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Universidade Federal Rural de Pernambuco

Unidade Acadêmica de Educação a Distância e Tecnologia

História do Brasil

Volume 1

Iranilson Buriti de Oliveira

Recife, 2013
Universidade Federal Rural de Pernambuco
Reitora: Maria José de Sena
Vice-Reitor: Marcelo Brito Carneiro Leão
Pró-Reitor de Administração: Gabriel Rivas de Melo
Pró-Reitor de Atividades de Extensão: Delson Laranjeira
Pró-Reitora de Ensino de Graduação: Mônica Maria Lins Santiago
Pró-Reitor de Pesquisa e Pós-Graduação: José Carlos Batista Dubeux Júnior
Pró-Reitor de Planejamento: Romildo Morant de Holanda
Pró-Reitor de Gestão Estudantil: Severino Mendes de Azevedo Júnior

Unidade Acadêmica de Educação a Distância e Tecnologia


Diretor Geral e Acadêmico: Francisco Luiz dos Santos
Coordenadora Geral da UAB: Marizete Silva Santos
Vice-Coordenadora Geral da UAB: Juliana Regueira Basto Diniz
Coordenadora de Cursos de Graduação: Sônia Virgínia Alves França
Coordenador de Produção de Material Didático: Rafael Pereira de Lira
Coordenador Pedagógico: Domingos Sávio Pereira Salazar

Produção Gráfica e Editorial


Capa: Rafael Lira e Igor Leite
Ilustração de Capa: Hayhallyson Barbosa
Projeto de Editoração: Rafael Lira e Italo Amorim
Diagramação: Arlinda Torres e Everton Felix
Ilustrações: Hayhallyson Barbosa
Revisão Textual: Elias Vieira

Oliveira, Iranilson Buriti de.


História do Brasil / Iranilson Buriti de Oliveira – Recife: Unidade Acadêmica de Educação a Distância
e Tecnologia, UFRPE, 2011. 2ª edição.

1. História do Brasil. 2. Educação a Distância. I. Título.

Todos os direitos reservados.


Nenhuma parte deste livro poderá ser reproduzida, sejam quais forem os meios empregados, sem a permissão, por escrito, da Unidade Acadêmica
de Educação a Distância e Tecnologia da Universidade Federal Rural de Pernambuco. Aos infratores aplicam-se as sanções previstas nos artigos
102, 104, 106 e 107 da Lei nº 9.610, de 19 de fevereiro de 1998.
Sumário

Apresentação..................................................................................................................... 5
“A Europa e o novo mundo: a construção de um espaço chamado Brasil”............... 7
Cultura e sociedade na Colônia: relações familiares e vida privada......................... 35
A colônia portuguesa: relações de poder e tramas religiosas................................... 49
1808: uma corte no Brasil............................................................................................... 63
Ruas, gente, burburinho, teatralidade: as metamorfoses culturais........................... 67
Conheça o Autor.............................................................................................................. 82
Apresentação
Este volume poderia ter vários começos. Poderíamos ter narrado o Brasil antes
de Cabral, o Brasil colonial a partir de seus aspectos econômicos ou outros Brasis
possíveis. Mas, como tivemos que decidir de qual Brasil falar, montamos um volume
com três capítulos que narram episódios do Brasil colonial. Sinceramente, foi difícil
escolher o que entraria nestes capítulos, pois tudo desse período nos chama a atenção.
É fascinante olhar para a América Portuguesa – designação atribuída ao Brasil Colonial
– em suas múltiplas pluralidades, em sua multiplicidade de culturas, línguas, povos
e nações reunidos em só um lugar. Um lugar chamado Brasil, mas que poderia ter
outro nome ainda hoje: Terra dos Papagaios, Terra de Santa Cruz, Ilha de Vera Cruz,
enfim, o nome é apenas um rótulo, mas as vivências nesta terra no período colonial
despertaram o nosso olhar de historiador.

Por isso convido você, aluno(a) EAD, para um passeio de volta ao passado. Ao nosso
primeiro lugar de confrontos entre esta terra e os seus colonizadores. Para isso,
agrupamos nossa discussão em três capítulos. O primeiro, intitulado “a Europa e o
novo mundo: a construção de um espaço chamado Brasil” onde procuramos apresentar
uma leitura sobre os encontros e as identidades elaboradas entre o cá e o lá, ou seja,
confronto cultural entre nativos e portugueses no século XVI. Para isso, analisaremos a
construção narrativa de um espaço chamado Brasil, com suas cores sociais e culturais,
abordando as imagens que foram elaboradas para os nativos brasileiros pela literatura
europeia. Para mim, como escritor do mesmo, foi bastante significativo estudar os
primeiros contatos entre europeus e indígenas brasileiros no início do século XVI,
narrando o estranhamento e os confrontos culturais entre pessoas de cores, religião,
cultura e línguas diferentes. Nesse capítulo, analisamos a construção narrativa de um
espaço chamado Brasil pelos escritores europeus que, em crônicas, cartas e imagens
representaram esta terra como exótica e atrasada sob o ponto de vista cultural, político
e religioso, fixando, assim, a imagem de uma terra que precisava de fé, de lei e de rei.

No segundo capítulo - Cultura e sociedade na Colônia: relações familiares e vida privada


-, como o próprio título informa, foi um momento de analisarmos as complexas relações
familiares na América Portuguesa, ampliando o nosso olhar para ver e ler os espaços
de sociabilidades familiares, suas formas de ser família nesse ambiente tão distinto do
que vivemos atualmente, bem como procuramos analisar o comportamento masculino
e feminino. Acompanhando as análises dos perfis familiares, nos aventuramos pelas
relações de gênero, intrigas, bem como as redes religiosas que faziam parte do
cotidiano da sociedade colonial. Nesse capítulo, procuramos mostrar alguns modos
de vida e formas de olhar o ambiente familiar no período colonial brasileiro. Homens,
mulheres e crianças viviam, sentiam e agiam de modos muito distintos dos que hoje nos
cercam. Além disso, a América Portuguesa vivia sob o medo do demônio e dos castigos

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divinos, fruto das sociabilidades religiosas e dos discursos inquisitoriais e apocalípticos
que circulavam naquele período. Diante disso, achamos salutar a discussão acerca
da compreensão das redes religiosas que faziam parte do cotidiano da sociedade
colonial para situar você, caro estudante, sobre as práticas religiosas que os homens e
mulheres desenvolviam na Colônia.

Finalizando nosso volume, o terceiro capítulo situou o leitor num momento muito
especial para o Brasil: 1808 e a chegada da família real portuguesa, sob comando
de D. Maria I e de D. João VI. Denominado “1808: uma corte no Brasil”, o terceiro
capítulo versa sobre esse período brasileiro que passou a ser denominado, mais tarde,
de “Reino Unido de Portugal e Algarves”. Particularmente importante foi a investigação
das práticas culturais que foram estabelecidas no Rio de Janeiro de 1808 a 1822,
com a ampliação dos espaços de lazer e de atração de olhos, de corpos e de vidas.
Finalizando o capítulo, fizemos rapidamente um estudo sobre as transformações sócio-
culturais ocorridas no Brasil com a vinda da Família Real.

Seja bem vindo à América Portuguesa, a essa colônia de leitura e a esse reino de
encanto de palavras, de gestos e de posturas tão incomuns a nós, habitantes do século
XXI.

Iranilson Buriti de Oliveira


Professor Autor

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Capítulo 1

“A Europa e o novo
mundo: a construção
de um espaço chamado
Brasil”

Objetivos
●● Estudar o confronto cultural entre portugueses e indígenas no século XVI;

●● Analisar a construção narrativa de um espaço chamado Brasil;

●● Abordar as imagens que foram elaboradas para os nativos brasileiros pela literatura
europeia.

A imagem da caravela acima faz parte do imaginário de vários


estudantes de História do Brasil. Desde o Ensino Fundamental, em
nossos livros figuram as três caravelas que aportaram nesta terra em
1500. A cruz vermelha sinalizando o catolicismo, as velas ao vento,
o oceano, os homens remando. Que estudante de história do Brasil
não viu essa imagem (ou outra parecida) em livros, revistas, provas
ou expostas em quadros no cenário escolar? Pois é, essa imagem
é o nosso ponto de partida neste capítulo, pois queremos que ela
sirva de suporte memorialístico nesse rumo a um espaço chamado
Brasil. Assim como a Coroa Portuguesa convidou Cabral para ser o
comandante-em-chefe dessa esquadra, convido você para principiar
nessa outra aventura: a leitura da história do Brasil.

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O Brasil não é para principiantes. Como historiador e professor de
História, eu já ouvi esta frase muitas vezes. Afinal, está em jogo a
interpretação de um país imenso, onde reina a diversidade da cultura,
e cuja formação sócio-histórica teimou em vincular-se ao encontro
constante entre povos de culturas diferentes. Sendo assim, nossa
viagem pela história do Brasil parte de um lugar-social que reconhece
esta complexidade, mas que tenta retirar dela frutos os mais
saborosos possíveis.

Partimos da Colônia, mas em constante diálogo com a Metrópole


Portugal. Nosso objetivo é apresentar para você, estudante da EAD, a
pluralidade de vozes que falam do Brasil Colonial, sejam estas vozes
culturais, políticas, sociais ou religiosas.

Para estudar “esse” Brasil, ou seja, aquele já integrado ao sistema


(pré) capitalista internacional1, nosso ponto de partida não poderia
ser outro que não a expedição portuguesa comandada por Cabral.
Atenção Apesar de ser uma imagem tradicional para abordar a história,
1
Com isso, não estamos recorremos a ela para falar sobre a ocupação do espaço brasileiro
sugerindo que antes da
chegada portuguesa e dos primeiros séculos de fundação e de invenção de um lugar
o que hoje é o Brasil batizado de Brasil. Dispondo de dez naus e três caravelas, a maior
não contemplasse
frota já organizada pela coroa portuguesa em sua aventura atlântica,
a experiência sócio-
histórico-cultural, a expedição comandada por Pedro Álvares Cabral zarpa de Lisboa
extremamente rica em 9 de março de 1500. Seu “destino manifesto”: chegar à Índia,
e diversificada,
dos verdadeiros mercado dos mais desenvolvidos à época, e que enchia os olhos
“descobridores” do nosso portugueses pelas ricas possibilidades econômicas que os lusos
país. O que acontece,
simplesmente, é que os vislumbravam estabelecer.
objetivos e a perspectiva
deste texto são A aventura dos europeus em busca de novas terras não se inicia com
claramente definidos e a expedição cabralina. Já em 1419, uma expedição portuguesa chega
buscam estudar a história à ilha da Madeira. Em 1431, os portugueses alcançam o arquipélago
do Brasil a partir da sua
dos Açores. No ano de 1434, Gil Eanes ultrapassa o cabo Bojador na
integração ao sistema
capitalista ocidental. costa noroeste da África. Em 1443, Nuno Tristão atinge a Senegâmbia,
enquanto seu conterrâneo Diniz Dias ultrapassa a foz do Senegal. Lá
para 1482, Diogo Cão “descobre” o Zaire, enquanto em 1488, Bartolomeu
Dias atinge o cabo sul-africano das “Tormentas”, futuro “Cabo da Boa
Esperança”. Em 1498 a “cereja do bolo”: Vasco da Gama comandando
uma frota de quatro navios atinge a cidade de Calicute, na Índia. Portanto,
o passeio a procura de riquezas, terras e mercados comerciais já fazia
parte das propostas políticas das monarquias européias.

Entre o capitão, os pilotos árabes, os marinheiros, soldados e


religiosos partícipes desta aventura, estavam alguns degredados que,
sem mais esperança de alcançar a felicidade em Lisboa, partiam em
busca de melhores condições para suas vidas, conforme estudado

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por Geraldo Pieroni no livro “Os Excluídos do Reino”. Dentre os
degredados, encontravam-se os cristãos novos, perseguidos pela
política inquisitorial tanto da Espanha quanto de Portugal, conforme
estudaremos em capítulos posteriores. Homens que tiveram que
abandonar a família para não serem mortos nas fogueiras da
Inquisição. Quem sabe, o temor e os perigos da viagem não poderiam
ser recompensados com a prosperidade comercial indiana?

Da armada cabralina participavam ainda alguns religiosos (mais


precisamente oito frades). Entre eles ressaltava-se a imponência
do frei Henrique de Coimbra, comandante-em-chefe dos serviços
religiosos a bordo. Entre frades, militares, nobres e civis degredados,
a expedição contava com a colaboração de cerca de 1500
integrantes. Animados pela aventura comercial do Rei português D.
Manuel I (ver minibiografia), motivados uns pelo sonho de melhores
dias, outros pelo desejo de enriquecer e aumentar o prestígio social
de suas famílias, outros ainda angustiados pelo chamado cristão da
catequese mundial, lá foram eles naquela segunda-feira ensolarada
de 9 de março de 1500. A aventura estava começando!

Minibiografia
D. Manuel: o político dos descobrimentos

D. Manuel I foi o décimo quarto rei de Portugal, nono filho do infante D. Fernando e de
D. Brites. Filho adotivo do príncipe D. João II, a quem votava afeição filial. Realizou três
casamentos, o primeiro em 1497 com D. Isabel (viúva de D. Afonso), o segundo em 1500
com a infanta D. Maria de Castela e o terceiro em 1518, com D. Leonor, irmã de Carlos V.

Como político, coloca acima de tudo o interesse nacional. Recebeu o governo no


momento em que a Nação se preparava para alcançar a mais elevada projeção com
a conquista de novas terras e de novos mercados mundiais. Os vinte e seis anos do
seu reinado conheceram grande atividade nos domínios da política interna, da política
ultramarina e da política externa.

Algumas marcas do governo de D. Manuel I:

1) O poder político que viera parar às suas mãos era forte, centralizado e o seu
governo tendeu abertamente para o absolutismo. Nas cortes de Montemor-o-Novo,
toma medidas no sentido da centralização mais profunda da administração pública:
mandou confirmar os privilégios, liberdades e cartas de mercê, pelos principais
letrados do reino que elegeu. Reformou os tribunais superiores e agiu com uma
política de tolerância em relação aos nobres emigrados por razões políticas e a
judeus castelhanos que D. João II reduzira à escravatura. Pelo decreto de 1496
obriga todos os judeus que não quisessem se batizar no catolicismo a abandonar o

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país no prazo de dez meses, sob pena de confisco e morte. Muitos destes judeus
que recusaram o batismo, vieram para o Brasil. O objetivo era agradar aos Reis
Católicos e ao mesmo tempo, evitar que os judeus continuassem a ser um todo
independente dentro do reino. Pelas Ordenações Afonsinas, deixa de reconhecer
individualidade jurídica aos Judeus. D. Manuel inaugura o Estado burocrático e
mercantilista.

2) D. Manuel herdou o impulso dos descobrimentos. Partiu para a índia (8 7 1497) a


armada de Vasco da Gama, que chegou a Calecut em 20 5 1498. Em 1500 uma
armada comandada por Pedro Álvares Cabral, com o objetivo da Índia, rumou
intencionalmente (opinião atual) para sudoeste, atingindo a Terra de Santa Cruz.
D. Francisco de Almeida é nomeado vice-rei da índia, com o plano de manter o
monopólio da navegação e do comércio para Portugal, tendo em terra pontos
de apoio, para a carga da pimenta e reparação dos barcos. Lançou as bases do
futuro “Império”, que será obra de Afonso de Albuquerque. Apesar do comércio da
pimenta, a administração vivia em pleno déficit (dinheiro gasto superfluamente ou
em compra de produtos manufaturados e alimentares). Afonso de Albuquerque
cria novas fontes de receita, pela conquista de territórios da índia que pagavam
impostos.

3) D. Manuel, em matéria de política externa, usou de grande habilidade e diplomacia.


No aspeto cultural, reconheceu o atraso do ensino universitário, mandando
promover a reforma da universidade, estabelecendo entre 1500 e 1504 novos
planos de estudo e uma nova administração escolar.

Fonte:

SERRÃO, Joel. (ORG.). Pequeno Dicionário de História de Portugal. Lisboa:


Iniciativas Editoriais, 2004.

SERRÃO, Joaquim Veríssimo. História de Portugal, Volume III: O Século de Ouro


(1495-1580). Lisboa: Verbo, 1988.

Logo após terem deixado o espaço marítimo português, uma de suas


embarcações desapareceu no firmamento do horizonte: seriam as
desventuras que tanto assombravam os marinheiros daquela época?
Pelo sim e pelo não, a expedição segue o percurso projetado, a
partir de então sem maiores percalços. Sem que houvesse qualquer
entrevero mais grave de ordem climática, a frota cabralina alcança
o Norte da África. Sem qualquer motivo aparente ocorre um desvio
de grandes proporções na direção oeste (pelo menos, esta é a
explicação dos portugueses na época. Explicação que se consolidou
nos discursos da Coroa Portuguesa e de muitos historiadores). Até
que, no dia 22 de abril de 1500, Cabral e os seus chegam às terras do
que viria a ser o Brasil, conforme mostra o mapa a seguir:

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O “descobrimento do Brasil” sempre foi um tema bastante
controvertido. Aqui, gostaria de refletir sobre ele a partir de três
aspectos. O primeiro deles está relacionado com a pergunta que
nunca quer calar: Cabral foi mesmo o primeiro a chegar ao Brasil?
É óbvio que não. Ele e sua turma não encontraram um território
desabitado, vazio, desabitado. Muito pelo contrário, aqui já estavam
povos cuja cultura e sociedade eram tão complexas e diversificadas
como históricas e antigas. Havia nativos que habitavam há milhões
de anos este espaço, como assevera, entre tantos pesquisadores, as
arqueólogas Niède Guidon e Gabriela Martin D’ávila. Como se isso
não bastasse, há o registro de que outros navegantes, em especial
os espanhóis Américo Vespúcio e Vicente Pizón teriam passado pelas
terras “brasílicas” no ano de 1499, isso a pedido da coroa espanhola.
Esta versão da história já é discutida desde as primeiras décadas do
século XX, quando Olavo Bilac e Coelho Netto desconfiavam das
intenções de Portugal e da Espanha em relação ao Brasil.

Em fins de junho de 1499, Alonso de Hojeda,


navegando com os célebres pilotos Américo
Vespúcio e Juan de La Cosa, encontrou uma terra
baixa, alagada, naturalmente a do delta do Assú,
no atual Estado do Rio Grande do Norte.

Impossibilitado de vencer a violência das correntes,


fez-se ao largo, indo surgir, como se presume,
no porto de Caiena. Sete meses depois, Vicente
Yanez Pinzon, que primeiramente encontramos
na esquadra de Colombo, navegando com quatro

11
caravelas, aproou à terra, em rumo do Norte,
alcançando a 26 de Janeiro de 1500, um cabo a
que deu o nome de Santa Maria de la Consolacion,
cabo que, com fundados motivos, se julga ser o de
Mucuripe no Estado de Ceará, e não o de Santo
Agostinho, como se presumia. (COELHO NETTO;
BILAC, 1940, p. 11)

Para além da controvérsia do debate, o que importa apreender


dele é o seguinte: Cabral não foi o primeiro a chegar, nem mesmo
em comparação com seus patrícios espanhóis. Contudo, e isso é o
mais importante, sua expedição “toma posse” das terras do Brasil,
o que, na prática, significou integrá-lo ao sistema (pré) capitalista
internacional e transformar esta terra num grande comercial
colonial exportador de matéria-prima, principalmente pau-brasil,
cana-de-açúcar e, posteriormente, pedras preciosas. Diante das
transformações suscitadas por esta experiência, se torna irrelevante
discutir quem chegou primeiro, pois o mais importante é refletir sobre
a efetividade do domínio português que então se seguiu, a qual
transformou completamente os rumos tomados pelos habitantes da
“Terra Brasílica”.

Uma segunda questão versa sobre a casualidade ou a intencionalidade


da chegada de Cabral no Brasil. Será que a expedição comandada
por ele tinha desde sempre o objetivo de se desviar do rumo original e
tomar posse das terras que se sabia existirem ao oeste? Ou este “erro”
corresponde a mais um dos acasos que às vezes surpreendemos nas
experiências históricas da humanidade?

Diante do que afirma a documentação sobre a experiência e os


conhecimentos náuticos da tripulação cabralina, é muito pouco, mas
muito pouco provável mesmo, que os portugueses tenham chegado
aqui por simples obra do acaso. É bem mais provável que esta
viagem tivesse dois objetivos bem claros: tomar posse de possíveis
terras pertencentes a Portugal devido o Tratado de Tordesilhas (antes
que outra potência marítima o fizesse) criando aí um entreposto
comercial; após isso, seguir viagem para a Índia, visando estreitar as
relações políticas e comerciais com o oriente iniciadas já a partir de
1498 por Vasco da Gama.

Por fim, um terceiro questionamento. Este dialoga mais com a


reflexão sobre o termo usado para classificar o empreendimento
concretizado pela frota cabralina: houve de fato um “descobrimento”
do Brasil? As produções historiográficas mais recentes que tematizam

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esta experiência, sentem-se mais a vontade para falar em termos de
“conquista”, “invasão” e “tomada de posse”. Dentre os historiadores
que contestam essa visão, podemos destacar Marco Antônio Villa,
que enfatiza que em 1498, D Manuel I, rei de Portugal, incumbiu
o navegador Duarte Pacheco Pereira de uma expedição a oeste
do Atlântico Sul. Suas caravelas atingiram o litoral brasileiro e
chegaram a explorá-lo, à altura dos atuais estados do Amazonas e
do Maranhão. Para Villa, essa notícia foi mantida em segredo pelo
governo português, devido à concorrência espanhola na conquista da
América do Sul. 1500 não é visto por esse historiador como o ano da
chegada dos portugueses no Brasil, mas o momento em que Portugal
torna oficial a integração do território brasileiro ao sistema econômico
mercantilista, em vigor na Europa, e que teve no comércio do ouro
e das especiarias sua principal atividade. Esse momento representa,
também, a tomada de posse do território brasileiro pelo reino de
Portugal, bem como o momento de inclusão do Brasil na história
universal (VILLA, 2003).

Saiba Mais
Conceito de Representação para os historiadores da História Cultural

Para a História Cultural, as representações são construídas de acordo com as


classificações, divisões e delimitações de percepção e de apreciação do real, produzidas
por um determinado grupo ou indivíduo. As representações variam de acordo com
disposições estáveis e são partilhadas com o segmento social ou meio intelectual, do
qual o grupo ou indivíduo faz parte. As representações são múltiplas, historicamente
construídas e embora cada uma aspire uma compreensão universal do mundo, são
sempre determinadas pelos interesses do grupo que as forja; produzindo estratégias
de dominação, de legitimação e/ou de justificação para impor uma autoridade perante
outros. Por isto, as representações devem ser pensadas num campo de concorrência e
de competição por poder e dominação.

Segundo Roger Chartier, o conceito de representação rompe com a distinção entre


estruturas objetivas e representações subjetivas; pois, a própria organização social
está incorporada nas representações, que são matrizes de discursos e práticas, ou
seja, comandam atos. Os atos têm por objetivo construir o mundo social. Destarte, as
representações são diferentemente construídas pelos diversos grupos, meios ou classes
sociais; que definem contraditoriamente suas identidades traduzem as suas posições e
interesses, descrevem a sociedade tal como pensam que ela é, ou como gostariam que
fosse, produzindo assim conflitos de representação.

Fonte:

CERTEAU, M. A escrita da História. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense-Universitária,


2002. CHARTIER, Roger. História cultural. Entre práticas e representações. Lisboa:

13
Difel, 1990.

RAMOS, Igor. Historiografia brasileira e representações da história Operária.


Anais do XI Encontro Regional da Associação Nacional de História – ANPUH/PR.
2008.

Assim não se perde de vista a riquíssima experiência histórico-social


de milhares de pessoas que já estavam estabelecidas aqui bem
antes que o rei D. Manuel I alimentasse seus sonhos de colonização.
Pessoas que construíram uma cultura tão rica quanto diversa
(conforme estudamos um pouco em Pré-história brasileira), expressa
em uma ampla pluralidade de línguas, tribos, costumes, crenças e
valores totalmente diferentes dos europeus, embora, nem melhores
nem piores, apenas diferentes. Esse encontro entre diferentes gerou
(e gera) muitas representações sobre o Brasil, que passou a ser
descrito pelos europeus como exótico, atrasado, pagão. Um dos
primeiros documentos escritos após a chegada dos portugueses foi a
Carta escrita por Pero Vaz de Caminha, que narra algumas das cenas
que ele viu ao chegar no Brasil. A carta é considerada pelo historiador
Jaime Cortesão como o “registro de nascimento do Brasil e do Novo
Mundo”. Na Carta, o nativo é assim apresentado:

A feição deles é serem pardos, maneira de


avermelhados, de bons rostos e bons narizes,
bem-feitos. Andam nus, sem nenhuma cobertura.
Nem estimam de cobrir ou de mostrar suas
vergonhas; e nisso têm tanta inocência como em
mostrar o rosto. Ambos traziam os beiços de baixo
furados e metidos neles seus ossos brancos e
verdadeiros, de comprimento duma mão travessa,
da grossura dum fuso de algodão, agudos na ponta
como um furador. Metem-nos pela parte de dentro
do beiço; e a parte que lhes fica entre o beiço e os
dentes é feita como roque de xadrez, ali encaixado
de tal sorte que não os molesta, nem os estorva
no falar, no comer ou no beber. Os cabelos seus
são corredios. E andavam tosquiados, de tosquia
alta, mais que de sobrepente, de boa grandura
e rapados até por cima das orelhas. E um deles
trazia por baixo da solapa, de fonte a fonte para
detrás, uma espécie de cabeleira de penas de ave
amarelas, que seria do comprimento de um coto,
mui basta e mui cerrada, que lhe cobria o toutiço
e as orelhas. (CAMINHA, Pero Vaz. Carta enviado
ao rei de Portugal, D. Manuel I. 1500)

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A carta de Pero Vaz de Caminha atesta, textualmente, a presença
da esquadra de Pedro Álvares Cabral no Brasil, legitimando-se
juridicamente, dessa maneira, a posse da terra, bem como o vínculo
cultural estabelecido que nos fizessem herdeiros diretos da tradição e
dos costumes lusitanos.

Mas, antes de trabalharmos o cotidiano da Colônia Portuguesa,


uma pergunta nos inquieta: Como estava a Europa, particularmente
Portugal, nesse contexto das chamadas “grandes navegações”? Para
responder a esta pergunta, vamos voltar para o espaço europeu.

Europa. Século XV. Nesse contexto, o “Velho Mundo” passava por


grandes transformações nos âmbitos político, econômico e sócio-
cultural. O surgimento da burguesia e o início da expansão comercial
europeia por meio das Grandes Navegações redefinem as relações
socioeconômicas e desenham uma nova geografia mundial com
a descoberta de novas terras e de novos povos. A formação das
monarquias nacionais (Estado Absolutista) e o fortalecimento do
poder absoluto dos reis modificam o quadro político. As Reformas
Religiosas fazem com que o Catolicismo deixe de ser a única religião
cristã na Europa Ocidental e perceba que as pessoas pensam
Deus de diferentes formas e passam a se relacionar com Ele sem
a interferência de padres, bispos, cardeais, papas ou outras figuras
políticas da Igreja de Roma.

Dica de Cinema
Para uma melhor compreensão das Reformas Religiosas, assista ao filme Luther.
Este filme retrata que, após quase ser atingido por um raio, Martim Lutero acredita ter
recebido um chamado divino. Ele se junta ao monastério, mas logo fica atormentado
com as práticas adotadas pela Igreja Católica na época, em pleno início do século XVI.
Decidido a mudar, escreve 95 teses e as prega na porta de uma igreja alemã. Após isso,
Lutero passa a ser perseguido por Roma. Pressionado para que se redima publicamente,
Lutero se recusa a negar suas teses e desafia a Igreja Católica a provar que elas estejam
erradas e contradigam o que prega a Bíblia. Excomungado, Lutero foge e inicia sua
batalha para mostrar que seus ideais estão corretos e que eles permitem o acesso de
todas as pessoas a Deus. É o início de uma profissão de fé na Europa denominada de
Protestantismo.

Créditos: Título original: Luther. Lançamento: 2003 (Alemanha, EUA). Direção: Eric Till.
Atores: Joseph Fiennes, Alfred Molina, Bruno Ganz, Jonathan Firth. Duração: 112 min.
Gênero: Drama.

No campo científico, o desenvolvimento da ciência moderna baseada

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em métodos de observação e experiência e não mais alicerçada na
crença, abre ao homem a possibilidade de um conhecimento mais
crítico da realidade, enquanto o desenvolvimento da imprensa por
Gutenberg permite uma difusão mais rápida dos conhecimentos.
Grandes avanços técnicos como o desenvolvimento da bússola, da
pólvora e do papel propiciam um cenário mais favorável ao êxito dos
grandes empreendimentos marítimo-comerciais. Era a tecnologia a
serviço da expansão marítimo-comercial.

Obviamente, essas transformações estão relacionadas umas às


outras e não surgem do dia para a noite. Sendo assim, sua ocorrência
está vinculada ao contexto histórico mais amplo, e o efeito que cada
uma provoca acaba ressoando na cultura, na política, na economia,
nas relações socais e de trabalho, nas formas de crer, de pensar e
de explicar a realidade. Contudo, o que importa reter, é o fato de que
a expansão marítimo-colonial portuguesa que fez a frota cabralina
aportar em terras brasílicas está relacionado com esse processo mais
amplo de mudanças.

Da mesma forma, alguns aspectos nacionais contribuíram para lançar


os portugueses ao empreendimento marítimo-colonial. Ou pelo menos
facilitaram o seu caminho. Em 1143, Portugal já era um reino unificado
e independente, cuja estabilidade política contribuiu para o êxito das
expedições. Em 1385, subiu ao trono um rei apoiado pelos grupos
comerciais de Lisboa. Dom João I, portanto, passou a ser bastante
influenciado pela burguesia mercantil de Portugal, grupo social
indisfarçadamente interessado na expansão marítimo-comercial. Além
do mais, desde o século XIII, Portugal mantinha relações comerciais
bastante lucrativas com os demais países europeus, o que favorecia
o enriquecimento da burguesia mercantil. Esse enriquecimento
transformaria os comerciantes lusos em potenciais financiadores do
empreendimento marítimo-colonial (BOXER, 2002).

Saiba Mais
“O estado sou eu” – Sobre o Estado Absolutista

A frase “O Estado sou eu” é atribuída a Luís XIV da França, conhecido como o Rei
Sol. Esta sentença sintetiza o absolutismo: o regime político em que uma pessoa, o
soberano, exerce o poder em caráter absoluto, sem quaisquer limites jurídicos. Sua
consolidação coincidiu com o fim do período medieval e o início da modernidade, sendo,
assim, expressão política de um novo modelo de Estado que surgia naquele momento de
transição: o Estado Absolutista, a quem correspondeu também uma forma inovadora de

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monarquia: a Monarquia Absolutista.

Absolutismo é a forma de governo caracterizada pela concentração total de poder em


mãos de um só indivíduo ou de um grupo de indivíduos. As chefias coletivas constituem,
porém, casos excepcionais do sistema governamental absolutista, podendo ser
consideradas etapas no desenvolvimento do processo de concentração integral do poder
em situações em que a divisão de forças entre os chefes não permite a afirmação de
superioridade por parte de um só dos componentes do núcleo dirigente.

O que caracteriza, também, o absolutismo é a ausência completa de limitações ao


exercício do poder, como ocorreu com vários reis, dentre os quais Luis XIV. Não há
pesos e contrapesos reguladores das relações entre o poder executivo e as agências
legislativas e judiciárias constituintes da organização estatal. A maquinaria constitucional,
quando existente, está sempre à mercê da vontade do governante, que a pode alterar
sem aprovação de órgão público.

O sistema absolutista encontra sua mais fiel representação nas formas de governo das
monarquias da Europa ocidental nos séculos XVII e XVIII (Inglaterra, França, Áustria,
Espanha, Prússia e outras). O soberano possuía, de direito e de fato, a soma total dos
atributos do poder: legislava, julgava, nomeava e demitia, instituía e cobrava impostos,
organizava e comandava as forças armadas.

Alguns filmes apresentam leituras sobre o Absolutismo, dentre os quais:

Maria Antonieta (EUA, 2006)

O Absolutismo - A Ascensão de Luís XIV (França, 1966)

A Rainha Tirana (EUA, 1955)

Mary Stuart, Rainha da Escócia (1971)

A Rainha Margot (Alemanha, Itália e França, 1994)

Fonte:

ANDERSON, Perry. Linhagens do Estado Absolutista. 2 ed., São Paulo:


Brasiliense, 1989.

Ademais, em se tratando de Grandes Navegações, a posição


geográfica de Portugal é bastante privilegiada. Sua capital, Lisboa,
era um ponto de encontro de marinheiros das mais diversas origens.
Some-se a isso o fato de que a terra de Cabral era um dos países
mais urbanizados da Europa na época dos grandes “descobrimentos”,
fazendo com que grande parte de sua população trabalhasse
cotidianamente com atividades marítimas, e você terá uma sociedade
em que grande parte da população possuía relativa experiência na
relação com o mar. O toque final era dado pelo desenvolvimento
dos estudos náuticos indispensáveis à realização dos grandes
empreendimentos marítimo-comerciais, ofertado pela Escola de
Sagres.

17
O interesse inicial do governo português pelas terras americanas
não correspondeu ao tamanho da expedição que enviou para “tomar
posse” delas. O nome de Ilha de Vera Cruz foi rapidamente modificado
para Terra de Santa Cruz, visivelmente mais correto do ponto de vista
da geografia das terras “descobertas”. Mas durante cerca de 30 anos,
elas ficaram inexploradas pelos portugueses. Isso pelo menos de
forma mais sistemática e organizada, na medida em que as aventuras
individuais de reconhecimento da nova possessão portuguesa
correram soltas nos longos trinta anos que separam a “descoberta” do
começo efetivo da colonização ou exploração em 1530. A partir desta
década, outra história marcaria o rosto do Brasil. Novos personagens
entram em cena para morar, plantar, colher, vender e enviar riquezas
para o outro lado do Atlântico, mas precisamente para a metrópole
Portugal.

Você, caro estudante, pode perguntar: por que tudo isso ocorreu?
Uma das justificativas para esta pergunta é decorrente dos projetos
de Portugal e das demais nações europeias nesse contexto. Os
portugueses estavam procurando minerais preciosos e possibilidades
comerciais. Sendo assim, eles concentraram seus recursos na
consolidação de suas feitorias do litoral africano e na expansão de
seus domínios orientais. Dessa forma, os territórios americanos
ficaram, inicialmente, em segundo plano.

No começo, a principal riqueza que os portugueses encontraram para


explorar foram toras de uma árvore já conhecida na Europa, da qual
se extraía um pigmento para tinturas em tecido e papel: era o pau-
brasil, riqueza que acabou fixando o nome definitivo da possessão
portuguesa na América. A exploração do pau-brasil, contou com o
aproveitamento da mão-de-obra indígena, e foi a primeira atividade
mercantil desenvolvida pelos europeus em território brasileiro.

O governo português estabeleceu então o monopólio da exploração


de pau-brasil, algo, aliás, que caracterizava todas as suas atividades
comerciais ultramarinas. Assim, apenas quem tivesse a permissão
da Coroa portuguesa poderia se dedicar a ela. Para isso, o governo
luso cobrava pesados impostos, que garantiam o seu lucro no
empreendimento colonial da América e repassando os riscos a
particulares. De 1502 até 1504, a exploração do pau-brasil foi
entregue a Fernão de Noronha, que exercia a atividade associado
com comerciantes Judeus.

Contudo, o pau-brasil despertou o interesse de outros europeus.

18
Assim, traficantes franceses, apoiados pelo governo de seu país,
passaram a desembarcar com frequência no litoral brasileiro. Com
a ajuda de grupos nativos, retornavam para a França com os seus
navios abarrotados da madeira cobiçada.

A extração do pau-brasil se dava de forma bastante rudimentar, o


que naturalmente provocava a destruição das florestas. Os agentes
coloniais que realizavam a extração da planta contavam com o auxílio
dos índios, que cortavam a madeira e levavam-na até os navios, em
troca de peças de tecido, roupas, contas coloridas, canivetes, facas e
espelhos, numa espécie de escambo.

É importante frisar que a exploração do pau-brasil não deu origem


a estabelecimentos e povoados europeus mais efetivos na América.
Franceses e portugueses limitaram-se a construir feitorias em
trechos do litoral onde a madeira era mais abundante, o que limitou a
colonização portuguesa ao litoral, ao menos no início, o que levou Frei
Vicente de Salvador a comparar os portugueses com caranguejos:

Da largura que a terra do Brasil tem para o sertão


não trato, porque até agora não houve quem a
andasse por negligencia dos portugueses, que,
sendo grandes conquistadores de terras, não se
aproveitam delas, mas contentam-se de as andar
arranhando ao longo do mar como caranguejos.
(SALVADOR, 1627, p. 5)

Essas feitorias constituíam construções que serviam, ao mesmo


tempo, como depósitos e como fortalezas militares para a defesa
contra nativos e europeus concorrentes. Elas eram habitadas por
um número reduzido de pessoas. Para sobreviver, sua população
precisava demais da ajuda dos índios, que, como conhecedores da
região, auxiliavam-na quanto à obtenção de alimentos e na defesa
quer contra os concorrentes europeus quer contra a os perigos
naturais.

A ameaça estrangeira à posse da terra era tão grande que, na década


de 1520, o governo português enviou para cá expedições militares,
chamadas de expedições “guarda-costas”. Contudo, o resultado
destas campanhas parecia infrutífero, haja vista a imensidão do
território brasileiro e o desconhecimento que os portugueses tinham
dele, o que facilitava a atuação dos concorrentes europeus. Sendo
assim, aos olhos da elite comercial lusa, parecia que o único meio de
defender a costa e consolidar a posse, era povoar a região de forma
mais sistemática. Com vilas e povoados permanentes, talvez fosse

19
possível impedir a atividade comercial dos concorrentes estrangeiros.

De fato, após três décadas da declaração portuguesa de posse


das terras do Brasil, a coroa lusa ainda não sabia bem o que fazer
para viabilizar a exploração colonial daquelas terras. Parece que os
portugueses não queriam perdê-la, mas não sabiam o quê e o como
fazer com elas. Mesmo sendo bastante cobiçado no comércio europeu,
o pau-brasil não tinha como concorrer com a riqueza proporcionada
naquela época pelas especiarias orientais e pelos escravizados
africanos. Sendo assim, as possessões africanas e orientais eram a
prioridade do Império Português, tornando secundária a exploração
das terras brasílicas.

No máximo, o litoral brasileiro podia servir como entreposto para


abastecimento de água e alimento das frotas destinadas ao oriente.
No entanto, até mesmo para servir como escala marítima, era preciso
garantir a posse do novo território. A partir de 1530, durante o governo
de Dom João III (1521 - 1557) convencidos disso e motivados pela
queda de seus rendimentos orientais, os portugueses passaram a
organizar de forma mais sistemática a sua intervenção colonial na
América. Era o momento de ocupação definitiva do “Novo Mundo”
português, momento que inauguraria a monocultura açucareira e o
Atenção
comércio de escravos no Brasil.
2
Ao contrário do que o
termo “subsistência” pode Ao chegarem ao Brasil, os portugueses encontraram uma ampla
sugerir num primeiro
olhar, não se tratava diversidade de povos nativos, alguns dos quais já dominavam a
de uma agricultura de prática da agricultura de subsistência2. Do ponto de vista técnico,
“sobrevivência”, pois
a produção nativa no entanto, nossos primeiros habitantes não dispunham de muitos
era relativamente recursos tecnológicos, tanto que, na prática agrícola, destacava-se o
diversificada e
emprego de queimadas e o plantio manual. Além disso, a maior parte
atendia bem às suas
necessidades. dos grupos nativos desenvolvia uma pequena criação de animais,
suplementada pela pesca e pela caça3. Os europeus deixaram sua
visão inicial do Novo Mundo bastante registrada em textos escritos,
gravuras, desenhos, entre outros tipos de representações, como os
mapas e cartas de marear que foram produzidos para orientação nas
viagens.
Atenção
3
Cabe observar que O “novo mundo” na pena de Caminha
os grupos indígenas
Esta terra, Senhor (...) nela, até agora, não podemos saber que haja ouro,
brasileiros não conheciam
a criação de animais nem prata, nem coisa alguma de metal ou ferro; nem lho vimos. Porém,
como cavalo, porcos a terra em si é de muito bons ares, assim frios de temperados, como os
e vacas, introduzidos de Entre Douro e Minho, porque neste tempo de agora os achávamos
depois pelos europeus. como os de lá.

20
As águas são muitas: infindas. E em tal maneira é graciosa que,
querendo-a aproveitar, dar-se-á nela tudo, por causa das águas que tem.
Porém o melhor fruto que dela se podem tirar me parece será salvar esta
gente. E esta deve ser a principal semente que Vossa alteza em ela deve
lançar.
E que aí não houvesse mais que ter esta pousada para esta navegação
de Calicute, isso bastaria. Quanto mais disposição para nela se cumprir
e fazer o que Vossa Alteza tanto deseja, a saber, o acrescentamento da
nossa santa fé (...)
Beijo as mãos de Vossa Alteza.
Deste Porto Seguro, da vossa Ilha de Vera Cruz, hoje, sexta-feira, 1º de
maio de 1500.
Pero Vaz de Caminha.
(Carta de Pero Vaz de Caminha, reproduzida em caderno especial pelo
Jornal Folha de São Paulo em 1999)

Carta de marear elaborada no século XVI com o objetivo de ajudar aos marinheiros durante
as viagens pelo Atlântico. Disponível em: https://www.mar.mil.br/dhn/dhn/hist1500.html. Acesso
em 5 set. 2011

Ao contrário do que foi registrado pelo primeiro olhar europeu, a vida


nas aldeias e as relações entre os diferentes povos nativos eram
normatizadas por regras sociais e políticas. Estas podiam ser tanto
mais genéricas, influenciando a vida da maior parte dos grupos,
como podiam ser mais restritas e orientar apenas as relações de um
número mais reduzido de culturas. No entanto, de forma mais ampla,
elas orientavam os procedimentos norteadores de instituições como o

21
casamento, os cultos e a guerra.

De um modo geral, a visão do europeu em relação ao meio


natural e aos povos nativos que o habitavam, reflete sentimentos
contraditórios. Num primeiro momento, percebemos o encantamento
dos portugueses diante de povos que, aos seus olhos, pareciam ao
mesmo tempo rudes e gentis, como narra a Carta de Pero Vaz de
Caminha.

Contudo, quando os interesses comerciais do empreendimento


marítimo-colonial impuseram a definição de objetivos econômicos e
estratégias políticas de ocupação do novo território, a representação
que os europeus passaram a fazer dos nativos esteve baseada num
estranhamento tendente às hostilidades e opressões.

Um dos primeiros documentos históricos que registram a impressões


europeias sobre o nativo, é a carta do escrivão da esquadra
cabralina, Pero Vaz de Caminha, comunicando ao rei D. Manuel I à
tomada de posse das terras brasílicas. Nela, Caminha expressa suas
dúvidas quanto à existência de metais precisos no território recém-
conquistado, embora enfatize a fertilidade de suas terras. Ao mesmo
tempo, recomenda a sua alteza que inicie a conversão dos nativos ao
cristianismo “o melhor fruto que desta terra se pode tirar”.

Minibiografia
Pero Vaz de Caminha: o registro sobre o Brasil

Não se sabe ao certo quando e onde Pero Vaz de Caminha nasceu pela inexistência
de documentos da época a esse respeito. Supõe-se, porém, que seu nascimento tenha
ocorrido em 1450. Seria natural do Porto, uma cidade evidentemente portuária, de
grande importância entre os séculos 13 e 16. Nela, Pero Vaz teria se criado e passado a
maior parte da vida.

Filho de Vasco Fernandes Caminha, fidalgo e escrivão ligado aos empreendimentos


ultramarinos, deve ter sido educado pelo pai, que o orientou a seguir a mesma profissão
que a sua. A partir da análise da “Carta do Achamento do Brasil”, os estudiosos
presumem que Pero Vaz tivesse uma boa formação cultural, de acordo com os padrões
da época, já que o texto demonstra erudição e estilo narrativo.

Caminha foi casado e pai de uma filha, Isabel de Caminha, que se uniu a certo Jorge
Osório, homem violento que acabou condenado ao exílio na África pela prática de assalto
a mão armada. É por ele que o escrivão intercede, ao final da célebre Carta, pedindo ao
rei que lhe mande o genro de volta a Portugal.

Nada mais se sabe sobre Pero Vaz de Caminha até sua nomeação para o cargo de
escrivão da armada de Cabral, aos cinquenta anos. Também não se conhecem ao certo

22
as circunstâncias em que ela ocorreu. Mas não há dúvida de que o cargo revela prestígio
e confiança junto à Corte portuguesa.

Caminha exerceu a função durante a viagem, mas devia depois fixar-se na Índia, como
escrivão da feitoria portuguesa em Calecute, que talvez se tornasse um dos mais
lucrativos entrepostos no Oriente. Nem isso aconteceu, nem o escrivão da armada
chegou a ocupar o cargo. Diante da hostilidade dos habitantes de Calecute à sua frota,
Cabral reagiu com grande violência. Invadiu a cidade e massacrou sua população.

Os indianos enfrentaram os portugueses, matando vários deles, entre os quais, o


escrivão Pero Vaz d e Caminha, que morreu em combate, em dezembro de 1500.

Fonte: http://educacao.uol.com.br/biografias/pero-vaz-de-caminha.jhtm

De um modo geral, a visão de Caminha sobre a natureza e os


nativos parece bastante otimista. Contudo, esta representação
encantada pelo esplendor da “descoberta” não foi exclusividade do
escrivão português. Vários observadores da época representaram o
continente americano como um paraíso terrestre habitado por “bons
selvagens”. Tomando como base o material divulgado na Europa
sobre a experiência da conquista americana, o filósofo francês Michel
de Montaigne (1533 - 92) definiu a vida simples dos nativos como
modelo de virtude que poderia servir de exemplo aos europeus.

Por outro lado, os europeus constataram que entre as tribos nativas


não havia um líder com autoridade superior sobre os seus pares, o
que os espantou bastante. Além disso, eles perceberam que a maior
parte dos aborígenes brasileiros não possuía um sistema religioso
organizado a partir do princípio monoteísta. Por fim, a inexistência de
um código de leis escritas e sistematizadas, levou os portugueses a
afirmarem que os nativos viviam “sem fé, sem lei, sem rei”, ignorando
a identidade dos povos indígenas, acusando-os de não ter religião e
de desconhecer a agricultura (PRIORE, 2001, p. 28).

No entanto, esta concepção deve ser relativizada criticamente. Ora,


os nativos brasileiros não possuíam fé, lei ou rei na perspectiva do
que os europeus entendiam sobre estes aspectos. Ou seja, eles
possuíam líderes, deuses e regras sociais adequados à sua cultura,
embora bastante diferentes das dos europeus. Ser diferente aqui,
não significa ser melhor ou pior, significa apenas uma alternativa
existencial diversa da dos europeus, pois relacionada à formação
histórica e cultural dos povos que a construíram.

De maneira geral, mesmo admitindo que os nativos possuíssem alma


e eram seres humanos como eles (embora inferiores), os europeus

23
afirmavam que precisariam de muito trabalho para “salvar” esse
povo “sem fé, sem lei, sem rei”. Isto só poderia ser feito por meio
da catequese indígena, como podemos analisar na obra de José
Maria de Paiva (“Educação Jesuítica no Brasil Colonial”). Isso porque
quando não eram representados como preguiçosos, os nativos eram
temidos por sua ferocidade e violência, expressas, na visão dos
europeus, nos rituais de canibalismo de algumas culturas indígenas.
Esta representação do nativo foi reforçada pela literatura europeia
principalmente após o episódio na década de 1550, quando o alemão
Hans Staden foi aprisionado e quase devorado pelos tupinambás
do Rio de Janeiro. Porém, nos registros que fez dessa experiência,
ao lado do medo que sentiu, ele fez questão de ressaltar o caráter
ritualístico, social e religioso dessa prática.

Dica de Cinema
Para uma leitura sobre o canibalismo na visão cinematográfica, assista ao filme Como
era gostoso meu francês, Nelson Pereira do Santos. Este filme faz uma crítica
antropofágica do colonialismo, ao contar a história de um europeu capturado pelos índios
tupinambás na costa brasileira, e que é incorporado na aldeia. A encenação de um ritual
antropofágico no filme de Nelson Pereira do Santos sugere que o verdadeiro escândalo é
o genocídio feito pelas culturas dominantes, e não o ritual de devorar uma representação
“alegórica” do inimigo.

Créditos: Título original: Como era gostoso o meu francês. Diretor: Nelson Pereira dos
Santos. Brasil, 1970, 84min.

As diferenças entre indígenas e europeus estavam em tudo. Nas


vestimentas (ou na ausência delas para alguns grupos nativos),
no modo de encarar o trabalho, na forma de pensar e explicar o
mundo. No encontro com o “outro”, o europeu construiu para si
uma identidade de civilizado diante de selvagens a quem devia
“salvar” pela conversão ao cristianismo ou destruir caso resistisse à
catequese. De início seres “diferentes” e fascinantes pela nudez e
simplicidade de seu modo de vida, os nativos brasileiros passaram
a ser representados como indivíduos “inferiores”. Sobretudo quando
aumentaram sua resistência à conquista colonial, os nativos foram
reduzidos à condição de selvagens e bárbaros que precisavam ser
submetidos pela fé ou pela força.

Se a visão europeia sobre os índios do Brasil está bem registrada,


o mesmo não se pode dizer sobre as representações nativas sobre
o “outro” português. Contudo, o conhecimento histórico atual nos

24
permite vislumbrar alguns aspectos importantes dessa experiência de
encontro cultural.

A grande diversidade cultural existente nas sociedades nativas dos


séculos XVI e XVII, também se expressou nas atitudes em relação aos
conquistadores europeus. Os povos tupis-guaranis (grupo nativo que
dominava a costa brasileira. Foram os primeiros a entrar em contato
com os europeus), agricultores não muito sedentários, que viviam em
intensa rivalidade intertribal, não tiveram uma reação uniforme quanto
ao encontro com o europeu. Enquanto os tupiniquins que habitavam
o território do Rio de Janeiro atual apoiaram os portugueses contra os
franceses, s seus vizinhos tamoios aliaram-se aos franceses.

O certo mesmo é que, tão logo perceberam as possibilidades de


exploração econômica dos novos territórios, os conquistadores
europeus puseram-se a explorar os nativos. Sendo assim, buscaram
tirar proveito tanto da sua capacidade de trabalho, quanto da
rivalidade entre os povos aborígenes, visando explorar as riquezas
do “Novo Mundo” ou conseguir ajuda para enfrentar grupos indígenas
mais hostis.

Os nativos diante da conquista


Vi a chegada dos peró [portugueses] em Pernambuco e Potiú; e
começaram eles como vós franceses fazeis agora. De início os peró não
faziam senão traficar sem pretenderem fixar residência [...] Mais tarde
disseram que nos devíamos acostumar a eles e que precisavam construir
fortalezas para se defenderem, e cidades para morarem conosco. [...]
Mais tarde afirmaram que nem os paí [padres] podiam viver sem escravos
para os servirem e por eles trabalharem. Mas não satisfeitos com os
escravos capturados na guerra, quiseram também os filhos dos nossos e
escravizaram toda a nação. [...] Assim aconteceu com os franceses. Da
primeira vez que viestes aqui, vós o fizestes somente para traficar [...]
não faláveis em aqui vos fixar; apenas vos contentáveis em visitar-nos
uma vez por ano [...] Regressáveis então a vosso país, levando nossos
gêneros para trocá-los com aquilo de que carecíamos. Agora já nos
falais de vos estabelecerdes aqui, de construirdes fortalezas contra os
nossos inimigos. Para isso, trouxestes um morubixaba (cacique ou chefe)
e vários paí. Em verdade, estamos satisfeitos, mas os peró fizeram o
mesmo [...] Como estes, vós não queríeis escravos, a princípio; agora os
pedis, e os quereis como eles, no fim.
(Adaptado de ABBEVILLE, Claude. História dos padres capuchinos na
ilha do Maranhão e terras circunvizinhas. São Paulo: EDUSP, 1975.)

O Estado Português procurou se apropriar das populações nativas


para defender e explorar os seus domínios na América. De um modo

25
geral, essa relação com os indígenas acompanhou as vicissitudes e
os interesses da política colonial. Assim, num primeiro momento, os
nativos brasileiros foram tratados como uma espécie de parceiros
comerciais no escambo do pau-brasil.

Contudo, a partir de meados do século XVI, as tentativas de convívio


pacífico foram cedendo espaço para tensões e conflitos entre o
conquistador e os nativos. No contexto de uma colonização mais
opressora e exploratória que passou a se consolidar a partir de então,
se tornava impraticável a perspectiva de uma relação amistosa entre
portugueses e indígenas. A tentativa de cooperação pacífica é então
substituída pela crescente escravização indígena.

De um modo geral, o Estado português desejava firmar


relacionamentos pacíficos com os indígenas. Dessa forma, pensavam
os lusos, o empreendimento colonial poderia contar com a colaboração
nativa. Isso levou à regulamentação de diversas medidas legais de
proteção indígena para tentar limitar os excessos dos colonos. No
entanto, relações pacíficas aqui, significam a submissão incondicional
dos nativos aos desmandos da coroa portuguesa. Além disso, para
os colonos proprietários de terras, a prioridade era encontrar mão-
de-obra barata. Esses dois aspectos contribuíram para intensificar o
processo de apresamento e escravização indígenas.

Antes mesmo de o Estado Português ter optado pela ocupação


efetiva do território brasileiro, alguns europeus fixados nas novas
terras disseminaram uma política de escravização dos nativos. Em
1537, tentando limitar essa prática, por meio da bula Veritas ipsa, o
Papa Paulo III declarou a humanidade dos povos ameríndios, embora
os colocasse num patamar inferior aos europeus. Esta decisão papal
concedia aos nativos brasileiros o “privilégio” (nem sempre bem
visto aos olhos indígenas) de serem catequizados e batizados na
Atenção conformidade da religião católica.
4
Expressão utilizada para
justificar a escravização Já em 1548, o regulamento que criava o Governo-Geral das terras
de certos povos brasílicas, orientava que os nativos deviam ser tratados da forma mais
indígenas. Designava
amistosa “possível”. Ou seja, ao indígena obediente à autoridade do
a luta contra grupos
que não aceitavam a português “civilizado”, poderia ser garantida a liberdade e a posse
conquista portuguesa e de suas terras. Por outro lado, autorizava a escravização das tribos
resistiam à catequização.
Os índios aprisionados nativas consideradas hostis, isto é, as que resistissem à dominação
nessas guerras podiam colonial.
ser escravizados com
autorização do rei Para legitimar esta prática, foi criado o conceito de “Guerra Justa”4,
português.
que era um tipo de ação armada cujo objetivo era submeter os grupos

26
indígenas que resistissem às pretensões do colonizador. Além dos
nativos aprisionados nas “Guerras Justas”, aos colonos portugueses
era permitida a escravização dos indígenas trazidos das suas aldeias
para os aldeamentos organizados pelos colonizadores próximos às
vilas (trata-se dos nativos “descidos”), bem como dos índios feitos
prisioneiros de guerra durante os conflitos intertribais (chamados de
“índios resgatados).

No contexto da colonização, os povos nativos da América portuguesa,


normalmente, tinham apenas duas escolhas: submeter-se ou resistir.
Submeter-se significava aderir a uma sociedade totalmente diferente
da sua, bem como abandonar suas crenças e tradições em favor
dos costumes e valores da doutrina cristã. Como a submissão do
ameríndio era algo indispensável ao projeto colonial português,
as relações entre o conquistador europeu e o nativo brasileiro
caminharam progressivamente no sentido da opressão e do
extermínio indígena. No encontro cultural suscitado pela conquista da
América, rapidamente se passou do encanto cuidadoso de Caminha
para o genocídio sociocultural das populações nativas.

Este capítulo, portanto, objetivou apresentar o confronto entre o “eu”


e o “outro”, o europeu e o ameríndio. Confronto que foi mais que um
encontro ocasional. Foi uma estratégia portuguesa de fincar marcos,
de criar laços com a terra, de estabelecer fronteiras identitárias.
Porém, em relação a estas fronteiras e construção de uma cultura dita
colonial, estudaremos no próximo capítulo.

Referências
Prezado aluno EAD, para suas leituras e pesquisas futuras, elencamos vários autores
que abordam a História do Brasil Colonial.

Os indígenas, a expansão marítima e a colonização portuguesa

AMADO, Janaína & FIGUEIREDO, Luiz Carlos. No tempo das caravelas. Goiânia:
CEGRAF-UFG; São Paulo: Contexto, 1992.

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Janeiro, 4 (7): 19-34, 1991.

AZEVEDO, Ana Maria de. Desta Vossa Ilha de Vera Cruz... é já outro Portugal.
Revista Camões, n. 8, Portugal, 2000.

BELLUZZO, Ana Maria de Moraes. O Brasil dos Viajantes. 2 ed. São Paulo:
Metalivros; Objetiva, Fundação Odebrecht, 1999.

27
CASTRO, Eduardo Batalha Viveiros de. Pontos e linhas: teoria e tupinologia. In:
Araweté: os deuses canibais. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1986, p. 81-127.

COELHO, Antônio Borges. A Revolução de 1383. 5 ed. Lisboa: Caminho, 1981.

CUNHA, Manuela Carneiro da. História dos Índios no Brasil. São Paulo:
Companhia das Letras: FAPESP: SMC, 1992, p. 9-24.

DEAN, Warren. A ferro e a fogo: a história e a devastação da Mata Atlântica


brasileira. São Paulo: Companhia das Letras, 1996.

DIFFIE, Bayley W. & WINIUS, George D. A Fundação do Império português,


1415-1580. Lisboa: Vega, s.d.

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FAUSTO, Carlos. Os índios antes do Brasil. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor,
2000.

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FUNARI, Pedro Paulo e NOELLI, Francisco Silva. Pré-História do Brasil: as


origens do homem brasileiro. São Paulo: Contexto: 2002.

GARCIA, José Manuel. Breve História dos Descobrimentos e Expansão de


Portugal. Lisboa: Editorial Presença, 1999.

HOLANDA, Sérgio Buarque de (Org.). História Geral da Civilização Brasileira. 7


ed. São Paulo: DIFEL,1985, Tomo 1, Vol. 1.

HOLANDA, Sérgio Buarque de. Caminhos e Fronteiras. 3 ed. São Paulo:


Companhia das Letras, 1994, p. 19-53.

HOLLANDA, Sérgio Buarque. Visões do Paraíso: os motivos edênicos no


descobrimento e colonização do Brasil. São Paulo: Companhia das Letras. 2010.

NEVES, Walter. O homem do paquímetro (entrevista concedida a Roberto Barros


de Carvalho). Ciência Hoje, Rio de Janeiro, 30 (178): 10-14, dez. 2001.

NOGUEIRA, Pablo. O povoamento da América: arqueólogos redescobrem a vinda


do homem ao continente. Galileu Especial, São Paulo (4): 31-42, nov. 2003.

RAMINELLI, Ronald. Canibalismo em nome do amor. Nossa História, São Paulo


(17): 26-31, março 2005.

SEABRA, José Augusto. A descoberta do outro na Carta de Pero Vaz de Caminha.


Revista Camões, n. 8, Portugal, 2000.

Saiba Mais
O estranhamento do primeiro encontro

Para os índios era inexplicável que o europeu viesse de tão longe para buscar pau-brasil.
O francês Jean de Léry, que aqui esteve no século XVI, deixou registrado um diálogo
com um velho tupinambá, que lhe perguntou se os europeus não tinham árvores em sua

28
terra. Ao saber que o pau-brasil explorado servia para tingir tecidos e que um só homem
comprava todo o carregamento de um navio, o índio perguntou:

“Mas esse homem rico de que me falas não morre?

O francês lhe respondeu que o homem rico também morria e deixava tudo para os filhos.

O velho se espantou. De seu ponto de vista, era loucura enfrentar o oceano, amontoar
riquezas e deixar para outros:

“Estamos certos de que, depois de nossa morte, a terra que nos nutriu também os nutrirá
(aos descendentes), por isso descansamos sem maiores cuidados.

Revisão
Este capítulo abordou os primeiros contatos entre europeus e nativos brasileiros no início
do século XVI, narrando o estranhamento e os confrontos culturais entre pessoas de
cores, religião, cultura e línguas diferentes. Tudo isso foi fundamental para a formação de
um espaço que veio a ser denominado Brasil. Para tanto, estudamos ao longo do capítulo
os diversos confrontos culturais entre portugueses e indígenas no século XVI, analisando
a construção narrativa de um espaço chamado Brasil pelos escritores europeus que,
em crônicas, cartas e imagens representaram esta terra como exótica e atrasada sob o
ponto de vista cultural, político e religioso, fixando, assim, a imagem de uma terra que
precisava de fé, de lei e de rei.

Dicionário de Termos Históricos


●● Degredados: O termo degredado (do Latim decretum) é um termo
tradicional jurídico português usado para se referir a qualquer
pessoa que estava sujeita a restrições legais ao seu movimento,
fala de trabalho. A maioria dos degredados eram criminosos
comuns, embora muitos fossem presos políticos ou religiosos (por
exemplo, Cristãos-Novos), a quem tinham sido condenados a ser
exilados do Reino de Portugal. (Confira PIERONI, Geraldo. Os
excluídos do Reino. Brasília: EdUnB, 2000)

●● Cristãos novos: também chamado de “converso”, cristãos-novos


era a designação dada em Portugal, Espanha e Brasil aos judeus
e muçulmanos convertidos ao cristianismo, em contraposição aos
cristãos-velhos, que já nasciam católicos. Este tema foi estudado
pela historiadora Anita Novinsky nos livros “Cristãos Novos na
Bahia: A Inquisição no Brasil” (São Paulo: Perspectiva) e “A
Inquisição” (São Paulo: Brasiliense).

●● Tratado de Tordesilhas: Tratado assinado entre Espanha e

29
Portugal com a intermediação do Papa Alexandre VI em 1494.
Por ele ficava determinado que todas as terras encontradas a
oeste do Meridiano de Tordesilhas (situado 370 léguas a oeste do
arquipélago de Cabo Verde) pertenceriam à Espanha, enquanto as
terras a leste seriam portuguesas.

●● Mercantilista: nome atribuído a um conjunto de práticas político-


econômicas desenvolvidas na Europa na Idade Moderna. O
mercantilismo originou um conjunto de medidas econômicas
diversas de acordo com os Estados e se firmou com a expansão
das conquistas ultramarinas. Consistiu, ainda, numa série de
medidas voltadas para a unificação do mercado interno e teve
como finalidade a formação de fortes Estados-nacionais.

●● Estado Absolutista: Emergiu na Europa ocidental no século 16,


caracterizado pela forte centralização do poder político e militar
nas mãos do monarca soberano (ou seja, um rei ou príncipe
hereditário) rompendo, portanto, com a soberania piramidal e
parcelada que caracterizava o vasto conjunto dos domínios dos
senhores feudais no período precedente (Veja ANDERSON, Perry.
Linhagens do Estado Absolutista. São Paulo: Brasiliense, 2004)

●● Escola de Sagres: No início do século XV, Dom Henrique, o


Navegador, reuniu um grupo de estudiosos, como astrônomos,
cartógrafos e pilotos visando aperfeiçoar as técnicas e os estudos
de navegação. Era a Escola de Sagres. Ao contrário do que o termo
Escola pode sugerir, ela nuca chegou a existir materialmente.
Escola é uma referência às ideias formuladas pelos estudiosos
reunidos por Dom Henrique. Ou seja: quando falamos em Escola
de Sagres, estamos tratando de um conjunto de conhecimentos
náuticos, e não de uma escola como na acepção atual, com
estrutura física, alunos e professores.

●● Feitorias: Entreposto comercial, geralmente fortificado, que os


portugueses iam estabelecendo pelo litoral e onde recebiam
e armazenavam os produtos que seriam transportados para a
metrópole.

●● Escambo: Troca de bens por outros bens, sem a interferência de


dinheiro. No início da colonização portuguesa do Brasil trocava-se
o pau-brasil por miçangas, espelhos, facões etc.

●● Especiarias: As especiarias eram produtos raros (daí o nome:


especiais), provenientes principalmente do oriente, que passaram a
ser consumidos em larga escala pelos europeus desde a época das

30
Cruzadas (Idade Média). As principais especiarias eram: pimentas,
canela, cravo, seda, marfim, cânfora, nós moscada, gengibre,
aloés, incenso, sândalo, perfumes e produtos aromáticos. O
comércio das especiarias do Oriente fez desenvolver o Capitalismo
europeu na sua fase mercantilista, favorecendo tanto Portugal
quanto Espanha a se lançarem nas Grandes Navegações, sendo
favorecidos, também, pela posição geográfica privilegiada, pela
tradição marítima (atividade pesqueira) e pela centralização
política pioneira. Dois foram os principais ciclos de navegação:
leste ou oriental (ciclo dos Portugueses) e oeste ou ocidental (ciclo
dos Espanhóis).

●● Catequese: Ensino formal da religião católica aos nativos. Para


tornar mais eficientes seus esforços de conversão junto aos
indígenas, os portugueses criaram aldeamentos, organizados
pela ordem católica dos Jesuítas. No discurso dos padres
jesuítas, esses núcleos, formados a partir de 1550 na América
portuguesa, também tinham a finalidade de proteger os índios da
escravização promovida pelos colonos, contudo, os índios que
viviam nesses aldeamentos tinham que se submeter culturalmente
aos portugueses, além de terem sua força de trabalho explorada
pelos jesuítas.

Atividades
1. Imagine que você estava na Frota que Pedro Álvares Cabral trouxe ao Brasil,
convidado pela Coroa Portuguesa para registrar os acontecimentos durante a
viagem. Escreva uma carta para D. Manuel I, rei de Portugal, contando o que viu
aqui no Brasil, descrevendo os nativos, a paisagem e as primeiras impressões da
terra. Com esta atividade, pretendemos:

a) Treinar sua escrita, afinal, um professor de História deve ser um bom


escrivão;

b) Exercitar o conhecimento histórico, rememorando os acontecimentos do


período do início da colonização;

c) Exercitar a imaginação histórica, ao colocar-se no lugar de um escrivão no


século XVI. Depois de escrita, poste sua carta na plataforma moodle para ser
apreciada e comentada pelos demais colegas do curso de História - EAD.
2. O diário de bordo era um recurso material muito utilizado na época da expansão
marítima e comercial. Nele se registrava o dia a dia, as dificuldades encontradas
no trajeto marítimo ou na terra, a alimentação consumida, as relações
pessoais, dentre outros registros. Como um dispositivo pedagógico, o diário
serve também para mostrar a visão que temos tanto de nós mesmos quanto

31
do estrangeiro (aquele que é diferente de nós). Dessa forma, você está desafiado a
se imaginar um viajante europeu que veio visitar o Brasil durante os primeiros anos
de colonização. Para organizar o seu diário, você pode lançar mão das próprias
discussões abordadas neste capítulo, bem como na literatura sobre a história do
Brasil. Organize o seu diário de bordo tematicamente, mostrando o que você viu na
economia, na relação entre os índios e os europeus, nas feitorias, na catequização
e na exploração do pau-brasil. Após elaborar o seu diário de bordo (que pode ser
em formato digital), poste-o na plataforma moodle para o conhecimento e discussão
dos demais colegas do curso de História.

3. Releia este capítulo e elabore um mapa conceitual com seis palavras-chave. Para
organizá-lo, você deve entender que os mapas conceituais são representações
gráficas semelhantes a diagramas, que indicam relações entre conceitos ligados
por palavras. Os mapas conceituais servem como instrumentos para facilitar o
aprendizado. Depois de escolher as seis palavras-chaves, você pode postar na
plataforma moodle e interagir com seus colegas a partir das mesmas. Por exemplo:
se uma das palavras escolhidas foi “documentos”, você pode fazer questionamentos
aos colegas do tipo: “Quais os principais documentos utilizados para se contar a
história do Brasil Colonial”? Faça isso com as demais palavras do mapa conceitual.
É um importante instrumento de revisão e de estímulo ao debate.

Dica de Cinema
Os filmes abaixo fazem diversas leituras sobre o Brasil no período colonial.

Caramuru – A Invenção do Brasil, de Guel Arraes (Brasil, 2001)

Hans Staden, de Luiz Alberto Pereira (Brasil, 1999)

Desmundo, de Alain Fresnot (Brasil, 2003)

Brava Gente Brasileira, Lúcia Murat (Brasil, 2000)

Xica da Silva, Carlos Diegues (Brasil, 1976)

Quilombo, Carlos Diegues (Brasil, 1984)

Referências
BOXER, Charles Ralph. O império marítimo português, 1415-1825. São Paulo:
Companhia de Letras, 2002.

BUENO, Eduardo. A viagem do descobrimento. Rio de Janeiro: Objetiva, 1998.

LAIMA, Mesgravis; PINSKY, Carla Bassanezi. O Brasil que os europeus


encontraram. São Paulo: Contexto.

32
MENEZES, Ângela Dutra. O Português que nos pariu. Rio: Relumé-Dumara,
2007.

NETTO, Coelho & BILAC, Olavo. A Pátria Brasileira. Rio de Janeiro: Francisco
Alves, 1940. 27ª edição.

NOVINSKY, Anita. Cristãos novos na Bahia. São Paulo: Perspectiva, 1992.

NOVINSKY, Anita. A Inquisição. São Paulo: Brasiliense, 1990.

PAIVA, José Maria de “Educação Jesuítica no Brasil Colonial” In: 500 Anos de
Educação no Brasil. Belo Horizonte: Autêntica, 2000.

PIERENI, Geraldo. Os Excluídos do Reino: A Inquisição portuguesa e os


degredados para o Brasil - colônia. Brasília: Editora da Universidade de Brasília,
2000.

PRIORE, Mary Del. O livro de ouro da História do Brasil. Rio de Janeiro: Ediouro,
2001.

TODOROV, Tzvetan. A Conquista da América: a questão do outro. São Paulo:


Martins Fontes, 1983.

VILLA, M. A.; FURTADO, J. P. . Caminhos da História: da expansão marítimo-


comercial européia aos nossos dias. 2. ed. São Paulo: Ática, 2003.

33
34
Capítulo 2

Cultura e sociedade
na Colônia: relações
familiares e vida privada

Objetivos
●● Estudar os espaços de sociabilidades familiares na Colônia;

●● Analisar os comportamentos masculinos e femininos na América Portuguesa;

●● Compreender as redes religiosas que faziam parte do cotidiano da sociedade


colonial.

No capítulo anterior, nossa discussão pautou-se nos encontros


e desencontros entre portugueses e nativos brasileiros, dando
destaque ao estranhamento que ambos os povos tiveram com o
contato com o estrangeiro. Dessa forma, estudar bem o capítulo
primeiro deste volume será fundamental para a compreensão deste,
pois nosso objetivo é trabalhar as diversas práticas sócio-culturais da
Colônia Portuguesas, com destaque para o cotidiano da família, da
vida privada e dos trânsitos religiosos que eram muito comuns nesse
contexto histórico. Para isso, abrimos este capítulo com o quadro de
Rugendas (Família de Plantador), no qual o artista representou que os
corpos de ricos e pobres se encontravam cotidianamente na colônia,
sendo a presença escrava uma constante nos modos de viver e de se
relacionar na América Portuguesa.

A família será selecionada neste capítulo para estudarmos outras


relações, tais como a economia, a política e as sociabilidades. Para
inseri-lo nesse espaço de muitos confrontos culturais, vamos iniciar
com uma citação de Tollenare:

Assisti às representações teatrais. As senhoras


de boa sociedade não assistem a elas, e com
razão; [...]. Um dos lados da segunda ordem
de camarotes é exclusivamente reservado às
senhoras; os homens não são neles admitidos.
Este lugar reservado só é ocupado por mulheres de
vida alegre; são poucos sedutoras e ridiculamente
ataviadas (Tollenare apud GOMES, 2004, p. 8).

35
Iniciar nossos estudos a partir de uma iconografia de Rugendas e
de um pequeno fragmento do relato do cronista francês Tollenare,
torna-se importante para nos situar nos códigos culturais que ditavam
as regras de comportamento na sociedade colonial. Nesta, a figura
feminina será fundamental para mostrar as desigualdades de gênero
e as relações de poder sócio-político da época. Relegada aos espaços
do privado (casa, alcova), a presença feminina nas rodas sociais,
como exposto no relato de Tollenare, faz-se de certa forma ausente,
tendo em vista as condutas prescritas para as mulheres no seio da
sociedade colonial. Todavia, as “transgressões” se faziam presentes e
nesse contexto muitos/as puderam representar outros papéis que não
estavam prescritos no script de suas histórias!

Minibiografia
Rugendas: o “retratista” dos Brasis

Johann Moritz Rugendas nasceu na Alemanha em 1802 e faleceu em 1858. Tornou-se


pintor, desenhista e gravador. Desde criança, exercita o desenho e a gravura com o pai,
bem como frequenta o ateliê de Albrecht Adam (1786 - 1862), de 1815 até 1817, quando
ingressa na Academia de Belas Artes de Munique (Alemanha). Incentivado pelos relatos
de viagem dos naturalistas J. B. von Spix (1781 - 1826) e de Martius (1794 - 1868),
vem para o Brasil em 1821, como desenhista documentarista da Expedição Langsdorff.
Abandona a expedição em 1824, mas continua sozinho o registro de tipos, costumes,
paisagens, fauna e flora brasileira, apaixonando-se pelo que ver e pelo que ler sobre o
Brasil, andando por vários lugares, a exemplo de Mato Grosso, Bahia, Espírito Santo e
Rio de Janeiro. Rugendas não realiza nenhuma pintura a óleo em sua primeira estada no
Brasil, privilegia o desenho e ocasionalmente o colore à aquarela. Volta no final da década
de 20 (século XIX) para Europa, onde dedica--se à publicação de sua obra Voyage
Pittoresque dans le Brésil. Vai para a Itália em 1828, onde observa novas técnicas. O uso
de cores e o esboço a óleo chamam sua atenção. Motivado pelo naturalista Alexander
Humboldt (1769 - 1859), Rugendas viaja para o México em 1831, com projeto de
viagem pela América com objetivo de reunir material para nova publicação. A partir de
1834, excursiona pela América do Sul. Em 1845, chega ao Rio de Janeiro, onde retrata
membros da família imperial e é convidado a participar da Exposição Geral de Belas
Artes. No ano seguinte, parte definitivamente para a Europa. Em troca de uma pensão
anual e vitalícia, cede sua coleção de desenhos e aquarelas ao Rei Maximiliano II, da
Baviera.

Fontes: Biografia de Johann Moritz Rugendas http://www.sampa.art.br/biografias/


johannmoritz/; AMBRIZZI, Miguel L. Entre olhares - O romântico, o naturalista. Artistas-
viajantes na Expedição Langsdorff: 1822-1829-1920, Rio de Janeiro, v. III, n. 4, out.
2008. Disponível em: <http://www.dezenovevinte.net/artistas/viajantes_mla.htm>.

Partindo dessa reflexão, convidamos você, prezado(a) estudante, a


caminhar conosco nas trilhas das sociedades coloniais, observando

36
os códigos de comportamento, as práticas do dia a dia e, por
conseguinte, as transgressões instituídas pelos personagens dessa
instigante história. Vamos iniciar nossa jornada?

Muitos de nós certamente estranharíamos a vida na sociedade


colonial, seus costumes, práticas e comportamentos. Como seria
se tivéssemos vivido naquele período? Com certeza, a maioria de
nós não gostaria de ter vivido naquele contexto marcado pela forte
exploração político-econômica de Portugal, com poucos espaços
de sociabilidade, sem energia elétrica, sem água e gás encanados,
sem internet e sem tantas outras coisas. Esse estranhamento para
com a Colônia acontece porque vivemos num período histórico onde
outros valores vigoram, estabelecendo, assim, outras opções de vida
e moradia. Mas para iniciar nosso passeio pela sociedade colonial
brasileira não podemos nos esquecer de lançar um olhar histórico
sobre essas práticas, compreendendo, assim, a lógica que regia a
sua constituição. Vamos lá?

O relato que abre esse capítulo, provavelmente, deve ter deixado


algumas dúvidas em vocês. Afinal, ir ao teatro hoje não representa um
papel tão “negativo” perante os códigos comportamentais. Entretanto,
temos que atentar para as regras que constituíam as mentalidades
coloniais, compreendendo esses relatos como imagens desenhadas
pelos seus contemporâneos.

Nos idos do século XVIII, marco temporal em que se insere o relato de


Tollenare, a figura feminina ocupava lugar diverso do que ocupa hoje
nas rodas sociais. Nesse período, o papel das mulheres restringia-se,
na maioria das vezes, ao aspecto familiar e doméstico, como foi muito
bem estudado por Laima Mesgravis no livro “Honradas e Devotas,
mulheres da Colônia”. Enquanto a figura masculina ocupava-se da
provisão material, cuidando da agricultura, da pecuária e de outros
afazeres considerados “públicos”, a mulher era responsável pela
provisão da moral familiar através dos ensinamentos do que era
considerado “bom costume”. Quando casada, a mulher deveria
alimentar os filhos com o “pão da Palavra”, isto é, rezar, frequentar
a missa quando havia, ensinar os filhos no caminho da religião
católica. A mulher honrada deveria dar “honradas” contribuições para
a formação da família. Como historiadores, devemos relativizar essa
visão binária da sociedade colonial, pois muitas mulheres brancas
também se ocupavam de atividades na agricultura, na pecuária e
na criação de animais domésticos. Nem tudo era privado para as
mulheres, principalmente até o século XVIII.

37
Homens casados e filhos adultos ocupavam-se de diversas
atividades. Além das citadas acima, eles poderiam ser negociantes ou
atravessadores de carne, de sal, de aguardente e bebidas do reino,
um comércio cada vez mais lucrativo em São Paulo, no Rio de Janeiro
e nas Minas Gerais. Poderiam ser, ainda, empregados da Coroa, o
que lhes dava status numa sociedade altamente hierarquizada. Mas
para ocupações em cargos públicos, era importante obter atestados
de limpeza de sangue (judeus, ciganos e degredados eram proibidos,
muitas vezes, de ocuparem tais cargos), receber títulos da Ordem
de Cristo, pertencer às ordens mais privilegiadas das irmandades do
Carmo, do Santíssimo Sacramento ou das ordens terceiras de São
Francisco.

A Ordem de Cristo – a legitimação de papéis e títulos coloniais


A Ordem de Cristo é uma instituição religiosa que foi criada em Portugal
como Ordo Militiae Jesu Christo pela bula Ad ae exquibus de em março
de 1319 pelo papa João XXII, pouco depois da extinção da Ordem do
Templo. Na época, governava Portugal D. Dinis. O objetivo era refundar
a Ordem do Templo que a anterior bula papal de Clemente V havia
condenado à extinção. Recebeu o nome de Ordem de Nosso Senhor
Jesus Cristo e foi herdeira das propriedades e privilégios da Ordem do
Templo.
Apesar de ter sido extinta pelo Decreto de 15 de Outubro de 1910,
juntamente com as “antigas ordens nobiliárquicas”, a mesma foi
restabelecida em 1918, ficando então “destinada a premiar os serviços
relevantes de nacionais ou estrangeiros prestados ao país ou à
humanidade, tanto militares como civis”.
A Cruz da Ordem de Cristo marcava as velas das caravelas que
exploravam os mares desconhecidos.

Nesse contexto, a Igreja católica, enquanto instituição a serviço do


projeto de colonização atua como matriz disseminadora dos conceitos
e preceitos que devem guiar a educação feminina e a masculina
nas terras do novo mundo. Aliás, muito mais que educar homens e
mulheres, a Igreja procurava vigiar as vidas, buscando os “infiéis”

38
para a conversão. Índios, escravos, judeus, ciganos e outros povos
que não confessavam o catolicismo, eram perseguidos pelos jesuítas,
uma empresa católica a serviço do projeto político de Portugal. Se
não se convertessem à fé de Roma, poderiam ter suas vidas ceifadas
pela Inquisição. Da mesma forma, as crianças também eram alvo
do ensino catequizador, principalmente por parte da Companhia de
Jesus:

Além da conversão do “gentio” de um modo geral,


o ensino das crianças (...) fora uma das primeiras e
principais preocupações dos padres da Companhia
de Jesus desde o início da sua missão na América
Portuguesa. Preocupação que, aliás, também
estava expressa no Regimento do governador Tomé
de Sousa, no qual o rei dom João III determinava
que “aos meninos porque neles imprimirá melhor
a doutrina, trabalhareis por dar ordem como se
façam cristãos (CHAMBOULEYRON, 2006, p. 55)

A instituição do matrimônio enquanto normatização das condutas


dissonantes do projeto político colonial de Portugal encontra na figura
materna o cerne do projeto colonizador ao unir mulher, disciplina e
família em torno da doutrinação dos passos e espaços, como afirma
Laima Mesgravis em “História da Vida Privada no Brasil”: “Assim
como os jardins, as gelosias ou rótulas de treliça de madeira deram
margem a interpretações sobre o confinamento feminino que tanto
havia impressionado os estrangeiros em visita aos núcleos urbanos da
Colônia” (1998, p. 97). Vejamos na figura abaixo uma representação
do isolamento feminino nas elites coloniais:

As janelas com gelosias são um marco do controle e da exclusão feminina na elite colonial
(Fonte: Laura de Mello e Souza, História da vida privada no Brasil, 1998, p. 97).

39
Saiba Mais
A Companhia de Jesus

Esta Companhia foi fundada no século XVI por Inácio de Loyola. Em 1534, acompanhado
de seis discípulos, o espanhol Inácio de Loyola pronuncia em Montmartre (Paris)
votos de pobreza e castidade, formando um novo instituto religioso que passou a ser
denominado de Companhia de Jesus, submetendo-se, em Roma, ao serviço da Santa
Sé. A Companhia de Jesus, cujos membros são conhecidos como jesuítas, não era uma
ordem religiosa como as demais existentes até então, pois seus combativos integrantes
tinham uma organização quase militar: a) consideravam-se soldados da Igreja Católica
Romana; b) defendiam a infiltração de seus membros em todas as atividades sociais e
culturais; c) eliminavam aqueles que pusessem em risco os princípios do catolicismo,
a exemplo dos judeus e cristãos novos. Em setembro de 1540, a Companhia de Jesus
recebeu a aprovação oficial do Papa Paulo III, na bula Regimini Militantis ecclesiae.
Seus membros deviam prestar voto especial de obediência ao sumo pontífice, a quem
dependiam diretamente.

O papa Paulo III aprova a nova Ordem em 1540, mediante a apresentação por Inácio do
esboço de uma regra, designada Formula Instituti. Diversas missões são empreendidas
pela Companhia em toda a América, especialmente nas colônias espanholas, no Brasil,
e no Canadá francês. Na América Latina, face à brutalidade dos colonos sobre os Índios
e à constante mobilidade das populações, os Jesuítas davam-lhes formação religiosa
e instalavam-nos em aldeias geridas por um sistema comunitário no qual os Índios
participavam. O filme A Missão, dirigido por Rolland Joffé, em 1986, apresenta uma
leitura dessa relação entre jesuítas e aldeamentos indígenas.

Fontes:

CÂMARA, Jaime de Barros. Apontamentos de História Eclesiástica. 3 ed.,


Petrópolis: Vozes, 1957.

LEITE, Pe. Serafim. História da Companhia de Jesus no Brasil. 10 vols.: Lisboa/


Rio de Janeiro: Livraria Portugália/Civilização Brasileira, 1950.

Entretanto, como nos aponta Del Priore (1989), as vivências nas


famílias coloniais apontam outras histórias, para além das prescritas
pelo poder institucional; configurando, assim, a existência de mães
solteiras na chefia do lar ao passo do abandono do companheiro
na constante instabilidade inerente às sociabilidades coloniais.
Dessa maneira, a instituição familiar era muito mais complexa do
que imaginamos. Em casa, as mulheres das famílias que possuíam
melhores condições financeiras, principalmente as que moravam
nas capitais, se preocupavam com a decoração, a louça, cama
e mesa. Para satisfazer os desejos dessas mulheres, muitos
maridos importavam lustres de cristal, moringas de vidro, jarras,
espelhos, pratos, terrinas, travessas, compoteiras vindas da Índia.

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Acrescentem-se as canecas de louça douradas da Índia com
pires, xícaras, sopeira de louça da China xícaras e pires franceses,
espelhos redondos vindos da Inglaterra. “Se as elites endinheiradas
e ligadas ao comércio internacional (...) sabiam ou não fazer bom uso
dos utensílios que adquiriam não se pode afirmar. Mas eles estavam
cada vez mais presentes nos lares dessa ‘gente de bem’”. Enquanto
isso, as pessoas pobres podiam apenas ver e desejá-las. (MALERBA,
2000, p. 162-163)

O cenário vai ficando cada vez mais plural, apontando para a


existência de modelos familiares diversos dos abordados pela
historiografia dita “tradicional”. Mães solteiras, cujos filhos, muitas
vezes frutos de relações sexuais pré-matrimoniais seguidas da fuga
do noivo, acabam sendo agregados a outras famílias, evidenciando,
assim, a constituição de relações familiares diversas dos modelos
disseminados pela igreja e, por vezes, apropriado pelas elites. Há
de destacar, também, as famílias escravas que, muitas vezes, não
seguiam os preceitos estabelecidos pelo cristianismo, embora
constituíssem famílias. O historiador Robert Slenes combate e
desconstrói a opinião, prevalecente entre observadores do passado
(Florestan Fernandes e Roger Bastide), e muitos historiadores
recentemente (Manolo Florentino, Roberto Góes, Hebe Mattos e
Flávio Mota), de que os escravos eram sexualmente promíscuos, não
tendo um mínimo de vida familiar normal (SLENES, 1999).

Mesmo entre as elites as relações afetivas não eram tão estáveis


como possamos imaginar. Apesar de constante vigilância por parte
da Igreja havia casos em que mulheres da própria elite acabavam
por contrair filhos “indesejáveis, frutos de relações “ilegais”. A saída
consistia na entrega da criança à chamada “roda dos enjeitados” ou
“roda dos expostos” (ver figura a seguir) instituída pelas Santas Casas
numa atitude combativa ao infanticídio praticado no período colonial.

41
Não eram apenas as crianças filhas de relações “ilícitas” das mulheres
de elite que eram abrigadas pela “roda dos expostos”. Muitas mães
pobres, livres e/ou escravas recorriam às Santas Casas na busca
de alternativas para seus/suas filhos/as que não a morte. Del Priore
(1989) nos convida a refletir acerca das concepções de amor e família
que permitiam a essas mães improvisar o carinho e a ternura pelos
seus frente às dificuldades materiais que poderiam por em jogo a
própria sobrevivência da criança.

Dentre outros motivos que contribuíam para o abandono de crianças


nas “Santas Casas” decorre a própria miséria material que, segundo
Del Priore (1989), acabou caracterizando a sociedade escravista
colonial. O abandono consistia, nesse caso, na tentativa de controlar
a natalidade e, por conseguinte, as despesas materiais que uma
“boca a mais” representaria para essas famílias.

Saiba Mais
A roda dos expostos: a história da exclusão da infância no Brasil colonial

A roda dos expostos é um dispositivo que surgiu na Itália durante a Idade Média.
Inicialmente era utilizada para manter o máximo de isolamento dos monges reclusos (ao
receber oferendas como alimentos e roupas), mas torna-se, posteriormente, um meio
para preservar a identidade daqueles que depositam nela bebês enjeitados. O nome
“roda” se refere a um artefato de madeira fixado ao muro ou janela do hospital, no qual
era depositada a criança, sendo que, ao girar o artefato, a criança era conduzida para
dentro das dependências do mesmo, sem que a identidade de quem ali colocasse o
bebê fosse revelada.

Durante o Brasil Colônia, o método é trazido para cá com a finalidade de acolher órfãos,
seguindo a tradição ibérica, segundo a qual caberia à Santa Casa de Misericórdia o
monopólio da assistência à infância abandonada contando, no entanto, com o auxílio da
respectiva Câmara Municipal. Desde então, podemos observar recorrentes tensões entre
a entidade religiosa e o poder local, principalmente pela obrigação pública de contribuir
financeiramente para a manutenção da Santa Casa.

Após ser recebida pela Santa Casa, a criança era criada por uma ama-de-leite geralmente
até os três anos. As amas, mulheres pobres e na maioria sem nenhuma instrução
pedagógica, recebiam um pagamento pelos serviços prestados o que podia prolongar o
período de permanência dos pequenos. Essa situação dava margem para diversos tipos
de fraudes, como mães que abandonavam seus bebês e logo em seguida se ofereciam
como nutrizes. Por falta de recursos, a Santa Casa procurava logo empregar os órfãos.
Os do sexo masculino iam trabalhar geralmente nas Companhias de Marinheiros ou no
Arsenal de Guerra, nos quais conviviam com presos e degredados e as meninas como
domésticas.

Em 1828, a promulgação da Lei dos Municípios isenta a responsabilidade da Câmara

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Municipal para com os pequenos abandonados nas províncias onde houvesse uma Santa
Casa de Misericórdia. Isto significa uma das etapas de um processo de transformação
do caráter caritativo da assistência para uma perspectiva mais filantrópica, com maior
intervenção do Estado. Inicia-se, assim, uma fase filantrópica assistencialista que pensa
a educação “moralizante” das crianças como meio fundamental de torná-las úteis e
de resguardar a própria sociedade. Na verdade, filantropia e caridade se permeiam,
adquirindo características mútuas: de um lado as estratégias filantrópicas de prevenção
da desordem e de outro, os preceitos religiosos da caridade.

É também durante o século XIX que a medicina social ganha maior poder político e
respaldo social através da crescente intervenção dos médico-higienistas com suas
inúmeras críticas à estrutura urbana e moral a sua volta. No que concerne à Casa dos
Expostos, apontavam principalmente as altas taxas de mortalidade e a dinâmica de
aleitamento da ama-de-leite, contando com o poder jurídico, que já esboçava outros
meios de intervenção mais corretiva e moralizante.

Para saber mais sobre este assunto, você pode consultar:

FREITAS. Marcos. (Org.). História Social da Infância no Brasil. São Paulo:


Cortez, 1997.

MARCILIO, Maria L. História social da criança abandonada. São Paulo: Hucitec,


1998.

SOUZA, Laura de Mello e (Org.). História da vida privada no Brasil: Cotidiano e


vida privada na América portuguesa. São Paulo: Cia. das Letras, 1998. Vol. 1.

Nesse cenário, marcado pela instabilidade das relações afetivas,


como se pode pensar a constituição de laços familiares? Quais os
valores que norteavam os códigos de sociabilidade na colônia? Como
instituir os valores europeus nas terras do “novo mundo”? Quais os
mecanismos utilizados para levar ao fim e ao cabo tal empreitada?
Essas são algumas das indagações que perpassam nossa reflexão e
que procuraremos elucidar ao longo desse estudo.

Para iniciar gostaríamos de chamar a atenção do leitor acerca da


concepção de família que norteia as vivências no Brasil colônia.
Família, neste caso, difere da concepção moderna inaugurada pelas
revoluções burguesas do século XVIII e XIX. Ou seja, a família não
constitui um núcleo homogêneo no qual se centra pai, mãe e filhos;
mas é composto por uma diversidade de personagens que circulam na
mesma casa, muitas vezes frutos de relações “ilícitas” entre senhores
e escravas (ver figura a seguir), outras vezes agregados pelas relações
de compadrio, cujos pais e/ou mães não podiam criar. O sociólogo
pernambucano Gilberto Freyre estudou as relações familiares no
“Nordeste” açucareiro na obra “Casa Grande & Senzala”, analisando
o cotidiano das famílias e de demais sujeitos que transitavam entre o

43
engenho e as senzalas, sejam estes senhores, trabalhadores livres,
escravos, viajantes, clérigos, comerciantes, dentre outros.

As relações de concubinato apontam outra vertente nas variadas


concepções de família que perpassavam as mentalidades coloniais. A
mobilidade geográfica e, por conseguinte, a fixação tênue do “homem”
à terra conferiu novas roupagens à própria concepção de família,
uma vez que um mesmo homem poderia ter diversas mulheres em
pontos isolados da colônia. Para coibir tais práticas, consideradas
criminosas pelas Ordens Filipinas aqui vigentes, a Igreja Católica
institui o discurso do casamento como antídoto à “lascividade” que
caracterizaria as relações afetivas na colônia.

Referências
ASSUNÇÃO, Paulo de. Negócios jesuíticos: o cotidiano da administração dos
bens divinos. São Paulo: Edusp, 2004.

BITTAR, Marisa. Infância, catequese e aculturação no Brasil do século XVI. Revista


Brasileira de Estudos Pedagógicos, Brasília, v. 81, n. 199, p. 452-463, set./dez.
2000.

KARNAL, Leandro. Teatro da Fé. São Paulo: Hucitec, 1998.

LONDOÑO, Fernando Torres. Escrevendo cartas. Jesuítas, escrita e missão no


século XVI. Revista Brasileira de História. São Paulo, v. 22, nº 43.

VIANNA, Hélio. A educação no Brasil. Revista Brasileira de Estudos


Pedagógicos. Rio de Janeiro, vol. VI, n. 18, p. 372-392.

Ao conferir ao casamento o espaço “sagrado” na constituição da


família colonial, a Igreja agrega a essa instituição outros discursos que
visam normatizar as condutas privadas nos espaços de sociabilidade
da colônia. Dentre a gama de valores agregados à família colonial,
a virgindade feminina ocupa espaço fundamental no controle da
sexualidade e, por conseguinte, na “melhor” configuração do modelo
familiar que se desejava implantar. Conforme Ronaldo Vainfas, os
documentos elaborados pela Igreja Católica (visitas episcopais,
processos-crime, correspondências jesuíticas, dentre outros)
permitem conhecer as intimidades sexuais vividas no passado. Diz o
autor:

A sexualidade pluriétnica determinada pelo estilo


da colonização portuguesa andou, portanto, de
braço dado com o processo de aculturação de

44
mão dupla deflagrado no século XVI (...) Emblema
maior da parceria entre sexualidade luso-indígena
e confronto-intercêmbio cultural, encontramo-lo
nos mamelucos originados dessas uniões mistas.
(VAINFAS, 1997, p. 231).

Nesse intercâmbio cultural, a promiscuidade era emblemática. O


padre Manoel da Nóbrega, em sua correspondência para Portugal,
reclamava que os homens, não satisfeitos em fazer suas escravas
de mancebas, ainda pediam aos índios outras mulheres para o seu
prazer sexual. Os padres, caso fossem admoestá-los para que se
casassem com uma só mulher, eram ofendidos, ameaçados, e até
perseguidos pelos colonos mais escandalosos. Em uma de suas
epístolas, ao mostrar a tolerância de certos padres com os “pecados
da carne”, Manoel da Nóbrega é enfático: “Seus clérigos absolvem
quantos amancebados há e dão-lhes o Senhor e o seu pregador,
que é o visitador, prega que pequem e se levantem, fazendo-lhes o
caminho do céu mui largo e Cristo Nosso Senhor diz que é estreito,
e por outra parte leva-lhes de penas o que têm.” (LEITE, 1954, p 35).

O casamento na Colônia é compreendido pela Igreja e pela


sociedade como uma união entre o “homem” e “Deus”. Ou seja, a
indissociabilidade atribuída a essa instituição ganha contornos divinos
ao passo de sua aproximação com a aliança “homem-Deus” e,
consequentemente, a fidelidade ao outro. Tal premissa não esvazia
a existência de traições no seio das relações familiares em plena
vigilância da Igreja, principalmente dos homens que, claramente,
possuíam concubinas, escravas como parceiras sexuais e as
prostitutas. A análise das legislações e suas respectivas penas aos
infratores deixa claro o papel que o casamento e a família ocupam
no imaginário cultural colonial, bem como na gestação do ideário
colonizador lusitano.

Faz-se necessário ressaltar que tais penalidades divergem com


base no gênero infrator, bem como na posição que este ocupa na
hierarquia social da colônia. Basta nos debruçar sobre o Livro V das
Ordenações Filipinas e suas consequentes punições para o caso de
adultério da mulher. Sob o título Do que dorme com mulher casada, o
presente capítulo evidencia as punições ao homem que infringisse os
preceitos morais em que se assentava o casamento:

Mandamos que o homem que dormir com mulher


casada, e que em fama de casada estiver, morra
por isso. Porém, se o adúltero for de maior condição

45
que o marido dela, assim como se o tal adúltero
fosse fidalgo e o marido cavaleiro ou escudeiro e o
marido peão, não farão as justiças nele execução
até no-lo fazerem saber e verem sobre isso nosso
mandado (PIMENTEL, 2007, p. 43).

Enquanto a “desonra” de um marido é punida com a morte do amante


e da esposa, ao adultério de um homem casado sequer recebe
esta denominação, tal como podemos observar no capítulo Dos
Barregueiros Casados e de suas Barregãs:

Ordenamos que o homem casado que tiver barregã


teúda e manteúda seja degredado pela primeira
vez por três anos para a África, e da prisão pague
a quarentena da valia de todos os seus bens,
tirando a parte que a sua mulher pertencer/ E
que a mulher que estiver por manceba teúda e
manteúda de algum homem casado, pela primeira
vez seja açoitada pela vila com braço e pregão, e
degredada por um ano para Castro-Marim e mais
pagará a metade da quarentena que seu berregão
deveria pagar se pelo malefício condenado fosse
(PIMENTEL, 2007, P. 44).

Comparando os dois textos, podemos perceber que a legislação


confere atenção especial ao homem. No adultério cometido pela
mulher, a legislação vai, de início, ocupar-se com o destino do
amante que quebra as normas de propriedade do marido sobre a
mulher. Observa-se, assim, uma inversão de valores, levando em
consideração a hierarquia que o amante e o marido ocupam no
seio da sociedade colonial como forma de definir a gravidade do ato
cometido.

Nesse contexto, a representação da figura feminina enquanto agente


desviante por “natureza” confere aos códigos sociais a necessidade
de “domesticá-la” e, consequentemente, doutriná-la de acordo
com os preceitos de normatização familiar no espaço do projeto de
colonização em voga.

Valores como a castidade para as solteiras e fidelidade para as casadas


evidenciam o próprio ideário que guiava a construção do projeto
familiar no “Brasil” colonial. Tal empreitada realizar-se-ia mediante a
adesão feminina aos preceitos que deveriam constituir o sucesso do
projeto colonizador: o povoamento das áreas conquistadas, através
da concepção de uma prole “legítima” e “branca” e a defesa dos
preceitos católicos ante a expansão reformista em voga nas terras do

46
“novo mundo” (DEL PRIORE, 1993).

Gomes (2004) evidencia, assim, a existência de dois papéis


atribuídos à figura feminina para a “bonança” da metrópole, qual seja:
a concepção de colona-mãe e colona-devota. A “responsabilidade”
atribuída à mulher encontra na concepção da colona-mãe a própria
gestação que possibilitaria dar a luz à colônia.

Evidentemente que estamos aqui a nos referir à mulher branca da


elite colonial, cujo exemplo modelar serviria de base às demais na
construção do projeto familiar que se queria implementar na colônia.
Nesse cenário, a doutrinação dos filhos perante os preceitos morais
que perpassavam o imaginário colonial constituía o elemento norteador
que conferiria à colonização o sucesso esperado. Não podemos
esquecer o papel que a Igreja Católica, mediante as doutrinações
recomendadas pelo Concílio de Trento, ocupou na aliança formada
entre o estado colonial na aventura trilhada nas “novas terras”.

Você Sabia?
O Concílio de Trento é o nome atribuído a uma série de reuniões de cunho religioso
convocada pelo papa Paulo III em 1546 na cidade de Trento, na Itália. No início do século
XVI, com o surgimento e expansão do protestantismo e da Reforma Protestante, diversas
modificações atingiram a Igreja Católica. Uma reação a tal expansão, denominada
“Contra-Reforma” foi guiada pelos papas Paulo III, Júlio III, Paulo IV, Pio V, Gregório XIII
e Sisto V, buscando combater a expansão da Reforma Protestante e das ideias de Martin
Lutero. Além da reorganização de várias comunidades e ordens religiosas já existentes,
outras foram criadas, dentre as quais a Companhia de Jesus ou Ordem dos Jesuítas, tendo
como fundador Santo Inácio de Loyola, tendo forte atuação no Brasil durante o projeto
de colonização. Assim, o Concílio de Trento agiu no Brasil ao lado da Coroa Portuguesa.

O Concílio de Trento condenou a doutrina protestante da justificação pela fé divulgada


por Lutero, proibiu a intervenção dos príncipes nos negócios eclesiásticos e a
acumulação de benefícios, além de definir o pecado original. Os sete sacramentos foram
mantidos, assim como o celibato clerical, indissolubilidade do matrimônio, o culto dos
santos e relíquias, a doutrina do purgatório e as indulgências (estes últimos condenados
por Lutero), recomendando a criação de escolas para a preparação dos que quisessem
ingressar no clero, denominando-as seminários.

Fontes para consulta:

GILMONT, J. F. Reformas protestantes e leituras. In: CAVALLO, G.; CHARTIER, R.


(Orgs.). História da leitura no mundo ocidental. São Paulo: Ática, 1999.

JARDILINO, José Rubens L. Lutero e a Educação. Belo Horizonte: Autêntica,


2006.

LUIZETTO, Flávio. Reformas Religiosas. São Paulo: Contexto, 1989.

47
SKINNER, Quentin. As fundações do pensamento moderno. São Paulo:
Companhia das Letras, 1996.

Nesse cenário, a vida privada, não completamente separada do


espaço “público”, é constantemente vigiada pela Igreja na busca
de doutrinar corpos e mentes supostamente “desviantes” das
ordens tridentinas. Dessa forma, a sexualidade adquire um papel
fundamental na propagação dos “bons costumes” que deveriam guiar
a família colonial, figurando nos autos dos processos que circulavam
no “Tribunal do Santo Ofício”. Fonte de reprodução, o sexo deveria
ser revestido da aura “sagrada”. Caso desviasse de algum desses
preceitos o relato ou delato à Inquisição far-se-ia uma possibilidade
de repúdio à instituição e, porque não, institucionalização da família.
Conforme Patrícia Cardoso, a religiosidade popular, frouxa e em
muito misturada com ritos e costumes pagãos, necessitava, na visão
dos Jesuítas, ser refreada, moldada, depurada. É nessa atmosfera
de misturas, “que a Inquisição Ibérica passa a se preocupar com os
comportamentos, particularmente com os comportamentos sexuais”.
Era estes que, de alguma forma, infligiam os “santos mandamentos”
e as convenções sociais, e que, portanto, configuravam erros de fé.
(2004).

Os jesuítas, representantes das ordens tridentinas, se destacaram


em tentar, por todos os meios, transformar a terra brasilis em parte
legítima da Cristandade, estimulando uniões sacramentadas e
um modo de vida regrado, nos moldes do cristianismo português.
Porém, como vimos na correspondência de Manoel da Nóbrega
os representantes do clero viram-se frustrados pelos interesses
mercantis da colonização, bem como pelo hibridismo cultural que a
América Lusitana possuía. Este pensamento, contudo, é criticado por
Luiz Felipe de Alencastro, que acredita que a empresa evangelizadora
dos missionários incluía, também, o caráter mercantilista do esforço
de colonização, justificando a compatibilidade entre escravidão e
catolicismo (ALENCASTRO, 2000).

Para tanto, fazia-se necessário uma completa vigilância feminina,


tal como prenunciada pelo relato de Tollenare que abre o presente
tópico. Relegadas ao espaço “privado”, as mulheres brancas, de elite,
encontravam nos espaços “públicos” a “ameaça” representada por
outras mulheres (escravas, forras, prostitutas, etc.) na configuração
do projeto familiar gestado pela coroa e pelo Concílio de Trento na

48
colonização do “novo mundo”.

Tal premissa não impediu a existência de múltiplas formas de se


experenciar as relações familiares e as vivências religiosas. No âmbito
“legal” ou “ilícito” muitas foram as formas de família que circularam
nos espaços de sociabilidade da colônia, configurando, assim, novos
olhares, histórias e memórias que as tornam possíveis de serem
contadas.

A colônia portuguesa: relações de


poder e tramas religiosas
Passear pelas tramas religiosas estabelecidas nas relações de poder
que caracterizam as vivências no período colonial constitui um dos
eixos problematizadores de nossas reflexões ao longo deste capítulo.
Para tanto, faz-se necessário partir do imaginário social e cultural
que inaugura a modernidade, vendo neste cenário o desenrolar de
múltiplas histórias e trajetórias que configuram o tema exposto. Vamos
começar nossa viagem?

Partindo desse pressuposto, retomamos às transformações que


aconteciam no continente europeu e que adentravam às tramas de
sociabilidade na colônia lusitana. Nesse contexto, a reação católica
aos movimentos reformistas encabeçados por Martinho Lutero
encontrava nos tribunais da “Santa Inquisição” a instituição necessária
para normatizar as ebulições sócio-religiosas que pareciam não se
conter perante as práticas de heresia detectadas pelas instituições
em diversas partes do “velho” e do “novo” mundo.

Referências
CALAINHO, Daniela. Agente da fé. São Paulo: Edusc, 2006.

CHALOUB. Sidney. Visões da liberdade, São Paulo: Companhia das Letras, 1990.

CHICANGANA-Bayona; GONZÁLEZ Sawczuk, Bruxas e índias filhas de Saturno:


arte, bruxaria e canibalismo. Rev. Estud. Fem., Ago 2009, vol.17, no.2, p. 507-
526.

GUIMARAES, Antonio Sérgio Alfredo. Preconceito de cor e racismo no Brasil.


Rev. Antropol. [online]. 2004, vol.47, n.1, pp. 9-43.

KNAUSS, Paulo. No rascunho do Novo Mundo: os espaços e os personagens


da França Antártica. História, 2008, vol.27, no.1, p. 143-153.

49
RESENDE, Maria Leônia Chaves de; JANUÁRIO, Mayara Amanda TURCHETTI,
Natália Gomes De jure sacro: a inquisição nas vilas d’El Rei. Varia hist., Jun
2011, vol.27, no.45, p. 339-359.

SANTOS, Georgina Silva dos. A milícia da Inquisição: familiares do Santo


Ofício no Brasil colonial. Hist. cienc. saude-Manguinhos, Jun 2007, vol.14, no.2,
p. 607-611.

Mas que práticas heréticas são estas que atravessam o atlântico


e repercutem na terra brasilis? A princípio deve se ter em mente o
que o vocabulário heresia ocupa no seio da gestação da sociedade
moderna. Jean Delumeau (1999) caracteriza tal vocábulo mediante
a sua aproximação com um “direito de escolha” que divergia da
norma estabelecida pela doutrina católica, agora mais que nunca
ameaçada pelo reformismo protestante. Ou seja, quaisquer práticas
que “escapassem” às normatizações prescritas pela conduta católica
configuravam práticas “heréticas”, sujeitas, por conseguinte, às mais
severas punições estabelecidas pelo “Tribunal do Santo Ofício”,
órgão-mor das investigações e condenações inquisitoriais.

No Brasil, homens e mulheres que não professassem a religião


católica, tais como judeus, escravos e afrodescendentes, feiticeiras,
dentre outras categorias, eram alvos da intolerância religiosa instituída
pelo Concílio de Trento. Sob a sombra do medo, vários personagens
praticavam seus rituais religiosos e mágicos às escondidas. Além
disso, bígamos, sodomitas, fornicários passam a figurar como
candidatos a “hereges” mediante a adoção de práticas “desviantes”
das normas instituídas pela doutrina tridentina.

Esse conjunto de práticas “subversivas” abarca desde cultos


religiosos detectados como pagãos até as mais íntimas vivências que
perpassavam os cotidianos em tempos de doutrinação para a fé cristã.
Rituais de magia são considerados como indícios de “bruxaria” e suas
praticantes são condenadas a arder nas chamas da fogueira nos
chamados “autos de fé”, como eram denominadas as demonstrações
públicas do suplício (Delumeau, 1999).

Nesse contexto, a Igreja católica é chamada a reordenar seu aparato


institucional, delimitando novas diretrizes a combater tanto as ideias
protestantes em disseminação quanto a prática de heresias e
outros “desvios” da conduta figurada pelo poder institucional. Nessa
reordenação, os fieis são chamados à devoção dos santos, ao culto
às relíquias e a oração pelas almas. No século XVIII, o bispo D.

50
Antonio do Desterro, do Rio de Janeiro, possuía a maior coleção de
relíquias no Brasil, “incluindo lasquinhas da coluna da flagelação e da
cruz de Cristo, um fio de cabelo de Nossa Senhora, pedacinhos dos
ossos de todos os apóstolos e de uma infinidade de mártires” (MOTT,
1998, p. 173). Seu relicário, que até hoje é conservado no mosteiro
de São Bento, possuía 114 nichos. Cada devoto montava sua própria
“corte celestial”, incluindo, além das relíquias, anjos da guarda, santos
protetores e prediletos, ex-votos, dentre outras “tábuas de salvação”.

A presença dos jesuítas na colônia lusitana é indício dessa


preocupação da Igreja em combater a expansão das “heresias” nas
terras do “novo mundo”, normatizando, assim, as práticas religiosas
que divergissem da orientação institucional. Numa terra onde a
mobilidade espacial era dificultada pelas adversidades de locomoção,
a atuação jesuíta encontrava dificuldades de circulação e, por
conseguinte, de normatização das supostas condutas “heréticas” que
perpassavam as sociabilidades coloniais.

Soares (2001) vem chamar atenção para a existência de um


catolicismo popular, onde as ordens teológicas e do direito canônico
caminhavam lado a lado com certa intimidade para com os/as santos/
as, expressos, por exemplo, na decoração das casas (ver figura
abaixo) com imagens sacras, amuletos e quadros que sinalizavam a
presença do “sagrado” no lar.

Porém, “sagrado” e “profano” caminham lado a lado nessa história,


como, por exemplo, nos mostra Mott (1999) ao falar dos xingamentos
à Virgem e aos “maus tratos” com os ídolos, caso não atendessem
seus intentos. Trancafiá-los em baús escuros ou pô-los de ponta a
cabeça consistia numa tática certamente utilizada para aqueles/as
que encontravam no “sagrado” uma proximidade com suas práticas
“profanas” cotidianas. Além de Mott, Gilberto Freyre também aborda,
em Casa Grande & Senzala, essas práticas em relação ao panteão
católico aqui no Brasil.

Externar a fé era uma constante no imaginário religioso e cultural da


colônia. Evidenciada através das penitências, a relação estabelecida
com a autoridade divina fazia-se presente através dos martírios
(autoflagelo com silício), doações materiais em vida ou post-mortem,
como também pelo recolhimento no espaço do lar em busca de uma
relação mais próxima com o “sagrado”. As famílias mais ricas davam-
se ao luxo de construírem um quarto dos santos. As mais pobres
contentavam-se com os oratórios colocados em algum lugar da casa,

51
principalmente nos quartos ou na alcova do casal.

O oratório funcionava como um tipo de relicário, no qual eram expostos


e conservados, além das eventuais relíquias (lascas do Santo Lenho,
pedacinhos da coluna onde Cristo foi açoitado, pedacinhos de ossos de
algum mártir cristão e, às vezes, um pouco do leite em pó da Virgem
Maria), talismãs tolerados pela Igreja católica (rosa-de-jericó, folha de
arruda, chifre de animal), medalhinhas de santos e, um número grande
de santos e santas. Quando o número de objetos era grande e a família
possuía posses econômicas, chegava-se a construir uma capelinha ou
ermida. Lá, multiplicavam-se as orações, os pedidos e o número de
deuses católicos.

Mott (1999) aponta a existência de donzelas recolhidas que, mesmo


não estando nos raros conventos da América Portuguesa, faziam
questão de viver uma vida de penitências e orações em suas próprias
casas, numa clara demonstração de suas preocupações com as
práticas de oração e penitência. Dentre estes casos, se inserem as
irmãs Maria de Castro e Beatriz da Costa que, vivendo na comarca
de Alagoas no século XVIII, adotaram a clausura perpétua dentro
da própria casa numa busca incessante pela perfeição divina
mediante martírios e penitências. Mott relata, ainda, a prática de
jejum perpétuo, açoites no corpo com espinhos e orações constantes
como experiências cotidianas pouco estudadas nos espaços de
sociabilidade colonial. Acrescente-se a isso os rituais de confissão
que, após Trento, tornou-se um sacramento fundamental. A confissão
poderia ser realizada em qualquer parte: Igreja, alpendre, alcova,
redes, dentre outros.

Se por um lado as práticas ascéticas de vivência da religiosidade


na colônia fazem-se de certa forma elemento pouco estudado na
historiografia colonial, como relata Luiz Mott, a existência de rituais
místicos envolvendo “feiticeiras”, benzedeiras, simpatias e mandingas
povoam as múltiplas formas de vivência da religiosidade colonial.
Assim como Luiz Mott, Patrícia Cardoso explica que As Constituições
Primeiras do Arcebispado da Bahia (1707), “única legislação
eclesiástica em todo o período colonial, demonstravam especial
atenção às feitiçarias e práticas de mau agouro, prevendo punições
severas, inclusive degredo, para os adeptos de tais sortilégios” (2004).

Há que se pontuar o que consistiam tais práticas a fim de evitar


um pensamento equivocado acerca de seu exercício. Abarcando
desde simpatias amorosas até rezas que “curavam” “ventre caído”
e “bicheiras” as práticas de cura que caracterizam os espaços de

52
religiosidade colonial se inserem dentro da própria precariedade de
“instrução médica” e trato com o corpo e suas mazelas.

Muitos/as eram os que recorriam a rezadeiras, benzedeiras e


adivinhos/as como forma de “cura” das mazelas que se propagavam
constantemente em espaços insalubres, onde a preocupação com
práticas de higienização faziam-se ausentes. Mott (1999) nos relata
o caso de uma comunidade rural na comarca de Pernambuco, que
em meados do século XVIII possuía grande quantidade de cristãos
que recorriam abertamente a tais práticas na tentativa de proteção
e cura quanto os males da alma e do corpo que ainda não haviam
se separado pelo saber médico institucional. Dessa forma, a religião
católica misturava-se com outras práticas religiosas vindas da África
ou encontradas no meio dos indígenas, formando um catolicismo
com vários ingredientes místicos, mágicos e mal vistos por alguns
cléricos. Neste universo, a recepção e ressignificação das práticas
ritualísticas africanas e indígenas fazem-se presente mediante a
atuação de escravos/as e pretos/as forros que realizavam toda sorte
de benzeduras e práticas de cura nos espaços chamados de calundu.

Todavia, o leitor pode pensar: se a presença inquisitorial fazia-se tão


forte no cotidiano europeu, como tais práticas puderam “escapar”
aos olhos do poder institucional exercido pelos “Tribunais do Santo
Ofício”?

É necessário compreender a fluidez característica da formação


eclesiástica nos trópicos, onde o baixo clero geralmente demonstrava
indiferença em face desses rituais, não os concebendo enquanto
ameaça ao poder institucional preconizado pela Igreja. Entretanto, a
partir do Concílio de Trento (1563), a Igreja redefinirá seus preceitos,
visando combater os “desvios” da reforma protestante, investindo, por
conseguinte, na formação dos padres e a sua submissão à autoridade
papal.

Aos olhos do alto clero, a religiosidade fluida da colônia necessitava


ser freada, doutrinada e, por conseguinte, direcionada à melhor
formação das almas. É nesse contexto que a inquisição ibérica
adentra a América Portuguesa “depurando”, para utilizarmos metáfora
comum na época, os “maus costumes”, expressos a partir das práticas
de cura realizadas por benzedeiras, rezadeiras e adivinhas. Mas
geralmente as burlas às normas da Igreja eram comuns. E lá estavam
as benzedeiras e rezadeiras em ruas e calçadas com as suas práticas
mágico-religiosas:

53
Malgrado a preocupação da Inquisição e da própria
legislação real, proibindo a prática das feitiçarias
e superstições, no Brasil antigo, em toda rua,
povoado, bairro rural ou freguesia, lá estavam as
rezadeiras, benzedeiras e adivinhos prestando
tão valorizados serviços à vizinhança. Quando
missionava na zona rural de Pernambuco, na
Quaresma de 1762, um frade capuchinho publicou
na freguesia de Serinhaém os editais do Santo
Ofício, obrigando os fregueses a denunciarem, no
prazo de trinta dias e sob pena de excomunhão
maior, a todos que fizessem uso de benzeduras
e supertições. Tal iniciativa redundou na relação
de uma centena de moradores, sobretudo gente
da arraia-miúda, envolvidos com sortilégios e
devoções proibidos pela Santa Madre Igreja.
(MOTT, 1999, p. 194)

Mas não apenas estes personagens eram perseguidos e


excomungados. Outros, como os judeus, estavam na mira dos olhos
do Santo Ofício. Apesar das íntimas relações que judeus e cristãos
novos mantinham com os diversos grupos étnicos e religiosos, a
convivência entre os mesmos nem sempre se deu de forma pacífica.

Cronistas portugueses testemunharam em seus escritos o


antagonismo contra os judeus, contra sua forma de vida, suas
atividades profissionais e suas opções de alimentação. Por isso,
muitos eram acusados de judiarias, termo comum na época que
significa práticas de rituais judeus, como a guarda do sábado (shabat)
e a recusa a alimentados tidos como impuros, a exemplo da carne
de porco, de peixes sem escamas e de coelhos. A perseguição pelo
Tribunal de Santo Ofício a judeus e cristãos-novos é decorrente,
também, de razões sócio-econômicas. A Inquisição criou uma “fábrica
de judeus”, pois precisava justificar suas atividades, sob a alegação
de práticas heréticas entre os cristãos-novos. Só assim poderia
confiscar seus bens e prendê-los (NOVINSKY, 1992; MOTA, 2008)

Num espaço onde as relações afetivas eram marcadas pela


inconstância da mobilidade física colonizadora, bem como pela
adoção de códigos culturais dissonantes do modelo europeu, muitos
homens e mulheres figuravam como “desviantes” e, por conseguintes,
sujeitos às malhas repressoras da inquisição.

Observa-se, assim, a moralização, através da opressão inquisitorial,


dos costumes do “novo mundo”, tendo em vista o rastreamento pelo

54
“Tribunal do Santo Ofício” de indícios de “heresia” nas falas populares
que no contexto europeu certamente não representariam “subversão”
a ordem católica.

As práticas confessionais, reafirmadas durante o “Concílio de Trento”


contribuíram para engrossar as fileiras das “devassas”, nome que se
dava ao período de acusação em vila ou cidade quando da “visitação”
da Inquisição. Muitas vezes, intrigas pessoais eram apropriadas pelo
outro para delatar possíveis práticas de bruxaria, feitiçaria, judiaria,
sodomia e bigamia.

Nesse cenário, quaisquer atos poderiam figurar como indícios de


“subversão” religiosa e, muitos foram os interrogados e condenados
pelas ordens do “Santo Ofício”. Contudo, táticas e astúcias permitiram
a muitos homens e mulheres continuar a praticar seus ritos
“clandestinamente” ou através de associações religiosas evidenciadas
pelas “irmandades”.

As irmandades: irmãos de cor e de fé


As irmandades eram instituições religiosas compostas por leigos que
tinham como objetivo ajudar os seus membros e a comunidade. As
irmandades tinham como uma de suas principais características a
devoção a um santo padroeiro e a conservação de capelas ou igrejas,
além de garantir um velório e um sepultamento digno para seus irmãos.
Era muito comum no período colonial as irmandades de negros, como
os negros do Rosário, os negros de São Benedito, os negros da Glória,
dentre outras. As irmandades dedicadas à Senhora do Rosário, a São
Benedito ou a Santa Efigênia eram geralmente compostas por irmãos
negros e mulatos pobres.

Soares (2001) aponta a existência de irmandades de negros no Rio


de Janeiro do século XVIII, congregando devotos da atual região de
Daomé. Torna-se importante perceber nessas irmandades a vigência
de ordens hierárquicas, bem como de toda uma ritualização em torno
de procissões, funerais, escolhas de rainhas e reis para compor as
“cortes” hierárquicas de cada ordem. Em relação ao Nordeste, Naiara
Alves fez um estudo sobre a presença das irmandades negras na
Parahyba no século XIX em sua dissertação de mestrado “Irmãos de
cor e de fé: irmandades negras na Parahyba do século XIX (2008).

A disputa entre irmandades diversas evidenciam a permanência


de valores do “Antigo Regime” ao reproduzirem, por exemplo, as
hierarquias sociais dentro do grupo, bem como ao construírem igrejas-
sede bem ornamentadas na disputa por uma maior representatividade
social na colônia.

55
Observa-se, assim, o caráter ritualizado que caracteriza as práticas
religiosas e sociais na colônia portuguesa, apontando para marcas
da sociabilidade do “Antigo Regime”. Ao ritualizar os atos cotidianos,
encenadas nas práticas do “sagrado” as tramas religiosas e de
poder na colônia portuguesa se inserem no imaginário cultural do
próprio “antigo regime”, fazendo com que percebamos, ao longo
dessa viagem, as rupturas e continuidades que caracterizam essas
tramas de saber-poder do “sagrado” e do “profano” nas trajetórias da
sociedade colonial.

Nesse contexto de tantas jornadas familiares, de tantos dramas e


redes de sociabilidades, chega uma família bem particular para mudar
hábitos, alterar rotinas, criar novas configurações espaciais: a Família
Real, em 1808, como veremos no capítulo 3 deste volume.

Saiba Mais
Preconceito de Sangue

Dos séculos XVI ao XVIII vigorava em Portugal, Espanha e respectivas colônias um


sistema de discriminação que impedia aos descendentes de judeus, africanos, índios
e mouros o acesso aos cargos públicos, à carreira eclesiástica e às honrarias e mercês
dispensadas pela Coroa. A honra do indivíduo e de sua parentela ficava assim prisioneira
da “pureza” do sangue. Nenhum cargo ou função pública poderia ser exercido por
homens dessas etnias. Ao procurar reconstituir as tramoias que viciaram o processo de
habilitação de Felipe Paes Barreto, membro de uma rica família do Pernambuco colonial,
a cavaleiro da Ordem de Cristo, o historiador pernambucano Evaldo Cabral de Mello
defrontou-se com a questão do sangue judaico que corria nas veias de vários troncos
familiares que haviam povoado a Nova Lusitânia (Pernambuco que vai da fundação
da capitania por Duarte Coelho à ocupação holandesa (1535-1630)). Desenredando
o emaranhado de fios da linhagem dessa rica família do Brasil colonial, Evaldo Cabral
de Mello nos desvenda um sistema de fraude genealógica montado por Felipe Paes
Barreto com o propósito de apagar as origens comprometedoras de poderosos que já
eram nobres ou que aspiravam a sê-lo, revelando uma face importante e pouco estudada
desse período histórico.

Fonte:

MELO, Evaldo Cabral de. O nome e o sangue. Uma parábola genealógica do


Pernambuco colonial. São Paulo: Companhia das Letras, 2009.

Dicionário de Termos Históricos


●● Iconografia: do grego “eikon” (imagem) e “graphia” (escrita),
iconografia é um termo que designa “escrita da imagem”. A
iconografia é uma forma de linguagem que agrega imagens na

56
representação de determinado tema. Atualmente, o estudo da
iconografia é bastante presente na História e demais campos de
conhecimento.

●● Bebidas do Reino: diversas bebidas vinham do Reino para a


Colônia Portuguesa, dentre as quais o vinho, aguardente de uvas,
azeite e vinagre.

●● Gentio: do latim “gens” (significando “clã” ou um “grupo de


famílias”) a palavra gentio designa, inicialmente, um não-israelita.
Os tradutores cristãos da Bíblia usaram esta palavra para designar
coletivamente os povos e nações distintos do povo Israelita.
Durante o período colonial, a palavra era utilizada para se referir
aos indígenas e as pessoas que não professavam o cristianismo,
ganhando, portanto, outros significados.

●● Lascividade: luxúria, libidinoso. Que provoca luxúria ou é por ela


inspirado.

●● Epístolas: epístola é o nome empregado para cartas ou


correspondências. Na escrita cristã é muito comum o emprego
desse vocábulo, principalmente entre os escritores do Novo
Testamento.

●● Barregueiros: barregão. O homem que vive amasiado ou


“amancebado” com uma mulher.

●● Tribunal do Santo Ofício: O Tribunal do Santo Ofício era uma


instituição eclesiástica de caráter “judicial”, que tinha por principal
objetivo investigar práticas de “heresias” ou outros “pecados”
considerados graves aos olhos da Igreja Católica. Por inquirir
as pessoas a deporem e a se retratarem, era também conhecido
como Inquisição. O Tribunal do Santo Ofício nasceu na Idade
Média, embora nesse período da História assumisse contornos
bem diferentes dos desta instituição na época moderna. De início,
a Igreja era a responsável pela punição espiritual dessas heresias,
que em casos extremos eram reprimidas com a excomunhão dos
infratores, excluindo, portanto, a repressão violenta. Muitos judeus,
cristãos-novos e curandeiros foram presos no Brasil durante o
período colonial. Sabe-se que os primeiros tribunais inquisitoriais,
diretamente subordinados ao papa, agiam em forma relativamente
autônoma, mas logo ficou evidente a necessidade de se criar
uma instância revisional. Em 1543, Paulo III resolveu restaurar a
junta de cardeais, organizou as Congregações da Cúria Romana,
incluindo entre elas a do Santo Ofício, que passou a concentrar

57
todas as funções referentes à Inquisição. (Fonte: GONZAGA, João
Bernardino. A Inquisição em Seu Mundo. São Paulo: Saraiva,
1994. NOVINSKY, Anita. Inquisição. 2 ed., São Paulo: Brasiliense,
2007)

●● Ex-votos: é a designação erudita onde podem ser enquadrados


milagres e promessas alcançados pelos fiéis. Os ex-votos são
oferendas feitas aos santos de particular devoção ou especialmente
indicados por alguém que obteve uma graça ou milagre
implorados, como um testemunho público de gratidão. O ex-voto é
colocado em local público ou de acesso coletivo e apresenta uma
série de formas testemunhais, dentre as quais a representação
iconográfica (pintura ou fotografia) da graça ou milagre obtidos;
a representação em forma de escultura retratando normalmente
uma doença curada; inscrições em tábuas, mármores ou outro
material “nobre” do testemunho ou gratidão pela graça alcançada;
elementos simbólicos como velas e flores; dentre outros. (Fonte:
ARAÚJO, Iaperí. Elementos da arte popular. Natal: UFRN. Ed.
Universitária, 1985. CASTRO, Márcia de Moura. O ex-voto em
Minas Gerais e suas origens. Cultura, Brasília, a.8, n.31, p.106-
112, jan./mar. 1979. SILVA, Maria Augusta Machado da. Ex-votos
e orantes no Brasil: leitura museológica. Rio de Janeiro: Museu
Histórico Nacional, 1981).

Vamos Revisar?
Este capítulo foi um momento muito significativo em nossa disciplina, pois através do
mesmo procuramos mostrar modos de vida e formas de olhar o ambiente familiar no
período colonial brasileiro. Neste, estudamos os espaços de sociabilidades familiares
na Colônia, suas formas de ser família nesse ambiente tão distinto do que vivemos
atualmente, bem como procuramos analisar os comportamentos masculinos e femininos
na América Portuguesa. Homens, mulheres e crianças viviam, sentiam e agiam de
modos muito distintos dos que hoje nos cercam. Além disso, a América Portuguesa vivia
sob o medo do demônio e dos castigos divinos, fruto das sociabilidades religiosas e dos
discursos inquisitoriais e apocalípticos que circulavam naquele período. Diante disso,
achamos salutar a discussão acerca da compreensão das redes religiosas que faziam
parte do cotidiano da sociedade colonial para situar você, caro estudante, acerca das
práticas religiosas que os homens e mulheres desenvolviam na Colônia.

Atividades
1. A Inquisição Portuguesa perseguiu, torturou, prendeu e matou inúmeras pessoas

58
entre o final da Idade Média e início da Idade Moderna. No Brasil, muitos foram
perseguidos, incluindo judeus e cristãos-novos. Hoje, você vai desempenhar um
papel muito especial para a Igreja Católica no século XVI. Serás um inquisidor a
procura de “hereges” na terra brasilis. Para tanto, você vai elaborar um questionário
para inquirir os judeus e outros personagens suspeitos de heresias no Brasil. No
questionário, deve ter: nome do réu, profissão, se sabe o motivo da sua convocação
ao Tribunal, quais os principais “crimes” que cometeu contra a Madre Igreja, dentre
outros. É importante também registrar as respostas dos seus inquiridos.

2. O filme “Guerra de açúcar” (TV Brasil, 2011, 26min) apresenta uma leitura sobre
o período colonial baseada nas lutas que se travaram em torno das riquezas do
Brasil. Elabore uma resenha crítica sobre o filme, interpretando os conflitos nos
primeiros tempos de colonização. Como recurso didático-científico, a resenha não
se configura como um resumo, mas como um exercício de interpretação textual.
Para tanto, em sua resenha você deve abordar:

a) O tema tratado pelo roteirista;

b) Os principais problemas que o documento aborda;

c) A posição defendida pelo diretor do filme com relação ao conteúdo;

d) Os argumentos centrais e complementares utilizados pelo diretor para


defender sua posição. Finalizando, é preciso você fazer uma avaliação
das ideias do autor frente a outros textos; uma avaliação da qualidade do
filme, quanto à sua coerência, validade, originalidade, profundidade, alcance
etc. O filme está disponível no seguinte endereço (http://tvbrasil.org.br/
historiasdobrasil/videos/#videoYT), mas pedirei à coordenação que a mesma
ponha uma cópia disponível no ambiente virtual.

3. Uma prática sócio-religiosa muito comum no Brasil desde o período colonial é a


adoração a imagens de escultura (popularmente conhecida como adoração a
“santos”). Divulgada em todo o território nacional, esta prática era (e é) desenvolvida
tanto por católicos quanto por adeptos de outras religiões, como a umbanda, o
candomblé, dentre outras. Como estudante de história que dialoga com outras
disciplinas (a Antropologia, por exemplo), exercite sua capacidade etnográfica e
descreva um desses rituais de adoração a santos populares, como Padre Cícero,
Frei Damião, Francisco de Canindé ou outro ritual que esteja mais próximo de
você. Depois de confeccionar o seu texto, poste-o na plataforma moodle. Além
disso, você pode criar uma enquete no seu ambiente virtual, na seção fórum, com
a seguinte pergunta: o ritual de adoração a santos populares está em declínio na
sociedade brasileira contemporânea? Crie pelo menos três respostas e saiba como
está essa prática tão antiga no Brasil. Os objetivos desta atividade são:

a) Compreender a pluralidade religiosa brasileira desde o Brasil colonial;

b) Estudar a diferenciação entre catolicismo oficial e catolicismo popular;

c) Contribuir para com o respeito às opções religiosas do outro.


4. A Roda dos Expostos, como você viu neste capítulo, foi uma prática muito comum
no Brasil colonial. Imagine-se que, nesse período, você era um jardineiro que

59
trabalhava numa Santa Casa de Misericórdia, local que recebia os enjeitados na
colônia. Diante de tantos enjeitados que chegava à Santa Casa, você resolveu
escrever um diário contando os episódios que envolviam essas crianças, tais como:
as horas mais frequentes em que os enjeitados chegavam, como eram cuidados
pelas freiras e/ou pessoas responsáveis, o que comiam, como se vestiam, as
doenças que os atacavam, as brincadeiras entre eles, enfim, o cotidiano de uma
criança enjeitada. Para isso, crie um blog em seu ambiente virtual e, durante 30
dias, crie novas situações mostrando um pouco desse passado tão presente em
nossos dias. Use a imaginação e elabore emocionantes episódios. Os objetivos
desta atividade são:

a) Ampliar o conhecimento sobre a história da infância no Brasil;

b) Contribuir para o domínio da escrita, pois um diário exige de um estudante


de história não apenas criatividade para narrar, mas também domínio da
técnica narrativa;

c) Estimular o estudo mediante o ambiente virtual.

Referências
ALENCASTRO, Luiz Felipe de. O Trato dos Viventes - Formação do Brasil no
Atlântico Sul, séculos XVI e XVII. São Paulo. Cia das Letras, 2000.

ALVES, Naiara. Irmãos de cor e de fé: irmandades negras na Parahyba do século


XIX. Dissertação (Mestrado em História). Joao Pessoa: UFPB, 2008.

CARDOSO, Patrícia Domingos Wooley. A Sociedade Colonial: uma reflexão sobre


as moralidades e religiosidade popular na América Portuguesa (Séculos XVI-XVIII).
Revista Klepsidra, julho 21. 2004.

CHAMBOULEYRON, Rafael. Jesuítas e crianças no Brasil Quinhentista. In:


PRIORE, Mary Del (org.) História das Crianças no Brasil. São Paulo: Contexto,
2006.

DEL PRIORI, Mary. História das mulheres no Brasil. São Paulo: Contexto, 1997.

DELUMEAU, Jean. A civilização do renascimento. Lisboa: Editora Estampa,


1989.

GOMES, Alberon de Lemos. As matronas da Nova Lusitânia: casar, procriar,


orar. Dossiê Cultura e Sociedade na América Portuguesa Colonial, v.5, n.12, out/
Nov. 2004. Disponível em http:// www.seol.com.br/mneme. Acesso em 28/08/2011.

LEITE, Serafim. Cartas dos Primeiros Jesuítas do Brasil. São Paulo: Comissão
do IV Centenário da Cidade de São Paulo, 1954, vol I.

MOTA, Lúcia da Silva. A família Mesquita em Portugal e em terras de Piratininga.


Dissertação (Mestrado em História - FFCL). São Paulo, Universidade de São Paulo,
2008.

60
MOTT, Luiz. Cotidiano e Vivência Religiosa: entre a capela e o calundu. In: SOUZA,
Laura de Mello e (org.). Cotidiano e vida privada na América Portuguesa.
Coleção História da Vida Privada no Brasil. São Paulo: Cia das Letras, 1999.

NOVINSKY, Anita. A Inquisição. São Paulo: Brasiliense, 1990.

NOVINSKY, Anita. Cristãos novos na Bahia. A Inquisição. São Paulo: Perspectiva,


1992.

PIMENTEL, Helen Ulhôa. A ambiguidade da moral colonial: casamento,


sexualidade, normas e transgressões. In: A construção das diferenças:
casamento e sexualidade em Paracatu, MG, no século XVIII. Dissertação de
Mestrado. Programa de Pós-Graduação em História da Universidade de Brasília,
2007.

SLENES, Robert. Na Senzala uma flor. Esperanças e Recordações da Família


Escrava (Brasil Sudeste, Século XIX), Rio: Nova Fronteira, 1999.

SOARES, Mariza. Devotos de cor: identidade étnica, religiosidade e escravidão


no Rio de Janeiro, século XVIII. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2001.

SOUZA, Laura de Mello e. História da vida privada no Brasil: Cotidiano e vida


privada na América portuguesa. São Paulo: Cia. Das Letras, 1998.

VAINFAS, Ronaldo. Trópicos dos Pecados – Moral, sexualidade e inquisição no


Brasil. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1997.

61
62
Capítulo 3

1808: uma corte no Brasil

Objetivos
●● Analisar o período brasileiro denominado “Reino Unido de Portugal”;

●● Investigar as práticas culturais que foram estabelecidas no Rio de Janeiro de 1808


a 1822;

●● Estudar as transformações sócio-culturais ocorridas no Brasil com a vinda da Família


Real.

Dias e dias. Sol e chuva, frio e calor. Noites mal dormidas nos navios
que grassavam de Portugal ao Brasil. Famílias inteiras vinham
acompanhando o Rei. Enquanto isso, Portugal estava polvorosa
em virtude da invasão das forças de Napoleão. Em 1808, mais
precisamente no mês de janeiro, essa comitiva composta de pessoas
de distintos segmentos sociais, da qual fazia parte a família real
da metrópole portuguesa. Trazendo consigo toda a corte lusa, a
chegada da família real ao Brasil tornou o Rio de Janeiro, sede do
governo-geral da então colônia, também a sede de todo o (outrora
poderoso) Império lusitano. Já imagino a ânsia do leitor mais curioso
me perguntar: mas como e/ou por que isso ocorreu? Para entendê-lo
precisamos concatenar essa experiência histórica luso-brasileira com
os desdobramentos mundiais de um evento de inegáveis proporções:
a Revolução Francesa. Portanto, este é um dos objetivos deste texto:
fazê-lo compreender a transferência da corte portuguesa para o Brasil
e o nascimento do Reino Unido de Portugal.

63
Europa, guerra e perseguição. Na primeira década do século XIX,
Napoleão Bonaparte, obviamente junto com os exércitos franceses,
dominou grande parte dos países europeus, justificando esta política
imperialista como desdobramento natural da defesa dos ideais
democráticos da Revolução de 1789. Além do mais, o crescimento
político-militar francês propiciado pelos “louros” desta Revolução
Atenção de repercussões mundiais, ajudou bastante o “pequeno”5 grande
5
Embora grande Imperador francês no empreendimento de disponibilizar ao resto do
estrategista político e mundo, se fosse preciso através da força, a igualdade, a liberdade e a
militar, Bonaparte se
notabilizou também pela fraternidade francesas.
pequena estatura.
Se o desejo de dominar alimentava as ambições bonapartistas, o
imperador francês tratou logo de definir os seus possíveis aliados,
condição essencial para vencer os históricos inimigos franceses.
Sendo assim, o leitor já deve se recordar que em 1806, a fim de
isolar economicamente o seu principal adversário na Europa, no caso
a Inglaterra, bem como para demarcar muito claramente os seus
aliados mais fiéis, o governo francês decreta o famigerado Bloqueio
Continental.

Na verdade, o Bloqueio Continental consistiu de um decreto assinado


pelo próprio Bonaparte, cujo conteúdo não poderia ser mais claro:
por ele, ficava estritamente proibido que qualquer país europeu, que
fosse partidário dos princípios revolucionários de 1789, recebesse
navios ingleses em seus portos e comercializassem com a Inglaterra.
É claro que o “pequeno” Bonaparte se valeu da influência política
e do poderio militar francês, bastante invejável à época, diga-se de
passagem, para fazer os países europeus aderirem aos seus ideais
imperialistas.

Minibiografia
D. João VI – um rei no Brasil

D. João VI nasceu em Lisboa em 1767, onde faleceu no dia 10 de março de 1826,


poucos anos após voltar do Brasil. Rei de Portugal, reinou de 1818 a 1826. Era filho
de D. Pedro III e de Da. Maria lzabel. Por motivo do problema mental de sua mãe,
passou a governar desde 1792, porém só se tornou Príncipe Regente a partir de 1799.
Em 1816, com a morte de D. Maria, sua mãe, subiu ao trono e em 1818 foi aclamado
Rei de Portugal, do Brasil e Algarves. Quando veio para o Brasil, em 1808, fundou o
Reino Unido de Portugal, Brasil e Algarves nesta mesma época. Casado com D. Carlota
Joaquina da Espanha, teve nove filhos, um deles Pedro que seria imperador do Brasil.
Quando Portugal foi invadido pelas tropas de Junot, a família real portuguesa com toda a
corte embarcou para o Rio de Janeiro. Ao chegar ao Brasil, declarou livres as indústrias

64
brasileiras e abriu os portos do Brasil ao comércio estrangeiro. A D. João VI deve-se
a fundação da Academia de Belas Artes do Rio de Janeiro, registrando-se também
importantes movimentos militares que proporcionaram a ampliação de nossas fronteiras.
Em 1821, a família real e sua corte seguiram para Portugal, deixando aqui o Príncipe D.
Pedro, que ficou como regente. Chegando a Portugal, D. João VI foi obrigado a assinar a
Constituição, mais seu filho D. Miguel organizou um movimento absolutista, que vitorioso,
repôs D. João como Rei absoluto.

Fonte:

SERRÃO, João. Pequeno Dicionário da História de Portugal. Lisboa: Iniciativas


Editoriais, 1976.

Não que os ideais de liberdade, igualdade e fraternidade de


1789 (início da Revolução Francesa) não tivessem recebido uma
autêntica adesão por vários países e grupos sociais da Europa na
época. A ocorrência de outros movimentos burgueses no continente,
nitidamente inspirados no ideário francês, durante os trinta primeiros
anos do século XIX, não nos autoriza a afirmar que a adesão europeia
às ambições revolucionárias da burguesia francesa foi apenas fruto da
força das armas do bem treinado exército napoleônico. A intensidade
das mudanças, a liderança francesa do processo e o desejo de
expandir mundialmente as “benesses” da revolução burguesa,
talvez tenham sido aspectos mais controvertidos. Para solucionar a
controvérsia, parece mesmo que Napoleão valeu-se da força com
vistas à imposição de seus ideais.

Pois bem. Voltemos ao Bloqueio Continental. Para Portugal, o


governo napoleônico estabeleceu exigências muito difíceis de serem
cumpridas: declarar guerra à Inglaterra, incorporar a frota lusa à
esquadra francesa, confiscar os bens dos ingleses que viviam no seu
território e fechar os seus portos ao comércio britânico. Para bem
da verdade, Portugal ficou numa situação difícil. Para ser objetivo, o
governo lusitano se viu no meio de um conflito internacional entre as
duas maiores potências, do ponto de vista político, econômico, militar
e cultural da época, no caso França e Inglaterra.

Explicando melhor: se Portugal atendesse o ultimato francês,


acabaria rompendo uma antiga e sólida aliança com os britânicos,
que só cresceu desde o tratado comercial de Methuen. Contudo,
o problema maior era o risco de que esta decisão estimulasse os
ingleses a invadir a colônia portuguesa na América, último patrimônio
do antes poderoso Império Português. Por outro lado, caso rejeitasse
a “orientação” napoleônica, os portugueses poderiam ter o seu país

65
invadido e submetido à força.

Nessa época, o comandante do governo português era o príncipe


regente dom João, substituto de sua mãe a rainha Maria I, afastada
das atribuições políticas em função de seus conhecidos “desequilíbrios
mentais”. Mesmo assim, continuava Rainha, pelo menos até 1817.
Dentro do governo de dom João, havia um grupo de políticos e
burocratas bastante influente junto ao príncipe regente. Partidários
da Inglaterra, eles defendiam a transferência provisória da corte para
o Brasil como única forma de solucionar a crise desencadeada pelo
Bloqueio Continental Napoleônico.

As fontes históricas atestam que esta proposta era muito bem vista
pelo governo inglês. O crescimento industrial britânico tornava o
mercado brasileiro uma menina para os olhos dos ingleses. O governo
britânico decidiu então apoiar extra-oficialmente a transferência da
coroa lusa para a sua colônia americana. Após algumas vacilações,
nem sem inúmeras pressões inglesas, o governo português se decidiu
pela transferência para a América. Em outubro de 1807, quando
Napoleão talvez já planejasse a invasão e a partilha de Portugal, a
Inglaterra se comprometia a providenciar a segurança da família real
e da corte portuguesa na viagem rumo ao Brasil. Em 27 de novembro
do mesmo ano, já com as tropas napoleônicas se preparando para
invadir Lisboa, a família real e a corte portuguesa embarcaram numa
frota de quatorze navios com destino ao Brasil.

D. João e a sua comitiva partem para o Brasil, deixando seus súditos,


porém escapando de Napoleão. A partir desse episódio, a história de
Portugal “passou a ser escrita simultaneamente em dois cenários.
Do Rio de Janeiro, o príncipe regente mantinha em funcionamento o
governo a uma distância segura”. Do outro lado do Atlântico, “na vida
de quem ficou para trás, a ocupação pelas tropas napoleônicas gerou
um período de instabilidade, resistência e violência” (MARTINS, 2010,
p. 23).

Após 54 dias de viagem a esquadra portuguesa chegou ao porto de


Salvador na Bahia, em 22 de janeiro de 1808. Depois, migram rumo à
capital. Era o início de um novo tempo para a Colônia, de um período
de novas experiências não apenas para os que vinham, mas também
para os que chegavam ao Rio de Janeiro, capital do Brasil. O Rio
de Janeiro passou a assistir ao espetáculo político que acabara de
chegar pelo Atlântico.

66
Ruas, gente, burburinho, teatralidade:
as metamorfoses culturais
Alguns historiadores, como Jurandir Malerba, utiliza a metáfora
teatral para traduzir o que o Rio de Janeiro passou a ver e a conviver
com a chegada dos nobres portugueses. “Era um burburinho geral
e constante de uma cidade preta e mestiça em dois terços de
sua população; mas ela toda se rendia ao espetáculo cotidiano
da realeza”. Some-se ao burburinho, as manifestações públicas
aclamando o rei e em solidariedade aos acontecidos trágicos de sua
nação. “Acontecimentos de que participavam todos os indivíduos, de
todas as classes, num cenário que a maioria dos estrangeiros que
aqui estiveram não cansou de lisonjear” (MALERBA, 2000, p. 126-
127).

Estima-se que cerca de 10 a 15 mil pessoas, entre nobres,


magistrados, altos funcionários, oficiais, padres, comerciantes, a
família real, seus serviçais, a nobreza, o alto funcionalismo, e os
oficiais superiores de Portugal zarparam rumo à colônia americana,
não sem suas riquezas, documentos, bibliotecas, coleções de arte
e tudo o que podiam levar. Na viagem, a corte lusa sofreu bastante
não só com as terríveis acomodações e a falta de gêneros de uma
armada feita às pressas: uma tempestade dispersou os navios. Parte
da frota, incluindo o navio em que estava o príncipe regente, acabou
aportando em Salvador, na Bahia, em janeiro de 1808. Apenas em
março do mesmo ano, a comitiva de dom João VI se transferiu para o
Rio de Janeiro, onde se reuniram ao restante da corte.

E todos se reúnem no Rio de Janeiro. Uma corte em retirada, muitos


problemas para resolver. Com tanta gente, era preciso acomodar
os novos habitantes e tornar a cidade digna de ser a nova sede do
Império português. O vice-rei do Brasil, D. Marcos de Noronha e
Brito cedeu sua residência, O Palácio dos Governadores, no Lago
do Paço, que passou a ser chamado Paço Real, para o rei e sua
família. Mas os demais exilados, onde morariam? Para resolver tal
situação, o vice-rei exigiu que os moradores das melhores casas da
cidade fizessem o mesmo, sob a justificativa que era digno ceder sua
casa para os portugueses. Aproximadamente duas mil residências
foram requisitadas, pregando-se nas portas o “P.R.”, que significava
“Príncipe Regente”, mas que o povo logo traduziu como “Ponha-se na
Rua”. Prédios públicos, quartéis, igrejas e conventos também foram
ocupados pela comitiva. A cidade passou por uma reforma geral:
limpeza de ruas, pinturas nas fachadas dos prédios e apreensão de

67
animais. Tudo para impressionar, pelo menos inicialmente, os novos
moradores “ilustres”. Como a capital ficou pequena para comportar
toda essa gente, muitos passaram a ocupar as cercanias da cidade.
As matas recuaram diante da expansão urbana.

Logo depois de desembarcar no Brasil, ainda em solo baiano, dom


João tomou uma medida que iria redefinir as relações econômicas da
colônia: a abertura dos portos da colônia brasileira para as “nações
amigas”, isto é, as nações não aliadas à França Napoleônica. Com
isso, o comércio da colônia começava a sair do jugo do monopólio
comercial, uma das bases de sustentação do domínio metropolitano.
A medida se revestia de um duplo objetivo: romper o isolamento da
corte lusa com relação ao resto do mundo; contemplar as expectativas
comerciais dos ingleses e estimular o comércio.

Abertura dos portos


A abertura dos Portos brasileiros  às nações amigas (principalmente à Grã
Bretanha) foi estabelecida em 28 de janeiro de 1808, mediante uma Carta
Régia, pelo príncipe regente, D. João VI, logo após a chegada da Família
Real ao Brasil. Antes da abertura dos Portos, os produtos que saiam do
Brasil passavam, obrigatoriamente, pela alfândega em Portugal, assim
como os produtos importados a serem enviados para a Colônia. Era
obrigatoriedade era resultado do Pacto Colonial que garantia a Portugal o
monopólio do comércio exterior da Colônia, ou seja, nada se comprava ou
vendia na Colônia sem passar antes por Portugal. A abertura dos Portos
às nações amigas acabou prejudicando os comerciantes portugueses
que, até então, monopolizavam o comércio colonial.
Quando os historiadores falam em “abertura dos portos brasileiros às
nações amigas”, não estaríamos tão equivocados ao falar em “abertura
do comércio brasileiro à Inglaterra”. Ora, a partir de 1808, o domínio
inglês sobre o comércio brasileiro passou a ser praticamente total. Os
próprios termos em que foi assinado o decreto de abertura dos portos, em
1808, deixavam bem claros qual seria a nação beneficiada: enquanto as
mercadorias de outros países pagavam taxas no valor de 24% do produto
para a receita portuguesa, a partir de 1810 os produtos ingleses passaram
a pagar uma taxa de 15% do valor das mercadorias aos cofres lusos. O
curioso é que a tributação sobre os produtos ingleses era inferior até mesmo
do que a tributação dos produtos portugueses, que foram taxados em 16%.

A historiografia afirma e a documentação comprova: a presença da


corte portuguesa no Rio de Janeiro acabou dinamizando as atividades
econômicas da colônia, como afirma Jurandir Malerba em “A Corte
no Exílio”. A corte portuguesa passou então a investir os seus parcos
capitais no Brasil, preferindo aplicar o seu dinheiro por aqui do que na
metrópole falida pela invasão napoleônica que se seguiu à fuga da
corte lusa. A rua ganhou novos ares, novas maneiras de se comunicar

68
e de se comportar:

Com a chegada da corte, a rotina dos diferentes


grupos sociais foi progressivamente sendo alterada,
os daqui vendo tamanha legião de adventícios
de todas as partes. Só do reino subitamente 15
mil, da Inglaterra fortes comerciantes, da França
outros tantos; e vieram mais artistas da Itália, e
sábios naturalistas da Áustria; e da costa da África
pretos de várias compleições. Indivíduos que se
ligaram mais ou menos diretamente, elos de uma
complexa rede de interdependências (MALERBA,
2000, p. 126)

Com o objetivo de dinamizar a economia da colônia, ainda em 1808,


foi suspensa a lei de 1785 que proibia atividades industriais na
colônia, enquanto em 1809 foi regulamentada uma lei que decretava a
isenção tributária para a importação de matérias-primas necessárias à
produção manufatureira. Contudo, estas medidas não foram capazes
de provocar o desenvolvimento industrial do Brasil, ao menos de
imediato. Isso se deu, sobretudo, porque o atraso da industrialização
brasileira causado pelas proibições do pacto colonial6, somado às
facilidades que os produtos ingleses tinham para penetrar o mercado
brasileiro, impedia os produtos nacionais de competir com a avançada Atenção
indústria britânica. 6
O conceito de Pacto
Colonial indica uma
A fim de ampliar a disponibilidade de crédito para os investimentos relação de dominação
política e econômica de
púbicos e privados foi criado, em 1808, o Banco do Brasil. Para além um país sobre outro,
do impacto que tal medida provocou no âmbito econômico-financeiro, geralmente mais pobre
podemos imaginar o quanto a criação desta instituição influenciou na e menos desenvolvido.
Assim, ao contrário do
elaboração de novas representações em torno do status brasileiro que a palavra Pacto pode
na relação com a metrópole. Para muitos dos contemporâneos, ela sugerir a primeira vista,
nesse tipo de experiência
significou que o equilíbrio das relações entre Brasil e Portugal estava não existe um acordo
mudando visivelmente a favor da colônia. entre as duas partes da
relação.
A vinda do governo português para o Brasil não alterou as estruturas
da sociedade colonial. Ela continuou a ser predominantemente
agrária, hierarquizada, patriarcal e economicamente voltada para o
comércio europeu. Contudo, não podemos negar que a transposição
dos principias órgãos administrativo do Estado metropolitano
português, tornou o Brasil o centro do Império Português durante
este período. Isto contribuiu para mudar muitos hábitos, não só com
a vinda de homens e de mulheres da corte, mas para formar novos.

Em 1815, o Brasil passava à condição de “Reino Unido a Portugal

69
e Algarves”. Embora esta medida tivesse o objetivo de formalizar a
participação de Portugal junto ao Congresso de Viena7, ela delegou
Atenção maior capital simbólico às pretensões autonomistas da colônia. Isso,
7
Realizado em somado à dinamização da economia colonial e ao florescimento
1815, o Congresso
artístico propiciado pelos investimentos culturais do governo dom
de Viena constituiu
uma conferência das João no Brasil, contribuiu para a maior autonomia da colônia, semente
potencias europeias que de sua futura emancipação política.
derrotaram o imperialismo
Bonapartista, com o
objetivo de restabelecer
a ordem política anterior
à Revolução Francesa de Referências
1789. Na medida em que
Sobre a corte no Rio de Janeiro e o período joanino, os textos abaixo nos ajudam a
só podiam participar deste
evento governos sediados pensar melhor esse período tão importante para a América Portuguesa.
nos seus próprios
territórios, a coroa lusa DEBRET, Jean B. Viagem pitoresca e histórica ao Brasil. Belo Horizonte: Itatiaia:
equiparou a colônia e São Paulo: Edusp, 1982. 3 v.
a metrópole por meio
do decreto que criava o EDMUNDO, Luís. O Rio de Janeiro no tempo dos vice-reis. Rio de Janeiro:
Reino Unido do Brasil, Imprensa Nacional/IHGB, 1932.
Portugal e Algarves.
LIMA, Manuel de Oliveira. D. João VI no Brasil (1808-1821). 2 ed. Rio de Janeiro,
José Olímpio, 1945.

MALERBA, Jurandir. A corte no exílio: civilização e poder no Brasil às vésperas


da independência. São Paulo: Companhia das Letras, 2000.

___. (org.). A independência brasileira: novas dimensões. Rio de Janeiro:


Editora da FGV, 2006.

NEVES, Guilherme Pereira das. E Receberá Mercê: a Mesa da Consciência e Ordens


e o clero secular no Brasil, 1808-1828. Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 1997.

SANTOS, Luís Gonçalves dos. Memórias para servir à história do Brasil. Belo
Horizonte: Itatiaia; São Paulo: Edusp, 1981. 2 tomos.

SILVA, Maria B. N. da. Cultura e sociedade no Rio de Janeiro (1808-1821). 2 ed.


São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1978.

Não foram poucas as medidas joaninas no campo cultural. O objetivo


delas não poderia ser mais claro: era preciso equiparar a nova sede
da coroa portuguesa às demandas da corte lusa não só no âmbito
político e econômico, mas também no campo do lazer e do acesso
aos bens culturais. O desembarque da Corte portuguesa no Brasil
em 1808 promoveu inúmeras mudanças no campo cultural, político,
simbólico e econômico. Podemos citar as transformações no espaço
da cidade do Rio de Janeiro, a abertura dos portos às nações amigas,
o maior afluxo de comércio e produtos importados, bem como uma
certa preocupação em introduzir as fábricas e manufaturas no Brasil

70
(Heynemann & Vale). A fim de aparelhar artística e culturalmente o
novo integrante do Reino Unido de Portugal e Algarves, Dom João
VI8 criou as primeiras Escolas de Medicina do Brasil (em Salvador Atenção
e no Rio de Janeiro), visando à formação acadêmica da elite luso- 8
Em 1818, após a
morte da rainha Maria
brasileira.
I, dom João assumiu o
trono português com a
A ampliação da demanda por bens culturais foi notória após a designação de Dom João
chegada da família real. Isto foi visível porque, muitas famílias nobres, VI.
somadas às do corpo político-diplomático, às famílias dos grandes
comerciantes, “passaram a imitar os modos de vida dos nobres,
constituíam um próspero mercado consumidor de instrução básica e
boas maneiras”. Dessa maneira, educadores europeus voltados para
a instrução de rapazes e moças perceberam o campo de trabalho que
se abria e procuravam arrebanhar novos alunos. (MALERBA, 2000, p.
165)

Para veicular as publicações do governo, foi regulamentada a


criação da Imprensa Régia em 1808. Outra medida importante no
campo do aparelhamento cultural da nova sede da coroa lusa foi à
criação da Biblioteca Real em 1810, que, instalada no próprio Rio
de Janeiro tinha o objetivo de abrigar o acervo de livros trazidos da
Europa, disponibilizando-o aos nobres portugueses e aos intelectuais
brasileiros.

Quando em 1811, Dom João VI implanta outro projeto de notável


significado para a cultura da nova sede real: a criação do Jardim
Botânico do Rio de Janeiro, cuja concepção visava apoiar o trabalho de
cientistas estrangeiros, sobretudo naturalistas franceses, na pesquisa
das potencialidades naturais do Brasil. Enquanto isso, o Real Teatro
de São João (criado em 1813) e o Museu Real9 (criado em 1818), Atenção
constituíam os espaços de sociabilidade mais frequentados pela corte 9
Sua criação tinha o
e pela elite colonial. Devido às limitações impostas por Portugal à objetivo de constituir
um espaço para acolher
implantação de um sistema educacional formal no Brasil, somadas às coleções e materiais
restrições comuns à vida cultural e artística das colônias, impediram diversos da área de
História Natural, com o
que aqui houvesse um número significativo de consumidores de bens
a finalidade de estimular
culturais (frequentadores de teatros, leitores assíduos, apreciadores e o estudo e a pesquisa
compradores de arte pictórica). Mesmo, assim, existiu. científica. Esta instituição
originou, depois, o
Museu Nacional, também
O Real Teatro de São João teve sua construção autorizada em 1810,
sediado no Rio de
e em 1811 são instituídas loterias para levantar fundos visando à Janeiro.
construção e à manutenção do estabelecimento. Estabelecido no Rio
de Janeiro, encenava os espetáculos teatrais frequentados pela elite
colonial, pela família real e pela corte portuguesa. Conforme Viviane

71
Gouvea, O Real Teatro veio a se tornar uma peça fundamental não
só na vida artística e cultural da Corte, mas também social e política,
gerador de encontros e de sociabilidades várias. Assiduamente
frequentado pela família real e pelos “ilustres”, foi “palco não apenas
de peças, óperas e danças - incluindo a primeira apresentação de
balé clássico no Brasil, em 1813 - mas de reuniões entre importantes
figuras políticas e manifestações que marcariam o processo de
independência do Brasil”. Neste teatro apresentavam-se cantores,
compositores, companhias teatrais vindas da Europa e dançarinos,
tudo para alegrar a alma dos amantes dos espetáculos. (GOUVEA,
2011)

Mas no teatro outras cenas podiam ser conferidas. Um espetáculo a


parte eram as mulheres, seus vestidos, seus penteados, seus cheiros,
suas pinturas. Uma peça teatral a parte. Muita coisa comprada na
rua do Ouvidor. Os cheiros no teatro acusavam a água de Cologne,
essências, pós-de-arroz. Pele pintada, corpos vestidos com peças
de filós bordados de ouro e prata. Na cabeça, chapéus de palha
guarnecidos e não-guarnecidos, chapéus de seda, penachos, flores
artificiais. Encantavam os olhos de quem passava, de quem olhava,
de quem desejava. Bijuterias verdadeiras e falsas, brincos, colares,
anéis, enfeites, penduricalhos, relógios.

Referências
A vinda da família real ao Brasil, em 1808, despertou a curiosidade de diversos
historiadores e pesquisadores. Veja alguns deles:

CARDOSO, José Luís. Novos elementos para a história do Banco do Brasil


(1808-1829): crônica de um fracasso anunciado. Rev. Bras. Hist., Jun 2010,
vol.30, n.59, p. 167-192.

CARVALHO, José Murilo de. D. João e as histórias dos Brasis. Rev. Bras. Hist.,
2008, vol.28, no. 56.

COSTA, Emília Viotti da. Da Monarquia à República. São Paulo: Brasiliense, s/d.

DIAS, Elaine. A representação da realeza no Brasil: uma análise dos retratos


de D. João VI e D. Pedro I, de Jean-Baptiste Debret. An. mus. paul., Jun 2006,
vol.14, no.1, p.243-261.

GOMES, Laurentino. 1808. A fuga da família real para o Brasil. São Paulo:
Planeta Brasil, 2007.

GRAHAM, Maria. Diário de uma viagem ao Brasil. Belo Horizonte: Itatiaia; São
Paulo: Edusp, 1990.

72
LENHARO, Alcir. As tropas da moderação. O abastecimento da corte na formação
política do Brasil (1808-1842). São Paulo: Símbolo, 1979.

Os homens também procuravam se vestir à europeia, com casacas,


coletes e calções à inglesa. Ao seu lado, poderia está sua senhora,
às vezes, com roupa bastante decotada ou demasiadamente
vestida. Esse mundo de mercadorias vindas da Europa para um país
caracterizado por um clima cálido e por uma rusticidade flagrante,
“resultou em algo bastante exótico, tanto para os que traziam a
novidade como para quem a incorporava”. Assim, ao “lado das saias Atenção
múltiplas coloridas e rodadas se mantivera a saia preta, uniforme
10
Isso se deu em parte
pela oposição de alguns
no reino, e a mantilha, que encobria o rosto das mulheres sob suas grupos de artistas e
rendas em visitas às igrejas e procissões” (MALERBA, 2000, p. 169). burocratas luso-brasileiros
que se viram prejudicados
Em 1816 foi criada a Escola Real de Ciências, Artes e Ofícios, pela concorrência
francesa, mas também
institucionalizando, pelo menos no papel, a educação artística de pelas controvérsias sobre
forma sistematizada. Para viabilizar o seu funcionamento inicial, em a natureza da Escola
março de 1816, chega ao Rio de Janeiro a Missão Francesa, um Real que estava sendo
criada. De qualquer
grupo de artistas, arquitetos, cientistas e professores, cujo objetivo modo, em 1820 foi
era orientar a criação da primeira Academia Brasileira de Belas- criada a Academia Real
de Desenho, Pintura,
Artes. Embora apenas em 1820 os planos governamentais tenham Escultura e Arquitetura
sido realizados10, a Missão Artística Francesa teve grande impacto Civil.
no campo cultural brasileiro, seja introduzindo novas estéticas
artísticas, seja contribuindo para aumentar o interesse de outros
intelectuais estrangeiros pelo Brasil. Do grupo inicial, apenas para se
ter uma ideia, destacam-se nomes importantes da produção artística
sobre o Brasil do começo do século XIX, tais como o pintor Jean-
Baptiste Debret. Conforme narra Gouvea, a concretização do ensino
sistematizado foi um processo bastante conturbado. “Somente dez
anos depois da chegada da missão francesa a instituição começaria a
funcionar plenamente e em suas próprias instalações” (2011).

Laurentino Gomes, escrevendo sobre o período, aborda a criação da


escola de medicina em Salvador, inaugurando o ensino superior no
Brasil, em 1808, sob o nome de Escola de Cirurgia da Bahia. Esta
Escola ficou sediada no Hospital Real Militar da Bahia, localizado no
antigo prédio do Colégio dos Jesuítas, no Largo Terreiro de Jesus.
Inicialmente foram ministradas apenas duas cadeiras básicas:
cirurgia especulativa e prática pelo cirurgião Manoel José Estrella,
e anatomia e operações cirúrgicas pelo cirurgião José Soares de
Castro. (GOMES, 2011, p. 40).

73
É importante, caro estudante, deixar claro que estas novas formações
culturais atendiam a uma clientela muito seleta. Eram poucos os
homens e mulheres que adentravam nos espaços culturais e nos
ambientes de saber intelectualizado. Era a chamada elite letrada ou
poucos que, mesmo sem saber ler, se dirigiam a tais repartições. Por
falar em leitura, a imprensa era proibida no Brasil até então. Porém,
D. João VI decretou a abertura de jornais, causando grande impacto
social. “Mesmo com uma censura vigilante e burocrática, muitos
jornais surgiram, mudando o ambiente intelectual e político do país,
que passou a debater as ideias políticas que chegavam da Europa e
dos Estados Unidos” (GOMES, 2011, p. 41)

Gazeta do Rio de Janeiro, primeiro jornal impresso no Brasil, nas máquinas da Imprensa
Régia, no Rio de Janeiro. Seu lançamento marca o início da imprensa no país. Disponível
em: http://pt.wikipedia.org/wiki/Ficheiro:Gazeta_do_Rio_de_Janeiro_1808.png

Com a abertura de D. João VI para a imprensa, vários jornais emergem


como espaços de publicidade, reclames e noticiários. Entre esses
espaços de produção e de promoção da burguesia, encontramos o
Jornal Diário de Pernambuco, um órgão de comunicação de singular
importância no cenário recifense, circulando em uma extensa área,
desde o Maranhão até as Alagoas. Fundado em 07 de novembro de
1825 (um pouco depois do decreto de D. João VI), torna-se o mais
antigo jornal em circulação na América Latina, possuindo um poder
de ação ativo e penetrante em meio a sociedade local, servindo
para iniciar muitos filhos de senhor de engenho nas primeiras letras.
Criado por Antonino José de Miranda Falcão, com quatro páginas
franqueadas aos leitores, o Diário de Pernambuco firma-se como

74
um órgão da imprensa do Norte enquanto um território de anúncios,
de propagandas políticas e comerciais, figurando compras, vendas,
leilões, aluguéis, arrendamentos, roubos, perdidos e achados. Some-
se a isso o anúncio sobre fugas, apreensões de gatunos, raptos,
aluguéis de peito de amas-de-leite, movimento portuário, discursos
parlamentares, dentre outras notícias que deixavam a família
pernambucana a par das novidades que ocorriam no Recife ou fora
dele.

Mas se havia leituras para os olhos, deveria também ter sons para
os ouvidos da burguesia e de quem pudesse pagar por ela. Com os
ouvidos educados pelos sons europeus, a corte portuguesa no Rio
de Janeiro queria continuar ouvindo essa arte. O pintor Debret, que
veio ao Brasil com a Missão Artística Francesa (1816), estimou que
D. João gastava aproximadamente 300.000 francos anuais. Este
valor era considerado “uma fortuna para a época, na manutenção da
Capela Real e seu corpo de artistas, que incluía “cinquenta cantores,
entre eles magníficos virtuoses italianos, dos quais alguns famosos
castrati, e cem executantes excelentes, dirigidos por dois mestres
da capela’”. Mas a mudança maior viria em 1815: “As mudanças
teriam seu ponto culminante em 16 de dezembro de 1815. Nesse dia,
véspera da comemoração do aniversário de 81 anos da rainha Maria
I, D. João promoveu o Brasil à condição de Reino Unido a Portugal
e Algarves, ficando o Rio de Janeiro como sede oficial da coroa”.
Músicos, artistas, professores de dança, enfim, todo um conjunto de
professores das belas artes começou a chegar ao Brasil (GOMES,
2011, p. 41-42). A moda europeia como a invadir as ruas e salas
distintas do Rio de Janeiro.

Dia após dia, a cidade recebia inúmeros contingentes de pessoas


vindas da Europa atraídas pelo comércio após a abertura dos portos.
Os ingleses estabeleceram-se principalmente na rua da Alfândega,
enquanto os franceses preferiram a rua do Ouvidor. O comércio
multiplicou suas opções de compra e venda. Porém, “se novas e
diferentes mercadorias se anunciavam nos leilões e nas lojas da
praça, não é isso garantia de que todos podiam consumi-las. Mas
todos podiam vê-las, cobiçá-las e tentar copiá-las - ou ‘macaquear’ os
gestos afetados de quem podia usá-las” (MALERBA, 2000, p. 188).

Assim, o Brasil “transformado” tinha compositores, dançarinos,


maestros, arquitetos, cantores, pintores, cientistas, educadores,
escola de ensino superior, fábricas de ferro, pólvora e tecidos, moinhos
de farinha de trigo, lojas que vendiam as novidades que chegavam

75
de Londres e de Paris através dos diversos navios que chegavam a
vapor (GOMES, 2011, p. 35).

Saiba Mais
1817. A tentativa revolucionária de Pernambuco.

Mas nem só de prosperidade cultural viveu a corte portuguesa quando de sua estadia
aqui no Brasil. A chegada da família real agravou o descontentamento histórico da elite
comercial portuguesa contra a dominação colonial. Isso se deu por que a coroa passou
a favorecer os comerciantes portugueses. Além disso, o governo luso-brasileiro começou
a cobrar altos impostos para financiar as guerras em que se envolveu para dominar a
Província Cisplatina, atual Uruguai.

Invadida em 1815 pelo exército luso-brasileiro, essa região foi anexada ao Reino Unido
do Brasil Portugal e Algarves em 1821. Essa conquista, contudo, foi obtida mediante uma
guerra difícil e prolongada. A fim de gerar recursos para serem usados no combate, a
coroa lusitana aumentou os impostos e autorizou o recém-criado Banco do Brasil a emitir
grandes somas de papel-moeda, política que contribuiu grandemente para aumentar a
inflação, o custo de vida e, em consequência disso, a insatisfação popular com relação
às medidas joaninas.

Em Pernambuco, essas condições foram agravadas pelos efeitos da grande seca de 1815 a
16. Associe isto à difusão das ideias liberais e republicanas da Revolução Francesa (1789)
e da Independência dos EUA (1776), e teremos um clima bastante propício para a eclosão
de um movimento social de teor contestatório. Visando substituir a monarquia absoluta
portuguesa, legitimada pelo direito divino, por uma forma Republicana e liberal de governo,
este movimento ficou conhecido como a Revolução Pernambucana de 1817, durante a
qual foi instalado um governo Republicano neste estado que vigorou durante 74 dias.

Desse movimento fizeram parte à elite pernambucana, com destaque para a participação
de senhores de engenho, comerciantes, padres e militares. Após vencer as forças locais
leias ao governo Português, os líderes do movimento organizaram um governo provisório
e enviaram emissários a outras capitanias do Nordeste em busca de apoio. Paraíba,
Alagoas e Rio Grande do Norte aderiram ao movimento e engrossaram as fileiras
rebeladas contra o jugo português.

A reação do governo português não demorou. Após intensos combates, os revoltosos


foram derrotados e o Recife foi novamente ocupado pelo exército lusitano em 19 de
maio de 1817. Embora D. João VI tenha anistiado 72 condenados à morte em 1818, os
principais líderes do movimento foram executados sumariamente.

Com estes investimentos no campo cultural, o príncipe regente


buscava dar novos ares, sobretudo pela introdução de hábitos
franceses, ao Rio de Janeiro, uma cidade então dominada pela
cultura africana. Para além dos objetivos da coroa lusa, importa frisar
que o registro da sociedade brasileira feito pelos artistas trazidos por
D. João acabou influenciando por longos anos a produção artística

76
do país, mesmo após a sua independência, em 1822. Além disso,
é inegável que os melhoramentos propiciados pela transferência da
família real para a América, significaram uma ruptura na vida cultural
da colônia portuguesa. Apesar disso, cabe salientar que as benesses
desse movimento de reforma cultural acabaram ficando restritas aos
segmentos da elite luso-brasileira.

Você Sabia?
Antes da chegada da corte portuguesa, o Rio de Janeiro oferecia poucas distrações:
as famílias ricas iam a espetáculos, embora de má qualidade, e frequentavam bailes
familiares, enquanto os homens iam a reuniões de jogos. Praticamente não existia vida
noturna por causa da falta de iluminação.

Esse tipo de vida calmo e aparentemente sem preocupações foi de um dia para o outro
revolucionado pela chegada da família real portuguesa e toda a sua corte. Para atender
às suas exigências, foram logo construídas novas casas e reformadas as já existentes.
Os balcões fechados com madeira trançada, as rótulas, começaram a ser substituídos
por janelas com vidraças. Começaram a aparecer também residências isoladas, longe do
centro, em meio a jardins, com muitas árvores e gramados.

Segui-se uma série de modificações introduzidas pelos comerciantes vindos, sobretudo


da Inglaterra e da França, após a abertura dos portos. No centro da cidade, na Rua
do Ouvidor, instalaram-se inúmeras lojas cheias de artigos europeus e orientais, dos
mais finos. Surgiram livrarias, perfumarias, tabacarias, lojas de calçados, oficinas de
costureiras e de modistas, salões de barbeiros e cabeleireiros. Tudo isso foi modificando,
aos poucos, gostos, hábitos e costumes da população, introduzindo na cidade noções de
conforto desconhecidas até então.

Para assegurar o progresso material foi necessário um número maior de pedreiros,


carpinteiros, ferreiros, de pessoas, em suma, especializadas em vários ofícios; daí foi
surgindo aos poucos uma nova camada social, a pequena classe média, intermediária
entre os escravos e os ricos e nobres.

Com o aprimoramento do gosto, dos hábitos e dos costumes houve também um aprimoramento
cultural, por meio de novas escolas elementares, médias e superiores abertas não só no
Rio de Janeiro, mas também me outras capitais da província. A imprensa difundiu-se e
os livros começaram a circular fazendo crescer o interesse pela cultura e pelos estudos.

Fonte:

HOLANDA, Sério Buarque de. (org.) História geral da civilização brasileira, v.1. 1972,
p. 148 – 150.

Revisão
1808. A data, por mais insignificante que seja, representa um momento singular para o

77
Brasil, pois como vimos no decorrer deste capítulo, após a chegada da Família Real,
o Brasil, principalmente a cidade do Rio de Janeiro, passou a ser palco de muitas
transformações. Em nível nacional, a Abertura dos Portos possibilitou a construção
de uma nova teia de relações comerciais com outros países, a exemplo da Inglaterra,
diversificando o comércio local e a pluralidade de produtos vendidos e comprados no
Brasil. Em nível local, a cidade do Rio, sede da corte imperial, viveu novas reelaborações,
novas configurações espaciais e sentimentais, com a criação de casas de cultura, palcos
de saber, espetáculos teatrais, agências financeiras como o Banco do Brasil. Foi um
momento que D. João VI abriu as portas não apenas para as nações amigas, mas para a
mudança do próprio Brasil.

Dicionário de Termos Históricos


●● Tratado de Metheun: Assinado entre Portugal e Inglaterra
em 1703, estabelecia a redução de impostos sobre os vinhos
portugueses comprados pelos britânicos e sobre os tecidos ingleses
adquiridos em Portugal. Este acordo acabou por desestimular o
desenvolvimento industrial português, beneficiando o comércio
inglês tanto na metrópole lusa quanto em suas colônias.

●● Castrati: muito comum no final da Idade Média e início da


Moderna, o castrati é a designação dada a um cantor masculino
cuja extensão vocal corresponde à das vozes femininas (soprano,
mezzo-soprano, ou contralto). Esta faculdade numa voz masculina
só é verificável na sequência de uma operação de corte dos
canais provenientes dos testículos, ou então por um problema
endocrinológico que impeça a maturidade sexual. Como as
mulheres não podiam cantar em corais até a Idade Moderna, os
castrati eram treinados para substituírem a voz feminina. Somente
em 1902 o papa Leão XIII proibiu os castrati no coro das igrejas.
Para saber mais, veja o filme Farinelli, de 1994, sobre a vida do
castrati Carlo Broschi.

Atividades
Leitura de Imagens

1. Bloquear o continente, impedir o comércio entre os países rivais à França. Foi


assim que pensou Napoleão Bonaparte, ao impedir o acesso a portos dos países
então submetidos ao domínio do Primeiro Império Francês (1804-1814) a navios do
Reino Unido da Grã-Bretanha e Irlanda. Com base no texto visual a seguir, escreva
um diálogo entre Napoleão e Jorge III, do Reino Unido da Grã-Bretanha e Irlanda,
no qual estejam presentes.

78
a) os motivos de Napoleão pelo bloqueio;

b) as justificativas de Jorge III mostrando que tal ato francês é uma loucura;

c) as palavras firmes de Napoleão, dizendo que quem manda na Europa é a França;

d) a justificativa de Jorge III de que irá pedir ajuda a Espanha e a Portugal;

e) as palavras firmes e decisivas de Napoleão, despedindo-se do rei Jorge III e


ameaçando o seu reinado. Depois de escrever o diálogo, poste em seu blog na
plataforma moodle, da EAD-UFRPE, para sociabilizar com os seus colegas de
curso.

Fonte: http://en.wikipedia.org/wiki/File:Caricature_gillray_plumpudding.jpg

2. Com a chegada da família real ao Brasil, em 1808, as vivências culturais


passaram a fazer parte do cotidiano da Corte. Dentre tais vivências, destacam-se
as companhias de teatro, que vinham da Europa alegrar e animar os homens e
mulheres do Rio de Janeiro. Imagine-se um teatrólogo, contratado por D. João VI
para escrever uma peça sobre o cotidiano e os costumes da Corte. Escolha uma
temática e monte uma peça que poderá ser realizada na sua sala de aula, ou como
professor de História, ou durante os encontros de área, junto com seus colegas.
O objetivo desta peça é fazer novamente a leitura dos acontecimentos de 1808,
incentivar o diálogo com colegas durante os encontros presenciais, bem como
sistematizar o conhecimento histórico sobre a Família Real. Para tanto, apresento
algumas dicas para que a sua peça seja um arraso!

a) Em primeiro lugar, decida qual será a história da peça. Existem várias


possibilidades: pode ser baseada num livro, filme ou minissérie que trata desse
período11, numa história real que se encaixe no tema proposto, ou até numa Atenção
mistura destas coisas.
11
Alguns filmes e
b) Depois de definir a história (começo, meio e fim), é hora de criar os personagens minisséries retrataram
de acordo com o número de pessoas. É muito simples. Geralmente existem os esse momento, tais
como: Carlota Joaquina,
papéis principais e os secundários. É possível criar muitos personagens em torno
princesa do Brasil;
do tema principal (um vendedor de rua, uma vovó tricotando na sala, duas crianças Independência ou Morte;
brincando, um boticário, um artista etc.). O Quinto dos Infernos.

c) Este texto vai orientar todo mundo: atores, criadores dos cenários, figurinos,
sonoplastas (que cuidam dos sons e músicas), iluminadores... Imagine algo

79
acontecendo de verdade. Feche os olhos e pense em todos os detalhes. Você
precisa descrever isto para que alguém veja exatamente o mesmo que você. Não
bastam os diálogos. Precisa mostrar que cara os atores fazem, os sons externos
etc.

d) Agora, mãos à obra, ou melhor, dedos ao teclado. Crie, invente, escreva. Depois,
compartilhe sua peça com os demais alunos da EAD no seu ambiente virtual.
Atenção 3. Os contos, no século XIX, eram muito utilizados pelos intelectuais que publicavam,
12
O conto é um gênero inicialmente, nos jornais diários. O conto12, como gênero textual, possui a
textual de ficção, no capacidade de falar determinadas verdades de uma maneira rápida, precisa. Para
qual representa os
acontecimentos humanos. exercitar a sua capacidade de escritor, escolha uma das temáticas trabalhadas
É uma prosa breve neste capítulo e elabore um conto. Após a elaboração, mostre ao seu professor-
que caracteriza-se por tutor. Depois da leitura do seu professor, poste-o na plataforma moodle.
apresentar a narratividade
como marca essencial.
Outros elementos
estruturais acentuam as
especificidades do conto
como gênero literário: Dica de Cinema
o reduzido número A Moreninha (1971). Direção: Glauco Laurelli.
de personagens; a
concentração do espaço No século XIX, na cidade do Rio de Janeiro, jovem romântica vive um grande amor.
e do tempo em um único
Baseado no romance de Joaquim Manoel de Macedo.
relato; e a ação que
tende à simplicidade Carlota Joaquina (1994). Direção: Carla Camurati.
e à linearidade. Um
texto, portanto, conciso Sátira sobre a família real no Brasil, destacando a atuação de D. João e sua Esposa
e breve que busca, na Carlota Joaquina.
“economia” das palavras,
denunciar a condição de O Quinto dos Infernos (2002) Direção geral de Wolf Maya e Alexandre Avancini.
rapidez a que se encontra
submetido. Sua dimensão Produzida pela Rede Globo, num total de 48 capítulos. Foi escrita por Carlos Lombardi,
de complexidade se Margareth Boury e Tiago Santiago, com colaboração de Wolf Maya.
dá na profundidade do
que foi dito, provocando
uma unidade de efeito,
condição basilar de
sustentação semântica.
Ler mais: http://www.luso- Dica de Leitura
poemas.net
Revista de História da Biblioteca Nacional.

Revista Aventuras na História.

Referências
GOMES, Lauretino. 1822. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2011.

GOUVEA, Viviane. Vida artística no período joanino. Disponível em: http://www.


historiacolonial.arquivonacional.gov.br/cgi/cgilua.exe/sys/start.htm?infoid=834&sid=100.
Acessado em 21 set. 2011.

80
HEYNEMANN, Cláudia Beatriz, VALE, Renata William Santos do. Nas máquinas
do tempo: fábricas e manufaturas no Brasil joanino. Disponível em: http://www.
historiacolonial.arquivonacional.gov.br/cgi/cgilua.exe/sys/start.htm?infoid=974&sid=106.
Acessado em 21 set. 2011.

MALERBA, Jurandir. A corte no exílio. São Paulo: Companhia das letras, 2000.

MARTINS, Ana Canas. Anos de guerra e de incertezas. Revista de História da


Biblioteca Nacional. Ano 5, n. 55, abril 2010, p. 23-25.

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Conheça o Autor
Iranilson Buriti

Iranilson Buriti possui graduação em História pela Universidade


Federal da Paraíba (1994), mestrado em História pela Universidade
Federal de Pernambuco (1997), doutorado em História pela
Universidade Federal de Pernambuco (2002) e pós-doutorado em
História das Ciências e da Saúde na Casa de Oswaldo Cruz - Rio de
Janeiro. Atualmente é pesquisador do CNPq e membro do conselho
editorial das Revista Mneme (UFRN), da Revista Temporalidades
(UFMG) e Revista de Humanidades da Universidade de Fortaleza. É
professor Associado I da Universidade Federal de Campina Grande.
Foi coordenador do Curso de Mestrado em História da UFCG e
da graduação em História. Faz parte do quadro de avaliadores
institucionais e de curso do BASIs/INEP/MEC. Autor de livros
didáticos na área de História. Tem experiência na área de História e
de Pedagogia.

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