uma cidade ou o faz livremente, ou a mando de outrem – como no caso das
colônias estabelecidas pelos príncipes para assegurar melhor controle sobre a localidade. Se o
faz a comando de outra cidade, a cidade fundada dificilmente terá grandes progressos34, mas se
uma cidade é fundada livremente, há boas chances de que alcance grande glória, como foi o caso
de Roma.
O fundador de uma cidade livre é em geral um homem de grande virtù e que precisaria
estar sozinho para bem ordenar as leis de uma cidade:
E deve-se ter como regra geral que nunca, ou raramente ocorre que alguma
república ou reino seja, em seu princípio, bem ordenado ou reformado inteiramente
com ordenações diferentes das antigas, se não é ordenado por uma só pessoa;
aliás, é necessário que um homem só dite o modo, e que de sua mente dependa
30
“[...] he picks up threads of arguments we have seen elaborated in Aristotle and Cicero without explicitly referring
them.” HONOHAN, Iseult. Civic Republicanism, p. 45.
31
“It is asserted that certain enduring patterns in the temporal consciousness of medieval and early modern Europeans
led to the presentation of the republic, and the citizen’s participation in it, as constituting a problem in historical self-
understanding, with which Machiavelli and his contemporaries can be seen both explicitly contending. It became crucial
in their times and remained so, largely as a result of what they did with it, for two or three centuries.” POCOCK, J.G.A.,
Machiavellian Moment, p. viii.
32
Maquiavel entende virtù como a habilidade que determinado governante possui para alcançar o que seria seu objetivo
central: conquistar e manter o poder. A palavra virtù incorpora a seu significado também a idéia de um homem que pode
controlar eventos, efetuar mudanças em determinado contexto. Em oposição à virtù, temos a fortuna. Que nada mais é
que a adversidade, os eventos incontroláveis, a indeterminação. Uma boa formulação para esses conceitos pode ser
encontrada em BIGNOTTO, Newton. Maquiavel Republicano.
33
Discursos. I, 1.
34
Discursos. I, 1.
35
qualquer dessas ordenações .
Portanto, ou um homem gozando de grande autoridade ordena as leis sem ser cerceado por
outros, ou não se poderá constituir uma cidade nova. É válido lembrar o comentário de Sérgio
Cardoso, à visão rousseauniana do papel do legislador, onde ele faz notar que “o bem público é
(...) a própria constituição, isto é, a forma da vontade geral determinada racional e historicamente
36
pela inteligência do legislador” . Desta maneira, o legislador ocuparia para o filósofo francês
papel não só de destaque, mas seria ele o responsável pela “transformação dos ‘indivíduos
absolutos’ nos homens relativos da sociedade civil; realiza o ‘milagre’ da criação política” 37.
Até aqui podemos inferir que as instituições de uma cidade têm origem somente quando um
homem ordena-lhe as leis e erige suas instituições políticas – este seria o nomoteta, o restante
dos homens parece não ter grande importância, cabendo-lhes apenas obedecer às boas
ordenações feitas pelo fundador. O problema com essa suposição é que ela reduz
significativamente a historicidade do surgimento das ordenações políticas, conferindo caráter
atemporal ao surgimento de uma cidade e à manutenção de sua ordem interna38. Equivale a dizer
que um homem sozinho pode dar origem a uma cidade governada por boas leis, dependendo
somente de sua habilidade política. Tal concepção elimina do pensamento de Maquiavel a figura
da fortuna, que se faz sempre presente em constante relação com a vida dos homens39, portanto,
o princípio de uma cidade deve ser atribuído não somente à ação fundadora virtuosa de um
homem, mas também às condições históricas vigentes40. É o que o secretário florentino nos
aponta logo no segundo capítulo do livro I dos Discursos onde é feita menção a um texto
relevante à época, do historiador grego Políbio, que discorre sobre a gênese e a decadência de
uma associação humana.
De acordo com a teoria da Anacyclosis41 as formas de governo percorrem inexoravelmente os
mesmo caminhos, revezando-se entre seis possíveis, três boas e três ruins. No início, dispersos,
os homens elegem, dentre eles, um para ser seu governante. Este, ciente de que somente reina
devido ao consentimento de seus concidadãos, respeita os costumes e as leis que são instituídas
com base em um ethos próprio ao corpo político; esta seria a Monarquia – ou Realeza. Entretanto,
após determinado período de tempo, os filhos do monarca, criados em meio às pompas e
distinções da coroa tenderiam a perder o respeito pelos costumes tornando-se assim tiranos.
Esmagado pelo poder irascível do tirano, o povo então conduziria um séquito de cidadãos
35
Discursos, I, 9.
36
CARDOSO, Sérgio. “Por que República”. In: Retorno ao Republicanismo, p.56.
37
CARDOSO, Sérgio. “Por que República”. In: Retorno ao Republicanismo, p.56-57.
38
POCOCK, J.G.A. Machiavellian Moment, VII.
39
Maquiavel entende virtù como a habilidade que determinado governante possui para alcançar o que seria seu objetivo
central: conquistar e manter o poder. A palavra virtù incorpora a seu significado também a idéia de um homem que pode
controlar eventos, efetuar mudanças em determinado contexto. Em oposição à virtù, temos a fortuna. Que nada mais é
que a adversidade, os eventos incontroláveis, a indeterminação. Uma boa formulação para esses conceitos pode ser
encontrada em BIGNOTTO, Newton. Maquiavel Republicano.
40
Conforme nos mostra Pocock, esse argumento parece estar presente ao longo de todo o Discursos. POCOCK, J.G.A.
Machiavellian Moment, p.188.
41
Discursos I, 2.
virtuosos ao poder, mudando a forma de governo para uma Aristocracia. O mesmo processo de
corrupção se dá com os filhos dos homens que derrubaram o rei tirano do poder. Surgiria, então, a
Oligarquia, caracterizada pelo poder arbitrário de poucos. Finalmente, o povo mesmo, em
assembléia, assumiria o comando da vida social, criando dessa maneira condições para o
exercício de uma forma de governo plenamente Democrática. E, por fim, como todos teriam
poder, as limitações aos desejos seriam cada vez mais difíceis, dando início a uma era de
licenciosidade – Oclocracia. Por esse motivo, os homens entrariam em dispersão novamente até
que um novo rei fosse instituído e o curso se repetisse.
Ao fazer menção a tal processo, Maquiavel confere lugar importante à historicidade na vida
política. Mas, por outro lado, se nosso autor se utiliza dessa teoria, ele o faz com o intuito de
demonstrar que a vida política, além de ser naturalmente dinâmica, é afetada diretamente pela
contingência histórica, que por sua vez influi na forma de governo de uma cidade; e não para
inferir a repetição de tal ciclo. Nem a virtù do fundador, nem as condições históricas podem ser
tomadas como explicação isolada para o surgimento e manutenção de uma associação política. O
ciclo é uma tendência, mas não é obrigatório, pois para que a adesão fosse completa, seria
necessário que Maquiavel declarasse explicitamente sua crença em um eterno retorno das formas
de governo42. De acordo com nosso autor, o ciclo deve ser natural, mas não necessariamente
eterno; inclusive, de acordo com ele, nenhum Estado é capaz de resistir por muitas vezes a este
processo43. Nota-se, portanto, que o ordenador de uma cidade confronta-se constantemente com
as limitações impostas pela fortuna.
III
Conforme nos mostra Vatter44, no pensamento de Maquiavel o nomoteta não pode ser
considerado o único responsável pela origem de uma associação política, pois se é verdade que o
mesmo cumpre um papel importante ao escolher o lugar e ordenar as leis45, é também fato que as
instituições de uma cidade podem sofrer transformações por meio de um processo histórico que
foge ao controle e previsão de um homem, como vemos no capítulo II do primeiro livro dos
Discursos. É possível falar em diferentes princípios e ordenações para as cidades: algumas delas
receberam boas leis de seu fundador, como é o caso de Esparta, que foi ordenada por Licurgo; e
outras tiveram suas leis e instituições consolidadas ao acaso46, como foi o caso de Roma, bem
como Veneza47. Fica evidente que nosso autor não atribui ao fundador o mérito exclusivo da
origem de uma forma de governo. O acaso também cumpre seu papel:
Embora Roma não tivesse um Licurgo que no princípio a ordenasse de tal modo
42
BIGNOTTO, Newton. Maquiavel Republicano, p. 176. “Para que a adesão do secretário Florentino fosse completa,
era preciso que ele declarasse explicitamente que aderia à idéia de um eterno retorno e, assim, que o modelo de Políbio
servia também para compreender a política de seu tempo. [...] a ciclicidade do tempo é apenas um paradigma abstrato,
capaz de apontar uma tendência, mas não de desvelar o real.”
43
VATTER, Miguel. Between Form and Event: Machiavelli’s Theory of Political Freedom, p. 55.
44
VATTER, Miguel. Between Form and Event: Machiavelli’s Theory of Political Freedom, III.
45
Discursos. I, 1.
46
Discursos. I, 2.
47
Discursos. I, 6.
que lhe permitisse viver livre por longo tempo, foram tantos os acontecimentos que
nela surgiram, devido à desunião que havia entre plebe e senado, que aquilo que
não fora feito por um ordenador foi feito pelo acaso. Porque, se Roma não teve a
primeira fortuna, teve a segunda; pois se suas primeiras ordenações foram
insuficientes, nem por isso a desviaram do bom caminho que a pudesse levar à
48
perfeição
Não menos importante é o exposto por Maquiavel em um texto curto, porém de grande
relevância para o problema da relação supracitada, O Discurso sobre as formas de governo de
Florença. Neste texto, Maquiavel discute a possibilidade de reordenar as instituições em Florença,
de modo a assegurar o equilíbrio entre as diferentes qualidades de homens53, ou seja, criar uma
república estável. Ao longo do documento, parece claro que a relação entre fundador e matéria é
exatamente isto: uma relação. Nenhum dos dois elementos parece ter proeminência sobre o
outro, como se observa pelo seguinte:
Mas, porque fazer um principado onde ficaria bem uma república e uma república
onde ficaria bem um principado é coisa difícil, desumana e indigna de quem quer que
deseje ser tido por piedoso e bom; eu não continuarei a discorrer sobre o principado e
falarei apenas da república seja porque Florença é uma matéria bastante apta a
receber esta forma, seja porque se entende que Vossa Santidade [o Papa Mediceu]
54
está muito disposto a dá-la .
Note-se que o secretário florentino considera que impor uma forma de governo principesca sobre
uma matéria não apta para tal é “difícil”, contudo não impossível. Levando em conta que o
fundador encontra-se em relação constante com a matéria, devemos sempre contabilizar a fortuna
em qualquer empreendimento de ordem política sem excluir as potencialidades dos homens frente
à indeterminação. Isso nos leva a crer que é prudente ordenar uma república onde a matéria o
favoreça, não sendo, contudo, impossível fazê-lo.
48
Discursos. I, 2.
49
VATTER, Miguel. Between Form and Event: Machiavelli’s Theory of Political Freedom, p. 65.
50
VATTER, Miguel. Between Form and Event: Machiavelli’s Theory of Political Freedom, p. 69. “In particular, the
oneness of the founder is relative to the multiplicity of the citizens: together they compose the binary formula of authority:
one to found (agere) and many to mantain (gerere).”
51
VATTER, Miguel. Between Form and Event: Machiavelli’s Theory of Political Freedom, p. 68. “The founder is
constructed a posteriori as the one who fulfills some of the “objective” conditions of political form. The initial thesis that
the virtù of the city depends on the virtú of the founder is reversed”.
52
POCOCK, J.G.A. Machiavellian Moment, p.190.
53
Discurso sobre as Formas de Governo de Florença.
54
Discurso sobre as Formas de Governo de Florença.
Se voltarmos nossa atenção para O Príncipe, podemos ver com clareza singular a ideia de
que entre o fundador (ou um homem de ação política) e a contingência estabelece-se uma relação
sem primazia necessária. No capítulo XXV nosso autor afirma “poder ser verdadeiro o fato de que
a fortuna arbitre metade de nossas ações, mas que, mesmo assim, ela nos permita governar a
outra metade quase inteira.55”. O que o secretário faz nessa passagem é basicamente assumir
que toda ação política é cerceada por determinadas circunstâncias, mas que, não obstante, existe
uma margem onde a virtù pode se manifestar. É mister notar que logo à frente no mesmo capítulo
Maquiavel aponta que o homem que age de acordo com o seu tempo, tem maiores chances de
alcançar bons resultados em seus empreendimentos. Também Q. Skinner corrobora nossa
afirmação de que o homem de virtù é aquele que, observando o seu tempo histórico, conduz sua
ação de acordo com a circunstância56. De acordo com Skinner, a própria experiência política deu
a Maquiavel a chave para entender o êxito do agente político: para obter o sucesso seria
fundamental reconhecer a força do tempo presente, entendendo o que a necessidade impõe e
conduzindo o comportamento de modo a harmonizar-se com o mesmo.57
IV
Em nosso trabalho, procuramos explicitar que para o homem de ação política não basta
gozar de grande virtù para ser bem sucedido em suas empresas; é necessário que ele saiba se
adequar ao seu tempo e as suas circunstâncias. Ao escolher o problema da fundação, pudemos
examinar a relação entre forma e matéria, tão cara no pensamento de Maquiavel, aproximando-a
da questão das contingências enfrentadas pelo fundador. Podemos, dessa maneira, afirmar que
uma nova ordenação política se estabelece por uma relação mais ou menos eqüitativa entre as
contingências históricas e a habilidade política demonstrada pelo fundador, e que mesmo este
sempre se encontra mergulhado em circunstâncias das quais deve se adaptar para tirar proveito e
alcançar seu intento.
BIBLIOGRAFIA:
MAQUIAVEL. Discursos sobre a primeira Década de Tito Lívio. São Paulo: Martins Fontes, 2007.
________. Coleção Os Pensadores: O Príncipe. São Paulo: Nova Cultural, 1999.
________. Diálogo sobre nossa língua e Discurso sobre as formas de Governo de Florença. Belo Horizonte:
Editora UFMG, 2010.
ADVERSE, Helton M.. Maquivel, a República e o Desejo de Liberdade. Revista Trans/Form/Ação, São
Paulo, 30(2) 33-52, 2007.
ADVERSE, Helton M. Maquiavel: Política e Retórica. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2009.
BARON, Hans. The Crisis of the early Italian Renaissance: civic humanism and republican liberty in an age
of classicism and tyranny. Princeton, NJ: 1966.
BIGNOTTO, Newton. Maquiavel Republicano. São Paulo: Edições Loyola, 1991.
CARDOSO, Sérgio. Por que República?. Notas sobre o ideário democratico e republicano. In: Retorno ao
Republicanismo. Sérgio Cardoso (Organizador). Belo Horizonte: Editora UFMG, 2004.
HONOHAN, Iseult. Civic Republicanism. New York: Routledge, 2002.
55
O Príncipe, XXV.
56
SKINNER, Quentin. Machiavelli, II.
57
Idem, p. 38.
POCOCK, J.G.A. The Machiavellian Moment: Florentine Political Thought and the Atlantic Republican
Tradition. New Jersey: Princeton University Press, 1975.
VATTER, Miguel. Between form and event: Machiavelli’s theory of political freedom. Boston, MA: Kluwer
Academic Publishers, 2000.
Gedley Braga
DAUAP – UFSJ
58
Trabalho apresentado no Gabinete de Arte Raquel Arnaud em 2008, composto originalmente de montagem de 16
fotografias de 60 x 60 cm. Adaptado especialmente para a Revista Empório, número 4, 2011.
reabastecido. Essas seis fotos formam um “L” deitado, nesse quadrado. Um “L” que foi exposto
verticalmente várias vezes na instalação “Love & Hate”. Um “L” que é evidenciado na “Tese na
[da] caixa preta” como a letra que transforma a palavra “WORD” (palavra) em “WORLD” (mundo).