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Filosofia

da Linguagem
Filicio Mulinari

Universidade Federal do Espírito Santo Filosoia


Secretaria de Ensino a Distância Licenciatura
D esde o nascimento da ilosoia, os problemas
referentes à linguagem e sua natureza têm
sido matéria de importantes debates ilosóicos. O
diálogo Crátilo, de Platão, ou as obras Categorias
e Da Interpretação,de Aristóteles, são exemplos
disso já na ilosoia antiga. Entretanto, se a
linguagem foi vista durante séculos na ilosoia
como um dentre vários outros objetos ilosóicos
(como ética, religião, estética, etc.) –, isso
mudará consistentemente nos séculos XIX e XX:
o estudo da linguagem passa a ser o fundamento
de toda e qualquer pesquisa ilosóica.
Escrito de forma sucinta e não pretendendo
esgotar a vasta gama de teorias presentes hoje na
ilosoia da linguagem contemporânea, o presente
livro introduz o leitor aos debates mais clássicos da
área, especialmente da ilosoia analítica, por meio
dos clássicos pensadores Gotlob Frege, Bertrand
Russell e Ludwig Wittgenstein. Ressalta-se que a
compreensão desses debates é fundamental para
todos aqueles que estudam ilosoia e almejam
compreender aquilo que se convencionou chamar
de ‘virada linguística’ da ilosoia.
Espera-se que esse manual sirva ao leitor
como o primeiro passo na busca ilosóica do
conhecimento dessa área tão relevante não
só para a ilosoia contemporânea, mas para
várias ciências coligadas. Ainal, como diria
Wittgenstein, “os limites da linguagem denotam
os limites do meu mundo.”
UNIVERSIDADE FEDERAL DO ESPÍRITO SANTO
Secretaria de Ensino a Distância

Filosofia
da Linguagem
Filicio Mulinari

Vitória
2015
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(Biblioteca Central da Universidade Federal do Espírito Santo, ES, Brasil)

Mulinari, Filicio.
M957f Filosoia da linguagem / Filicio Mulinari. - Vitória, ES : Universidade Federal do Espí-
rito Santo, Secretaria de Ensino a Distância, 2016.
104 p. : il. ; 23 cm

Inclui bibliograia.
ISBN: 978-85-63765-56-7

1. Frege, Gottlob, 1848-1925. 2. Russell, Bertrand, 1872-1970. 3. Wittgenstein, Ludwig,


1889-1951. 4. Austin, J. L., ( John Langshaw), 1911-1960. 5. Linguagem - Filosoia. 6.
Hermenêutica. 7. Análise (Filosoia). 8. Atomismo (Filosoia). 9. Lógica. I. Título.

CDU: 1:81

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Sumário
Introdução 5
Módulo 1 Linguagem e Filosofia 8
1. Filosofia e linguagem 11
2. Mais sobre filosofia analítica - leitura complementar 17

Módulo 2 Gottlob Frege: sobre sentido e referência 24


1. Frege e as origens da filosofia contemporânea 27
da linguagem
2. Princípio fregeano de contexto 28
3. Frege e os Fundamentos da Aritmética: 30
a base da filosofia analítica
4. Sobre sentido e referência 32
5. Mais sobre Frege – leitura complementar 34

Módulo 3 Bertrand Russell e o atomismo lógico 42


1. Bertrand Russell: aspectos biográficos 45
2. Atomismo lógico: a análise lógica da linguagem 46
Módulo 4 Ludwig Wittgenstein e o Tractatus
Logico-philosophicus 54
1. Ludwig Wittgenstein: uma vida, dois pensamentos 57
2. Iniciação à leitura do Tractatus 57
3. Tractatus Logico-Philosophicus: pressupostos 62
4. A base ontológica do Tractatus 63
5. A teoria do isomorfismo 67

Módulo 5 Ludwig Wittgenstein e as Investigações


Filosóficas 70
1. Ludwig Wittgenstein: do Tractatus Logico-Philosophicus 73
às Investigações Filosóficas
2. O método das Investigações Filosóficas 75
3. Os problemas da filosofia: problemas de linguagem 76
4. O conceito de jogos de linguagem 77
5. Mais sobre o texto: outro comentário 79

Módulo 6 John L. Austin: a linguagem e a mente 84


1. John L. Austin: a linguagem como saída 87
para problemas da filosofia da mente
2. Entendendo o problema “outras mentes” 89
(other minds problem)
3. O tratamento de Austin ao problema 91
4. O conhecimento de “outras mentes” 93
Introdução
Desde o nascimento da ilosoia, os problemas referentes à linguagem e sua
natureza têm sido matéria de importantes debates. O diálogo Crátilo, de Pla-
tão, ou as obras Categorias e Da Interpretação, de Aristóteles, são exemplos
disso já na ilosoia antiga. Também durante a Idade Média e durante aquilo
que se convencionou chamar de período moderno da ilosoia pode ser
encontrado um rico debate sobre a linguagem e questões a ela relacionadas.
Entretanto, se a linguagem foi vista durante séculos na ilosoia como um
dentre vários outros objetos ilosóicos, isso mudará consistentemente nos
séculos XIX e XX, quando o estudo da linguagem passará a ser o fundamento
de toda e qualquer pesquisa ilosóica – e é exatamente sobre este debate que
este livro se concentrará.
Escrito de forma sucinta e não pretendendo esgotar a vasta gama de teo-
rias presentes na ilosoia contemporânea sobre a linguagem, o presente
livro introduz o leitor aos debates mais clássicos da área, especialmente da
ilosoia analítica, por meio da aproximação ao pensamento de Gottlob Frege,
Bertrand Russell, Ludwig Wittgenstein e John L. Austin. Muito mais do que se
aprofundar na teoria de tais pensadores, o objetivo aqui será exclusivamente
o de iniciar o leitor nessa área ilosóica, i.e., servir como um caminho pri-
meiro para que se possa, posteriormente à leitura, buscar a compreensão do
debate contemporâneo sobre a linguagem de modo autônomo e crítico. Vale
lembrar que a compreensão desse processo teórico é fundamental para todos
aqueles que estudam filosofia e almejam ter conhecimento daquilo que se
convencionou chamar de ‘virada linguística’ (linguistic turn) da ilosoia, uma
conditio sino qua non para a compreensão dos problemas existentes na em
boa parte da ilosoia atual.
Assim sendo, no primeiro capítulo buscaremos apresentar a importân-
cia da linguagem como tema da ilosoia. Além disso, buscaremos mostrar o
patamar de relevância da linguagem na ilosoia contemporânea, bem como
a distinção de duas escolas ilosóicas que centram sua atenção no trato da
linguagem, a saber, a hermenêutica e a analítica.

5
No segundo capítulo faremos uma introdução ao pensamento de Gottlob
Frege. O entendimento dos conceitos centrais de sua ilosoia, bem como os
problemas basilares por ele tratados, permitirão uma melhor compreensão
do contexto histórico da origem da ilosoia analítica da linguagem. Após o
entendimento dos conceitos basilares da ilosoia de Frege, serão tratados –
no terceiro capítulo - os pontos centrais da proposta de Bertrand Russell para
a lógica, suas diferenças para com o pensamento de Frege e, ainda, sua pro-
posta ilosóica pautada na ideia de “atomismo lógico”. Conceitos como “sense
data”, “termos simples” e “átomo lógico” serão centrais nessa empreitada.
O momento ‘logicista’ da ilosoia da linguagem contemporânea terá seu
auge na ilosoia exposta por Wittgenstein, em sua obra Tractatus Logico-Phi-
losophicus – tema do quarto capítulo. Por isso, no quarto capítulo introdu-
ziremos o leitor à leitura daquilo que icou conhecido como o pensamento
do “primeiro Wittgenstein”, i.e., às ideias presentes em sua obra Tracta-
tus Logico-Philosophicus. Decerto, a obra possui certo grau de diiculdade de
entendimento e, por isso, objetivo aqui é, muito longe de exaurir o debate
sobre a obra, apenas iniciar o leitor naquela que pode, irreversivelmente, ser
considerada uma das mais clássicas obras de ilosoia do século XX.
Após a análise da fase logicista da ilosoia da linguagem, abordaremos um
momento posterior da ilosoia analítica por meio da analise da obra Inves-
tigações Filosóicas, também de Wittgenstein. A relevância dessa obra para o
pensamento é inquestionável, seja para a ilosoia, seja para outras áreas pró-
ximas. Por esse motivo, faremos uma análise das partes principais da obra, a
im de introduzir o leitor nos principais conceitos dessa fase importante do
que é tradicionalmente classiicado como ilosoia do “segundo Wittgenstein”.
Por im, no último capítulo, estudaremos outro importante expoente
da ilosoia analítica, John L. Austin, sobretudo no que tange ao seu artigo
Outras Mentes (1946). A questão central que norteia o artigo de Austin é: o
que signiica dizer que há a ‘mente’ ou, mais especiicamente, ‘outras men-
tes’? Em sua argumentação, Austin conclui que tal problema não pertence ao
nível ontológico (o que é a mente), mas sim ao nível linguístico (o que signi-
ica ‘mente’) e, assim sendo, uma análise aprofundada da linguagem ordiná-
ria pode fazer com que as implicações metafísicas provenientes do problema

6
sobre a natureza da mente sejam resolvidas. Nesse sentido, analisaremos
neste capítulo a argumentação proposta por Austin a im de observar como é
possível entender e de certa forma solucionar o ‘problema de outras mentes’
– assim como tantos outros problemas metafísicos tradicionais - sob a pers-
pectiva da ilosoia da linguagem contemporânea.
Nesse sentido, espera-se que esse manual sirva ao leitor como um pri-
meiro passo na busca ilosóica do conhecimento dessa área tão relevante
não só para a ilosoia contemporânea, mas para várias ciências coligadas -
como linguística, ciências cognitivas, neurociências, dentre outras. Enten-
der a linguagem é uma maneira profícua de se buscar a compreensão do
ser humano, da existência e do conhecimento; se queremos tratar de algo,
só o podemos por meio da linguagem – logo, uma melhor compreensão da
linguagem se revela um importante instrumento para o entendimento das
questões ilosóicas. Ainal, como diria Wittgenstein, “os limites da minha lin-
guagem denotam os limites do meu mundo.”

7
Módulo 1
Linguagem e Filosofia
10
1. Filosofia e linguagem
O que podemos entender com o termo “ilosoia da linguagem? É sabido que,
desde o nascimento da ilosoia, os problemas referentes à linguagem e sua
natureza têm sido matéria de debates importantes. Como exemplo, pode-
mos citar o diálogo Crátilo, de Platão, no qual o ilósofo se questiona se os
nomes signiicariam algo essencialmente ou se seriam apenas construídos
de forma convencional. Aristóteles também deu relevante tratamento à lin-
guagem. Em sua obra Categorias, formulou uma importante pesquisa sobre a 1 Como exemplo da pesquisa ilosóica
sobre a linguagem presente na história da
estrutura de signiicação por meio de termos simples (sujeitos e predicados) ilosoia, podemos citar, e.g., o debate sobre
que, de forma conjunta, formariam proposições com sentido. No Da Inter- os universais na Idade Média, ou, ainda, as
incursões ilosóicas encontradas no período
pretação, Aristóteles se propôs a analisar o modo como as palavras se relacio- moderno sobre a linguagem e o conheci-
nam com as ideias e com o mundo. mento. Como exemplo, podemos citar aqui
John Locke, que em seu Ensaio sobre o Enten-
Pode-se airmar, com certo grau de certeza, que as concepções clássicas de dimento Humano (1689) analisou o modo
como os termos signiicam ideias e, ainda,
Platão e Aristóteles a respeito da linguagem inluenciaram o pensamento oci- Jean-Jacques Rousseau, que na obra Ensaio
dental durante vários séculos.1 Porém, esse tratamento lidava com a lingua- sobre a origem das línguas (1781) dedicou
seus estudos à análise da origem das línguas.
gem como um dentre vários outros objetos ilosóicos (ética, religião, estética,
etc.) – e é exatamente o modo de tratamento e o lugar dado à linguagem que 2 “A virada linguística deu novo sentido
ao problema epistemológico tal como foi
sofre uma mudança signiicativa nos séculos XIX e XX. A essa mudança de proposto desde Hume e Kant. A ilosoia do
perspectiva de análise na ilosoia contemporânea relativa à linguagem damos sujeito ou da consciência, presa ao plato-
nismo, realça a subjetividade privada em seu
o nome de virada linguística da Filosoia.2 momento de representação mental ou relexo
especular da realidade. Pela tradicional teo-
Podemos, como forma didático-ilustrativa, situar três pensadores como
ria do conhecimento, essa relação mente/
precursores fundamentais da virada linguística no pensamento ilosóico. São mundo era central, a linguagem e a comunica-
ção eram secundárias. […] Ora, justamente o
eles: Friedrich Schleiermacher, Friedrich Nietzsche e Friedrich Gottlob Frege. que a virada linguística contesta é essa neces-
Esses três pensadores compreenderam que a linguagem não era um objeto dis- sidade epistemológica de que, para haver
representações exatas, é preciso uma teoria
tinto ou exterior ao pensamento e à ilosoia, mas, inversamente, airmavam das representações privilegiadas. Essa mesma
que tanto o pensamento quanto a atividade ilosóica seriam atividades realiza- teoria sobre as teorias precisava ser “auto-
maticamente e intrinsecamente exata”. Esses
das pela e na linguagem. Logo, o estudo da linguagem estaria como fundamento “problemas” do conhecimento são dissolvidos
pela consideração de que no lugar da mente
de toda e qualquer pesquisa ilosóica. Nesse sentido, conceitos clássicos da que conhece, no lugar da razão imperial e
ilosoia – como sujeito, ser, consciência, dever – seriam de fato derivações de do entendimento com suas formas puras a
priori sintetizando o mundo, há a proposição
funções gramaticais. Assim, os problemas seriam, fundamentalmente, proble- dizendo o mundo” (araújo, 2004, p. 107).
mas de linguagem (ou oriundos de uma concepção de linguagem particular).

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Para Schleiermacher, a linguagem seria a maneira pela qual o pensa-
mento torna-se efetivo. Assim, ai rma o autor: “Tudo que é pressuposto
na hermenêutica é apenas linguagem e, por sua vez, o que alcançamos pela
hermenêutica também é linguagem; o lugar a que pertencem os outros
pressupostos objetivos e subjetivos tem de ser encontrado através e a partir
da linguagem” (schleiermacher, 1999).

Friedrich Schleiermacher (1768–1834) nasceu em


Breslau, na Prússia. É considerado um dos maiores
e mais inluentes teólogos alemães do século XIX.
Além do interesse pela teologia, dominava latim,
grego e hebreu, além de possuir um profundo conhe-
cimento de ilosoia. Em 1810, foi o primeiro teólogo
convidado a ensinar na Universidade de Berlim.
Seus trabalhos ilosóicos fundaram a área moderna
da hermenêutica.

Podemos observar que, para Schleiermacher, a linguagem constituiria o


pensamento, uma vez que seria impossível pensar sem o uso da linguagem.
Dessa maneira, a linguagem não seria um objeto qualquer de análise ilosó-
ica, mas o caminho pelo qual podemos pensar de forma objetiva.
De forma similar, Nietzsche também dá à linguagem um novo patamar de
relevância, dizendo que ela seria o meio entre o pensamento e o real e, por isso,
a linguagem coniguraria a maneira de pensarmos o mundo e suas relações.

[…] na medida em que o preconceito racional nos força a pôr a uni-


dade, a identidade, a duração, a substância, a causa, a coisidade, o
ser, vemo-nos por assim dizer enredados no erro, coagidos ao erro;
porque, em virtude de um exame estrito, estamos seguros de que o
erro ali se encontra. […] A linguagem, segundo sua origem, inscreve-
se na época da mais rudimentar forma de psicologia: mergulhamos

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num feiticismo baço quando trazemos à consciência os pressupos-
tos fundamentais da metafísica da linguagem, isto é, da razão. A
consciência vê por toda a parte atores e ação: crê na vontade como
causa em geral; crê no “Eu, no eu como ser, no eu como substância
e projeta a fé na substância do eu em todas as coisas – e assim cria
o conceito “coisa” […]. O ser é em toda parte pensado, presumido,
como causa; da concepção do “Eu” segue-se, como derivado, o con-
ceito de “ser. […] Na realidade, nada até agora teve uma força de con-
vicção mais ingênua do que o erro do ser, tal como foi, por exemplo,
formulado pelos eleatas: tem a seu favor cada palavra, cada frase que
pronunciamos! – Mas também os adversários dos eleatas se sujei-
tavam à sedução do seu conceito de ser: Demócrito, entre outros,
quando descobriu o átomo […] A “razão” na linguagem: oh, que
velha mulher enganadora! Receio que não nos livremos de Deus,
porque ainda cremos na gramática (nietzche, p. 32).

Friedrich Nietzsche nasceu em 1844, na Alemanha,


no seio de uma família de pastores protestantes; che-
gou a pensar em seguir a mesma carreira do pai, mas
terminou por criticar o cristianismo, classiicando-o
de “platonismo para o povo”. Sua crítica baseia-se na
concepção de que a moral e o pensamento do cristia-
nismo seriam a vulgarização da metafísica platônica
e socrática, que, em sua opinião, inaugurou o conhe-
cimento racional, característico da época moderna.
O pensamento socrático teria sido originado pela
invenção e dogmatização de ideias ditas superiores — Bem, Belo, Verdade — cria-
das, na realidade, pelas consciências “enfraquecidas” e “escravas”. Tais valores foram
criados, airma Nietzsche, para escapar à luta e impor a resignação, compensando
a impossibilidade de participação na dominação dos senhores e dos fortes, desen-
volvida até a modernidade. Esse afastamento do cristianismo deveu-se, em parte, ao
contato com os pensamentos de Fichte (1762–1814), Hölderlin (1770–1843) e outros

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professores. Brilhante aluno, Nietzsche dedicou-se ao estudo de latim, grego, textos
bíblicos e ilologia, que considerava, a exemplo de Ritschl, não apenas a história das
formas literárias, mas o estudo das instituições e do pensamento.
Foi nomeado professor de ilologia na Basileia, onde trabalhou durante dez anos
até que seu estado de saúde não lhe permitiu mais continuar, fazendo com que pedisse
demissão do cargo. A obra de Schopenhauer o atraiu para o campo da ilosoia, por
considerar a experiência estética o eixo central do pensamento ilosóico. Mas tanto
as teorias de Schopenhauer como as dos outros mestres foram radicalmente rejeitadas
por Nietzsche, inclusive as teorias musicais de Wagner, cuja produção artística havia
enaltecido; todos pareciam-lhe “decadentes”, ou melhor, seus pensamentos eram vis-
tos como manifestações negativas, diminuidoras de vida. Isso porqueseus valores
impunham-se como “transcendentais”, “verdadeiros”, enquanto Nietzsche os via ape-
nas como criações do “homem do ressentimento”, isto é, do homem fraco. A crítica
de Nietzsche advém de sua preocupação com a modernidade europeia, propiciada
pelo positivismo de Augusto Comte e pela teoria da origem e evolução das espécies de
Darwin(1809–1882), que trazia uma nova visão de homem e provocava violento debate
com a teologia e a ilosoia. Nietzsche criticava todas as teorias cientíicas, teológicas
e ilosóicas. Nietzsche escreveu seus textos de forma aforística, com poesias ou pen-
sando a “história”,retrospectivamente, não para marcar semelhanças do passado com
o presente e daí copiar soluções,mas para entender suas condições de possibilidade.
Mesmo quando tratava da antiga Grécia, a crítica de Nietzsche visava a cultura ociden-
tal moderna, seus valores, suas concepções de Estado, de nacionalismo e de antisse-
mitismo. Para ele, o Estado moderno era uma manifestação negativa de dominação,
que entravava o movimento da cultura dos “espíritos livres”, tornando-a estática e
estereotipada; o Estado moderno não correspondia sequer aos preceitos ideológicos
e ilosóicos airmados pelo pensamento liberal ou pela teoria de Hegel, então propa-
gados, e por Nietzsche rejeitados. É nesse sentido que caminham seus escritos: Nasci-
mento da tragédia (1871), O andarilho e sua sombra (1880), Aurora e Eterno retorno (1881),
A gaia ciência (1886), Assim falou Zaratustra (1884), Para além do bem e do mal (1886),
O caso Wagner, Crepúsculo dos ídolos e Nietzsche contra Wagner (1888), publicados em
vida. Ecce Homo, O Anticristo e Vontade de potência (que é uma seleção, arranjada postu-
mamente, de anotações feitas entre 1883 e 1888) foram publicados depois de sua morte.
Crítico demolidor, Nietzsche foi se isolando, merecendo cada vez menos a atenção dos

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intelectuais que o haviam prestigiado. Doente e mergulhado em profunda solidão, aca-
bou sendo internado por “paralisia progressiva”, provavelmente de origem siilítica.
A 25 de agosto de 1900, faleceu o crítico mais radical que a modernidade conheceu.

Frege, assim como Nietzsche, também acusa a linguagem de induzir a his-


tória do pensamento a erros ilosóicos fundamentais. Sobre isso, Frege alerta:

A linguagem valeu-se de outros meios. Para a construção de um


conceito sem conteúdo serve-se ela de cópula, isto é, a simples
forma do enunciado sem conteúdo. Na sentença “O Céu é azul” o
enunciado é “é azul”, mas o conteúdo real está na palavra “azul”. Se
esta é eliminada, então obtém-se um enunciado sem conteúdo: o
“O céu é” é restante. Desse modo constrói-se um quase-conceito
“ser” sem conteúdo, porque de extensão ininita. Agora pode-
se dizer: homem = homem sendo; “há homens” é o mesmo que
“alguns homens são” ou “alguns entes são homens”. O conteúdo
real do enunciado não está aqui na palavra “ser”, mas na forma dos
enunciados particulares. A palavra “ser” é apenas um expediente da
linguagem para poder tornar empregável a forma dos enunciados
particulares. Quando os ilósofos falam do “ser absoluto” trata-se aí
propriamente de um endeusamento da cópula (frege, 1978, p. 182).

As passagens de Nietzsche e Frege citadas acima nos sugerem que tais


ilósofos indicam a existência de certa ilusão na ilosoia proveniente da lin-
guagem. Essa confusão é oriunda do equívoco de se tomar necessidades lin-
guísticas como sendo necessidades reais. Tal confusão só seria devidamente
trabalhada algumas décadas depois por pensadores que deram continuidade
à relexão sobre essa questão e, ainda hoje, a divisão concisa dessas duas
necessidades é tomada como uma das mais sólidas bases metodológicas da
atividade ilosóica.
Apesar de ambos os pensadores terem em comum a crítica ao tratamento
dado à linguagem ao longo da história da ilosoia, é de suma importância

15
ressaltar que Nietzsche e Frege pertencem a tradições contemporâneas com-
pletamente distintas no tratamento da linguagem. Mais que isso, ambos
também possuem certo grau de inluência no fundamento dessa divisão.
Assim, enquanto Nietzsche faz parte da tradição da Filosoia Hermenêutica,
Frege, diferentemente, pertence à tradição da Filosoia Analítica. Convém res-
saltar, mesmo que brevemente, as diferenças mais básicas desses dois pen-
sadores e, consequentemente, as diferenças entre essas duas correntes, uma
vez que elas estão presentes de forma relevante na ilosoia contemporânea.

1.1 Analítica e Hermenêutica: distinções básicas

Segundo Frege, as linguagens naturais seriam construções histórico-sociais


que rotineiramente nos induziriam a erros graves na ilosoia, sobretudo por
não estarem devidamente fundamentadas em rígidas leis lógicas. Por esse
motivo, ter-se-ia, então, a necessidade de construção de uma linguagem –
3 O pensamento de Frege será melhor ainda que formal e simbólica – que eliminasse esses problemas.3 Contudo,
estudado no Módulo 2.
diferentemente de Frege, Nietzsche crê que os problemas oriundos da lin-
guagem seriam insolúveis, pois a linguagem sempre seria dada de forma
histórico-social e reletiria a diversidade da existência humana. Assim, per-
cebe-se de forma nítida uma diferença básica e estrutural no modo como
esses dois ilósofos tratam a linguagem.
Temos que Frege acredita na possibilidade da solução do problema relativo
aos enganos provindos de uma linguagem ordinária dada historicamente,
sobretudo por meio da criação de uma linguagem lógica livre de ambigui-
dades e que represente os fatos do mundo de forma correta. Seguindo essa
tendência, podemos dizer, ainda que com algumas ressalvas, que a ilosoia
analítica busca desde então esse ideal, a saber, a construção de um pensa-
mento rigorosamente dado por meio de leis lógicas.
Nietzsche, opostamente a Frege, acredita que o objetivo buscado não deve
ser o da criação de uma linguagem sólida, fundamentada em princípios rigo-
rosos e que evite as contradições e ambiguidades. De modo distinto, ele crê
que ambiguidades sempre estarão presentes na linguagem e a melhor forma

16
de tratamento a esses problemas seria por meio da interpretação: é sobre essa
base que segue a tradição hermenêutica da ilosoia.
Embora seja nítida a relação do tratamento da linguagem dada pela her-
menêutica, cabe ressaltar que o curso que aqui se segue tratará, quase que
exclusivamente, da ilosoia analítica da linguagem, principalmente o período
que vai dos escritos de Gottlob Frege (1848–1925) até os escritos de Ludwig
Wittgenstein (1889–1951). Nesse período, podemos destacar como um pro-
blema central a relação entre pensamento, linguagem e mundo (também
tradicionalmente conhecida como a questão do sentido e da referência). A
preferência dada aqui à análise da ilosoia analítica se justiica na medida
em que vários temas e autores da hermenêutica são estudados também em
outros campos da ilosoia (como ética, ilosoia política, estética, ilosoia
da religião), enquanto que com a ilosoia analítica, alguns temas são pon-
tualmente e essencialmente dirigidos ao tratamento da linguagem, ainda
que outras áreas se interessem e mantenham relação com alguns teóricos
da analítica (sobretudo com Wittgenstein). Não suicientemente, resta ainda
ressaltar que a ilosoia analítica atingiu níveis de progresso grandiosos nas
últimas décadas e, juntamente com outras áreas – como psicologia, linguís-
tica, neurociências –, tem dado contribuições signiicativas para o entendi-
mento das ciências cognitivas contemporâneas.

2. Mais sobre Filosofia Analítica –


leitura complementar
2.1 Anthony Quinton – Filosofia Analítica

Na sequência, você terá acesso, ainda que de forma resumida, a um breve


resumo do desenvolvimento da ilosoia analítica no século XX. Esta explica-
ção, além de oferecer um olhar mais atento à abrangência da ilosoia analí-
tica, servirá também como base para a compreensão da importância do que
será estudado nos capítulos vindouros. Assim sendo, boa leitura!

17
Filosofia Analítica
(Texto extraído de: QUINTON, A in: HONDERICH, Ted. Oxford Companion to
Philosophy. Oxford: Oxford University Press, 1999.)

A ilosoia analítica desenvolveu-se grandiosamente no século XX com a


chegada de Wittgenstein a Cambridge em 1912 para estudar com Bertrand
Russell e, como acabou por acontecer, para inluenciá-lo de forma signi-
icativa. Entre as duas guerras mundiais, devido à inluência dos escri-
tos de Russell e do Tratactus Logico-Philosophicus (1922) de Wittgenstein, a
ilosoia analítica acabou por dominar a ilosoia britânica. Na década de
trinta, as ideias de Russell e Wittgenstein foram adotadas e desenvolvidas
de modo sistemático, e mais radical, pelos positivistas lógicos do círculo de
Viena e por Reichenbach e o seu círculo em Berlim. Surgiram ainda grupos
de simpatizantes na Polônia e na Escandinávia e alguns aderentes distin-
tos dispersos pelos Estados Unidos (onde muitos dos positivistas europeus
se refugiaram), como Nagel e Quine. A radical alteração de ideias do der-
radeiro Wittgenstein, que regressou a Cambridge em 1929, mais próximas
agora do primeiro aliado de Russell, A. G. Moore, ganhou uma inluência
crescente; sob o rótulo de “ilosoia linguística” tornou-se preponderante
nos países de língua inglesa de 1945 até os anos sessenta. Desde a fase pós-
-positivista aos dias de hoje, a ilosoia de língua inglesa é principalmente
analítica, no antigo sentido pré-linguístico, ainda que contemple variadís-
simos métodos e doutrinas.
Russell e Moore tornaram-se pensadores originais na primeira década
do século ao romperem claramente com o tipo de idealismo professado por
Bradley no qual se formaram. Argumentaram contra a perspectiva de que a
realidade é por natureza mental, constituindo uma unidade não analisável,
e defenderam que a sua pluralidade inclui uma multiplicidade indeinida de
coisas; defenderam também que estas coisas pertencem a diferentes cate-
gorias fundamentais — materiais e abstratas, tal como mentais. Minaram
fatalmente a teoria idealista segundo a qual todas as relações são internas,

18
inerentes ao que relacionam e, de forma menos persuasiva, que os objetos
imediatos da percepção são conteúdos subjetivos da consciência.
Durante este período, Russell ocupou-se da lógica. Deiniu os concei-
tos básicos da matemática em termos puramente lógicos e procurou, com
menor sucesso como mais tarde se veriicaria, deduzir os princípios funda-
mentais da matemática a partir unicamente de leis lógicas. Com a sua teoria
das descrições, forneceu um novo tipo de deinição, as deinições contex-
tuais, que não consistem em correlacionar sinônimos com sinônimos, mas
em regras que permitem substituir frases nas quais a palavra a deinir ocorre
por frases onde não ocorre. Este fato foi descrito por F. P. Ramsey como o
“paradigma da ilosoia”.
Trabalhando conjuntamente com Wittgenstein entre 1912 e 1914, Rus-
sell elaborou as concepções reunidas sob a designação de “atomismo lógico”,
expostas de forma casuística em Our Knowledge of the External World (1914)
e Philosophy of Logical Atomism (1918) e, de maneira sistemática, mas obscura,
no Tratactus de Wittgenstein. Sustentaram que o pensamento e o discurso
são analisáveis em proposições elementares que representam diretamente
estados de coisas, complexos constituídos por relações que os termos lógi-
cos “não”, “e”, “ou”, “se” e, talvez, “todos” simbolizam (Russell, ao contrário
de Wittgenstein, considerou o último irredutível). A verdade ou falsidade das
proposições complexas resulta do modo como verdade e falsidade se encon-
tram distribuídas entre os componentes elementares. Algumas proposições
são verdadeiras qualquer que seja o valor de verdade dos seus componentes
elementares e constituem as verdades da lógica e da matemática.
Ambos acreditavam que a linguagem comum ocultava o verdadeiro con-
teúdo lógico das proposições complexas, que só poderia tornar-se claro
mediante o tipo de redução analítica proposta. As proposições que não
podem ser analisadas em asserções de fato elementares são consideradas
“metafísicas” — por exemplo, as proposições éticas e religiosas. Sustentaram
também que as proposições elementares representam o mundo tal como
realmente é. No entanto, extraíram daqui diferentes conclusões ontológi-
cas. Wittgenstein concluiu que as proposições elementares revelam a estru-
tura do mundo em geral. Russell, interpretando as proposições elementares

19
numa perspectiva empirista, defendeu que exibem os conteúdos imediatos
dos sentidos e concluiu, de acordo com o monismo neutral, que só existem
acontecimentos experienciáveis; as mentes que realizam as experiências e
os objetos cuja existência é deste modo atestada são apenas construções com
base na experiência, e não objetos dela independentes. Incluiu aqui a análise
de partículas materiais, pontos no espaço e instantes temporais, desenvolvi-
das no início dos anos vinte por A. N. Whitehead, com quem colaborou nos
primeiros trabalhos lógico-matemáticos.
O Círculo de Viena, liderado por Carnap e Schlick, adotou a concepção
segundo a qual a ilosoia consiste em análise lógica e que a lógica e a mate-
mática são disciplinas analíticas (puramente formais e empiricamente vazias).
Seguiram Russell ao considerarem as proposições elementares como relatos
da experiência imediata e, com base nesta ideia, defenderam que o critério de
sentido é a veriicação pela experiência. Os juízos de valor, desprovidos de sig-
niicado à luz deste critério, constituem imperativos (ou expressões de estados
emocionais), e não asserções; as asserções de conteúdo religioso e teológico
seriam, na melhor das hipóteses, manifestações poéticas. Rejeitaram, contudo,
as ontologias analíticas dos seus predecessores. Contra Wittgenstein, defende-
ram que a linguagem é convencional, e não pictórica ou representativa. Con-
tra Russell, sustentaram que os corpos e as mentes não são menos reais que os
acontecimentos, apesar de se tratar de construções e não de elementos.
O Positivismo Lógico foi introduzido nos países de língua inglesa pelo
livro de A. J. Ayer Linguagem, Verdade e Lógica (1936). Mas, enquanto atin-
gia o pico da fama ilosóica, uma nova tendência encontrava-se já em for-
mação no círculo razoavelmente esotérico de Wittgenstein. A linguagem,
sustentava Wittgenstein agora na sua nova encarnação ilosóica, não é ape-
nas descritiva ou factual; possui uma multiplicidade de usos e o seu signii-
cado reside no modo como é empregada. Não contém uma essência lógica
cuja natureza cabe à análise revelar; tem, ao contrário, uma história natu-
ral, e à ilosoia compete a tarefa terapêutica de descrevê-la e de eliminar as
diiculdades conceituais a que dá origem. As crenças que possuímos sobre
os estados mentais de outras pessoas, por exemplo, não podem ser analisa-
das com base nos indícios que deles temos; esses indícios mantêm com as

20
nossas crenças uma relação mais tênue que os “critérios” a que recorremos
para considerá-las verdadeiras. Esta atitude de acolhimento, ao invés de uma
reconstrução ou interpretação em larga escala do discurso corrente, tem ai-
nidades com a prática de Moore relativamente ao senso comum e à lingua-
gem comum. Esta prática assumiu diferentes conigurações em Oxford no
pós-guerra: recorrendo alegremente às deinições, com Ryle, ou escrupulo-
samente lexicográica, com J. L. Austin. Foi esta a ilosoia linguística cen-
trada em Oxford de 1945 a 1960.
A análise ilosóica, num espírito mais ou menos russelliano, mas assu-
mindo variadíssimas manifestações, manteve-se desde o seu renascimento
nos anos sessenta até os nossos dias. W. V. Quine foi quem mais a desenvolveu,
tendo contribuído para a sua difusão. Numa fase ainda inicial da sua carreira
rejeitou a ideia de que existe uma clara distinção entre verdades analíticas e
não analíticas. Esta rejeição colocou em causa a atividade de análise e assi-
milou a lógica, a matemática e a ilosoia a um resíduo empírico da ciência.
A teoria veriicacionista do signiicado foi amplamente criticada, em grande
medida por ser autorrefutante, em especial por Popper, que baseou uma
nova explicação da ciência na tese de que a falsiicabilidade constitui o cri-
tério, não do signiicado, mas do estatuto cientíico. Os dois espécimes mais
notáveis de análise redutiva (a concepção fenomenista dos objetos materiais
como sistemas de aparências, atuais ou possíveis, e a teoria comportamenta-
lista dos estados mentais como disposições para agir de modo determinado
em circunstâncias particulares) foram, em geral, abandonadas e sujeitas a
um escrutínio minucioso nos trabalhos de vários materialistas australianos,
por exemplo, D. M. Armstrong e J. J. C. Smart. Defenderam que possuímos,
ainda que de forma inerentemente falível, uma consciência direta dos obje-
tos materiais e que os estados mentais de que temos consciência são, na reali-
dade, idênticos aos estados do cérebro que produzem o comportamento.
Não existe hoje muita análise nos trabalhos dos mais informados prati-
cantes da ilosoia analítica, como Putnam e Nozick. Mas pensam e escrevem
no espírito analítico, com respeito pela ciência, e consideram-na um para-
digma da crença racional, trabalhando em conformidade com o seu rigor
argumentativo, a sua clareza e determinação em pensar de um modo objetivo.

21
Bibliografia:

ARAÚJO, Inês. A natureza do conhecimento após a virada linguístico-pragmá-


tica. Aurora Revista de Filosoia. Curitiba, v. 16 n.18, p. 103–137, jan./jun. 2004.

BRAIDA, Celso Reni. Filosoia da Linguagem. Florianópolis: Filosoia/EAD/


UFSC, 2009.

FREGE, Gottlob. Lógica e Filosoia da Linguagem. Trad. Paulo Alcoforado.


São Paulo: Ed. Edusp, 1978.

HONDERICH, Ted. Oxford Companion to Philosophy. Oxford: Oxford Uni-


versity Press, 1999.

MIGUENS, Soia. Filosoia da Linguagem. 2007. Porto: Ed. Faculdade de


Letras da Universidade do Porto, 2007.

Vídeos e materiais de suporte:

Filosoia da Linguagem: http://criticanarede.com/linguagem.html

Filosoia da Linguagem: http://www.ilosoia.seed.pr.gov.br/modules/conteudo/


conteudo.php?conteudo=215

22
23
Módulo 2
Gottlob Frege: sobre
sentido e referência
26
1. Frege e as origens da filosofia
contemporânea da linguagem
Friedrich Ludwig Gottlob Frege nasceu em Wismar,
no dia 08 de novembro de 1848. Seus trabalhos tinham
como base relexões ilosóicas sobre a matemática e a
lógica, tendo o próprio ilósofo sido um dos principais
criadores da lógica matemática moderna. As obras de
Frege permaneceram desconhecidas e ignoradas por
um bom tempo. Sua relevância e seu conhecimento
hoje se devem, sobretudo, à inluência que Russell,
Carnap e Wittgenstein tiveram na divulgação.

Gottlob Frege teve formação acadêmica matemática. Sua teoria da lingua-


gem tem como ponto central uma recusa às teses modernas sobre a signii-
cação dos termos presentes na linguagem. Nesse sentido, Frege irá contrapor
a visão da tradição ilosóica do papel essencial das ideias ou representações
mentais no processo de signiicação. Uma análise dos temas presentes em
alguns de seus escritos principais (principalmente o Bregrifsschrift, o Über
Sinn und Bedeutung e os Fundamentos da Aritmética) promoverá em nossa
leitura a compreensão dos raciocínios basilares de seu projeto ilosóico, bem
como do impacto e importância de tal projeto para a ilosoia analítica. Assim
sendo, podemos destacar três eixos conceituais centrais na ilosoia da Frege:

• a invenção de uma escrita simbólica (formal) com o intuito de sanar


os problemas oriundos da inadequação da linguagem natural para a
expressão dos pensamentos, i.e., uma linguagem formal que permita
observar apenas o conteúdo conceitual das proposições. Esse eixo está
presente sobretudo em sua obra Begrifsschrift (comumente traduzida
para o português sob o nome de “Conceitograia” ou, ainda, “Ideograia”);

27
• a pesquisa sobre a natureza do conceito de número, tema central de
sua obra Fundamentos da Aritmética;
• um estudo rigoroso sobre as noções de sentido e referência presentes
nos conceitos e nas proposições, tal como exposto na obra Sobre sen-
tido e referência [Über Sinn und Bedeuntug].

Entretanto, a im de melhor entender a relevância dessas linhas teóricas,


devemos agora analisar o “princípio do contexto” elaborado por Frege em sua
obra Fundamentos da Aritmética. O entendimento desse princípio nos intro-
duzirá na compreensão dos problemas expostos por Frege, bem como sua
peculiar maneira de fazer ilosoia.

2. Princípio fregeano de contexto


Segundo o princípio fregeano do contexto, as palavras não poderiam
signiicar nada de forma isolada, mas apenas enquanto presente em um
contexto de frase. Por mais simples que a primeira vista possa parecer, tal
princípio representa uma grandiosa revolução no modelo de realização das
pesquisas ilosóicas sobre a linguagem existentes até então. Sobre o princí-
pio, Frege diz:

Os princípios fundamentais que adoptei nesta investigação foram os


seguintes: é necessário separar com nitidez o que é psicológico do
que é lógico, o que é subjectivo do que é objectivo; só se pode pergun-
tar pela denotação de uma palavra no contexto de uma proposição, e
não considerando-a isoladamente; deve manter-se sempre presente
a distinção entre conceito e objeto. (frege, 1992, p. 34).

Cabe ressaltar que, em concordância com o projeto ilosóico de Frege,


seu “objeto de estudo” seria apenas o pensamento e a verdade. Entretanto,
segundo o ilósofo, nós só poderíamos ter acesso a esses dois objetos por
meio da linguagem. Nesse sentido, percebemos que o interesse de Frege

28
é bem próximo de abordagens clássicas presentes na história da ilosoia
que, desde Platão, Aristóteles e perpassando por Descartes e/ou Kant ten-
tam compreender como é possível o pensamento e qual sua relação com a
verdade. Desse modo, podemos dizer – embora com alguma ressalva – que
a novidade proposta por Frege não se refere ao objeto de estudo ilosóico
(pensamento e verdade), mas sim ao modo de fazê-lo. Segundo o ilósofo,
devemos agora nos concentrar na investigação ilosóica sobre a linguagem
usando de ferramentas lógicas para entender a relação entre pensamento e
verdade. Não somente isso, o próprio Frege desenvolve as ferramentas lógi-
cas que irá usar em seu projeto.
Sobre as ferramentas lógicas desenvolvidas por Frege, é importante ressal-
tar – em concordância com as palavras do próprio ilósofo – que a linguagem
simbólica (ou “escrita conceitual”) desenvolvida por ele está para a lingua-
gem comum como um microscópio está para o olho. Noutros termos, quando
é necessário o uso de uma alta qualidade e deinição conceitual, a linguagem
comum – também chamada de linguagem natural – seria insuiciente.
No Begrifsschrift, Frege buscará compreender a análise da linguagem em
termos de função e argumento, e não mais em termos de sujeito e predicado (tal
como se fundamentava a lógica desde Aristóteles). Por isso, não é raro lermos
que esse avanço proposto por Frege pode ser considerado o maior avanço em
Lógica desde as sentenças aristotélicas sobre o tema. Por tal sistema conceitual,
Frege é usualmente considerado o fundador da lógica moderna, sobretudo pela
introdução de uma linguagem fundamentada em quantiicadores, o que tornou
possível o estudo daquilo que chamamos hoje de “lógica de predicados”.
As ideias fundamentais presentes na base do modelo fregeano de “inves-
tigação ilosóica” estão relacionadas ao modo como devemos pensar acerca
do pensamento e da linguagem. Assim, tem-se a seguinte ideia: “se se quer
compreender o pensamento, deve-se olhar para a linguagem, e para a prá-
tica dedutiva sobre a linguagem, prática essa baseada na estrutura. Para com-
preender essa estrutura deve-se procurar compreender a contribuição dos
componentes de frases para as condições de verdade” (miguens, 2007, p.
85). É com base nessa ideia que devemos compreender o logicismo fregeano,
assim como suas formulações sobre sentido [Sinn] e referência [Bedeutung].

29
3. Frege e os Fundamentos
da Aritmética: a base da
filosofia analítica
A obra Os fundamentos da Aritmética constitui um exemplo primordial do
modelo de pesquisa ilosóica – a saber, conceitual – que Frege propõe. Nessa
obra, Frege não faz uso do simbolismo lógico-formal elaborado em sua obra
Begrifsschrift. Desse modo, em vez de usar símbolos lógicos, Frege utiliza
uma linguagem mais direta para expor as variadas tentativas presentes na
história da ilosoia que pretenderam deinir o conceito de “número”, tenta-
tivas estas oriundas de três tipos de explicações teóricas distintas: a tentativa
empirista, a psicologista e a kantiana. Tomemos aqui, para ins de elucida-
ção, primeiramente a divergência de Frege para com a perspectiva kantiana.
Segundo Kant, os conceitos matemáticos seriam classiicados enquanto
juízos sintéticos a priori. Contrariamente a Kant – e também às teorias psi-
cologistas e empiristas –, Frege formula que as verdades presentes na arit-
mética seriam de ordem analítica e a priori e, assim sendo, poderiam ser
explicadas com meios puramente lógicos. Expliquemos melhor esse distan-
ciamento de Frege para com o pensamento de Kant por meio do signiicado
do termo “analítico” no que se refere a juízo ou proposições.
Segundo Kant, para toda proposição verdadeira do modelo “S é P”, são ana-
líticas as proposições nas quais o conceito de predicado está contido no con-
ceito referido (exemplo: “o corpo é extenso” ou, ainda “o círculo é redondo”).
De acordo com Miguens (2007, pg. 87), ainda que Frege tenha a intenção de
manter o rigor da deinição kantiana, a concepção de Frege de “analítico”
não é restrita somente a proposições com a forma “S é P”, uma vez que essa
concepção de estrutura de proposição seria demasiado simplista e próxima
da gramática comum, i.e., um modelo ineiciente se comparado ao objetivo
formal e simbólico requerido por Frege. Mais ainda: contrariamente a Kant,
Frege não considera que todos os juízos analíticos sejam triviais, uma vez

30
que só é possível perceber se uma proposição é analítica referindo-se a leis
lógicas ou deinições lógico-conceituais.
No que se refere às teorias empiristas e psicologistas, uma breve des-
crição histórico-ilosóica pode servir de auxiliar em nossa discussão. Per-
cebe-se que, dentro das teorias contestadas por Frege, as principais são as
provenientes de Aristóteles e, principalmente, de Locke: para ambos, os ter-
mos possuem signiicados por codiicarem ideias; e as ideias são pensadas
como estados mentais ou representações de uma consciência. Também Kant
é considerado um alvo importante, como já foi dito anteriormente, sobre-
tudo por sua teoria do juízo, que alega que a forma do juízo é pensada como
uma relação de representações (S é P).
A crítica de Frege ao empirismo e ao psicologismo é fundamentada, sobre-
tudo, no seguinte aspecto: o processo de signiicação dos termos não é dado
por meio de uma relação às sensações (empirismo) e, ainda, não é funda-
mentado na codiicação de ideias e representações mentais (psicologismo).
Diferentemente dessas teses, para Frege o processo de signiicação é pensado
como um ato relacional e, assim sendo, seria possível separar as partes objeti-
vas de uma signiicação. Desse modo, a inalidade da pesquisa ilosóica seria
a análise da estrutura do pensamento [Struktur des Denkens], diferenciando-
se metodicamente o pensamento nesse quesito da atividade psicológica do
pensar. Diferentemente da introspecção moderna, Frege propunha como
método a análise do pensamento por meio da análise da linguagem.
Uma vez que o pensamento é tido como uma atividade essencialmente lin-
guística, i.e., conceitual, temos que o pensamento não será em Frege concebido
como uma representação mental ou como uma relação de ideias provindas da 4 “[…] O conceito de sentido, por sua vez,
contrapõe-se aos conceitos de conceito (Begrif)
sensação: o pensamento será, em Frege, relacionado com o sentido [Sinn] de e objeto (Gegenstand), os quais constituem os
uma sentença.4 Logo, o método de análise ilosóica será baseado essencial- elementos objetivos do conteúdo semântico, e
ao conceito de representação (Vorstellung), que
mente no estudo da linguagem, sobretudo centrado na análise lógico-semân- indica o elemento subjetivo ou mental da signi-
icação. Objeto, conceito e representação são os
tica dos termos usados pela ilosoia. Aqui, o que interessa é a estrutura formal
fatores reais, concretos e abstratos, enquanto
e lógica presente na base do discurso. Noutras palavras, termos como “pen- o sentido é o modo de dar-se (Gegebenheits-
weise) desses fatores. Para um mesmo objeto,
samento”, “objeto”, “existência”, “realidade”, “conhecimento” etc. devem ser, conceito, verdade ou falsidade, Frege defendeu
segundo o método fregeano, estudados sob o ponto de vista lógico-semântico que haveria inumeráveis sentidos ou modos de
apresentação” (braida, 2009, p. 72)
das relações de implicação e consequência entre as proposições.

31
Entretanto, apesar da grandiosa contribuição das obras Begrifsschrift e Fun-
damentos da Aritmética, é principalmente com a obra Über Sinn und Bedeutung
que temos o que se pode chamar de “texto inicial” da ilosoia da linguagem con-
temporânea. Por esse motivo, devemos agora analisá-lo mais detalhadamente.

4. Sobre sentido e referência


Na obra Über Sinn und Bedeutung Frege põe em questão o seguinte problema:
“o que vem a ser uma teoria da signiicação?”. A im de respondermos a essa
questão, devemos levar em consideração dois importantes pontos, a saber, o
sentido [Sinn] e a referência [Bedeutung] de uma proposição.
Podemos destacar três problemas fundamentais em Über Sinn und Bedeu-
tung que concernem respectivamente à: 1) sentido e referência de termos
singulares como, e.g., “a estrela da manhã”, “estrela da tarde”, etc.; 2) sobre o
sentido e a referência de frases assertivas simples, como “A estrela da manhã
é um corpo iluminado pelo Sol”; 3) sobre o sentido e referência de frases com-
postas, i.e., enunciados que possuem outros enunciados internamente (ex.:
João acredita que a estrela da manhã é um corpo iluminado pelo Sol).
A questão inicial que se apresenta diz respeito à noção de identidade: a
identidade é uma relação entre signos/nomes e objetos ou, diferentemente,
é uma relação entre os próprios objetos? Para compreendermos melhor essa
questão, temos o clássico “Enigma de Frege” [Frege’s puzzle].
5 “No transcorrer dos dias e das noi- O enigma consiste em explicar o modo como dois enunciados que aparen-
tes, há um corpo celeste que é o primeiro
corpo celeste luminoso a aparecer no iní- temente são de uma mesma proposição podem ter valores cognitivos dife-
cio da noite e há um que é o último a desa- rentes. Vejamos isso detalhadamente: como é possível que sentenças como
parecer no início do dia. Esses dois modos
objetivos, no sentido de serem intersubjeti- “a Estrela da manhã é a Estrela da manhã” tenha um valor cognitivo distinto
vamente constatáveis, qualquer pessoa pode
de “A Estrela da manhã é a Estrela da tarde”, uma vez que ambos os conceitos
compreender e veriicar esse fenômeno. Os
nomes “Estrela Vespertina” e “Estrela Matu- – “estrela da manhã” e “estrela da tarde” – designam o mesmo objeto (a saber,
tina” indicam esses corpos celestes. Em
algum momento da história, descobriu-se o planeta Vênus)?5 É a partir desse ponto que Frege explicita sua teoria sobre
que essas duas estrelas eram, na verdade, as noções de sentido e referência.
a mesma estrela, que, na verdade, não é
uma estrela, mas sim um planeta, o planeta Para Frege, o conteúdo de toda proposição possui sentido e referência. Pode-
Vênus” (braida, 2009, p. 82) mos entender “referência” de um nome (Bedeutung) como sendo aquilo que ele

32
nomeia, ou seja, aquilo que o nome substitui na frase (ex.: a referência “Maria”
é a pessoa nomeada por esse nome). Entretanto, não são apenas termos sin-
gulares que possuiriam referência, mas sim todas as expressões linguísticas.
Sobre a noção de “sentido” [Sinn], podemos dizer que ele é o modo de apre-
sentação (Art von Gegebenseins) da referência. Tomemos o seguinte exemplo,
elaborado pelo professor Alexandre Machado, em O enigma de Frege:

Em uma primeira vez, você vai ao prédio número 10 da rua A. Em


uma segunda oportunidade, você vai ao prédio 20 da rua B. Pos-
teriormente, você descobre que o prédio número 10 da rua A é o
mesmo prédio 20 da rua B. Isso porque as ruas são paralelas, dis-
tantes uma quadra da outra – e o referido prédio se estende de
uma entrada pela rua A à outra entrada pela rua B. Nesse caso,
a referência de “o prédio 10 da rua A” e de “o prédio 20 da rua B”
é a mesma. Mas o sentido de ambas as expressões, ao menos até a
descoberta de que têm a mesma referência, é diferente, pois é dife-
rente o modo de apresentação da sua referência em cada caso. Num
caso, o prédio se apresenta como o prédio 10 da rua A e, no outro,
como o prédio 20 da rua B. Dado que todas as expressões linguísticas,
segundo Frege, possuem referência, todas possuem sentido, pois
toda referência tem um modo de apresentação. Portanto, nomes e
termos singulares em geral possuem sentido, bem como frases com-
pletas e expressões funcionais. Os sentidos dos termos singulares
são o modo de apresentação dos objetos. (machado, 2011)

Apesar da exposição dos conceitos, é de crucial importância alertar para


o seguinte ponto teórico: sentido e referência devem ser entendidos como
noções distintas da representação mental [Vorstellung] dos indivíduos. Para
Frege, é o sentido que permite a compreensão da signiicação em uma comu-
nidade linguística – e é exatamente por esse motivo que o sentido não pode
ser compreendido como uma representação mental subjetiva. Isso ica claro
no exemplo fregeano da “Estrela Matutina e Estrela Vespertina”. Como se sabe,
“Estrela Matutina” e “Estrela Vespertina” designam a mesma “estrela”, ou

33
melhor, o mesmo planeta (Vênus). Desse modo, temo que ao airmar “A estrela
vespertina é a estrela matutina” temos um conteúdo semântico que pode ser
apreendido objetivamente pelo interlocutor: haveria dois modos de apresenta-
ção distintos para identiicar Vênus (e não duas representações subjetivas).
Para Frege, todas as expressões designadoras de objetos, i.e., os termos singu-
lares (nomes próprios, descrições deinidas e os pronomes) expressariam um sen-
tido e designariam uma referência. Como ressalta Braida (2009, p. 83), isso valeria
também para as expressões predicativas, os verbos, os nomes comuns e as des-
crições indeinidas, i.e., para os termos gerais. Essas expressões também expres-
sariam um sentido, mas, em contrapartida, designariam conceitos ou funções.
Desse modo, podemos concluir o seguinte: a) sentido e referência são
dois pressupostos diferentes na signiicação de um nome próprio; b) o
nome próprio exprime um sentido e designa uma referência; c) é o sentido
do nome próprio que determina a sua referência e não o contrário; d) é por
ser o sentido a determinar a referência e não o contrário que é possível que
um mesmo objeto seja identiicado por mais do que um nome próprio; e) o
sentido é um critério de identiicação objetivo da referência, e não algo com
subjetivo, como uma representação mental (Vorstellung).

5. Mais sobre Frege – leitura


complementar
5.1 Anthony Kenny – História Concisa
da Filosofia Ocidental
ESCLARECIMENTO
Anthony Kenny é um dos mais renomados historiadores da ilosoia. Na sequência,
você terá acesso a uma parte de sua obra História Concisa da Filosoia Ocidental na qual
ele trata da importância do pensamento de Gottlob Frege para o desenvolvimento da
lógica e da ilosoia. A compreensão da importância da revolução fregeana na lógica é
basilar para o entendimento de problemas ilosóicos contemporâneos.

34
A lógica de Frege
(texto extraído de: KENNY, A. História concisa da ilosoia ocidental, 1999).

O acontecimento mais importante na história da ilosoia do século XIX foi


a invenção da lógica matemática. Não se tratou apenas de fundar de novo a
própria ciência da lógica; foi algo que teve igualmente consequências impor-
tantes para a ilosoia da matemática, para a ilosoia da linguagem e, em
última análise, para a compreensão que os ilósofos têm sobre a natureza da
própria ilosoia.
O principal fundador da lógica matemática foi Gottlob Frege. Nascido
na costa báltica alemã em 1848, Frege (1848–1925) doutorou-se em Filoso-
ia em Göttingen e ensinou na Universidade de Jena de 1874 até se reformar,
em 1918. Exceto no que respeita à atividade intelectual, a vida de Frege foi
rotineira e isolada. O seu trabalho foi pouco lido enquanto viveu, e mesmo
depois da sua morte só exerceu inluência por intermédio dos escritos de
outros ilósofos. Mas, gradualmente, reconheceu-se que Frege foi o maior
de todos os ilósofos da matemática e que, como ilósofo da lógica, foi com-
parável a Aristóteles. A sua invenção da lógica matemática foi uma das maio-
res contribuições para os desenvolvimentos, em diversas disciplinas, que
estiveram na origem da invenção dos computadores. Dessa forma, Frege
afetou a vida de todos nós.
A produtiva carreira de Frege começou em 1879 com a publicação de um
opúsculo intitulado Begrifschrift, ou Escrita Conceptual. A escrita concep-
tual que deu o título ao livro consistia num novo simbolismo concebido
com o im de exibir claramente as relações lógicas escondidas na linguagem
comum. A notação de Frege, logicamente elegante, mas tipograicamente
incômoda, já não é usada em lógica simbólica; mas, o cálculo por ele formu-
lado constitui desde então a base da lógica moderna.
Em vez de fazer da silogística aristotélica a primeira parte da lógica, Frege
atribuiu esse lugar a um cálculo inicialmente explorado pelos estoicos: o cál-
culo proposicional, ou seja, o ramo da lógica que trata das inferências que

35
assentam na negação, conjunção, disjunção, etc., quando aplicadas a fra-
ses declarativas no seu todo. O seu princípio fundamental — que remonta
igualmente aos estoicos — consiste em considerar que os valores de verdade
(isto é, verdadeiro ou falso) das frases declarativas que contêm conectivos
como “e”, “se”, “ou”, são determinados apenas pelos valores de verdade das
frases ligadas pelos conectivos — da mesma forma que o valor de verdade da
frase “João é gordo e Maria é magra” depende apenas dos valores de verdade
de “João é gordo” e de “Maria é magra”. As frases compostas, no sentido téc-
nico dos lógicos, são tratadas como funções de verdade das frases simples que
entram na sua composição. O Begrifschrift de Frege contém a primeira for-
mulação sistemática do cálculo proposicional; este é apresentado sob uma
forma axiomática, da qual todas as leis da lógica são derivadas, por meio de
regras de inferência, a partir de um certo número de princípios primitivos.
A maior contribuição de Frege para a lógica foi a sua invenção da teoria da
quantiicação; isto é: um método para simbolizar e exibir rigorosamente as
inferências cuja validade depende de expressões como “todos” ou “alguns”,
“qualquer” ou “cada um”, “nada” ou “nenhum”. Este novo método permitiu-
lhe, entre outras coisas, reformular a silogística tradicional.
Existe uma analogia entre a inferência

Todos os homens são mortais.


Sócrates é um homem.
Logo, Sócrates é mortal.

e a inferência

Se Sócrates é um homem, Sócrates é mortal.


Sócrates é um homem.
Logo, Sócrates é mortal.

A segunda é uma inferência válida no cálculo proposicional (se p, então q;


dado que p, segue-se que q). Mas, nem sempre pode ser considerada uma tra-
dução da primeira inferência, uma vez que a sua primeira premissa parece

36
airmar algo acerca de Sócrates em particular, ao passo que se “Todos os
homens são mortais” for verdadeira, então:

Se x é um homem, x é mortal.

Trata-se de uma sequência verdadeira independentemente do nome que


substituir a variável x. De fato, essa frase continuará a ser verdadeira mesmo
que x seja substituída por um nome que não designe homem algum, uma
vez que nesse caso a antecedente é falsa e, de acordo com as regras verofun-
cionais para frases declarativas condicionais, a frase na sua totalidade será
verdadeira. Assim, podemos exprimir a proposição tradicional:

Todos os homens são mortais.

Dessa forma:

Para todo o x, se x é um homem, x é mortal.

Esta reformulação constitui a base da teoria da quantiicação de Frege. Para


vermos como isso acontece, temos que explicar de que forma Frege concebeu
cada um dos elementos que contribuem para formar uma frase complexa.
Frege introduziu a terminologia da álgebra na lógica. Pode-se dizer que uma
expressão algébrica como x/2 + 1 representa uma função de x; o valor do número
representado pela expressão na sua globalidade dependerá da substituição
que se izer para a variável x, ou, em terminologia técnica, do argumento que
tomarmos para a função. Assim, o valor da função é 3 se o argumento for 4, e
é 4 se o argumento for 6. Frege aplicou esta terminologia (argumento, função,
valor) tanto a expressões da linguagem comum como a expressões em notação
matemática. Substituiu as noções gramaticais de sujeito e de predicado pelas
noções matemáticas de argumento e de função e, a par dos números, introdu-
ziu os valores de verdade como valores possíveis de expressões. Assim, “x é um
homem” representa uma função que toma o valor verdadeiro para o argumento
“Sócrates” e o valor falso para o argumento “Vénus”. A expressão “para todo o x”,

37
que introduz a frase anterior, diz, em termos freguianos, que o que se lhe segue
(“se x é um homem, x é mortal”) é uma função verdadeira para qualquer argu-
mento. A uma expressão deste tipo chama-se “quantiicador”.
Além de “para todo o x”, o quantiicador universal, existe também o quan-
tiicador particular “para algum x”, que diz que o que se lhe segue é verda-
deiro para pelo menos um argumento. Então, “alguns cisnes são pretos” pode
representar-se num dialeto freguiano como “para algum x, x é um cisne e x é
preto”. Pode-se considerar que esta frase é equivalente a “existem coisas que
são cisnes pretos”; e, na verdade, Frege usou o quantiicador particular para
representar a existência. Assim, “Deus existe” ou “há um Deus” é represen-
tada no seu sistema por “para algum x, x é Deus”.
O uso da sua nova notação para a quantiicação permitiu a Frege apre-
sentar um cálculo que formalizou a teoria da inferência de uma forma mais
rigorosa e mais geral do que a tradicional silogística aristotélica, a qual, até
a época de Kant, fora considerada o suprassumo da lógica. Depois de Frege, a
lógica formal podia, pela primeira vez, lidar com argumentos que envolviam
frases com quantiicação múltipla, frases que eram, por assim dizer, quanti-
icadas em ambos os extremos, tais como “ninguém conhece toda a gente” e
“qualquer criança em idade escolar pode dominar qualquer língua”.
“Veremos que a ilosoia da matemática de Frege está intimamente
ligada ao modo como ele entende vários conceitos-chave de lógica e de
ilosoia; e, na verdade, no Begrifschrift e nos Grundlagen, Frege não só
fundou a lógica moderna, mas também a disciplina ilosóica moderna de
ilosoia da lógica. Fê-lo ao traçar uma distinção clara entre o tratamento
ilosóico da lógica e, por um lado, a psicologia (com a qual fora por vezes
confundida pelos ilósofos da tradição empirista), e, por outro, a epistemo-
logia (com a qual fora por vezes confundida pelos ilósofos da tradição car-
tesiana). No entanto, não existe na sua obra a mesma distinção clara entre
lógica e metafísica; na realidade, as duas estão estreitamente relacionadas.
Frege sustentava que se deve fazer uma distinção sistemática entre con-
ceitos e objetos, correlatos ontológicos dos polos da distinção linguística
correspondente entre funções e argumentos. Os objetos são aquilo que é
designado pelos nomes próprios: existem objetos de muitos tipos, desde

38
seres humanos a números. Os conceitos são itens que têm uma incomple-
tude fundamental, que corresponde à lacuna assinalada numa função pela
sua variável. Nos pontos em que outros ilósofos falavam ambiguamente
sobre o signiicado de uma expressão, Frege introduziu uma distinção entre a
referência de uma expressão (o objeto a que se refere: o planeta Vénus é a refe-
rência de ‘Estrela da Manhã’) e o sentido de uma expressão (‘A Estrela da Tarde’
tem um sentido diferente de ‘A Estrela da Manhã’, apesar de ambas as expres-
sões, como os astrónomos descobriram, se referirem a Vénus.). Frege susten-
tava que a referência de uma frase é o seu valor de verdade (isto é, verdadeiro
ou falso), e também que, numa linguagem cientiicamente respeitável, todos
os termos têm de ter uma referência e todas as frases declarativas devem ser
ou verdadeiras ou falsas. Muitos ilósofos posteriores adotaram a sua distin-
ção entre sentido e referência, mas a maior parte rejeitou a noção de que as
frases completas têm um tipo qualquer de referência.
O auge da carreira de Frege enquanto ilósofo deveria ter sido a publicação
dos dois volumes de Die Grundgesetze der Arithmetik (1893–1903), nos quais se
propunha apresentar com todo o rigor formal a construção logicista da arit-
mética baseada na lógica pura e na teoria dos conjuntos. Esta obra deveria exe-
cutar a tarefa esboçada nos anteriores livros sobre ilosoia da matemática:
deveria enunciar um conjunto de axiomas constituído por verdades reconhe-
cidamente lógicas, propor um conjunto de regras de inferência indiscutivel-
mente corretas e, então, por meio dessas regras e a partir desses axiomas,
apresentar uma a uma as derivações das verdades canônicas da aritmética.
Este magníico projeto abortou antes de estar completo. O primeiro
volume foi publicado em 1893. Quando o segundo volume apareceu, em 1903,
tinha-se descoberto que o engenhoso método de Frege para construir a série
dos números naturais a partir unicamente de noções lógicas continha uma
deiciência fatal. A descoberta devia-se ao ilósofo inglês Bertrand Russell.”

39
Bibliografia:

BRAIDA, Celso Reni. Filosoia da Linguagem. Florianópolis: Filosoia/EAD/


UFSC, 2009.

FREGE, Gottlob. Os fundamentos da matemática. Trad. Antônio Zilhão.


São Paulo: Ed. INCM, 1992.

KENNY, Anthony. História concisa da ilosoia ocidental. Trad. Desidé-


rio Murcho, Fernando Martinho, Maria José Figueiredo, Pedro Santos e Rui
Cabral. Lisboa: Temas e Debates, 1999.
MACHADO, Alexandre. O enigma de Frege. Disponível em: http://problemas-
ilosoicos.blogspot.com.br/2011/03/o-enigma-de-frege.html, 2011.

MIGUENS, Soia. Filosoia da Linguagem. 2007. Porto: Ed. Faculdade de


Letras da Universidade do Porto, 2007.

Vídeos e materiais de suporte:

O Enigma de Frege: http://problemasilosoicos.blogspot.com.br/2011/03/o-


enigma-de-frege.html

40
Módulo 3
Bertrand Russell
e o atomismo lógico
1. Bertrand Russell: aspectos
biográficos
Bertrand Russell (1872–1970), em sua Autobiogra-
ia escrita em 1962, escreveu sobre a vida: “Acho que
valeu à pena vivê-la e a reviveria alegremente se me
fosse oferecida essa possibilidade” – vida esta que foi
dominada “(…) por três paixões simples, mas de força
irresistível: a sede de amor, a busca do conhecimento
e uma imensa piedade pelos sofrimentos dos seres
humanos”. (russell apud reale, 1991, p. 643)

Membro de uma família com forte tendência liberal e progressista – o Whig


Party –, Russell herdou de seus consanguíneos a clara rejeição, seja ela teó-
rica ou prática, contra todo dogmatismo e autoritarismo. Seu avô, o lorde
John Russell, foi ministro da rainha Vitória e lutou irmemente pela reforma
eleitoral. Além disso, seu pai, Visconde de Amberley, foi discípulo e amigo
de Stuart Mill, além de membro do Parlamento Inglês nos anos de 1861–1862.
Bertrand Arthur William Russell nascera em 18 de maio de 1872 em Ravens-
croft, nas proximidades de Tintern, em Monmouthshire. Após a morte pre-
coce de seus pais, foi criado na casa de sua avó. Russell recebeu sua educação
inicial de professores particulares agnósticos, aprendeu o francês e o alemão,
além de adquirir gosto pela história e pela geometria.
Aos dezoito anos, ingressou como aluno do Trinity College de Cambridge.
Lá, teve laços de amizades com grandes nomes como Mc Taggart, Sidgwick, G.E.
Moore, além do encontro com Ludwig Wittgenstein, seu discípulo e grande
inspirador do neopositivismo do Círculo de Viena. Sobre o encontro com Wit-
tgenstein, Russell chegou a airmar que isto representou para ele “uma das
aventuras intelectuais mais excitantes de minha vida” (russell apud reale,

45
p. 644). Entretanto, apesar da simpatia e encanto iniciais, a amizade entre
ambos foi se afastando com o tempo, até deinitivamente ser rompida.
Seu viés político engajado o acompanhou durante toda a vida. No mesmo
período em que trabalhava elaborando sua obra Principia Mathematica, Rus-
sell candidatou-se ao parlamento. Além disso, foi preso por seis meses
durante a I Guerra Mundial por publicar uma crítica à relação militar entre
EUA e Grã-Bretanha. Isso mostra, juntamente com suas viagens e seu sucesso
literário, que Russell está longe de ser um ilósofo acadêmico restrito ao lado
interno dos muros de uma Universidade.
Após a I Guerra, chegou a visitar a Rússia e a viver na China, onde deu
aulas na Universidade de Pequim. Além de livros sobre lógica e ilosoia da
linguagem, publicou um vasto número de obras sobre temas morais e sociais.
Russell ganhou Prêmio Nobel de Literatura no ano de 1950. Morreu em 1970,
com 98 anos, quando já era considerado e reconhecido como um ilósofo de
importância ímpar na ilosoia contemporânea.

2. Atomismo lógico: a análise


lógica da linguagem
O nome “Atomismo Lógico” foi dado pelo próprio Bertrand Russell ao con-
junto de ideias provenientes de sua ilosoia desde a publicação de On Deno-
ting, em 1905, até a publicação de The philosophy of Logical Atomism, em 1918.
Entretanto, podemos observar a lógica do atomismo lógico desenvolvida
essencialmente nos Principia Mathematica, publicados entre 1910 e 1913, em
coautoria com Alfred N. Whitehead. Assim sendo, sob o título “atomismo
lógico” estão variadas teses que, somadas umas às outras, formam o modo
particular de ilosofar de Russell. Selecionaremos, aqui, algumas dessas
teses a im de introduzir os marcos centrais do pensamento de Russell.
De modo inicial, temos que a ideia essencial que fundamenta a ilosoia do
atomismo lógico é a ideia de que não só é possível, mas também desejável, fazer
uma análise lógica da linguagem natural/ordinária de modo que se determine

46
os “átomos linguísticos” existentes, i.e., termos que de tão simples não são
mais analisáveis. Tais termos, por sua vez, corresponderiam a entidades igual-
mente simples no mundo extralinguístico. Entretanto, como essa redução
seria possível em – e por que essa redução seria desejável para – uma análise
ilosóica? Para responder a essa questão, temos dois pontos fundamentais.
Primeiramente, existiria, segundo Russell, uma identidade estrutural entre
a nossa linguagem e a realidade extralinguística que ela representa. Noutros
termos, uma vez sendo a linguagem devidamente analisada, ela revelaria em
sua estrutura uma uniformidade com a estrutura da realidade do mundo.
Logo, temos que a tradução da linguagem ordinária em uma linguagem lógica
devidamente estruturada revelaria que a linguagem comum possuiria, ainda
que de forma “escondida” (e só revelada pela análise lógica), uma identidade
estrutural com a realidade. Dessa forma, podemos perceber que, para Russell,
a estrutura gramatical da linguagem ordinária não coincide de forma natural
com a estrutura lógica. Por esse motivo, seria necessário realizar uma análise
lógica da linguagem usada cotidianamente com a inalidade de se revelar a ver-
dadeira estrutura da linguagem que é usada para se referir às coisas no mundo.
Há, como se percebe, uma contraposição entre uma linguagem supericial e
aparente (que seria a linguagem comum) em relação a sua própria estrutura,
que seria profunda, real e consistente, somente revelada por meio da análise.

2.1 Átomos lógicos e princípio do contato


(Principle of Acquaintance)

Como já dissemos, há uma correspondência estrutural entre a linguagem –


logicamente analisada – e a realidade. Essa correspondência seria dada uma
vez que ambas, linguagem e realidade, seriam constituídas por átomos lógi-
cos. Nesse sentido, qualquer proposição devidamente analisada seria com-
posta pelas partes que a constituem, a saber, os termos simples, nos quais
não seria possível realizar qualquer análise posterior. Os termos simples, que
seriam o elemento mais básico da proposição, possuiriam uma correspon-
dência com os átomos lógicos presentes no mundo extralinguístico. Assim

47
sendo, o mundo seria constituído por meio de átomos lógicos que, por sua
vez, seriam expressos pelos termos simples da linguagem. Existiriam, ainda,
os fatos compostos pelos átomos lógicos, ou seja, os fatos atômicos, que seriam
expressos após uma determinada proposição ser devidamente analisada e,
ainda, os fatos compostos pelos fatos atômicos, a saber, os fatos moleculares.
De fato, não é contemporânea a ideia de que o mundo é composto a par-
tir de átomos. Já na ilosoia grega clássica, sobretudo com a igura de Demó-
crito, é possível observar essa noção. Contudo, o que se nota aqui é algo
distinto – e completamente original: Russell propõe que esses átomos que
constituem a realidade seriam lógicos, ou seja, constituiriam a parte extralin-
guística do resultado obtido por meio da análise lógica da linguagem. Logo,
questões como “qual a essência dos átomos lógicos?” e, ainda, “como seria
possível o conhecimento desses átomos?” são perguntas ilosóicas basila-
res. Busquemos, mesmo que brevemente, respondê-las.
Segundo Russell, os átomos lógicos seriam elementos simples, constituí-
dos a partir dos dados dos sentidos (sense data) e caracterizados como sendo
entidades físicas (logo, não-mentais) e privadas (logo, só o próprio sujeito
teria, em princípio, acesso). Porém, de que modo seria o conhecimento de
tais átomos? Para o ilósofo, o conhecimento dos sense data seria direto, ime-
diato e irrefutável. Isso se deve uma vez que o tipo de conhecimento direto
é dado, segundo a deinição de Russell, “por contato” (byacquaintance).
Segundo Russell, seria impossível alguém estar errado sobre os dados pro-
vindos dos sentidos, nem mesmo no caso da dúvida cética, uma vez que não
se pode duvidar daquilo com o qual se está em contato.
Nota-se que o Princípio do Contato (Principle of Acquaintance) formulado
por Russell pode ser tido como o fundamento epistemológico de sua teoria
sobre “atomismo lógico”. Dessa forma, toda a proposição passível de com-
preensão deve ser completamente composta por constituintes com os quais
estamos em contato. Como se observa, isso é decorrente da noção de “átomo
lógico”, uma vez que este é a parte mais simples a partir do qual o mundo
extralinguístico é constituído. Vale lembrar, mais uma vez, que Russell vem
de uma tradição empirista inglesa e que, por isso, todo o conhecimento seria
possível a partir de dados dos sentidos. Logo, todo o conhecimento, para

48
Russell, teria seu fundamento na possibilidade de conhecer diretamente por
contato não somente de particulares (entidades identiicáveis espaço-tempo-
ralmente), mas também de universais (propriedades de entidades particula-
res e as relações nas quais elas estão entre si). Sobre isso, tem-se:

Relativamente a este aspecto, o de ser possível a existência de conheci-


mento por contacto, não só de particulares (entidades espaço-tempo-
ralmente identiicáveis), mas também de universais (as propriedades
daquelas entidades e as relações nas quais elas estão entre si), há a
fazer duas notas importantes. A primeira, e que mereceria uma dis-
cussão mais extensa que no entanto nos conduziria para fora do
nosso tópico, é que não há conhecimento por contacto dos universais
considerados independentemente dos objetos que os exempliicam.
Este conhecimento direto de universais é o de universais enquanto
eles existem (estão exempliicados) nos meus sense data. Por outras
palavras, o que eu conheço por contacto não é a propriedade de ser
preto em geral, a qual não é considerada por Russell como tendo exis-
tência independente dos objetos concretos, mas sim a propriedade de
ser preto que o sense datum do meu computador tem. (graça, 2001)

De forma resumida, temos as seguintes conclusões: O sentido de um termo


simples que compõe uma proposição é irmado pelo objeto (sense data) presente
no mundo extralinguístico pelo qual tal termo é representado. Noutras palavras,
sense data são a referência dos termos simples constituintes de uma proposição
devidamente analisada. Dessa forma, a compreensão do sentido de um termo
simples é relacionada ao ato de conhecer, por meio da análise, o particular do qual
ele é nome. Assim, uma proposição qualquer só terá sentido no seu conjunto
caso cada termo simples constituinte possua correspondência em uma entidade
que a representa no mundo extralinguístico, i.e., identiica o seu referente.
Podemos, para ins didáticos conclusivos, ressaltar que a ideia por trás da
teoria de Russell é: a compreensão do sentido dos termos simples (constituintes)
presentes em uma proposição depende – ou corresponde – à apreensão por con-
tato do objeto representado pelo termo no mundo extralinguístico.

49
2.2 Conhecimento por contato versus
conhecimento por descrição
Recapitulemos, brevemente, algumas conclusões do estudo da ilosoia de
Russell obtidas até aqui. Como vimos, um termo simples é indivisível – ou
seja, não mais analisável – e representa um objeto (sense datum) no mundo
extralinguístico. Segundo Russell, a compreensão desse termo só é realizada
por contato. Logo, a referência de um termo simples é um átomo lógico; o
átomo lógico, por sua vez, corresponde a um sense datum. Apenas os termos
simples seriam nomes próprios logicamente, uma vez que eles seriam próprios
no sentido de pertencer à estrutura mínima de uma proposição completa-
mente analisada. Sobre isso, Russell diz:

Um nome, no sentido lógico estrito do termo, cujo sentido é um


particular, só pode ser aplicado a um particular com o qual o utili-
zador está em contacto, porque não se pode nomear o que quer que
seja com o qual não se esteja em contacto. (russell, 1956, p. 201)

Apesar da estrutura coesa proposta por Russell, alguns problemas come-


çam a surgir quando fazemos o seguinte questionamento: são os nomes pró-
prios comuns (como João, Ronaldo, Rio de Janeiro, etc.) termos considerados
como logicamente próprios, segundo o atomismo lógico? Para Russell, não.
Segundo a teoria proposta por Russell, devemos observar que “Ronaldo”,
“Rio de Janeiro”, etc., não são representantes de sense data no mundo extra-
linguístico (como os termos simples), mas sim representantes de objetos
físicos do mundo, por isso seria aquilo que aqui chamamos de nomes comuns.
A distinção entre nomes próprios e nomes comuns é dada do seguinte modo:
o primeiro representa os termos simples relacionados aos sense data no
mundo extralinguístico e que podem ser conhecidos diretamente por contato
e por isso são indubitáveis; o segundo representa objetos físicos presentes
no mundo extralinguístico, mas que não podem ser conhecidos diretamente
por contato, mas apenas de modo indireto por descrição e, nesse sentido,
seriam passíveis de dúvida. Sobre isso, tem-se a seguinte explicação:

50
O contraste entre conhecimento por contacto e por descrição pode
ser elucidado da seguinte forma. Ao contrário de um sense datum,
que é um átomo lógico, ao qual tenho – em princípio – acesso cog-
nitivo directo, um objecto físico não é um átomo lógico e eu não
tenho, relativamente a ele, um acesso cognitivo directo. Considere-
mos a cidade de Viena. Posso dizer que conheço Viena unicamente
por descrição. Ou seja, sei muitas coisas acerca de Viena, algumas
das quais são verdadeiras outras falsas, mas não conheço Viena.
Assim sendo, um nome comum de um objecto físico é uma mera
abreviatura de uma ou várias descrições acerca do objecto e, logo,
um nome comum não é de facto um termo simples. (graça, 2001)

Nesse momento, podemos retomar a questão e respondê-la de modo satis-


fatório: são os nomes próprios da linguagem comum (ex.: João, Rio de Janeiro,
Sócrates, etc.) termos que podem ser considerados como nomes logicamente
próprios? Como vimos, não. Isso se dá uma vez que o objeto referenciado
por um nome próprio na linguagem ordinária não é um sense datum, mas sim
um objeto físico e, por esse motivo, o acesso seria indireto e passível de erros.
Temos, ainda, que diferentemente dos sense data, que seriam conhecidos por
contato, os objetos físicos seriam conhecidos indiretamente por descrição.
Para exempliicar o que foi exposto acima, podemos tomar como modelo o
enunciado “Ronaldo já ganhou uma Copa do Mundo”. De acordo com o que foi
estudado, tal enunciado não pode ser analisado de forma completa, pois o termo
“Ronaldo” não é referente a um nome próprio, ainda que a linguagem comum
trate “Ronaldo” como um termo referente a um nome próprio. De fato, caso
fosse feita a devida análise do termo “Ronaldo”, veríamos que ele é um termo
que inclui vários outros como “jogador da seleção brasileira de futebol”, “Melhor
jogador do Mundo nos anos de 1996, 1997 e 2002”, etc. Logo, a compreensão do
termo “Ronaldo” não se refere a um sense datum conhecido de forma direta,
mas a um conjunto de termos descritivos envolvidos em sua signiicação: a
compreensão de “Ronaldo” não se dá por contato, mas por descrição dos termos
por ele representados. E isso acontece com todos os nomes próprios comuns,
como Rio de Janeiro, Sócrates, Filicio, etc. Dá-se o nome à teoria que promove o

51
entendimento do sentido dos termos descritivos de Teoria das Descrições Deini-
das – é sobre ela que lançaremos nossa atenção neste momento.

2.3 A teoria das Descrições Definidas

Russell expôs suas ideias sobre nomes próprios e, como visto, isto o levou
à necessidade da realização de uma Teoria das Descrições Deinidas, uma vez
que alguns ‘nomes próprios’ presentes na linguagem ordinária seriam des-
crições e não nomes logicamente próprios. A Teoria das Descrições Deinidas é
fundamentada em seu artigo On Denoting, publicado em 1905. Nesse artigo,
o objetivo de Russell é compreender a natureza das expressões denotativas
presentes na linguagem, uma vez que elas são essenciais para o entendi-
mento da forma como conhecemos muitas coisas com as quais não possuí-
6 “Um elemento importante para com- mos um contato – ou não seriam conhecidas diretamente por contato.6
preender On Denoting são as críticas – de que
Russell parte – a G. Frege e a A. Meinong. O pensamento fundamental da Teoria das Descrições deinidas é que tais
Frege faz uma distinção entre o sentido e a descrições seriam termos quantiicacionais. A Teoria das Descrições Deinidas
referência das expressões como “a estrela
da manhã”. Mas Russell considera a ideia de (TDD) tem a função de explicar o papel semântico de descrições deinidas que
‘sentido’ extremamente obscura, não sabe
ocorrem em frases especíicas. A importância da TDD na história da ilosoia
de que entidades fala Frege. Meinong, por
seu lado, admite objetos que existem mas tem lugar exatamente na crítica que Russell faz à distinção promovida por
não substituem, negando que estes obede-
çam à lei da não contradição. Isto também Frege entre sentido [Sinn] e referência [Bedeutung]. Russell parte da ideia de
não satisfaz Russell” (miguens, 2007, p. 111). que referir e denotar são relações semânticas diferentes. Denotar refere-se a
termos que não são classiicados enquanto nomes próprios logicamente. Por
isso, a denotação não requer necessariamente a existência de um objeto como
condicionante para que a expressão linguística tenha um sentido; enquanto a
referência exigiria a existência de tais objetos para o ganho de sentido.
Segundo Russell, é possível entender e usar nomes aparentemente (mas
não logicamente) próprios para objetos sem referência ou que não existem,
como “Homem-aranha”, “Fada Madrinha”, “Pégaso”, etc. Isso seria possível,
pois tais termos não seriam nomes próprios logicamente.

52
Bibliografia:

BRAIDA, Celso Reni. Filosoia da Linguagem. Florianópolis: Filosoia/EAD/


UFSC, 2009.

GRAÇA, Adriana Silva. O atomismo lógico e a função referencial da lingua-


gem. In: Revista Intelecto, nº5, 2001.

MIGUENS, Soia. Filosoia da Linguagem. 2007. Porto: Ed. Faculdade de


Letras da Universidade do Porto, 2007

REALE, Giovanni; ANTISERI, Dario. História da Filosoia: Do romantismo


até nossos dias. São Paulo: Paulus, 1991.

RUSSELL, Bertrand. Logic and Knowledge. Essays 1901–1950, MARSH, R.C.


(ed.). London: Allen and Unwin, 1956.

Vídeos e materiais de suporte:

Atomismo Lógico: http://www.oocities.org/revistaintelecto/atomismo.html

53
Módulo 4
Ludwig Wittgenstein
e o Tractatus
Logico-philosophicus
1. Ludwig Wittgenstein: uma
vida, dois pensamentos
Ludwig Wittgenstein (1889–1951) foi, de fato, um
dos mais importantes ilósofos do século XX. É reco-
nhecido tradicionalmente que o pensamento de
Wittgenstein pode ser dividido em dois que, se não
se encontram em oposições opostas, são, ao menos,
categoricamente distintos. Essa divisão é pontuada
sobretudo pelos seus dois escritos – sendo o último
publicado postumamente – a saber, o Tractatus Logico-
Philosophicus e as Investigações Filosóicas. Ambas
inluenciaram diversos ramos do conhecimento, como
a ilosoia analítica, a linguística, a antropologia e as ciências cognitivas. Como ponto
comum a ambas, há a pretensão de compreender a linguagem, sua estrutura e a forma
como ela se vincula ao pensamento e ao mundo, bem como seus limites e outras ques-
tões. Em ambas está presente, ainda, uma discussão central da lógica contemporânea.

Neste capítulo, introduziremos a leitura daquilo que icou conhecido como o


pensamento do “primeiro Wittgenstein”, i.e., às ideias presentes em sua obra
Tractatus Logico-Philosophicus. Decerto, a obra possui certo grau de diiculdade
de entendimento e, por isso, o objetivo aqui é, muito longe de esgotar o debate
sobre a obra, apenas iniciar o leitor naquela que pode, irreversivelmente, ser
considerada uma das mais clássicas obras de ilosoia do século XX.

2. Iniciação à leitura do Tractatus


O Tractatus Logico-philosophicus tem como objetivo traçar os limites do que
pode ser representado pela linguagem a im de discernir a legitimidade das

57
pretensões ilosóicas. Diferentemente das obras tradicionais da ilosoia,
que apresentam suas ideias em um todo mais ou menos organizado por
meio de argumentos coerentes e raciocínios coesos, o Tractatus apresenta
suas ideias de forma proposicional, formulada por aforismos numerados.
Tal como diz o próprio Wittgenstein, os números decimais das proposi-
ções signiicam seu peso lógico – e desse modo, as proposições com dois
números, e.g., são explicações das que têm somente um; as proposições
que possuem uma sequência de três números seriam, consequentemente,
explicações das que têm dois, e assim sucessivamente. Logo, temos que uma
sentença como “1.1. o mundo é uma totalidade dos fatos, não das coisas” é
uma explicação da proposição “1. O mundo é tudo que ocorre”. São sete as
teses fundamentais do Tractatus

1. O mundo é tudo que ocorre.


2. O que ocorre, o fato, é o subsistir dos estados de coisas.
3. O pensamento é a iguração lógica dos fatos.
4. O pensamento é a proposição signiicativa.
5. A proposição é uma função de verdade das proposições elementares
(a proposição elementar é uma função de verdade de si mesma).
6. A forma geral da função de verdade é: [p, ξ, N(ξ)]
7. O que não se pode falar, deve-se calar.

Todas as outras proposições presentes no Tractatus são observações e


explicações das sete proposições básicas mencionadas acima. Para ins didá-
ticos, podemos dizer que as duas primeiras sentenças fundamentais (e todas
sub-proposições incluídas) dizem respeito ao arcabouço ontológico do Trac-
tatus; a terceira proposição mantém relação com o fundamento de uma teoria
do conhecimento (o modo como o pensamento se relaciona com o mundo); a
partir da quarta tese têm-se relexões sobre a linguagem (relexão sobre pro-
posições signiicativas); na quinta e na sexta teses, Wittgenstein discorre
sobre a estrutura lógica interna da linguagem; na sétima e última, por im, o
ilósofo estabelece o limite entre o mundo da ciência e o da metafísica e tudo
que não poderia ser fundamentado ou descrito de modo lógico.

58
Segundo Wittgenstein, apesar da distinção entre mundo e linguagem,
ambos possuiriam uma estrutura ou forma lógica comum – isto é, há uma cor-
relação entre a facticidade do mundo e a estrutura lógico-sintática da lingua-
gem. Daí tem-se o início da elaboração de sua teoria da iguração.
A Teoria da Figuração pode ser tida como uma das chaves para a com-
preensão do projeto proposto pelo Tractatus. Nessa teoria, Wittgenstein pro-
põe o modo como se relacionam proposição e realidade. Essa questão aparece
pela primeira vez na obra na proposição 2.1: “Fazemo-nos igurações dos
fatos”. Nesse sentido, tem-se que o ser humano é capaz de fazer igurações
da realidade, ou seja, a linguagem seria a iguração lógico-simbólica do real.
A linguagem, por sua vez, seria dada pelo conjunto das proposições elementa-
res (nomes que correspondem a fatos atômicos). Daí surge uma das conclu-
sões fundamentais da obra: é possível a linguagem igurar a realidade, pois
ambas possuem uma forma lógica estrutural comum. Entretanto, uma per-
gunta é aqui essencial: o que entende Wittgenstein por iguração? A explica-
ção desse termo é fundamental para se evitar leituras equivocadas da teoria
wittgensteiniana.
Wittgenstein, diferentemente da visão tradicional de iguração presente
em clássicos da ilosoia, não entende o termo iguração de modo naturalista,
mas sim de modo similar ao termo matemático aiguração (Abbildung), i.e.,
uma iguração de mesma forma, uma isomoria. Nesse sentido, o “original” e
o “igurado” possuiriam uma correspondência em sua estrutura.

“A iguração representa a situação no espaço lógico, a subsistência e a não-


subsistência de estados de coisas” (2.11).

“A iguração é um modelo de realidade” (2.12)

A im de entendermos melhor o conceito de isomoria, bem como a relação


entre a “aiguração” e o “aigurado”, Wittgenstein oferece um ilustrativo exem-
plo, a saber, o exemplo da relação entre uma música e sua respectiva partitura.
À primeira vista, ao olharmos uma partitura, não nos damos conta de que esta-
mos diante de uma representação musical: “o disco da vitrola, o pensamento

59
e a escrita musicais, as ondas sonoras estão uns em relação aos outros no
mesmo relacionamento existente entre a linguagem e o mundo” (T.L.P. 4.014).
Wittgenstein menciona até a existência de uma suposta regra comum:

“Que exista uma regra geral por meio da qual o músico possa
aprender a sinfonia a partir da partitura, regra por meio da qual
se possa derivar a sinfonia das linhas do disco e ainda segundo
a primeira regra, de novo derivar a partitura; nisto consiste pro-
priamente a semelhança interna dessas iguras aparentemente tão
diversas. E essa regra é a lei de projeção que projeta a sinfonia na
linguagem musical. É a regra da tradução da linguagem musical
para a linguagem do disco” (4.0141).

Desse exemplo, devemos ressaltar três pontos importantes:

a. Há um mundo como totalidade dos fatos (1 até 1.11);


b. Há iguração dos fatos (2.1);
c. Essas igurações são elas próprias fatos (2.141).

A possibilidade de correspondência entre mundo e iguração fundamenta


a forma lógica como comum ao mundo e também às aigurações. É nítido
que Wittgenstein pressupõe a lógica como uma ordem a priori do mundo.
Noutros termos, para existir a possibilidade de se pensar e se falar sobre o
mundo, deve haver algo em comum entre linguagem e mundo. O elemento
comum deve estar na estrutura presente em ambos: podemos conhecer a
estrutura de um conhecendo a estrutura de outro. Daí, temos que, se a lógica
revela para nós a estrutura da linguagem, logo ela também há de revelar a
estrutura do mundo.
Até aqui, vimos de início que é essencial a distinção feita por Wittgens-
tein entre a categoria de fatos e de não-fatos, tal como ressalta a proposição
1.1: “O mundo é a totalidade dos fatos, não das coisas”. Desse modo, temos
que fatos (Tatsachen) correspondem a uma categoria distinta de estados de
coisas (Sachverhalte) – embora ambos pertençam à categoria dos fatos. A

60
diferença reside no seguinte aspecto: fatos fazem referência a algo que real-
mente é ou foi dado, ou seja, que ocorre ou ocorreu; enquanto estados de coi-
sas, por sua vez, dizem respeito a algo possível. Exempliicando: a proposição
“A Seleção Brasileira ganhou a Copa do Mundo de 2002” é um fato, visto que
corresponde a algo que realmente aconteceu. Por sua vez, a proposição “A
Seleção Brasileira ganhou a Copa do Mundo de 2014” é um estado de coisas,
visto que apenas diz respeito a possibilidade, mas não à efetividade.
Temos, então, que se o mundo é a totalidade dos fatos – tal como airma a
proposição 1.1 –, ele é, enquanto tal, um fato mas, além disso, o mundo tam-
bém é a totalidade das possibilidades (estados de coisas) e por isso limita o
que ocorre e o que “não ocorre” (possibilidade): “A totalidade dos fatos deter-
mina, pois, o que ocorre e também tudo que não ocorre” (1.12).
A linguagem, a lógica e o mundo, segundo Wittgenstein, estariam intima-
mente interligados:

Os limites de minha linguagem denotam os limites de meu mundo.


(5.6). A lógica preenche o mundo; os limites do mundo são também
seus limites (…) Não podemos pensar o que não podemos pensar, por
isso também não podemos dizer o que não podemos pensar (5.61)

Wittgenstein diz que “os limites de minha linguagem denotam os limites


de meu mundo” uma vez que o ilósofo tem em mente o mundo e a lingua-
gem em uma relação isomórica: o que está fora da linguagem está, conse-
quentemente, fora do mundo – e sobre esse algo nada se pode falar.
Desse modo, podemos airmar algumas conclusões oriundas da obra: a)
a separação entre ciência (da natureza e lógica) e mundo da vida; b) a ideia
que airma que proposições lógico-analíticas são tautologias; proposições da
ciência, por sua vez, seriam sintéticas e referem-se a fatos; c) a evidência das
proposições cientíicas deve ser dada pelo seu caráter de ser veriicável (“Com-
preender uma proposição é saber o que ocorre, caso ela for verdadeira” (4.024).
Cabe ressaltar que embora exista uma inluência nítida entre o Tractatus
de Wittgenstein e o positivismo lógico oriundo do Círculo de Viena, também
é de grande relevância a existência de divergências substanciais, sobretudo

61
no que diz respeito à metafísica. O positivismo lógico, embora tenha acei-
tado até certa medida a teoria da iguração elaborada por Wittgenstein, não
tomou parte do que diz respeito ao pensamento de fundo da obra de Witt-
genstein. Noutros termos, embora o ilósofo tenha separado ciência de dis-
tintos outros conhecimentos (como o metafísico, o religioso, estético, etc.),
em nenhum momento Wittgenstein diz que estes últimos carecem de impor-
tância, mas apenas que eles não podem ser enquadrados em uma linguagem
fundamentada logicamente.

3. Tractatus Logico-Philosophicus:
pressupostos
A exposição dos pensamentos expressos no Tractatus é extraordinariamente
condensada. Não é apenas isto, porém, que tanto diiculta a compreensão
desses pensamentos. Algo mais concorre para isso: muitas das ideias do
Tractatus têm suas raízes na controvérsia com teorias de Frege e B. Russell.
Portanto, quem não estiver familiarizado com as teorias lógicas destes dois
pensadores só com diiculdade terá acesso à ilosoia daquilo que aqui cha-
maremos de – e convencionalmente é chamado – “primeiro Wittgenstein”,
i.e., os pensamentos em torno do Tractatus Logico-Philosophicus.
Por outro lado, porém, no Tractatus encontramos uma tendência tipi-
camente “metafísica”, que levou Wittgenstein à construção de um sistema
ilosóico que o liga aos grandes ilósofos do passado, não obstante ter ele
dado, ainal, como carente de sentido qualquer espécie de sistema ilo-
sóico. É esta “união íntima” entre um metafísico e um técnico, presente
no autor do Tractatus, que se constitui numa razão a mais para diicultar a
compreensão dessa obra.
Por im, também a linguagem de Wittgenstein constitui um entrave para a
compreensão daquilo que ele deseja dizer. Na verdade, com exceção de algu-
mas expressões técnicas, ele emprega apenas palavras conhecidas da lin-
guagem do dia a dia ou da tradição ilosóica; contudo, muitas vezes associa

62
signiicados completamente diversos do normal a expressões como “estado
de coisas” (Sachverhalt), “fato” (Tatsache), “coisa” (Ding), “mundo” (Welt),
“substância” (Substanz), “iguração” (Bild), etc.7 Precisamos, pois, continua- 7 Há uma grande discussão entre especia-
listas sobre a tradução para o português dos
mente, livrar-nos das acepções tradicionalmente ligadas a tais expressões, termos presentes na ilosoia de Wittgenstein.
para não entendermos mal o sentido de suas proposições. Paradoxalmente, Entretanto, apesar da presença de equívocos,
para ins didáticos, adotaremos a terminolo-
isso é mais fácil para aqueles que se acham livres da tradição ilosóica (como gia presente na tradução de José A. Giannotti
do Tractatus Logico-Philosophicus (1968).
o próprio Wittgenstein o era na época da redação do Tractatus); de fato, ao
deparar com a palavra “substância”, por exemplo, essas pessoas não precisa-
rão libertar-se das inúmeras associações que esta palavra suscita em quem
está a par da discussão de mais de dois milênios em torno deste conceito.
Para facilitar a compreensão das correlações que se estabelecem entre as
ideias desenvolvidas no Tractatus, Wittgenstein associou suas proposições
a números: a obra contém 7 teses principais às quais são dados os núme-
ros 1 a 7. Para todas as outras proposições é empregada a notação decimal (1;
2.1; 3.1.2; etc). Contudo, na realidade, as correlações são essencialmente mais
complicadas do que se poderia imaginar ao ter em mente esta numeração.
Mesmo assim, as teses principais dão-nos uma primeira visão da estrutura
da ilosoia de Wittgenstein: as duas primeiras teses referem-se ao funda-
mento ontológico de sua ilosoia (mundo, estados de coisas, fatos); na terceira
tese é desenvolvida a passagem da ontologia para a teoria do conhecimento
(relação entre o mundo e os pensamentos sobre o mundo); com a tese 4 ini-
ciam-se as investigações sobre a linguagem (as proposições signiicativas
como veículo de formulação dos pensamentos; nas teses 5 e 6 é abordada
a estrutura interna da linguagem e se estabelece um esquema geral no qual
deve-se inserir toda proposição signiicativa; a última parte do livro contém
uma perspectiva ilosóico-transcedental, cujo resultado é resumido na tese 7.

4. A base ontológica do Tractatus


Mais fundamental do que todas as distinções entre conceitos, segundo seu
conteúdo, é a distinção entre conceitos segundo sua natureza lógica ou, como
também se pode dizer, a distinção entre conceitos de categorias diversas; essa

63
distinção é tão geral que não pode ser caracterizada com o auxílio de dei-
nições. Por exemplo, existe uma diferença categorial, quando se comparam
entre si a negação, uma coisa singular (Einzelding) e uma propriedade univer-
sal. Se, no decorrer de uma análise ilosóica, necessitamos estabelecer uma
distinção categorial, devemos, de início, contentar-nos como elucidar a dis-
tinção mediante exemplos ou analogias.
A distinção fundamental em categorias, empreendida por Wittgenstein
na primeira parte do Tractatus, consiste na distinção entre a categoria dos
fatos e a dos não fatos. A própria comparação entre objeto individual e atri-
butos – estes últimos compreendem propriedades e relações – forma uma
distinção categorial dentro da categoria dos não fatos. Na primeira propo-
sição do Tractatus, tem-se: “1. O mundo é tudo o que ocorre”, como tam-
bém na proposição elucidativa subsequente “1.1 o mundo é a totalidade
dos fatos, não das coisas”, o mundo é incluído na categoria dos fatos. À pri-
meira vista, isto provoca certa estranheza. Com efeito, seria de esperar que
um ilósofo, que se atreve a operar com o conceito de mundo, o entendesse
como algo complexo ou como a totalidade de coisas; algo, portanto, que, a
rigor, não pertencesse à categoria dos fatos. Wittgenstein certamente não
negaria que se pode introduzir um conceito de mundo como coisa; teria
dito, porém, que o conceito de mundo como fato é ilosoicamente mais
importante e mais fundamental.
O que ele tinha em mente pode ser melhor ilustrado por meio de uma
analogia da área da Psicologia da Percepção: a percepção de objetos comple-
xos não se dá, como a psicologia atomística admitia, mediante uma inte-
gração das partes individuais primeiro percebidas, mas, ao contrário, pela
diferenciação e articulação de um campo de percepção originalmente indi-
ferenciado. Assim, todo o campo recebe uma estrutura de modo a poder ser
analisado em partes individuais. Pense-se, para tanto, num campo de percep-
ção mais simples possível, constante, por exemplo, de algumas linhas e cír-
culos ou de quaisquer outras iguras geométricas primitivas. Para nós, esse
campo adquire uma estrutura e converte-se numa determinada forma de per-
cepção (Wahrnehmungsgestalt), tão logo o compreendamos como algo for-
mado de objetos diversos, com determinadas qualidades, e que se acham em

64
determinadas relações. Mas a estrutura do campo não é ixada por esses obje-
tos e suas propriedades; é ixada por meio de determinados fatos: por meio do
fato de que a forma (Gestalt) consta de tais e quais objetos, de que esses obje-
tos possuem tais e quais propriedades etc. Aqui, a forma percebida não deve
ser identiicada com o campo de percepção, pois a forma só é vista após ter
sido dada uma estrutura ao campo. Essa diferença pode se manter enquanto
se airme que a forma percebida pertence à categoria das coisas e o campo da
percepção, à categoria dos fatos. Esse campo de percepção divide-se em fatos
mais simples. E as coisas singulares e atributos só aparecem como elemen-
tos nos fatos mais simples.
Fatos (Tatsachen) devem ser aqui diferenciados do que Wittgenstein
designa por estados de coisas (Sachverhalte). Em relação à categoria, os dois
não se diferenciam, isto é, também estados de coisas fazem parte da catego-
ria dos fatos, não, no entanto, da categoria das coisas singulares e dos atri-
butos. Enquanto um fato sempre diz respeito a algo que realmente ocorre, um
estado de coisas representa apenas algo que possivelmente pode ocorrer. Essa
diferença espelha-se na diferença de conteúdos entre proposições verda-
deiras e falsas: nas duas proposições, “Anibal viveu antes de César” e “César
viveu antes de Aníbal”, airma-se algo que ocorre. No entanto, o conteúdo
da primeira proposição, que é verdadeira, não vem apenas airmado, mas é
também algo que realmente ocorreu, corresponde a um fato. O conteúdo da
segunda proposição (falsa), em contrapartida, não é um fato. O que se asse-
vera numa proposição válida qualquer (mas não apenas logicamente válida)
é, assim, sempre um estado de coisas. Pode tratar-se de um estado de coisas
subsistente ou não subsistente. Se a proposição é verdadeira, então subsiste
o estado de coisas, que é denominado fato; se a proposição é falsa, o estado
de coisas não subsiste e, por conseguinte, não se tem um fato.
Para a ontologia de Wittgenstein, é de grande importância a distinção
entre estados de coisas atômicos (atomare Sachverhalte) e estados de coisas
complexos (komplexe Sachverhalte). Explicaremos melhor essa distinção, mas,
por hora, já indicamos que os estados de coisas atômicos são algo “logica-
mente simples”, que não se divide em novos estados de coisas, mas se arti-
cula em coisas e atributos.

65
Dos estados de coisas atômicos, Wittgenstein diz que são mutuamente
independentes (2.061). Com isso, entende-se que, se A e B são estados de coi-
sas atômicos, quatro são as possibilidades de subsistência e não subsistên-
cia: ambos subsistem; ambos não subsistem; A subsiste e B não subsiste;
A não subsiste e B subsiste. Uma vez que esta espécie de independência vale,
não importando se A ou respectivamente B é um fato, Wittgenstein não faz,
deste modo, constatação alguma sobre o mundo real; mas faz uma consta-
tação que vale para qualquer mundo possível. O mundo real deve ser imagi-
nado como inserido numa totalidade de mundos possíveis. Como se chega
a tais mundos possíveis? A im de elucidar a relação entre mundo possível e
mundo real, Wittgenstein introduz o conceito de espaço lógico.

4.1 Espaço Lógico

Numa primeira aproximação, podemos esclarecer este conceito da seguinte


forma: imaginemos uma descrição mais pormenorizada possível do mundo
real. Descartemos dessa descrição todas as proposições que dependam de
outras partes da descrição, isto é, consideramos uma descrição que é completa
e na qual, na totalidade, os componentes descritos independem uns dos outros.
Insiramos o mundo assim descrito num espaço lógico, na medida em que dis-
sermos: esse espaço tem tantas dimensões quantos são os componentes des-
critivos mutuamente independentes desse mundo (quer dizer, tantos quantos
restarem após a eliminação dos componentes descritivos dependentes).
Os diversos mundos possíveis são obtidos a partir do mundo factual, subs-
tituindo por outros, os componentes descritivos individuais. Usando-se a ter-
minologia do espaço lógico, isso signiica: um mundo possível é determinado
univocamente por meio da seleção de cada um dos estados de coisas atômicas de
cada dimensão do espaço lógico. Tem-se uma descrição verdadeira do mundo
real quando, para cada dimensão do espaço lógico nessa descrição, há exata-
mente um componente que airma subsistência de um estado de coisas atô-
mico dessa dimensão e, além disso, esse estado de coisas atômico é um fato
atômico. Tal descrição indica tudo o que ocorre e exclui tudo o que não ocorre.

66
5. A teoria do isomorfismo
No item 2.1 do Tractatus, Wittgenstein abandona, pela primeira vez, as con-
siderações puramente ontológicas e passa para as relexões sobre o conhe-
cimento. Aí se diz que fazemos igurações dos fatos. A expressão “iguração”
(Bild) tem dado origem, provavelmente, às mais graves interpretações errô-
neas do Tractatus. Pensamos, naturalmente, de imediato, aquilo que, na lin-
guagem comum, chamamos de igurações, a saber, em determinadas coisas
que são mais ou menos análogas a um original (real ou ictício); pensamos,
portanto, em igurações num sentido “naturalista”. Nos leitores de inclina-
ções ilosóicas surge, forçosamente, a lembrança das diversas formas dos
chamados “realismo ingênuo” e “crítico”, nos quais se desenvolve uma teo-
ria aigurativa do conhecimento, segundo a qual nosso pensamento, embora
que verdadeiro, concorda total ou parcialmente com a realidade.8 Devemos 8 Realismo ingênuo, também conhe-
cido por “Realismo direto” ou “realismo de
libertar-nos, no entanto, de todas essas ideias. Em primeiro lugar, Wittgens- senso comum”, um realismo distinto do rea-
tein não pensa, de forma alguma, em igurações naturalistas, mas tem em lismo cientíico, acredita-se que o que per-
cebemos diretamente corresponde ao que
mente uma relação abstrata complexa que, antes de mais nada, corresponde as coisas são realmente. Os nossos senti-
dos dão-nos diretamente o mundo. Todos os
àquilo que os matemáticos designam por “aiguração” (Abbildung). Como
objetos são compostos de matéria que ocupa
ainda veremos, da espécie dessa relação resulta que um original e uma igu- espaço. E são suas propriedades o volume,
a forma, a cor, e por aí afora. Ao arrepio da
ração devem ser da mesma categoria. Dado que na proposição 2.1 do Tracta- ciência, garante que os objetos possuem as
tus fala-se de “igurações de fatos”, segue-se, em segundo lugar, que aquilo cores que nós percebemos através dos nos-
sos sentidos. Um realista ingênuo comporta-
que Wittgenstein denomina iguração (Bild) nunca pode ser uma coisa, mas deve se como se ignorasse o debate ilosóico
sobre a natureza da experiência consciente.
pertencer à categoria dos fatos.
Na sequência do pensamento de René Des-
Para elucidação do conceito de iguração é suiciente tomar por base o sen- cartes, John Locke, George Berkeley, David
Hume e Immanuel Kant, o mundo que vemos
tido relativo de “fato”, de “estado de coisas atômico” etc. Imaginemo-nos que não é o mundo real, mas apenas a percep-
um fato complexo facilmente abrangível tenha sido analisado em estados de ção da representação interna desse mundo
gerado pelo cérebro. Para os ilósofos da
coisas simples. Sejam as “coisas” participantes, por exemplo, três pessoas a, mente contemporâneos e cientistas cogniti-
vos, o realismo de Kant é tão ingênuo como o
b e c; a relação-pai, P e a propriedade de possuir talento musical, M. O fato
realismo de senso comum. A realidade é um
pode ser articulado em três fatos individuais: a seria o pai de b e c; além disso, compósito formado pela realidade última e
pelas construções dos sentidos e do cérebro.
b teria talento para a música. Assim ica assentada a “estrutura externa” desse A realidade não está só de um lado, do lado
fato complexo. A “estrutura interna”, em contrapartida, já é dada pela indica- do mundo ou do lado da cabeça das pessoas.
Para mais, vide searle (1992).
ção do número e da categoria dos elementos participantes: três indivíduos,

67
um atributo monádico e um diádico. Portanto, o que é que se requer para
a representação deste fato complexo através de uma “iguração”, feita, por
exemplo, com o auxílio de um diagrama? Uma pressuposição mínima é a
seguinte: a iguração buscada deve possuir a mesma estrutura interna do fato
a ser aigurado. Por conseguinte, num primeiro momento, devem ser toma-
das iniciativas para que estejam à disposição o mesmo número de elemen-
tos e de categoria: três indivíduos, uma relação diádica e uma propriedade.
Suponhamos de momento, que se escolhessem, como elementos igura-
tivos, três letras “a”, “b” e “c”, para representação de três pessoas; uma seta,
para representação da relação-pai e, inalmente, um círculo para a represen-
tação do talento musical (o círculo deve envolver a letra que designa uma
pessoa musicalmente talentosa). A igualdade da estrutura interna do original
e da iguração é uma conditio sinequa non para que se chegue a uma “igura-
ção” de um fato; ela possibilita uma coordenação reversivelmente unívoca entre
ambas as áreas. Com isso, a desejada espécie de coordenação ainda não ica
ixada: pode ser escolhida de maneira que a iguração adquira outra estrutura
externa, diversa da estrutura do original. Alternativamente, uma coordenação
poderia ser de tal forma escolhida, que o original e a iguração concordassem
também quanto à estrutura externa. (No exemplo, a lecha seria prolongada
de “a” para “b” e de “b” para “c”, sendo que “b” seria envolto por um círculo).
Neste caso, temos um isomorismo entre ambos os fatos complexos.

68
Bibliografia:

WITTGENSTEIN, Ludwig. Tractatus Logico-Philosophicus. São Paulo: Ed.


Nacional, 1968.

STEGMULLER, Wolfgang. A ilosoia contemporânea. São Paulo: EPU, 1977.

PEARS, David. As ideias de Wittgenstein. São Paulo: Cultrix, 1973.

SEARLE, John. A Redescoberta da mente: haverá algum problema com a


psicologia popular? Instituto Piaget, 1992.

Vídeos e materiais de suporte:

Tractatus de Wittgenstein: https://www.youtube.com/watch?v=0BydEgjp894

69
Módulo 5
Ludwig Wittgenstein
e as Investigações
Filosóficas
1. Ludwig Wittgenstein: do
Tractatus Logico-Philosophicus
às Investigações Filosóficas
Após a publicação do Tractatus Logico-Philosophicus, em 1921, Wittgenstein
gradativamente se afastou das atividades ilosóicas até o ano de 1929. Con-
tudo, ao retornar seus esforços novamente nas questões que outrora lhe
atormentavam, mudou seu modo de pensar de maneira considerável. Nesse
sentido, podemos dizer que se antes, em sua obra inicial, Wittgenstein tinha
como inalidade a busca de uma estrutura essencial e sólida da linguagem, tal
objetivo é transformado paulatinamente ao longo de seu desenvolvimento
teórico. Pode-se dizer que sua obra Investigações Filosóicas, publicadas pos-
tumamente no ano de 1953, representa o ponto auge daquilo que é classica-
mente chamado de “segundo Wittgenstein” ou, ainda, “Wittgenstein tardio
ou maduro”. Nessa obra, o ilósofo parte da ideia de que a linguagem não pos-
suía uma essência lógica, mas que a linguagem é um conjunto de atividades
vinculadas a usos distintos em variadas formas de vida. Desse modo, pres-
supõe como condição fundamental para a signiicação dos termos a noção
de uso, vinculada ao seu clássico conceito de “jogos de linguagem” (Sprachs-
piele). Nessa esteira, Wittgenstein não tenta mais, como no Tractatus, des-
vendar aquilo que supostamente estaria oculto sob a linguagem ordinária.
Ao contrário, o ilósofo mantém agora a atenção ao funcionamento da lin-
guagem mesma, “às claras”.
Assim como Tractatus, as Investigações Filosóicas também não se cons-
tituem como uma obra organizada sistematicamente de modo tradicional.
Wittgenstein, no próprio prefácio da obra, esclarece os motivos disso:

Após várias tentativas fracassadas para condensar meus resul-


tados num todo assim concebido, compreendi que nunca con-
seguiria isso, e que as melhores coisas que poderia escrever

73
permaneceriam sempre anotações ilosóicas. […] As anotações
ilosóicas deste livro são, por assim dizer, uma porção de esboços
de paisagens que nasceram nestas longas e confusas viagens. […]
Assim, este livro é na verdade apenas um álbum.

A relevância dessa obra para o pensamento é incontável, seja para a ilo-


soia, seja para outras áreas próximas. Por esse motivo, faremos agora uma
análise das partes principais das Investigações Filosóicas, a im de introduzir
o leitor nos principais conceitos da obra.

O livro Investigações Filosóicas é considerado, ao


lado do Tractatus Logico-Philosophicus, o trabalho
mais importante do ilósofo e matemático Ludwig
Wittgenstein. As Investigações Filosóicas cons-
tituem uma espécie de síntese da segunda fase do
pensamento de Wittgenstein, assim como o Tracta-
tus é uma síntese da primeira. O livro foi publicado
postumamente, em 1953, numa edição bilíngue ale-
mão/inglês, cuja tradução para o inglês foi feita por
G. E. M. Anscombe.
Nas Investigações Filosóicas, Wittgenstein critica várias ideias que ele mesmo
havia defendido anteriormente no Tractatus, em especial as ideias de uma essência
da linguagem, de uma teoria pictórica do signiicado e de uma estrutura lógica sub-
jacente à forma aparente das proposições. Wittgenstein também defende a ideia de
que não há problemas ilosóicos genuínos, pois os problemas ilosóicos surgem de
uma falta de compreensão do funcionamento da linguagem e da lógica dos conceitos.
Nesta perspectiva, a ilosoia é vista como uma atividade terapêutica que dissolve as
perplexidades “ilosóicas”.
O livro também propõe a análise de vários conceitos importantes para a ilosoia
da mente, tais como os conceitos de pensamento, intenção, consciência e vontade.

74
2. O método das Investigações
Filosóficas
Não são raras as diiculdades apresentadas na leitura e interpretação das
Investigações Filosóicas. Isso se deve porque a maneira de ilosoia proposta
por Wittgenstein nessa obra é bastante original e, por isso, as ideias ali colo-
cadas devem ser entendidas a partir dos problemas que circundam o próprio
pensamento do autor. O ilósofo analisa cada problema e, sem subdivisão,
parte para a análise de outro sem que o leitor seja claramente avisado disso.
Essa é a proposta das Investigações Filosóicas: uma obra não formal, que zela
pela clareza de exposição, mas que, por esse mesmo motivo, acaba exigindo
uma atenção maior daqueles que se propõem à lê-la.
As articulações presentes nos primeiros parágrafos da obra versam sobre
a função de nomear e são uma crítica direta tanto ao atomismo lógico pro-
posto por Russell como, ainda, às próprias ideias de Wittgenstein presentes
no Tractatus. Dessa forma, Wittgenstein rejeita nas Investigações Filosóicas
qualquer tipo de paralelismo formal ou estrutural entre linguagem e mundo:
haveria tantos tipos de signiicados e modos de signiicação na linguagem
como maneiras de empregá-los na prática. Nos termos de Wittgenstein, as
palavras funcionariam na linguagem como peças em um jogo de xadrez, uma
vez que as variadas maneiras nas quais os termos adquirem signiicação são
reletidos na própria variedade de seus usos.
Tome-se como exemplo a expressão “traga-me uma lajota!”. Tal expressão
pode ser abreviada da seguinte forma: “lajota!”. Mesmo de forma abreviada,
a comunicação, e.g., entre pedreiro e servente não falha, continua funcio-
nando normalmente. Nesse caso citado, “lajota” não seria descrição de nada,
mas uma ordem. Assim, para o ilósofo, as palavras não seriam somente
nomes de objetos isolados ou algo que ofereceria simplesmente a tarefa de
se referir a objetos de modo falso ou verdadeiro, mas “ferramentas” que, com
distintas funções, também possuem distintos signiicados.

75
Em síntese, Wittgenstein centra seu método nas Investigações Filosóicas
não mais com o objetivo de apreender a estrutura básica e formal da lingua-
gem, mas sim com a inalidade de analisar os distintos jogos de linguagem
existentes na linguagem ordinária. Examina diversos exemplos a im de
mostrar o equívoco de se crer em uma suposta essência intrínseca da lingua-
gem. Dessa forma, sua análise não buscará formas irredutíveis ou elementa-
res relacionadas ao signiicado, mas dará atenção ao uso e, por meio deste, à
mutabilidade e lexibilidade da linguagem.

3. Os problemas da filosofia:
problemas de linguagem
É nítido para quem lê as Investigações Filosóicas que o propósito de solu-
ção de Wittgenstein para muitos problemas existentes na ilosoia seria a
análise dos termos no uso da linguagem ordinária. O próprio autor deixa
isso explícito: “Queremos estabelecer uma ordem no nosso conhecimento
do uso da linguagem: uma ordem para uma inalidade determinada; uma
ordem dentre as muitas possíveis; não a ordem”. (§132)
Os problemas ilosóicos seriam, nessa perspectiva, oriundos da má
compreensão do funcionamento da linguagem. Assim a ilosoia seria “a
luta contra o enfeitiçamento de nossa inteligência por meio da lingua-
gem” (§109). Isso porque os ilósofos tradicionais tenderiam a ver a lin-
guagem de forma unilateral, isomórica, essencialmente rígida. Podemos
dizer, assim, que Wittgenstein apresenta nas Investigações Filosóicas uma
concepção de linguagem que aparentemente pode ser tida como uma antí-
tese do Tractatus, visto que na primeira o ilósofo parte da complexidade e
multiplicidade da linguagem cotidiana. Distintamente, o ilósofo não trata
mais da linguagem, mas dos distintos jogos de linguagem: não cabe mais
apontar para os limites da linguagem, mas para as fronteiras dos distintos
jogos de linguagem.

76
4. O conceito de jogos
de linguagem
Um dos conceitos mais fundamentais das Investigações Filosóicas, os jogos
de linguagem (Sprachspiele) merecem uma atenção especial, visto que trazem
a linguagem para o âmbito da complexidade do uso e de suas relações: “todo
signo sozinho parece morto. O que lhe dá vida? No uso ele vive” (§432). Sobre
uso e jogos de linguagem, é clássica a referência feita pelo ilósofo ao jogo de
xadrez: “A questão ‘o que é realmente uma palavra?’ é análoga a ‘o que é uma
igura de xadrez?’”(§108). Assim, a compreensão de um termo se dá pela com-
preensão de seu funcionamento e de seu uso.
Vale observar que, uma vez que a linguagem é compreendida pelo seu uso,
a investigação sobre a linguagem de modo estruturalmente rígido e único
torna-se despropositada e a atenção dada visa agora a suas funções práticas,
dadas de forma múltipla e variada. Uma proposição, em si mesma, não rele-
tiria a estrutura da linguagem, mas apenas uma de suas funções – seja ela
qual for – denotar, comandar, agradecer, contar piadas, etc.
A ideia de jogo esclarece alguns aspectos próprios da linguagem. Primei-
ramente, revela seu caráter social de atividade, de distintas funções. Além
disso, ressalta-se a necessidade de regras, embora não rígidas e nem únicas –
para distintos jogos, a existência de distintas regras.

Considere, por exemplo, os processos que chamamos ‘jogos’.


Reiro-me a jogos de tabuleiro, de cartas, de bola, torneios espor-
tivos, etc. O que é comum a todos eles? Não diga: ‘algo deve ser
comum a todos eles’, senão não se chamariam ‘jogos’ – mas veja
se algo é comum a todos eles. Pois, se você os contempla, não
verá na verdade algo que seja comum a todos, mas verá seme-
lhanças, parentescos, e até uma série deles. Como disse: não
pense, mas veja! (§66)

77
As semelhanças existentes entre os jogos de linguagem são, como airma
Wittgenstein, semelhanças de família. Dessa forma, o conceito de jogos de
linguagem não é dado de forma precisa, pontual (vide §71). Os jogos de lin-
guagem são apresentados como uma multiplicidade existente de distin-
tas formas de vida e não se deve buscar nessa variedade um denominador
comum, visto que os limites e a exatidão são dados pelo uso. Mais uma vez,
ressaltada a variedade da linguagem, a pergunta por sua essência torna-se
irrelevante:

Aqui encontramos a grande questão que está por trás de todas as


considerações. Pois poderiam objetar-me: você simpliica tudo!
Você fala de todas as espécies de jogos de linguagem possíveis,
mas em nenhum momento disse o que é essencial do jogo de lin-
guagem, e portanto da própria linguagem. O que é comum a todos
esses processos e os torna linguagem ou partes da linguagem. Você
se dispensa, pois, justamente da parte da investigação que outrora
lhe proporcionara as maiores dores de cabeça, a saber, aquela con-
cernente à forma geral da proposição e da linguagem. (§65)

Para esse tipo de objeção, ou seja, para aquele que porventura venha a
questionar a necessidade da deinição do termo “jogos de linguagem”, Witt-
genstein dá a seguinte resposta:

E isso é verdade. Em vez de indicar algo que é comum a tudo aquilo


que chamamos linguagem, digo que não há coisa comum a esses
fenômenos, em virtude dos quais empregamos para todos a mesma
palavra, mas, sim, que estão aparentados uns com os outros de
muitos modos diferentes. E por causa desse parentesco ou desses
parentescos, chamamo-los todos linguagem. (§65)

Dessa forma, Wittgenstein sustenta a impossibilidade de deinição por


meio de um denominador comum relacionado ao conceito de “jogos de lin-
guagem”. Os distintos jogos podem, apenas, ser aproximados por meio de

78
semelhanças de família – e isso não indica uma identidade, mas apenas uma
relação aproximativa. Logo, em vez de deinirmos o termo, o que deve ser
feito é mostrar suas variadas relações, aproximações e distâncias, ou seja, o
modo como são usados e como funcionam na prática. Aqui, nada se explica,
apenas se constata.

5. Mais sobre o texto:


outro comentário
Abaixo você terá acesso a uma explicação do professor Josué Silva (UESC)
sobre as ideias de Wittgenstein. De forma resumida, o texto pode ser um bom
indexador da teoria exposta neste capítulo. Boa leitura!

79
Wittgenstein e os infinitos jogos
de linguagem
(Texto disponível em: http://educacao.uol.com.br/disciplinas/ilosoia/ilosoia-
da-linguagem-4-wittgenstein-e-os-ininitos-jogos-de-linguagem.htm).

Uma rápida comparação entre o “Tractatus Logico-Philosophicus” e as “Inves-


tigações Filosóicas” é suiciente para perceber a radicalidade da mudança no
pensamento de Wittgenstein.
Embora permaneça com a mesma temática, ou seja, o problema da lingua-
gem, o Wittgenstein das “Investigações Filosóicas” é profundamente crítico
de si mesmo, a ponto de abandonar a forma sistemática e precisa do Tracta-
tus, por aquilo que ele chamou de um álbum de “anotações” e “esboços de
paisagens”, às vezes saltando rapidamente de um tema a outro e usando ima-
gens e metáforas.
Por outro lado, há certa continuidade no trabalho de Wittgenstein. No
Tractatus ele pretendia romper com a visão tradicional da ilosoia, que dava
prioridade à função designativa da linguagem e pouca importância às rela-
ções entre as palavras ou entre as coisas no mundo. Nas “Investigações Filo-
sóicas”, ele aprofunda essa temática, criticando inclusive a si próprio.

Partes da realidade
Para Wittgenstein, o grande problema na ilosoia da linguagem tem sua ori-
gem em Platão, que interpretava todas as palavras como nomes próprios, em
que cada nome corresponde a um objeto. Os nomes comporiam as unidades
simples das quais são tecidas as aigurações do mundo, sua estrutura lógica.
Sempre seria possível reduzir as unidades complexas de signiicação aos
seus elementos mais simples.
Nas “Investigações Filosóicas”, Wittgenstein coloca esse modelo em
xeque ao se perguntar quais são as partes simples que compõem a realidade.
Por exemplo: quais são as partes constituintes simples de uma poltrona? A

80
resposta, naturalmente, depende do contexto em que surgiu a pergunta, se
ela parte de empregados de uma empresa interessados em desmontar a pol-
trona para transportá-la, ou de um cientista interessado em analisar os riscos
de combustão dos materiais etc.
Ou seja, o que é “simples” ou “composto” é completamente dependente do
jogo de linguagem que se está jogando. Mas o que é jogo de linguagem? Witt-
genstein não nos dá uma deinição, pois é justamente com essa visão de iloso-
ia que está tentando romper: a de que cada palavra corresponde a um objeto.

Jogos de linguagem
A linguagem não é uma coisa morta em que cada palavra representa algo de
uma vez por todas. Ela é uma atividade humana situada cultural e historica-
mente. Os jovens, por exemplo, adoram usar termos diferenciados que cor-
respondem ao seu grupo, mas que fora dele poucos compreendem. Assim,
“radical” já foi usado para designar algo que é “maneiro” ou “massa”. Um
sujeito “legal” pode ser considerado “sangue bom” ou “moral” dependendo
do lugar onde viva.
A ideia de jogos de linguagem rompe com a visão tradicional de que
aprender uma língua é dar nomes aos objetos. Imagine que você está em
um passeio turístico e se perdeu de seu grupo. No lugar em que você está a
população só fala o idioma local, que você desconhece. Como você faria para
se comunicar?
Talvez você tentasse se comunicar primeiro por mímica ou tentasse dese-
nhar o que queria. Os nativos falariam alguma coisa na língua deles e você tal-
vez repetisse na esperança de estabelecer algum laço de comunicação. Talvez
com um bocado de paciência vocês acabassem se entendendo e essa história
acabaria tendo um inal feliz. Naturalmente, ocorreriam muito mais equívo-
cos do que acertos, isso porque mesmo gestos que para nós são banais, como
acenar a cabeça, podem signiicar coisas muito diferentes em outra cultura.

Linguagem e forma de vida


É claro que designar objetos é uma parte importante da linguagem, mas ela
não se reduz a isso. Mesmo uma criança quando está aprendendo a falar

81
ainda não é capaz de entender elucidações indicativas (mímica, jogos com
os olhos), justamente por desconhecer o signiicado daquela palavra que
queremos elucidar.
Como ilustra Wittgenstein, quando mostramos um objeto para uma
criança e dizemos: “este é o rei”, essa elucidação só passa a fazer sentido
enquanto denominação de uma peça de xadrez se a criança “já sabe o que é
uma igura do jogo”. O que pressupõe que ela já tenha jogado outros jogos ou
que tenha assistido a outras pessoas jogando “com compreensão” (“Investi-
gações Filosóicas”, § 31).
Portanto, o aprendizado de uma língua não pode ser visto apenas como
mero aprendizado da designação de objetos isolados. Esse é apenas um ato
secundário dentro de um processo em que a criança, ao mesmo tempo em
que aprende a língua materna, também se apropria de um determinado
entendimento do mundo. A criança aprende junto com a linguagem uma
determinada forma de vida.
Formas de vida e jogos de linguagem constituem, portanto, as categorias
centrais da nova imagem da linguagem elaborada por Wittgenstein. Nessa
nova imagem, a linguagem é sempre ligada a uma forma de vida determi-
nada, contextualizada dentro de uma práxis comunicativa interpessoal.

82
Bibliografia:

WITTGENSTEIN, Ludwig. Tractatus Logico-Philosophicus. São Paulo: Ed.


Nacional, 1968.

______. Investigações Filosóicas. São Paulo: Ed. Abril, 1975.

STEGMULLER, Wolfgang. A ilosoia contemporânea. São Paulo: EPU, 1977.

PEARS, David. As ideias de Wittgenstein. São Paulo: Cultrix, 1973.

Vídeos e materiais de suporte:

Wittgenstein e os jogos de linguagem: https://www.youtube.com/


watch?v=R1AGfJZBgNg

Introdução às Investigações Filosóicas: https://www.youtube.com/


watch?v=G6OJ2XnBmns

Ininitos jogos de linguagem: http://educacao.uol.com.br/disciplinas/ilosoia/


ilosoia-da-linguagem-4-wittgenstein-e-os-ininitos-jogos-de-linguagem.htm

83
Módulo 6
John L. Austin:
a linguagem e a mente
1. John L. Austin: a linguagem
como saída para problemas
da filosofia da mente
Um dos maiores expoentes da ilosoia analítica, John L. Austin (1911–1960)
deu uma contribuição de grande relevância para a ilosoia da linguagem e da
mente contemporânea com seu artigo Outras Mentes ([1946] 1980). A questão
central que norteia o artigo é: o que signiica dizer que há a ‘mente’ ou, mais
especiicamente, ‘outras mentes’? Em sua argumentação, Austin conclui que
tal problema não pertence ao nível ontológico (o que é a mente), mas sim ao
nível linguístico (o que signiica ‘mente’) e, assim sendo, uma análise apro-
fundada da linguagem ordinária pode fazer com que as implicações metafí-
sicas provenientes do problema sobre a natureza da mente sejam resolvidas.
Nesse sentido, analisaremos neste capítulo a argumentação proposta por
Austin e veremos como é possível entender o ‘problema de outras mentes’
sob a perspectiva proposta pelo ilósofo.

John Langshaw Austin


Nasceu em Lancaster no dia 26 de março de 1911
e faleceu em Oxford no dia 8 de fevereiro de 1960.
Considerado um ilósofo da linguagem, responsável
pelo desenvolvimento de uma grande parte da atual
teoria dos atos de discurso. Filiado à linha da Filo-
soia Analítica, interessou-se pelo problema do sen-
tido em ilosoia.
Realizou seus estudos no Balliol College, da Uni-
versidade de Oxford. Serviu no serviço britânico de inteligência, durante a Segunda
Guerra Mundial, tornou-se professor titular da cátedra de Filosoia Moral, em Oxford,
considerada a mais importante cadeira de Filosoia Moral do Mundo.

87
Na ilosoia da linguagem, Austin estava próximo a Ludwig Wittgenstein (1889–
1951), preconizando o exame da maneira como as palavras são usadas para elucidar
seu signiicado. Contudo, o próprio Austin considerava-se mais próximo da ilosoia
do senso comum de G.E. Moore.
Todo o trabalho desenvolvido por Austin, na segunda metade do século XX, é uma
consequência direta da guinada linguística promovida pelo método de análise ini-
ciado por Ludwig Wittgenstein, algumas décadas antes.
Austin pertencia ao chamado Grupo de Oxford que, como o Grupo de Cambridge,
foi fortemente inluenciado por Wittgenstein. Entretanto, enquanto o último procu-
rava fomentar um “positivismo terapêutico”, que visava “curar” os equívocos ilosói-
cos através da discussão da linguagem natural e os desvios provocados pela tradição
ilosóica, o Grupo de Oxford, composto principalmente por Gilbert Ryle (1900–
1976), Peter Frederick Strawson (1919–2006), Willard van Orman Quine (1908–2000),
incluindo o próprio Austin, voltou-se exclusivamente para o campo linguístico, com
toda interpretação ilosóica iltrada pelo prisma da análise da linguagem. Os críticos
dessa posição chegaram a denunciar que esses autores estavam reduzindo a ilosoia
a uma ciência da linguagem ou a transformando em lexicograia.
As duas obras fundamentais de Wittgenstein, Tratado Lógico-Filosóico (1921) e
as Investigações Filosóicas (1953), marcaram profundamente esses dois grupos. Aus-
tin interessou-se, particularmente, pela análise dos jogos de linguagem, deixada em
aberto nas Investigações. Wittgenstein não havia sido exaustivo em sua análise das
funções linguísticas desempenhadas pelos diversos tipos de expressões. Austin, por
sua vez, esforçou-se na tentativa de delimitar os modos em que as proposições, além
de descrever uma determinada situação verdadeira ou falsa, realizam também uma
ação no mundo: um ato de fala.
Em How to do Things with Words (traduzido no Brasil por Quando Dizer é Fazer,
1990), Austin categorizou os atos de linguagem em conceitos fundamentais para
compreensão posterior do papel da linguagem e da comunicação, por conseguinte.
Primeiro, Austin distinguiu as sentenças performativas, aquelas que, ao serem pro-
feridas, realizam uma ação: apostar, declarar, nomear, batizar etc, das constatati-
vas, declarações verdadeiras ou falsas sobre um fato que é descrito. Haveria também
três âmbitos linguísticos especíicos nos atos de fala: o ato locucionário, que ape-
nas observa o modo como as sentenças são proferidas; o ato ilocucionário, em que os

88
proferimentos têm uma força linguística convencional própria, tais como informar,
ordenar, avisar, prometer, perguntar etc; e, por im, o ato perlocucionário, no qual, ao
se dizer algo, se produz uma alteração no ouvinte, que passa a reagir conforme essa
ação de convencimento, impedimento, surpresa, confusão etc.
A Teoria dos Atos de Fala, lançada por Austin, foi desenvolvida posteriormente por
John Searle, no livro Os Atos de Fala (1969). Tudo em consequência da revolução ilosó-
ica desencadeada por Wittgenstein, que teve em Austin um de seus brilhantes discípu-
los e continuadores, ao delimitar o domínio da pragmática, na Filosoia da Linguagem.

2. Entendendo o problema
“outras mentes” (other minds
problem)
Desde a modernidade ilosóica, a mente é entendida como privada e/ou
acessível somente para o sujeito da experiência: o que se passa na mente de
alguém quando se vivencia algum tipo de experiência sensitiva, a princípio,
nunca pode ser conhecido acuradamente por outra pessoa, mas apenas pres-
suposto, pois o sujeito tem um tipo particular de conhecimento dos seus
próprios estados internos. Em outras palavras, é impossível saber o que real-
mente alguém quer dizer quando, por exemplo, expressa a sentença “eu sinto
dores” (A sente b), sendo impossível também estar certo sobre a efetividade
da airmação e, consequentemente, não se poderia nunca saber se alguém
realmente está sentindo aquilo que se entende por ‘dor’. De maneira poé-
tica, podem-se tomar as seguintes palavras do escritor inglês Adous Huxley
(1894–1963) para ilustrar a noção de privacidade da mente descrita acima:

Vivemos, agimos e reagimos uns com os outros; mas sempre, e


sob quaisquer circunstâncias, existimos a sós. […] Por sua própria
natureza, cada espírito, em sua prisão corpórea, está condenado
a sofrer e gozar em solidão. Sensações, sentimentos, concepções,

89
fantasias – tudo isso são coisas privadas e, a não ser através de
símbolos, e indiretamente, não podem ser transmitidas. Podemos
acumular informações sobre experiências, mas nunca as próprias
experiências. Da família à nação, cada grupo humano é uma socie-
dade de universos insulares. (huxley, 1973, p. 3)

9 “Alguém que fale comigo, ou me ouça Embora a experiência mental seja uma parte essencial da vida humana,9
cantar ou chorar ou simplesmente sorrir,
reconhecerá em mim algo como um interior.
parece impossível descrevê-la ou deini-la acuradamente. O que é tido na
E no entanto, é curioso que a um robô que experiência mental é inerentemente privado e conhecido somente pelo pró-
seja a minha imitação perfeita e faça tudo
isso não se reconhecerá precisamente um prio indivíduo. No entanto, essa concepção de experiência mental, presente
interior” (marques, 2003, p.13). nas principais escolas ilosóicas posteriores a René Descartes (1596–1650),
10 Segundo Peruzzo Júnior (2010), podem- gera profundos problemas metafísicos.10
se citar ao menos duas grandes vertentes ilo-
sóicas que aderem à visão de mente enquanto Conforme salienta Paul Johnston (1993, p.3), o primeiro problema metafí-
entidade privada. São elas: (a) o cartesianismo sico derivado da concepção moderna de interioridade da mente está na dis-
e as teorias dualistas que se fundamentam
nos escritos de Descartes; (b) o behaviorismo cordância entre o caráter privativo (ou seja, de exclusividade do sujeito) das
proposto pelo psicólogo americano John Wat- vivências internas e o fato de que se pode falar (e realmente se fala) sobre os
son (1878–1958). Como airmam os autores
Lopes e Abib (2003), uma “(…) característica próprios sentimentos e experiências: se a mente é em princípio inacessível
importante da mente cartesiana é que ela só
pode ser conhecida pelo próprio sujeito, pas- a outros, como é possível falar sobre ela? Como é possível expressar nossos
sando a ser considerada diretamente inaces- estados mentais e sentimentos de forma que outro entenda?
sível a outras pessoas” (lopes; abib, 2003, p.
86). Sobre o behaviorismo metodológico de A resposta tradicional a essas questões airma que as palavras oferecem uma
Watson, pode-se airmar que o ilósofo “(…) imagem ou tradução dos pensamentos: embora a mente seja privada, ela pode
não negava a existência da mente, ou de algo
interior, mas recusava seu estudo devido sua ser representada de um modo que os outros o compreendam. Apesar de parecer,
inacessibilidade. (…) De acordo com Watson,
nada deveria ser dito a respeito dos fenôme- à primeira vista, uma resposta plausível (pois realmente há no sujeito a tenta-
nos internos que não pudesse ser observável tiva de transpor os pensamentos em palavras), o problema persiste: como pode
no comportamento” (carrara apud peruzzo
júnior, 2010, p. 31). ser traduzido em palavras algo que só é conhecido e vivenciado pelo sujeito que
traduz? Como alguém pode fazer a tradução/conexão entre a palavra e algo que
11 De uma maneira mais geral, Julio Esteves é pressupostamente oculto para ela? Como uma pessoa pode realmente saber
(2006) apresenta problema semelhante em seu
artigo sobre o §244 das Investigações Filosóicas
que aquilo que denomino ‘dor’ signiica a mesma sensação ou conceito que ela
de Wittgenstein. Nesse sentido, Esteves salienta: entende por ‘dor’? De uma maneira mais geral, como se pode realmente saber
“Como posso saber que os outros têm exata-
mente isso que eu chamo de dor de dentes, por que os outros têm isso que eu chamo de estados subjetivos, consciência e/ou
exemplo, quando me dizem que estão nesse
mente?11 Essas são as principais implicações metafísicas provenientes da con-
estado? Pois eu não posso “sentir” a sua dor, mas
só, no máximo, perceber seu comportamento e cepção moderna e tradicional de mente e fazem parte daquilo que historica-
suas declarações” (esteves, 2006, p. 481).
mente icou conhecido na ilosoia como ‘o problema de outras mentes’.

90
O ilósofo da linguagem britânico John L. Austin (1911–1960), importan-
te ilósofo da corrente analítica do século XX, contribuiu de modo importante
para a discussão sobre o problema de outras mentes com seu ensaio Other
Minds (1946 [1980]). Ao analisar uma série de artigos do ilósofo A. J. Wisdom
(1904–1993) sobre o problema de ‘outras mentes’, Austin chega à conclusão
de que tal problema não pertenceria ao nível ontológico (visão tradicional
da ilosoia até então), mas sim ao nível linguístico e, assim sendo, uma aná-
lise aprofundada da linguagem ordinária pode fazer com que as implicações
metafísicas fundamentais provenientes do problema sejam resolvidas.

3. O tratamento de Austin
ao problema
Logo no início de Other Minds, Austin destaca a questão que norteará todo o
trabalho feito no ensaio, a qual resume bem o problema de outras mentes:
“Como sabemos que outra pessoa está zangada? […] ‘Como podemos conhe-
cer’ os pensamentos, sentimentos, sensações, a mente, etc. de outra cria-
tura?”. (austin, 1980, p. 21)
Ao iniciar sua obra, Austin critica o método utilizado por J. Wisdom em
seus trabalhos sobre outras mentes por não dar a devida atenção para os pro-
blemas relativos à questão sobre ‘como se conhecem’ as coisas. Para Austin,
muitas vezes o enunciado ‘eu sei’ é confundido com ‘eu acredito’ e, assim,
não é notado que ambos têm funções diferentes na conversação:12 12 É necessário salientar aqui a importân-
cia da teoria sobre os ‘atos de linguagem’
proposta por Austin e teorizada principal-
Se nos apraz dizer que ‘Eu acredito’, e do mesmo modo ‘Estou mente em sua obra How to do things with
words (austin, 1975). Porém, em virtude do
certo’ ou ‘Estou seguro’, são descrições de atitudes ou estados curto espaço, não será pormenorizada aqui
essa teoria, sendo a mesma tomada como
subjetivos, mentais ou cognitivos, ou coisas semelhantes, o
pressuposta para várias teses aqui descritas.
mesmo não pode então ser dito de ‘Eu sei’, ou pelo menos não
apenas isto: esta expressão funciona diferentemente na conver-
sação. (austin, 1980, p.23)

91
No que diz respeito à questão do ‘como você sabe?’, ligada diretamente
13 Thomas Nagel classiica o problema de ao problema do ceticismo13 sobre outras mentes, Austin diferencia dois tipos
outras mentes como um tipo especial de ceti-
cismo na ilosoia. Para Nagel, “há um tipo de respostas possíveis, classiicadas como ‘razões para o conhecimento” (ou
especial de ceticismo que continua a ser um para o saber) e ‘razões para acreditar’. Sobre as ‘razões para o conhecimento’,
problema mesmo que você admita que sua
mente não é a única coisa que existe – que o ilósofo dá o seguinte exemplo:
o mundo físico que você aparentemente vê
e sente ao seu redor, até mesmo seu pró-
prio corpo, de fato existe. Trata-se do ceti- ‘Como você sabe que a IG Farben trabalhou para a guerra?’ ‘Eu
cismo quanto à natureza ou mesmo quanto à
existência de outras mentes ou experiências tenho todas as razões para saber – servi na comissão de investiga-
além da sua” (nagel, 2007, p. 19). ções. Aqui, dar minhas razões para o conhecimento é dizer como
eu me encontrei em condições de saber. Do mesmo modo, usamos
as expressões ‘Eu sei porque o vi fazendo’ ou ‘Sei porque investiguei
a respeito há apenas dez minutos’, são similares a ‘É isto mesmo: é
plutônio, como você sabia? ‘Estudei um bocado de física na univer-
sidade, antes de dedica-me a ilologia’. (austin, 1980, p.24)

Nesse sentido, as ‘razões para o conhecimento’ são aquelas que se baseiam


em uma fonte coniável e que capacitam o sujeito a estar em condições de saber
(como estar presente no momento e ver o acontecido, etc.). Razões de crença,
por sua vez, são, para Austin, um tipo distinto de resposta nas quais, mesmo
estando diante de boas evidências, o sujeito ainda assim não poderia airmar
com certeza se sabe: logo, apenas acredita. Sobre isso, diz o ilósofo:

[…] Razões para acreditar, por outro lado, são normalmente um


caso bem diverso (um conjunto de sintomas, argumentos em
favor, e assim por diante), embora existam casos onde damos
como razões de crença o fato de termos estado em condições de
conseguir boas evidências: ‘Por que você acredita que ele estivesse
mentindo?’ ‘Eu o observava bem de perto’. (austin, 1980, p.24)

No entanto, no que diz respeito a ‘razões para o conhecimento’, há uma


classe importante formada por aqueles que são citados como ‘autorida-
des do saber’. Usa-se uma autoridade do saber quando, por exemplo, se
recorre ao The New York Times como critério de verdade do conhecimento

92
de alguma coisa: ‘eu sei o resultado da partida de ontem, pois li no The
New York Times hoje pela manhã’. Para Austin, nesses casos o termo ‘saber’
é corretamente utilizado, pois mesmo que o conhecimento seja obtido de
‘segunda mão’, o uso de uma autoridade do conhecimento para airmar algo
nos capacita a conhecer.14 14 Numa nota de rodapé, Austin faz uma
ressalva de suma importância sobre o ‘saber
Obviamente, o conhecimento ‘de segunda mão’ é passível de erro, prin- por segunda mão’: “Saber de segunda mão,
cipalmente pela possibilidade de erro do relato humano. Contudo, isso não ou por uma autoridade, não é o mesmo
que ‘saber indiretamente’, não importa o que
seria um empecilho para o conhecimento, muito menos para a conversação: possa querer dizer esta difícil e talvez artiicial
expressão. Se um assassino ‘confessa’, então,
“[…] É fundamental na conversação (como em outras matérias) que tenha-
seja qual for nossa opinião sobre o valor da
mos o direito de coniar nos demais, exceto no caso em que haja alguma ‘conissão’, não podemos dizer ‘nós (apenas)
sabemos indiretamente que ele cometeu o
razão concreta para a desconiança. Acreditar nas pessoas, aceitar teste- crime’. […] Consequentemente, não é igual-
munhos, é um dos aspectos principais, senão o principal, da conversação”. mente correto dizer que o próprio assassino
sabe ‘diretamente’ que cometeu o crime, seja
(austin, 1980, p.23) lá o que possa querer dizer ‘saber diretamente’
(austin, 1980, p.25).
Desse modo, percebe-se o valor dado por Austin ao caráter público e inter-
subjetivo da linguagem para airmações de conhecimento, principalmente
na importância dada para os discursos de outras pessoas. De fato, não apenas
acreditamos na existência de outras mentes, mas sabemos e coniamos na exis-
tência pois, para Austin, a crença nos testemunhos alheios é o que funda-
menta todo o tipo de conversação humana possível. Será esse caráter público
da linguagem e da conversação, como será visto adiante, que servirá de base
para a argumentação e refutação propostas por Austin ao ceticismo sobre
outras mentes.

4. O conhecimento de “outras
mentes”
Outro ponto destacado por Austin que é de crucial importância para o enten-
dimento da solução dada ao problema de outras mentes diz respeito ao ponto
de vista de Wisdom sobre ‘peculiaridade do conhecimento que um homem
tem de suas próprias sensações’.15 Austin descreve essa peculiaridade da 15 AUSTIN, 1980, p. 30.

seguinte forma:

93
Wisdom diz que […] considerando enunciados como ‘estou
sofrendo dor’ que, em sentido preciso, não envolvem previsão,
então um indivíduo não pode ‘estar errado’ ao fazê-lo, no sentido
mais privilegiado de estar errado, i.e., embora lhe seja certamente
possível mentir (de modo que ‘Estou sofrendo dor’ possa ser falso) e
embora lhe seja possível nomear erradamente, […] embora lhe seja
possível estar ‘errado’ nestes dois sentidos, não lhe é possível estar
errado no sentido mais privilegiado. Ele diz ainda que, com esta
classe de enunciados (chamados em alguma outra parte de “enun-
ciados de sensação”), saber diretamente que se está sofrendo dor
é ‘dizer que se está sofrendo, e dizê-lo com base em estar sofrendo
dor’, e ademais, que a peculiaridade dos enunciados de sensação
fundamenta-se no fato de que ‘quando eles são corretos e feitos
por X, então X sabe que são corretos. (austin, 1980, p.30)

Percebe-se que a tese de Wisdom exposta acima se aproxima bastante da


perspectiva cartesiana da linguagem em primeira pessoa, perspectiva essa
16 “[…] O famoso ‘paradoxo de Moore’ que gerava grandes impasses na primeira metade do século XX.16 Segundo
demonstra como o sentido de airmações,
aparentemente com o mesmo conteúdo, não a ideia do conhecimento (ou autoridade) de primeira pessoa, o sujeito teria
é o mesmo na 1ª e na 3ª pessoa do indica- um conhecimento privilegiado (direto) de suas próprias experiências men-
tivo. Enquanto, por exemplo, ‘eu acredito
que chove, mas não está a chover’ não é pos- tais (sensações, emoções, etc.), enquanto outras pessoas teriam um conhe-
sível, o mesmo conteúdo apresentado na cimento indireto sobre ‘outras mentes’, por ser a mente inacessível para
forma hipotética, ‘suponhamos que acredito
que chove, mas não está a chover’ é possível. terceiros. Para uma melhor explicação do problema da autoridade do dis-
[…] A forma da 1ª pessoa não permite a con-
junção da expressão do estado mental com curso na primeira pessoa, tomam-se os dois seguintes enunciados:
a negação de um fato (no caso, ‘estar a cho-
ver’)” (marques, 2003, p. 20–21).
Discurso na 1ª pessoa do singular: “Eu sinto uma dor, não posso estar errado”.
Discurso na 3ª pessoa do singular: “Ele sente uma dor, não posso estar errado”.

Segundo a ideia da autoridade da primeira pessoa, o primeiro enunciado


seria evidente e correto, enquanto a segunda enunciação não seria evidente
como na primeira. A mente, então, seria entendida como algo privado, como
algo que é acessível somente para o sujeito da experiência: o que se passa
na mente de alguém quando o mesmo vivencia algo não pode nunca ser

94
conhecido com retidão por outra pessoa, mas apenas pressuposto, pois ape-
nas o próprio sujeito teria acesso a sua cena mental e poderia descrever com
evidência e certeza os objetos que ali ocorrem.
Dito de outro modo, seria impossível saber o que alguém realmente quer
dizer quando, por exemplo, expressa a sentença “eu sinto dores” (A sente b),
sendo impossível também estar certo sobre a efetividade da airmação e, con-
sequentemente, não se poderia nunca saber se alguém realmente está sentindo
aquilo que se entende por ‘dor’. Nesse sentido, a mente seria uma entidade sobre
a qual a primeira pessoa do singular (eu) teria um tipo de ‘autoridade máxima
de conhecimento’, uma vez que só ‘eu’ possuiria um conhecimento direto sobre
meu próprio interior (sensações, experiências, etc.), enquanto a terceira pessoa
(ele/eles) possuiria (m) apenas um conhecimento indireto, pressuposto.
Nesse sentido, surge a pergunta: Quando terei certeza do meu conheci-
mento sobre a mente de outros? Quando o conhecimento sobre a terceira
pessoa é verdadeiro? Como posso saber se outra pessoa realmente está sen-
tindo dor? Aqui, o problema sobre a existência de outras mentes começa a
mostrar signiicativas diiculdades conceituais.
Apesar da perspectiva cartesiana da autoridade em primeira pessoa estar
presente em várias escolas posteriores a Descartes, Austin se coloca em posi-
ção contrária a essa perspectiva e diz que essa visão errônea tem constituído
a base de grande parte da ilosoia até então:

Isto me parece um erro, embora seja um ponto de vista que, em


formas mais ou menos sutis, tem constituído a base de grande
parte da ilosoia. É talvez o pecado original (a maçã de Berkerley, a
árvore no quadrilátero demarcado) pelo qual o ilósofo expulsa a si
mesmo do jardim do mundo em que vivemos). (austin, 1980, p.30)

Para refutar a pretensa ‘autoridade’ do conhecimento da primeira pessoa


sobre sensações, Austin dá o exemplo da cor ‘magenta’:

[…] tomemos ‘magenta’: ‘parece-me quase como ‘magenta’ mas


neste caso eu não me sentiria muito seguro para poder distinguir

95
magenta de malva ou de heliotrópio. Claro que sei que é de certo
modo apurpurado, mas não sei se realmente dizer se é magenta ou
não: simplesmente não posso ter certeza’. Ao falar assim, não estou
aqui interessado em excluir considerações a respeito de como
parece aos outros (me parece) ou considerações sobre qual seja a
sua cor real (parece), o que estou excluindo é a minha certeza ou
segurança a respeito do que aquilo me parece (austin, 1980, p.31).

Nesse sentido, Austin almeja tirar a certeza sobre enunciados de sen-


sação do âmbito meramente subjetivo e colocá-la no âmbito público. Esse
anseio é justiicado uma vez que o âmbito subjetivo usa apenas da memória
e do reconhecimento para a validação e conirmação dos termos usados para
as sensações. No entanto, a memória e o reconhecimento são comumente
17 É possível aqui fazer uma aproximação passíveis de erro.17
entre a falibilidade da memória e a ideia de
seguir regras privadamente propostas por L.
Wittgenstein (1889–1951) em sua obra pós- […] qualquer descrição de um sabor ou som ou odor (ou cor), ou de
tuma Investigações Filosóicas (1953). No
entanto, devido ao curto espaço, esta aproxi- um sentimento envolve (é) dizer que é como outro ou outros que
mação não será pormenorizada aqui.
experimentamos anteriormente; toda palavra descritiva é classii-
catória, envolve reconhecimento e neste sentido memória, e ape-
nas quando empregamos tais palavras (ou nomes ou descrições, o
que dá no mesmo) estamos conhecendo alguma coisa, ou acredi-
tando em algo. Mas a memória e o reconhecimento são frequente-
mente incertos e falíveis. (austin, 1980, p.31)

Para Austin, o problema de conhecer outras mentes é referente aos enun-


ciados de sensação. Enunciados de sensação são diferentes de enunciados
18 Uma vez que os enunciados em primeira sobre estados de coisas no mundo, pois há critérios de veriicação para os
pessoa referentes a sensações não possuem
critérios de veriicação, conclui-se também enunciados de coisas no mundo, enquanto para os de sensação, não.18 Nesse
que os mesmos não podem ter a forma de sentido, Austin reconduz sua argumentação e diz que Wisdom não com-
atitudes proposicionais. Sendo assim, como
se podem conhecer realmente os enunciados preendeu esses dois tipos de enunciados enquanto enunciados distintos e,
em primeira pessoa? Em outras palavras, se o
conhecimento de primeira pessoa é feito por por esse motivo, Austin airma que há um ‘erro gramatical’ por detrás da pro-
enunciados de sensação que não podem ser blemática dos enunciados de sensação (erro de considerar duas sentenças de
enquadrados proposicionalmente, como se
pode saber se realmente estão corretos? tipos distintos como equivalentes):

96
Quando [se] fala geralmente em ‘conhecer suas sensações’, presu-
mivelmente [se] entende isto como equivalente a ‘saber o que ele
está vendo, cheirando, etc.’, assim como ‘conhecer o vencedor do
Derby signiica saber que cavalo ganhou o Derby’. Mas aqui nova-
mente a expressão ‘saber que’ parece algumas vezes ser tomada
errônea e inconscientemente, como favorecendo a prática de colo-
car um objeto direto após ‘saber’, pois ‘que’ é passível de ser enten-
dido como relativo. […] Este é um erro gramatical ‘que’ pode ser
um relativo, mas, em ‘saber o que você sente’ e ‘saber que cavalo
ganhou’, é um interrogativo (latim: quid, não quod). (austin,
1980, p. 34, grifo nosso)

Apesar de aparecer somente uma vez em toda obra, a noção de erro grama-
tical é de suma importância para a compreensão de toda a argumentação de
Austin no artigo, pois tira o problema sobre ‘outras mentes’ do nível ontoló-
gico e o coloca em um nível linguístico.
É importante ressaltar que alguns ilósofos tendem a achar que a linguagem
é essencialmente descritiva e que, por esse motivo, a airmação ‘eu sei’ seria
uma proposição descritiva, ou seja, descreveria algo ou alguma coisa no mundo.
Porém, esta é uma tendência errônea, mais um exemplo do que Austin deno-
mina de ‘falácia descritiva’: “Supor que ‘eu sei’ é uma frase descritiva, é apenas
um exemplo da falácia descritiva, tão comum na ilosoia. Mesmo que alguma
linguagem seja agora puramente descritiva, a linguagem não era assim na sua
origem e continua não sendo assim na sua maior parte”. (austin, 1980, p.38)
Como ica claro na passagem acima citada, Austin argumenta contra a
‘falácia descritiva’ e defende que os enunciados não possuem apenas (ou
essencialmente) o ato de descrição, mas também um caráter de comunica-
ção performativo.19 19 Essa ideia relete a máxima atribuída à
tese de Austin, presente em outra obra, inti-
Outro ponto que merece atenção é a posição de Austin sobre a redução do tulada How to do Things with Words (austin,
entendimento dos sentimentos humanos a partir de – e somente de – sin- 1975), que diz que ‘dizer é fazer’.

tomas físicos. Segundo Austin, é uma simpliicação exagerada crer que é


apenas pelos ‘sintomas físicos’ que se pode saber o que alguém está sentido
(raiva, dor, etc.):

97
À primeira vista pode ser tentador seguir Wisdom e demarcar uma
distinção entre 1) os sintomas físicos e 2) o sentimento ou sensa-
ção (the felling). De maneira que, no nosso caso, quando me per-
guntam ‘Como você pode airmar que ele está zangado?’ eu deveria
responder ‘Pelos sintomas físicos’, enquanto que se lhe perguntam
como pode ele airmar que está zangado, ele deveria responder ‘A
partir do que sinto’, mas isto me parece uma simpliicação exage-
rada e perigosa. (austin, 1980, p.40)

Caso a simpliicação exagerada que Austin acusa na citação acima seja


realmente levada em consideração, uma importante questão vem à tona:
onde terminam os sinais do sintoma e começa a própria coisa? Toma-se o
caso do ‘choro’ como exemplo: onde termina o signiicado da ‘lágrima’ e
entra em ação seu signiicado mental de ‘dor’? Como se vê, tem-se um pro-
blema de difícil solução e que, segundo Austin, é gerado pelo excesso de sim-
pliicação a respeito dos enunciados de sensação.
Ainda sobre a problemática relação dos sintomas físicos com as sensações,
toma-se outro exemplo: uma pessoa com raiva. Quando se pergunta ‘Como
você sabe que ela está nervosa?’, pode-se dizer que não se sabe, mas apenas se
deduz pelos ‘sintomas físicos da raiva’: deduz-se pelos gritos, pela pele averme-
lhada, pelos murros na mesa etc. Logo, pelos sintomas físicos apenas seria pos-
sível ter indícios sobre a possibilidade de a pessoa estar com raiva, mas nunca
20 Entende-se dissimular, aqui, como o certeza efetiva sobre a raiva da pessoa (pois ela poderia estar dissimulando).20
ato no qual uma pessoa sente verdadeira-
mente uma sensação, mas inge que não
Entretanto, Austin rejeita essa visão e questiona se é esse mesmo o uso que
sente ou, opostamente, os casos nos quais empregamos em nossa linguagem para falar da raiva ou dos sintomas da raiva:
uma pessoa não sente uma sensação, mas
inge que sente.
Porém, se ‘sinais’ e ‘sintomas’ têm este emprego restrito, é evi-
dente que dizer que apenas possuímos os ‘sinais’ ou ‘sintomas’ de
alguma coisa quer dizer que jamais a alcançamos (e isto é válido
também para ‘todos os sinais’). […] Mas é esse o sentido que real-
mente empregamos em nossa fala? Realmente, será que nunca
nos consideramos cientes de nada além dos sintomas da raiva em
outro homem? (austin, 1980, p.41)

98
Segundo a argumentação seguida por Austin, pode-se questionar: será
que realmente não é possível saber se uma mãe está realmente triste ou de
luto no velório de seu ilho? Será que só é possível deduzir a tristeza por seus
sintomas? O que Austin diz é que há sim, em alguns casos, sintomas de sensa-
ções (como um tremor na voz, uma respirada mais funda etc.), mas que esses
sintomas não se propagam em todos os casos, pois há casos em que realmente
a sensação é expressa publicamente.

‘Sintomas’ ou ‘sinais’ de raiva tendem a signiicar sinais de raiva


nascente ou suprimida. A partir do momento em que ele desafo-
gou, falamos de algo diferente – de uma expressão, ou manifesta-
ção, ou ostentação de raiva, de uma exibição de temperamento, e
assim por diante. Um arquear de sobrancelhas, a palidez, um tre-
mor na voz, todos estes podem ser sintomas de raiva, mas uma
tirada violenta ou uma pancada no rosto não o são, eles são atos
através dos quais a raiva é desafogada. ‘Sintomas’ da raiva não
são, ao menos normalmente, contrastados ao próprio sentimento
interior pessoal de raiva de um homem, mas antes à efetiva osten-
tação de raiva. (austin, 1980, p.41)

Uma vez expressa publicamente, a sensação deixa de ser dedutível


somente por ‘sintomas’ ou ‘sinais’ e torna-se algo passível de ser conhe-
cido. Decerto, há casos em que realmente não é possível saber o senti-
mento de uma pessoa, como quando ela ica com um rosto inexpressivo,
ou quando se está diante de uma pessoa de uma cultura inédita e com
um comportamento completamente diferente. Nesses casos, nos quais
é impossível saber o que uma pessoa está expressando, Austin diz que é
certo dizer que ‘apenas se acredita’ que tal pessoa tenha a sensação X, ao
invés de ‘Eu sei que Y sente X’. Desse modo, Austin diferencia de modo
claro os casos nos quais é correto se airmar ‘eu sei’ dos casos em que se
é correto airmar ‘eu acredito’: “Ao menos normalmente, onde somente
temos sintomas para nos orientar, deveríamos dizer apenas que acredita-
mos que esteja tal homem zangado ou esteja icando zangado, enquanto, a

99
partir do momento em que ele tenha desafogado sua raiva, dizemos saber”.
(austin, 1980, p.41)
Contudo, embora seja a expressão uma coisa pública, algo deve capaci-
tar o sujeito para o reconhecimento dos sentimentos e/ou sensações expres-
sadas por outra pessoa. Este algo que capacita é, para Austin, a coniança na
íntima relação das partes do padrão geral observável das expressões.

[…] é nossa coniança no padrão geral que nos capacita a dizer que
‘sabemos’ estar outra pessoa zangada quando apenas observamos
partes do padrão, pois estas partes estão muito mais intimamente
relacionadas entre si do que, por exemplo, a pressa de um jor-
nalista em Brighton está relacionada com um incêndio em Fleet
Street. (austin, 1980, p.43)

O referido padrão é de fato tão ativo e importante na conversação que “[…]


o próprio indivíduo, tal é o poder dominante do padrão, algumas vezes aceita
correções alheias a respeito de suas próprias emoções, isto é, sobre a correta
descrição das mesmas”. (austin, 1980, p.43)
No entanto, apesar de se ter dito que o sentimento, uma vez expresso
publicamente, torna-se passível de ser reconhecido e corrigido pela observa-
ção do padrão das expressões, alguns podem tentar refutar esse argumento
dizendo que tal proposta não atinge a questão sobre a essência dos sentimen-
tos (qual é a essência da raiva? Qual é a essência da tristeza nas pessoas?). Para
esses que questionam sobre a essência das sensações, Austin diz que “[…] é
tão tolo perguntar ‘o que é na verdade a raiva em si mesma?’ como tentar redu-
zir ‘a enfermidade’ a algum único fator escolhido (‘a desordem funcional’)”
(austin, 1980, p.42). Nesse caso, as sensações como raiva não seriam dei-
nidas por uma essência, mas por “[…] todo um padrão de eventos que inclui
ocasião, sintomas, sentimentos, manifestação e possivelmente outros fato-
res além desse” (austin, 1980, p. 42), o que impossibilitaria uma deinição
ou conhecimento de qualquer essência dos sentimentos.
Após abordar vários temas relativos ao problema de ‘outras mentes’, Aus-
tin parece então chegar ao cerne da questão, que de fato é: Por que acreditar

100
em outra pessoa? Em outras palavras, por que acreditar que alguém está sen-
tindo dor e não, de fato, dissimulando isso?
Austin propõe que a crença na dor de outra pessoa (ou na existência de
outras mentes) é mais do que apenas ter acesso a uma expressão linguística
ou não linguística (comportamental, etc.) de uma experiência. Para Austin,
acreditar que ‘X sente a sensação Y’, i.e., acreditar que existe ‘outras mentes’,
é parte essencial do ato comunicativo, sem a qual não é possível qualquer
comunicação. A questão de central importância ilosóica para Austin, então,
não é ‘o que é outra mente?’, mas sim ‘o que signiica outra mente no processo
de comunicação?’

[…] Que justiicação há para supor que exista ainal outra mente
em comunicação com você? Como você pode saber o que seria
para outra mente sentir algo, e assim como pode você compreen-
dê-lo? Acreditar em outra pessoa, em autoridade e testemunho,
parece antes ser uma parte essencial do ato de comunicação, que
constantemente todos realizamos. É uma parte irredutível de
nossa experiência, tanto quanto, por exemplo, fazer promessas ou
tomar parte de competições, ou mesmo perceber manchas e cores.
(austin, 1980, p.46)

Desse modo, a conclusão obtida por Austin é que, sendo a crença na exis-
tência de outras mentes essencial e irredutível para o ato de comunicação,
não há razões ou justiicativas concretas ou evidentes para se duvidar disso.
Assim, como foi dito anteriormente, a questão então não seria sobre a reali-
dade ‘ontológica’ da mente, mas sim sobre o que signiica mente (ou outras
mentes) no processo comunicativo, sendo então uma questão de linguagem,
passível de solução pela análise cuidadosa das expressões linguísticas.

101
Bibliografia:

AUSTIN, J. L.; QUINE, W. O.; RYLE, G.; STRAWSON, P. F. Ensaios. 2. ed. São
Paulo: Abril Cultural, 1980.

______ How to do Things with Words. Oxford: Oxford University Press, 1975.

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2, pp. 479–498, jul–dez. 2006.

HUXLEY, A. As portas da percepção. Tradução de Osvaldo de Araújo Souza.


Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1973.

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NAGEL, T. Uma breve introdução à ilosoia. Trad.: Silvana Vieira. 2ª edi-


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PERUZZO JÚNIOR, L. Considerações sobre o “interior” em Ludwig Witt-


genstein. Dissertação (mestrado em Filosoia) – Programa de Pós-Gradua-
ção em Filosoia da PUC-PR. Curitiba, 2010.

102
Vídeos e materiais de suporte:

O problema outras mentes – ou a importante questão: são todos robôs?


http://literatortura.com/2013/01/o-problema-de-outras-mentes-ou-a-impor-
tante-questao-sao-todos-robos/

Solipsismo e o problema de outras mentes: http://cogitationerationale.blogs-


pot.com.br/2013/05/solipsismo-e-o-problema-de-outras-mentes.html

Teoria dos atos de fala: https://www.youtube.com/watch?v=0ihg6tn_9Y0

John L. Austin: http://www.ilosoia.com.br/bio_popup.php?id=60

103
tipografia Milo Pro e Milo Serif Pro, Fontin
capa papel supremo 300g/m²
miolo papel Ofset 90g/m²
impressão xxxxxxxxxxx

104
Filicio Mulinari

Doutorando em Filosoia pela Universidade


Federal de São Paulo (UNIFESP), atuando na linha
de pesquisa “Metafísica, Ciência e Linguagem”.
Mestre e graduado em Filosoia pela (UFES).
Faz parte do Grupo de Pesquisa Pensamento e
Linguagem (UFES). Tem experiência e interesse
na área de Metafísica, Filosoia da Linguagem,
Filosoia Contemporânea. Atualmente é professor
vinculado ao SEAD da Universidade Federal do
Espírito Santo.
ISBN 978-85-63765-56-7
www.neaad.ufes.br
(27) 4009 2208

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