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Introdução à Filosofia

Aldo Dinucci

São Cristóvão/SE
2010
Introdução à Filosofia
Elaboração de Conteúdo
Aldo Dinucci
Cícero Cunha Bezerra

Projeto Gráfico e Capa


Hermeson Alves de Menezes

Diagramação
Neverton correia da Silva

Ilustração
Arlan Clecio dos Santos
Clara Suzana Santana
Edgar Pereira Santos Neto
Gerri Sherlock Araújo
Helder Andrade dos Santos
Manuel Messias de Albuquerque Neto

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UNIVERSIDADE FEDERAL DE SERGIPE

Dinucci, Aldo Lopes


D587i Introdução à Filosofia / Aldo Lopes Dinucci, Cícero
Cunha Bezerra -- São Cristóvão: Universidade Federal de
Sergipe, CESAD, 2009.

1. Filosofia - Fundamentos. I. Bezerra, Cícero Cunha. II.Título.

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Sumário
AULA 1
O nascimento da Filosofia na Grécia antiga...................................... 07

AULA 2
Heráclito: o mundo em eterna mudança ........................................... 15

AULA 3
Os sofistas e o estudo da linguagem ................................................ 21

AULA 4
Sócrates por Xenofonte ..................................................................... 29

AULA 5
Sócrates por Platão ........................................................................... 35

AULA 6
Idéias comuns aos filósofos socráticos. ............................................ 41

AULA 7
Platão, seus diálogos e a “palavra viva na alma”.....................................47

AULA 8
Aristóteles e os sofismas ................................................................... 53

AULA 9
Diógenes de Sínope e o Cinismo ...................................................... 59

AULA 10
O Estoicismo ..................................................................................... 67

AULA 11
A Filosofia e a fé ................................................................................ 75

AULA 12
Agostinho de Hipona: Helenismo e Cristianismo .............................. 83

AULA 13
O diálogo entre razão e fé em Tomás de Aquino .............................. 91

AULA 14
Filosofia e ciência no Renascimento ............................................... 105

AULA 15
Francis Bacon e o progresso científico ............................................113
AULA 16
O racionalismo cartesiano e as Regras do Método......................... 123

AULA 17
Introdução ao pensamento kantiano ............................................... 135

AULA 18
Filosofar com o martelo ................................................................... 143

AULA 19
Caminhos da filosofia contemporânea: o marxismo ocidental e o
problema da relação entre a razão, a política e a
totalidade do real ............................................................................. 155

AULA 20
Wittgenstein e a Filosofia da Linguagem......................................... 175
Aula

O NASCIMENTO DA FILOSOFIA
1
NA GRÉCIA ANTIGA

META
Apresentar a Filosofia em sua origem na Grécia antiga.

OBJETIVOS
Ao final desta aula, o aluno deverá:
distinguir a Filosofia da técnica e da ciência;
conhecer o nascimento da Filosofia e da ciência na Grécia antiga;
reconhecer a importância dos primeiros filósofos (os “físicos”) e listar os
principais nomes;
estabelecer a diferença entre as afirmações: “A Filosofia não serve para
nada” e “A Filosofia não serve a nada”.

(Fonte: http://www.educ.fc.ul.pt)
Introdução à Filosofia

INTRODUÇÃO

Caro aluno, nesta primeira aula sobre Filosofia, apre-sentaremos a dis-


tinção entre conhecimento técnico e conhecimento filosófico ou científico
para respondermos à questão: “É verdade que a Filosofia não serve para
nada?
A Filosofia e a Ciência surgiram na Grécia antiga, há quase três mil anos.
Antes dos gregos, outros povos cultivavam conhecimentos sem o sentido
filosófico ou científico. Os egípcios, por exemplo, conheciam a Matemática
e a Astronomia, mas esses conhecimentos não eram para eles filosóficos
ou científicos. Por qual razão? Porque eles acumulavam e desenvolviam tais
saberes para fins específicos. A Matemática era utilizada para medir ter-
renos; a Astronomia era instrumento da Astrologia. Esses conhecimentos
eram utilizados para fins diferentes deles mesmos; eram, por essa razão,
conhecimentos técnicos.
E o que é propriamente um conhecimento técnico? Um conhecimento
técnico é aquele que serve a outra coisa que não a ele mesmo. Por exemplo:
se você sabe como fazer um bolo, esse conhecimento só fará sentido se
você fizer realmente o bolo ou ensinar a alguém a fazê-lo. Não faz sentido
alguém saber fazer um bolo e jamais utilizar tal técnica.

Detalhe da escultura O Pensador, de Auguste Rodin (Fonte:


http://pwp.netcabo.pt).

8
O nascimento da Filosofia na Grécia antiga
Aula

NASCIMENTO DA FILOSOFIA 1
Os gregos inventaram um novo modo de ver o conhe-cimento. Eles
descobriram que a ciência pode ser cultivada por ela mesma. Quer dizer:
alguém pode cultivar um determinado conhecimento sem ter em vista
sua aplicação imediata. Pode-se usar a Astronomia para a Astrologia (e aí
o conhecimento da Astronomia será apenas técnico); ou pode-se estudar
a Astronomia por ela mesma, isto é, para conhecer as leis que regem os
movimentos dos astros, para saber como é o mundo em que vivemos. Nesse
último caso, o conhecimento será científico ou filosófico, porque é buscado
tendo-se em vista o aumento do próprio conhecimento e nada mais. Um
homem que se dedique a tal tarefa é um amante do conhecimento, e daí Aristóteles
vem o termo “filósofo”, que significa amigo (philos) da sabedoria (sophia).
Você pode então indagar: “Se esse conhecimento não serve para nada, Filósofo grego (384-
então para que buscá-lo?” Isso me permite esclarecer uma opinião muito 322 a. C.). Aluno de
difundida sobre a Filosofia, que você já deve ter ouvido: “A Filosofia não Platão e professor de
Alexandre, o Grande,
serve para nada!” Essa frase, na verdade, é uma incompreensão do que
é considerado um dos
diz Aristóteles no primeiro capítulo da obra intitulada “A Metafísica”: aí maiores pensadores
Aristóteles fala, na verdade, que a Filosofia não serve a nada, quer dizer, a de todos os tempos.
filosofia não é serva (escrava) de coisa alguma, não tem uma finalidade fora
dela mesma, pois é cultivada por amor ao próprio conhecimento e nada mais.
Contudo, isso não quer dizer que o estudo da Filosofia não confira
uma vantagem àqueles que a ele se dedicam. Vou dar-lhe um exemplo disso.
Tales de Mileto é considerado o primeiro filósofo e o primeiro cientista.
Tinha enorme conhecimento de Astronomia e previu um eclipse que, para
espanto de seus contemporâneos, ocorreu exatamente de acordo com sua
previsão. Um dia, Tales concluiu, por suas observações astronômicas, que
haveria proximamente uma enorme safra de azeitonas que os gregos culti-
vavam para produzir azeite. Então Tales imediatamente se pôs a comprar
todas as prensas de azeitonas disponíveis (para se produzir o azeite, as
azeitonas têm de ser prensadas), e elas lhe foram vendidas por um preço
Tales de Mileto
baixo, pois não era a época da safra de azeitonas. Então, meses mais tarde,
veio a safra recorde, tal como previra Tales e todos precisavam desespera- Matemático e as-
damente de prensas de azeitonas. Tales não as vendeu de volta por um trônomo grego (624
preço maior, mas as alugou e ficou rico. Isso revela uma verdade sobre o - 548 a. C.) É con-
conhecimento filosófico ou científico: embora não seja buscado tendo em siderado o primeiro
vista sua utilidade, confere enorme vantagem àquele que o tem e o produz. filósofo grego.
Quer outros exemplos? Darei mais dois: o físico inglês Isaac Newton, com
seus conhecimentos matemáticos, acabou ficando rico, aplicando na bolsa
de valores em Londres; a lógica binária, segundo a qual os computadores
funcionam, foi primeiramente desenvolvida por um matemático para sua
tese de doutorado. Tempos depois, ela foi aplicada para o funcionamento
dos computadores tão necessários para a nossa vida nos dias de hoje. Se

9
Introdução à Filosofia

olharmos à nossa volta, veremos que muitas coisas foram inventadas a


partir de teorias físicas que primeiramente não objetivavam nada, senão
a compreensão racional do mundo em que vivemos: luz elétrica, satélites,
automóveis, relógios. Tudo isso só se tornou possível porque anteriormente
alguns homens dedicaram se ao estudo da natureza, à busca do conheci-
mento por ele mesmo; essa busca, a princípio, pareceu inútil, mas acabou
sendo aplicada neste ou naquele aspecto de nossas vidas.
Vemos que essa busca nada tem de inútil. Os países mais avançados e
Isaac Newton poderosos são os que mais investem em conhecimento puro, na busca do
conhecimento por ele mesmo. Isso porque eles sabem que, como disse o
Físico e matemático filósofo Francis Bacon, “conhecimento é poder”, é a verdadeira riqueza
inglês (1643/1727). para o ser humano. Um país pode ser riquíssimo em recursos naturais, mas
Formulou a teoria das se não souber explorá-los, de que adianta? Será preciso que recorra a um
cores, a lei da gravita-
ção universal e pre-
outro país que disponha desse conhecimento e isso terá, para os que não
sidiu a Royal Society o têm, um valor altíssimo, pois mais vale saber usar algo do que a posse
em 1703. desse algo sem saber como usá-lo. Do que adianta, por exemplo, você ter
um livro e não saber ler, ter um terreno fértil e não saber plantar?
Pois bem, os gregos antigos descobriram esse novo modo de ver o con-
hecimento. E os primeiros filósofos foram, ao mesmo tempo, os primeiros
cientistas. Tales, por exemplo, concluiu que o elemento fundamental do
mundo é a água. Você pode dizer então: “Ah, ele estava errado!” Todavia, o
mais importante neste caso não é a resposta, mas a pergunta, pois Tales foi
o primeiro a questionar qual é a natureza do mundo físico, em que consiste
o mundo, materialmente falando. Antes, havia apenas os mitos para explicar
Francis Bacon o mundo e o papel do homem nele. Os gregos descobriram um novo modo
de dar explicações sobre o estar no mundo: através da razão, através do
Político, filósofo pensamento, através da reflexão. Com o mito, o mundo é explicado com o
e ensaísta inglês
(1561/1616). Es-
auxílio de símbolos. Com o pensamento, busca-se dar respostas racionais,
creveu “Novo orga- isto é, raciocínios, explicações de por que o mundo é assim ou assado.
num” - Novo método Tales concluiu que o mundo é feito de água, provavelmente por verificar
ou Manifestações so- que todas as coisas tinham em si alguma umidade. Assim, teria pensado
bre a interpretação da Tales, se em tudo existe água, é porque tudo é feito de água. A resposta é,
natureza (1620). hoje sabemos, equivocada, mas a pergunta é original e profunda, e levou
ao desenvolvimento científico que a humanidade tem.
O modo de ser científico e filosófico é, por natureza, questionador.
Assim, só se é um grande cientista e um grande filósofo quando se questiona
o próprio conhecimento, de modo a fazê-lo crescer. Os filósofos que vieram
após Tales tinham também suas teorias originais sobre o que constitui es-
sencialmente o mundo. Anaxímenes disse ser o elemento primordial o ar;
Anaximandro, uma matéria ainda sem forma; Heráclito (cujo pensamento
estudaremos na próxima aula), o fogo; Pitágoras disse serem os números
os fundamentos do universo; Demócrito, o átomo. Esses filósofos são
muitas vezes chamados “físicos”. Foram, de fato, os primeiros cientistas,

10
O nascimento da Filosofia na Grécia antiga
Aula

Parthenon, na Acrópole de Atenas, cidade onde viveram e lecionaram muitos dos grandes
filósofos gregos (Fonte: http://sites.uai.com.br).

no sentido exato do termo, pois se dedicaram a conhecer a natureza, apenas


por amor ao conhecimento. Tales, certa vez, visitando o Egito, contemplou
as pirâmides e fez a si mesmo uma pergunta inusitada: qual é a altura da
mais alta delas? Então, marcou a hora do dia em que o sol projetava sua
sombra com a mesma altura do próprio corpo. No dia seguinte, à mesma
hora, mediu a sombra daquela pirâmide e descobriu a altura dela.

Pitágoras: detalhe de A Escola de Atenas, famosa


pintura de Raffaello Sanzio (1509) (Fonte: http://
www.clubedotaro.com.br).

11
Introdução à Filosofia

CONCLUSÃO

Assim, sabendo que os gregos antigos inventaram a Filo-sofia e a


Ciência, compreendendo o que distingue a Filo-sofia e a Ciência da técnica,
percebemos como é vantajoso, em inúmeros sentidos, conhecer tanto a
Ciência, quanto a técnica; o saber nos fornece poder em relação aos demais
indivíduos, permite-nos conhecer melhor o mundo em que vivemos e quem
somos: Não é uma ótima coisa estudar Filosofia?

RESUMO

A Filosofia e a Ciência se distinguem da técnica por terem um fim ne-


las mesmas. Os primeiros filósofos foram ao mesmo tempo os primeiros
cientistas. A Filosofia e a Ciência conferem grande vantagem àqueles que
as cultivam.

Em viagem pelo Egito, Tales mediu a altura de uma das pirâmides.

12
O nascimento da Filosofia na Grécia antiga
Aula

ATIVIDADES 1
A partir do que foi dito anteriormente, responda às seguintes perguntas.
1. A engenharia é uma técnica ou uma ciência? Explique.
2. Um biólogo, observando macacos na selva, dedica-se a uma atividade
técnica ou científica? Explique.
3. Tales foi ao Egito e mediu a altura de uma pirâmide. Esse ato foi técnico
ou científico? Explique.
Ficou clara a distinção entre Filosofia e Ciência da técnica?

PRÓXIMA AULA

Na próxima aula, estudaremos algumas idéias de Heráclito de Éfeso,


como a idéia do mundo em eterna mudança e a da complementaridade
dos contrários.

REFERÊNCIAS

Kirk, G. S.; Raven, J. E. Os filósofos pré-socráticos. Lisboa: Calouste


Gulbenkian, 1983.

13
Aula

HERÁCLITO: O MUNDO EM ETERNA


MUDANÇA
2
META
Apresentar algumas idéias de Heráclito.

OBJETIVOS
Ao final desta aula, o aluno deverá:
compreender a idéia de Heráclito, segundo a qual o mundo está em eterna mudança;
entender o que seja relativismo em Heráclito.

PRÉ-REQUISITOS
Conhecimento sobre o nascimento da Filosofia na Grécia antiga.

(Fonte: http://cienciahoje.uol.com.br).
Introdução à Filosofia

INTRODUÇÃO

Nesta aula conheceremos algumas idéias de Heráclito de Éfeso, filósofo


da Antiguidade, cujas idéias man-têm sua força nos dias de hoje. Trataremos
especificamente da idéia de um mundo em eterna mudança e do relativismo
heraclítico.

Heráclito (quadro de Johannes Moreelse) (Fonte: http://en.wikipedia.org).


Heráclito

Filósofo pré-
socrático da Escola
Jônica (540/470
a.C).

(Fonte: http://img.olhares.com).

16
Heráclito: o mundo em eterna mudança
Aula

HERÁCLITO 2
Heráclito de Éfeso é um dos primeiros filósofos. Con-tudo, seu pensa- Aforismo
mento continua vivo e influente nos dias de hoje, pois ele falou sobre o
mundo em que vivemos de uma forma original e profunda. Nenhuma obra Sentença que, em
poucas palavras, se
sua chegou até nós, mas temos dele muitos aforismos citados por filósofos
compreende. Exem-
que viveram em épocas posteriores. Heráclito teria escrito um único livro, plo: “A vida é breve,
que ele teria depositado num templo. Seu livro conteria uma série de aforis- a arte é longa, a oca-
mos, escritos segundo a forma dos oráculos gregos, pois Heráclito temia sião fugidia, a ex-
ser incompreendido pelos ignorantes, e, por isso, teria escrito de um modo periência enganosa,
pelo qual só os homens pensantes, como ele poderiam compreender. Por o julgamento difícil”.
essa razão, Heráclito é chamado também de “O Obscuro”.
Oráculos gregos

O MUNDO EM ETERNA MUDANÇA Transmitiam men-


sagens ambíguas, de
modo que apenas
Um desses aforismos nos diz o seguinte: “O Sol é novo a cada dia”.
aqueles que fossem
Essa pequena frase contém em si toda uma reflexão sobre a realidade. Ao capazes de bem jul-
dizer que o Sol é novo a cada dia, Heráclito quer nos dizer que o Sol muda gar poderiam en-
continuamente e nunca se repete. E isso vale não apenas para o Sol, mas tendê-los. Os gregos
para todas as coisas do mundo, incluindo os seres humanos. Passamos por acreditavam que es-
constantes mudanças. Somos crianças, adolescentes, jovens, adultos, ido- ses oráculos transmi-
tiam mensagens dos
sos. Mesmo entre essas idades, também nunca somos os mesmos: nossas
próprios deuses para
idéias mudam, temos novas experiências, nossos corpos se transformam os homens.
continuamente. Também a casa onde vivemos
está em eterna mutação: ora precisa de uma pin-
tura nova, depois de um conserto no telhado. O
mesmo vale para a rua, a cidade, os continentes
(sempre se movendo e se modificando), o planeta,
o sistema solar, as estrelas, o universo. O mundo
está em eterna mudança, e a imagem mais bela que
representa essa verdade é a de um rio: jamais as
mesmas águas passam por esse rio, jamais são os
mesmos os que nele se banham, jamais o dia é o
mesmo. De fato, Heráclito disse que não se pode
banhar-se duas vezes no mesmo rio.
Observamos, caro aluno, que essas mutações
não são aleatórias: seguem determinada ordem.
Assim, do fruto nasce a semente; da semente, o
broto; do broto, a jovem árvore, e dessa surgirá a
árvore adulta que, por sua vez, produzirá novos
frutos. Também a água do mar evapora, dando
origem às nuvens, dando origem às chuvas, que
voltam a preencher o mar. Há uma ordem cíclica (Fonte: http://www.cp2_parati.blogger.com.br).

17
Introdução à Filosofia

na natureza, em que o princípio vem a coincidir com o fim, e esse nada


mais é do que a porta para um novo princípio, e o princípio, um caminho
que leva a um novo fim.
Há uma dança coordenada dos contrários no mundo, pois os opostos
se tocam, complementam-se. Podemos compreender, nestes termos, o
relativismo de Heráclito: ele não quer de modo algum dizer que as coisas
são de qualquer modo, mas que as coisas são umas relativas às outras, pois
como haveria o frio se não houvesse o calor? O que seria da doença, se não
houvesse a saúde? O que seria da luz se não houvesse a escuridão? O que
seria do bem se não houvesse o mal? De fato, a ignorância só é possível
porque há a sabedoria, e a sabedoria, porque há a ignorância. Os contrários
unem se , portanto, abraçam-se e revelam por trás de si a verdadeira re-
alidade: a sabedoria do mundo coordena todas as mudanças da realidade.
Essa sabedoria , que Heráclito chama de lógos, é divina, porque é eterna: é
o próprio Deus que, por ser sábio, dirige as mutações pelas quais o nosso
mundo passa.

(Fonte: www.portaldoastronomo.org).

CONCLUSÃO

O pensamento heraclítico mantém sua força nos dias de hoje, pois é


capaz de nos fazer compreender pro-fundamente, de modo belo e racional,
importantes aspectos do mundo em que vivemos.

18
Heráclito: o mundo em eterna mudança
Aula

(Fonte: http://www.oprofeta.net).

RESUMO

Verificamos, nesta aula, que, para Heráclito, nosso mundo está em


eterna mudança; todas as coisas modificam se constantemente e estão no
mundo, assim como objetos estão imersos no fluxo de um rio. Os contrários
se complementam e, por essa razão, são uns relativos aos outros, pois não
podem ser pensados separadamente de seu par.

ATIVIDADES

1. Dê exemplos de dez pares de contrários que se complementam e que


não podem ser pensados sem seus respectivos pares.
2. Interprete, a partir das idéias de Heráclito sobre o mundo em eterna
mudança, os seguintes versos da música “Zen-budismo”, de Lulu Santos
e Nelson Mota
“Nada do que foi será de novo
Do jeito que já foi um dia
Tudo passa, tudo sempre passará
A vida vem em ondas como o mar
Num ir e vir infinito
Tudo que se vê não é igual
Ao que a gente viu há um minuto
Tudo muda o tempo todo
No mundo”.

19
Introdução à Filosofia

PRÓXIMA AULA

Na próxima aula, estudaremos os sofistas e verificaremos que é injusta


a fama atribuída a eles, pois, na verdade, eram estudiosos da linguagem
humana e usaram a riqueza que conquistaram para beneficiar suas cidades.

REFERÊNCIAS

Kirk, G. S.; Raven, J. E. Os filósofos pré-socráticos. Lisboa: Calouste


Gulbenkian, 1983.

20
Aula
OS SOFISTAS E O ESTUDO
DA LINGUAGEM
3
META
Apresentar a sofística como pensamento sobre a linguagem.

OBJETIVOS
Ao final desta aula, o aluno deverá:
definir a sofística como estudo da linguagem, compreendendo algumas
de suas idéias;
conhecer os dois movimentos sofísticos que houve na Antiguidade; listar
seus principais representantes; reconhecer o valor dos sofistas.

PRÉ-REQUISITOS
Conhecimento sobre o sentido de relativismo e de mundo em mudança em
Heráclito.

1 2 3
Introdução à Filosofia

INTRODUÇÃO

Nesta aula, conheremos os sofistas, cuja má fama é injusta, pois


eles prestavam serviços à so-ciedade e preocupavam-se em nos mostrar
Górgias o enorme poder das palavras sobre nossas almas. Foram os sofistas os
primeiros pensadores a refletirem sobre a linguagem; de fato, eles não eram
Sofista grego, nat- inimigos dos filósofos, mas seus adversários no plano das idéias. Falaremos
ural de Leontinos sobre os dois principais movimentos sofísticos da Antigüidade, citando os
(483-375 a.C.).
nomes dos seus principais participantes e discorrendo sobre as idéias de
um dos maiores sofistas: Górgias de Leontinos.

Busto de Herodes Ático (Fonte: http://www.aeria.phil.uni-erlangen.de).

22
Os sofistas e o estudo da linguagem
Aula

OS SOFISTAS 3
Nesta aula, conheremos os sofistas, cuja má fama é injusta, pois
eles prestavam serviços à so-ciedade e preocupavam-se em nos mostrar
o enorme poder das palavras sobre nossas almas. Foram os sofistas os
primeiros pensadores a refletirem sobre a linguagem; de fato, eles não eram
inimigos dos filósofos, mas seus adversários no plano das idéias. Falaremos
sobre os dois principais movimentos sofísticos da Antigüidade, citando os
nomes dos seus principais participantes e discorrendo sobre as idéias de
um dos maiores sofistas: Górgias de Leontinos.
T ão acidamente são criticados os sofistas que muitas vezes nos parecem
quase criminosos. Nada mais longe da realidade. Muitos deles serviram às
suas cidades como embaixadores, outros construíram ou reconstruíram
templos e, com seus próprios recursos, reformaram prédios públicos. Cita-
rei alguns que exerceram o cargo de embaixador: Górgias, embaixador de
Leontinos em Atenas; Pródico, embaixador de Céos em Atenas; Scope-
lian, embaixador de Esmirna e da Ásia em Roma; Pólemon, diplomata
de Esmirna em Roma.
Pólemon doou a Esmirna dez milhões de dracmas, dinheiro com o
qual a cidade construiu seu mercado de milho, um ginásio (segundo Filos-
trato, o mais belo da Ásia Menor) e um templo que, após um terremoto,
foi reconstruído pelo imperador romano e filósofo estóico Marco Aurélio
Antonino. Herodes Ático usou socialmente suas riquezas, auxiliando
homens e cidades. Damiano de Éfeso restaurou também vários prédios
públicos de sua cidade e construiu um grande pórtico todo em mármore,
admirável por sua beleza.
Houve, na Antigüidade, dois grandes movimentos sofísticos: um no

Teatro grego construído na Antiguidade e preservado até os dias de hoje. (Fonte: http://www.mikix.com).

23
Introdução à Filosofia

Pródico período clássico* e outro, no período helenístico*. O primeiro movi-


Viveu entre 465 e 450 mento (a primeira sofística) tem como representantes Górgias de Leontinos,
a.C. Protágoras de Abdera, Pródico de Céos, Trasímaco, Antífon e Hípias,
entre outros. Essa sofística, na verdade uma “retórica filosofante”, como
Céos define Filostrato, distingue-se da Filosofia pelo modo de argumentação e
Ilha da Grécia.
de investigação. A segunda sofística tem como representantes Ésquines,
Scopelian Nicetes, Scopelian, Iseus, Herodes Ático, Hermógenes de Tarso e Aristides,
Orador grego que flo- entre outros.
resceu por volta do Os sofistas surgiram num momento em que era indispensável aos gregos
ano 50 de nossa era. falar bem para chegarem aos cargos de direção da sociedade; eles foram os
primeiros pensadores a refletir sobre as palavras e seu poder sobre as almas
Esmirna
Cidade grega da Ásia
dos homens. Por isso, a sofística é uma “retórica filosofante”: pensando a
Menor, atual Turquia. linguagem, descobriram o enorme poder das palavras e quão facilmente os
homens se deixam enganar por elas. Os sofistas não pretendiam enganar os
Pólemon de homens, como em geral se pensa, mas investigaram as razões pelas quais
Laodicéia um discurso é convincente e outro não, e sobre isso ensinavam mediante
Nasceu no ano de 85 a cobrança de taxas, como os professores atualmente o fazem. Sócrates
d.C. e viveu sob os
imperadores Trajano,
(sobre quem falaremos a partir da próxima aula) criticava essa cobrança
Adriano e Antonino de taxas, por considerar que a atividade filosófica deve ter como centro a
Pio. amizade e não o comércio.
Ao contrário do que se pensa, os sofistas não eram inimigos dos filó-
Dracmas sofos, nem os filósofos eram inimigos dos sofistas: eram sim adversários
Antiga unidade mon- no plano das idéias. Como pensavam e tratavam de muitos temas comuns,
etária comum a mui-
tas cidades-estado
dialogavam e discutiam sobre esses mesmos temas. Assim, há vários diálogos
gregas e em muitos de Platão que têm como título nomes de famosos sofistas (por exemplo:
reinos do Médio Ori- Protágoras, Górgias, Hípias): nesses diálogos, Platão discute as idéias dos
ente durante o período sofistas e as rebate, apresentando as suas próprias.
helenístico. Vejamos algumas idéias de um desses sofistas, Górgias de Leontinos.
Para Górgias, as palavras têm enorme poder sobre os homens, e isso se dá
Filostrato
Sofista grego (160/249
pelas seguintes razões. Em primeiro lugar, porque os homens pouco sabem
d.C.). Escreveu duas sobre o que aconteceu no passado, o que acontece no presente e o que
famosas obras que acontecerá no futuro. Assim, é fácil enganá-los com discursos falsos sobre
chegaram até nós: A as coisas passadas, presentes e futuras. Portanto, adverte Górgias, devemos
Vida dos Sofistas e A nos precaver em relação a discursos que falam sobre coisas que não con-
Vida de Apolônio de hecemos, pois o principal meio que teríamos para verificar se o discurso
Tiana.
.
é ou não verdadeiro nos falta: o conhecimento dos fatos, o nosso próprio
Platão testemunho dos acontecimentos. Também somos facilmente enganados
Filósofo grego por discursos que falam de coisas que estão para além de nossa experiên-
(428/27 a.C./347 cia, coisas que não vemos ou que não pertencem ao nosso mundo, como
a.C.). Aluno e amigo discursos sobre discos voadores, sobre seres místicos e coisas do gênero.
de Sócrates, fundador Para Górgias, um discurso será verdadeiro se aquele que fala conhece de
da Academia e mestre
de Aristóteles.
fato aquelas coisas das quais fala. Mas aí vem a dificuldade: como saber se
quem fala conhece de fato as coisas de que fala?

24
Os sofistas e o estudo da linguagem
Aula

As palavras, diz-nos Górgias, também têm grande poder de conven-


Antonino
cimento ou persuasão por serem materiais. Todas as coisas materiais nos
Marco Aurélio An-
afetam de uma forma ou de outra. Há coisas que nos causam medo, outras tonino, imperador ro-
admiração, outras prazer, etc. Também as palavras são assim e causam maior mano e filósofo estóico,
efeito se são ditas de um modo adequado e na hora certa. Por exemplo: nascido em 26 de abril
se você vai a uma festa de aniversário de um amigo, é de bom tom não só de 121 e falecido em 17
cumprimentá-lo e parabenizá-lo com alegria, mas também dizer as palavras de março de 180. Seu
diário chegou até nós,
apropriadas ao momento. Entretanto, se você vai ao mesmo aniversário
obra famosa pela pro-
com a cara fechada e diz ao seu amigo coisas tristes e agourentas, é bem fundidade e grandeza
provável que suas palavras o farão crer que você não é seu amigo, e sim de sentimentos.
inimigo. Portanto, devemos ter muito cuidado com o que falamos, como
falamos e quando falamos. Há horas em que se deve falar coisas alegres, há Ático
outras em que se deve falar coisas tristes, há momentos apropriados para Herodes Atico: grande
orador grego do período
se advertir, e outros em que é necessário calar.
helenístico. Viveu entre
os anos 101 e 177 de
nossa era.

Damiano
Sofista da Segunda
Sofística do qual não
se sabe as datas de nas-
cimento e morte. Citado
por Filostrato em sua
obra A Vida dos So-
fistas.

Período clássico
Período da história da
Grécia que vai do sécu-
lo 8 a.C. ao helenismo.

Período helenístico
Período da história gre-
ga que começa com a
morte de Alexandre, o
Grande (323 a.C.), e se
caracteriza pela difusão
Teatro construído por Herodes Ático (Fonte: http://www.lh3.google.com). da cultura grega através
das terras conquistadas
Há uma palavra grega que expressa bem isso: kairós. Kairós significa o por ele.
momento, a ocasião propícia para se fazer uma coisa determinada. Kairós
Protágoras
era um deus para os gregos e era representado com asas nos pés (pois é Grande sofista grego:
preciso aproveitar a ocasião prontamente); com uma navalha em uma das viveu entre 481 e 411
mãos (pois a ocasião muda o cenário das coisas), uma mecha de cabelos a.C.
caindo sobre a testa e sendo calvo atrás (pois a ocasião deve ser agarrada
no momento em que ela passa, e quando ela já passou não se pode mais

25
Introdução à Filosofia

agarrá-la). Assim, os discursos terão o máximo de efeito quando ditos de


acordo com a ocasião, de acordo com o kairós.
Górgias revela ainda outra coisa importantíssima em relação às pala-
vras: elas são mais poderosas quando ditas de uma forma poética. Assim,
as palavras de amor e amizade são ditas de uma forma doce e poética. Só
alguém muito tolo diria tais coisas de forma seca, dura e fria. Também por
essa razão memorizamos com facilidade letras de música, pois nos são ditas
de forma poética.

(Fonte: http://mtfoliveira.no.sapo.pt).

26
Os sofistas e o estudo da linguagem
Aula

CONCLUSÃO

Assim, pudemos observar a importância das idéias dos sofistas sobre


o poder da linguagem, ressaltando ainda suas ações positivas para a con-
strução de um pensamento ético e suas manifestações na fala.

RESUMO

Nesta aula, aprendemos que os sofistas dedicaram se a estudar a lingua-


Trasímaco
gem e compreender seu poder sobre as almas humanas. Com seus estudos,
Famoso sofista que
os sofistas obtiveram riqueza, permitindo-lhes executaram obras públicas, viveu entre 459 e 400
e prestígio, assumindo cargos públicos de destaque para o auxílio de seus a.C. Personificado no
concidadãos. Não eram inimigos dos filósofos, mas seus adversários no livro 1 da República
plano das idéias. Górgias de Leontinos nos adverte quanto aos discursos de Platão.
falsos, fala da importância de se saber o momento oportuno de falar e calar
Antífon
e reflete sobre o poder do discurso poético.
Famoso sofista: viveu
entre 480 e 411 a.C.

Hípias
Sofista contemporâ-
neo de Protágoras e
de Sócrates.

Nicetes
Orador grego que flo-
resceu por volta do
ano 50 de nossa era.

Iseus
Orador grego que che-
gou a Roma em 97
d.C.

Hermógenes
Famoso orador que
viveu sob o imperador
Marco Aurélio.

Aristide
Orador que também
Imagem de Kairós (Fonte: http://www.kairos.cz). viveu sob o imperador
Marco Aurélio.

Propícia
i.e. adequada, fa-
vorável.

27
Introdução à Filosofia

ATIVIDADES

1. Escreva uma declaração de amor com palavras poéticas a uma pessoa que
você ama. Depois escreva a mesma declaração sem os recursos poéticos.
Que diferença você percebe entre elas?
2. Fale sobre a letra de uma música que você lembra de cor. Por que você se
lembra dessa música? Ela fala algo sobre sua vida, sobre suas experiências?
3. Você se lembra de alguma notícia que em primeiro lugar achou ser
verdadeira e depois descobriu ser falsa? Explique por que razão você acha
que isso aconteceu.

COMENTÁRIO SOBRE AS ATIVIDADES


Após esses exercícios, espero que você tenha compreendido a verdade
das afirmações de Górgias sobre o poder das palavras sobre as almas
humanas, pois ele em muito nos auxiliou a compreender nossa relação
com as palavras.

PRÓXIMA AULA
Na próxima aula, conheceremos algumas idéias de Sócrates?

REFERÊNCIAS

PHILOSTRATUS; EUNAPIUS. Lives of the Sophists. Loeb Classical


Lybrary. Harvard University Press, 2005.

28
Aula

SÓCRATES POR XENOFONTE 4


META
Apresentar algumas idéias de Sócrates abordadas por seu amigo,
Xenofonte, na obra intitulada Ditos e Feitos Memoráveis de Sócrates

OBJETIVOS
Ao final desta aula, o aluno deverá:
conhecer as reflexões de Sócrates sobre a moral humana através da
razão;
conhecer as idéias de Sócrates sobre a conquista da felicidade; e
compreender que, para Sócrates, só é feliz quem é senhor de si mesmo, é
generoso e tem amigos de verdade.

PRÉ-REQUISITOS
Conhecimento sobre a sofística e os seus principais representantes.

(Fonte: http://www.passeiweb.com).
Introdução à Filosofia

INTRODUÇÃO

Moral Sócrates foi contemporâneo dos sofistas, mas distinguiu-se deles e


dos primeiros filósofos: enquanto estes voltaram suas investigações para o
A palavra moral mundo da natureza e os sofistas para o estudo racional da linguagem hu-
vem do termo latino
mana, Sócrates concentrou-se totalmente no modo de ser do homem, isto é,
morus, que significa
“modo de ser”, o ter- nas questões morais. Seus alunos e amigos escreveram sobre as idéias dele.
mo grego equivalente Duas visões do pensamento socrático chegaram até nós: uma, através de
é ethos, e daí vem o Platão e outra, através de Xenofonte. Veremos, nessa aula, algumas dessas
nosso termo “ética”. idéias desenvolvidas por Xenofonte.
Em nossas aulas, a
palavra “ética” será
sinônima de “moral”
e significará “o modo
de ser próprio do
homem”.

(Fonte: http://cache01.stormap.sapo.pt).

SÓCRATES

Xenofonte foi amigo e aluno do filósofo desde a adoles-cência. Reza


a lenda que um dia ele foi abordado por Sócrates em plena rua e este lhe
indagou onde as mercadorias eram vendidas; Xenofonte respondeu-lhe e
Sócrates perguntou-lhe ainda onde os homens se tornavam bons e dignos.
Diante do silêncio confuso do aluno, Sócrates disse-lhe: “Vem comigo e
aprende”. Mais tarde, Sócrates salvou a vida de Xenofonte na batalha de
Délios, no ano de 424 a .C.

30
Sócrates por Xenofonte
Aula

Em sua obra intitulada Ditos e Feitos Memoráveis de Sócrates, Xe-


nofonte apresenta nos sua versão das idéias de Sócrates, que dialoga com
4
todos os homens, sendo amigo tanto dos ricos quanto dos pobres. Suas
conversas giram sempre em torno de temas relacionados à vida humana.
Como o homem pode ser feliz? Qual é o papel da amizade na vida humana?
De que forma uma alimentação saudável contribui para a boa vida? Para
que servem os exercícios físicos? Perguntas como essas Sócrates buscou
respondê-las com a razão, chegando a um conjunto de reflexões que man-
têm seu vigor até os dias de hoje. Xenofonte
Sócrates reflete primeiramente sobre a alimentação, na qual verá
o princípio da educação: o homem deve escolher alimentos e bebidas Guerreiro e es-
saudáveis, comer e beber o suficiente para matar a fome, pois aquele que critor ateniense
(427/355 a.C.).
come em demasia, torna-se um glutão e, embora a princípio coma por prazer, Escreveu Ditos
com o tempo, passará a comer por compulsão, por vício; fazendo tal coisa, e Feitos Memo-
subverterá a função primeira da alimentação, que é nutrir-se e fortalecer-se. ráveis de Sócrates.
“Como para viver, e não vivo para comer” – dirá Sócrates.
Em seguida, Sócrates reflete sobre os bens materiais: deve-se possuí-
los, mas não egoisticamente. O homem que possui bens e é incapaz de
compartilhá-los dá mais valor às coisas materiais que às amizades e assim
se priva do que há de melhor no mundo para o homem: os amigos verda-
deiros. O homem sábio será frugal (não comerá mais do que é suficiente),
despojado (não se apegará às coisas materiais), generoso ( capaz de com-
partilhar), amigável e, portanto, perfeitamente feliz. Porém, a frugalidade, o
despojamento e a generosidade não chegam ao homem gratuitamente, mas
através de uma boa educação: é preciso que ele se habitue a uma alimen-
tação saudável e que fortaleça seu corpo com exercícios físicos; é preciso
preparar-se para a fome e para o desamparo, para a vida e para a morte; é
preciso fortalecer-se para enfrentar as dificuldades da vida, pois aquele que
não se fortalece, teme coisas que não devem ser temidas, como a pobreza,
a fome, a exaustão física e, ao temer tais coisas, torna-se fraco, escravo dos
inimigos e das circunstâncias.
Sócrates descobriu que a verdadeira grandeza de alma e a verdadeira
felicidade só podem ser obtidas por aquele que é senhor de si mesmo e
não escravo do medo. Entretanto, só será senhor de si mesmo aquele
que enfrenta várias dificuldades e, combatendo-as, reconhece seu próprio
valor. Assim, o aspirante à sabedoria deve habituar-se às dificuldades (e até
mesmo buscá-las) para tornar-se dono de si mesmo, da mesma forma que
um atleta habitua-se, por sua própria vontade, a difíceis exercícios físicos,
para depois vencer competições.
O fato de nos considerarmos capazes de enfrentar as adversidades
nos fortalecerá; com o tempo, habituamo-nos aos obstáculos e passamos
a considerar fáceis coisas que antes achávamos difíceis. Aquele, por outro
lado, que buscar apenas o prazer e evitar sistematicamente o sofrimento,

31
Introdução à Filosofia

tornar-se-á fraco e dependente e terá medo de muitas coisas; será facilmente


escravizado por outros homens e pelas circunstâncias, da mesma forma que
aquele que não pratica exercícios físicos e se alimenta mal se tornará fraco,
doente e incapaz de se defender.

Sócrates e seus alunos (desenho do alemão Greuter) (Fonte: http://www.internext.com).

CONCLUSÃO

Sócrates, portanto, chegou à conclusão de que a felicidade e a liber-


dade são obtidas através do cultivo das virtudes, das excelências morais.
Estas são conseguidas através de grande esforço pelo qual o homem passa
a reconhecer o que é verdadeiramente fundamental e necessário para si;
segundo o filósofo, é infeliz aquele que, capturado por vícios, torna-se fraco
e dependente de coisas que não são nem fundamentais, nem necessárias à
sua vida, privando-o daquelas que realmente são imprescindíveis ao seu
bem-estar físico e mental.

RESUMO

Aprendemos na aula de hoje que Sócrates concentrou-se totalmente


sobre as questões morais. Sócrates nada escreveu, mas duas visões do seu
pensamento chegaram até nós: uma através de Platão e outra através de
Xenofonte. Segundo a visão de Xenofonte do pensamento socrático, o
homem deve lutar para ser senhor de si mesmo. O homem sem vícios e
senhor de si mesmo será feliz, pois saberá lidar com as dificuldades da
vida, e saberá o que é o melhor para si.

32
Sócrates por Xenofonte
Aula

ATIVIDADES

1. A partir do texto desta aula, dê exemplos de ações positivas que foram


4
inicialmente difíceis de realizar por você, mas que depois se tornaram fáceis
e prazerosas.
2. Explique, com suas próprias palavras, a razão pela qual, para Sócrates, os
vícios conduzem à escravidão e a razão pela qual na escravidão o homem
não pode ser feliz?

COMENTÁRIO SOBRE AS ATIVIDADES


Em sua resposta da atividade 1, você com certeza vai citar várias coisas
que foram aprendidas com grande sofrimento, mas que depois se
tornaram fáceis e essenciais para sua própria vida. Aprender a escrever
e aprender as noções básicas de Matemática, por exemplo. Em sua
resposta da atividade 2, você deve considerar que os vícios conduzem
à escravidão, porque neles o homem perde sua liberdade de escolha:
estando, por exemplo, viciado em tabaco, ele fumará, não por prazer,
mas obrigado pelo vício. Sua vida passará a depender de algo que lhe
é externo. Esse mesmo homem, porém, pode escolher não fumar e
sofrerá para terminar com o vício, mas, uma vez vencendo a batalha,
tornará a ser senhor de si mesmo; não dependendo mais do tabaco,
tornar-se-á mais forte e, conseqüentemente, mais feliz.

REFERÊNCIAS

Xenofonte. Ditos e feitos memoráveis de Sócrates. Nova Cultural: São


Paulo, 2004.

33
Aula
SÓCRATES POR PLATÃO 5
META
Apresentar algumas idéias de Sócrates através do filósofo Platão nos
chamados Diálogos Socráticos.

OBJETIVOS
Ao final desta aula, o aluno deverá:
entender por qual razão, para Sócrates, devemos buscar o
autoconhecimento; compreender as idéias socráticas a respeito da
sabedoria humana.

PRÉ-REQUISITOS
Conhecimento das idéias de Socrates segundo Xenofonte.
Introdução à Filosofia

INTRODUÇÃO

Platão foi o mais famoso discípulo de Sócrates, além de ter sido um


grande amigo. Escreveu em sua juventude diversas obras, as quais chama-
mos de Diálogos socráticos. Nesses diálogos, encontramos algumas das
idéias que constituem o coração da filosofia de Sócrates.
Conheceremos nesta aula, a importância de se estudar o pensamento
socrático, segundo Platão.

Platão
Platão, ateniense,
viveu entre 428/27
e 347 a.C.

Diálogos Socráticos
Ta i s d i á l o g o s
são: Apologia,
Críton,Crítias, Eu-
tífron, Eutidemo,
Hípias Menor, Íon,
Laquês, Lísias,
Protágoras, Gór-
gias e o Livro I da
República. Nos
diálogos da Maturi-
dade (por exemplo:
Banquete, Fédon,
Fedro, República)
e da Velhice (por
exemplo: Sofista, (Fonte: http://www.arikah.net).
Filebo) aparece tam-
bém um personagem
chamado Sócrates,
que não é senão um
porta-voz das idéias
SÓCRATES
platônicas propria-
mente ditas. Até Sócrates, os filósofos usavam a razão, sobretudo para conhecer o
mundo físico e a linguagem humana. Contudo, nenhum filósofo se dedicara,
até então, a estudar exclusivamente o modo de ser do homem. O primeiro a
fazer isso foi Sócrates. Ele percebeu que existe um modo certo e adequado
para alguém pilotar um navio, por exemplo; da mesma forma, há um modo
correto de se criar ovelhas. Para toda e qualquer atividade humana, existe
uma técnica com a qual essa atividade é realizada de um modo adequado
e bom. Em outros termos, não se fazem as coisas de qualquer maneira,
pois é preciso um certo conhecimento sem o qual a tarefa fracassará. Por

36
Sócrates por platão
Aula

exemplo: se eu fizer um bolo de qualquer modo e colocá-lo para assar numa


frigideira, em vez de no forno, é evidente que o bolo solará. Da mesma
forma que, se eu criar galinhas inadequadamente, não lhes dando uma
5
alimentação apropriada , nem vacinas, as galinhas ou crescerão pouco ou
morrerão. Então Sócrates pensou: o mesmo vale para a vida humana! Se
vivermos de qualquer maneira e sem reflaxão, é evidente que fracassaremos
e seremos infelizes. Precisamos, portanto, de um conhecimento, de uma
sabedoria de vida com a qual possamos ser felizes.
Precisamos saber o que é o homem para educá-lo de um modo cor-
reto; necessitamos de um método com que possamos educar os homens
e extrair deles o melhor de si mesmos. O que distingue os homens dos
outros animais? O uso da razão: o homem age, refletindo sobre o que faz Sócrates
e, em todas as ações, busca sua felicidade. Mas se todos nós, em cada uma
Filósofo ateniense
de nossas ações, buscamos a felicidade, por que várias vezes fracassamos,
(470/399 a.C.).
erramos e obtemos o contrário do que queríamos, tornando-nos infelizes? Foi o primeiro a
Sem dúvida, porque muitas vezes ou julgamos saber (e não sabemos tratar, exclusiva-
na verdade) como obter algo que queremos, ou julgamos querer (e não mente, questões
queremos verdadeiramente) alguma coisa. Por essa razão, para Sócrates, morais.
ninguém erra por sua própria vontade. E isso porque, na realidade, nós
sabemos bem pouco sobre nós mesmos: somos seres imperfeitos e lim-
itados. Ora, se somos assim imperfeitos, da mesma forma será imperfeita
nossa sabedoria. Assim, diz-nos Sócrates: “A sabedoria de todo homem é
pouco ou nada comparada à sabedoria divina”. E será sábio justamente
aquele homem que tomar plena ciência disso e não se achar detentor de
uma sabedoria divina e perfeita. No momento em que o homem reconhece
sua ignorância em relação à verdadeira sabedoria, é capaz de iniciar a busca
por uma sabedoria de vida, e essa sabedoria será o conhecimento sobre o
que é bom e o que é ruim para si.

Essa afirmação de que todo homem, em cada uma de suas


ações, busca sua felicidade é que chamamos de “princípio da
eudaimonia” do pensamento socrático. A palavra grega eu-
daimonia significa algo como “felicidade”. A ética socrática é,
assim, uma ética eudaimonista, pois parte do princípio de que
todos os homens buscam a felicidade.

Será preciso, portanto, conhecer-se a si mesmo; mas, como alguém


pode obter esse conhecimento de si mesmo? Em primeiro lugar, deve-se
analisar todas as crenças recebidas na educação, porque, se forem falsas,
levar-nos-ão à infelicidade. Por exemplo: se cremos que frutas e verduras
fazem mal à saúde e que alimentos gordurosos fazem bem, nos alimentar-
emos mal e poremos nossa vida em risco. Esse exame de nossas crenças é

37
Introdução à Filosofia

um exercício crítico, construtivo, que tem como objetivo eliminar as falsas


crenças que tornam infelizes os homens.

A Escola de Platão (Pintura de Feuerbach, 1869) (Fonte: http://www.correntedapaz.com).

Sócrates descobriu que as falsas crenças sobre nós mesmos e o mundo


que nos cerca nos levam a agir equivocadamente e a desejar coisas que não
nos são necessárias e nos fazem mal. Somente através de um exercício
constante de crítica e de autocrítica podemos progredir rumo à construção
de uma sabedoria de caráter humano e provisório.

Sócrates, na verdade, jamais disse a frase que lhe é constante-


mente atribuída: “Só sei que nada sei”. Sócrates confessa sua
ignorância em relação à sabedoria divina e perfeita e afirma
que seu saber tem um caráter humano, ou seja, sempre em
construção e sujeito a críticas.

CONCLUSÃO

Sócrates dedicou sua vida a essa tarefa que ele tomou como uma missão
divina: comunicar aos homens a ne-cessidade de avaliar as próprias crenças
e se autoconhecerem. Formou, assim, uma pequena comunidade de alunos
e amigos com os quais debateu os temas de sua filosofia. Aos 69 anos, no
entanto, foi processado por atenienses conservadores que viam em suas
críticas um perigo para a democracia. Foi oferecida a Sócrates a oportuni-

38
Sócrates por platão
Aula

dade de ser perdoado se firmasse o compromisso de não mais filosofar.


Sócrates se recusou terminantemente a isso e foi condenado à morte no
ano de 399 a.C. Seus amigos e os amigos de seus amigos seguiram seus
5
ensinamentos e fundaram uma série de escolas filosóficas.

RESUMO

Platão escreveu diversas obras, tratando do pensamento de Sócrates;


nelas estão os fundamentos da filosofia socrática. Sócrates percebeu que,
para toda e qualquer atividade humana, existe uma técnica com a qual essa
atividade é realizada de um modo adequado e bom; o mesmo vale para a
vida humana. Precisamos de uma sabedoria de vida para sermos felizes.
Para isso, torna-se imprescindível a nós, seres humanos, o autoconheci-
mento, associado a uma educação saudável. Porém, sabemos bem pouco
sobre nós mesmos, pois imperfeita é nossa sabedoria. No momento em que
reconhecemos nossa ignorância em relação à verdadeira sabedoria, somos
capazes de iniciar a busca por uma maior sabedoria de vida. Será preciso,
portanto, conhecermo-nos a nós mesmos e, para isso, é preciso analisar-
mos todas as crenças recebidas em nossa educação. Esse exame de nossas
crenças é um exercício crítico construtivo que tem como objetivo eliminar
as falsas crenças que nos tornam infelizes. Sócrates dedicou sua vida a essa
tarefa que ele entende como uma missão divina: comunicar aos homens
a necessidade de avaliarem as próprias crenças e de se autoconhecerem.

A morte de Sócrates.

39
Introdução à Filosofia

ATIVIDADES

1. Cite exemplos de coisas que você, a princípio, pensou serem boas e depois
descobriu serem más para você ou para alguém que você ama. A partir do
que estudamos nesta aula, por que você acha que se enganou?
2. O racismo é um preconceito, uma falsa crença que causa transtorno
àqueles que nela crêem e àqueles que dela são vítimas. Explique, com base
em sua compreensão sobre esta aula, por qual razão o racismo é uma falsa
crença?

COMENTÁRIO SOBRE AS ATIVIDADES


Em sua resposta à atividade 1, você vai enumerar coisas, que
considerou boas, mas que na verdade são más, por ignorância, por
não conhecer como as coisas são de fato. Na resposta à atividade 2,
você deve destacar a injustiça e a tolice do racismo, por não haver
verdadeiramente diversas espécies humanas, pois os homens compõem
uma única espécie.

REFERÊNCIAS
PLATÃO. Apologia de Sócrates. Nova Cultural: São Paulo, 2004.

40
Aula
IDÉIAS COMUNS AOS
FILÓSOFOS SOCRÁTICOS 6
META
Apresentar idéias comuns aos filósofos das escolas socráticas.

OBJETIVOS
Ao final desta aula, o aluno deverá: compreender a idéia socrática de crítica ao senso comum;
compreender a razão de Sócrates afirmar que qualquer pessoa pode atingir a felicidade e ser livre
através da crítica ao senso-comum e do uso da razão;
entender as reflexões socráticas sobre a necessidade de reconhecer a própria ignorância;
compreender a concepção socrática sobre a libertação e o autodomínio como frutos da prática
filosófica;
e entender a reflexão socrática sobre a tolerância como fruto da verdadeira prática filosófica.

PRÉ-REQUISITOS
Conhecimento sobre as idéias socráticas segundo Platão.
Introdução à Filosofia

INTRODUÇÃO

Sócrates teve muitos discípulos e estes formaram diversas escolas de pensamento (são as chamadas
Cínica “Escolas Socráticas”). Tais escolas, que surgiram no período helenístico, produziram um verdadeiro
O cinismo é uma cor- tesouro de sabedoria e continuam nos inspirando a buscar a felicidade e a libertação através do
rente filosófica que pensamento. Entre essas escolas, destacam-se a escola Cínica, a Estóica e a Epicurista. Suas
reflexões valorizam a crítica às opiniões que os homens têm sobre seu papel no mundo e o que
teve como precursor devem buscar na vida, o que é a felicidade e a afirmação das limitações próprias da condição humana.
o amigo de Sócrates, Essas filosofias mantêm seu vigor nos dias de hoje. Suas idéias continuam guiando aqueles que
Antístenes (444- 365 verdadeiramente amam a filosofia e buscam a felicidade com o auxílio da reflexão.
a.C.), e foi funda-
da por Diógenes de
Sínope. Falaremos
mais sobre o cinismo
e Diógenes na Aula 9
dessa unidade.

Estóica
O estoicismo é uma
corrente filosófica
socrática fundada por
Zenão de Cicio no
século III a.C. Fala-
remos mais sobre o
estoicismo na última
aula dessa unidade.

Epicurista
O epicurismo é uma
corrente filosófica
socrática fundada
por Epicuro (323-271
a.C.). Para Epicuro, o
sumo bem é o prazer,
entendido como aus-
ência de perturbação
na alma.
Busto de Antístenes (Museu Britânico, Londres)

IDÉIAS COMUNS AOS FILÓSOFOS

A primeira idéia em comum dessas escolas de pensamento é a denúncia


aos enganos do senso comum, conjunto de opiniões sobre o modo de se
viver e o papel do homem no mundo que recebemos como parte de nossa
herança cultural. Tal denúncia é acompanhada pela afirmação do caráter
terapêutico da crítica ao senso-comum, que tem como efeito o fim dos so-
frimentos e dos medos cuja origem está na ignorância ou nas falsas opiniões.

42
Idéias comuns aos filósofos socráticos
Aula

A segunda idéia em comum é a afirmação de que qualquer pessoa pode


atingir a felicidade e se realizar como ser humano se usar corretamente aquilo
que lhe foi dado pela natureza. À medida que o homem analisa suas crenças
6
e seus valores morais, vai pondo de lado as falsas opiniões, caminhando, as-
Terapêutico
sim, para a verdadeira sabedoria. Isto quer dizer que ele pode viver melhor, Relativo ao tratamen-
pois abandona opiniões sobre a vida e a morte que o fazem sofrer. Nisso to de enfermidades.
se evidencia bem o caráter existencial do pensamento dos socráticos:
voltar-se para a vida humana para torná-la melhor através do pensamento.
A terceira idéia em comum é a afirmação da ignorância humana quanto Caráter existencial
Relativo à nossa ex-
à verdadeira sabedoria, à limitação da condição mortal do ser humano e à
istência, à nossa vida
denúncia dos falsos donos da verdade. Tal denúncia é mostrada por Platão como homens.
em seus Diálogos Socráticos, em que vemos Sócrates refutando aqueles que
se julgam donos de uma sabedoria perfeita sobre o que é o bem e o mal.
A prática filosófica socrática de não se achar detentor de uma sabedoria Monólogo
perfeita tem também um caráter terapêutico, pois assim é possível impedir Discurso de alguém
que fala consigo mes-
que tal pretensão invada e escravize o ser humano, provocando efeitos como
mo ou que impede
a surdez em relação às críticas e a intolerância em relação aos que pensam que os outros falem.
diferentemente. O raciocínio pelo qual se prova que nenhum ser humano
é perfeitamente sábio é o seguinte: se ninguém é perfeito, então nada no
ser humano é perfeito; se nada nele é perfeito, então nenhum homem pode
ter uma sabedoria perfeita.
A Filosofia passa a ser, portanto, não o monólogo do dono da verdade,
mas o diálogo entre aqueles que buscam a sabedoria. A Filosofia se faz,
então, por um diálogo através do qual os homens tornam-se melhores, mais
felizes e mais tolerantes. A prática filosófica é, assim, um processo de liber-
tação do homem através do conhecimento de si mesmo e do mundo à sua
volta. Ser sábio, para essas escolas, é um ideal a ser buscado por aquele que
pratica a Filosofia em todos os momentos, em todas as ações. O amante da
sabedoria busca ser sábio, e esta busca se faz pela reflexão sobre suas ações
e sobre seus princípios morais. O homem passa, então, a conhecer-se cada
vez mais. Dessa forma, a prática filosófica quer evitar a todo custo que o
ser humano se esqueça de si mesmo e passe a agir como um robô, pois o
homem não reflexivo e esquecido de si mesmo não mais vive propriamente,
mas simplesmente existe sem consciência de si e do que faz.
A quarta idéia em comum é a de que o autodomínio e a libertação são
frutos da prática filosófica. Para os gregos e romanos, ser livre significa,
antes de tudo, ser cidadão e não escravo. Na Filosofia, porém, “liberdade”
passa a ter um sentido mais amplo. Nas filosofias socráticas, “ser livre”
significa não ser conduzido por falsas opiniões do senso comum, o que se
dá como resultado do bom uso da reflexão na vida de cada um. Assim, o
amante da sabedoria passa por um processo de libertação que purifica sua
alma das falsas opiniões numa caminhada contínua rumo à sabedoria. A
Filosofia, para os socráticos, é uma arquitetura de viver através da qual o

43
Introdução à Filosofia

ser humano, por meio de um exercício de autocrítica e reflexão sobre seus


princípios morais e sobre o resultado de suas ações, constrói continuamente
a si mesmo e o mundo à sua volta, realizando-se como ser humano.
A quinta idéia em comum é a afirmação de que a prática filosófica
supõe o desenvolvimento de um espírito crítico e tolerante que leva cada
indivíduo a realizar-se de modo original. Assim, há diferentes escolas
socráticas, cada uma com seus princípios; diversos filósofos dessas escolas
desenvolvem seu pensamento de modo original, isto é, sem simplesmente
repetir ou imitar o que os outros dizem ou fazem. O pensamento é im-
portante e valioso quando nos traz algo novo e desconhecido que pode
estar há muito na nossa frente sem que vejamos. Se nenhum homem tem
uma sabedoria perfeita e se nenhum homem terá a sabedoria de todas as
coisas, sempre haverá uma verdade sobre a vida a ser descoberta, e nós,
humanos, sempre teremos muito a aprender, tanto sobre o mundo que nos
cerca, quanto sobre nós mesmos.

Minerva, a deusa romana da sabedoria.

44
Idéias comuns aos filósofos socráticos
Aula

CONCLUSÃO 6
Verificamos, assim, porque essas idéias comuns a todas as Escolas
Socráticas mantêm seu vigor nos dias de hoje, pois todos nós, com certeza,
precisamos ser críticos (ou, senão, repetiremos sempre nossos erros), buscar
a libertação e a felicidade através do uso da reflexão e, sobretudo, precisa-
mos ser tolerantes em relação a nós mesmos e aos demais seres humanos.

RESUMO

As escolas socráticas têm várias idéias em comum. A primeira idéia em


comum entre essas escolas de pensamento é a denúncia dos enganos do
senso comum, que tem como resultado o fim dos sofrimentos e dos medos
cuja origem está na ignorância ou nas falsas opiniões. A segunda idéia em
comum é a afirmação de que o ser humano pode atingir a felicidade e se
realizar como pessoa se usar corretamente a razão. A terceira idéia versa
sobre a afirmação da ignorância humana quanto à verdadeira sabedoria, à
limitação da condição mortal e à denúncia dos falsos donos da verdade. A
quarta idéia é sobre o autodomínio e a libertação como frutos da prática
filosófica. A quinta idéia diz respeito à afirmação de que a prática filosófica
supõe o desenvolvimento de um espírito crítico e tolerante, que leva cada
homem a realizar-se de modo original.

ATIVIDADES

1. Explique, segundo o seu entendimento sobre esta aula, por que razão
nenhum homem pode ser perfeitamente sábio.
2. Explique por que motivo resulta do pensamento socrático a necessidade
de que os homens dialoguem entre si. O que ocorre quando o indivíduo
passa a agir como um robô? Crie um exemplo a partir do comentário abaixo.

COMENTÁRIO SOBRE AS ATIVIDADES

1. Você deverá explicar que nenhum homem pode ser perfeitamente


sábio pois a perfeição é humanamente impossível.
2. Você deverá explicar que surge do pensamento socrático a
necessidade do diálogo porque, se nenhum homem é perfeitamente
sábio, é preciso que os homens discutam entre si para decidirem sobre
as coisas da vida e não seguirem( por exemplo) cegamente um homem
que se crê dono da verdade e de uma sabedoria perfeita.

45
Introdução à Filosofia

PRÓXIMA AULA

Na próxima aula, falaremos sobre Platão, a sua “Alegoria da Caverna”


e sua Carta Sete, em que Platão faz um admirável exercício socrático de
reconhecimento da própria ignorância, valorização do diálogo entre os
homens e denúncia dos donos da verdade.

REFERÊNCIAS
Platão. Diálogos. Nova Cultural: São Paulo, 2005.
Sêneca. Sobre a brevidade da vida. Nova Alexandria: São Paulo, 1993.
Lucrécio, Da Natureza. Ediouro: São Paulo, 1985.
Marco AURÉLIO, Meditações. Iluminuras: São Paulo, 1995

46
Aula

PLATÃO, SEUS DIÁLOGOS E A


7
“PALAVRA VIVA NA ALMA”

META
Apresentar Platão, seus diálogos e sua noção de “palavra viva na alma”.

OBJETIVOS
Ao final desta aula, o aluno deverá: conhecer algumas idéias contidas nos
diálogos de Platão escritos na maturidade, destacando-se “A República”;
listar os diálogos de Platão da maturidade e da velhice, conhecendo suas idéias básicas;
entender o pensamento de Platão em sua “alegoria da caverna;
compreender as idéias contidas na “Carta Sete”, sobre o filosofar; e
compreender a importância que Platão confere ao diálogo na prática filosófica.

PRÉ-REQUISITOS
Conhecimento sobre a idéia socrática de crítica ao senso-comum.
Introdução à Filosofia

Metafísica
INTRODUÇÃO

Estudo através do
qual se busca pro- Platão, como sabemos, foi um grande amigo e aluno de Sócrates. Os
duzir um discurso interesses de Platão incluíam as ciências da natureza, a política, as artes, a
sobre a estrutura últi-
metafísica e a ética. Seus diálogos são muito famosos e continuam inspi-
ma do mundo onde
vivemos. rando os homens em sua busca pelo conhecimento. Na maturidade, Platão
escreveu muitos diálogos, entre os quais destacam-se a República (no qual
ele realiza uma reflexão sobre como seria a sociedade ideal), o Fédon (no
qual ele reflete sobre a questão da imortalidade da alma) e o Banquete (no
qual ele desenvolve uma profunda reflexão sobre o amor). Na velhice, os
diálogos que se destacam são o Sofista (no qual ele analisa o conceito e a
função da sofística) e as Leis (seu último diálogo, incompleto, em que ele
critica as leis de Atenas e sugere modificações). Além disso, temos algumas
cartas de Platão que chegaram ao nosso conhecimento. Vejamos sucinta-
mente algumas das idéias que esses textos de Platão nos oferecem.

Para Platão, o essencial só pode ser atingido pelo pensamento.

Outros famosos diálogos da maturidade: Fedro, Mênon,


Teeteto, Parmênides, Timeu.
Outro famoso diálogo da velhice: Filebo.

48
Platão, seus diálogos e a “palavra viva na alma”
Aula

“PALAVRA VIVA NA ALMA” 7


Na República, Platão escreve sua famosa “Alegoria da Caverna”, em
que faz uma metáfora da educação e da ignorância. Nessa alegoria, Platão
descreve os homens ignorantes como prisioneiros acorrentados no fundo
de uma caverna escura, não tendo acesso à realidade, mas apenas aos re-
flexos dos objetos verdadeiros que passam por trás deles, diante de uma
fogueira. Essas correntes que aprisionam os homens, pode-se dizer, são as
falsas opiniões, e os reflexos na parede do fundo da caverna, as aparências. Alegoria
Para Platão, o essencial não pode ser visto, nem tocado, pois não é
É um conjunto de
material e sensível: as essências dos objetos materiais só podem ser apre- metáforas; metá-
endidas pelo pensamento. É através do pensamento ou da razão (e nisso fora é uma figura
Platão segue fielmente o pensamento socrático) que os homens podem se de linguagem que
libertar das correntes que os aprisionam. Entretanto, o prisioneiro precisa consiste em transpor
ser libertado por alguém. Esse exercício de libertação é duro e doloroso: a o significado de um
princípio, não é fácil mover os membros, pois esses não estão acostumados termo para outro. Por
exemplo: “o véu da
aos movimentos. cachoeira”, a pala-
Da mesma forma, é o exercício do aprendizado: nossa cabeça real- vra “véu” é usada
mente dói quando estamos aprendendo coisas novas; é difícil memorizá- neste caso em sen-
las e compreendê-las, mas quão bom é o resultado quando dominamos o tido metafórico, pois,
conhecimento. É como aprender a andar de bicicleta: primeiro, caímos, propriamente, “véu”
ralamo-nos, nossos músculos doem, mas depois andamos de bicicleta sem se diz do tecido bran-
co que as noivas tra-
qualquer problema e com grande prazer. A busca pelo conhecimento tem zem sobre a cabeça.
um prêmio ainda maior: a libertação. O homem, ao libertar-se das correntes,
sai da caverna e pode, enfim, ver o mundo como realmente é, as coisas
como realmente são.
Passarei agora, meu caro aluno, a falar um pouco sobre a Carta Sete.
Nessa carta, Platão faz um admirável exercício socrático de reconhecimento
da própria ignorância, valorização do diálogo entre os homens e denúncia
dos donos da verdade. Platão nos fala ainda sobre um ex-aluno seu, Di-
onísio, que era rei da cidade grega de Siracusa (na atual Sicília). Diz-nos o
filósofo que esse homem não tinha qualquer possibilidade de ser um ver-
dadeiro filósofo, simplesmente porque acreditava saber o suficiente sobre
Filosofia. Platão aponta o absurdo de uma tal pretensão: não é filósofo quem
simplesmente sabe de cor uma série de afirmações filosóficas ou é capaz de
falar sobre Filosofia. Ser filósofo é ter um modo de vida distinto: é preciso
pensar e agir de acordo com esse pensamento. Além disso, a Filosofia não
está em livro nenhum: a Filosofia acontece na alma daquele que se dedica
ao pensamento, e esse acontecimento se dá quando o homem, dialogando
com sinceridade e sem arrogância com os que lhe são semelhantes em
espírito, consegue acender dentro de si a chama da razão.

49
Introdução à Filosofia

Platão e Aristóteles dialogando (detalhe de A Escola de Atenas, de Rafael, 1510-11).

CONCLUSÃO
Para Platão, a Filosofia passa a existir quando se torna viva na alma
daqueles que dialogam entre si filosofica-mente. A Filosofia é essa pala-
vra viva na alma do homem que reflete, buscando saber quem é, em que
mundo vive e como deve viver. O homem que faz estes questionamentos
e encontra amigos para compartilhar essas questões está filosofando ver-
dadeiramente, pois a Filosofia está viva em sua alma. O filosofar não se
ocupa de ler muitos livros, falar sobre muitas coisas, tagarelar sobre as idéias
dos outros, mas refletir profundamente sobre si mesmo e a realidade junto
aos seus verdadeiros amigos.

50
Platão, seus diálogos e a “palavra viva na alma”
Aula

RESUMO

Os diálogos de Platão são muito famosos e continuam inspirando os


7
homens em sua busca pelo conhecimento. Na República, Platão escreve sua
famosa “Alegoria da Caverna”, em que faz uma metáfora da educação e
da ignorância. Nessa alegoria, Platão descreve os homens ignorantes como
prisioneiros acorrentados no fundo de uma caverna escura, não tendo acesso
senão aos reflexos dos objetos verdadeiros que passam atrás deles, diante
de uma fogueira. Na sua Carta Sete, Platão faz um admirável exercício
socrático de reconhecimento da própria ignorância, valorização do diálogo
Carta Sete
entre os homens e denúncia dos falsos donos da verdade. Nessa carta, Carta aberta de
Platão afirma que a Filosofia passa a existir quando se torna viva na alma Platão aos ateni-
daqueles que dialogam entre si filosoficamente. Não se trata o filosofar de enses.
ler muitos livros e falar sobre as idéias dos outros, mas de refletir sobre si
mesmo e a realidade junto aos verdadeiros amigos.

ATIVIDADES

1. Explique, com base em sua comprensão sobre esta aula, o que significam,
na “Alegoria da Caverna” de Platão, os homens acorrentados no fundo da
caverna.
2. Explique por qual razão uma falsa opinião nos “acorrenta”.

COMENTÁRIO SOBRE AS ATIVIDADES

Na atividade 1, você deverá dizer que os homens presos no fundo


da caverna são todos aqueles que são vítimas das falsas opiniões e da
ignorância. Na atividade 2, você deverá explicar que uma falsa opinião
nos acorrenta porque não nos deixa ver as coisas como realmente são,
da mesma forma que, se formos presos no porão de uma casa, não
mais poderemos ver a luz do sol.

PRÓXIMA AULA

Na próxima aula, falaremos sobre Aristóteles, um dos maiores gênios


que a humanidade já conheceu. Estudaremos brevemente a apresentação
feita por Aristóteles sobre os sofismas.

REFERÊNCIAS
Platão. Diálogos. Nova Cultural: São Paulo, 2005.

51
Aula

ARISTÓTELES E OS SOFISMAS 8
META
Apresentar Aristóteles, suas obras e seu estudo sobre os sofismas

OBJETIVOS
Ao final desta aula, o aluno deverá:
conhecer Aristóteles e destacar aspectos relevantes de sua obra;
listar suas principais obras;
conhecer o estudo aristotélico sobre os sofismas.

PRÉ-REQUISITOS
Conhecimento sobre os diálogos de Platão escritos na maturidade.

(Fonte: http://www.vidaslusofonas.pt).

(Fonte: http://www.ucm.es).
Introdução à Filosofia

INTRODUÇÃO

Aristóteles foi um grande amigo e discípulo de Platão. Tam-bém


chamado de Estagirita (por ser natural da cidade de Estagira, na Macedô-
nia), foi um dos maiores gênios que a humanidade já produziu. Realizou os
primeiros estudos sistemáticos de Lógica, Economia e Biologia. Fundamen-
tou a Ciência e difundiu, com suas obras, o amor pela atividade científica
entre gregos, romanos, muçulmanos e cristãos. Citemos algumas de suas
principais obras: o Organon ( coleção de textos aristotélicos sobre a Lógica),
a Metafísica ( princípios comuns a todas as coisas e fundamentos das
ciências), Política, Economia, Partes dos Animais, História dos Animais
Organon (escritos sobre Biologia), Física, Ética Nicomaquéia e Ética Eudêmica.
Coleção composta Essas obras têm se mantido influentes por milhares de anos.
pelas seguintes
obras: Da Inter-
pretação, As Cat-
egorias, As Refuta- As obras de Aristóteles desapareceram em determinada época
ções Sofísticas, Os no mundo antigo, devido às acusações feitas a este filosófo
Primeiros Analíti- sobre seu envolvimento na morte de Alexandre, o Grande. Suas
cos, Os Analíticos obras obras voltam a público através de Andrônico de Rhodes
Posteriores, A Di- (que organizou e publicou os textos em 50 a.C.). Os textos de
alética e A Retórica.
Aristóteles são, porém, suprimidos com a chegada dos cris-
tãos ao poder (os cristãos criam, então, que o pensamento de
Metafísica Aristóteles era contrário à fé), vindo, posteriormente, a cair
Esse nome foi dado nas mãos dos muçulmanos e ajudando-os em seu período de
por Andrônico de desenvolvimento intelectual. Com a retomada das cidades da
Rhodes aos textos
do Estagirita que Península Ibérica, por muito tempo controlada pelos mulçu-
não se encaixavam manos, tais bibliotecas caem nas mãos dos cristãos que vêem,
em nenhuma ciên- então, com outros olhos o pensamento do Estagirita, que passa
cia particular. também a inspirar o pensamento cristão.

ARISTÓTELES E OS SOFISMAS
Como dissemos, Aristóteles foi o primeiro homem a es-crever trata-
dos sistemáticos de Lógica. Para ele, a Lógi-ca deve ser estudada antes de
qualquer ciência, pois nenhuma delas pode ser empreendida sem ela. A
Lógica é o conjunto das regras segundo as quais pensamos, adequadamente,
as regras do bem pensar. Se, por um lado, pensamos naturalmente, visto
sermos seres racionais, por outro lado, não necessariamente pensamos
do modo adequado. Desconhecendo as regras do bem pensar, podemos
cometer erros e pensar de modo pouco eficiente e equivocado. Da mesma
forma que um atleta só terá bom desempenho se conhecer as regras do

54
Aristóteles e os sofismas
Aula

esporte que pratica e treinar adequadamente, assim também só poderemos


pensar direito se conhecermos as regras da Lógica e nos exercitarmos no
pensamento.
8
Aristóteles escreveu os primeiros tratados
sistemáticos de Lógica.

Aristóteles, em sua obra Refutações Sofísticas, oferece-nos vários


exemplos de casos em que nos equivocamos diante de argumentos que,
embora pareçam verdadeiros, são falsos. É exatamente isso um sofisma: um
argumento falso que aparenta ser verdadeiro. Aristóteles oferece nos uma
classificação dos tipos de sofismas. Vejamos os mais comuns:
1. Ad hominem: esta é uma expressão latina que significa “ao homem”. Esse
tipo de sofisma ocorre quando, numa argumentação, atacamos o interlocu-
tor, em vez de criticarmos suas palavras. Por exemplo: um político acusa o
outro de fraude e o acusado, em vez de negar a acusação, diz: “Quem me
acusa é um mau-caráter!” Esse é simplesmente um modo de mudar o tema
da discussão e fugir do assunto, pois o acusado não responde à acusação,
mas passa a atacar o caráter do acusador. Usamos esse tipo de sofisma no
dia-a-dia quando, por exemplo, alguém nos acusa, em casa, de termos de-
ixado uma toalha no chão e gritamos: “Pare de
me irritar!”, como se quem nos advertisse fizesse
tal coisa para nos aborrecer e não para ter uma
casa arrumada!
2. Apelo à ignorância: é a afirmação de que é
verdadeiro algo que não se provou ser falso.
Quando uma pessoa acusa outra de algo, cabe
ao acusador apontar as provas que determinam
a culpabilidade do acusado, e não o contrário.
Por exemplo: alguém é acusado de um crime,
mas não pode provar que não esteve na cena do
crime, não é necessariamente culpado, pois a falta
de provas de que não estava na cena do crime
não significa que ele estava na cena do crime. É
preciso que o acusador prove que ele estava no
local do crime e o praticou. Vejamos a razão disso
num caso mais simples: suponha que alguém
acredite em fadas; essa pessoa não poderá, para
provar que as fadas existem, dizer que a prova
disso é que ninguém conseguiu provar que elas
não existem.
3. Argumento de autoridade: ocorre quando uma Aristóteles ensinando Alexandre, J L G Ferris, 1895
afirmação é defendida, não por uma argumenta- (Fonte: http: //www.mlahanas.de).

55
Introdução à Filosofia

ção ou explicação, mas simplesmente porque uma pessoa com autoridade


disse que é assim. Por exemplo: o professor recomenda o estudo dos so-
fismas e não explica a razão por que é útil ou bom estudar os sofismas; um
pai diz que o filho tem de fazer algo (digamos, cortar os cabelos), mas não
explica o porquê de tal pedido, apenas exige que tal ato seja feito porque ele
é o pai e ponto final. Essa é uma forma equivocada de se comunicar, pois
perde a razão quem não pode oferecer qualquer explicação para sustentar
o que diz.
4. Non sequitur: expressão latina que significa “não se segue”. Ocorre
quando nossa argumentação, embora sonora e bela, não faz qualquer sen-
tido. Por exemplo: “O Flamengo ganhará o campeonato nacional, porque
Deus é Grande”: o fato de Deus ser grande não é garantia da vitória do
Flamengo, porque o torcedor de qualquer time poderia dizer a mesma coisa.
Ou ainda: “O Brasil vai progredir porque Deus é brasileiro”- se Deus é
Deus, então ele é Deus para todos os homens e não vai beneficiar uns para
prejudicar outros!
5. Exclusão do meio-termo ou falsa dicotomia: esse sofisma ocorre quando
ignoramos as possibilidades intermediárias. Por exemplo, o lema da ditadura
no nosso País, na época do presidente Médici, “Brasil, ame-o ou deixe-o”,
queria dizer, ame o Brasil e ache tudo certo, sem reclamar das coisas er-
radas, ou senão vá embora. Essa argumentação é perigosa e terrível, pois
liga o ato de amar ao calar-se diante dos erros. Exemplo do dia-a-dia: o
marido chega bêbado a sua casa e diz: “Eu sou assim, ou me aceite como
sou ou me deixe!”
6. Post hoc, ergo propter hoc: expressão latina que significa “aconteceu
depois de algo, logo, foi causado por este algo”. É graças a esse modo de
pensar que as superstições se estabelecem. Por exemplo: Levanto da cama,
tropeço num sapato, bato o rosto no chão e digo “É porque levantei com
o pé esquerdo!”; ignoro que a verdadeira razão do meu acidente é o meu
próprio relaxamento. Ou ainda: um gato preto passa na minha frente e,
depois disso, bato-me num poste e penso: “É culpa do gato”, e esqueço
que a culpa é do meu próprio medo ou da minha desatenção ao caminhar.
7. Palavras equívocas: quando usamos as palavras para “aliviar a barra” e
enganar os ouvintes, para não parecermos estar fazendo algo ruim que, na
verdade, estamos fazendo. Por exemplo: uma gata pariu seus filhotes e o
dono, por não querer cuidar deles ou por crueldade, diz: “Vou pô-los para
dormir!”, em vez de dizer: “Vou matá-los!”

56
Aristóteles e os sofismas
Aula

CONCLUSÃO

O estudo desses sofismas serve nos para que não seja-mos enganados
8
por falsos argumentos. Quando somos enganados, somos usados e não
podemos realizar nossa vontade. Se compramos um carro, e o vendedor nos
engana, não realizamos nossa vontade de ter um bom meio de transporte,
além de o vendedor nos deixar no prejuízo. E isso vale para muitas coisas
na vida humana: da mesma forma que, entre os animais, uns armam ciladas
para os outros, e os que caem nas ciladas são devorados, assim também,
entre os homens, uns tentam enganar os outros através da linguagem e das
falsas argumentações; aqueles que são capturados pelos falsos argumentos
são escravizados ou usados e não podem mais ser felizes, pois como pode
ser feliz aquele cuja vontade se submete, por mentira e engano, à vontade
de um outro?

RESUMO

Aristóteles, um dos maiores gênios que a humanidade já conheceu,


foi um grande amigo e aluno de Platão. Realizou os primeiros estudos
sistemáticos de Lógica, Economia e Biologia. Fundamentou a ciência e
difundiu, com suas obras, o amor pela atividade científica. Para Aristóteles,
a Lógica é o conjunto das regras do bem pensar. Aristóteles, em sua obra
Refutações Sofísticas, oferece-nos vários exemplos de casos em que nos
equivocamos diante de argumentos que, embora pareçam verdadeiros, são
falsos. Alguns dos tipos de sofismas que Aristóteles menciona são (1) Ad
hominem, (2) Apelo à ignorância, (3) Argumento de autoridade, (3) Non
sequitur, (4) Falsa dicotomia, (5) Post hoc, ergo propter hoc (6) Palavras
equívocas. O estudo desses sofismas nos serve para que não sejamos en-
ganados por falsos raciocínios.

ATIVIDADES
1. Dê um exemplo (procure nos jornais, nas revistas, na televisão ou em
sua própria vida) de cada um dos sofismas.
2. Explique por que razão crer numa falsa argumentação nos é prejudicial.

57
Introdução à Filosofia

COMENTÁRIO SOBRE AS ATIVIDADES

Na atividade 1, partindo das explicações dos textos, você deve procurar


esses exemplos e listá-los. Você pode também procurar nos “sites”
da internet exemplos de sofismas. Na atividade 2, você deverá dizer,
com base em seu entendimento sobre esta aula, por que um falso
argumento nos prejudica.

PRÓXIMA AULA
Na próxima aula, conheceremos algumas idéias da Filosofia Cínica,
através de um de seus maiores nomes: Diógenes de Sínope, o “Cão”. E
poderemos responder a perguntas tais, como: por que o Cinismo é uma
Filosofia socrática? Em que sentido o Cinismo ultrapassa o pensamento
do próprio Sócrates?

Estátua de Aristóteles no Museu de História Natural


de Oxford, Inglaterra (Fonte: http://n.i.uol.com.br).

REFERÊNCIAS
Aristotle. Sophistical refutations. Loeb. Harvard University Press, 2005.

58
Aula

DIÓGENES DE SÍNOPE
9
E O CINISMO

META
Apresentar o Cinismo e algumas idéias de Diógenes, o Cínico

OBJETIVOS
Ao final desta aula, o aluno deverá:
conhecer o Cinismo filosófico;
compreender o método educacional dos cínicos;
saber sobre Diógenes de Sínope e seu caráter crítico;e
conhecer a crítica de Diógenes à crença de que os bens materiais e o
poder trazem felicidade a quem os possui.

PRÉ-REQUISITOS
Conhecimentos sobre Aristóteles e suas idéias a respeito dos sofismas.
Introdução à Filosofia

INTRODUÇÃO

Você já deve ter ouvido falar de Diógenes, aquele que, à luz do dia,
Irreverência com uma lanterna acesa, anunciou pelas ruas estar buscando um verdadeiro
Os cínicos são famo- homem. Mas, afinal, o que fez esse homem para ser ainda lembrado nos dias
sos por seus ditos ir- de hoje, tendo vivido há uns 2.400 anos? Em primeiro lugar, saiba que ele
reverentes. Por exem- é um filósofo cínico. E o que significa isso? Se você consultar o dicionário,
plo: Diógenes, ao ver verá como significado de “cínico” algo como “descarado, fingido”. Assim,
guardas levando um
ladrão que havia rou-
“cínico”, nos nossos dias, é alguém dissimulado ou insolente. Porém, os
bado um vaso, disse: filósofos da escola filosófica cínica da Antiguidade, com certeza, não eram
“Lá vão os grandes dissimulados, pois se caracterizavam por dizer o que lhes passava pela cabeça
ladrões levando o sem papas na língua. A irreverência, porém, era-lhes uma forte característica.
pequeno ladrão!” Assim, os cínicos deram um passo além de Sócrates, pois esse se contentava
com a ironia, ao abordar seus interlocutores, na intenção de fazê-los falar
mais fácil e confiantemente, para assim poder refutá-los.

(Fonte: http://www.bp2.blogger.com).

60
Diógenes de sínope e o cinismo
Aula

DIÓGENES DE SÍNOPE 9
É-se irônico quando o sentido real do que se diz é o con-trário do lit-
eral. Sócrates era irônico quando, ao tratar com alguém que se considerava
sábio, dizia querer ouvir suas “sábias palavras” sobre um determinado tema Diógenes
para então, através do diálogo, mostrar ao que se supunha sábio que ele não
Filósofo cínico
sabia o que julgava saber. Já um cínico vai direto ao ponto em suas críticas
grego nascido em
das opiniões e modos de ser dos demais: eles são realmente desaforados, Sinope (413/323
grosseiros, atrevidos em suas críticas. Podemos dizer que essa irreverência a.C.). Também con-
é, para eles, um princípio educacional, um modo de fazer os ouvintes gravar hecido como Dió-
em de fato a crítica e refletir sobre ela, o que raramente acontece quando genes o Cão, é uma
nos limitamos a conversar de modo “civilizado”. das figuras mais
significativas e um
De fato, os cínicos perceberam rapidamente que nem sempre consegui-
símbolo da história
mos progresso com o diálogo, especialmente quando tratamos com pessoas do cinismo.
muito teimosas, que se acham sabedoras do que não sabem (arrogantes)
e pessoas infantis (imbecis). Assim, para os cínicos, o melhor modo de
se chegar ao coração da maioria das pessoas é através de uma boa tirada,
especialmente em público. E nós todos achamos engraçadas essas tiradas,
pois, em diversos sentidos, somos também imbecis, infantis, arrogantes e
teimosos, tal qual grande parte da humanidade. Segue aqui um exemplo
disso: certa vez, Diógenes foi à casa de um homem rico que insistentemente
lhe mostrava seus ricos objetos e dizia a Diógenes que esse não cuspisse em
sua casa, por serem caríssimos os objetos que lá estavam. Em determinado
momento, Diógenes juntou uma boa quantidade de saliva em sua boca e
deu uma bela escarrada no rosto do grego rico; esse ficou estupefato, per-
guntando a Diógenes porque lhe fizera tal ultraje e obteve como resposta
que seu rosto foi o lugar mais sujo que Diógenes encontrou naquela casa.
Trocando em miúdos: Diógenes poderia ter feito um belo diálogo com o
grego rico para mostrar-lhe o quanto era tola a ostentação; quem exibe
Ostentação
seus objetos e pensa estar exibindo a si mesmo é um tolo, pois crê serem
suas as qualidades que, na verdade, são dos objetos; com essa atitude ele Ostentar é exibir-se,
valoriza mais as coisas que a si mesmo. Diógenes poderia ter dito isso tudo, mostrar-se em razão
mas fez melhor: sua cusparada como resposta fez mais efeito com menos de riqueza, beleza
palavras. Após ouvir um belo discurso contra a ostentação, você pode even- física ou outra quali-
tualmente esquecer (e em geral esquece) as razões pelas quais não se deve dade assim.
ostentar, mas como esquecer o essencial, quer dizer, o que há de ridículo e
irracional na ostentação, depois de se ouvir sobre a cusparada de Diógenes? Antístenes
O Cinismo teve como precursor Antístenes, amigo de Sócrates, e é
uma escola socrática de pensamento. O primeiro dos cínicos foi Diógenes Antístenes viveu en-
e muitos outros filósofos cínicos houve, por quase mil anos, até o movi- tre 444 e 365 a.C. Foi
mento ser proibido por forças conservadoras que não apoiavam a liberdade grande amigo tanto
de Sócrates quanto
de expressão e, conseqüentemente, o próprio Cinismo. O termo “cínico”
de Xenofonte.
vem da palavra grega kuón, que significa “cão”, provavelmente por causa

61
Introdução à Filosofia

da identificação de Diógenes com os cães, sobre o que falaremos adiante.


Diógenes nasceu há cerca de dois mil e quatrocentos anos, na Gré-
Diógenes Laércio
cia, na cidade grega de Sínope. Segundo as notícias que nos chegaram da
Antigüidade, era filho de um banqueiro de nome Hicésias, e se viu, jun-
Biógrafo dos filóso- tamente com seu pai, envolvido num escândalo financeiro. Seu pai era o
fos gregos ilustres, administrador do banco público de Sínope e foi encarregado da tarefa de
natural da Cilícia retirar moeda falsa de circulação. Entretanto, em vez disso, Hicésias retirou
(225-300 d.C.). a moeda verdadeira como falsa, sendo descoberto e desaparecendo de
cena. Depois isso, Diógenes foi banido de Sínope e para aí jamais voltou,
tornando-se, desde então, um filósofo andarilho. Daí vem a missão à qual
Diógenes se propõe: retirar a falsa moeda de circulação; quer dizer, através
de uma atitude rigorosamente crítica, mostrar aos homens a falsidade de
afirmações morais que a maioria toma por verdadeiras, por exemplo, que a
posse de bens materiais torna o ser humano feliz, que o poder ou o contato
com os poderosos traz felicidade.
Segundo Diógenes Laércio, o alexandrino que escreveu a biografia
dos filósofos célebres da Antigüidade, Diógenes teria, ao chegar a Atenas,
conhecido Antístenes. E Diógenes teria conquistado a amizade de An-
tístenes (que não queria discípulo nenhum) por insistência, ainda que este o
repelisse a golpes de bastão, dizendo: “Bate, pois não encontrarás madeira
dura o bastante com a qual me afastes, na medida em que eu pensar estares
dizendo algo que eu queira ouvir”. Hoje, porém, sabe-se que Diógenes não
conheceu de fato Antístenes (Diógenes chegou a Atenas depois da morte
deste), mas é certo que Antístenes antecipou (sendo por isso considerado o
precursor do cinismo), como discípulo extremado de Sócrates, várias idéias
que seriam desenvolvidas por Diógenes e pelos demais cínicos.
O Cinismo teve Diógenes de Sínope como seu fundador, e isso se deu,
seja pela influência dos textos de Xenofonte ou Antístenes sobre o pensa-
mento de Sócrates, seja por uma inspiração própria original que encontrou
eco e sustentação nas idéias socráticas. Passemos imediatamente agora às
idéias de Diógenes e de alguns dos cínicos quanto ao modo de ser que o
homem deve seguir para ser feliz.
Já mencionamos anteriormente a identificação de Diógenes com os
cães: isto se deve ao modo de vida próprio dos cínicos. Seguidores de
Sócrates, decidem levar vida absolutamente simples, pois querem mostrar
aos homens que os bens materiais não trazem a felicidade. E o modelo
máximo que o homem pode aspirar é o do animal, pois esse precisa de muito
pouco, estando, portanto, mais próximo de Deus que, por ser perfeito, não
necessita de nada. Assim, Diógenes terá o mínimo possível de bens: um
manto, com o qual se vestirá, um bastão, no qual se apoiará na velhice para
caminhar, e um alforje, no qual colocará os alimentos simples com os quais
vive (frutas secas, pão), uma caneca e um prato. Este prato e esta caneca
Diógenes eventualmente abandonará: estando um dia a ponto de pegar

62
Diógenes de sínope e o cinismo
Aula

Diógenes, seu barril, sua lanterna e os cães (Fonte: http://www.filosofix.br9.biz).

água numa fonte, vê um garoto bebendo água com as mãos em concha, e


joga fora sua caneca, considerando-a supérflua; estando outro dia a ponto
de encher seu prato com lentilhas, vê um garoto comendo-as sobre um
pedaço de pão, e atira fora também o prato pela mesma razão da caneca.
Além de mostrar que os bens materiais são supérfluos para a felicidade,
ele demonstra que também o poder o é. Vai além: mostra que o poder
(tanto ele mesmo quanto a convivência com os poderosos) pode retirar
do homem toda a sua liberdade. Assim, reza a lenda, estando um dia Dió-
genes lavando alfaces numa fonte para ganhar uns trocados, passa por ele
Platão e diz “Se honrasses o tirano Dionísio, não terias que lavar alfaces”;
ao que Diógenes respondeu: “Se eu não lavasse alfaces, eu teria de honrar
Dioniso”, quer dizer: mais vale ter liberdade, dignidade e uma ocupação
simples que viver como escravo de um homem poderoso para obter favores.
Quanto a isso, uma vez Alexandre, o Grande, estava na mesma cidade onde
estava Diógenes e resolveu ir vê-lo. Ao chegar junto de Diógenes, lançou
sua sombra sobre o “Cão” que estava estendido no chão tomando banho
de sol. Então Alexandre perguntou: “Diógenes, diz-me o que queres e te
darei”; Diógenes respondeu: “Sai da frente do Sol”, quer dizer: “Não quero
nada de ti, pois as coisas que tu me deres me custarão um alto preço, a
liberdade; deixa-me simplesmente tomar meu banho de sol com dignidade
e sem dever nada a ninguém!”

63
Introdução à Filosofia

Indagaram uma vez a Diógenes por qual razão ele chamava


a si próprio de cão, ao que ele respondeu: “Porque rosno
para os que me aborrecem e abano a cauda para os que me
agradam”. O cão torna-se modelo para o homem na medida
em que não necessita de muitas coisas, não busca nada de
supérfluo e está plenamente feliz com o essencial para a vida:
água, comida, um lugar para dormir, amigos e sexo. Assim,
para os cínicos, o homem, em sua busca pela sabedoria de
vida, deve tornar-se “cão” na medida do possível.

Procuro um homem verdadeiro!

CONCLUSÃO

Os cínicos propõem a si mesmos a missão de mostrar aos homens que


os bens materiais e o poder não trazem a felicidade, vivendo felizes sem
eles. Seguidores de Sócrates, tiveram eles mesmos muitos admiradores e
seguidores. Na Antigüidade, tiveram como seguidores os estóicos, sobre
os quais falaremos na próxima aula. Para concluir, mais uma de Diógenes.
Um dia ele andava em plena luz do dia com uma lanterna acesa gritando:
“Procuro um homem! Procuro um homem!”, quer dizer, um homem ver-
dadeiro, que não fosse escravo nem de bens materiais nem do poder, pois,
para Diógenes e os demais cínicos, o que caracteriza o homem e faz com

64
Diógenes de sínope e o cinismo
Aula

que ele realize sua natureza é a liberdade de ser aquilo que se é plenamente,
sem temer as opiniões alheias, sem ocultar suas próprias vontades e opiniões
por medo dos outros. Por isso, antes de mais nada, para saber se alguém
9
poderia realmente ser filósofo, Diógenes o encarregava de alguma missão
ridícula (por exemplo, carregar um grande peixe ou uma panela cheia de
lentilhas fumegantes pelas ruas de um bairro luxuoso): se o aspirante à
Filosofia ficasse com vergonha e se recusasse, era logo dispensado. Como
pode dedicar-se à Filosofia, à crítica e a uma vida de acordo com o pensa-
mento alguém que teme as opiniões dos outros, numa questão tão simples
quanto carregar um peixe ou uma panela?

RESUMO

“Cínico”, nos nossos dias, é alguém dissimulado ou insolente. Os


cínicos, na Antiguidade, não eram dissimulados, pois diziam, de modo ir-
reverente, o que lhes passava pela cabeça. O cinismo, que teve como precur-
sor Antístenes, um amigo de Sócrates, é uma filosofia socrática. Diógenes,
o primeiro dos cínicos, nasceu há cerca de dois mil e quatrocentos anos,
na Grécia, na cidade grega de Sínope. Seguidores de Sócrates, os cínicos
decidem levar vida absolutamente simples, pois querem mostrar aos ho-
mens que os bens materiais e o poder não trazem a felicidade. O modelo
máximo a que o homem pode aspirar é o do animal, pois esse precisa de
muito pouco, estando, portanto, mais próximo de Deus.

ATIVIDADES

1. Explique, com base em seu entendimento sobre esta aula, por qual razão
é ridícula a ostentação de riquezas.
2. Explique por que, para os cínicos, o candidato a filósofo não deve temer
a opinião dos outros.

COMENTÁRIO SOBRE AS ATIVIDADES


Na atividade 1, partindo do que foi dito nesta aula, você deve dizer
que a ostentação é ridícula, pois quem ostenta dá mais valor à coisa
material que a si mesmo. Na atividade 2, você deverá relatar, que um
homem preocupado com as opiniões alheias deixa de ser ele mesmo
por causa delas e, por isso, não pode ser filósofo, pois este tem como
missão justamente ser ele mesmo e seguir seu próprio pensamento.

65
Introdução à Filosofia

PRÓXIMA AULA

Na próxima aula, falaremos sobre o Estoicismo: que filosofias se


combinam na sua formação? Por que o Estoicismo pode formar homens
corajosos e perseverantes?

REFERÊNCIAS

Diógenes Laércio. Vidas e doutrinas dos filósofos ilustres. Brasília:


UnB, 1997.

66
Aula
O ESTOICISMO
10
META
Apresentar os fundamentos do Estoicismo

OBJETIVOS
Ao final desta aula, o aluno deverá:
entender os fundamentos do Estoicismo a partir de Heráclito e de Sócrates.

PRÉ-REQUISITOS
Conhecimentos sobre a escola Cínica

Sêneca (4 a.C. – 65 d.C.) foi um grande político romano e filósofo estóico.


Introdução à Filosofia

INTRODUÇÃO

N esta aula, falaremos sobre o Estoicismo, filoso-fia socrática que man-


tém, nos dias de hoje, tanto a força de suas idéias, quanto uma excelente
reputação. Se alguém é chamado de “estóico”, sabemos que é uma pessoa
capaz de resistir e superar as adversidades, uma pessoa forte e determinada.
Mas, o que a filosofia dos estóicos oferece para a criação de um homem assim
Zenão de Cicio forte? Ora, o Estoicismo surge a partir da confluência de três filosofias: o
É o fundador da
pensamento heraclítico, o pensamento de Sócrates e o Cinismo. Os estóicos
Escola Estóica. vêem-se como sucessores dos cínicos e de fato o são, na medida em que
Viveu entre 333 e desenvolvem muitos aspectos da crítica cínica aos costumes e enfatizam o
264 a.C. caráter prático da Filosofia. De Heráclito retomam a noção do logos, bem
como o caráter crítico de seu pensamento. Vêem Sócrates como o exemplo
máximo em que se realiza esta filosofia voltada para a construção de um
homem integralmente forte e senhor de si; além disso, desenvolvem muitos
temas do pensamento socrático, como, por exemplo, a idéia da piedade.

Estoicismo e epicurismo. Pintura de Luca Giordano


(Fonte: http://discursodirecto.podomatic.com).

68
O estoicismo
Aula

O ESTOICISMO

Não há lugar, nesta disciplina, para um estudo aprofundado sobre


10
as raízes do Estoicismo, mas desejamos apresen-tar-lhes pelo menos um
caminho que una os estóicos àqueles que os inspiraram. Assim, relacionar-
emos brevemente Heráclito e Sócrates ao Estoicismo, mostrando que, nos
dois primeiros, encontramos os fundamentos da doutrina estóica.
Consideraremos aqui dois aforismos de Heráclito. O primeiro diz o
seguinte:
“A água do mar é a mais pura e a mais poluída; para os peixes é potável
e salutar, mas para os homens é impotável e deletéria”.
O fragmento parece indicar que uma mesma coisa pode ter efeitos dife-
rentes sobre diferentes coisas. Assim, a água do mar é boa para os peixes e
má para os homens. Assim, poderemos dizer que a água do mar não é por
si mesma boa nem má, pois as mesmas coisas podem ser boas e más para
diferentes situações ou pessoas. Poderemos estender isso às demais coisas
em diferentes sentidos. Por exemplo, a água do mar é boa para o homem,
na medida em que o homem se serve dela para navegar e pescar: contudo,
é má se for bebida pelo homem. Um veneno é mortal para o homem em
determinada quantidade, mas salva sua vida em outra. Essa generalização
parece ser confirmada por outro aforismo de Heráclito:

(Fonte: http://www.nueva-acropolis.es).

“Para a Divindade, tudo é belo e bom e justo, mas os homens supuseram


umas coisas injustas, outras justas”.
Esse aforismo pode ser assim interpretado: para a Divindade, isto é,
para o Lógos que tudo governa e através do qual tudo ocorre, tudo é belo,
bom e justo, pois tudo ocorre de acordo com sua lei. Os homens, porém,
não têm uma compreensão objetiva das coisas; estão imersos no fluxo das
mudanças e pensam as coisas a partir de determinadas relações. A existência

69
Introdução à Filosofia

humana só é possível a partir de determinadas relações, e os seres humanos


mantêm-se vivos graças a elas. Quer dizer, sem o sol, não há seres humanos;
sem a água, as pessoas não sobrevivem; sem a terra, não há vida, e assim
por diante. Mas aí os seres humanos se equivocam. Ao perceberem que
certas coisas, em determinadas relações, promovem sua existência, e outras,
também em determinadas relações, ameaçam-na, julgam umas boas e outras
más. Porém, o mesmo sol que promove sua existência pode matá-los de
insolação; a mesma água que promove sua existência pode matá-los numa
inundação; a mesma terra que promove sua existência pode matá-los num
terremoto. Assim, por si mesmas, estas coisas não são nem boas nem más,
mas tornam-se boas ou más de acordo com sua relação com os homens.
O bem e o mal, tomados na perspectiva humana, só existem em relação a
esses mesmos homens. A ética e a moral só fazem sentido entre os homens.
Voltemo-nos agora para Sócrates. No diálogo Eutidemo de Platão,
Epicteto Sócrates observa que os bens reconhecidos pelos mortais transformam se
(55-135 d.C.), em males se administrados por imprudentes. Apresentarei o argumento de
filósofo grego, foi Sócrates presente no Eutidemo de um modo que considero didático. Pen-
outro destacado es- sem, leitores, numa lista de bens. Suponho que nela incluirão coisas, como
tóico.
a riqueza, a saúde, a beleza, o poder, um elevado status social, o prazer, a
vida. Mas considerem o seguinte: a riqueza, na mão de um tolo, torna-se
inútil ou destrutiva e, portanto, se pode ser má, não é em si mesma nem
boa nem má. A saúde também nem sempre é um bem, já que seu contrário,
a doença, muitas vezes pode levar o homem a valorizar sua própria vida
e tomar ciência de si mesmo. A beleza já se mostrou um mal para muitos,
e seu contrário, a feiúra, já foi um bem para muitos (pensem nos comedi-
antes que tiram partido de suas caras engraçadas). O poder já foi causa de
ruína e destruição para muitos. Um elevado status social freqüentemente
serve para tornar o homem arrogante e cercá-lo de falsos amigos. O prazer
também nem sempre é um bem, pois há muitos prazeres que escravizam
e destroem os homens. Seu contrário, a dor, nem sempre é um mal, pois
muitas vezes é meio para se obter algo maior (como o atleta que se sub-
mete a um treinamento extenuante para melhorar seu preparo). E a vida
também não é em si mesma um bem ou um mal, pois muitas vezes a morte
torna-se preferível à vida. Por exemplo, quando, para continuarmos vivos,
tivermos de abandonar nossos princípios e trair aqueles que amamos ou
quando alguém se encontra numa situação de doença terminal em que não
há nenhuma perspectiva, senão o sofrimento sem razão de ser.

70
O estoicismo
Aula

10

Marco Aurélio Antonino (121-180 d.C.) foi imperador romano e filósofo estóico

CONCLUSÃO

Existe, afinal, alguma coisa que seja indiscutivelmente um bem para


o ser humano? Há sim: a sabedoria (sophía). So-mente a sabedoria lhe
propicia a verdadeira boa fortuna, que consiste em estar ao abrigo da
fortuna, da contingência, porque somente ela transforma o que acontece
aos mortais em bens. A sabedoria possibilita ao homem bem usufruir sua
saúde e ser perseverante na doença, fazer bom uso tanto da beleza física,
quanto da feiúra. A sabedoria possibilita ao homem não ver no status social
um mérito ou demérito seu ou dos outros. A sabedoria torna possível ao
homem usufruir sadiamente o prazer e suportar a dor quando for preciso.
Enfim, a sabedoria permite ao homem bem viver e, quando for preciso,
bem morrer. E é na busca dessa sabedoria que os estóicos se concentram.

RESUMO
Três filosofias combinam se na formação do estoicismo: o pensamento
Heraclítico, o pensamento de Sócrates e o Cinismo. São de fato seguidores
dos cínicos na medida em que desenvolvem muitos aspectos da crítica cínica
aos costumes e enfatizam o caráter prático da Filosofia. De Heráclito reto-
mam a noção do logos, bem como o caráter crítico de seu pensamento. Vêem
Sócrates como o exemplo máximo em que se realiza esta filosofia voltada
para a construção de um homem sábio, integralmente forte e senhor de si.

71
Introdução à Filosofia

ATIVIDADE

1. Interprete, com suas próprias palavras, o seguinte aforismo de Heráclito:


A água do mar é a mais pura e a mais poluída; para os peixes é potável e
salutar, mas para os homens é impotável e deletéria.
2. Dê exemplos de coisas que, embora pareçam boas por si mesmas, não
o são.

COMENTÁRIO SOBRE AS ATIVIDADES


Na atividade 1, partindo do que foi dito nesta aula, você deve interpretar
o aforismo de Heráclito como significando que algumas coisas são
boas ou más, dependendo daquilo com que se relaciona. Na atividade
2, você deve enumerar exemplos de coisas que não são nem boas nem
más por si mesmas. Por exemplo: um carro pode ser uma boa coisa
se bem utilizado, mas se dirigido por um irresponsável, pode causar
estragos, tanto para o condutor, quanto para os outros.

PRÓXIMA AULA

Na Aula 11, apresentaremos alguns aspectos da Filosofia na Idade


Média.

REFERÊNCIAS

Sêneca. Sobre a brevidade da vida. Nova Alexandria: São Paulo, 1993.


Marco AURÉLIO. Meditações. Iluminuras: São Paulo,1995.

72
Introdução à Filosofia

Cícero Cunha Bezerra

São Cristóvão/SE
2010
Aula
A FILOSOFIA E A FÉ
11
META
Apresentar a noção de Filosofia Medieval.

OBJETIVOS
Ao final desta aula, o aluno deverá:
definir as fontes do pensamento medieval;
caracterizar as principais questões da Filosofia Medieval; e
analisar, à luz do pensamento agostiniano, alguns problemas filosóficos da Idade
Média.

PRÉ-REQUISITOS
O aluno deverá revisar o assunto relativo ao periodo helenístico.

A Criação, Michelangelo, Capela Cistina (1511) (Fonte: http://upload.wikimedia.org).


Introdução à Filosofia

INTRODUÇÃO

Olá, caro aluno. Seja bem-vindo ao nosso décimo pri-meiro encontro.


Na aula de hoje, abordaremos sobre a chamada Idade Média, período o
qual muitas coisas foram ditas e, também, mal ditas. O período das “trevas”,
das bruxas, dos dragões, das cruzadas, das pestes, enfim, a longa noite de
escuridão e males tão bem representados e explorados nos cinemas, livros
de magia, esoterismo, etc. Sem dúvida algumas destas visões, mais que pre-
conceituosas, constituem uma prova concreta da necessidade de se entender
o que de fato se chama medievo.
Este será o objetivo de nossa aula, isto é, compreender o significado
da expressão Idade Média. Entender, por exemplo, o que queremos dizer
quando afirmamos indignados: “que horror! Regressamos à Idade média!”

A caça às bruxas foi um fenômeno, ao contrário do que se pensa, tipicamente moderno. Teve iní-
cio no final do século XIV e se estendeu até o século XVIII. Inquisição. (Fonte: http://louletania.
blogs.sapo.pt).

76
A filosofia e a fé
Aula

A FILOSOFIA E FÉ 11
Está claro que a denominação “Idade Média” comporta uma valo-
ração explicitamente negativa. Não é de se es-tranhar que esta definição,
injustamente aplicada a um período de quase dez séculos (476 d. C a 1453
d.C), nasceu exatamente numa época que se denominou Renascimento e,
posteriormente, Luzes ou Iluminismo.
Giovanni Andréa de Bussi (1469 d.C) foi um dos que caracterizou
o período que vai do fim do Império romano até o seu tempo de media
tempestas (Tempo médio). Em geral, esta visão negativa, consagrada no
século XVII, esteve marcada por um desprezo geral pelo passado. O latim,
língua oficial da Igreja, a literatura, a arte gótica e a escolástica, com suas
reflexões sobre Deus, a fé e o mundo, foram desprezados como inferiores Martinho Lutero
frente ao ideal greco-romano defendido pelos chamados renascentistas.
Dito de outro modo, nada parecia possuir valor aos olhos da nova época Monge agostiniano
que se apresentava. Doutor em Teolo-
Um exemplo marcante de crítica contra o pensamento teológico e gia. Depois de aban-
filosófico medieval é encontrado em Martinho Lutero (1483 d.C) que via donar, por decepção,
a Doutrina católica,
na aproximação do pensamento cristão ao paganismo (particularmente tornou-se um dos
das filosofias de Platão e Aristóteles), isto é, no esforço dos pensadores mais acirrados críti-
medievais em demonstrar, com razões, a existência de Deus, um desvio dos cos da junção entre
verdadeiros princípios do cristianismo. A valorização da fé sobrenatural os valores cristãos
deveria sobrepor a especulação racional das Escrituras. e a Filosofia pagã.
Outros pensadores como Erasmo de Roterdã (1466 d.C) também Fundador da Re-
forma Protestante
contribuíram para o fortalecimento desta visão negativa da denominada foi excomungado
“Idade Média”. Para Erasmo, o medievo era símbolo de degradação moral, pela Igreja católica.
religiosa, política, literária e artística. Nesta mesma perspectiva, filósofos (1483-1546).
como Diderot, Condillac e Voltaire também se posicionaram contrários à
filosofia desenvolvida até então. Aqui nos interessa ressaltar somente a raiz
da expressão “Idade Média” como fruto de um julgamento, humanista-
renascentista, frente a uma visão de mundo (weltanchaung) e, portanto, em
oposição a um modo próprio de entender o real e o conhecimento. Visão
de mundo, erroneamente entendida como cristã, dado que reduzir a “Idade
Média” ao pensamento ocidental-cristão é um erro absurdo.
Não podemos esquecer-nos dos conhecimentos provenientes da
China, das reflexões islâmicas e judaicas. Com isso, queremos dizer que a
chamada Filosofia cristã é somente um recorte, efetivamente o mais vasto
com conseqüências políticas, éticas e filosóficas para o Ocidente, mas não
o único. Para citar somente um exemplo, basta lembrarmos que foi graças
aos árabes que o Ocidente (medieval e moderno) conheceu obras funda-
mentais de pensadores como Aristóteles. Um dado de suma importância
para qualquer análise das conquistas e realizações desenvolvidas na “Idade
Média” é saber que o período medieval, além da cultura ocidental latina,

77
Introdução à Filosofia

estava formado pelo Oriente grego (Bizâncio), Asiático (China e Índia) e


muçulmano.
Neste sentido, além das escolas de Paris que no século XII converteram
esta cidade no centro do mundo civilizado, a China introduziu o papel, a
pólvora e a bússola. Três invenções determinantes na história humana.
Os árabes (Al-andalus) transformaram, no século X, a chamada Península
Ibérica na civilização mais avançada do Ocidente.
A criação de instrumentos de navegação como as tábuas astronômicas
baseadas em modelos geométricos ptolomaicos, as teorias de Azarquiel no
século XI foram indispensáveis para o avanço na precessão dos equinócios;
o astrolábio náutico criado por Ibrahim Ibn Sahli em 1067 foi um instru-
mento que não só revolucionou as teorias científicas, através da descoberta
de novos continentes e civilizações, mas contribuiu para mudanças de para-
digmas sociais, culturais e filosóficos destruindo, assim, a velha imagem da
“Idade Média” como estéril.
Os grandes avanços na lógica possibilitaram, em 1300 , resolver clás-
sicos problemas da Física e da Filosofia. A matematização da física e do
raciocínio secundum imaginationem possibilitaram, no século XIV, a pas-
sagem do “possível físico” ao “possível lógico”.
Outro dado de suma relevância diz respeito às discussões travadas
em Oxford e Paris entre os Realistas e Nominalistas medievais que impul-
sionaram novas descobertas no campo da óptica e da cinemática, preparando
o caminho para Galileu e Kepler.
Vale ressaltar, contrariando o desgastado e sempre usual argumento
de que a ciência na Idade Média estava con-
trolada pela religião, que ciência e religião
não eram campos incompatíveis e lembrar
que Copérnico e Galileu foram discípulos de
Jean Buridan e Nicolas D’oresme, mestres da
escolástica parisiense.
Feita as devidas ressalvas e dado o caráter
introdutório da nossa aula, podemos perguntar o
que significa, portanto, Filosofia cristã? Respond-
er esta questão implica adentrarmos um pouco
na história do cristianismo e, principalmente,
nos argumentos utilizados por seus represent-
antes durante os primeiros séculos da nossa era.
Segundo W. Jaeger, no seu livro Cristianismo
primitivo e paidéia grega(Jaeger/1961/p.10),
nos primeiros dois séculos, houve uma profunda
influência da civilização grega no cristianismo.
De modo que, a cristianização do mundo pagão
(Fonte: http://www.meusestudos.com).
não se deu de modo unilateral.

78
A filosofia e a fé
Aula

Dito de outro modo, a cristianização implicou em uma helenização


do cristianismo. Recordanos o historiador que o cristianismo era um
movimento de judeus e que os judeus estavam helenizados nos tempos de
11
Paulo de Tarso.
Com isso, já podemos vislumbrar o diálogo estabelecido entre o pensa-
mento cristão e a cultura e filosofia gregas. Os christianoi não somente foram
capazes de absorver os fundamentos teóricos dos gregos, mas dominaram
sua língua, seu pensamento e sua lógica. Questões do tipo: como alcançar
a tranqüilidade do ânimo? Qual o caminho para a vida feliz? O que é a
sabedoria? Como superar os vícios? São questionamentos dos quais se
ocuparam os pensadores da Antiguidade tardia e do medievo.
Vale ressaltar que o cristianismo se fortaleceu, como religião e pensam- Constantino,
ento, graças a imperadores como Constantino, Cláudio (o Gótico) e Diocle- o Grande
ciano, além de senadores, soldados e filósofos pagãos como Mario Vitorino.
De modo que é necessário entender, por um lado, o apoderamento teórico Natural de Naissus,
da filosofia grega por parte dos chamados padres apologistas e, por outro, (272-337 d.C). filho
o papel político decisivo que o cristianismo desempenhou nos primeiros de Constâncio I Im-
perador Romano do
séculos. É importante ter claro que depois da oficialização do cristianismo Ocidente (250-306
como religião do império (397 d.C. durante o Concílio de Cartago), como d.C). Ficou conheci-
bem observou A.H.M Jones, o cristianismo atraiu todo tipo de homem: de do como o primeiro
sábios que, com resistência, assumiam a nova fé do imperador à bárbaros imperador a recon-
que buscavam proteção na nova religião1. Os primeiros, defensores de um hecer o cristianismo
cristianismo como forma de pensamento teoricamente consistente do ponto como religião do
Império. Conta-se
de vista filosófico e teológico, foram homens que buscaram responder, que em 28 de outu-
associando elementos estóicos, peripatéticos, pitagóricos e platônicos, bro de 312, antes
questões próprias da época tais como: Deus, mundo, felicidade, justiça etc. da batalha da ponte
Poderíamos destacar como representante maior dos chamados apologistas Milvia, sonhou com
Justino, o mártir. uma cruz que con-
Justino não somente defendeu a fé cristã em inúmeras cartas enviadas tinha a seguinte fra-
se: “com essa cruz
a imperadores como Adriano, Antonio Pio e Marco Aurélio, mas também vencerás”. Constan-
buscou justificar, através do diálogo com o paganismo, as raízes filosóficas tino ordenou que
de conceitos tipicamente cristãos como Eucaristia e Encarnação. É im- fosse pintada uma
portante observar que o crescimento do cristianismo como forma de vida, cruz nos escudos
não se deu de modo pacífico. Muitos dos que aderiram a “nova fé” foram dos soldados e ten-
perseguidos e lançados aos leões, no entanto, a idéia do cristianismo como do conquistado a
vitória reconheceu
religião universal destinada, indistintamente, a todas as raças, foi algo que sua dívida com o
atraiu adeptos de inúmeros credos e filosofias. Deus cristão.
Mas quando surge de fato o que chamamos de Filosofia Medieval? Essa
é uma questão de difícil resposta. Normalmente, caracteriza-se o fim da
idade antiga com a queda do império romano do Ocidente (476 d.C) e, no
que concerne a filosofia antiga, com o fechamento realizado por Justiniano,
da escola pagã em 529 d.C. O medievo terminaria com a queda do Império
Romano do Oriente (1453 d. C) ou, no máximo, como a descoberta da

79
Introdução à Filosofia

América (1492 d.C). Como marca do fim da filosofia medieval, podemos


citar a Reforma de Martin Lutero, em 1517. Neste sentido, os primeiros
séculos do Cristianismo, Patrística grega e latina, inclusive Agostinho de
Hipona, pertencem a chamada antiguidade tardia. É paradoxal posto que,
Justiniano I
estes pensadores desenvolveram um pensamento filosófico completamente
Coroado Impera- compatível com o tipo de reflexão que seria desenvolvido posteriormente
dor na Páscoa de no medievo.
527, Justiniano De todos eles, Agostinho de Hipona é o mais emblemático, dado que
tentou unir os dois demarca com sua obra A cidade de Deus, particularmente, com o saque de
impérios (Oriente/
Ocidente) através
Roma em 410 d.C, a passagem para a época medieval.
de uma grande uni- De modo que teríamos, assim, basicamente dois períodos: a patrística,
dade religiosa. Sua que se refere ao pensamento desenvolvido pelos “padres da Igreja” e que
maior ação contra permanece associada, graças aos profundos traços com a tradição helênica, à
o paganismo foi o antiguidade tardia. Como representantes podemos citar: São Justino Mártir,
decreto fechando a Clemente de Alexandria, Orígenes, Agostinho de Hipona, Dionísio Pseudo
última importante
Escola Filosófica
Areopagita; e a Escolástica, período marcado pelas grandes escolas e uni-
de Atenas. (483-565 versidades medievais. Sua característica maior foi a tentativa de resolução
d.C). das grandes questões como: Deus, o Mal, a Liberdade, à luz da unidade
entre razão e fé. Como representantes desse período temos: Anselmo de
Cantuária, Alberto Magno,Tomás de Aquino, Robert Grosseteste, Roger
Bacon, Boaventura de Bagnoreggio, Pedro Abelardo, Bernardo de Claraval,
João Escoto Erígena, Anselmo de Aosta, João Duns Scot, Jean Buridan e
Nicole Oresme.

CONCLUSÃO

Como conclusão podemos dizer que a Idade Média é um conceito


atribuído a uma época de forma uniforme e nega-tiva. O período medieval,
contrariando as críticas que o classificou como “idade das trevas”, apesar
de difícil delimitação histórica, pode ser entendido, sob o ponto de vista
filosófico, como o fim das escolas pagãs e o início de uma reflexão marcada,
prioritariamente, por inúmeras inovações tanto científicas quanto filosóficas.

RESUMO

Nesta aula, vimos como é difícil definir, em um conceito, a Idade Média.


Vimos, também, que a Filosofia produzida neste período está marcada pela
fusão de culturas, principalmente, pela busca de conciliação entre a filosofia
pagã e o pensamento cristão que despontava como religião oficial do Im-
pério. A filosofia medieval pode ser dividida em dois períodos, sendo que o
primeiro, a patrística, que se refere ao pensamento produzido pelos Padres
da Igreja nos primeiros séculos, se define como um período de “trânsito”
para o medievo, e a escolástica, marcada pelas grandes teses e escolas.

80
A filosofia e a fé
Aula

ATIVIDADES

1. Depois de ler o texto da aula, você sustentaria uma definição negativa


11
do período medieval? Por quê?
2. Qual a relação existente entre o cristianismo e a filosofia grega?
3. O que caracteriza a chamada filosofia cristã?

COMENTÁRIO SOBRE AS ATIVIDADES


Lembre-se que as respostas para estas questões têm como ponto de
partida o contexto histórico em que surge o cristianismo, ou seja, a
consolidação de um novo modo de pensar (a teologia cristã) exigiu
uma fundamentação teórica capaz de demonstrar a validade dos
argumentos propostos e, neste sentido, a aproximação com a filosofia
grega foi inevitável.

PRÓXIMA AULA

Na próxima aula, serão apresentados os principais problemas filosóficos


presentes na Obra de Agostinho de Hipona. Também veremos as várias
posturas teóricas que ele assumiu ao longo de sua vida.

REFERÊNCIAS

Boehner, Philotheus ; Gilson, Etienne. História da Filosofia Cristã.


Petrópolis: Vozes, 1998.
Bréhier, E. História da Filosofia. A Idade Média.Vol.I-III.São Paulo,1978
Cunha, C\B. Compreender Plotino e Proclo. Petrópolsi: Vozes, 2006
De Boni, Luís Alberto (org.). A Ciência e a organização dos saberes
na Idade Média. Porto Alegre: Edipucrs, 2000. (Coleção Filosofia, 112).
Duhem, P. Hélène: un savant français. Pierre Duhem, Paris: Plon. 1936.
Gilson, Etienne. Filosofia Medieval. São Paulo: Martins Fontes.1995
Idade Média: ética e política. Porto Alegre: Edipucrs, 1996. (Coleção
Filosofia, 38).
Jaeger, Werner. Cristianismo Primitivo e a Paideia Grega. Lisboa.Ed. 70
Libera, A. de. Filosofia Medieval. São Paulo: Loyola, 1998.

81
Aula
AGOSTINHO DE HIPONA:
HELENISMO E CRISTIANISMO 12
META
Apresentar os principais problemas filosóficos presentes na Obra de Agostinho de
Hipona.

OBJETIVOS
Ao final desta aula, o aluno deverá:
definir as bases do pensamento agostiniano;
identificar as principais questões que compõem a reflexão agostiniana; e
analisar, à luz do pensamento agostiniano, alguns problemas filosóficos da Idade
Média.

PRÉ-REQUISITOS
O aluno deverá revisar os assuntos relativos a Filosofia Medieval.

Agostinho de Hipona, detalhe de vitral situado na cidade de Saint Agoustine,


Fórida, eua. (Fonte: http://upload.wikimedia.org).
Introdução à Filosofia

INTRODUÇÃO

Olá, caro aluno. Na aula passada transitamos pelo período denomi-


nado Idade Média, período marcado pela fusão de culturas e pela busca de
conciliação entre a filosofia pagã e o pensamento cristão. Na aula de hoje,
iremos abordar sobre o pensamento agostiniano. Mas o que é filosofia
para Agostinho? Diríamos que filosofia, para Agostinho, é, essencialmente,
caminho para a felicidade. Neste sentido, é necessário diferenciar dois níveis
de conhecimento: mundano e o verdadeiro saber, ou seja, a investigação
intelectual associada à orientação moral e ao esforço ascético. Suas obras
mais importantes são: As confissões e A cidade de Deus. No entanto, o
problema central das suas investigações era, sem dúvida, o problema do
mal. Como explicar a existência do mal sendo Deus Bem supremo e criador
de todas as coisas?

Mani
(Fonte: http://raizculturablog.files.wordpress.com).
Foi profeta, pintor
e médico persa que
pregava a divisão
do mundo em duas
AGOSTINHO DE HIPORA
forças antagônicas:
o Bem e o Mal (210-
Nascido no Norte da África (Tagasta- 354 d.C – atual Argélia),
276 d.C) . Daí a ex- Agostinho foi um pensador que buscou soluções para problemas essenciais
pressão maniqueu. da existência humana. Questões como a origem do mal, da liberdade, da
graça, foram tematizadas e discutidas à luz do novo modo de conceber o
mundo, a saber: o cristianismo.
A tarefa assumida consistia, portanto, em encontrar respostas filosó-
ficas que satisfizessem as principais indagações existenciais e do contexto

84
Agostinho de Hipona: helenismo e cristianismo
Aula

filosófico vivido por Agostinho. Mergulhado nas obras de grandes pen-


sadores pagãos como Plotino, Cícero, Sêneca, bem como, impulsionado
pelos exemplos de mestres cristãos como Santo Ambrósio, Agostinho
12
foi capaz de construir uma obra que permanece como um dos pilares da
cultura ocidental.
A formação de Agostinho iniciou-se aos 19 anos de idade. Foi nessa
fase que ocorreu um impacto decisivo a partir do contato com a obra Hor-
tensius de Cícero. Relata ele no livro III, 4 das Confissões: “O livro (Hortensius)
é uma exortação à filosofia (...) Devo dizer que mudou os meus sentimentos e o modo
de me dirigir a ti (Deus)”. Agostinho encontrava em Cícero todo o fervor e
desejo para o conhecimento, no entanto, lamentava não encontrar no texto
Marco Túlio
ciceroniano a presença do Cristo. Cícero
Filho de mãe extremamente religiosa (Santa Mônica), Agostinho cresceu
e foi educado no espírito cristão e, por essa razão, suas Confissões carregam Filósofo e orador
o tom conflituoso de um homem educado na fé, mas descrente por falta romano (106 a.C/
de razões que demonstrassem a perfeita unidade entre os princípios do 46 a.C). Sua obra
Hortensius teve uma
cristianismo e da filosofia, particularmente, a platônica.
influência profunda
Algumas questões que inquietavam o jovem Agostinho serviram de no pensamento fi-
guia para a descoberta de pensadores como Plotino, Porfírio e Sêneca. losófico de Santo
Possuidor de um espírito extremamente investigativo, Agostinho se de- Agostinho.
cepcionou muitas vezes com as resposta encontradas nos livros. Muitos
dos argumentos apresentados não eram suficientes para explicar a questão
central que transpassa toda a obra agostiniana, a saber: o que é o mal?
Em busca de uma resposta consistente Agostinho assume várias pos-
turas teóricas ao longo da vida. Em um primeiro momento se converte ao
maniqueísmo, depois ao ceticismo e por último ao neoplatonismo.
Foi no neoplatonismo que Agostinho encontrou as respostas mais
satisfatórias para suas indagações. Através da leitura de Plotino, graças
a tradução latina de Mario Vitorino, Agostinho compreendeu que Deus,
enquanto unidade que transcende de modo absoluto tudo o que existe, é o
Bem supremo que gera todas as coisas de maneira infinita e livre.
Plotino
No fundo, lendo Plotino, Agostinho reconhece que a Filosofia platônica
se aproxima profundamente das verdades do cristianismo. Considerado o fun-
Para Plotino, o Bem supremo era, platonicamente, o fim de todo es- dador do neopla-
forço racional da alma humana. A vida consistia em um retorno (epistrophé), tonismo (205-270
isto é, em uma busca constante de regressar à unidade originária: o Uno. d.C). O neopla-
Esta idéia se adaptou perfeitamente ao princípio regulador da experiência tonismo se carac-
teriza, basicamente,
cristã da conversão (conversio), ou seja, da superação da perversão (per-
por atribuir uma
vesio) causada pelo debilitamento e destruição dos verdadeiros bens ou divisão triádica do
valores humanos. A queda ou o pecado, portanto, são pesados à luz da real baseando-se em
teoria platônica do afastamento do Bem supremo (Conf. 7, 12, 18). três hipóstases que
A pergunta que perseguia o jovem Agostinho tinha agora uma res- são: o Uno, o Ser e
posta filosoficamente consistente, ou seja, cometemos o mal porque nos a Alma.

85
Introdução à Filosofia

afastamos livremente daquele que nos protege e conserva: Deus. Somos,


portanto, seres livres e responsáveis pelos nossos próprios atos e escolhas.
Surge na história da filosofia uma idéia basilar do pensamento cristão, a
saber: a relação entre o mal e o livre arbítrio.
a) O mal e o livre arbítrio
Para entender o sentido e o valor deste conceito é preciso partir da
idéia de que Deus é o Bem e que todas as coisas são, necessariamente, boas.
Sendo assim, o livre arbítrio é uma resposta ao problema central da Criação,
isto é, sendo todas as coisas boas, como compreender a existência do mal?
Agostinho encontrou no maniqueísmo uma primeira resposta para esta
questão: o mal existe porque é uma realidade contrária ao bem.
Esta visão dualista da natureza não satisfez a exigência de um pensador
Maniqueísmo que buscava a coerência da criação como ato de uma causa essencialmente
Boa e Divina. O mal não podia ser pensado como parte constitutiva dos
Refere-se ao pens-
amento de Mani
seres, nem muito menos do próprio Deus. Sendo assim, é necessário buscar
(210-276 d.C), pro- razões razoáveis para a existência do mal. Um caminho encontrado por
feta persa que fun- Agostinho foi se perguntar se o mal podia ser ensinado? Segundo ele, a
diu diversas linhas instrução, por princípio, é boa e o mal residiria somente no uso indevido
de interpretação da inteligência.
da realidade como O mal residiria deste modo, nas paixões e nos falsos juízos. As paixões
o Zoroastrismo,
gnosticismo e cris-
e desejos são pontos decisivos para a compreensão agostiniana do mal. É
tianismo. Postulava importante ressaltar que o mal não reside na ação em si, mas no desejo
uma concepção do pelo qual as ações são praticadas, sendo, portanto, fundamental a distinção
mundo pautado em entre desejos bons e desejos maus. Segundo Agostinho, os homens bons
duas forças reais e desejam aquilo que podem possuir sem o perigo de perdê-lo, enquanto que,
concretas o Bem e os maus desejam uma vida criminosa para conseguir aquilo que desejam.
o Mal. Para Mani,
toda a realidade se
Como conseqüência do que afirmamos anteriormente, diríamos que
explicava a partir da o pecado pode ser definido, em Agostinho, como abuso da vontade livre.
luta constante entre Se o que caracteriza o homem e o diferencia dos animais é ser possuidor
estas duas naturezas, de uma faculdade que nomeamos de razão, o que caracteriza o pecador é
deste modo, quando: deixar-se levar pelos violentos desejos que contradizem a lei do equilíbrio
o Bem vencia, re- e do bem. Por esse motivo, Agostinho afirma ser a maioria dos homens
inava a paz e tran-
qüilidade, quando o
formada por insensatos (stultos).
Mal vencia, reinava Segundo o filósofo, nada no universo é mal, ou melhor, o mal não
a desgraça e destru- possui realidade física, moral ou ontológica. O universo é beleza e bondade
ição. Esta doutrina plena; os erros são causados pelo o uso indevido da faculdade de julgar que
exerceu, durante um é, por natureza, boa e perfeita, logo o pecado traz a marca da ignorância.
bom tempo, uma Por último, o mal não possui substancialidade porque seria contraditório
profunda influência
em Agostinho.
com a idéia de um Deus que é princípio e fim de todas as coisas. Mas sendo
assim, por que pecamos?
Para Agostinho, sendo Deus justo a vontade tem que ser livre para que
o homem seja capaz de escolher e assumir o destino dos seus atos. Deus
não pode ser responsável pelas ações humanas. Por isso, a vida feliz – a

86
Agostinho de Hipona: helenismo e cristianismo
Aula

vida beata - exige o exercício das quatro virtudes cardeais: prudência, força,
temperança e justiça. É verdade que, se Agostinho conseguiu superar o
dualismo maniqueu com relação a existência de dois princípios universais,
12
estabeleceu uma cisão interna à vontade humana, isto é, baseando-se na
afirmação paulina de que “eu não faço o que quero, mas faço o que de-
testo” Agostinho mantém a tensão entre um mal-querer e a boa vontade.
O vício é fruto de uma vontade perversa (ex voluntate pervesa) que mantida
pelo hábito se converte em necessidade (L.A. VIII, 5, 10). A lei do pecado
relaciona-se, assim, com a violência do hábito. Diz Agostinho: “procurei o
que era a maldade e não encontrei uma substância, mas sim uma perversão
da vontade desviada da substância suprema” (L.A. VII, 16,22). Finalmente,
o mal liga-se diretamente a criatura finita, temporal e mortal.
b) Tempo e história
A noção de tempo agostiniana é resultado do esforço cristão por su-
perar a noção clássica de tempo como um ciclo eterno. A suplantação de
um tempo cósmico por um tempo histórico é uma necessidade e tem como
fundamento o pressuposto de um Deus único e criador.
Ou seja, a criação é uma marca divina que não pode ser pensada em
termos de um eterno retorno, como defendiam os gregos, mas sim, como
acontecimento inicial que tem como centro a figura do Cristo revelado na
história.
Para Agostinho, o tempo não é algo fácil de ser definido. Quando
ninguém se pergunta sobre sua natureza, ele se mostra claro e distinto, mas
quando pensado, questionado, a ignorância é a primeira a manifestar-se.
Não sabemos o que é o tempo! Normalmente dividimos o tempo em três
momentos: passado, presente e futuro.
No entanto, ao refletirmos so-
bre a natureza do passado, somos
obrigados a afirmar que já não existe
isso que chamamos passado; do
mesmo modo, quando pensamos o
sentido do presente, nos deparamos
com a certeza de que, graças ao
fluxo constante, ele também não é
algo passível de ser apreendido. Do
futuro, resta-nos somente a esper-
ança de vivenciá-lo, já que o mesmo,
também não existe. A conclusão ini-
cial é: o tempo tende para o não ser.
Mas como compreendê-lo já
que não podemos prescindir da Agostinho inaugura uma nova reflexão sobre o tempo. Ao perguntar-se
temporalidade? Somos porque pela natureza do tempo, Agostinho diferencia o tempo nos seus aspectos
cronológico, natural e psicológico. (Fonte: http://halley214.weblogger.
somos no tempo e no tempo nos terra.com.br).

87
Introdução à Filosofia

mantemos. A original saída encontrada por Agostinho foi pensar o tempo


a partir da própria experiência existencial humana, isto é, a vida humana
como distensão da vida de Deus. Isto significa dizer que a Criação é vida
interminável de Deus e, neste sentido, um caminho para se compreender
o tempo é pensá-lo em relação à eternidade, ou seja, a partir da apreensão
do Verbo que se faz presente na alma humana.
Para fundamentar sua análise, Agostinho recorre à frase do Gênesis
que diz: “no princípio Deus criou o céu e a terra”. Mas como compreender
este “princípio” sem negar a eternidade do criador? O Verbo Divino é
definido como aeterno in silentio, ou seja, como Palavra Eterna que funda
e mantém toda temporalidade e vida. É o eterno presente que determina os
tempos passados e futuros. Nesta perspectiva, o tempo da vida se funda na
eternidade como um “agora” que só se deixa abarcar pela capacidade com-
preensiva da alma. Se não existem tempos futuros nem pretéritos, somente
podemos falar de uma “presentificação” das coisas passadas (memória),
futuras (expectativas) e presentes. De modo que o tempo não se identifica
com os movimentos dos astros, dos corpos, nem com as horas que passam
nos relógios. O tempo se dá como compreensão e apreensão das coisas pelo
espírito. Estamos, assim, frente a uma concepção “psicológica” do tempo
que permite a Agostinho formular uma profunda relação entre a palavra
criadora e a história como escuta salvífica.
O tempo e a moralidade se confundem na alma humana que almeja
regressar à unidade originária: Deus. A história do homem é, portanto,
peregrinação e a única garantia para a existência do mundo é a invisível
certeza de Deus revelado na figura libertadora do Cristo. Cristo é o centro
de todos os acontecimentos e não pode ser pensado como passado, nem
simplesmente como futuro, mas sim, como uma novidade permanente e
presente que ilumina e reconduz o homem à vida feliz.

CONCLUSÃO
No decorrer de nossa aula, vimos que o pensamento agostiniano nasce
e se estrutura a partir do di-álogo com pensadores como Platão, Plotino,
Cícero e Sêneca. O fim da filosofia, para Agostinho, é conduzir o homem à
vida bem aventurada e isso significa superar os vícios e paixões que arrastam
o espírito para as coisas transitórias e efêmeras. O tempo e a moralidade
são partes constitutivas da história da salvação. Nesta perspectiva, a alma
humana ocupa lugar de privilégio já que é nela que se dá o tempo de todos
os tempos, isto é, o tempo da salvação.

88
Agostinho de Hipona: helenismo e cristianismo
Aula

RESUMO

Agostinho de Hipona representa, dentro da Filosofia cristã, um dos


12
grandes momentos do pensamento filosófico ocidental. Marcado pela fusão
entre neoplatonismo e cristianismo, além da suas raízes estóicas, Agostinho
formulou um pensamento marcado pelas grandes questões medievais como,
por exemplo: o tempo, o mal, a Trindade e, principalmente, elaborou uma
resposta conciliadora entre o pensamento pagão e a reflexão cristã para a
pergunta originária do pensamento grego, a saber: como do Uno provém o
múltiplo sem que este deixe de ser o que ele é. Deus, como o Bem, garante
a geração infinita do mundo mediante seu poder conversor que perman-
ece como Verbo silencioso perfazendo todas as coisas e unindo-as em sua
infinita beleza. A concepção agostiniana do tempo como eterno presente
é uma inovação que possibilita uma concepção de homem que tem como
fundamento a presença eterna de Deus.

ATIVIDADES

1. Explicite a concepção agostiniana do tempo e sua relação com história


da salvação.

COMENTÁRIO SOBRE AS ATIVIDADES


Observe que a noção de tempo, para Agostinho, está intimamente
associada à natureza finita do mundo e do homem, ou seja, se por um
lado, o tempo é a garantia de que a criatura não se confunde com o
criador é, por outro, a expressão máxima da presença divina no mundo

PRÓXIMA AULA
Na aula 13, veremos as principais características da filosofia de Tomás
de Aquino, um dos pensadores mais importantes da Filosofia Medieval.

89
Introdução à Filosofia

REFERÊNCIAS

AGOSTINHO, H. A cidade de Deus, I e II, Petrópolis: Vozes, 1990.


______________ Confissões. Petrópolis: Vozes, 1990.
______________ Diálogo sobre a felicidade.1988.
CAVALCANTE, M. S. S. Para ler os medievais. Petrópolis: Vozes, 2000.
ROBERTO, M.N.C. O problema do mal na polêmica antimaniquéia
de Santo Agostinho. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2002.

90
Aula
O DIÁLOGO ENTRE RAZÃO E
FÉ EM TOMÁS DE AQUINO 13
META
Expor as principais questões da filosofia em Tomás de Aquino.

OBJETIVOS
Ao final desta aula, o aluno deverá:
identificar as principais características da filosofia tomista; e
definir a leitura tomista do corpus aristotélico.

PRÉ-REQUISITOS
O aluno deverá ter noções sobre os problemas filosóficos presentes na obra de
agostinho de Hipona.

Apoteose de São Tomás de Aquino, pintura, Francisco de Zurbarán, 1631,


Museu de Belas Artes de Sevilha-Espanha. (Fonte: http://bp1.blogger.com).
Introdução à Filosofia

INTRODUÇÃO

Tomás de Aquino é, sem dúvida, um dos pensadores mais impor-


tantes da Filosofia medieval. Nascido entre os anos de 1224 e 1225 em
Roccasecca (Itália), era dono de um caráter descrito, algumas vezes como
rebelde, quando, por exemplo, entrou a revelia da família para a Ordem
Tomás de Aquino dominicana, e outras como sereno e concentrado. Uma data decisiva, dentro
Foi um dos maiores
da biografia de Aquino, é seu encontro em 1245 com Alberto Magno em
expoentes da Es- Paris. Como seu fiel discípulo, acompanhou o mestre durante sua estância
colástica medieval. em Colônia de 1248 até 1252, quando regressou a Paris.
(1225-1274). Sua obra é vasta e expressa o espírito acadêmico característico dos
dominicanos, ou seja: contemplata aliis tradere. Teólogo, místico, filósofo,
Tomás soube conciliar vida ativa e vida contemplativa.

Alberto Magno

Grande teólogo e
filósofo medieval.
Mestre de Tomás
de Aquino. (1193
ou 1206)

(Fonte: http://www.fiocruz.br).

92
O diálogo entre razão e fé em Tomás de Aquino
Aula

RAZÃO E FÉ 13
Conhecido, principalmente, pelo método de provas e ob-jeções presente
na sua mais importante obra a Suma teológica e pela sua raiz aristotélica, Aristotelismo
seu pensamento é muito mais que um comentário ou desvirtuamento da
Filosofia de Aristóteles. Diríamos que se trata de uma leitura determinante Corrente filosófica
que possibilitou, graças à junção de elementos agostinianos e platônico- derivado da leitura
aristotélicos, fundamentar as principais questões da teologia cristã. É das obras de Aris-
importante ressaltar que a relação entre Tomás e o aristotelismo não é tóteles.
totalmente pacífica.
A escolástica teve que combater, graças aos ataques de Averróis, as
teses aristotélicas tão bem aceitas na Universidade de Paris. Foi contra a
leitura racionalista mulçumana árabe, que inviabilizava toda possibilidade
de diálogo entre filosofia aristotélica e a fé cristã, que se dirigiram as críticas
de Tomás de Aquino.
Que racionalismo foi esse? Contrariando uma visão associativa entre
a filosofia aristotélica e o texto sagrado (islâmico ou cristão) que encontra-
mos, através dos viés neoplatônicos, presentes em Avicena e Averróis, os
averroístas foram capazes, por isso incomodaram, de separar filosofia e
religião promovendo, assim, uma profunda crise teórica durante século XIII.
Averróis
Diversas condenações foram ditadas contra a tentativa de estabelecimento
de uma filosofia autônoma. Nascido em Córdo-
No fundo, a crença, por parte da religião, da superioridade da ordem ba/Espanha. (1126-
sobrenatural ao mundo físico, inviabilizava toda tentativa de estabelecimento 1198 d.C). foi um
de uma origem naturalista para o conhecimento. É neste ambiente que dos responsáveis di-
reto pela introdução
Tomás de Aquino se insere como inovador e conciliador frente à crise estab-
do pensamento aris-
elecida pela filosofia árabe. Dentre todos os pensadores criticados, Averróis totélico na Europa.
foi o que mais ataques sofreu. As fortes palavras de Petrarca (1304-1374) Além de comentar-
ilustram bem o que estamos dizendo: “Averróis, aquele cachorro raivoso dor dos textos de
que, movido por um abominável furor, latiu contra Cristo seu Senhor e Aristóteles, Averróis
contra a fé católica “ (Alonso: 1998, p. X). escreveu obras so-
bre: Medicina, Teo-
É preciso ressaltar que, embora discordando de muitos aspectos da
logia, Astronomia e
leitura averroísta, Tomás foi capaz de conciliar e manter-se autônomo, tanto Direito.
com relação ao pensamento de Averróis como do próprio Aristóteles. Como
exemplo desta harmonia entre aristotelismo e cristianismo, temos as célebres
provas ou vias para a existência de Deus, que serão objetos desta nossa aula. Inatismo
Antes de adentrarmos nas provas da existência de Deus, nos parece
interessante confrontar a argumentação de Tomás de Aquino frente às Doutrina que de-
demais provas em voga na época, particularmente as apresentadas na fende a existência de
Suma, ou seja: a prova do “inatismo” de João Damasceno e a proposicional idéias inatas.
de Anselmo de Cantuária.
O que diferencia as provas elaboradas por Tomás de Aquino dos
demais argumentos propostos? Sigamos o texto da Suma. Na questão II,

93
Introdução à Filosofia

art. I, Tomás critica três concepções ou argumentos acerca da evidência


divina, são eles:
a) João Damasceno (676-749) que diz: “Parece que a existência de Deus é
conhecida por si mesma”.
b) Anselmo de Cantuária que afirma ser Deus: “o ser maior que o qual
nada possa ser pensado”.
c) E a prova tomada como “artigo de fé”.
João Damasceno
Cumpre dizer que não se trata, com as provas, de questionar a existência de
Deus, já que para Tomás este fato é evidente, mas demonstrar sua existência
Nasceu em Dam- através de um conhecimento não unívoco nem equívoco, mas análogo. Diz
asco em 675 e mor- ele na Suma, II, 1:
reu em 749; foi um
dos maiores teólo- Que a proposição Deus existe, quanto à sua natureza, é evidente, pois o
gos do seu tempo.
Escreveu o primeiro
predicado se identifica com o sujeito, sendo Deus o seu ser, como adiante se
tratado de teologia verá. Mas, como não sabemos o que é Deus, ela não nos é por si evidente,
sistemática. mas necessita de ser demonstrada, pelos efeitos mais conhecidos de nós e
menos conhecidos por natureza.

Para responder à primeira tese - sustentada por João Damasceno-


Tomás de Aquino formula a seguinte objeção: a) De dois modos pode uma
coisa ser conhecida por si: a) absolutamente, e não relativamente a nós; b)
absolutamente e relativo a nós.
Segundo ele, para que algo seja conhecido por si é necessário que o
predicado esteja no sujeito como, por exemplo: o homem é animal. Caso
seja conhecido por todos o que é o predicado e o sujeito, tal proposição, dirá
Tomás, será evidente para todos. No entanto, como não sabemos o que
é Deus, a proposição Deus existe, como dissemos, é válida, pois Deus é o
ser e identifica-se com o predicado, mas não é evidente. O que Damasceno
Anselmo de chama de “evidência”, Tomás classifica de desejo. Deus, por ser a felicidade
Cantuária do homem, é desejado, mas isso não deve ser confundido com conhecido.
Com relação à segunda tese, diz ele: “Talvez quem ouve o nome de
Escreveu, entre Deus não o intelige como significando o ser, maior que o qual nada possa
outras obras, dois
ser pensado; pois alguns acreditam ser Deus corpo.” Como podemos con-
opúsculos intitula-
dos: Monologion statar, é o retorno da objeção feita por Gaunilo no Proslógio, isto é, o fato de
e Proslogion nos alguém escutar o nome de Deus não implica sua evidência real, mas somente
quais demonstra a no intelecto (sed in apprehensione intellectus tantum).
existência de Deus Com respeito à terceira prova – Deus é evidente pela fé -, a resposta
apoiando-se exclu- é imediata: as coisas da fé não são demonstráveis (Sed ea quae sunt fidei,
sivamente e, argu-
non sunt demonstrabilia).
mentos de ordem
racional. Para Aquino, a demonstração é possível por dois modos ou espécies
(Respondeo dicendum quod duplex est demonstratio) que são: pelas causas
(per causam) ou princípios e pelos efeitos (per effectum). Defende o filósofo
que pelo efeito pode-se conhecer melhor a causa já que o efeito é mais

94
O diálogo entre razão e fé em Tomás de Aquino
Aula

conhecido que a causa..


Podemos concluir que Tomás de Aquino defende o conhecimento de
Deus, embora não na sua essência, pela via da causalidade e dos efeitos.
13
Dito isso, passemos para o argumento de Tomás.
Visando uma melhor compreensão do tema faremos, primeiramente,
uma exposição simultânea de alguns textos da Física e da Metafísica aristo-
télicas e, algumas passagens da Suma Teológica para, em seguida, expor o
comentário dos argumentos utilizados pelo Doctor angelicus.
Como podemos perceber, é na obra aristotélica que Tomás encontrará
os elementos necessários para formular a sua primeira prova da existência
de Deus, diz ele:

A mais manifesta (prova) é a que procede do movimento; pois é


certo e verificado pelos sentidos (sensu constat), que alguns seres
são movidos neste mundo. Todo o movido por outro o é. Porque
nada é movido senão enquanto potencial (potentia), relativamente
àquilo a que é movido, e um ser move enquanto em ato. Pois mover
não é senão levar alguma coisa da potencia ao ato

O argumento segue, em linhas gerais, as conseqüências da evidência


do movimento (no mundo). Segundo Aristóteles, é tarefa da filosofia in-
dagar sobre o princípio do movimento e, sendo ele eterno, qual seria seu
primeiro motor?.

Planeta Terra visto da lua. (Fonte: http://celulasdecombustivel


.planetaclix.pt).

95
Introdução à Filosofia

Etienne Gilson nos lembra o papel que a realidade sensível desempenha


nas provas, isto é, o universo requer uma explicação causal que garanta a
estabilidade frente ao perpétuo devir (GILSON, 1995, p. 658). Embora o
argumento do primeiro motor seja de fácil captação, possibilita algumas
questões como, por exemplo: a) toda coisa é, de fato, movida por outra?
b) É possível remontarmos ao infinito na série de coisas que movem e que
são movidas?
Aristóteles, como dissemos, não via dificuldades em afirmar que tudo
que se move é necessariamente movido por algo. Caso contrário, teríamos
que admitir a incognoscibilidade nos processos, isto é, como determinar
que, por exemplo, estivesse no fogo mesmo a causa de seu subir e baixar
sem pressupor o absurdo desta afirmação? (Aristóteles, Física, I, 242a).
A impossibilidade lógica de que algo possa ser, ao mesmo tempo, causa
motora e movida (movens et motum) leva Tomás, seguindo os passos de
Aristóteles, afirmar a existência de uma causa primeira imóvel que é Deus. O
postulado da existência de Deus como motor imóvel, segue de perto outra
argumentação aristotélica presente também na Física VIII, 267b.23 que diz:

É impossível que o primeiro que move e que é imóvel tenha alguma


magnitude. Em efeito, se tivesse magnitude, seria necessário que ou
Ad infinitum bem fosse ele mesmo finito ou infinito. Que não é possível haver
uma magnitude infinita, ficou demonstrado antes nos livros escritos
Expressão latina uti-
lizada como sinôni- sobre a natureza; que é impossível que em virtude de algo finito se
mo de algo sem fim. mova algo por tempo infinito, se acaba de demonstrar. O primeiro
Literalmente sig- motor coloca em movimento um movimento eterno e por tempo
nifica: até o infinito infinito. Portanto, está claro que é indivisível, que não tem nem
partes nem magnitude.

Chegamos, assim, à segunda questão levantada, ou seja, na impossibi-


lidade de se remontar ad infinitum chega-se a causa primeira, dado que,
para Aristóteles, nada se move ao azar, mas sempre tem que haver algum
princípio. A última parte do argumento de Tomás está em perfeita sintonia
com a passagem XII, 7, 1072a.25 da Metafísica, diz Aristóteles:

É posto que o que se move e move é intermediário, tem que haver


algo que, sem mover-se, mova, que seja eterno, substancia e ato.
Diz Tomás:

Ora, se não haveria nenhum primeiro motor e, por conseqüência,


outro qualquer; pois, os motores segundos não movem, senão
movidos pelo primeiro, como não move o báculo sem ser movido
pela mão. Logo é necessário chegar a um primeiro motor, de nenhum
outro movido, ao qual todos dão o nome de Deus.

96
O diálogo entre razão e fé em Tomás de Aquino
Aula

Para finalizar este primeiro argumento, é importante perceber a in-


trínseca relação temática entre o problema do movimento e a relação ato-
potência. Tanto para Aristóteles quanto para Tomás de Aquino uma coisa
13
não pode ser ato e potência ao mesmo tempo e sob o mesmo aspecto;
vejamos estas duas passagens:
Aristóteles Phy. VIII, 257 b, 5-10: “Está definido que somente o mu-
tável muda, ou seja, o potencialmente mutável, mas não o que está em ato”.
Tomás de Aquino: “nada é movido senão enquanto potencial relativa-
mente àquilo a que é movido, e um ser move enquanto em ato”.
Nesta perspectiva, reafirmamos mais uma vez que nada é ato e potên-
cia, motor e movido sob o mesmo aspecto. É fundamental perceber que
entre o Deus cristão e o Deus motor imóvel aristotélico existem diferenças
substanciais que não discutiremos aqui, mas que requer bastante cuidado
para não cometermos anacronismos.
Uma outra passagem do opúsculo De principiis naturae nos ajuda a
entender esta primeira prova, diz Tómas: “De fato, o que existe, em potên-
cia não pode por si mesmo passar a ato, tal como o cobre que existe em
potência para ser estátua não se faz por si mesmo estátua, mas precisa de
um operador para que a forma da estátua saia da potência ao ato”.

Tomismo refere-se ao pensamento de Tomás de Aquino.

Passemos para o segundo argumento ou prova: a natureza da causa


eficiente . Aristóteles afirma no passo da Metafísica 994a. 2 que é evidente
que há um princípio e que não são infinitas as causas dos entes. O que isso
quer dizer? A guisa de resposta diríamos que é impossível, em qualquer
nível causal (material, eficiente, final ou formal) pressupor um processo
infinito. Cumpre observar que no texto aristotélico não há referência à
causa eficiente, mas sim a causa motora. Esta observação é importante
porque, como dissemos no início, Averróis criticará a adequação entre causa
eficiente e motora realizada por Avicena. Vejamos os exemplos dados por
Aristóteles que nos ajudam a entender sua teoria das causas presente na
Metafísica II, 2994 a:
a) Material : “ é impossível que uma coisa proceda de outra até o infinito (por
exemplo, a carne da terra, a terra do ar, o ar do fogo, e assim incessantemente)”.
b) Motora: “que o homem seja posto em movimento pelo ar, e este pelo
sol e o sol pelo ódio, etc.”.
c) Final: “não é possível que aquilo em vista do qual se faz algo proceda ao
infinito”; que o passear seja em vista da saúde, e esta em vista da felicidade,
e a felicidade em vista de outra coisa, e que assim sempre uma coisa seja
em vista de outra”.
d) Formal: “se não há nenhum termo primeiro, não há em absoluto nen-
huma causa”.

97
Introdução à Filosofia

Big bang.(Fonte: http://www.biblelife.org).

Leiamos o argumento de Tomás de Aquino sobre estes pontos:

Descobrimos que há certa ordem das causas eficientes nos seres


sensíveis; porém não concebemos, nem é possível que uma coisa seja
causa eficiente de si própria, pois seria anterior a si mesma; o que não
pode ser. Mas, é impossível, nas causas eficientes proceder-se até o
infinito; pois, em todas as causas eficientes ordenadas, a primeira é
causa da média e esta, da última, sejam as médias muitas ou uma só;
(...) é necessário admitir uma causa eficiente primeira, à qual todos
dão o nome de Deus.

Está claro que na base geral destes dois argumentos reside a negação do
processo ad infinitum, embora não possamos dizer que temos uma redução
das cinco vias a um argumento dividido em cinco partes.
A terceira prova se baseia no possível e no necessário (ex possibili et
necessário). Ou seja, vemos que certas coisas podem ser e não ser, podendo
ser geradas e corrompidas. Ora, impossível é existirem sempre todos os seres
de tal natureza, pois o que pode não ser, algum tempo não foi. Se, portanto,

98
O diálogo entre razão e fé em Tomás de Aquino
Aula

todas as coisas podem não ser, algum tempo nenhuma existia. Mas, se tal
fosse verdade, ainda agora nada existiria, pois o que não é só pode começar
a existir por uma coisa já existente; ora, nenhum ente existindo, é impossível
13
que algum comece a existir, e portanto, nada existiria, o que, evidentemente,
é falso. Logo, nem todos os seres são possíveis, mas é forçoso que algum
dentre eles seja necessário. Ora, tudo o que é necessário ou tem de fora
a causa da sua necessidade ou não a tem. Mas não é possível proceder ao
infinito, nos seres necessários, que tem a causa da própria necessidade,
como também o não é nas causas eficientes, como já se provou. Por onde
é forçoso admitir um ser por si necessário, não tendo de fora a causa da
sua necessidade, antes, sendo a causa da necessidade dos outros; e a tal ser,
todos chamam Deus.
Podemos exemplificar esta prova da seguinte
maneira:
a) O possível é contingente – pode ser ou não ser
– contrário, portanto, ao necessário.
b) O possível não tem sua existência por si mesmo,
mas por uma causa eficiente.
c) Logo o necessário existe – é o que chamamos
Deus.
O argumento se mantém na estrutura ante-
rior de redução causal, mas acrescenta um detalhe
novo, a saber: nenhum ente existindo, é impossível que algum comece a
existir; esta afirmação nos conduz a um problema que está presente na
tradição de pensadores como Alfarabi, Avicena e no pensamento judeu de
Maimônides, e que diz respeito à distinção entre essência e existência nas
coisas criadas, isto é, alguns seres nascem e padecem graças à sustentação
de um ser que sempre é: Deus.
Esta conclusão se alinha perfeitamente com a terceira prova de Tomás,
ou seja, se todas as coisas podem não ser, em algum tempo nenhuma existia.
A refutação deste argumento segue os já apresentados na Suma, ou
seja, tudo o que é tem sua causa naquele que é o grau máximo e verdadeiro
(máxime et verissime). Moses Maimónides
Segundo o filósofo, o que é causado não pode existir sempre porque
isso significaria que a potência passiva existiu sempre. Nasceu em Córdoba
(Espanha) em 1138
A quarta prova da existência de Deus se fundamenta nos graus que
e morreu em 1204.
se encontram nas coisas. A referência aristotélica para esta tese Tomás Um dos grandes ex-
encontrará na Metafísica de Aristóteles Livro II, 993b 19-31: “De modo poentes do pensam-
que cada coisa tem verdade na mesma medida em que tem ser”. A refer- ento judaico.
ência aristotélica possibilita, a Tomás, pensar em um grau hierárquico que
tem como base a adequação entre ser e verdade. Diz ele: “assim, nelas se
encontram em proporção maior ou menor o bem, a verdade, a nobreza e
outros atributos semelhantes”. A reflexão que bem poderia ser platônico-

99
Introdução à Filosofia

agostiniana, defende a existência de um ser máximo. É interessante obser-


var o ponto inicial do argumento, ou seja: a verdade só ganha sentido se
pensada em relação ao verdadeiro. O que isso significa? Nas palavras do
filósofo, o mais cálido é o que se aproxima do maximamente cálido. Como
conseqüência, teríamos que admitir a existência de algo maximamente
verdadeiro e, consequentemente, maximamente ser. Esta formulação se
encontra também em Aristóteles Metafísica IV, 1009 a, 33-35:

Além do mais, ainda que todas as coisas fossem em sumo grau assim
e não assim, o mais e o menos são inerentes a natureza dos entes
(...) . Por conseguinte, se o que é mais uma coisa está mais próximo
dela, haverá ao menos algo verdadeiro, do qual estará mais próximo
o que é mais verdadeiro.

Em perfeita sintonia com o texto aristotélico lemos no O ente e a es-


sência:
Aquilo que é denominado o máximo e o mais verdadeiramente em
qualquer gênero é causa dos que estão depois naquele gênero, assim como
o fogo, que está no limite da quentura, é causa do calor nas coisas quentes,
como se diz no livro II da Metafísica.

Como Tomás propôs demonstrar a existência de Deus a partir dos


graus que se encontram nas coisas e, para tanto, utilizou o exemplo do fogo
( “O fogo, maximamente cálido, é causa de todos os cálidos”) poderíamos
dizer, seguindo este procedimento, que: do mesmo
modo que a bondade é causa de todo bem, existirá
um ser que é sumamente bem e causa de todo bem
e bondade. Esta prova, que possui claros traços
ontológicos e idealistas, difere bastante das demais
apresentadas na Suma e fomentou diversas críticas
com relação ao método seguido pelo autor.
A questão seria basicamente a seguinte: estaria
Tomás de Aquino tratando de um ser transcendente
e absoluto ou relativo às coisas? Entender que nas
coisas existe uma relação hierárquica é simples, o
problema estaria em postular, a partir desta con-
statação, um grau supremo de ser, o que implicaria
passar do máximo relativo (o maximamente cálido)
ao máximo absoluto (Deus), coisa que o realismo
moderado de Tomás não permitiria.
A solução para este problema nos parece inter-
essante, embora não de todo resolvido, consiste em
pensar que, para Tomás, o sensível não significa so-
Deus criando o unverso seguindo os princípios geo-
métricos. (Fonte: http://www.arikah.net). mente as coisas materiais. O sensível está constituído

100
O diálogo entre razão e fé em Tomás de Aquino
Aula

de matéria e forma inteligível e, neste sentido, é possível abstrair, a partir


das coisas sensíveis, uma prova do puramente inteligível.
Se for correta esta afirmação, nada mais coerente com o esforço to-
13
mista do que buscar, a partir das coisas boas, nobres e belas do universo
uma causa primeira.
A quinta e última prova se pauta no governo das coisas (ex gubernatione
rerum). Diz o filósofo:

A quinta procede do governo das coisas – Pois, vemos que algumas,


como os corpos naturais, carentes de conhecimento, operam em vista
de um fim; o que se conclui de operarem sempre ou freqüentemente
do mesmo modo, para conseguirem o que é ótimo; donde resulta,
que chegam ao fim sem serem dirigidos por um ente conhecedor e
inteligente, como a seta, pelo arqueiro. Logo, há um ser inteligente,
pelo qual todas as coisas naturais se ordenam ao fim, e a que
chamamos Deus.

É importante ressaltar que esta prova, contrariamente as demais, não


tem uma referência histórico-filosófica precisa, posto que era comum,
tanto nos textos bíblicos como em muitos pensadores cristãos, referências
a um Deus criador e ordenador de todo o universo. Em linhas gerais, este
argumento tem como ponto basilar a necessidade de uma inteligência or-
denadora que garanta a ordem das coisas. A harmonia presente na natureza
é, para Tomás, a prova de uma causa final que justifica, não apenas a razão
de uma ordem na natureza, mas a razão pela qual a natureza existe.

Porta aberta. (Fonte: http://bp1.blogger.com).

101
Introdução à Filosofia

CONCLUSÃO

Como podemos constatar, caro aluno, a filosofia de Tomás de Aquino


tem como base fundamental a sua compreensão da obra de Aristóteles.
Movido pelo espírito de “sistematização” que caracteriza o pensamento
do estagirita, Tomás conseguiu formular uma reflexão sobre o divino a
partir de um método “demonstrativo racional”, isto é, sem apelo a fé. É
bem verdade que não podemos afirmar a total fidelidade do pensamento
de Tomás para com a filosofia aristotélica. Tomás de Aquino, como cris-
tão, se apoderou do sistema filosófico aristotélico baseando-se na relação
causa-efeito, para justificar, algo impossível em Aristóteles, a ação de um
Deus que é princípio e fim de toda criação.

RESUMO

A característica maior do pensamento de Tomás de Aquino reside no


seu aspecto “racionalista”. As verdades reveladas não são, para Tomás,
incompatíveis com a reflexão racional. Neste sentido, nosso filósofo for-
mulou, graças ao pensamento aristotélico, as cinco provas racionais para a
existência de Deus. Resumidamente diríamos que: se para cada efeito existe
uma causa que o precede, Deus é causa de toda geração e fim de todo ser.

ATIVIDADES
1. A partir da leitura do texto, exponha as 5 vias para a demonstração da
existência de Deus segundo Tomás de Aquino.

COMENTÁRIO SOBRE AS ATIVIDADES

Para responder bem esta questão é importante demonstrar a influência


do pensamento de Aristóteles na obra de Tomás de Aquino. Neste caso,
observe em que medida a teoria das causas de Aristóteles se aproxima
da noção de Deus como princípio e fim.

PRÓXIMA AULA
Na aula a seguir, será apresentado o surgimento do pensamento
científico moderno a partir da crítica de Galileu ao racionalismo dogmático.

102
O diálogo entre razão e fé em Tomás de Aquino
Aula

REFERÊNCIAS

ALONSO, P. M. Teologia de Averroes, Introducción. Córdoba. 1998.


13
AQUINO, T. Princípios da realidade natural. Trad. Henrique Pinto
Rema. Porto: Elementos Sudoeste, 2003.
FORMENT, E. Santo Tomás de Aquino, el orden del ser. Antologia
filosófica. Madrid: Tecnos, 2003.
GILSON, E. A filosofia na Idade Média. Trad. Eduardo Brandão. São
Paulo: Martins Fontes, 1995.
GILSON, E. El tomismo. Introducción a la filosofia de Santo Tomás
de Aquino, trad. Fernando Múgica Martinema. Pamplona: EUNSA, 2000.

103
Aula
FILOSOFIA E CIÊNCIA
NO RENASCIMENTO 14
META
Apresentar o surgimento do pensamento científico moderno à luz da crítica de
Galileu ao racionalismo dogmático.

OBJETIVOS
Ao final desta aula, o aluno deverá:
identificar as características da Revolução Científica;
reconhecer as principais contribuições da filosofia para a ciência;
e demonstrar o papel decisivo de Galileu para construção da ciência moderna.

PRÉ-REQUISITOS
O aluno deverá revisar os assuntos relativos à Idade Média.

Homem vitruviano. Reprodução fotográfica. Leonardo da Vinci 1490.


(Fonte: http://upload.wikimedia.org).
Introdução à Filosofia

INTRODUÇÃO

Opensamento de Galileu está intimamente ligado à Revo-lução Cientí-


fica do século XVI. Com ele ocorre uma mu-dança radial na atitude mental
da nascente ciência moderna. Esta mudança, comparada por alguns, somente
com a descoberta do “cosmos” pelos gregos, se estrutura em dois pontos:
1) a destruição da concepção medieval do universo e, consequentemente, de
todos os conhecimentos fundados neste; 2) a geometrização do espaço, ou
seja, a substituição da concepção de um espaço cósmico, qualitativamente
diferenciado e concreto, por um espaço homogêneo e abstrato da geometria
euclidiana. Mas o que significa de fato a dissolução da noção de cosmos
realizada por Galileu? Diríamos que é a destruição de uma idéia de mundo
finito e ontologicamente diferenciado, ou seja, um mundo aristotelicamente
dividido em dois planos: divino (regido por leis eternas) e sublunar (regido
pela física). Esta concepção entrou em crise entre os séculos XV e XVI. O
aristotelismo-escolástico já não representava o modelo de conhecimento
passando a ser considerado como uma “teorética estéril”. Era preciso uma
reconstrução do saber teórico livre de toda interpretação metafísica. Este
período também é marcado por uma forte expressão de um naturalismo
imanentista, isto é, por uma busca de compreensão da natureza como
Nicolau de Cusa possuidora de uma estrutura interna e não como expressão teleológica
Foi um cardeal
transcendente.
da Igreja Católica Nicolau de Cusa ao reconhecer, na Docta ignorantia, a incognosci-
Romana e filósofo bilidade da realidade divina, atribuindo ao pensamento humano a tarefa de
do Renascimento. compreensão da estrutura unitária da realidade natural, já apontava para
Também autor de esta visão imanentista.
inúmeras obras Pensadores como Paracelso, Agrippa alargaram o campo da experiência
sendo a principal
delas Da Douta Ig-
ao estudarem os fenômenos naturais independentemente da ideologia tradi-
norância publicada cional. Giordano Bruno, com sua interpretação metafísica do naturalismo,
em 1440. Filho de criticando os conceitos aristotélicos e escolásticos, defendeu a infinidade
um barqueiro João de mundos e resgatou a discussão copernicana frente ao geocentrismo.
Cryfts e de Catarina De modo que o pensamento de Galileu é fruto de um lento processo
Roemer. Teólogo e histórico cultural e especulativo que culminou no que denominamos de
filosófo humanista,
é considerado o pai
Renascimento. Um período em que os conceitos e princípios que funda-
da filosofia alemã e, mentavam a noção de mundo passaram por uma rígida crítica que teve como
como personagem base a aplicação da matemática à definição das leis mecânicas. Vejamos, de
chave na transição modo mais detalhado, algumas idéias do pensamento de G. Galileu.
do pensamento me-
dieval ao do Renas-
cimento, um dos
primeiro filósofos
da Idade Moderna

106
Filosofia e ciência no renascimento
Aula

14

O geocentrismo, teoria sustentada por Ptolomeu e Aristóteles, consistia na defesa da


terra como centro do sistema planetário. (Fonte: http://pt.wikipedia.org).

Aristarco de Samos (310-230 a.C) foi o primeiro a propor o sol como centro do
sistema planetário, (heliocentrismo) mas foi somente com Nicolau Copérnico (1473-
1543)que a teoria ganhou força. (Fonte: http://bp2.blogger.com).

107
Introdução à Filosofia

FILOSOFIA E CIÊNCIA

Um dos pontos de maior importância para a compreensão da concepção


de ciência em Galileu, consiste na sua crítica ao pensamento aristotélico.

A CRÍTICA DE GALILEU AO RACIONALISMO


Teleologia
DOGMÁTICO-METAFÍSICO.
Visão que defende
a relação entre um A física de Aristóteles se fundamenta, basicamente, na percepção
fato e sua causa fi- sensível e, deste modo, pode ser caracterizada como anti-matemática. Aris-
nal.
tóteles substituiu a posição hipotético-metódica do racionalismo platônico
por uma posição empirista, ou seja, o estagirita encerra o processo teórico
em um sistema conceitual partindo de um aspecto muito particular da ex-
Peripatetismo periência. Este modo de proceder ficou conhecido como “sistematização
racional aristotélica” e serviu de base para a escolástica. O problema deste
Literalmente signifi- método está no fato de excluir a progressividade do sistema conceitual.
ca “ensinar camin-
A idéia teleológica que continha o peripatetismo, obscurecia os dados
hando”, pois esta era
uma característica das experiências e, ao mesmo tempo, não refletia o sentido e a função dos
do modo de ensinar conceitos.
aristotélico. Galileu se posiciona contrário ao aristotelismo por dois motivos:
primeiro, sua concepção de espaço e movimento e, segundo, a aceitação da
linguagem matemática como instrumento adequado para a compreensão
da realidade natural.
A lógica aristotélica era, para Galileu, bastante eficaz para a análise
do discurso, para a retórica, para as ciências morais, mas não para a com-
preensão da natureza.
Na sua obra Diálogo sobre os dois máximos sistemas, Galileu buscou
reabrir, embora aparentemente tivesse valorizando a cultura católica, a dis-
cussão sobre a concepção copernicana do universo, não como uma hipótese
Galileu Galilei
matemática, mas como uma visão real das coisas. Foi em Copérnico que
Nasceu em Pisa Galileu encontrou um novo caminho para conceber o mundo com novos
(Itália 1564-1642). olhos e novos exames. Sua crítica ao aristotelismo pode ser resumida nos
Foi matemático, as- seguintes pontos: a) ataque à divisão aristotélica entre os mundos celeste
trônomo e contri- e terrestre. Para Galileu, o universo é um todo regido por leis idênticas. O
buiu decisivamente segundo ponto, consiste na defesa de galileniana de Copérnico contar os
para a instauração
das bases para o hu-
ataque, no que diz respeito ao movimento dos corpos inclusive da terra.
manismo e Filosofia Argumentos do tipo: os graves caem perpendicularmente ou que uma
Moderna. (Retrato: pedra jogada do alto de uma torre deveria cair distante da sua base, devido
http://www.df.ufpe. ao movimento da terra, são desconsiderados por Galileu como falsas.
br/) Além destes dois pontos, podemos citar outros três expostos na sua
obra De il saggiatori em que Galileu critica diretamente a tradição escolástica
medieval, são eles: a) que o paripatetismo tem como base uma arbitrariedade

108
Filosofia e ciência no renascimento
Aula

dos processos lógicos, produzindo, consequentemente, conceitos inexatos


e ambíguos; b) critica a autoridade da tradição a partir da distinção entre
poesia, erudição histórica e ciência – esta apontada como a única fonte de
14
mediação entre a razão e a experiência; c) acusa o peripatetismo de renegar
os próprios princípios de aristóteles que não eram, segundo Galilieu, senão
que ensinar o saber científico mediante os sentidos.

A famosa experiência que teria feito Galileu, ao subir na torre de Pisa


e atirar uma pedra, ajudou a demonstrar a influência gravitacional da
terra sobre os corpos. (Fonte:http://www.projetovega-ufu.com.br).

A CONCEPÇÃO GALILENIANA DE CIÊNCIA

Uma das características mais marcantes do pensamento de Galileu e


da ciência moderna consiste na separação dos assuntos destinados à fé e os
destinados à ciência. Segundo Galileu, a religião, por se pautar no dogma da
revelação, não tem autoridade para determinar nem opinar em assuntos que
envolvem disputadas naturais. Para ele, isso caberia à ciência justamente pelo
fato desta se pautar na razão e ter como método as sensatas experiências
e demonstrações necessárias.
O conhecimento científico é, portanto, autônomo com relação à fé.
Livre dos argumentos do tipo ipxe dixit, ou seja, que não resistem a demon-
strações, Galileu proporá uma ciência voltada para o mundo sensível e não
para o “mundo do papel”.
Para Galileu, assim como a religião a tradição também pode tornar-se
danosa quando assume o estado de dogmáticas. A ciência é antes de tudo
realista e não um mero instrumento de cálculos úteis para previsões. Ela
descreve e interroga a natureza. Ao descrever a realidade a ciência passa

109
Introdução à Filosofia

a ser objetiva desmerecendo valores puramente subjetivos. Galileu busca


diferenciar ciência de pseudo-ciências. Ao demonstrar a geometrização da
natureza Galileu deslocou o universo antropocêntrico-aristotélico. Uma das
grandes contribuições realizadas por Galileu foi a instauração de um novo
método de saber frente ao teologismo tradicional. Galileu aponta para a
observação direta dos fenômenos naturais como uma exigência racional.
Para ele, o método científico consiste em uma determinação recíproca
entre a esfera do empírico e a do racional, ou seja, a partir da observação
empírica formula-se uma lei geral expressando relações matemáticas tais
que possam representar a estrutura do fenômeno para, em seguida, con-
frontar com os dados da experiência, buscando, assim, uma harmonização
pela análise e síntese.

Sistema solar. (Fonte: http://images.dpchallenge.com).

O método consistia, portanto, em uma determinação recíproca entre


o universal e o particular, entre o empírico e o racional. O copernicanismo
de Galileu passa a ser entendido como uma teoria física e uma explicação
racional da verdade. Para nosso pensador, antes de se querer entender o
universo é preciso saber qual é a sua “língua” e, para ele, a língua do universo
é a matemática. Todo o universo se expressa em figuras geométricas. Com
Galileu houve a substituição do mundo qualitativo da experiência cotidiana
e da percepção sensível pelo mundo abstrato de Arquimedes. O método
científico para Galileu se compõe de dois momentos que se interconectam,
são eles: as “sensatas experiências”, isto é, a observação mediante os senti-
dos dos fenômenos em análise e “ as necessárias demonstrações” que são
conseqüências deduzidas rigorosamente das experiências.

110
Filosofia e ciência no renascimento
Aula

CONCLUSÃO

A partir do que foi dito, podemos concluir que todo es-forço de Galileu
14
justifica-se na busca de libertação da ciência do racionalismo dogmático-
metafísico ao qual permaneceu submetida a tradição filosófico durante
muito tempo. Longe do ideal de uma razão fechada em um sistema de con-
ceitos, Galileu propõe sua substituição por uma “sistemática aberta” que
se desenvolveu simultaneamente com o aprofundamento e o alongamento
do método experimental. O conhecimento científico não se limita mais a
conceitos genéricos e abstrações arbitrárias do dado empírico, mas por
“leis universais” que determinam a íntima relacionalidade da experiência. A
filosofia de Galileu é ciência, ou seja, é fruto da razão e da experiência. O
livro da natureza se revela por meio da matemática e da experiência graças
ao aperfeiçoamento dos sentidos e por meio de instrumentos e cálculos.

RESUMO
A obra de Galileu está intimamente ligada à Revolução Científica.
Galileu, impulsionado pelo pensamento copernicano, destruiu as bases
do pensamento aristotélico-tomista e contribuiu para o estabelecimento
do “método científico” de investigação que tinha como características a
experimentação e a demonstração. Adepto de uma visão matematizada
do universo, Galileu reestruturou o pensamento científico ao harmonizar,
mediante a análise e síntese, os dados empíricos e os dados racionais.

ATIVIDADES

1. Qual a diferença entre as teorias geocêntricas e heliocêntrica do universo


e que influências tiveram para a filosofia e para a religião no Renascimento?
2. Em que medida podemos dizer que Copérnico revolucionou a concepção
de ciência na sua época?
3. Qual a relação entre razão e experiência em Galileu?

COMENTÁRIO SOBRE AS ATIVIDADES


As três questões têm como base a revolução copernicana, isto é, a
mudança de eixo no que concerne a estrutura última do universo e
suas leis. De modo que é importante observar o papel da matemática
como “língua” do próprio cosmo.

111
Introdução à Filosofia

PRÓXIMA AULA

Na aula 15, veremos a relação de Francis Bacon com a ciência moderna


e também sua concepção de filosofia.

REFERÊNCIAS

BASTOS, F. J. B. A leitura do grande livro da natureza de Galileu se-


gundo Ítalo Calvino. Scientia, v. 5, n. 2p, 53-63, 1994.
BRITO, A. A. S. O plano inclinado: um problema desde Galileu. Cad.
Cat Ens. Fís., v. 2, n.2: 57-63.
GALILEI, Galileu. O Ensaiador. 3 ed. São Paulo, Ed. Abril Cultural,
1983-1985 (Coleção Os Pensadores).
GALILEI, Galileu. A mensagem das estrelas. Rio de Janeiro: Museu de
Astronomia e Ciências Afins, 1987.
KOYRÉ, A. Estudos de História do Pensamento Científico. Brasília:
Ed. UnB, 1982.
LUCIE, P. A gênese do método científico. Rio de Janeiro: Campus, 1978.

112
Aula
FRANCIS BACON E O
PROGRESSO CIENTÍFICO 15
META
Expor a concepção baconiana de filosofia e sua relação como a ciência moderna.

OBJETIVOS
Ao final desta aula, o aluno deverá:
definir a noção de método em F. Bacon;
descrever a concepção de Filosofia;
analisar a crítica de Bacon à tradição anterior;
e definir a noção de Ciência.

PRÉ-REQUISITOS
O aluno deverá ter noções acerca do pensamento científico moderno à luz da crítica
de Galileu Galilei ao racionalismo dogmático.

Capa da obra Instauratio Magma (Fonte: http://www.uh.edu).


Introdução à Filosofia

INTRODUÇÃO

Quando nos referimos a idéia de método, de imediato, três nomes


surgem em nossa mente: Galileu Galilei, Francis Bacon e René Descartes.
Galileu pela teorização da natureza do método, Descartes pelo discurso e
Bacon pela análise e reforma do método.
Ao publicar sua obra mais importante o Novum organum, Bacon tinha
como pretensão a substituição do método tradicional-aristotélico da ciência
que, para ele, era estéril e incapaz de contribuir para o progresso humano.
Seu pensamento se mantém em torno de um ponto central, a saber: a real-
ização prática do saber, dito de outro modo, o conhecimento como meio
Francis Bacon
para a organização e transformação progressiva da vida humana.
Nasceu em Lon-
dres, 22 de Janeiro
de 1561, 9 de abril
de 1626) foi um
político, filósofo
e ensaísta inglês,
barão Verulam, vis-
conde de St. Albans.
Desde cedo, sua
educação orientou-
o para a vida políti-
ca, na qual exerceu
posições elevadas.
Em 1584 foi eleito
para a câmara dos
comuns.

(Fonte: http://www.ff.ul.pt).

114
Francis bacon e o progresso científico
Aula

FRANCIS BACON 15
Caro aluno, Francis Bacon critica veementemente, como veremos
mais adiante, toda a tradição filosófica anteri-or. Pensadores como Platão,
Aristóteles, Cícero, Tomás de Aquino entre outros, serão alvos dos seus
ataques. Vejamos o que diz ele no Organum XVI : “Tudo o mais que o
homem até aqui tem usado são aberrações, não foram abstraídas e levantadas
das coisas por procedimentos devidos”. Nesta mesma obra, Bacon chama
atenção para os efeitos práticos das invenções da impressão, da pólvora e
da bússola. A impressão proporcionou a literatura, a pólvora a guerra e a
bússola a navegação. Pergunta ele: será que essas coisas foram produzidas
pelo método de investigação tradicional? Sua resposta é não.

A CONCEPÇÃO DE FILOSOFIA BACONIANA E


SUAS PARTES

Para Francis Bacon, a alma humana é composta de três partes dis-


tintas, são elas: a memória, associada à história; a imaginação, associada à
poesia; a razão, referente à filosofia. A filosofia se constitui, deste modo,
na parte racional da alma humana e se divide em outras três partes: a) a
que concerne a Deus ( Teologia natural ou racional); b) a que concerne a
natureza e c) a que concerte ao homem. A filosofia é conhecimento direto
da natureza (radio directo) mediante a razão (ratio). É conhecimento de
Deus por meio das criaturas (radio refracto) e conhecimento do homem
mediante a reflexão (radio reflexo). Bacon divide a filosofia da natureza em
duas partes: especulativa e operativa. A especulativa divide-se em física e
metafísica. É importante ressaltar que, para Bacon, a física e a metafísica
estão intimamente ligadas, posto que, ambas estudam as causas e princípios
da realidade, no entanto, são distintas no que se refere aos tipos de causas
estudadas. Vejamos melhor está diferenciação.
A física estuda as causas eficiente e material, enquanto que a metafísica
estuda a causa formal e a causa final. A metafísica, portanto, trata das causas
formais ou das leis fixas da natureza. Na verdade não há divisão entre física
e metafísica. É possível pensar que Bacon não acrescenta muito além do
que disse Aristóteles, no entanto, a noção da causa em Bacon diferencia-se
muito do que pensou o estagirita. Um fato extremamente importante é que
a investigação das causas, em Bacon, não tem o sentido de contemplação,
mas sim de ação. O conhecimento das leis da natureza é a maneira pela
qual o homem aumenta seu domínio sobre os corpos. E em que consiste
a parte operativa?
A filosofia operativa é simplesmente a aplicação prática da física especu-
lativa. Se divide em: mecânica (observacional) e magia (não observacional).

115
Introdução à Filosofia

A mecânica pode ser definida como a aplicação prática da física, enquanto


que a magia, que nada tem haver com superstição, é simplesmente a aplicação
pratica da mecânica, ou seja, das leis que forjam a observação.
A terceira parte da filosofia, que compreende ao estudo do homem,
divide-se em philosophia humanitatis (antropologia) e philosophia civilis
(política). A filosofia, para Bacon, deve buscar, antes de tudo, o conheci-
mento da natureza física. Neste sentido, Bacon se afasta muito do pensa-
mento aristotélico – da contemplação da causa final – e se aproxima do
materialismo de Demócrito. Muitos definem Bacon como um mecanicista
Demócrito de naturalista pelo fato dos seus estudos dirigirem-se ao dado material.
Abdera

Filósofo grego de- O ROMPIMENTO COM A TRADIÇÃO, A LÓGICA E


fensor da teoria
atomista. (460/360
O SABER MÁGICO-ALQUIMISTA
a.C). Segundo ele,
tudo é átomo e, Como dissemos anteriormente, para Bacon, o conhecimento produzido
consequentemente, até então não tinha contribuído para a transformação do mundo, isto é, por
tudo é matéria. não ser um conhecimento prático se converteu em verborragia. Podería-
mos dizer, portanto, que a tarefa de F. Bacon foi substituir a filosofia das
palavras pela filosofia das obras. Um fato de fundamental importância é a
filiação do conhecimento com a experiência. Embora adepto da alquimia,
Bacon soube retirar deste tipo de saber o que interessava para a ciência. A
idéia da ciência como força ativa com a finalidade de transformar a situação
humana, a idéia do homem como ministro e interprete da natureza derivam
diretamente deste aspecto mágico-alquímico que persiste na sua obra. Vale
Indução
ressaltar que estas idéias perdem seu caráter de “sobrenatural” ou “transcen-
Método que extraí dente” e assumem um sentido bem próprio no pensamento de Bacon. Todo
regras gerais a par- saber é fruto da colaboração, do progresso que se dá na história. A magia é
tir da observação de ocasional enquanto que o saber é um processo metódico, claro e objetivo.
casos particulares. A lógica foi outro ramo do saber atacado por Bacon. No aforismo
Ex: caminhando en- XIII do Novum organum ele afirma: “O silogismo não é empregado para
contro uma Garça e
o descobrimento dos princípios da ciência; é baldada a sua aplicação a axi-
vejo que é branca ;
mais adiante outra omas intermediários, pois se encontra muito distante das dificuldades da
Garça e constato natureza. Deste modo, envolve o nosso assentimento, mas não as coisas”.
que também é bran- Junto com a lógica tradicional o método indutivo também será alvo dos
ca, Pelo método in- ataques de F. Bacon.
dutivo eu poderia O método indutivo tradicional consiste, segundo Bacon, em um
então formular:
procedimento indevido, posto que, as inferências são retiradas de modo
que todas as Gar-
ças são brancas. Isto apressado do particular ao universal. Para Bacon, a verdadeira indução
é, observei casos exige cautela e paciência. É uma verificação constante dos casos pelas ex-
particulares e inferi periências. Voltaremos a tratar mais especificamente este assunto um pouco
uma lei universal. mais adiante, quando abordaremos o método em Bacon.

116
Francis bacon e o progresso científico
Aula

A CONCEPÇÃO DE CIÊNCIA EM BACON

Segundo Bacon, era imprescindível a implantação de uma ciência que


15
sobrepusesse o método de conhecimento tradicional, estéril e distante do
progresso humano. Que novo saber foi esse? No princípio do Novum or-
ganum Bacon afirma: “O homem, ministro e intérprete da natureza, faz e
entende tanto quanto constata, pela observação dos fatos ou pelo trabalho
da mente, sobre a ordem da natureza; não sabe nem pode mais” (Aforismo Axioma
I). Ciência é, portanto, conhecimento da natureza. É importante ressaltar Este conceito possui
que Bacon não despreza a tradição, mas concentra-se em demonstrar que os várias interpretações,
conhecimentos, até então, atuavam com escasso empenho e parco sucesso mas no caso aqui
(Aforismo VI). estudado pode ser
O conhecimento científico teria sido produzido de maneira precipitada definido como: uma
e, neste sentido, longe de se aproximar da realidade, serviu apenas para dis- verdade evidente que
fundamenta e garante
putas. Para nosso filósofo existem dois modos de se conhecer: 1) partindo o saber.
do sensível e das percepções particulares a axiomas mais gerais deduzindo,
assim, proposições menos gerais; 2) partir do sensível e das percepções a
axiomas imediatamente alcançáveis e logo gradual e pacientemente chegar
a axiomas mais gerais.
O primeiro modo é atribuído à tradição.
Bacon o toma como insuficiente e insatisfatório
pelo fato de não existir um exame profundo
dos casos particulares saltando a axiomas e
conclusões também gerais. A este método, Ba-
con chamou de antecipações da natureza. Dito
de outro modo, são generalizações temerárias
e pré-maturas. Resumiríamos a crítica dizendo
que neste caso salta-se das sensações a axiomas
gerais de modo impreciso. O segundo caso,
Bacon nomeia de interpretações da natureza e
seria, segundo ele, um caminho seguro e paci-
ente. O verdadeiro conhecimento seria, assim,
o método de interpretação da natureza e não
de antecipações. Ressalta Bacon que a aquisição
do conhecimento certo, não é uma tarefa muito
fácil como pode parecer, posto que, a mente hu-
mana está povoada de preconceitos que falseiam
seus julgamentos. Chegamos, deste modo, na
teoria dos “ídolos”.
(Fonte: http://caos.di.uminho.pt).

117
Introdução à Filosofia

A TEORIA DOS ÍDOLOS

A relação entre a teoria dos ídolos e o conhecimento é tão profunda


que Bacon compara com a relação entre a sofística e a dialética platônica.
Sendo assim, do mesmo modo que o dialético necessita conhecer os argu-
mentos dos sofistas, o cientista deve conhecer muito bem os ídolos para
que não venha a sofrer suas influências.
São quatro os ídolos: a) ídolos da tribo; b) ídolos da caverna; c) ídolos da
praça ou ídolos do mercado e (d) ídolos do teatro. Para melhor compreensão
do papel que desempenha cada um destes ídolos, seguiremos passo a passo
a definição baconiana exposta no Novum organum.
a) Ídolos da tribo: os ídolos da tribo estão impregnados na própria natureza
humana. O homem é propício a satisfazer-se com o que impressiona os
sentidos e, consequentemente, em desprezar o que não é diretamente ob-
servável. Os sentidos, para Bacon, são os sentidos em si mesmos, são débeis
exigindo, assim, o apoio interpretativo da ciência. Observa Bacon que a
natureza humana é propícia a aceitar as idéias que lhe são agradáveis, bem
como, refutar as mais difíceis e que requerem um maior exame.
b) Os ídolos da caverna: a idéia da caverna é uma alusão clara ao mito
platônico presente no livro VII da República e expressa bem o seu sentido,
isto é, indivíduos fechados em seu mundo particular e, ao mesmo tempo,
representa bem os erros advindos das concepções particulares, frutos de
uma má educação, do temperamento e das leituras. Estes fatores juntos
levam os indivíduos a interpretarem os fenômenos a partir de um ponto
de vista particular, ou seja, da sua própria caverna.
c) Os ídolos da praça ou do mercado: a rigor estes ídolos referem-se aos
erros cometidos pelo uso indevido da linguagem. Bacon reconhece que
até os homens mais doutos comentem tais erros. Em resumo, são os usos
indevidos de palavras e definições que não correspondem à verdade.
d) Os ídolos do teatro: para F. Bacon todos os sistemas filosóficos anteri-
ores nada mais são do que “peças” de teatro ou falsas filosofias. Aristóteles
com sua dialética teria pervertido a filosofia natural convertendo-a em uma
filosofia supersticiosa e teológica.
De modo que, para nosso filósofo, somente após a liberação da mente
destes ídolos, o homem pode, segundo Bacon, definitivamente, dirigir-se
ao estudo da natureza de forma progressivo e ordenado.

A CIÊNCIA COMO DESCOBRIMENTO


DAS CAUSAS

Comecemos lendo esta esclarecedora citação do Novum organum,


Afor. LXVIII:

118
Francis bacon e o progresso científico
Aula

Já falamos de todas as espécies de ídolos e de seus aparatos. Por


decisão solene e inquebrantável todos devem ser abandonados e
abjurados. O intelecto deve ser liberado e expurgado de todos eles,
15
de tal modo que o acesso ao reino do homem, que repousa sobre as
ciências, possa aparecer-se ao acesso ao reino dos céus, ao qual não
se permite entrar senão sob a figura da criança.

Pois, qual é o objetivo da ciência? De modo geral, diríamos que o fim


da ciência humana consiste em descobrir a forma de uma natureza dada e
intervir dando-lhe uma utilidade, ou uma nova natureza como, por exemplo:
do domínio da natureza do aço fazer colheres, armas etc. Temos que ter
cuidado para não interpretar o pensamento de Bacon como algo puramente
utilitarista. No fundo, o que está em jogo é o progresso nos processos de
interpretação da natureza, ou seja, das suas leis intrínsecas. Por essa razão,
Bacon define a descoberta científica a partir de dois momentos constitutivos:
processo latente (latens processus) e esquematismo latente (latens schema-
tismus). O primeiro diz respeito aos processos que não são perceptíveis
por meio da observação. O segundo significa a estrutura latente de uma
determinada natureza, isto é, não se pode alterar um determinado corpo
sem o conhecimento prévio da sua estrutura. De modo que, poderíamos
resumir a tarefa do filósofo como sendo o conhecimento da estrutura de
um fenômeno e as leis que o rege.
Mas, como se dá tal conhecimento? Bacon criticou, como vimos ante-
riormente, o método indutivo tradicional. Segundo ele, é preciso um novo
método ou caminho correto para o progresso científico. Então, em que
consiste, de fato, tal método? São duas etapas que compõem a pesquisa
científica: a primeira consiste na extração de axiomas a partir da experiên-
cia e a segunda, a dedução e derivação de novos experimentos a partir dos
axiomas.
Podemos formular a seguinte questão: é possível retirar axiomas da
experiência? A guisa de resposta diríamos que, para Bacon, pela verdadeira
indução, ou seja, uma indução que não se resume simplesmente a enume-
ração de casos particulares, mas a eliminação das hipóteses inviáveis, seria
sim possível.
E como ocorre tal processo? Tomemos o clássico exemplo do calor.
Para se estabelecer a natureza do calor é preciso, primeiro, estabelecer
onde se apresenta o calor (sol, fogo...), em seguida se estabelece o que
Bacon chamou de tábua de ausências, ou seja, casos nos quais o calor não
se apresenta (lua, fogo fátuo...) e, por fim, uma tábua de graus onde são
enumerados todos os casos em que o fenômeno se apresenta segundo uma
intensidade maior ou menor, naturalmente, é preciso levar em consideração
as condições ambientais.

119
Introdução à Filosofia

Sol (Fonte: http://www.mgrande.com).

Após estes procedimentos dar-se-á o processo de indução por elimi-


nação de hipóteses falsas, ou seja, seguindo o estabelecido pelas tábuas,
elabora-se uma série de questionamentos do tipo: o calor é apenas um
fenômeno celeste? Todos os corpos são quentes? O calor depende de uma
composição particular dos corpos? E assim, a partir da eliminação suces-
siva de hipóteses negativas chega-se a uma primeira colheita (uindemiatio
prima), isto é, a uma primeira hipótese. Nesta perspectiva, Francis Bacon
trilhou um caminho situado entre dois tipos de cientistas da sua época: os
empiristas e os dogmáticos.

CONCLUSÃO
Apartir do exposto, podemos compreender o modo de como se dá o
progresso científico para Francis Bacon. Sem dú-vida, ao expor o conhe-
cimento científico como um processo progressivo – a verdade como filha
do tempo – e não como fruto de autoridade, seja teológica ou filosófica,
Bacon criou um novo horizonte para o conhecimento. O rompimento com
a tradição dogmática e, principalmente, a busca pela libertação dos ídolos,
que impedem o desenvolvimento do saber, contribuiram decisivamente
para a construção da ciência moderna. Uma ciência que, comprometida
com a técnica, com o domínio dos processos, com o exame cuidadoso dos
seus passos, promoveu um avanço significativo e que ainda hoje permanece
devedor das investigações iniciadas por pensadores com Bacon.

120
Francis bacon e o progresso científico
Aula

RESUMO

Francis Bacon é, sem dúvida, um dos maiores pensadores da ciência


15
moderna. Crítico feraz da tradição científica, Bacon colocou, definitiva-
mente, as bases para o estabelecimento do método científico moderno.
Sua crítica ao método indutivo clássico que, segundo ele, baseava-se em
precipitações e não em procedimentos concretos, permitiu a formulação de
uma metodologia capaz de associar, de forma rigorosa, experiência e teoria.
A indução por eliminação de hipóteses falsas é a chave que permitiu a Ba-
con superar o dogmatismo e os erros típicos da tradição filosófica clássica.

ATIVIDADES
1. Exponha a crítica de Bacon ao método indutivo.
2. Qual o sentido da frase: o homem como interprete da natureza?
3. Exponha a teoria dos Ídolos.

COMENTÁRIO SOBRE AS ATIVIDADES


É importante, como base para suas respostas, observar que os “ídolos”
são um empecilho para o conhecimento e, neste sentido, todo o método
de F.Bacon, gira em torno da “purificação”, por parte da ciência, dos
falsos julgamentos e preconceitos.

PRÓXIMA AULA
Na próxima aula, serão apresentadas as regras do método cartesiano.

REFERÊNCIAS

BACON, Francis. Novum organum ou verdadeiras indicações acerca


da interpretação da natureza. Traduzido por Jose Aluysio Reis de An-
drade. São Paulo: Nova Cultural, 1997. (Coleção Os Pensadores).

121
Aula
O RACIONALISMO CARTESIANO
E AS REGRAS DO MÉTODO 16
META
Expor as regras do método cartesiano

OBJETIVOS
Ao final desta aula, o aluno deverá:
fundamentar os passos constituintes do método cartesiano;
e definir o argumento do “Cogito”.

PRÉ-REQUISITOS
O aluno deverá revisar os assuntos relativos à ciência moderna.
Introdução à Filosofia

INTRODUÇÃO

Na aula de hoje, veremos o racionalismo cartesiano e as regras do


método. René Descartes, ou Cartesius, nas-ceu em 1596 e morreu em 1650.
René Descartes A formação acadêmica de Descartes foi uma típica formação dos jovens
nobres da França. Estudou no mais famoso colégio da época (La Flèche)
Filósofo, físico e
matemático francês e teve uma ampla formação tanto filosófica quanto científica. No entanto,
(1596/1650). Tam- Descartes movido pelo espírito que marca a ciência moderna, não se limi-
bém conhecido tou a reproduzir as velhas fórmulas ensinadas pelos seus mestres de modo
como Cartesius, estéril e histórico. Como homem do seu tempo, Descartes se converteu em
notabilizou-se por um crítico feroz da tradição escolástica.
seus trabalhos em
O início das suas reflexões está marcado pela busca de determinação de
Filosofia e pela cria-
ção do sistema de um método capaz de, assim como almejava Francis Bacon e outros, propi-
coordenadas car- ciar autonomia e objetividade à razão. Spinoza, Malebranche, Port-Royal,
tesianas. Publicou Leibnitz forão alguns dos pensadores que seguiram este mesmo ideal. No
o Discurso sobre o fundo, estabelecer um método para o conhecimento é uma das grandes,
método (1637). senão a maior, característica do pensamento moderno.

Colégio Jesuíta de La Flèche, França. (Fonte: http://oregonstate.edu).

Descartes publicou, em anexo ao Discurso do Método,


um texto chamado A Geometria que visava demonstrar
matematicamente suas reflexões filosóficas.

124
Francis bacon e o progresso científico
Aula

CARTESIANO 15
Descartes movido pelo desejo de estabelecer uma base segura para o
conhecimento assumiu o desafio de en-frentar o ceticismo que reinava no
século XVII, graças a influência, principalmente, de Micbel Montaigne e
da sua experiência como aluno em La Flèche, como podemos ler na Primeira
parte do Discurso: “aprendi a não crer demasiado firmemente em nada
do que me fora inculcado só pelo exemplo e pelo costume” (Discurso do
Método, op.cit. p. 47). E mais adiante afirma: “Mas, depois que empreguei
alguns anos em estudar assim no livro do mundo, e em procurar adquirir
algumas experiências, tomei um dia a resolução de estudar também a mim
próprio e de empregar todas as forças de meu espírito na escolha dos Michel de
caminhos que devia seguir” (Ibidem, p 48). Montaigne
É possível conhecer? Como garantir a validade dos nossos juízos? Autor dos Ensaios,
Questões como estas colocavam em xeque os pilares do conhecimento Montaigne é con-
científico, no entanto, não intimidavam nem abalavam o desejo de Descartes siderado, por muitos,
em reconstruir os alicerces para o conhecimento. Frutos deste desejo nasce- como cético posto
ram suas obras mais importantes que são: Regras para o direcionamento que defendia que
do espírito (1628), Discurso do método ou Discurso sobre o método o único fim da sa-
bedoria é aprender
para bem conduzir a razão na busca da verdade dentro da ciência (1637) e a não julgar. Não
Meditações sobre a filosofia primeira (1641). haveria, segundo ele,
Para esta aula introdutória, faremos uma breve exposição dos principais critérios objetivos
argumentos que compõem o Discurso do Método, bem como, demon- capazes de justifica-
straremos a aplicabilidade do método nas Meditações, particularmente, na rem uma escolha em
formulação da mais conhecida certeza encontrada por Descartes, a saber: detrimento de outra
a não ser a tradição e
Penso, logo existo. o costume. Segundo
Montaigne, nunca
O MÉTODO CARTESIANO devemos estar con-
vencidos das nossas
opiniões. (1533-
Como já afirmamos, filosofar para Descartes é pensar metodicamente. 1592).
O modelo para este novo modo de pensar, R. Descartes encontrou na
matemática.
A matemática, para ele, era formadora do espírito, visto que suas ver-
dades se manifestavam de modo absoluto e espontâneo.
Por essa razão, afirma o filósofo que foram os matemáticos os únicos
capazes de encontrar, na busca do conhecimento, razões certas e evidentes
(Regra IV). Vale ressaltar que Descartes não reduz seu método à matemática,
ou seja, o método cartesiano não é um método matemático, mas se espe-
lha neste modelo. O método, como o termo grego meta hódos expressa
caminho e, enquanto tal, aplicável universalmente a todas as ciências. No
campo da matemática, por exemplo, Descartes inaugurou com a aplicação
do Método a chamada geometria analítica e fundou outros conhecimentos
no campo da Álgebra e da Aritmética.

125
Introdução à Filosofia

Árvore em que os ramos representam cada um a moral, medicina e a mecânica, o tronco representa
a física e as raízes a metafísica. (Fonte: http://educaterra.terra.com.br).

Segundo nosso filósofo, o conhecimento poderia ser descrito através


da imagem de uma grande árvore.
A moral seria a mais elevada e mais perfeita das ciências porque pres-
Apodíctico supõe um conhecimento integral das outras ciências, sendo assim, o grau
mais último de toda sabedoria. E quais são as regras que compõe o Método?
Conhecimento
demonstrável, evi-
dente e necessário.
AS REGRAS

As regras têm por objetivo descreverem como pensa o espírito ao


refletir de modo matemático, ou seja, de modo apodíctico. Sabemos que
a matemática goza de um rigor e, portanto, do estatuto de universalidade.
A filosofia é, por definição, o amor à sabedoria sendo necessário, para isso,
adquirir o hábito pelo pensar.

126
O racionalismo cartesiano e as regras do método
Aula

Para que o pensamento possa extrair os princípios fundamentais e úteis


para o homem é necessário um encadeamento rigoroso, capaz de propiciar a
dedução a partir dos primeiros princípios. Neste sentido, chama-se método
16
a ordem que o pensamento deve seguir para chegar à sabedoria. Depois
de ter exposto nas Regras para a orientação do espírito (1628), Descartes
decidiu reduzir os vinte e um princípios ou regras a quatro preceitos simples
e válidos:
1. “Jamais acolher alguma coisa como verdadeira que eu não conhecesse
evidentemente como tal; isto é, de evitar cuidadosamente a precipitação
e a prevenção, e de nada incluir em meus juízos que não se apresentasse
tão clara e tão distintamente a meu espírito, que eu não tivesse nenhuma
ocasião de pô-lo em dúvida”.
É importante observar que esta é a primeira regra, mas também é a
última, no sentido de que a “evidência” é o ponto de partida e de chegada
de toda reflexão. Vemos também, o contraponto entre a precipitação e a
dúvida, a prevenção e a evidência, a clareza e a distinção.
2. “Dividir cada uma das dificuldades que eu examinasse em tantas parcelas
quantas possíveis e quantas necessárias fossem para melhor resolvê-las.”
Nesta regra temos manifesto um procedimento analítico que decompõe
o todo em vários elementos, fato este que conduz à evidencia posto que
permite a luz do intelecto dissipar as ambigüidades. Se a evidência é ne-
cessária para a certeza, e a intuição é necessária para evidência, para a in-
tuição, entendida como um conceito indubitável da mente pura e eterna, é
necessário a simplicidade derivada da decomposição em partes elementares.
3. “Conduzir por ordem meus pensamentos, começando pelos objetos
mais simples e mais fáceis de conhecer, para subir, pouco a pouco, como
por degraus, até o conhecimento dos mais compostos, e supondo mesmo
uma ordem entre os que não se precedem naturalmente uns aos outros.”
Se na regra anterior prevalecia a decomposição do conjunto, nesta se dá
a síntese, ou seja, a recomposição dos elementos que foram decompostos.
Dito de outro modo, é recompor a ordem e criar uma cadeia de raciocínio
ou formulação hipotética capaz de explicar a realidade em análise. Cumpre
dizer que, neste processo, as verdades dependem uma das outras, ou seja,
que existe uma ordem ou uma cadeia lógica no raciocínio.
4) “Fazer em toda parte enumerações tão completas e revisões tão gerais,
que eu tivesse a certeza de nada omitir”.
A quarta regra tem como característica a cautela, isto é, para evitar a
superficialidade nos raciocínios é necessário analisar, uma por uma, todas
as conclusões retiradas do exame proposto. É, portanto, o fechamento do
processo investigativo. Por fim, diríamos que as regras do método destacam
a necessidade da plena consciência dos momentos constitutivos da pesquisa
científica.

127
Introdução à Filosofia

Discurso do Método, René Descartes 1637 (Fonte: http://www.leeds.ac.uk).

A APLICAÇÃO DO MÉTODO ÀS MEDITAÇÕES


METAFÍSICAS: O “COGITO” COMO EXERCÍCIO

Feita a exposição das regras que compõem o método cartesiano podería-


mos perguntar: qual é o fundamento sobre o qual repousa toda a reflexão
cartesiana presente no método? Certamente a base propulsora do método
é a dúvida presente na regra de número I. Com isso queremos dizer que
a dúvida mais que uma indecisão do tipo “não sei” é parte constitutiva e
fundante do método. Por isso, chamamos a dúvida cartesiana de “dúvida
hiperbólica” ou “dúvida metódica”. Este exercício de considerar “proviso-
riamente” falsas todas as opiniões é o primeiro passo para o conhecimento.
Antes de mais nada é preciso duvidar para, a partir daí, meditar longamente
sobre as razões que podemos ter para suspender o juízo sobre determinada
questão. É também, um esforço prolongado para destruir a nossa tendên-
cia em acreditar no testemunho dos sentidos, isto é, a dúvida leva a uma

128
O racionalismo cartesiano e as regras do método
Aula

consideração atenta dos erros que os sentidos produzem, bem como, das
ilusões produzidas por nossos sonhos. Sobre isso podemos ler no Resumo
que antecede as Meditações: “Ora, se bem que a utilidade de uma dúvida tão
16
geral não se revele desde o início, ela é todavia nisso muito grande, porque
nos liberta de toda sorte de prejuízo e nos prepara um caminho fácil para
acostumar nosso espírito a desligar-se dos sentidos, e, enfim, naquilo que
torna impossível que possamos ter qualquer dúvida quanto ao que desco-
briremos, depois, ser verdadeiro” (Meditações, op.cit. p. 161)
De modo que, podemos perguntar: sendo os sentidos enganosos,
como demonstra a experiência, como sustentar que existe algo capaz de
ser fundamento para as ciências? Como sair da dúvida? Um fato é certo,
enquanto que os céticos mantinham a dúvida como princípio e fim das
suas reflexões, Descartes a toma como momento provisório de acesso à
verdade. Sendo, portanto, uma dúvida provisória, o que poderia ser aceito
como indubitável? Responder esta questão é “caminhar”, isto é, é por em
ação o método.

O “COGITO”

A primeira certeza indubitável que satisfaz a exigência do método, para


Descartes, é o “eu penso” (cogito). Vejamos o argumento: na medida em
que ponho em dúvida todas as coisas, é necessário admitir o ato pelo qual a
dúvida é posta, isto é, o pensar. Há, assim, uma cadeia lógica entre a dúvida,
o pensar e o sujeito pensante. Daí a formulação “penso, logo existo”, dito
de outro modo, para duvidar é preciso que eu pense e, portanto, que exista.
Neste sentido, da dúvida mais radical, brota a primeira evidência.
É importante observar que o “eu penso, logo existo”, para Descartes,
escapa toda dúvida porque é um ato puramente intuitivo, ou seja, através
do “cogito” percebo a minha própria existência enquanto ser pensante.
Chegamos à definição da primeira classe de substância: res cogitans, isto
é, uma substância pensante. Temos assim, uma interdependência entre o
pensamento em ato e a substância pensante.
Ao caracterizar o homem como uma realidade pensante, Descartes crer
revelar uma certeza inabalável, primeira e irrenunciável e, paralelamente,
garantir a validade da razão como a faculdade de julgar bem e distinguir o
verdadeiro do falso, ou seja, o que ele chama de bom senso que revela a
unidade da razão, das ciências e do método. Tendo demonstrado a certeza
do cogito como uma idéia clara e distinta, Descartes se pergunta sobre a
validade das regras para o conhecimento do mundo e de outras idéias de
validade também universal.
Como conseqüência da sua análise o filósofo divide as idéias em três
tipos:
a). Inatas: são aquelas que encontramos em nós mesmo, isto é, nascidas

129
Introdução à Filosofia

conosco.
b) Adventícias: são aquelas provenientes do exterior e que nos remetem a
coisas totalmente distintas de nós.
c) Fictícias: são construídas por nós e Descartes as considera ilusórias e
arbitrárias.
Destes três tipos de idéias nos deteremos somente na primeira classe.
É para fundar o caráter objetivo das faculdades cognoscitivas que Descartes
proporá a resolução do problema da existência de Deus.

DEUS E MUNDO NAS MEDITAÇÕES


A partir da certeza do cogito, Descartes busca provar a existência de
Deus, também, por meio da reflexão sobre a dúvida. Ora, dissemos que é
na dúvida que o pensamento revela a própria existência, mas é preciso saber
que o fato de duvidarmos implica, por um lado, que somos seres imperfeitos
e, por outro, que temos, em nós, a idéia da perfeição. De onde provém tal
idéia? A conclusão cartesiana é: se é no ato da dúvida que apreendo minha
existência, fica demonstrado a impossibilidade do sujeito ser causa de si
mesmo, posto que a dúvida acusa a imperfeição da natureza humana, logo,
somente um ser perfeito poderia ser sua
causa e este ser é Deus.
Deus é uma idéia que está em nós e
assume, em Descartes, o papel de sustentá-
culo da capacidade humana em conhecer o
verdadeiro, o mundo e a imutabilidade das
leis. Sendo Deus a garantia da perfeição das
nossas faculdades, não poderia condená-las
ao erro. O erro é fruto, em perfeito acordo
com o projeto do método, da natureza lim-
itada do homem e, principalmente, do uso
indevido da razão. A formulação de juízos
arbitrários é a fonte de todo erro. É preciso
dizer que aqui entra em jogo uma facul-
dade distinta do entendimento e do juízo,
a saber, a vontade. O papel da vontade é
decisivo porque é através dela que negamos
ou afirmamos aquilo que o entendimento
percebe claro e distintamente. Se somos
falíveis, posto que não somos Deus, cabe a
nós, dirá Descartes, a responsabilidade dos
nossos atos.
Como conseqüência da demonstração
Deus como arquiteto, pintura, William Blake - 1774 da existência de idéias inatas (Deus), Des-
(Fonte: http://storage.msn.com).

130
O racionalismo cartesiano e as regras do método
Aula

cartes conclui, seguindo sua distinção entre os três tipos de idéias, que o
mundo também possui uma realidade concreta, dado que, se as idéias ad-
ventícias parte do exterior é possível chegar a existência do mundo corpóreo.
16
Além do mais, o corpóreo é objeto das demonstrações geométricas. Neste
sentido, o mundo interior é definido como res cogitans e o mundo mate-
rial como res extensa. A conclusão que chega Descartes é que o universo
é feito de uma só matéria e que a conhecemos pelo fato de ser extensa.
No entanto, cumpre observar que, embora indispensáveis, os sentidos são
fontes de estímulos, mas não a sede do conhecimento. O processo deve
ser seletivo e ordenado segundo a aplicação do método com o intuito de
chegar a idéias claras e distintas.

O mecanismo de Descartes, desenho, René Descartes, L‘Homme Paris


1729 (Fonte: http://www.filosofix.br9.biz).

131
Introdução à Filosofia

ATIVIDADES

1. Que papel desempenha o contexto histórico em que viveu Renè Descartes


para a construção do método?
2. Qual a importância da matemática para o pensamento cartesiano?
3. Em que consiste o solipsismo cartesiano?
4. Em que sentido Deus é garantia para o conhecimento?

COMENTÁRIO SOBRE AS ATIVIDADES


Quanto às questões 1 e 2 é importante observar que o contexto
histórico segue os avanços e críticas típicas do Renascimento contra
a visão aristotélico-escolástica que teologizava o conhecimento. A
questão 3 diz respeito a separação mundo interior e exterior. Quanto
a questão 4 diz respeito a saída do solipsismo ou a ponte entre idéia
e objeto exterior.

CONCLUSÃO

Caro aluno, finalmente o pensamento moderno não só se estrutura a


partir do pensamento cartesiano, nas idéi-as de método e de cogito, mas
representa sua tarefa maior, ou seja, construir um sistema ordenado e
seletivo em que o conhecimento é definido a partir do exame atento dos
procedimentos que constituem as distintas fases do método. É bem ver-
dade que a distinção entre res cogitans e res extensa propiciou uma visão
solipsista em que o “eu” pensante permanece isolado completamente do
mundo exterior. No entanto, se por um lado a certeza do cogito serviu de
resposta ao ceticismo, que postulava a ausência de toda certeza, por outro
exigiu uma saída capaz de estabelecer uma ponte entre o mundo “interior”
e o mundo “concreto”. Esta saída Descartes encontrou em Deus. Deus
permite a passagem do idealismo ao realismo posto que, como vimos no
texto, não somente é uma idéia, mas existe na realidade. De modo que o
conhecimento, provado a existência dos dois mundos (interior e material) é a
correspondência, ou melhor, a representação entre a idéia e o objeto externo
mediante o uso correto da razão e a aplicabilidade rigorosa do método.

132
O racionalismo cartesiano e as regras do método
Aula

RESUMO

A filosofia é, para Descartes, pensar metódico. Neste sentido, a decep-


16
ção com o sistema de ensino da época, reprodutivo e estéril, levou Descartes
a postular uma reestruturação do método científico. Sua tarefa consistiu em
demonstrar, contra o ceticismo reinante, ser possível conhecer de modo
claro e seguro. Para isso, propôs um método pautado em quatro preceitos
ou regras: evidencia, divisão, síntese e enumeração. Sendo uma faculdade
natural, o pensar exige um método capaz de conduzir ao conhecimento
verdadeiro. A razão passa a ser guia e critério para o conhecimento. Como
fruto da aplicação do método, Descartes consegue demonstrar a existência
de duas realidades substanciais: o pensamento e mundo exterior. Funda
assim um idealismo baseado na existência de um “eu” puro que o leva a
postular a existência de Deus, pensado primeiramente como idéia inata e
depois como realidade concreta, como saída e garantia para a correspondên-
cia entre as idéia e mundo exterior.

PRÓXIMA AULA
Na aula 17, será apresentado o criticismo de Immanuel Kant.

REFERÊNCIAS

Cottinghamm, Jonh. Dicionário Descartes, Rio de Janeiro: Jorge Zahar,


1995.
Descartes, René, Discurso do Método. Trad. J. Guinsburg e Bento Prado
Júnior. São Paulo: Abril Cultural, 1991
_____________ Meditações, Trad. J. Guinsburg e Bento Prado Júnior.
São Paulo: Abril Cultural, 1991.
Koyré, Alexandre. Estudos de história do pensamento filosófico. Rio
de Janeiro: Forense, 1991.
______________. Considerações sobre Descartes. Lisboa: Presença,
1980.
Rossi, Paolo, Los filosofos y las máquinas: 1400-1700. Barcelona : Labor,
1966.

133
Aula
INTRODUÇÃO AO PENSAMENTO
KANTIANO 17
META
Apresentar o criticismo kantiano.

OBJETIVOS
Ao final desta aula, o aluno deverá:
definir os principais problemas da filosofia kantiana;
reconhecer o projeto de uma filosofia transcendental; e
analisar a relação entre razão e lei moral na filosofia prática kantiana.

PRÉ-REQUISITOS
O aluno deverá revisar os assuntos relativos à ciência moderna.

Kant, Lecturing to Russian officers, pintura, I. Soyockina/V. Gracov (Fonte: http://


content.answers.com).
Introdução à Filosofia

INTRODUÇÃO

Caro aluno, a filosofia moderna pode ser dividida em dois momen-


tos: antes e depois de Immanuel Kant. Nascido em 1724 em Könisberg
(Alemanha) e falecido em 1804, Kant formulou, sem jamais ter saído da
sua pequena cidade, um sistema teórico capaz de abarcar desde problemas
geográficos até morais. No plano do conhecimento, Kant investigou exaus-
tivamente três fundamentais questões que norteavam sua reflexão filosófica,
são eles: a) o que posso saber?; b) o que devo fazer?; c) o que devo esperar?
Nessas três questões residem os temas centrais que são desenvolvidos em
Immanuel Kant
toda sua obra: quais os limites do conhecimento? Como devo agir para que
Filósofo alemão meus atos sejam, do ponto de vista da razão, atos morais? Tem sentido a
(1724-1804). Fun- esperança? Temos assim as bases para o criticismo kantiano que veremos
dador da Teoria do a seguir.
Conhecimento e da
Teoria da Moral e
Ética, é considerado
o mais influente dos
filósofos modernos.
Seus estudos e ensi-
namentos nos cam-
pos da metafísica,
epistemologia, é tica
e estética, tiveram
grande impacto so-
bre a maioria dos
movimentos filosó-
ficos posteriores. Sua
maior obra é o livro
“Crítica da Razão
Pura” de 1781,
que explica, essen-
cialmente, porque
as Metafísicas são
voltadas ao fracasso
e porque a razão hu-
mana é impotente
para conhecer o fun-
do das coisas.

(Fonte: http://upload.wikimedia.org).

136
Introdução ao pensamento Kantiano
Aula

PENSAMENTO KANTIANO 17
A origem da expressão criticismo se refere aos dois perí-odos do Racionalismo
pensamento kantiano, isto é: um período chamado de pré-crítico que cor-
Postura filosófica que
responderia à primeira fase (1760) marcada pelas influências sofridas, além defende a razão como
da física newtoniana, do racionalismo dogmático de Leibniz e Wolff, bem única fonte para o
como, o empirismo de Locke, Hume, Rousseau e Shafterbury. E o outro conhecimento.
período, denominado crítico, por sua vez, diz respeito a fase caracterizada
como o “despertar do sonho dogmático” e está marcada pela redação das Empirismo
suas obras mais importantes: Crítica da Razão Pura (1781), Crítica da Razão
Teoria que defende
Prática (1788) e a Crítica do Juízo (1790). a fundamentação do
Para nossa exposição do pensamento kantiano, tomaremos como conhecimento a partir
pontos de partida as três questões antes citadas: O que posso saber? O e exclusivamente dos
que devo fazer? E o que posso esperar? Iniciemos pela primeira questão. sentidos.
Perguntar pelo saber é, por um lado, dialogar com a tradição prec-
edente, isto é, com a metafísica dogmática clássica e, por outro, estabelecer
quais são de fato os problemas possíveis de serem postos e solucionados
pela razão humana. É na Crítica da razão pura que vemos a preocupação
kantiana em formular uma filosofia capaz de dar conta não somente dos
objetos, mas do conhecimento que temos destes objetos, isto é, no fundo, a
tarefa kantiana é delimitar as possibilidade do conhecimento e, deste modo,
diferenciar a ciência daquilo que, desde Platão, é denominado de pseudo-
ciência. A esta análise das possibilidades do conhecimento chamamos de
filosofia transcendental.
Jonh Locke

Considerado, jun-
tamente com Da-
vid Hume e George
Berkeley, um dos
fundadores do em-
pirismo inglês.
(1632-1704).

Exemplo de conhecimento empírico: a constatação de que a água, sub-


metida a uma temperatura de 100ºC, ferve. (Fonte: isfdfm.blogspot.com).

137
Introdução à Filosofia

Segundo Kant é próprio da razão humana saber quais são os prob-


lemas solúveis e quais são os insolúveis e deste modo delimitar o campo de
abrangência das suas especulações. Se para Descartes a clareza do método
conduzia à verdades certas e indubitáveis, em Kant, a razão deve possuir
limites seguros que garantam a decidibilidade dos problemas teóricos. É
precisamente esta clareza do limite o que diferencia a razão kantiana da
metafísica dogmática dado que esta última postulava problemas que por
princípio não admitiam respostas ou soluções. E como se dá tal conheci-
mento? De modo geral, Kant postula dois modos de conhecer: empírico
e a priori. O conhecimento empírico é por definição a posteriori, isto é,
depende dos dados fornecidos pelos sentidos e dos resultados dados pela
experiência. O conhecimento a priori, ao contrário, independe dos dados
dos sentidos, isto é, é anterior a toda experiência. Mas como demonstrar a
existência de tais conhecimentos?
Passamos, assim, para a distinção entre juízos analíticos e juízos sin-
téticos. Os juízos analíticos definem-se pelo fato dos seus predicados não
acrescentarem nada ao sujeito como, por exemplo:
1. Todo quadrado tem quatro ângulos.
2. Todo solteiro não é casado
Estes juízos são, portanto, a priori, dado que são universais, necessários
e independem da experiência. Já os juízos sintéticos se dividem em dois
grupos:
a) Juízos sintéticos a posteriori: ao contrário dos a priori, os juízos sintéticos
a posteriori os predicados não estão contidos nos sujeitos, dependem da
experiência como, por exemplo:
a) Todos os corpos são pesados
b) A água ferve a 100 graus centígrado
De modo que as informações contidas nos predicados acrescentam
informações ao sujeito contribuindo, assim, para uma ampliação do con-
hecimento. É importante ressaltar que tais juízos não são universais, mas
sim contingentes e dependem das condições que comportam a experiência.
b) Juízos sintéticos a priori: são juízos necessários, universais e que ampliam
o conhecimento. Sua característica maior reside na junção entre o caráter
aprioristico, isto é, serem necessários e universais, e sua acessibilidade à
experiência, ainda que independente desta. Para Kant, a matemática e a
física são ciências que lidam diretamente com tais juízos. Esses juízos se
formam, graças a síntese entre os dados obtidos pela experiência e as cat-
egorias apriorísticas do entendimento.
Dizemos que o estabelecimento dos juízos sintéticos a priori é uma
contribuição dada por Kant à filosofia comparada somente com aquilo que
representou, para a Física, a Revolução copernicana, pois ele estabeleceu
uma terceira via entre o racionalismo e o empirismo. A tarefa da filosofia
transcendental é, portanto, demonstrar como são possíveis os juízos sin-

138
Introdução ao pensamento Kantiano
Aula

téticos a priori. Chegamos, assim, a mais dois conceitos fundamentais na


filosofia transcendental, a saber: sensibilidade e entendimento. A sensibi-
lidade e o entendimento que são duas faculdades da nossa mente, aliadas
17
a imaginação, produzem, em cooperação, o conhecimento. É importante
saber que sensibilidade, tema tratado na primeira parte da Crítica da razão
pura (Estética transcendental) em Kant, tem um sentido muito preciso,
isto é, refere-se às formas puras que permitem a experiência sensível: o
espaço e o tempo. De modo que somente os juízos sintéticos a priori são
científicos, pois permitem a síntese entre as formas puras do entendimento
e a experiência espaço-temporal. Nisto reside uma das grandes diferenças
entre a metafísica kantiana e a metafísica dogmática, isto é, não conhecemos
as “coisas em si”, dado que a razão está limitada ao nível do fenomênico.
Questões como Deus, Alma etc., não são objetos de experiência e, portanto,
postulá-los como problemas constituem uso indevido da razão. É impor-
tante observar que se no campo do conhecimento, idéias como Deus e Alma
não têm espaço, eles ganham sentido como idéias reguladoras. Chegamos
assim a segunda pergunta: o que devo fazer?
Como dissemos anteriormente, idéias como Deus, imortalidade, liber-
dade, são [proposições teóricas válidas] idéias reguladoras necessárias para
a compreensão da realidade, no entanto, não
demonstráveis. Estamos tratando de idéias tran-
scendentais que estão no campo da razão prática.
Sobre este tema, Kant escreveu obras como Fun-
damentação da metafísica dos costumes (1785),
Crítica da razão prática (1788) e Metafísica dos
costumes (1797).
Uma das características dos sistemas morais
antigos é pensar a moral sob a ótica da felicidade,
isto é, agir moralmente significava seguir certas
regras que conduziriam a uma vida boa de acordo
com a natureza (viver de acordo com a natureza).
Para Kant, a moralidade não se relaciona nem
com a bondade nem com a norma de seguir a
natureza, mas sim, com a natureza da vontade e
com o próprio ato moral. É importante saber que
estamos tratando de uma moralidade que tem no
dever seu princípio e fim. A ação moral se guia,
em última instância, pelo dever e não por uma
necessidade natural. Nesta perspectiva, a lei moral
não tem nenhum fim exterior a si mesma e nem
se resume máximas. A diferença entre as máximas (Fonte: http://www.edipro.com.br).
e a lei moral encontramos logo no capítulo I da
Critica da razão prática: “São subjetivos, ou máximas, quando a condição é

139
Introdução à Filosofia

considerada pelo sujeito como válida unicamente para a sua vontade; mas
são objetivos, ou leis práticas, quando essa condição é reconhecida como
objetiva, isto é, válida para a vontade de todo o ser racional”.
Essas leis, Kant nomeia de imperativos categóricos, ou seja, princípios
determinados pela razão que os tornam necessários em si e por si, isto é,
sem fins exteriores. Poderíamos traduzir estes tipos de imperativos nos
seguintes termos: devemos agir de tal modo que a nossa ação possa ser
considerada universal. A parte dos imperativos categóricos existe o que
Kant chama de imperativos hipotéticos, isto é, regras baseadas no uso da
razão, mas que estabelecem fins externos à ação. Exemplo: pensemos neste
princípio regulador: “não mentirás”. Ora, o ato de não mentir pode ter dois
sentidos ou interpretações: a) não mentir visando ganhar a confiança de uma
platéia “X” que são meus clientes ou não mentir unicamente para seguir a
lei moral. Ou seja, não mentir por dever e não por interesse. De modo que,
segundo Kant, os desejos podem ser múltiplos e variáveis, mas somente os
princípios ditados pela razão são universais, pois repulsam no dever.
O grande desafio para o homem é ser capaz de atingir uma ordem em
que a razão, pensada como parte de um mundo inteligível, realizaria a ordem
universal da humanidade. Nisto reside a liberdade humana, isto é, em ser
capaz de atualizar a racionalidade não como meio, mas como fim do próprio
ser humano. A grande chave para entendermos o projeto moral kantiano é
saber que a consciência da lei moral não nasce do estudo intelectual, mas é
inerente ao ser humano. De modo que a diferença entre a filosofia antiga e a
kantiana reside no fato de que a primeira fornece preceitos morais (Epicuro,
Sêneca, Epicteto...) para uma vida, a segunda, analisa a forma da lei moral.
O formalismo kantiano tem, assim, sua função de demonstrar o poder
legislador da razão e, enquanto tal, propiciar a consciência da liberdade hu-
mana. Consciência esta que não se confunde com desejos ou prazeres, mas
é um sentimento distinto de ordem puramente intelectual. O fundamento
da lei moral é a própria lei moral.

140
Introdução ao pensamento Kantiano
Aula

CONCLUSÃO

Mas, qual o fim do agir moralmente? Para Kant, o fim da lei moral,
17
embora não realizável plenamente, pos-to que homem enquanto ser sen-
sível tende submeter a razão aos desejos da sensibilidade (o mal radical),
é a felicidade.
Vale ressaltar que contrariamente aos antigos, não é a bondade que
determina o agir moral, mas é o agir moral que determina a bondade. Nesta
perspectiva, não sendo a bondade algo conseqüente do ato virtuoso, qual
seria sua causa? A guisa de resposta dirá Kant: Deus. Chegamos a dois pos-
tulados da moralidade kantiana: Deus e a imortalidade da alma. Kant admite
que somente em um mundo inteligível é possível a unidade entre virtude
e bondade. Sendo assim, a moralidade funda a religião como princípio de
uma fé racional que garante seu projeto de busca pela perfeição.

RESUMO

Vimos que, para Kant, a filosofia tem como tarefa suprema definir qual
o objeto da reflexão racional. Esta tarefa é, por um lado, uma crítica radi-
cal ao pensamento metafísico anterior e, por outro, a fundamentação das
bases para um novo modo de pensar a relação entre os juízos e os objetos.
Diríamos que Kant ao pôr a razão nos seus limites possibilitou uma reflexão
capaz de justificar a ciência, a filosofia, a religião e uma metafísica isenta de
falsos problemas e de obscurantismos em seus juízos. Com o criticismo,
Kant fundamentou a moralidade naquilo que é radicalmente a raiz de todo
ato justo, a saber: a razão. No entanto, por participar do sensível e do mal
radical, inerente à natureza humana, a realização plena da perfeição não
é algo possível ao homem enquanto ser finito e morta, e para justificar o
esforço na realização deste ideal, Kant postula a imortalidade da alma e a
existência de Deus como causa de toda bondade e garantia de todos fins.

ATIVIDADES
1. Classifique os juízos kantianos.
2. Defina o criticismo.
3. Qual a relação entre razão pura e razão prática?
4. Em que se fundamenta o agir moral para Kant?

141
Introdução à Filosofia

COMENTÁRIO SOBRE AS ATIVIDADES


Observe que as respostas das questões 1 e 2 se complementam, talvez
seja melhor começar respondendo a 2ª para, em seguida, responder a
1ª. Para responder a questão 3 lembre-se que o imperativo categórico é
uma lei da própria razão. A questão 4 diz respeito às idéias de liberdade,
autonomia e responsabilidade.

PRÓXIMA AULA

Na próxima aula, será apresentada a crítica nietzscheana à História da


filosofia.

REFERÊNCIAS

KANT, I. Crítica da razão pura, Trad. Manuela P. dos Santos, Lisboa:


Calouste Gulbenkian, 1997.
________. Crítica da razão prática, Trad. Artur Morão. Lisboa: Edições
70, 1987.
________. Crítica da faculdade de julgar. Rio de Janeiro: Forense, 1993.
________. Fundamentação da metafísica dos costumes. Trad. Paulo
Quintela. Lisboa : Edições 70, 1988.
LÉBRUN, G. Kant e o fim da metafísica, Trad. Carlos Alberto R. de
Moura. São Paulo: Martins Fontes, 1993.
LALANDE, A. Vocabulário técnico e crítico da Filosofia. São
Paulo: Martins Fontes, 1993.
LOPARIC, Z. A semântica transcendental de Kant, Campinas :
CLE, 2000.
OMAR, D. P. Kant Pré-Crítico, a desventura filosófica da pergunta.
Paraná: EDUNIOESTE, 1998
RIBEIRO, R. (Org.). Duas introduções a crítica do juízo. São Paulo
: Iluminuras, 1995.

142
Aula
FILOSOFAR COM O MARTELO
18
META
Apresentar a crítica nietzscheana à História da filosofia, bem como sua
concepção de transvaloração de todos os valores.

OBJETIVOS
Ao final desta aula, o aluno deverá:
descrever a noção do trágico em Nietzsche;
definir as bases para o projeto de transvaloração de todos os valores;
e analisar o projeto nietzscheano da vida como Grande estilo.

PRÉ-REQUISITOS
O aluno deverá revisar os assuntos abordados no módulo 1 e as aulas vistas
até o momento.

Nietzsche, pintura, Edvar Munch 1906. (Fonte: http://images.


google.com.br).
Introdução à Filosofia

INTRODUÇÃO

No ano de 1871, um jovem de 26 anos escreveu um livro chamado O


nascimento da tragédia que, entre outras coisas, afirma que o projeto esperado
do futuro foi realizado há mais de dois mil anos atrás. De fato, o que quer
dizer Nietzsche com essa afirmação? Como podemos compreender a relação
entre passado e futuro a partir de uma obra que foi tida pelo próprio autor
como um texto cheio de valor juvenil e melancolia? Olhar o passado é, para
Nietzsche, olhar para o futuro enquanto projetar-se. O homem como criador
vive mais além e, por isso, afirma Nietzsche, os criadores são odiados, pois são
os aniquiladores dos velhos valores. Neste sentido, no movimento de criação
está, também, o de destruição. Mas, o que significa destruir? Para Nietzsche
destruir significa edificar novos valores. Por essa razão os destruidores são
edificadores, criadores, produtores, artistas de si mesmos.
Os gregos e somente eles souberam, segundo Nietzsche, realizar o
mundo como um cenário e a vida como um jogo de dados, em que a des-
graça e a dor foram convertidas em riso e força. Retornar ao passado não
significa, necessariamente, melancolia e saudades de um tempo anterior,
mas é contemplar o que somos. Nesta aula, caro aluno, veremos como a
tragédia grega teve um papel decisivo na filosofia nietzscheana. Veremos,
também, a crítica nietzscheana à cultura e, consequentemente, o sentido do
seu projeto de transvaloração de todos os valores. Para tanto, dividiremos
nossa aula em três pontos: 1) a noção do trágico: neste ponto buscaremos
compreender em que medida a tragédia grega representa e influencia a con-
cepção do trágico em Nietzsche; em um
segundo momento, discutiremos como
o espírito socrático e a racionalização
do drama concretizado por Eurípedes,
contribuíram decisivamente, segundo
Nietzsche, para a decadência e morte
do gênero da tragédia; 2) a transvalo-
ração de todos os valores: neste ponto
analisaremos a crítica nietzscheana ao
pensamento cristão, bem como, sua
concepção da história da filosofia como
uma história da moral; 3) Nietzsche e
o grande estilo: analisaremos a idéia
nietzscheana do homem como vontade
de poder, bem como, procuraremos
entender de que maneira o modelo da
tragédia grega serve de paradigma para
Édipo sendo interrogado pela Esfinge. Cena da tragédia Édipo Rei a concretização do projeto niezscheano
de Sófocles. (Fonte: http://www.fflch.usp.br).
da vida como uma grande arte.

144
Filosofar com o martelo
Aula

A MÁSCARA DE DIONÍSIO

Mas, quem é Dionísio? Nietzsche ao responder esta questão faz uso de


18
uma analogia extremamente curiosa e que expressa de forma clara a natureza
desse deus: embriaguez. Com Dionísio se rompe todas as rígidas e hostis Dionísio ou Baco
delimitações existentes entre os homens. Possuídos por seu encantamento,
os homens dançam e cantam. Deus grego caracter-
izado pelos rituais
É a plenitude de uma comunidade superior, diz Nietzsche no Nas- agrários, principal-
cimento da tragédia I: “A bela aparência do mundo do sonho, em cuja mente do vinho e
produção cada ser humano é um artista consumado” (Origem da tragédia, pelas distintas formas
op.cit. p. 28). Um fato de fundamental importância para a compreensão que assumia como
da relação entre o espírito apolíneo e dionisíaco consiste na oposição entre de touro ou de bode.
o principium individuationis característico do pensamento apolíneo e o Suas marcas eram a
embriagues e o êx-
que chamamos, anteriormente, de comunidade superior. Apolo tem como tase.
fundamento o individual, a forma, o “conhece-te a ti mesmo”. Dionísio
ao contrário de medida é desmedida (hýbris); o completo esquecimento do
indivíduo em uma experiência orgiástica.
No entanto, nesta mesma experiência dionisíaca reside um grande
perigo: a destruição completa da ilusão e o estabelecimento de um pessi-
mismo destrutivo. O desgosto proveniente do reconhecimento da sabedoria
de Sileno. Temos, assim, algo de extrema
significação para a compreensão do
pensamento nietzscheano do trágico,
ou seja: não é a experiência dionisíaca
destruidora e aniquiladora que Nietzsche Apolo
exalta, ou melhor, não é o bárbaro deus
dionisíaco, o deus exaltado de Roma até Deus grego que
a Babilônia. A experiência nietzcheana simbolizava, dentre
tem como característica uma reconcilia- outras coisas, a per-
ção entre Apolo e Dionísio. O olhar de feição, a medida e a
beleza.
Nietzsche se manifesta na junção entre
a embreaguez dionisíaca e o sonho de
apolíneo. Os gregos, ao contrário dos
bárbaros, transformaram o impulso
destruído de Dionísio em um remédio
(Pharmakón) eficaz para a vida. Já não
temos a dilaceração do mundo, mas um
jogo entre duas forças que se harmoni- Apolo, escultura de Leocarés- Apolo
zavam originando a arte trágica. Belvedere-Museu do Vaticano. (http://
A tragédia, por tanto, pode ser pt.wikipedia.org).
definida como um jogo entre dois deuses ou seja, de um lado a negação
dionisíaca a tudo o que é individual e, do outro, a afimação apolínea em
função de uma unidade originária. A arte trágica é antes de tudo equilíbrio

145
Introdução à Filosofia

e superação da oposição metafísica dos valores. Sendo assim, bem e mal,


justo e injusto, ilusão e verdade, são pares de opostos pensados como
constitutivos do prazer da existência. Contra uma visão negativa da vida,
Nietzsche propõe o trágico como pessimismo dos fortes. Longe de negar
a vida, aceita a existência e a exalta em forma de canto no coro. Para nosso
filósofo, se a vida é um constante vale de lágrimas, cabe a arte inverter, em
função da alegria, o mundo e sua falta de finalidade. Essa inversão, essencial
na arte, é a chave para seu postulado da arte como grande estilo. Trágico
é, portanto, o pensamento que afirma a vida apesar do caráter mutável dos
fenômenos. A tragédia, para Nietzsche, contrário ao que pensava Aristóteles,
não significava purgação, nem muito menos resignação, mas uma reflexão
sobre o homem.

(Fonte: http://www.unipar.br).

A tragédia aponta para a vida. O grego desejava, segundo Nietzsche, a


verdade e a natureza em sua força máxima. Esta era a característica nítida
da tragédia ática, ou seja, não existia nenhuma separação entre os especta-
dores e os “encantados servidores dionisíacos”. A arte salva a vida! Por
essa razão é a arte atividade essencialmente metafísica do homem. Segundo
Nietzsche, foi quando o homem quis sobrepor a ciência à arte que morreu
a tragédia. Esta morte tem data e responsáveis: Eurípedes e Sócrates. Estes
dois pensadores subjugaram o poeta ao pensador racional.

EURÍPEDES E SÓCRATES:
INVERSÃO E MORTE DO TRÁGICO

Para Nietzsche, Eurípedes inverteu e dissimulou a tragédia ática. Sua

146
Filosofar com o martelo
Aula

sofistificação e toda sua “mediocridade burguesa” serviu para edificar


suas expectativas políticas e rebaixar o trágico a uma representação festiva
para a alma dos heróis cênicos. Nietzsche afirmava que Eurípedes ficava
18
sentado no teatro e confessava não entender seus grandes predecessores.
Quando ele falava não era Dionísio, diz Nietzsche, que se revelava, mas
um demônio: Sócrates.
Embora Sófocles tenha sido, segundo Nietzsche, o primeiro a contri-
buir para a dissolução do trágico, Eurípedes combateu e venceu a tragédia
esquiliana mediante uma inspiração socrática: “tudo deve ser inteligível e
belo” ou “só o sábio é virtuoso”. Nessas sentenças temos explicitamente
a trilogia socrática: virtude, sabedoria e felicidade que poderia ser traduzido
Eurípedes
na seguinte fórmula: só é belo o que é racional. Vemos assim, a subjuga-
ção do estético ao racional, da poesia ao conhecimento. Para Nietzsche o Poeta trágico grego
socratismo despreza o instinto e, portanto, a arte. Deste modo, torna-se (485 a.C a 406). Au-
bastante compreensível a crítica que Eurípedes faz a Esquilo. Para ele, Es- tor de obras como:
quilo escrevia mal porque não sabia o que fazia, em outras palavras, Esquilo Medeia, As bacantes
e Electra.
não possuía um verdadeiro conhecimento.
Ao estabelecer o prólogo na tragédia, Eurípedes, segundo Nietzsche,
racionalizou o drama. O fato de que no início da cena, um indivíduo se
apresentasse narrando todo o desfeche da trama demonstrava a completa
traição efetuada por Eurípedes para com o trágico. Destruíndo toda tensão
épica e todo estilo característico da tragédia, o saber trágico foi substituído
pela Verdade! O herói foi morto não pelo trágico, mas pelo lógico.
Para Nietzsche, Sócrates não entendia a tragédia e, por isso, não a
estimava justificando sua ausência em todas as representações, exceto, às
representações de Eurípedes. Contra o impulso de Dionísio, Eurípedes
propõe o conhecimento. Por essa razão, Nietzsche o critica justamente por
acreditar que os instintos são mais fundamentais que o conhecimento. O
conhecimento foi inventado, criado. O homem não deseja naturalmente
conhecer. Neste sentido, definir o homem como aquele que deseja natu-
ralmente o conhecimento é destruir o poder de criação.
Para nosso filósofo, isso se explica por uma única razão: o instinto de
conhecimento tem como fundamento a moral. Sócrates é caracterizado,
junto com Eurípedes, como um monstruoso per defectum; possuidor de um
olho ciclópico, nunca se entusiasmou com a arte trágica, na verdade, a incluía
entre as artes aduladoras que representavam não o útil, mas o agradável.
Tão grande era o poder de Sócrates que, segundo Nietzsche, Platão,
antes de se converter em seu discípulo, queimou todos os seus poemas e
posteriormente criou uma nova forma de arte em que a poesia se subordi-
nava à filosofia: o diálogo platônico. No diálogo platônico vemos Sócrates
figurar como o grande herói euripideano, isto é, o herói virtuoso que opta
pela razão contra as paixões. Contra essa visão lógico-racional do trágico,
Nietzsche recorda-nos a força e poder do titã. Prometeu que, embora con-

147
Introdução à Filosofia

denado ao eterno sofrimento, questiona incansavelmente o poder tirânico


de Zeus. Neste drama exaltado por Nietzsche como um dos mais belos e
representativos do pessimismo trágico, temos simbolizada, claramente, a
relação entre a vontade humana que desafia a vontade do sobrehumano. Ao
criticar a tragédia de Eurípedes, Nietzche quer justamente chamar atenção
para o isolamento apolíneo contra todo horror trágico, ou seja, em nome
da racionalidade, que busca a todo custo firmar-se como o único meio de
compreensão do real, o grego não percebia que matava sua maior criação. Se
antes a tragédia tinha como finalidade produzir alegria e demonstrar a partir
da relação entre destino e sofrimento que ao homem cabe-lhe o prazer e
não a resignação ou o fingimento da dor, com o homem teórico, quem tem
como base o pensamento socrático, a tragédia passou a ser pensada como
um problema da verdade. Com isso, queremos dizer que a arte passou a
ser pensada em nome de uma criação artística consciente condenada a um
racionalismo e com finalidade de produzir conhecimento.

Estátua de Zeus - Fídias, Olímpia - Grécia 480 A.C.- Reprodução ilustrativa. (Fonte: http://
www.vivercidades.org.br).

A TRANSVALORAÇÃO DE
TODOS OS VALORES

Uma das expressões mais intrigantes e fortes na filosofia do século


XX é, sem dúvida, “Deus morreu”. Ao sentenciar a morte de Deus, Ni-
etzsche colocou a pedra sobre a qual se ergueu a crítica mais radical ao
cristianismo. O que significa tal afirmação? Uma possível resposta a esta

148
Filosofar com o martelo
Aula

questão passa, necessariamente, pela análise do conceito de Deus em três


perspectivas: metafísica, moral e cristã. No nível metafísico, Deus mor-
reu quando o espírito socrático venceu o espírito trágico. Para Nietzsche,
18
onde há salvação não há tragédia. Nesta perspectiva, o projeto socrático-
platônico de instauração de um pensamento pautado no Bem, ou melhor,
pautado em um modo de perceber o mundo a partir da trilogia virtude,
justiça e felicidade, estabeleceu uma farsa, isto é, eliminou o devir e todos
os elementos trágicos do real em detrimento de um mundo verdadeiro
concebido unicamente pelos sábios.
Pensemos um pouco na relação entre perda dos elementos trágicos e
implantação de um mundo verdadeiro. Segundo nosso filósofo, quando o
mundo, o conhecimento e a vida passaram a ser regidos pela idéia de um
Bem superior e racional, estabeleceu-se uma separação entre a realidade e a
aparência. Dito de um modo mais preciso, o real passou a ser compreendido
como o racional. Uma razão que se solidificou a partir da dissolução entre
as forças antagônicas que regiam a natureza: a tragédia morreu! Temos a
partir de então um mundo regido por uma moral em que o Bem determina
todo agir. O mundo concreto passou a ser pensado a partir de um mundo
transcendente morada eterna de um Deus que é o bem supremo.
Para Nietzsche, o platonismo propiciou as bases para o estabelecimento
do cristianismo como religião oficial ou como ele mesmo define: platonismo
para o povo. Platonismo no sentido de que desmerece o mundo sensível
em detrimento de um mundo inteligível. Mas, o que isto tem haver como
a morte de Deus? Para Nietzsche, o conceito de Deus cristão, que é uma
apropriação do ideal platônico de um bem transcendente, é um Deus con-
trário a natureza e, por isso mesmo, contrário à vida. É importante observar
que a crítica de Nietzsche está direcionada contra o cristianismo enquanto
religião universalista concretizado em igrejas e não contra a figura de Jesus
de Nazaré. Para Nietzsche, Cristo é uma nova maneira de existir totalmente
contrária a hierarquia judaica e à idéia de uma instituição. O reino de Deus é
o reino da interioridade. Jesus enquanto portador da “boa nova” é comple-
tamente avesso ao espírito universalista do cristianismo enquanto religião.
O cristianismo é compreendido por Nietzsche como um “mal-entendido”
ou um “dysangelium”, isto é, uma inversão do espírito livre de Cristo. Deus
morreu na medida em que a religião substituiu todas as forças positivas
da natureza por uma imagem decadente do homem marcada pelo castigo,
culpa e por uma teologia imaginária.
O projeto de transvaloração parte do princípio de que a história da fi-
losofia está impregnada de preconceitos morais, sendo, portanto, necessário
uma superação de todo delírio idealista em prol da vida na sua mais pura
manifestação fenomênica. Por isso, sua filosofia é definida como “filosofia
do martelo” ou “martelar”.
Martelar é desfazer toda moral e religião que durante séculos impregnou

149
Introdução à Filosofia

Ascetismo
o pensamento ocidental de valores que negam a vida e o poder criador do
homem. A destruição da tradição anterior significa abrir novos caminhos
Do grego askesis se para um novo homem e para um novo tipo de saber. Para Nietzsche, a vida
refere a um estilo de se identifica com o que ele chama de “vontade de poder”, isto é, com um
vida marcada pela “querer-ser-mais-forte”. Por isso sua admiração para com os gregos, em
austeridade e nega- particular, Heráclito de Éfeso, que pensou a vida como uma luta constante
ção dos prazeres
mundanos ou corpo-
entre forças opostas. Contra todo ascetismo que tem como fundamento
rais como condição uma vontade de “aniquilamento”, ou seja, o estabelecimento de valores
para a tranqüilidade negativos, Nietzsche propõe o “super-homem”, isto é, aquele capaz de ir
da alma. além de si mesmo enquanto modelo de decadência.
Zaratustra

Personagem pro-
tagonista de uma das
obras mais impor-
tantes de Nietzsche:
Assim falou Zaratu-
stra (1885). Na re-
alidade, Nietzsche se
inspirou na imagem
de um profeta persa
de nome Zoroastro
que viveu no século
VII a.C.

Niilismo

Do latim nihil (nada)


significa a falta de
sentido provocada
pela ausência de va-
lores e idéias. Ni-
etzsche diferençia, Jesus Cristo (Fonte: http://www.paulolima.net).
basicamente, duas
formas de niilismo: Quebrai, quebrai as antigas tábuas! Gritava Zaratustra exortando o
reativo ou negativo
homem a ir além da idiossincrasia dos decadentes. Por isso, segundo Ni-
e ativo ou forte. O
primeiro nega a vida etzsche, a moral cristã é uma barreira contra as forças ascendentes da vida.
enquanto que o se- É a moral do rebanho que se opõe ao forte e independente. Para nosso
gundo afirma a sua filósofo, o cristianismo suplantou todos os valores aristocráticos do mundo
forma trágica. antigo e iniciou a sublevação dos escravos.
A vitória de Paulo de Tarso contra a Grécia é a expressão mais clara
do niilismo reativo, que tem na negação da vida sua condição de triunfo.
Neste aspecto, não é a existência da dor o problema central do homem, mas
a ausência de sentido. Transvalorar significa, portanto, liberação do sonho

150
Filosofar com o martelo
Aula

dogmático, isto é, a compreensão da vida como vontade de poder. Vida é


realidade fenomenal, ou seja, não possui um princípio transcendente e, por
essa razão, implica na construção de um grande estilo.
18
NIETZSCHE E O GRANDE ESTILO
Para Nietzsche a arte é sinônimo de vontade de poder. A arte é um
contra-movimento frente ao niilismo. Mas, o que significa vontade de
poder? É importante observar que arte para Nietzsche não se reduz a
uma questão de gosto e gozo. A arte é decisão. Um pensar que tem como
finalidade algo mais que o puro gosto estético, posto que, em última in-
stância, é um pensar metafísico, a rigor isso significa: pensar a arte como
determinação do ser. Através da arte o homem busca “querer-ser-mais”,
isto é, se autoafirma mediante o poder criador e transformador da vida.
Para que compreendamos o que estamos chamando de “grande estilo” é
preciso entender três conceitos: distinção, lógica e beleza. O grande estilo
é, por natureza, a beleza na sua plenitude. Beleza entendida como o mais
digno de ser admirado. A arte é assim o jubileu da vontade em oposição à
aniquilação proporcionado pelo instinto das ciências.
A mais alta dignidade humana residiria, para Nietzsche, em sermos
imagens e projeções artísticas e, neste sentido,
admiradores das coisas grandes, dito de outro
modo, reinventar o mundo. Nietzsche postula
a substituição da velha noção latina de arte pela
imagem grega da phýsis. O homem é “brotar” é
uma representação que nasce a cada momento e
como tal deve pôr novas “tábuas” de valores que
tenham como finalidade não a negação da vida
ou o sofrimento, mas a inocência do devir sem
finalidade. Para Nietzsche, assim como queremos
reviver uma obra de arte, devemos querer mod-
elar nossa vida, de modo que, sempre tenhamos
o desejo de querer-la outra vez. Criar um ser
superior, antipessimista, no sentido de afirmação
e, ao mesmo tempo, superação de todo pessi-
mismo. Poderíamos dizer, portanto, que saímos
de uma estética e adentramos em uma metafísica
da vontade de poder. O grande estilo dilui, assim,
a distinção entre teoria e prática dado que é um
pensamento criador. A arte é o que possibilita a
vida ao superar a vontade de negação e ao trans-
formar o sofrimento em êxtase. Paulo de Tarso (Fonte: http://laionmonteiro.files.
wordpress.com).

151
Introdução à Filosofia

CONCLUSÃO

Caro aluno, a partir do que foi visto podemos dizer que, para Nietzsche,
a arte transfigura o real. A tra-gédia como modelo de uma arte forte, arte
essencial, longe de todo Romantismo e Classicismo históricos. Por isso,
a escolha pelos gregos como inspiração, pois eles souberam conceber o
mundo como arte. Como um jogo de forças e expressão de uma visão
estética do real. A arte como glorificação em que o espantoso ou absurdo
resultam sublime. Por fim, acreditamos que a análise niezscheana funda um
novo ciclo no pensamento Ocidental, em que a alegria sobrepõe a dor e a
arte toda pretensão de aniquilamento.

RESUMO
Nietzsche, como crítico da tradição filosófica Ocidental, postula um
novo modo de conceber o conhecimento, baseando-se na experiência grega
da arte, particularmente, na tragédia. A arte como revelação das forças
pulsantes da natureza em que o bem e o mal, o justo e o injusto, o belo e o
feio, são princípios que compõem a totalidade enquanto harmonia e guerra.
Um novo modo de pensar que postula a transvaloração de todos os valores
e a sedimentação de um pensamento superior a toda codificação moral e
ascética, que de um modo ou de outro, negam a vida em detrimento de
um “além mundo”. O mundo como realidade fenomênica é o ponto de
partida para o postulado nietzscheano da arte como criação e afirmação
da existência na sua forma mais absurda e abissal.

ATIVIDADES

1. O que significa transvalorar?


2. Qual o papel do cristianismo para o niilismo Ocidental?
3. Que papel desempenha a arte no pensamento nietzscheano?

COMENTÁRIO SOBRE AS ATIVIDADES

Lembre-se que transvalorar é quebrar valores antigos e estabelecer


novas regras e novos princípios capazes de afirmar a vida na sua
totalidade, neste sentido, o cristianismo e a arte têm papéis distintos
dentro do pensamento nietzscheano, ou seja, um nega a vida em
função de um mundo do “além” e a outra à afirma em sua plenitude
fenomênica.

152
Filosofar com o martelo
Aula

PRÓXIMA AULA

Na aula 19, veremos as principais características da filosofia do século


18
XX.

REFERÊNCIAS
Brum, J. T. O pessimismo e suas vontades. Schopenhauer e Nietzsche.
Rio de Janeiro: Rocco, 1998.
Colli, G. Introducción a Nietzsche. Trad. Romeo Medina. Valencia: Pre-
textos, 2000.
Giacoia, O. J. Labirintos da alma. Nietzsche e a auto-supressão da
moral. Unicamp: Editora da Unicamp, 1997.
Machado, R. Nietzsche e a verdade. Rio de Janeiro: Graal, 1999.
__________. O nascimento do trágico. De Schiller a Nietzsche. São
Paulo: Zahar, 2006.

153
Aula
CAMINHOS DA FILOSOFIA
CONTEMPORÂNEA: O MARXISMO
OCIDENTAL E O PROBLEMA DA RELAÇÃO
19
ENTRE A RAZÃO, A POLÍTICA E A TOTALIDADE DO
REAL

META
Expor alguns conceitos fundamentais do pensamento filosófico do século XX.

OBJETIVOS
Ao final desta aula, o aluno deverá:
definir a crítica marxista das sociedades capitalistas modernas;
analisar os principais pontos das reflexões filosóficas da herança hegeliana; e
estabelecer as principais características da filosofia do século XX.

PRÉ-REQUISITOS
O aluno deverá revisar os assuntos relativos à Filosofia Moderna.

Karl Marx (Fonte: http://online.chabotcollege.edu).


Introdução à Filosofia

INTRODUÇÃO

Caro aluno, na aula de hoje vamos caracterizar um as-pecto prob-


lemático de uma das linhas ou dos cami-nhos seguidos pelo pensamento
filosófico no século passado. No século XX a filosofia se depara com o que é
geralmente caracterizado como sua própria ‘crise’ (ainda que haja quem diga
que a filosofia sempre esteve em crise): crise da razão teórica, que parece ter
fracassado em sua tarefa iluminista (tal como imaginada no século XVIII);
crise dos fundamentos, explicitada tanto por um Nietzsche (“Deus mor-
Freud reu”) como por um Marx (ao exigir que a filosofia não apenas ‘interprete’,
Pai da psicanálise,
mas ‘transforme’ o mundo); crise da consciência, com Freud mostrando
doutrina psicológica que nossas razões mais básicas estão além do plano da consciência; crise
que afirma que a con- das Ciências Humanas, abaladas pela demolição de suas bases (dita também
sciência é determina- ‘crise do Sujeito’ e ‘crise da História’ caracterizada como ‘psicologismo’ e
da por fatores incon- ‘historicismo’); crise da natureza (o afastamento do homem da natureza
scientes estruturados em virtude do processo civilizatório; a denúncia das ‘falácias naturalistas’);
a partir das vivências
afetivas da primeira
crise na relação entre teoria e prática (com o alheamento das teorias em
infância. relação à realidade); a crise do humanismo acirrada pelo avanço tecnológico
cego, pelos totalitarismos políticos e pela experiência traumática de duas
Globalização Grandes Guerras Mundiais devastadoras; crise da metafísica, colocada sob
suspeita radical por vários lados como algo a ser ‘superado’; crise, enfim,
Processo de rup- da própria filosofia, assolada por um pragmatismo cada vez mais acintoso,
tura de fronteiras,
em primeiro plano,
que chega a não ver mais lugar para si mesma em um mundo cada vez mais
econômico, pelo qual determinado por interesses comerciais e utilitaristas imediatos ditados pela
as empresas não se globalização e pela instrumentalização do saber.
organizam mais res-
peitando limites na-
cionais. A globaliza- O MARXISMO OCIDENTAL
ção impõe o fim da
autonomia das nações
na gerência de seus No século XX a novidade é que a filosofia passa a tematizar o seu
interesses particula- próprio fim (o “Fim da Filosofia” torna-se tema recorrente de vários
res, devendo todas pensadores), uma vez que não haveria mais lugar ou função para reflexões
se submeter à lógica filosóficas ditas ‘ociosas’ em um mundo regrado por tecnologias políticas
global do capital. produtivistas impostas por um sistema trans-nacional (global), sobre o qual,
ninguém mais pode pretender ter controle.
O século XX é também caracterizado pela ausência de grandes ‘novi-
dades’ filosóficas (como as que ocorreram no período moderno, nos séculos
XVII, XVIII e XIX), ficando marcado antes por uma série de ‘reciclagens’
mais ou menos bem articuladas de pensamentos anteriores. Um século,
portanto, relativamente pobre em filosofia (por comparação), o século XX
assistiu a uma sucessão aparentemente anárquica de ‘neos’: neo-raciona-
lismos e neo-irracionalismos, neo-estruturalismos e neo-fenomenologias,

156
Caminhos da filosofia contemporânea: o marxismo ocidental...
Aula

neo-positivismos e neo-hermenêuticas, neo-empirismos e neo-marxismos,


neo-logicismos e neo-modernismos, neo-criticismos e neo-misticismos,
fragmentados em diversas escolas, geralmente sem muita unidade interna,
19
cada uma fazendo sua própria síntese a partir de modelos colhidos, apar-
entemente ao acaso, do passado recente ou remoto.

Revolução Russa(Fonte: http://pcdobpr.files.word-


press.com).

Assistimos no século XX a passagem de hordas de positivistas combat-


endo hordas de existencialistas, ambos combatidos por hordas de marxistas,
sem que um vencedor tenha se apresentado claramente, sendo que mesmo
no interior de cada uma destas hordas os pensadores pareçam capazes de
se colocarem de acordo entre si mesmos.
Enfim, no século XX a filosofia se apresenta, à primeira vista, como
uma balbúrdia altissonante de ‘ismos’, de pensamentos diversamente mis-
turados e sem muita originalidade, de ‘modas’ que não resistem a mais de
uma estação. Terminamos o século sob o estigma do ‘pragmatismo’ e do
‘pós-modernismo’, que contribuíram cada um por seu lado para reduzir a
filosofia a uma especialidade acadêmica (a algo próprio de ‘filósofos profis-
sionais’) e a fazê-la se acomodar à falta de unidade, de perspectiva comum e
de relevância. Porém, estranhamente, o século XX não conseguiu destruir
completamente a filosofia e, desde o nosso século XXI, podemos já tentar
lançar um olhar um pouco mais compreensivo para o século passado a fim
de procurar entender o que aconteceu, afinal - ainda que possamos (e talvez
devamos) manter viva a desconfiança de que, ao falarmos em filosofia neste
Terceiro Milênio, talvez estejamos apenas tentando ressuscitar um cadáver

157
Introdução à Filosofia

ambulante, já vegetativo, mantido vivo apenas por hábito nas academias


universitárias por gente desatenta que não se deu conta de que a paciente
(a ‘Filosofia’), assim como ‘Deus’, a ‘Natureza’, o ‘Sujeito’, a ‘Arte’ e a
‘História’, também já morreu.
Sem pretender aqui esgotar as diversas correntes da (ou os caminhos
tentados pela) filosofia contemporânea, cremos ser possível organizá-las em
três categorias principais, marcadas pelo modo como se apropriam do passado:
Hegel 1) os herdeiros de Marx no campo do ‘Marxismo Ocidental ’ entrinchei-
Autor do século XIX, rados na Filosofia Social e também chamados de ‘hegelianos materialistas’
representante do Ide-
alismo Alemão, autor
(alguns dos quais trataremos a seguir);
da Fenomenologia do 2) os herdeiros diretos de Hegel que vão cunhar, em diversos sentidos,
Espírito, livro no qual uma nova ‘Fenomenologia’ e defender formas diversas de culturalismo e
procura descrever a espiritualismo (dentre os quais destacaríamos Husserl, o ‘pai’ da Fenom-
dialética do espírito enologia contemporânea, Heidegger, o mais famoso - talvez porque mais
objetivo, desde a ini- obscuro - e Merleau-Ponty, talvez o mais sério e pertinente crítico entre os
cial alienação com-
pleta entre Natureza
fenomenólogos - sem esquecer de mencionar Sartre enquanto fenomenólo-
e Cultura até a síntese go marxista, ou representante de um ‘marxismo-existencialista’); e, por fim,
completa de ambos no 3) a tradição ‘Analítica’ que renegando a dialética hegeliana por princípio
Espírito Absoluto. (seja na versão materialista, seja na versão espiritualista) retomam a tarefa
crítica kantiana da filosofia como análise de conceitos - com base na nova
lógica formal (simbólica) - e exame das condições da experiência, e se en-
tregam ao trabalho de combater os abusos da metafísica, apelando para a
racionalidade científica (dentre os quais destacaríamos os Empirismo Lógico
inglês, interessado seja em lógica e ciência (como Russell) seja em ética
(como Moore), seus primos próximos do Positivismo Lógico (o Círculo
de Viena), o papel de Wittgenstein neste contexto (autor que será melhor
estudado no capítulo seguinte), e seus desdobramentos na Filosofia da
Husserl
Linguagem Cotidiana em Filosofia da Mente, nas Ciências Cognitivas e no
Pai da Fenomenolo- Pragmatismo norte-americano).
gia contemporânea Deste quadro genérico que não esgota a locação possível dos perso-
que procura fazer dela nagens (pois sempre pode ser apontado um pensador que não se encaixa
uma ciência rigorosa devidamente em nenhum dos três rótulos acima - ou que se encaixe em
através de procedi- mais de um deles - e, portanto é bom estarmos bem avisados de que estas
mentos como a ‘ep-
oché’ (suspensão do
três categorias não são mais do que ‘rótulos’, usados aqui para facilitar
juízo) até a descrição a apreensão de um processo complexo), destacamos neste capítulo o
das ‘essencialidades’ primeiro grupo, o ‘Marxismo Ocidental’, abordado parcialmente e em uma
pelas quais a consciên- perspectiva específica: o trabalho de Lukács e de dois membros da Escola
cia constitui o sentido de Frankfurt nas figuras centrais de Walter Benjamin e Theodor Adorno.
dos objetos. Define A partir deste momento, apresentaremos os pensamentos de Lukács,
a consciência como
‘intencionalidade’ pro-
Benjamin e Adorno, três representantes de uma das perspectivas contem-
curando alcançar o porâneas da filosofia: o marxismo ocidental. Procuraremos destacar alguns
momento anterior à contrastes e semelhanças entre eles, tendo como foco central o problema
distinção entre sujeito da relação entre a racionalidade política e a totalidade do real.
e objeto.

158
Caminhos da filosofia contemporânea: o marxismo ocidental...
Aula

MARXISMO OCIDENTAL: FILOSOFIA COMO


CRÍTICA DAS SOCIEDADES CAPITALISTAS
19
MODERNAS

Marxismo Ocidental é a denominação dada aos herdeiros de Marx


que, no século XX, colocaram no centro do interesse filosófico a crítica
das sociedades modernas enquanto estruturas montadas em função de
manter e aprofundar a “exploração do homem pelo homem” na forma
de exploração do Trabalho pelo Capital (ou seja, a exploração da ‘classe
trabalhadora’ pela ‘classe proprietária’). Merleau-Ponty
Marx teria cunhado os instrumentos fundamentais para a compreensão Fenomenólogo
da ordem socialmente injusta instaurada sobre a Terra, com sua interpretação francês, autor da
materialista da dialética hegeliana. Para Hegel, a história seria um ‘processo Fenomenologia da
Percepção, livro no
dialético’, uma espécie de jogo oscilatório entre opostos (teses e antíteses)
qual contesta a con-
em busca de uma síntese conciliatória final - no ‘Espírito Absoluto’. E eis cepção cartesiana de
aí, segundo Marx, o erro fundamental de Hegel: ele teria concebido a di- consciência e a du-
alética como processo ‘espiritual’, ‘abstrato’, apenas no plano ‘do conceito’. alidade de corpo e
Marx não titubeou em colocar as coisas em seus devidos lugares, ou seja, alma, propondo uma
em colocar a dialética hegeliana de ponta-cabeça: o plano material não é compreensão não du-
alista do ser humano.
determinado pelas oposições do espírito (não é a idéia que determina o
real), mas ao contrário, o que chamamos de ‘espírito’ (a superestrutura
cultural) é que é determinado
pelas oposições reais existentes
no plano material, no concreto
(a infra-estrutura), pela efetiva
luta de classes sociais (ou seja,
pela oposição real entre domi-
nados e dominadores, entre os
‘capitalistas’, os que detêm o
capital e os meios de produção,
e o ‘proletariado’, os que têm
apenas o seu trabalho, e sua
‘prole’, para vender, sempre
Jean-Paul Sartre
em situação de desvantagem,
Famoso autor de liter-
aos capitalistas). Ou seja, não atura (A Náusea) e de
são as oposições de idéias que filosofia existencial-
determinam o real, mas são as ista, cruzando o mé-
oposições reais que determi- todo fenomenológico
nam as idéias. com preocupações
marxistas. Intelectual
Ao defender a ‘ditadura
engajado envolveu-se
do proletariado’ como única Wall Street década de 30. (Fonte: http://deminvest.files.
wordpress.com). nas grandes questões
forma de combate efetivo à políticas de seu tem-
classe burguesa e à exploração, inevitável e progressiva, que sua existência po.

159
Introdução à Filosofia

acarreta, Marx pretendia apresentar sua versão de Socialismo como única


versão propriamente científica e racional da revolução social (contra os
‘socialistas utópicos’ franceses e os anarquistas, ditos também utópicos).
O método correto para a correta interpretação do processo histórico e
social só poderia ser o método histórico materialista-dialético (apelidado
de ‘DiaMat’), único capaz de revelar as estratégias do Capital em seu afã
de explorar a maioria trabalhadora (a obtenção injusta do lucro através da
Russel ‘mais-valia’), ou seja, único modo de superar efetivamente a contradição
Influente filósofo in- social das classes, pela imposição, pelos trabalhadores organizados (em um
glês, autor do Prin- partido político), da socialização dos meios de produção. Ora, na análise de
cipia Matemática, Marx o modelo burguês moderno de exploração superou o modelo feudal
livro que estabelece medieval, criando um ‘Estado de Direito’ (formalmente democrático e
a compreensão da
matemática moderna.
republicano, em teoria, mas no plano real, oligárquico e de uso privado,
Combatia as diver- na prática) cuja função real principal é a de deter os inevitáveis avanços da
sas formas de ideal- classe operária em sua luta por justiça e garantir assim o ‘direito’ dos ricos
ismo filosófico e da de se tornarem “cada vez mais ricos”, enquanto os pobres se tornam “cada
metafísica em nome vez mais pobres”. Ainda segundo esta análise, as contradições internas
do Empirismo Lógico do Capital teriam de ser acirradas e aprofundadas a fim de superarmos a
e de uma concepção
científica da filosofia.
propriedade privada dos meios de produção (das terras, das fábricas e dos
serviços), pilar básico das desigualdades sociais, o que só poderia acontecer
nas sociedades mais desenvolvidas industrialmente, como era o caso da
Inglaterra do século XIX (justamente para onde Marx se recolheu a fim de
estudar e redigir sua obra maior, O Capital).
A História, porém, não confirmou esta previsão de Mister Marx, pois a
Inglaterra não só manteve como aprofundou seu modelo liberal-capitalista
(hoje sob a forma de neo-liberalismo), enquanto a revolução acabou ocor-
rendo, de fato, em um dos países industrialmente mais atrasados da época,
a Rússia imperial czarista (daí espalhando-se para o Leste Europeu, depois
China, Coréia do Norte, Cuba, ou seja, para lugares igualmente ‘atrasados’).
Heidegger Com a vitória do partido de Lênin (os bolcheviques) e a implantação do
Aluno de Husserl ‘socialismo real’ (o coletivismo) naquele país, e não nos mais avançados,
que desenvolve sua como a teoria marxista previa, alguns axiomas do marxismo teriam de ser
própria concepção de
fenomenologia. Autor
revistos. A esta revisão das bases teóricas do marxismo, imposta pela pressão
de Ser e Tempo, livro dos acontecimentos históricos, deu-se o nome de ‘Marxismo Ocidental’
no qual procura de- (expressão cunhada por Merleau-Ponty no livro As Aventuras de Dialética
screver as estruturas de 1955, para distinguir o marxismo de pretensão universalista das versões
‘epocais’ da existên- locais de marxismo, como o marxismo eurocêntrico inicial, o soviético e
cia, definida como o asiático).
da-sein (‘ser aí’): o
ser humano é desde
A preocupação central do Marxismo Ocidental é compreender o
o começo já lançado- contraste entre a imperatividade de revolução (a convicção de que ela é in-
no-mundo. Procura evitável) e uma realidade social e histórica que a posterga sistematicamente
compreender onto- (a eficácia das sociedades avançadas em evitá-la). Um tema central para a
logicamente a ‘angús- explicação teórica destes neo-marxianos é, portanto, o problema da ‘alien-
tia’ existencial.

160
Caminhos da filosofia contemporânea: o marxismo ocidental...
Aula

ação’: entender como e por que as classes dominadas (a massa trabalhadora,


que é maioria) não conseguem enxergar a exploração a que são submetidas
(pela minoria proprietária do capital); como não conseguem ver o poder
19
que possuem, se forem capazes de se unir; e, enfim, como acabam lutando
eles mesmos para manter a escravidão a que estão submetidos.
Com as denúncias dos crimes de Stálin e a revelação dos abusos da bu-
rocracia russa contra os trabalhadores soviéticos (nos anos 50) e, enfim, com
a queda do muro de Berlim (em 1989) foi anunciado o ‘fim do socialismo
real’. O esforço do Marxismo Ocidental é, portanto, o de procurar entender
por que a humanidade ‘prefere’ continuar a ser explorada pelo capital (e
cada vez mais, nesta atual fase do capitalismo pós-industrial e globalizado),
ao invés de realizar a revolução social que poderia assegurar paz duradoura, Moore
liberdade efetiva e igualdade real para todos (e não apenas rótulos formais
Companheiro de
vazios e enganosos como nas sociedades democráticas burguesas), ou seja, Russell em sua luta
a tão esperada emancipação da classe trabalhadora. contra o idealismo
Trata-se de compreender, assim, a luta ideológica travada no interior e a metafísica, autor
de todas as sociedades, através da qual uma minoria exploradora consegue de Principia Ética,
manter a maioria explorada alienada de seus verdadeiros direitos, alheada livro que estabelece
das relações efetivas que ocorrem na sociedade - e, ainda por cima, con- as bases do utili-
tarianismo (versão
segue ficar ‘feliz’ com isso - através do controle das escolas, da religião e sofisticada de utili-
da mídia (e especialmente a manipulação das artes), principais ‘aparelhos tarismo) e da crítica
ideológicos’ do Estado burguês. às ‘falácias natural-
istas’ no campo da
moral.

Círculo de Viena

Grupo de intelec-
tuais ligados à ciên-
cia que se reuni-
ram em Viena, na
Áustria, nos anos
20, e lançaram um
famoso manifesto,
a Concepção Cientí-
fica de Mundo, pelo
qual anunciavam sua
tarefa de destruição
da visão metafísica
de mundo, colo-
cando a filosofia no
Tempos modernos.Charles Chaplin- E.U.A. 1936. (Fonte: http://deminvest.files.wordpress.com). rumo certo da ciên-
cia. Formuladores
do que ficou conhe-
cido como Positiv-
ismo Lógico.

161
Introdução à Filosofia

Socialismo GEORG LUKÁCS


Doutrina política ex- Em uma das vertentes principais do Marxismo Ocidental (que inclui
acerbada no século
XIX que afirma a ne-
ainda intelectuais engajados como Antonio Gramsci, Rosa Luxemburgo,
cessidade de romper Herbert Marcuse, Louis Althusser e Jean-Paul Sartre) encontramos o trab-
com a propriedade alho de base do filósofo húngaro Georg Lukács (1885-1971) enfatizando a
privada e da posse co- dimensão teórica do marxismo (a revolução social não como mero ‘desejo’
letiva dos bens e dos de alguns, mas como ‘exigência’ da realidade histórica). Seu livro da juven-
meios de produzi-los. tude História e Consciência de Classe (1923) é um marco na revitalização
Mais-valia
da teoria marxista no século XX, e com as 1.200 páginas de sua obra da
maturidade, a Ontologia do Ser Social (1969), com a qual procura corrigir
Estratégia denunciada traços ainda ‘idealistas’ de sua obra prima juvenil, Lukács chegaria à máxima
por Marx pela qual o expressão de sua visão das tarefas da filosofia. Em sua maturidade, Lukács
capital obtém o lucro, procura mostrar o caráter ontológico do marxismo (além do estatuto de
ao pagar ao trabalha- seu método histórico-dialético), em oposição a certas versões ‘idealizadas’
dor apenas uma parte
do trabalho que ele
do marxismo, que o restringem ao marco antropológico e a um problema
tem em produzir uma de consciência. Lukács procura mostrar que o marxismo não é apenas uma
mercadoria, ficando teoria sobre o que o ser humano é ou deve fazer (um dever moral), mas,
com a parte restante mais substancialmente ainda, é uma teoria sobre como a realidade é (uma
para si, apropriando- ontologia), e daí então sobre como devemos nos relacionar com ela.
se do trabalho alheio
sem nada produzir.

Democracia

Sistema político
no qual o poder de
decisão pertence à
maioria.

Oligarquia

Sistema político no
qual o poder de de-
cisão pertence a um
grupo ou a uma mi-
noria. Distingue-se
da monarquia, em que
o poder de decisão
pertence a uma pes-
soa só.

Coca-cola, cartaz, França dezembro de1950. (Fonte: http://www.plan59.com).

162
Caminhos da filosofia contemporânea: o marxismo ocidental...
Aula

Na obra juvenil, depois anunciada como iniciadora do Marxismo Oci-


dental, Lukács afirma categoricamente que “o que diferencia decisivamente
o marxismo da ciência burguesa não é a tese do predomínio dos motivos
19
econômicos na explicação da história, mas sim o ponto de vista da totali-
dade” (Lukács, 1967: 45). O que mantém a massa alienada é, portanto, a Utopia
dificuldade de se alcançar este ponto de vista da totalidade do processo,
uma vez que a ideologia burguesa apresenta sistematicamente a parte como Termo derivado de
se fosse o todo (um saber fragmentado, ‘pós-moderno’, parcial, atomizado, ‘topos’ (lugar) e de
um prefixo (‘u-’) com
compartimentalizado, ‘de especialistas’ e, portanto, alienante).
valor de negação. Um
Ao defender o marxismo como teoria ontológica (única possibilidade não-lugar, ou seja,
de visão concreta da totalidade do real em devir), Lukács também rebate algo que não tem ex-
as ideologias burguesas que mantém o sistema funcionando, expressas, istência real, mas que
sobretudo, em duas formas principais: 1) os neo-positivismos (com sua uma vez formulado
negação do sujeito, da história, da ontologia, da totalidade e da dialética) que pode servir de parâ-
metro para a ação e o
procuram ‘racionalizar’ o capitalismo segundo uma lógica formal abstrata;
pensamento humano.
2) os neo-irracionalismos (manifestos em vertentes da fenomenologia, Hei-
degger por exemplo, e filosofias existencialistas, despojadas de ‘historicidade Anarquismo
concreta’), ideologias que defendem enfim uma ‘fuga romântica’ (idealista e
irracional) desta realidade opressiva (seja pela ‘razão formal’, seja pela ‘des- Doutrina política
razão’) ao invés de seu enfrentamento através da luta política - ideologias cujo nome deriva de
‘arqué’ (princípio) e
denunciadas no livro A Destruição de Razão (1953).
o prefixo de nega-
Lukács também se destaca por ter refletido ao longo de toda sua vida ção (‘an’), ‘sem-
sobre as relações entre arte e política (tendo inclusive ocupado um cargo princípios’, também
político importante na área cultural durante o primeiro governo comunista formulada no século
da Hungria), ou sobre política e estética: o problema de uma política cultural, XIX, concorrente dos
na qual defendeu uma forma de ‘realismo socialista’. Ao procurar equacionar socialistas e dos co-
munistas, que também
o compromisso entre os valores estéticos (da forma e do conteúdo artísticos)
apregoam o fim da
e os valores políticos (da revolução), Lukács sabia muito bem que a simples propriedade privada,
manipulação da arte para fins políticos, mesmo que ‘em nome da revolução’, mas discordam (dos
acabaria apenas por prejudicar tanto a arte como a política. Mas a katarse marxistas) de que o
especificamente artística é, segundo Lukács, um dos principais meios de Estado deveria ser
desalienação do ser humano para fazer com que ele reconheça a necessidade tomado por um par-
tido. Defendem o fim
da ação política conjunta (e com isso denuncia as formas vãs de ‘arte pela
automático do Estado
arte’ que levam os seres humanos a se evadir da realidade na qual vivem, e a usufruição espon-
aprofundando a alienação). A arte realmente engajada é aquela que leva à tânea, sem regras e
universalização do espírito humano, à emancipação de suas particularidades sem líderes, dos bens
provincianas e egoísticas e assim, a uma visão esclarecida da totalidade. O materiais.
‘grande realismo’ da ‘grande arte’, diz Lukács, fortalece nas pessoas a con-
sciência de cada uma ser um representante da humanidade e o levaria assim
a assumir sua tarefa e sua responsabilidade nos problemas que envolvem
os outros seres humanos. A Teoria do Romance (cuja primeira versão é de
1914-15) é um livro no qual Lukács se lamenta da perda contemporânea de
um mundo unitário e harmonioso, lamenta a perda de uma linguagem que

163
Introdução à Filosofia

era capaz de exprimir a totalidade imediata - uma visão nostálgica, partilhada


Ontologia por vários pensadores, entre eles Walter Benjamin. A totalidade primeira e
imediata estava irremediavelmente perdida, e a questão para Lukács ficava
Área da filosofia que sendo, então, como alcançar uma ‘nova totalidade’, mais mediatizada, mais
estuda o ‘ser’ (‘on- completa e universal do que aquela ‘felicidade originária’ perdida.
tos’, em grego), ou
seja, aquilo que existe
por si e por si subsiste WALTER BENJAMIN
(independentemente
dos pensamentos do O ensaio O Narrador (escrito em 1935) de W. Benjamin (1892-1940),
ser humano), como inspirador decisivo e colaborador da Escola de Frankfurt (fundada em 1924
a ‘substância’ ou a
‘essência’ das coisas.
como Instituto de Pesquisas Sociais de Frankfurt, transferida para Genebra
em 1933, retornando à Alemanha em 1950), tem vários pontos de contato
com a Teoria do Romance de Lukács (que Benjamin cita várias vezes): aqui
Katarse também um ‘passado mais harmonioso’ serve de ‘paradigma perdido’ para
um ‘presente desencantado’ - com a diferença de que este paradigma para
Palavra de origem
Benjamin é a produção artesanal pré-industrial e pré-capitalista medieval,
grega que significa
‘purificação’, ‘purga- e não a Grécia antiga, como para Lukács.
ção’; termo de origem Diferentemente de Lukács, que parece acreditar na formação de uma
médica que foi usado nova ‘totalidade épica’ - e para quem a grande manifestação artística disso
por Aristóteles em sua se encontraria na obra de Dostoievski -, Benjamin insiste no inelutável
Poética para explicar fim da narração tradicional, em função justamente da perda da ‘experiência
o efeito que a obra
coletiva tradicional’ (seu conceito-chave), sem poder mais acreditar no re-
de arte (a tragédia
em particular) exerce nascimento de uma ‘nova totalização’ mais elaborada (ou mais universal). As
sobre os seres huma- Grandes Narrativas que davam ‘unidade épica’ ao processo histórico estão
nos, fazendo-os se definitivamente mortas, segundo Benjamin, porque a ‘experiência coletiva’
libertar de suas dores não é mais possível no mundo atual (em nosso mundo da ‘reprodutibilidade
e de seus medos, jus- técnica’ e de rápido consumo compulsório e individualista de ‘cultura’ na
tamente através da
forma de vídeo-clipes fragmentário e passageiro). A ‘narração’ não é apenas,
identificação com os
personagens apresen- portanto, uma questão literária, mas diz respeito à própria (im)possibilidade
tados na narrativa. da transmissão cultural (como um todo), ou seja, a nossa relação (alienada)
com nosso próprio passado e assim à impossibilidade de auto-compreensão
individual e coletiva (enfim, à impossibilidade de compreendermos nossa
Paradigma
própria herança cultural burguesa).
Termo de origem Em suas Teses sobre o Conceito de História (publicadas em 1940),
grega que significa Benjamin combate o que chama de ‘historicismo’, isto é, o positivismo pre-
‘modelo’, ‘tipo’ ou tensamente ‘desinteressado’, que diz descrever ‘objetivamente’ as tendências
‘padrão’. Um para- históricas (a pretensa ‘neutralidade’ historicista), explicado como forma de
digma é um modelo ‘passividade’, ou seja, de aceitação incondicional do existente (das relações de
tomado como regra
dominação e opressão vigentes). Ele vê nisso uma ‘acomodação reacionária’
ou critério de com-
paração para medir o sob a máscara da ‘neutralidade científica’. A falsa-continuidade da história
grau de exatidão com (a ‘falsa epicidade’) e a continuidade da opressão: trata-se de reprimir, não
que uma coisa é feita. deixar emergir os momentos que podem romper, implodir e esfacelar a
farsa montada da história niveladora imposta pelos dominantes e por seus

164
Caminhos da filosofia contemporânea: o marxismo ocidental...
Aula

sequazes. E não é possível mais uma história épica universal alternativa


(apesar de todas as boas intenções socialistas), uma vez que a ‘experiência
coletiva’ que tornaria isso possível não existe mais (a experiência coletiva
19
que estava presente na atividade artesanal pré-capitalista, tornada impossível Épico
com a lógica da divisão-do-trabalho nas sociedades industriais).
Gênero literário de
Esta convicção leva Benjamin a denunciar a necessária ‘falsa univer- narrativa que se dis-
salidade’ das narrativas totalizantes (almejadas por Lukács) como ‘ilusão de tingue da lírica (que
universalidade’ e como pretensão abusiva de qualquer discurso. E parece não se atém à expressão
haver em Walter Benjamin qualquer solução satisfatória para esta situação, de vivências subjeti-
uma vez que as soluções tradicionais não podem mais servir de paradigma vas) e do drama (que
para nossa atual desorientação - o que, para Lukács, soava como uma ‘visão descreve uma ação
limitada a um person-
pessimista desesperada’, tal como a que se encontra na obra de Kafka. No agem ou grupo res-
entanto, Benjamin parece ter desistido de vez da bela convicção de uma trito de personagens).
‘totalidade dialética plena de sentido’, sem cair, porém, em uma resignação O romance épico en-
angustiada que desistiu da crítica e da transformação do presente: criticar volve uma temporali-
a cultura é também criticar nossos padrões e pretensões à universalidade e dade ampliada e tem
à totalidade; e mais ainda, criticar a cultura é, sobretudo, dar atenção e voz por personagem não
uma pessoa ou grupo
ao particular, ao estranho, ao anormal, ao que foi silenciado, enfim, àquilo em particular, mas a
que nunca se encaixa bem em novas tentativas de totalização. história de toda uma
época, uma geração
THEODOR ADORNO ou um povo.

Adorno (1903-1969), na esteira de Benjamin, denuncia como grande


tentação do pensamento dialético a tentação da ‘reconciliação apressada’: as
falsas-totalizações que servem apenas para acomodar nossa consciência, para
evitar e não para compreender a realidade. Autor, com Max Horkheimer,
da Dialética do Esclarecimento (1944), Adorno foi o principal diretor da
Escola de Frankfurt e assim um dos principais responsáveis pela formu-
lação da Teoria Crítica no âmbito da Filosofia Social contemporânea. A
Dialética do Esclarecimento procura mostrar que a razão ocidental nasce da
recusa ao pensamento mítico, na tentativa perene de livrar o ser humano do Dostoievski
medo - sendo que o ‘esclarecimento’ não consegue realizar isso, mas pelo
contrário, acaba por aprisionar ainda mais o ser humano, uma vez que a Autor de literatura
realista russo, do sé-
razão ela mesma se transforma em um mito. Articulando, sob influência de culo XIX, que de-
Lukács, mas também de Benjamin, idéias de Kant, de Marx, de Nietzsche e senvolveu uma nova
de Freud, a Teoria Crítica frankfurtiana procura tornar compreensível este forma de romance
fragoroso fracasso da razão ocidental em sua tarefa de nos livrar do medo. (chamada de romance
Sob o impacto da ascensão do nazismo e da Segunda Guerra Mundial, polifônico), no qual
Adorno procura compreender como foi possível que seu povo aderisse tão as diversas vozes dos
personagens não são
incontinente à loucura nazista (o totalitarismo). nunca reduzidas a
A Dialética do Esclarecimento é tida por uma das obras filosóficas mais uma só voz subjacen-
radicalmente pessimistas do ocidente - talvez reflexo justo de sua época te nem determinadas
dramática: nazismo triunfante de um lado, stalinismo opressivo de outro, e por um sentido único.

165
Introdução à Filosofia

no meio, o aburguesamento das classes operárias no capitalismo avançado


- em todas as direções apenas opressão, sofrimento e morte (e o pior, a
acomodação bem-pensante e satisfeita a essas formas de dominação). A
tese principal da obra é anunciada no Prefácio: “O mito já é esclarecimento
e o esclarecimento acaba por reverter à mitologia” (Adorno e Horkheimer,
1985: p.15), denunciando assim o enclausuramento da razão em um pensa-
mento tão ameaçador quanto o das lendas míticas que diz combater. Esta
análise das contradições presentes no projeto de emancipação da razão
Franz Kafka iluminista alcança, além do nível científico, também o nível da moral e da
arte (a impossibilidade de uma transcendência estética, contra Walter Ben-
Autor de literatura jamin), uma crítica radical em três dimensões. Sua questão permanente é:
tcheco, do século XX,
criador de formas
como é possível um pensamento crítico, isto é, como manter a esperança na
literárias insólitas e emancipação se seu principal instrumento, a razão, se tornou ela própria o
recheadas de ‘absur- principal instrumento de cerceamento mítico, contra o qual diz lutar? “No
dos’, em que os perso- sentido mais amplo do progresso do pensamento, o esclarecimento tem
nagens são envolvidos perseguido sempre o objetivo de livrar os homens do medo e de investi-los
em esquemas que não na posição de senhores. Mas a Terra totalmente esclarecida resplandece sob
compreendem e ter-
minam geralmente de
o signo de uma calamidade triunfal” (Adorno e Horkheimer, 1985: p.19).
maneira trágica. O sentimento básico do ser humano que busca o esclarecimento é,

Nazismo (Fonte: http://historiaobjetiva.fotoflog.com.br).

portanto, o medo (seja da natureza, seja da violência social) - é o medo


que desencadeia o pensar. Mas o problema não está nesta origem, e sim na
própria solução inventada para escapar ao medo: ter de tornar-se ‘senhores’
(o ‘processo de dominação’, da natureza, dos outros e de si mesmo). Nem

166
Caminhos da filosofia contemporânea: o marxismo ocidental...
Aula

mesmo a religião pode mais livrar o ser humano do medo, pois a religião
ela mesma não passa, hoje, de encarnação dos medos, angústias e desejos
humanos (demasiado humanos).
19
A razão tenta se livrar do medo através da dominação total do real (não

Guernica, Pablo Picasso (1937) (Fonte: http://notasaocafe.files.wordpress.com).

tolera que nada lhe escape), e ao tentar fazer isso, cai em um processo de
coerção tão ameaçador e restritivo quanto o cego destino mítico do qual
queria se livrar. Para a totalidade fechada da razão qualquer coisa que esteja
‘fora’ dela é uma ameaça, que deve ser ou absorvida ou negada. A própria
razão se torna o deus ameaçador mítico que aterroriza a si mesmo. O ideal
kantiano de ‘autonomia da razão’ tornou-se assim, com o aprofundamento
do capitalismo, auto-repressão da razão por si mesma. Mas Adorno é um
crítico do iluminismo que permanece (dialeticamente) iluminista (à diferença
de um Nietzsche), pois suas denúncias das perversões da razão retomam
e reafirmam o ideal de emancipação da razão – assimilando, porém, de
Nietzsche, a crítica à racionalidade iluminista como ‘vontade de poder’.
O alvo central da Dialética do Esclarecimento é a chamada ‘razão in-
strumental’, a razão formal e calculista, como instrumento de dominação
(que serve apenas aos interesses de quem a utiliza). Uma razão ‘instrumen-
talizada’ é assim impedida de pensar a multiplicidade complexa do real: a
lógica não nasce, afinal, da vontade-de-verdade, mas da vontade-de-poder.
Toda ordem imposta pela lógica à realidade não seria senão um momento
desta ‘vontade de domínio’ (a razão tentando conter seus medos), uma
razão covarde, que só se acalma quando violenta a realidade e a troca por
uma falsidade agradável. A própria doutrina marxista (o ‘socialismo cientí-

167
Introdução à Filosofia

fico’) não seria mais que outro momento da racionalidade ocidental com
vontade-de-dominação.
O pensamento, diz Adorno, no último fragmento de outro livro, Mínima
Morália (1947), cujo subtítulo é Reflexões a Partir da Vida Danificada, “pre-
cisa compreender sua própria impossibilidade, a fim de salvaguardar sua
possibilidade”(ver). Quer dizer que todas as feridas do mundo só poderão
ser devidamente reconhecidas no dia (que ainda não chegou) em que pud-
erem ser efetivamente curadas, o que Adorno chama de um conhecimento
“na perspectiva da redenção”.
A razão instrumental só é capaz de pensar os ‘meios’ mais ou menos
adequados para tais e tais ‘fins’ já determinados, mas é incapaz de colocar
estes próprios ‘fins’ em questão. Com isso, é a totalidade do corpo social
que está ‘alienada’. A conseqüência é que a dominação capitalista condiciona
inclusive aquilo que aparentemente resiste a ela: a arte pseudo-contestatória,
os partidos ‘de esquerda’, o movimento estudantil etc que, enquanto acham
que contestam o sistema estão apenas confirmando-o e permitindo seu
aperfeiçoamento e cristalização. Em nenhum caso o pensamento escapa
ao contexto geral de alienação.
A idéia central do terceiro livro de Adorno, a Dialética Negativa (1966),
é a perda de qualquer esperança em uma síntese conciliatória que se pro-
duza ao final do jogo insaciável de teses e antíteses (nem como o ‘Espírito
Absoluto’ de Hegel, nem como o ‘Comunismo’ de Marx). Uma dialética
‘negativa’ é uma dialética-sem-fim, sem momento totalizador, e esta seria a
direção adequada para um pensamento que seja ‘racional’, mas não ‘domi-
nador’ e sim ‘emancipatório’. O momento importante da dialética não está
na tão esperada ‘síntese’, mas justamente na ‘antítese’, ou seja, no momento
da negação de qualquer tentativa de apreensão da realidade em uma ‘tese’
qualquer. “É da determinação da dialética negativa não tranqüilizar-se a si
mesma como se ela fosse total; essa é sua figura da esperança” (Adorno,
1985b: p. 396)
Assim, neste último texto considerado, Adorno parece admitir já uma
saída para essa coerção da razão por si mesma: um pensar que não desiste
de seus próprios instrumentos para ir além de si mesma - sob a condição de
jamais descansar na pretensa síntese totalizante, fazendo com que a razão
sempre volte a funcionar, volte a girar em qualquer ponto mais ou menos
confortável de seu caminho. É preciso, diz Adorno, “ir além do conceito,
através do conceito” (Adorno, 1985b: p. 25), ‘esperança’ esta que parecia
estar completamente ausente da Dialética do Esclarecimento, mas que já
começava a aparecer, ainda que timidamente, na Mínima Morália. Adorno
começa com uma crítica radical à razão ‘esclarecida’ para chegar, enfim,
a uma certa esperança de salvação do conceito de razão, capaz de indicar
suas limitações e sua auto-superação. A ‘superação-da-razão’, destruição que
destrói para melhor conservar, é uma superação que não visa mais nenhuma

168
Caminhos da filosofia contemporânea: o marxismo ocidental...
Aula

totalização positiva, e é por isso uma Dialética Negativa. 19

Theodor Adorno (Fonte: http://adorno.planetaclix.pt).

CONCLUSÃO

Caro aluno, assistimos na trajetória de Adorno, compro-metida com


a vontade de emancipação da humanidade de Lukács, mas marcada pela
visão pessimista de Benjamin, talvez o último aceno, o adeus da razão à
sua vontade-de-totalidade (tão apregoada como necessária por sua vez por
Lukács). Adorno preferiu defender a razão, ainda que às custas de renunciar
a qualquer possibilidade de totalização. A totalização nunca é verdadeira-
mente racional; e razão nunca pode ser verdadeiramente totalizadora. Se
este resultado não nos tranqüiliza nem afasta nossos medos mais fundamen-
tais, ao menos deixa aberta uma janela para a esperança de não estarmos
confinados a um impasse insolúvel entre a vontade-de-ser-racional (sem a
totalidade) e a vontade-de-ser-total (sem racionalidade).
Adorno, enfim, fez uma opção. E hoje, ante as tendências políticas
dominantes no começo tortuoso do terceiro milênio da civilização ocidental
(o ’11 de setembro’ de 2001 é o marco inaugural dos neo-fundamentalismos
em curso), quando tendências obscurantistas e neo-medievalistas se impõem
(seja na versão protestante de um George Bush, seja na versão católica de
um Bento 16), a chamada à razão de Adorno, ainda que na forma de uma
dialética negativa, mostra toda sua pertinência.

169
Introdução à Filosofia

RESUMO

Partimos da caracterização do período contemporâneo como período


de ‘crise’ em vários sentidos (do iluminismo, dos fundamentos, das ciên-
cias humanas, da natureza, da relação teoria x prática, do humanismo, de
metafísica e da própria filosofia) e como de reavaliação da trajetória da
modernidade. Tal aparente anarquia de pensamentos em oposição pode
ser organizada em três categorias (rótulos) gerais: 1) o marxismo ocidental;
2) fenomenologia e 3) filosofia analítica, dos quais destacamos o primeiro
caso, nas figuras centrais de Lukács, Benjamin e Adorno.
Marxismo Ocidental é o nome dado aos pensadores da filosofia
política contemporânea que procuram ajustar a teoria marxista tradicional
à nova realidade histórica do séc. XX (o fracasso dos projetos socialistas
e a recrudescimento de doutrinas totalitárias e neoliberais). O projeto de
emancipação marxista precisava se aprimorar para enfrentar devidamente
a realidade (catastrófica, ao menos para a maioria desfavorecida) da história
social do século passado e do presente.
Procurando compreender as ‘vantagens do atraso’, ou seja, o fato de a
revolução ter ocorrido, de fato, primeiramente em países atrasados industri-
almente (ao contrário do que previa Marx), Lukács enfatiza o aspecto teórico
do marxismo como teoria ontológica (do ser social), combatendo assim
versões apenas antropológicas, psicologistas ou moralistas do marxismo, e
trazendo à frente das questões o problema da necessidade de se obter uma
compreensão da totalidade do processo histórico-social, única forma de
combater a alienação das classes dominadas, alienação esta produzida por
uma ideologia (a divisão social do trabalho) que fragmenta de tal o modo o
saber e o fazer, que impossibilita qualquer tentativa de compreensão inte-
gral do processo de dominação do trabalho pelo capital, fazendo passar o

170
Caminhos da filosofia contemporânea: o marxismo ocidental...
Aula

interesse de alguns (uma parte) como se fosse o interesse de todos, fazendo


dos oprimidos os agentes de sua própria dominação.
Walter Benjamin surge neste contexto polemizando contra Lukács
19
quanto à possibilidade de obter uma visão totalizadora do processo histórico Ser social
(o fim das grandes narrativas que conferiam sentido à vida quando a ex-
periência coletiva ainda era possível – no trabalho artesanal, o que se tornou A noção de ‘Ser So-
impossível diante da atual lógica da divisão social do trabalho imposta pelo cial’ em Lukács en-
volve dois aspectos
modo de produção industrial). Benjamin, no entanto, não desiste da história, concomitantes: a pre-
mas aponta para a necessidade de renunciar à pretensão de uma visão to- sença de determina-
talizante (almejada por Lukács), dando atenção e voz ao que foi silenciado ções causais naturais
pela falsa-universalidade da história niveladora imposta pelos dominantes. de um lado, e a ação
Lukács, influenciado pela desconfiança benjaminiana quanto à possibi- criadora da práxis
lidade de uma visão totalizante da história, faz uma trajetória que parece ir humana de outro, ou
seja, o Determinismo
do mais profundo pessimismo quanto à possibilidade de uma razão eman- e a Liberdade, duas
cipatória até a abertura para a esperança, em uma dialética negativa, para dimensões opostas
uma racionalidade que jamais descansa sobre falsas totalizações apressadas. articuladas pela noção
integradora de ‘trab-
alho’.

Walter Benjamin (Fonte: http://www.braungardt.com).

171
Introdução à Filosofia

ATIVIDADES

1. Em que sentido se pode falar em ‘crise’ da filosofia contemporânea?


2. Diga por que a revolução russa de 1917 obrigou a uma revisão do marx-
ismo original? Ou: que significa ‘Marxismo Ocidental’?
3. Por que Lukács enfatiza o caráter ontológico da teoria marxista?
4. Por que segundo Walter Benjamin as ‘grandes narrativas’ perderam o
sentido?
5. Considerando a trajetória de Adorno, explique por que um compromisso
com a racionalidade implica a renúncia à totalidade.

COMENTÁRIO SOBRE AS ATIVIDADES


Questão 1. Considere o projeto oitocentista da razão iluminista e os
eventos políticos do contexto contemporâneo do séc. XX.
Questão 2. Considere os pressupostos da concepção do processo
revolucionário de Marx em contraste com os eventos efetivos da
história do século XX.
Questão 3. Considere o que Lukács procura garantir com esta
caracterização e o que ele procura evitar com isso.
Questão 4. Explique em que condições a narração era possível e qual
a conseqüência disso para a compreensão da história.
Questão 5. Considere os três textos apresentados de Adorno e procure
explicitar o que há de comum e o que há de diferente em cada um deles.

PRÓXIMA AULA
Na próxima aula, serão apresentados os principais pontos da Filosofia
de Wittgenstein e o caráter pragmático da linguagem, segundo o filósofo.

REFERÊNCIAS

ANTUNES, R; RÊGO, W. L. (orgs.). Lukács, um Galileu no Século XX.


São Paulo: Editorial Boitempo,1996.
ADORNO, T; HORKHEIMER, M. Dialética do esclarecimento. Trad.
Guido de Almeida. Rio de Janeiro: Zahar, 1985.
_________. Mínima Morália. Trad. Luis E. Bicca. São Paulo: Ática, 1993.
_________. Dialética negativa. Trad. J. M. Ripalda. Madrid: Taurus, 1985.
BENJAMIN, W. O narrador. 6 ed. São Paulo: Brasiliense, 1993 (Obras
escolhidas).

172
Caminhos da filosofia contemporânea: o marxismo ocidental...
Aula

_________. Teses sobre o conceito de História. 6ª ed. São Paulo:


Brasiliense, 1993.
GAGNEBIN, J. M. Sete aulas sobre Linguagem, Razão e História.
19
Rio de Janeiro: Imago, 1997.
LUKÁCS, G. Storia e concienza di classe. Milão: Sugar, 1967.
________. Ontologia do ser social - os princípios ontológicos de
Marx. Trad. Carlos Nelson Coutinho. São Paulo: Ciência Humanas, 1979.
________. A teoria do romance. Lisboa: Editorial Presença, 1965.

173
Aula
WITTGENSTEIN E A
FILOSOFIA DA LINGUAGEM 20
META
Apresentar os principais pontos da Filosofia de Wittgenstein.

OBJETIVOS
Ao final desta aula, o aluno deverá:
descrever a relação entre Filosofia e Linguagem em Wittgenstein; e
definir o caráter pragmático da linguagem segundo Wittgenstein.

PRÉ-REQUISITOS
O aluno deverá revisar os assuntos relativos aos conceitos fudamentais do
pensamento filosófico do século XX.

Pedra de Roseta. (Fonte: http://upload.wikimedia.org).


Introdução à Filosofia

INTRODUÇÃO

Olá, caro aluno! Estamos hoje realizando nossa vigésima aula e, tam-
bém, nosso último encontro. Para fina-lizarmos nossos encontros, hoje
estudaremos a relação entre Filosofia e Linguagem em Wittgenstein; e para
iniciarmos nossa aula, faremos a seguinte colocação: fazer da linguagem
um problema filosófico é uma coisa; mas fazer dos próprios problemas
filosóficos um problema de linguagem é outra coisa bem diferente.
Ludwig Desde a Antigüidade clássica (séculos V e IV a.C.) a linguagem é um
Wittgenstein
problema para a filosofia; mas só na contemporaneidade (século XX d.C.),
Filósofo austríaco depois de vinte e cinco séculos, a filosofia passa a compreender que os prob-
(1889-1951). Con- lemas filosóficos são de natureza lingüística. A esta mudança de paradigma
tribuiu nos campos na compreensão da natureza da própria filosofia é que se deu o nome de
da Lógica, Filosofia ‘guinada lingüística’ da filosofia contemporânea, algo que foi ardorosamente
da linguagem e Epis- abraçado por alguns e, com a mesma intensidade, combatido por outros.
temologia. Comba-
A criação desta nova área do pensamento, a ‘Filosofia da Linguagem’,
teu junto ao exército
austríaco na 1ª Guer- no século XX, é um dos principais ingredientes para a compreensão dos
ra Mundial, tendo caminhos e descaminhos da filosofia contemporânea e, por isso, nesta aula,
sido prisioneiro dos vamos estudar o trabalho de um filósofo em particular, o austríaco Lud-
italianos. Publicou wig Wittgenstein, considerado como um dos principais responsáveis por
o Tratado Lógico- esta ‘virada para a linguagem’ da filosofia no século XX. Faremos algumas
Filosófico, em 1921,
considerações da vida e da obra deste autor peculiar, que entrou na filosofia
sua única obra ed-
itada em vida. de modo não convencional, defendeu uma concepção bastante própria e
iconoclástica (destruidora de ídolos), deu origem a duas correntes básicas
e em vários aspectos antagônicas de filosofia da linguagem no século XX
e, mesmo tendo escrito mais de 40.000 páginas, só publicou menos de 100
delas em vida. Em seguida, justificaremos a afirmação de que a linguagem
sempre foi um problema para a filosofia (Os Problemas da Linguagem
como Problemas de Filosofia), para melhor marcar que só no século XX,
a filosofia chegou a deslocar seu próprio centro para os problemas da
linguagem (Os Problemas da Filosofia como Problemas de Linguagem).
Logo adiante, veremos um pouco melhor essa concepção de Filosofia de
Wittgenstein e alguns de seus temas principais.

176
Wittgenstein e a Filosofia da Linguagem
Aula

20

Torre de Babel. (Fonte: http://www.tei-c.org).

WITTGENSTEIN

Ludwig Wittgenstein nasceu em Viena, em uma das famí-lias mais ricas


e bem colocadas da Áustria, em 1889. Devido a seus talentos construtivos
(teria construído sozinho uma máquina de costura aos oito anos de idade)
foi mandado em 1908, aos 18 anos de idade, à Universidade de Manchester
na Inglaterra, para estudar engenharia aeronáutica (o grande assunto do
momento). Ao resolver problemas ligados à construção de uma hélice,
acabou se interessando cada vez mais pelos fundamentos da matemática,
deixando de lado as questões práticas da engenharia e, em 1911, foi pesquisar
com Bertrand Russell, o grande lógico-matemático da época, em Cam-
bridge. De 1911 a 1918, Wittgenstein trabalhou intensamente escrevendo
sua grande obra prima da juventude, o Tractatus Logico-Philosophicus
(publicado apenas em 1921), ou TLP. Com a eclosão da Primeira Grande
Guerra Mundial em 1914, Wittgenstein voltou a Viena e alistou-se (como
voluntário) no Exército, tomando lugar em violentos combates no front

177
Introdução à Filosofia

russo e italiano, viu de perto sua pátria ser totalmente destruída por esta
guerra. Aprisionado pelos italianos, termina de escrever o TLP em 1918.
Os temas centrais deste livro, como ele os apresenta no Prefácio, são ‘a
natureza geral da representação’, os ‘limites do pensamento e da linguagem’,
a ‘natureza da necessidade lógica’ e a ‘natureza das proposições da lógica’.
Este livro foi a principal inspiração do Círculo de Viena, núcleo em que
se formou o movimento conhecido como Positivismo Lógico. Ao mesmo
tempo influenciou decisivamente a chamada Filosofia Analítica inglesa,
sediada em Cambridge. O Tractatus é considerado o marco principal da
‘guinada lingüística’ contemporânea, direcionando as tarefas da filosofia
para o estudo da Lógica de nossa linguagem e dos usos que fazemos dela.

Tratactus logico philosophicus. (Fonte: http://images.amazon.com).

Tendo concluído e publicado o Tractatus, e considerando que com


isso teria resolvido os problemas fundamentais da filosofia (traçar os lim-
ites do sentido, ou seja, do que pode ser dito com sentido), Wittgenstein

178
Wittgenstein e a Filosofia da Linguagem
Aula

coerentemente abandona a filosofia por quase dez anos. Neste período, de


1921 a 1929, foi primeiramente ser professor de ensino primário no interior
da Áustria, ao longo de quatro anos, participou deste modo, da Reforma
20
da Educação, que então tomava curso e da Reconstrução de seu país - ex-
periência pedagógica que marcou profundamente sua segunda concepção Staatliches
de filosofia. Diante do suicídio de seus irmãos mais velhos, Wittgensteins, Bauhaus
que era o caçula, tornou-se herdeiro da enorme fortuna de seu pai. Fortuna
Significa literal-
que renunciou em benefício das irmãs, passando a viver o resto da vida de mente “casa estatal
maneira frugal, dependendo de seu trabalho como professor. de construção”, mas
Antes de voltar à filosofia em 1929, Wittgenstein ainda ocupou-se de na prática a Bauhaus
várias coisas: tentou entrar para um mosteiro budista, onde trabalhou como foi a mais importante
jardineiro (mas foi aconselhado a sair), ocupou-se de arquitetura (tendo escola de Design
construído uma casa em Viena para a irmã em perfeito estilo Bauhaus), da Alemanha que
congregou artistas
de escultura, de música (sua principal paixão, sendo exímio clarinetista e e arquitetos de van-
excelente assobiador), até que, através de um contato com Moritz Schlick, guarda. (1919-1933)
considerado o pai do Círculo de Viena, aceitou o convite deste para tentar
explicar o TLP para os membros deste círculo que, a esta altura, já haviam
adotado o Tractatus como a Bíblia do Positivismo Lógico. Percebendo,
através do contato com este círculo, o quanto sua obra da juventude havia
sido mal interpretada, resolveu voltar a Cambridge em 1929 e retomar seu
trabalho em filosofia.
De volta a Cambridge, recebeu o título de doutor em filosofia (devido
ao TLP) - sem nunca ter feito uma graduação ou mestrado regular nesta dis-
ciplina, e começou imediatamente a trabalhar na desmontagem da filosofia
do Tractatus, no qual passou a ver graves falhas, abandonando o ponto de
vista que estruturava aquela obra (o da linguagem ideal da Lógica) por um
ponto de vista diametralmente oposto (com base na linguagem cotidiana:
a Gramática). Em função, talvez, da má compreensão que
seus leitores tiveram de seu trabalho, resolveu não publicar
mais nada em vida, e passou a trabalhar por dezesseis anos
na obra que seria a expressão maior de sua filosofia madura,
as Investigações Filosóficas, publicada somente depois de sua
morte, em 1953. Esse livro apresenta uma concepção realmente
revolucionária da filosofia e uma abordagem completamente
nova da filosofia da linguagem (que marcará a concepção de
filosofia desenvolvida depois em Oxford a partir dos anos
30). Wittgenstein ocupou-se intensamente tanto de filosofia
da matemática como de filosofia da psicologia, chegando a
resultados igualmente radicais nos dois campos (tanto da lin-
guagem ‘objetiva’ da matemática como na linguagem ‘subjetiva’
da psicologia).
Sem nada publicar (mas sem deixar de produzir), e tendo
aversão a eventos filosóficos (que ele considerava serem Investigações filosóficas. (Fonte:
http://i.s8.com.br).

179
Introdução à Filosofia

“completas perdas de tempo”), sua influência foi exercida, sobretudo,


através de aulas e de conversas - tendo continuado a escrever sobre assuntos
gramaticais e filosóficos até alguns dias antes de sua morte (suas últimas
palavras foram: “Diga a eles que minha vida foi maravilhosa”). Após a sua
morte, em 1951, a grande quantidade de material por ele escrita começou
a ser publicada, dando ensejo a uma enorme literatura de comentários
que já conta, hoje, com milhares de volumes. O sentido de seu trabalho
filosófico continua a ser objeto de infindáveis controvérsias e suas idéias
são usadas hoje em dia nos sentidos mais diversos, sendo tema em aberto
para a interpretação filosófica.
A filosofia da psicologia de Wittgenstein (tema central de sua principal
Behaviorista
obra póstuma, as Investigações Filosóficas) é uma subversão radical das
Adepto do Beha- concepções modernas de psicologia (seja a cartesiana, a empirista ou a
viorismo (palavra behaviorista). Contra a concepção empirista ou cartesiana da mente hu-
derivada do inglês mana, como um ‘reino interior’ de experiências subjetivas misteriosamente
‘behaviour ’ que conectadas ao comportamento corporal (o ‘reino exterior’), Wittgenstein
significa ‘compor-
concebe o domínio do mental como essencialmente manifesto no compor-
tamento’). O Be-
haviorismo é uma tamento humano. O ‘interno’ não é, segundo Wittgenstein, algo ‘privado’,
doutrina psicológica algo que seja ‘conhecido’ apenas ‘pelo próprio sujeito’, por ‘introspecção’
que recusa o mé- - pelo contrário, podemos ter muitas vezes perfeito conhecimento daquilo
todo de introspecção que é ‘privado’ para alguém. A esta denúncia de Wittgenstein da ‘privacid-
como válido, exi- ade epistêmica’, deu-se o nome de ‘Mito da Interioridade’. Tal mito gerou,
gindo a observação
segundo Wittgenstein, uma visão completamente distorcida da natureza
do comportamento
como procedimento humana, sobre a natureza do ‘eu’, da ‘mente’ e da ‘relação entre o corpo
fundamental para a e a alma’. O ataque de Wittgenstein à idéia de propriedade privada é mais
obtenção de conhe- radical, pois ataca a raiz do problema, a ‘propriedade privada de si mesmo’, o
cimento psicológico. sentido do pronome possessivo ‘meu’ (‘meu’ pensamento, ‘minha’ vontade,
‘minhas’ dores, ‘meus’ sentimentos, etc), que está na base e é a condição de
qualquer pretensão à propriedade de objetos e ao domínio sobre as pessoas.
A filosofia moderna distorceu completamente, sob o influxo do Mito
da Interioridade Privada, nossa concepção de ser humano, de mente, de
pensamento, de corpo, de comportamento, de ação e de vontade, ao ponto
de tornar estes conceitos completamente irreconhecíveis e inúteis. Segundo
Wittgenstein, estes ‘problemas filosóficos’ são apenas confusões conceituais,
problemas devidos ao mau uso e mau entendimento do sentido de nossa
linguagem, e devem ser, portanto dissolvidos (e não ‘resolvidos’, pois
não são autênticos ‘problemas’) através de um tipo de análise conceitual
que ele chamou de ‘terapia’: a Terapia Gramatical das Imagens. Só com
o esclarecimento do que queremos dizer quando dizemos algo acerca do
mundo ou de nós próprios é que podemos ter alguma esperança de algum
dia alcançarmos uma visão mais adequada, e menos distorcida, da vida, do
mundo, dos outros e de nós próprios.

180
Wittgenstein e a Filosofia da Linguagem
Aula

OS PROBLEMAS DA LINGUAGEM COMO


PROBLEMAS DE FILOSOFIA E OS PROBLEMAS DA
20
FILOSOFIA COMO PROBLEMAS DE LINGUAGEM

Desde suas origens gregas, a linguagem (‘Lógos’) esteve entre as prin-


cipais preocupações dos filósofos. Desde os pitagóricos, com a descoberta
atribuída ao misterioso Pitágoras, das potencialidades incomparáveis da
nova linguagem matemática; passando por Parmênides e Heráclito em suas
preocupações antagônicas, porém com um traço comum em um ponto, ou
seja, com um Lógos capaz de dizer o Ser ou o Devir; até chegarmos ao
contexto de Sócrates (o problema da ‘definição’) em sua polêmica contra os
sofistas, e às soluções de Platão e de Aristóteles para salvar a possibilidade de
um Lógos (uma linguagem) que seja capaz de dizer (como em Aristóteles),
ou ao menos de apontar para (como em Platão) a verdade do ser - sem se
contentar apenas em se deixar guiar segundo as aparências contraditórias
do devir (como nos sofistas).
Toda a filosofia antiga tinha como seu centro a preocupação com o ‘ser’
(com aquilo que ‘permanece’ em toda mudança) - e mesmo de Heráclito
pode-se dizer que sua preocupação era com o ‘ser do devir’, e não com
o ‘devir pelo devir’ - ou seja, com a onto-logia (o ‘lógos’ que diz o ‘ser’,
com a linguagem capaz de ‘dizer’ aquilo ‘que é’) - e assim, também com o
‘não-ser’ (o nada) e com o ‘devir’ (o ser-movente). Contra a afirmação de
Parmênides da identidade-entre-ser-e-pensar (pois não deveria ser possível
pensar o que não é, nem dizê-lo), os sofistas são um marco crítico ao negar
esta identidade e afirmar o mais completo desajuste entre o ser, o pensar e
o dizer (entre a Realidade, o Pensamento e a Linguagem).
Contra os sofistas que teriam reduzido o sentido de tudo aquilo que
é e que é pensável à arte de persuadir pela manipulação do discurso (ao
encantamento do dizível, isto é, à retórica), Platão procurou salvar a pos-
sibilidade da filosofia pela postulação de que algo tem de ser (permanente
e uno), para além das aparências móveis e múltiplas do sensível (o fluxo do
devir), se é que o conhecimento deve ser possível: a Idéia (o ‘inteligível’)
seria o fundamento ontológico (a essência) por trás das aparências enga-
nadoras dos sentidos (o ‘sensível’). Deste modo ficou marcada, na filosofia
antiga, a dependência do pensar (e do dizer) em relação ao ser (da Idéia):
se não houvesse a Idéia (algo permanente) não haveria algo que pudesse
ser conhecido (a ciência seria impossível), nem nada que pudesse ser dito
(com sentido). Portanto, a Teoria do Conhecimento e da Linguagem antiga
é colocada em dependência da Ontologia.
Na solução ‘realista’ de Aristóteles (contra Platão, seu mestre ‘ideal-
ista’), ainda que o discípulo de Platão faça o acesso ao inteligível passar pelo
sensível (de um modo que Platão jamais admitiria), seu realismo também
funda a possibilidade do dizer racional em uma ontologia da substância

181
Introdução à Filosofia

composta: o ser é composto de matéria e forma, ensina Aristóteles (e não


apenas pelas Formas puras ou Idéias, como em Platão) sendo a matéria o
princípio da potencialidade mutável (e corruptível) e a forma o princípio
da permanência (em ato) que, em última instância (no último degrau do
ser, enquanto ‘Ato Puro’) existe em si e por si subsiste (sendo, portanto,
o fundamento último incorruptível). O ser-que-se-move (composto) tem
por fundamento, segundo Aristóteles, o Motor-Imóvel. Novamente, neste
caso, o que destacamos é que a possibilidade de conhecimento (da ciência,
ou seja, da distinção entre o verdadeiro e o falso), no realismo aristotélico,
assim como da moral (a possibilidade de distinguir o bem e o mal, a virtude
do vício), dependem ambos, ainda, de uma ontologia.

Tradutor medieval. (Fonte: http://www.arikah.net).

Esta postulação grega clássica de dizer que algo é (ou seja, que algo
tem de ser, de modo eterno e indestrutível) enquanto fundamento de nosso
pensar, de nosso dizer e de nosso agir, foi mantida ao seu modo no período
medieval, porém não mais como ‘onto’-logia, e sim como ‘teo’-logia (um
lógos que revela a divindidade, Théos). Assim o fundamento deixa de ser o
‘Ser’ (em sentido cosmológico) e passa a ser o ‘Espírito Divino’ (o ‘Théos’
interpretado como o ‘Deus-pai’ da revelação judaico-cristã). Ainda que o
fundamento tenha sido teologizado, e com isso envolvido em ‘mistérios’
que a razão humana não pode mais decifrar, mas apenas aceitar pela perse-
verança na fé, aquela necessidade, bastante grega, de que ‘algo exista’ em si
e por si, como condição de que nossa vida (intelectual e moral) tenha algum

182
Wittgenstein e a Filosofia da Linguagem
Aula

sentido, foi mantida por séculos, desde Agostinho (séculos IV-V d.C.) ao
menos até o Renascimento (séculos XV-XVI d.C.). A exigência ontológica
grega de um fundamento estável para o pensar e para o agir humano foi
20
transformada em exigência teológica, mas a precedência do ‘algo que é’ foi
mantida, naquilo que foi batizado, por Heidegger, como ‘onto-teo-logia’ (o
‘lógos’ sobre o ‘ser’ passa agora pelo ‘divino’), e marcou profundamente
toda a visão ocidental do mundo e do sentido da vida - até chegar a ser
posta radicalmente em questão pelo racionalismo moderno dos séculos
XVII e XVIII d.C.
Na Modernidade (séculos XVII, XVIII e XIX), Descartes (séc. XVII)
começa duvidando radicalmente de qualquer possibilidade de fundar o con-
hecimento (e a moral) na ‘natureza das coisas’ (sejam estas coisas concebidas
como algo natural ou como algo sobrenatural)
desviando assim o lugar do fundamento, e com
ele o centro da filosofia, do Ser (como ontologia
ou como teologia) para o Pensar: a única certeza
inicial, imediata e indubitável, que podemos ter
(e que deve ser adotada como verdadeiro ponto
de partida por qualquer ser racional capaz de
reflexão, ou de ‘luz natural’), ensina Descartes,
é a de que “Penso, logo existo”. O ‘cogito’
(‘penso’, na primeira pessoa do singular) car-
tesiano marca assim a ‘guinada psicologista’ da
filosofia moderna (depois da ‘guinada teológica’
da filosofia medieval), desviando o foco do
tradicional problema do ser para o problema da
representação mental que fazemos do ser (único
acesso que temos a ele). O fundamento da razão
moderna não é mais ontológico (ou teológico)
e sim psicológico: a certeza de cada um de ser
um ser pensante (uma res cogitans) capaz de ter
idéias claras e distintas sobre a realidade (como (Fonte: http://upload.wikimedia.org).
o atesta a eficácia da matemática e da geometria).
Esta guinada psicológica cartesiana para o plano da ‘consciência’ (do
pensar), colocada agora em primeiro lugar, marcará toda a modernidade
(seja na versão empirista, como em Locke e Hume, seja na versão idealista,
como em Leibniz e Kant), provocando o deslocamento do centro da filoso-
fia do ser (Onto-Teo-Logia) para o pensar (a Teoria do Conhecimento). A
‘Filosofia Crítica’ de Kant (no século XVIII, o auge do Iluminismo) toma
como tarefa central traçar os limites do que podemos conhecer, assumindo
que, para nós humanos racionais, os limites do que é ou não é coincidem
com os limites do que pode ou não pode ser conhecido. A filosofia crítica
de Kant provocou escândalo entre os filósofos do século XVIII, espantados

183
Introdução à Filosofia

com uma idéia de filosofia que negava qualquer possibilidade de conhecer-


mos a ‘coisa-em-si’ (aquilo que ‘em-si e por-si subsiste’), restringindo nosso
conhecimento possível apenas aos ‘fenômenos’, tais e quais aparecem ‘para-
nós’. “Como é possível uma filosofia sem o Ser, só com a Consciência?!”
- diziam incrédulos os filósofos que não aceitaram a filosofia crítica do
conhecimento de Kant (que não queriam admitir os limites de seu poder-
de-conhecer). Mas de qualquer modo, a filosofia moderna ficou marcada por
esta ‘guinada psicologista’ que colocou a ‘consciência humana’ em primeiro
plano (deslocando o ser, cosmológico ou teológico, de seu antigo trono),
reduzindo o ‘ser’ ao ‘ser-passível-de-ser-pensado’ (com sentido).
Note-se que este ‘passo crítico’ kantiano (a afirmação de que não
podemos afirmar coisa alguma sem antes termos uma idéia clara dos lim-
ites do nosso poder-de-conhecer) é antes de tudo um passo atrás: antes de
pretender ‘falar’ do ‘ser’ (do que é e do que não é) é preciso saber como é
possível pensar o ser, ou seja, em que limites o ser em questão é pensável
ou cognoscível. Desde então, pretender falar do ser sem ter antes clara
consciência dos limites do conhecimento humano possível passou a ser
considerado apenas abuso da ‘razão dogmática’, uma razão ‘incapaz de
crítica’, incapaz, portanto, de reconhecer seus próprios limites.
Pois bem. No início do século XX, a filosofia parece ter visto a neces-
sidade de dar mais um passo atrás em relação à sua antiga pretensão de
pensar/dizer o ser. Em três séculos a filosofia moderna da consciência havia
chegado a um esgotamento e constatou ter produzido tantas confusões e
desentendimentos quanto os que pretendia superar, dos ontólogos e teólo-
gos antigos e medievais. A ‘Consciência’ se mostrava agora como algo tão
ou mais problemático quanto o ‘Ser’ ou o ‘Deus’ que ela pretendia conhecer
ou em que queria acreditar. Com tantas confusões acumuladas em torno da
palavra ‘consciência’ (ou ‘razão’), seu conceito se revelou intratável e inútil
para a tarefa de fundamentação a que se propusera.

(Fonte: http://acertodecontas.blog.br).

184
Wittgenstein e a Filosofia da Linguagem
Aula

Com isso, alguns filósofos concluíram (e com eles Wittgenstein) que


antes de ‘falar’ em ‘consciência’ (e em ‘ser’) seria preciso determinar do
que podemos falar (com sentido). O que ‘é’ depende dos limites do que é
20
‘pensável’, mas agora se descobre que o que é pensável (conhecível) depende
dos limites do que é ‘dizível’. A tarefa da filosofia se torna, para toda, uma
importante vertente da filosofia contemporânea, a tarefa de traçar os limites
do que pode-ser-dito-com-sentido, pois só aquilo que é realmente dizível
(com sentido) pode ser realmente pensável (e pode-se, portanto, pretender
que exista). Assim, os limites do sentido passam a ser traçados no interior
da própria linguagem (pelas regras que permitem decidir se algo tem sen-
tido ou não), e não mais na ‘consciência’ ou no ‘ser’ - pois é perfeitamente
possível ‘falar coisas’ sem com isso ‘nada dizer’ (de significativo), é possível
falar coisas ‘sem sentido’ (como ‘ferro-de-madeira’ ou ‘círculo-quadrado’,
por exemplo), sem que com isso nada chegue a ser (realmente) pensado,
sem que com isso nada se indique que possa realmente existir.
Desse modo, grande parte da filosofia contem-
porânea concluiu que se o que é depende do que é
pensável, então é preciso reconhecer que o que é
pensável, por sua vez, depende do que é dizível, e
assim o que aconteceu no século passado foi mais
um passo atrás, de prudência filosófica, em relação
às nossas pretensões cognitivas: sim, o ser depende
do pensar (como ensinam os modernos), mas alguns
contemporâneos perceberam que o pensável, ele
mesmo, depende do dizível. Na linguagem é que es-
tão os limites do que pode ser pensado com sentido,
e um pensamento sem sentido não é pensamento
algum. Como na época de Kant, muitos filósofos se
espantaram com mais este passo atrás da filosofia
contemporânea: “Como seria possível uma filosofia
sem a Consciência, só com a Linguagem?!!!” - dizem
agora os incrédulos, que resistem ter de examinar,
(Fonte: http://www.eca.usp.br).
// b
antes de querer ‘resolvê-los’, se os seus próprios
‘problemas filosóficos’ fazem sentido. A mais este passo, que desloca o
centro da filosofia da consciência para a linguagem, é que se convencionou
chamar de ‘guinada lingüística’ da filosofia contemporânea.
Filosofia da Linguagem não significa, portanto, que só agora a filosofia
resolveu se ocupar com a linguagem (o que ela sempre fez), mas significa
que seu problema central sempre foi a própria noção de ‘significação’. Em
2.500 anos de reflexão, parece então que a filosofia, ao invés de ‘avançar’
(como faz a ciência), apenas ‘retrocedeu’, deslocando seu centro do ‘ser’
para a ‘consciência’ e da consciência para a ‘linguagem’.
Para mencionarmos um exemplo decisivo deste deslocamento, vejamos

185
Introdução à Filosofia

a mudança na interpretação do sentido dos princípios fundamentais da


lógica, o Princípio da Identidade e o Princípio da Não-Contradição. Estes
princípios eram pensados, na Antigüidade, como princípios ontológicos
(os princípios seriam válidos em função da identidade do Ser consigo
mesmo); no medievo passaram a ser vistos como princípios teológicos
(baseados na identidade de Deus consigo mesmo); e na modernidade pas-
saram a ser concebidos como princípios psicológicos (como leis imutáveis
do Pensamento). Já na contemporaneidade, estes princípios passam a ser
definidos como regras lingüísticas (leis do dizer), de modo que nem o Ser
nem o Pensar têm mais a primazia (a questão da precedência entre sujeito
e objeto torna-se questão ociosa), mas a primazia é da Linguagem, sem a
qual não é possível dizer nada com sentido, seja sobre o ser seja sobre o
pensar, seja sobre o sujeito seja sobre o objeto, seja sobre o mundo seja
sobre nós mesmos.
O mundo é cognoscível - ensinaram Platão e Aristóteles. No entanto,
os limites do mundo são os limites do pensamento - ensinara Kant. Porém
- avisa Wittgenstein - os limites do pensamento são os limites da nossa
linguagem. O ‘meu mundo’ e o ‘meu eu’ possuem exatamente o mesmo
tamanho da ‘minha linguagem’, da linguagem de que dispomos para poder
falar disso ou daquilo com sentido.
Não é o Mundo que determina o Eu, nem é o Eu que determina o
Mundo. Mas é a Linguagem que determina o Sentido de ambos.

A CONCEPÇÃO DE FILOSOFIA DE
WITTGENSTEIN E ALGUNS DE SEUS TEMAS

Wittgenstein ergue-se contra a concepção tradicional de filosofia como


“busca geral da verdade”. A filosofia, em suas mais variadas versões, sempre
teve algo em comum: pretendeu ser uma espécie de ‘ciência superior’, de
‘ciência suprema’, cujo objeto estaria além e acima dos objetos das ciên-
cias particulares. O principal erro dos filósofos foi, portanto, considerar
a filosofia como uma espécie de ‘teoria’, ou pior ainda, como uma ‘super-
teoria’, investida com a tarefa (absurda, segundo Wittgenstein) de explicar
o sentido da vida e a existência como um todo.
Contra essa concepção distorcida de filosofia, Wittgenstein defende
radicalmente que a filosofia não é ‘teoria’ de coisa alguma: a filosofia é uma
atividade, uma práxis, a atividade de produzir o esclarecimento do sentido
das palavras que usamos quando pretendemos dizer algo de significativo.
O resultado do trabalho filosófico deve ser o esclarecimento, e não mais
uma ‘teoria’ qualquer, que só serviria para impor mais um ponto de vista
unilateral e igualmente distorcido entre os outros. “Não há teses em fi-
losofia”, ensina Wittgenstein, idéia que, compreensivelmente, causou um
dos maiores escândalos entre os ‘filósofos profissionais’ do século XX. A

186
Wittgenstein e a Filosofia da Linguagem
Aula

filosofia é uma “crítica da linguagem”, diz Wittgenstein, uma atividade de


demarcação dos limites do sentido, única maneira que temos para saber se
o que dizemos significa algo ou não.
20
De sua primeira fase para sua segunda, Wittgenstein alterou radical- Regras Sintáticas
mente o sentido de seu trabalho filosófico. Na primeira fase (do Tractatus),
ele tinha como base de sua crítica da linguagem as regras da Lógica (regras São as regras que re-
gem a combinatória
sintáticas e semânticas), acreditando que uma vez delimitada a ‘forma lógica’ das palavras entre
das proposições significativas, todos os problemas de significação poderiam si, determinando o
ser rapidamente resolvidos através da aplicação mecânica de uma espécie que pode ir junto
de cálculo lógico de base matemática (a Lógica Simbólica contemporânea). e o que deve ficar
Esta concepção continha erros fundamentais (como ele mesmo admite separado, e assim, a
e denuncia em seguida), pois pressupunha que a ‘essência da linguagem’ construção de frases
bem-formadas.
poderia ser estabelecida de uma vez por todas, ou seja, que todo e qualquer
uso significativo da linguagem poderia ser explicado segundo um único
modelo estrutural: o modelo referencial, que pressupõe que ‘o significado’ Regras semânticas
de uma expressão é ‘a coisa’ pela qual ela está.
Em sua segunda fase (das Investigações Filosóficas), talvez sob in- Ssão regras que defi-
fluência de sua experiência pedagógica concreta nos anos 20, Wittgenstein nem o significado de
cada termo capaz de
passa a reconhecer que a linguagem não funciona apenas de uma única entrar em uma frase,
maneira, que a ‘essência da linguagem’ não pode ser estabelecida de uma determinando um
vez por todas, e que o ‘modelo referencial’ era profundamente enganoso, ‘campo semântico’
pois existem muitos usos não referenciais da linguagem que nem por isso de significados pos-
são desprovidos de sentido. Em lugar de uma preocupação com a forma síveis com que uma
da linguagem (de caráter sintático e semântico), Wittgenstein passa a re- palavra pode ser
usada com sentido.
conhecer que a significação das palavras que usamos não depende de uma
estrutura formal dada, mas sim dos usos e do contexto de aplicação (de Regras
caráter pragmático). Seu novo slogan passa a ser “o significado é o uso”, pragmáticas
de modo que, se quisermos saber o que uma expressão significa, e se ela
realmente significa algo, teremos de olhar para o contexto de aplicação da São regras que não
palavra (o que ele batiza como ‘Jogo de Linguagem’), ao invés de presum- podem ser forma-
lizadas como as
irmos qual deve ser sua forma. anteriores e in-
troduzem um fa-
tor contextual ir-
redutível no exame
da significação de
uma palavra ou ex-
pressão. São regras,
portanto, ligadas aos
usos das expressões,
o que pode sempre
introduzir variações
imprevisíveis na sig-
nificação.

(Fonte: http://ficcino.files.wordpress.com).

187
Introdução à Filosofia

Com isso, Wittgenstein altera completamente as bases de sua crítica da


linguagem, abandonando a noção central de Lógica por uma noção muito
mais ampla e multifacetada que ele chama de ‘Gramática’. As regras que
permitem reconhecer e atribuir sentido a uma expressão não são mais ‘re-
gras lógicas’, mas sim regras gramaticais, ou seja, regras que não podem ser
estabelecidas de antemão, de uma vez por todas, em um esquema formal,
mas que só podem ser descobertas a partir de um trabalho de investigação
(a ‘investigação filosófica’), de descrição e de comparação de diversos jogos
de linguagem contextualizados. A esta atividade de descrição de jogos de
linguagem, com o intuito de explicitar as regras que efetivamente seguimos
quando pretendemos dizer algo com sentido (que são muitas vezes regras
distintas daquelas que pensamos seguir) é que Wittgenstein chamou de
‘terapia’. A Terapia Gramatical de Wittgenstein visa nos mostrar os limites
do sentido de nossas expressões, dissolvendo assim os pseudo-problemas
que os filósofos, sobretudo, inventam, quando não prestam atenção para
o sentido das expressões que eles mesmos utilizam.
Assim, o trabalho terapêutico da filosofia visa antes de tudo atacar os
pseudo-problemas que surgem do uso confuso da linguagem. Os eternos
problemas da filosofia não passam de confusões conceituais que, uma vez
esclarecidas, devem desaparecer completamente. Por isso, um problema
filosófico nunca é ‘resolvido’, mas apenas ‘dissolvido’, como se faz com
um falso-dilema. Os problemas filosóficos são ‘doenças conceituais’ que
nascem, especialmente, das nossas “dietas unilaterais de conceitos”: ali-
mentamos nosso pensamento com apenas um tipo de imagem, diz Witt-
genstein, e depois queremos que a linguagem sempre funcione de acordo
com este paradigma unilateral. Para combater estas dietas unilaterais, a única
solução (não dogmática) é apresentar diversos usos, compará-los entre si,
e alcançar assim uma visão mais perspicaz das regras dos jogos que joga-
mos, percebendo que a significação das palavras não se restringe àquela
significação única a que estamos acostumados, ou àquela à qual estivermos
acriticamente submetidos.
Citamos, para finalizar, um parágrafo das Investigações Filosóficas (o
parágrafo 125) no qual Wittgenstein deixa perfeitamente claro o sentido de
seu trabalho filosófico enquanto atividade terapêutica e gramatical ocupada
com as contradições da linguagem cotidiana, definindo o que ele entende
como sendo ‘o’ problema filosófico:

Não é tarefa da filosofia resolver a contradição por meio de uma


descoberta lógica ou lógico-matemática. Mas tornar visível o estado
da matemática que nos inquieta, o estado anterior à resolução da
contradição. (E com isso não se elimina uma dificuldade).
O fato fundamental aqui é que fixamos as regras, uma técnica, para
um jogo, e que, quando seguimos as regras, as coisas não se passam
como havíamos suposto. Que por tanto nos aprisionamos, por assim

188
Wittgenstein e a Filosofia da Linguagem
Aula

dizer, em nossas próprias regras.


Este aprisionamento em nossas regras é o que queremos
compreender, isto é, aquilo de que queremos ter uma visão perspícua.
20
Isto esclarece nosso conceito de querer dizer. Pois, naqueles casos, as
coisas se passam de modo diferente do que havíamos querido dizer
e previsto. É exatamente o que dizemos quando, por exemplo, surge
a contradição: “Não foi isso o que eu quis dizer”.
A posição cotidiana da contradição, ou sua posição no mundo
cotidiano: este é o problema filosófico” (ADORNO,1947, p. 216).

CONCLUSÃO

Caro aluno, se Nietzsche, em uma de suas exortações extemporâneas,


ainda apenas constatava, com uma mistura de irritação e de desânimo, que
“não nos livraremos de Deus enquanto não nos livrarmos da Gramática”,
Wittgenstein, por sua vez, não insiste em fazer reverberar este lamento, mas
parte para a execução da tarefa de nos livrar da gramática, ou, ao menos,
dos fantasmas gramaticais (os ‘tem de’ e os ‘não pode’ de nossa vida e de
nossa linguagem) que nós próprios criamos.
Wittgenstein é um dos maiores responsáveis pela idéia contemporânea
de ‘fim da filosofia’, ou seja, daquele modo distorcido da tradição de entender
a filosofia como uma espécie de super-ciência. No entanto, ele nunca se
ocupou em refutar diretamente qualquer teoria particular nem o encon-
tramos ocupado em reconstruir o sistema de alguém a fim de combatê-lo.
Wittgenstein apenas travou sua luta sem tréguas contra as imagens que
julgava enganosas, ensinando-nos, sobretudo, um ‘método’ para dissolver
mal entendidos e produzir esclarecimento.
A concepção de Wittgenstein da
natureza dos problemas filosóficos
como doenças conceituais a serem
dissolvidas (como falsos-problemas),
e não como autênticos-problemas
que pudessem ser solucionados, e
sua concepção de filosofia como
atividade de esclarecimento da sig-
nificação das palavras que usamos
(uma terapia gramatical), e não como
‘teoria’ de coisa alguma, pretende
abrir caminho para uma possibilidade
real de esclarecimento, em um mundo
cada vez mais eivado um palavrório
vazio, confuso e sem sentido.
Wittgenstein. (Fonte: http://www.irishlabour.com).

189
Introdução à Filosofia

RESUMO

‘Filosofia da Linguagem’ não significa simplesmente que a filosofia


se ocupa com o tema da linguagem, algo que ela já fazia desde o início.
Significa sim que cerca de 2.500 anos depois de seu nascimento, na Grécia
antiga, só no século XX a filosofia realizou uma ‘guinada lingüística’, ou
seja, mudou de paradigma, e passou a compreender a si própria e a seus
problemas como problemas de linguagem.
O filósofo austríaco Ludwig Wittgenstein (1889-1951), com sua obra
da juventude, o Tractatus Logico-Philosophicus (de 1921), é considerado o
principal responsável pela guinada lingüística da filosofia contemporânea.
Vindo da engenharia, Wittgenstein logo passou a se interessar pelos fun-
damentos da matemática e, daí, pelos fundamentos da lógica. Sua obra da
juventude foi considerada a ‘Bíblia do Positivismo Lógico’ vienense, tendo
tido também grande influência sobre a Filosofia Analítica inglesa, tanto
em Cambridge (a Filosofia da Lógica) como em Oxford (a Filosofia da
Linguagem Cotidiana). O Tractatus tinha como tarefa principal determi-
nar a natureza das proposições da lógica, a ‘forma lógica’ das proposições
significativas e, assim, os limites do sentido (ou do que pode ser dito com
sentido). Acreditando ter resolvido, com isso, todos os problemas relevantes,
Wittgenstein afastou-se da filosofia por 10 anos. Dando-se conta do modo
distorcido como estavam o interpretando, retornou em 1929 de Viena para
Cambridge e trabalhou, primeiramente, no desmantelamento de sua obra
juvenil a fim de evidenciar suas grandes falhas, e em segundo lugar, para
apresentar sua nova concepção da atividade filosófica (pois para ele em
filosofia não há ‘teoria’): a crítica da linguagem deve se basear nas regras
gramaticais que regem os usos da linguagem cotidiana (em regras pragmáti-
cas), e não mais em regras formais (da sintaxe e da semântica) da lógica.
Um dos alvos centrais da filosofia da psicologia de Wittgenstein é o
‘Mito da Interioridade’, que distorce sistematicamente nossa compreensão
da natureza humana (da relação entre alma e corpo), e nos faz acreditar
em um ‘mundo interior’ privado, povoado por ‘objetos íntimos’, mundo ao
qual só cada um teria acesso, de modo que só cada um poderia ‘conhecer’
os ‘objetos’ de seu ‘mundo interior’ (suas dores, vontades, pensamentos,
etc) - o equívoco da ‘privacidade epistêmica’, assim caracterizado, uma vez
que as regras gramaticais que regem a significação das palavras que usamos
são regras públicas (não podendo existir assim a propriedade privada do
sentido de uma experiência).
Wittgenstein encarou os (eternos) ‘problemas filosóficos’ como prob-
lemas desprovidos de sentido que deviam ser, por tanto, dissolvidos através
de um tipo de análise que ele chamou de Terapia Gramatical, atacando
frontalmente, assim, toda a tradição filosófica que parece ter acreditado
que os ‘eternos problemas filosóficos’ faziam sentido e que constituíam,

190
Wittgenstein e a Filosofia da Linguagem
Aula

aliás, os ‘mais altos’ problemas à espera de uma ‘teoria’ para resolvê-los.


Problemas filosóficos não são autênticos problemas (uma vez que prob-
lemas autênticos sempre podem ser resolvidos), mas apenas confusões
20
conceituais devidas ao mau uso e ao mau entendimento dos usos de nossa
linguagem. Este modo de ver as coisas filosóficas, próprio da filosofia da
linguagem de Wittgenstein, pode ser considerado como um passo atrás
em relação à filosofia moderna, que havia centrado a filosofia em torno
do problema da consciência. Mas a filosofia moderna já havia, ela mesma,
dado um passo atrás ao colocar a questão da consciência à frente da questão
do ser (questão esta que havia sido, por cerca de vinte séculos, o centro da
filosofia, primeiro na forma grega antiga de Ontologia, e depois na forma
cristã medieval de Teologia). A ‘guinada teológica’ medieval (do Ser para
Deus) seguiu-se à ‘guinada psicológica’ moderna, a qual foi por sua vez
sucedida pela ‘guinada lingüística’ do século XX. Em vinte e cinco séculos
de existência, a filosofia deslocou seu centro do Ser para a Consciência e
da Consciência para a Linguagem em nome da prudência filosófica: antes
de pretender falar do ser é preciso saber dos limites de nossa consciência,
mas para compreender os limites de nossa consciência é preciso entender
(com perspicácia) dos limites de nossa linguagem.

ATIVIDADES

1. Qual a diferença entre ‘fazer da linguagem um problema filosófico’ e ‘fazer


de um problema filosófico um problema de linguagem’ ?
2. Que significa a expressão ‘guinada lingüística da filosofia contemporânea’ ?
3. É possível distinguir expressões com sentido de expressões sem sentido?
4. Diga por que a concepção de filosofia de Wittgenstein teria causado tanto
impacto sobre o século XX.

191
Introdução à Filosofia

COMENTÁRIO SOBRE AS ATIVIDADES


1. Procure definir primeiro o que é um ‘problema filosófico’ e o que
é um ‘problema de linguagem’, em seguida descreva, em que sentido
a linguagem sempre foi um problema para a filosofia, e depois, em
que sentido a filosofia tornou-se, no século XX, um problema de
linguagem.
2. Contraponha esta guinada da filosofia no século XX às outras
guinadas da filosofia ao longo dos seus vinte e cinco séculos, do Ser para
Deus, de Deus para a Consciência e da Consciência para a Linguagem.
3. Faça uma pesquisa coletando expressões especializadas e cotidianas
que você seja capaz de distinguir em dois grupos: as expressões que
têm sentido e as expressões que não têm sentido - desde que seja capaz
de justificar a sua classificação.
4. Primeiro, contraste a noção de ‘filosofia como teoria’ com a noção
de ‘filosofia como atividade’; segundo, contraponha um ‘problema
de consciência’ a um ‘problema de linguagem’; terceiro, caracterize o
‘Mito da Interioridade’ denunciado por Wittgenstein.

REFERÊNCIAS
GLOCK, H.J. Dicionário Wittgenstein. Rio de Janeiro: Zahar Editores,
1998.
HACKER, P. M. S., Wittgenstein. A Natureza Humana, São Paulo:
Editora Unesp, 2000.
JANIK, A. e TOULMIN, S. A Viena de Wittgenstein. Rio de Janeiro:
Campus, 1991.
MONK, R. O Dever do Gênio, Wittgenstein. S. Paulo: Cia das Letras,
1995.
MORENO, A. R., Através das Imagens. 2 ed. Campinas: Ed. Unicamp,
1995.
MORENO, A. R. Introdução a uma pragmática filosófica. Campinas:
Ed. Unicamp, 2005.
WITTGENSTEN, L. Investigações filosóficas. São Paulo: Ed. Abril
Cultural, 1975.
Tractatus logico-philosophicus. São Paulo: Edusp, 1993.

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