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Razao Inadequada
2 sentisse digno de
filosofar e, se não
filosofasse, não me
saberia tão vivo
Expediente desta ediçao:
Rafael Lauro (textos, diagramação)
Rafael Trindade (textos, revisão)
Amauri Ferreira (texto)
Shin KwangHo (capa)
Bóris Moreno (ilustrações)
Laura Mello (ilustrações)
Fabiano Alves (ilustrações)
Gabriella Brito (ilustração)
Agradecimentos:
Sergio Poggio
Adriana Vasconcellos
Marcelo Stehlick
Editorial
Dois anos e já queremos
dizer aquilo que somos e não
somos. Sim, é ousado, mas é
preciso. Ousadia é para nós
uma prerrogativa, tal como a
prudência. Se nos definimos
como uma Razão Inadequada
foi para contrapor-se, mas
se dissemos “Não” é porque
antes gritamos “Sim” para
nossas ideias. Ouvimos o
corpo, o barulho da cidade,
escutamos o ritmo das
frases de filósofos que
admiramos e decidimos
dar nossa pequena contribuição ao cenário da
filosofia no Brasil e no confuso mundo da internet.
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razaoinadequada.com
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O que e Filosofia?
Rafael Lauro e Rafael Trindade
H
á filosofias que desejam conhecer: a que ele frequente apenas os terrenos em que ainda
Verdade torna-se o fundamento de qualquer somos fracos. Muito antes do medo vêm alegria
possibilidade de triunfo. Há filósofos que e tristeza: dois lados de uma mesma moeda, cujo
desejam refletir: o espelho é seu instrumento de valor é inestimável à filosofia. Movimentar, acelerar,
trabalho. Alguns preferem discutir: as academias são sobrevoar, girar, eis os requisitos de um pensamento
seus habitats naturais. Outros querem comunicar: a que se instaura no devir. Engolimos e vomitamos
objetividade racional é seu princípio. Nós queremos conceitos, ruminamos pensamentos até que eles
mais, queremos criar: nem falso nem verdadeiro, mas o se tornem perigosos novamente. A filosofia é uma
que é interessante; trocamos o espelho pela ponte para maneira de lidar com as forças que nos querem
não perder o horizonte; deixamos de lado as querelas rasgar por dentro, ela é uma máquina de tornar ativo
universitárias para nos concentrar na atualidade o que é passivo. Cansamos de nos sentar à sombra,
dos problemas; enfrentamos a razão instituída cansamos de ver o rio correr: queremos ser o rio.
apostando em outra racionalidade – deslocamos o
eixo por sob o qual as ideais se adequam às normas. Deixamos a burocracia da filosofia para trás, já
está na hora de filosofar com coragem. Não somos
A filosofia está mais perto da loucura do poeta que especialistas, deixamos este assento vago aos
do método científico: filosofar com cheiros, toques, entediantes. Sem Deus nem Estado, a filosofia se
gostos… devires. Nossa filosofia começa com o riso, tornou para nós um parricídio, um desafio, uma fuga
o humor é a primeira das afirmações. Se antes de inesperada do presídio: as sirenes soam alto, por todos
qualquer embate nós rimos, é porque os problemas os lados há a tentativa de capturar o pensamento, mas
nos agradam, o conflito se faz necessário e a colisão onde houver um pouco de criação haverá também
inevitável. Não se faz nada sem antes rir um pouco, uma linha de fuga. Não fazemos reféns, mas deixamos
e, depois, rir muito. A incapacidade ao riso empurra vítimas. A filosofia nos trouxe a revolta, claro, e
a filosofia a uma triste sobriedade. A seriedade é ela é necessária, mas talvez tão necessária quanto
própria aos que prezam pelas coisas pesadas, que os momentos de descanso, de silêncio e espanto.
querem ir ao fundo, submergir,
explorar e sentir a gravidade. Nosso
caminho é outro: dançamos como
quem resiste ao peso, lançamos-nos
ao abismo como quem pode voar.
razaoinadequada.com 5
libertação. Se fizemos o diagnóstico em preto e branco, se apaga. O objetivo é ter sempre um olhar diferente
foi para afirmar uma prática com todas as cores! por onde se passa, cruzando fronteiras, ultrapassando
a nós mesmos. Nos tornamos complexos, isto é,
Uma prerrogativa, sempre atual, para renovar uma temos cada vez mais dobras; isto nos permite agir de
razão anciã: unir mente e corpo. Ouvir os instintos, modos diferentes, afetar o mundo e ser afetado por
virar os ouvidos para dentro e escutar os gritos de ele de múltiplas maneiras. Não existe sensibilidade
um corpo amansado, pacificado, docilizado. Se desde inadequada, porque qualquer sensibilidade é válida. O
sempre a sensibilidade foi vista como perigosa, agora vento no rosto, a água do rio nos pés, isto é filosofia?
ela é a base imanente de toda filosofia; se a razão se Talvez dependa de sua capacidade de experimentar.
tornou opressora, agora ela pode ser artifício, astúcia Quanto mais o céu fica azul, mais filosofia. Quanto
criativa. Talvez nossa razão seja inadequada porque mais o mar se agita, mais filosofia. Quanto mais
ela é também afetiva! Ela não tenta se sobrepor ao anoitece, mais filosofia. E que dirá uma filosofia da
corpo. Invertemos conselhos, desfizemos planos, aurora? Filosofar é ser capaz de criar e habitar estes
corroemos cartilhas. Nossos afetos tornaram-se razão! momentos ativamente. É a potência de estendê-los
Novos encontros, fim dos esteriótipos. Queremos no espaço e no tempo, para dentro e para fora. Ir
uma razão que multiplique, fundo no momento, tirar tudo o que se pode; alterar
que mergulhe no caos de peito as densidades, examinar as espessuras, contestar o
aberto. Um razão explosiva peso, modificar a atmosfera, averiguar profundidades,
que tenha na vida o seu abrir horizontes: é tudo matéria de filosofia.
combustível e no pensamento A filosofia se conjuga em um só tempo, ela deve ser
o seu comburente. Somos a capaz de nos fazer estar presentes no instante máximo;
Razão Inadequada, as razões que não nos percamos em tolices e superstições.
inadequadas, e se pudermos Ser capaz de habitar um instante de perfeição, isto é
ser mais, seremos, se pudermos filosofar no presente. Este é o pensamento que nos
multiplicar, melhor ainda! permite experimentar momentos de eternidade. A
grandeza de uma filosofia está na sua capacidade de
A filosofia é mais do que um nos despertar novas intensidades. Não basta estar
modo de vida, ela é a vida se presente, é preciso que nossas forças se atualizem,
apresentando como pensamento. que nós estejamos inteiros entregues àquilo que
Quando uma ideia nos atravessa, nos acontece. Não nos sentiríamos dignos de viver,
queremos concedê-la o mínimo se não nos sentíssemos dignos para filosofar e, se
de consistência. O desejo não filosofássemos, não nos saberíamos tão vivos •
do filósofo é precisamente
o de tomar a realidade por
um movimento de pensar
acontecimentos. Pensar torna-se
uma maneira de intensificar o
curso da vida, deixar o caminho
mais bonito. Não há fracasso
maior para a filosofia do que
afastar-se da existência por
considerá-la perigosa demais.
Separar o pensamento da vida
é esvanecer o tempo e esvaziar
o espaço, trocar o intenso
pelo extenso, o singular pelo
mensurável, o alegre pelo triste.
N
ão há pergunta mais exigente para uma em criar conceitos. O filósofo é o artesão a quem
filosofia da diferença do que esta: “que sou eu?”. compete a criação dos conceitos e a filosofia é a sua
Em 1991, Gilles Deleuze escreveu, em conjunto profissão, seu métier. Esta é, em suma, a resposta
com Félix Guattari, seu último livro. Um livro de deleuziana: “a questão da filosofia é o ponto singular
velhice, um livro despojado de estilo, preocupado em onde o conceito e a criação se remetem um ao outro”.
falar concretamente. “Mas o que é isso que eu fiz toda a Esta conclusão não é nada mais que um princípio,
minha vida?”, pergunta ele. O que é a Filosofia? é o livro uma faísca que faz acender uma série de outras
em que Deleuze pretende, tal qual máquina, combinar questões. Que é um conceito? O que ele supõe? De
todas as suas peças “para enviar ao porvir um traço que que tipo de criação falamos aqui? Qual é o seu lugar?
atravesse as eras…”. Dada a grandeza da questão, não
pretendo senão esboçar uma interpretação da resposta O conceito é questão de articulação; é um complexo
de Deleuze, uma leitura sustentada por quatro pilares: de componentes representados por um nome.
singularidade, multiplicidade, alteridade e mobilidade. Todo conceito remete a um problema e só se criam
O que é um filósofo? É um conceito em potência, conceitos em função de problemas. Saber colocar-
diz Deleuze. E a filosofia? É a disciplina que consiste se problemas, eis um sinal de maturidade. Ser
Toda criação é singular e o conceito, como criação O acontecimento é como o sorriso sem gato de
propriamente filosófica, é sempre uma singularidade. Lewis Carrol em Alice, é aquilo que há de novo na
O primeiro princípio da filosofia é que os Universais repetição, no evento. O conceito é a constelação de
não explicam nada, eles próprios devem ser explicados” um acontecimento por vir, é o que permite conhecer o
A oposição entre singularidade e universalidade é novo se fazendo. Essa dinâmica do conceito exige por
então a primeira característica da noção deleuziana sua vez um horizonte de eventos, um solo múltiplo,
de filosofia. Onde há apenas contemplação, reflexão um plano de imanência. A filosofia é ao mesmo
e comunicação, não há filosofia, pois essas faculdades tempo criação de conceitos e instauração de plano.
são máquinas de construir Universais. O fato de ter
de ser criado impede ao conceito a universalidade. Aqui nos deparamos com a multiplicidade irredutível
“Os conceitos não nos esperam inteiramente à qual o pensamento se depara quando se estende
feitos. Não há céu para os conceitos”. Resta saber: sobre o caos. O caos é precisamente isso: um
que unidade resta à filosofia? Pouca ou nenhuma. perpétuo movimento de determinações se fazendo
e se desfazendo. O pensamento pede só um pouco
O conceito tem singularidade, não unidade. Ele é de ordem para suportar o caos. “Arte, ciência e
único apenas na medida em que é singular e esta filosofia querem que rasguemos o firmamento e
singularidade, que lhe é própria, o faz ser conceito mergulhemos no caos, só o venceremos a este preço”.
apenas no que concerne sua aplicação particular, na Como o filósofo enfrenta o caos? Traçando um plano.
sua relação com um problema. Mas onde fica então
a Verdade? “O conceito tem sempre a verdade que O plano de imanência é como um corte do caos e
lhe advém em função da sua criação”. Ou seja, o age como um crivo. O caos caotiza, diz Deleuze. Isto
conceito não possui nem diz verdades a não ser num significa que ele desfaz no infinito toda a consistência.
sentido muito específico em que se pode falar em Se coloca então o desafio supremo da filosofia: “dar
verdade. Há alguma veracidade quando o conceito consistência sem nada perder do infinito”. O plano
se relaciona com nossa história e, sobretudo com de imanência é o olhar do filósofo dirigido para um
nossos devires. Todo filósofo tem a árdua tarefa horizonte aberto. No topo de uma montanha, ele
de criar conceitos para problemas que mudam observa atento o plano instaurado, criando conceitos
necessariamente. É por isso que não se deve discutir para traçar ordenadas intensivas, para inscrever a
filosofia, não há ganho nenhum. Estudar a história velocidade infinita do múltiplo na singularidade
da filosofia é, antes, mergulhar nos conceitos, finita do conceito. O plano faz um apelo à criação de
trazer suas pertinências à tona num novo contexto. conceitos, ele é o solo deserto dos acontecimentos, ele
precisa dos conceitos para adquirir consistência, para
Se não discutimos filosofia, como medir a grandeza que suas questões e seus problemas sejam habitados.
de uma filosofia? Não é a precisão do conceito,
uma espécie de adequação do pensamento A transcendência é o risco derradeiro da filosofia.
ao verdadeiro, que o faz ser grande, mas sua Há religião, e não filosofia, cada vez que se decide
pertinência, seu interesse. É pela natureza dos construir um Império celeste no plano, permitindo
acontecimentos aos quais um conceito nos que o pensamento opere por figuras, que nada
convoca que medimos seu interesse, sua grandeza. mais fazem do que projetar sombras por sobre o
A
vida de Espinosa não foi muito fácil. Sua Já em seu Tratado Teológico Político, anterior à
família era judia e fugiu de Portugal para Ética, Espinosa alertara para os perigos da religião
escapar da inquisição. Chegando na Holanda, que começa oferecendo explicações do mundo
ele cresceu dentro da comunidade judaica; era muito mas termina impondo sua fé e forçando os outros
inteligente, mas não pode continuar seus estudos a obedecerem o que suas crenças mandam. Não,
devido à morte de seu irmão mais velho. Foi então Deus não quer obediência simplesmente porque
forçado a ajudar seu pai nos negócios da família. é impossível desobedecê-lo, Ele é a natureza e
suas leis naturais seguem de sua própria essência.
Sua inteligência e ousadia lhe deram um amargo Ele causou tudo, inclusive a si mesmo; divina é a
caminho: foi excomungado aos 24 anos, sendo substância infinita, ela é pura necessidade, essência
completamente isolado da comunidade judaica. e potência de criação. Deus é o criador eterno, pois
Tal acontecimento, apesar de traumatizante, nada está para além dele, nem pode destruí-lo.
permitiu a Espinosa concentrar-se nos estudos
de filosofia e latim, suas verdadeiras paixões, Dentre os atributos de Deus, diz Espinosa, está
mas sem nunca subestimar novamente a a matéria e o pensamento. Nós, seres humanos,
arrogância e o poder do pensamento religioso. somos parte destes dois atributos. Nosso corpo
é feito de várias partes, cada vez menores, que se
Em todos os momentos, até o resto da vida, movimentam ora mais rápida e ora mais lentamente.
Espinosa esforçou-se para livrar a si e aos outros da E nossa mente é composta de ideias. Temos a
superstição religiosa, dos medos irracionais que capacidade de nos mover e de pensar. Somos
brotam das inseguranças do homem e da ignorância apenas uma pequena amostra desta potência
que os mantêm escravos. Por não conhecerem infinita, que Espinosa chama de modo, sendo assim,
como o mundo funciona, por não entenderem, os estamos incluídos na cadeia de causa e efeitos
homens caem vítimas das explicações sagradas tanto dos corpos quanto das ideias. Mas, mesmo
onde Deus tem todas as respostas e devemos apenas que pequena, somos uma parte desta potência
aceitar e obedecer o que os profetas nos dizem. do ser que gerou todas as coisas e permanece
imanente à sua criação; ou seja, somos capazes de,
Nesta busca para livrar a si e aos homens de nas condições certas, criar e pensar corretamente.
sua própria servidão, Espinosa trilhou o único
caminho seguro que conhecia: a filosofia. Em seu As ações do corpo são diretamente sentidas pela
mais importante livro, Ética, publicado depois de mente, ou alma. Não há uma relação de hierarquia,
morto, o filósofo traça uma linha reta através de os dois são a mesma coisa, dois lados de uma
axiomas e proposições que levam do conhecimento moeda (veja aqui). Tudo que fazemos se reflete
à liberdade. Começando por Deus, passando em nossos pensamentos e tudo que pensamos se
pelos afetos, Espinosa ensina como transformar reflete em nosso corpo. Para pensar corretamente é
a servidão em liberdade. Para ele, a filosofia e o preciso viver corretamente e o contrário também é
conhecimento têm essa capacidade, retirar as verdade: para viver corretamente é preciso pensar
algemas que prendem o ser humano em medos corretamente. A alma é a ideia do corpo, um corpo
irracionais e opressões políticas e religiosas. que sofre diariamente, que sente dores, que sente-se
oprimido, terminará por ter ideias horríveis da vida,
Abrindo o livro, Espinosa explica que Deus não do mundo e de si mesmo. Mas um corpo levado a
é um legislador, nem um ditador e muito menos viver cada vez mais segundo sua natureza, aumenta
um soberano sentado em um trono mandando e o número de ideias corretas de si e do mundo.
desmandando, escolhendo quem vai para o céu e Pensar é a maior virtude para Espinosa, é o caminho
quem é condenado ao inferno. Não, para Espinosa, mais rápido para quebrar o peso dos idealismos e
Deus é a própria natureza, nem mais nem menos. romper com as fáceis explicações supersticiosas.
Deus é todas as coisas e não há nada fora dele. Então,
ele não está separado de sua criação, ele próprio é a Mas como pensar melhor e viver melhor? Nas
sua criação e todas as coisas estão nele, nós também. relações, é claro. Nossos corpos são pequenas partes
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de matéria e pensamento que entram em relação natureza. Somos uma parte da potência infinita de
com o resto do mundo. Viver é a arte dos encontros, Deus, lembram-se? Não estamos fora do mundo,
viver bem é aprender a escolher estes encontros. mas somos uma parte ativa dele. Sendo assim,
Quando ocorre um bom encontro, minha potência basta uma pequena felicidade e nos tornamos mais
aumenta, e eu me torno mais feliz. Contudo, quando parecidos com Deus (que é totalmente livre). Quanto
ocorre um mau encontro eu me torno mais triste, mais somos felizes, melhor conseguimos pensar.
e minha potência diminui. Nosso corpo e mente Ninguém pensa bem quando está triste, somente a
procuram sempre efetuar bons encontros para felicidade é capaz de nos levar cada vez mais longe.
aumentar a potência de existir, Espinosa chama
isso de conatus. Não queremos apenas existir, A Ética de Espinosa é o caminho de reflexão no qual
isso é muito pouco, queremos nos aproximar de aprendemos a analisar nossos afetos e agir de modo
Deus; ele tem a potência infinita de agir e de ser a sempre contentar-se com nossos atos. O desejo de
afetado pelas coisas, quando mais aumentamos esta alegria do conatus é a força que nos impulsiona rumo
capacidade, mais tomamos parte ativa da criação. à liberdade. Juntos, razão e emoção são capazes de
fortalecerem-se e tornarem-se mais capazes de agir.
Espinosa quer libertar os homens do peso dos É preciso que o pensamento se torne uma emoção tão
Ídolos, dos moralismos e torná-los forte quanto o medo que nos colocam.
verdadeiramente livres; para isso
ele usa da principal ferramenta Filosofar é questionar-se
do ser humano: a razão. constantemente: é este o
Mas o mundo é tão melhor caminho para
vasto, suas forças a felicidade? O que
são tão grandes e estou sentindo? Sou
opressoras, como realmente a causa
é possível ser de mim mesmo?
verdadeiramente Estou agindo
livre? Somos segundo minha
levados de um natureza ou só
lado a outro obedecendo
como folhas o r d e n s
ao vento: externas? O
temos medo, filósofo utiliza-
frio, fome, se da razão
dor, é possível para tornar-
r e a l m e n t e se virtuoso
ser livre? A e feliz. Não
servidão humana porque haja uma
é a fraqueza do recompensa após
conatus, a impotência a vida para isso, mas
para regular nossos sim porque a própria
afetos internos e de resistir felicidade de filosofar já
às afecções do mundo à nossa é uma recompensa. Espinosa
volta. Somos colonizados pelo mundo foi o grande discípulo de sua
exterior. Desta forma, não só apenas nos própria filosofia. Vivendo feliz, trocando
deixamos dominar como passamos a desejar o que cartas com seus amigos, recebendo outros em sua
nos impõe. Mas o conatus quer não apenas existir, casa para conversar. O filósofo sempre escolheu os
quer resistir e expandir-se. Com a razão somos melhores lugares para ter uma vida boa, simples
capazes de escolher nossos encontros, a virtude em posses mas rica em pensamento e bons
do pensamento nos mostra a melhor maneira de momentos. Soube muito bem evitar problemas
ser afetado para aumentar nossa potência de agir. com os intolerantes religiosos de seu tempo e
os ignorantes que não entendiam sua filosofia
A virtude é a força para agir segundo nossa própria e o chamava de ateu, materialista e imoralista.
natureza. Liberdade, para Espinosa, não é agir
segundo possibilidades, é agir segundo nossa
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o FILOSOFO LEGISLADOR
Rafael Trindade
N
ietzsche sabe filosofar com o martelo, mas existe uma Vontade de Potência em constante
também sabe dançar. Sua definição do atualização, no segundo encontramos um corpo
filósofo é tão múltipla quanto as forças enfermo, fraco, procurando em que se segurar.
que nele habitavam. Há nele uma singularidade “Que virá a ser do pensamento mesmo que é
belíssima: a vida confunde-se com o pensamento. submetido à pressão da doença?” (Nietzsche, A Gaia
O simples fato de existir, se reflete em uma Ciência). De onde nascem as filosofias ascéticas? De
maneira de existir - eis a filosofia: quais são os onde nascem os ideais? Nietzsche responde isso em
valores que engendram uma vida? Como a saúde seu livro Genealogia da Moral: o homem doente vive
e a doença fazem de um corpo um filósofo? a falta de sentido, não tem a capacidade de afirmar-se,
não pode suportar a dor e cria mundos e planos onde
Em alguns, é a força que se torna a doce vontade procura descansar e se esconder. Todo idealismo,
de filosofiar, noutros, é a doença, o ressentimento toda filosofia e religião até agora, todo platonismo
que vomita uma filosofia contagiosa e perigosa. disfarçado, todo desejo revolucionário de um mundo
Nietzsche não quer saber de mundo das ideias, perfeito foi produto de um corpo cansado, esgotado,
este ídolo quebrou-se há muito tempo. O filósofo ávido por um paraíso perdido onde possa repousar.
alemão também não perde tempo subindo uma
montanha com as tábuas que serão gravadas com A filosofia nasce do corpo, em Nietzsche, filosofia e
as leis de deus, Deus está morto, resta este mundo e fisiologia se confundem. “Temos de continuamente
nós que o habitamos. Quem filosofa são os homens, parir nossos pensamentos em meio a nossa dor, dando-
e ela nasce da saúde ou da doença. Se no primeiro lhes maternalmente todo sangue, coração, fogo, prazer,
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paixão , tormento, consciência, destino e fatalidade de filósofo não seja das mais amistosas. Filos
que há em nós” (Nietzsche, A Gaia Ciência). Saber (amigo) e sofia (sabedoria) são interpretados por
viver, enfrentar a dor, fazer do sofrimento ferramenta ele de uma perspectiva diferente. O filósofo, para
para superar-se. Se a vida é o prato do dia, a dor é seu Nietzsche, é aquele que carrega o martelo, e faz a
tempero. O filósofo faz de seu corpo instrumento para sabedoria passar pelas mais duras provações. Que
afirmar valores e encontrar novos modos de vida. grande amigo da filosofia é este personagem cuja
dureza e rispidez tira o melhor que tem de seu
Nietzsche sofria de dores de cabeça horríveis que material de trabalho. O filósofo, com sua disciplina
às vezes o deixavam de cama por dias. Ele era e rigidez, talvez até truculência, busca lapidar
extremamente sensível ao clima e à culinária dos um diamante bruto, desinfetar a ferida purulenta.
lugares por onde passava. Parte de sua vida foi
dedicada a encontrar o melhor clima, os melhores
pratos, os melhores livros, músicas. Aquilo que não
o matou, o fortaleceu. “O veneno que faz morrer
a natureza frágil é um fortificante para o forte -
ele nem o chama de veneno” (Nietzsche, A Gaia
Ciência). Ele soube fazer de sua dor o remédio
para tornar-se mais forte, não o entorpecente para
Para Nietzsche, a filosofia não deve ser o refúgio
fugir do mundo e de si mesmo. Se o sofrimento é
dos fracos. Filosofar está distante de rezar, pregar,
a condição de crescimento e criação de qualquer
salvar, cuidar... O filósofo é o contrário de um
artista, porque não seria também do filósofo?
sacerdote e a filosofia não é uma casa onde os doentes
descansam. Não há compaixão na filosofia! “Os
Isso fez de Nietzsche um filósofo sem meias
autêntico filósofos são comandantes e legisladores:
palavras. É de se esperar, então, que sua concepção
eles dizem ‘assim deve ser!’, eles determinam o ‘para
onde?’ do ser humano” (Nietzsche, Além do Bem
e do Mal). Ser filósofo é tornar sinônimo querer e
criar, é dar vazão à Vontade de Potência. O filósofo
cria valores, recicla, redispõe, reordena. Filosofar é
comandar! O conhecimento do filósofo é criação,
sua verdade é uma manifestação da Vontade de
Potência. Por acaso já existiram filósofos assim?
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fILOSOFAR PARA O PRESEnTE
Rafael Lauro
A
filosofia de Michel Foucault movimentou algumas
das ideias mais originais do século XX: sua matéria-
prima sempre foi a surpresa. Antes de tudo, é preciso
surpreender-se com as próprias ideias, aí está um critério
fundamental. Ir além dos limites, uma necessidade;
Correr riscos, uma condição. Quando um entrevistador o
pergunta se ainda temos necessidade “das questões sem
resposta e dos silêncios” da filosofia, Foucault responde:
“A verdade, espécie de erro que tem a seu favor o fato de não poder
ser refutada, sem dúvida porque a longa cocção da história a tornou
inalterável” Foucault em Nietzsche, a Genealogia, a História, 1971
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a criaçao filosofica
Amauri Ferreira
P
ara nos adaptarmos à vida social é necessário, uma diminuição deste intervalo que caracteriza a
por meio do reconhecimento habitual, zona de indeterminação, recalcando uma atualização
distinguirmos objetos que percebemos mais rica do nosso passado e, sem dúvida, nos
justapostos simultaneamente no espaço para agirmos impedindo de experimentarmos o tempo real, onde
sobre eles, onde frequentemente nos servimos do cada instante percebido por nós se compõe com todo
número, da linguagem e do raciocínio inteligente o nosso passado, razão pela qual mudamos sem cessar.
para superarmos resistências materiais por meio da Bergson denomina duração este tempo constituído
fabricação de instrumentos artificiais. Somos capazes pela continuidade dos estados psicológicos. Portanto,
de conhecer as relações de causa e efeito entre a duração se distingue do tempo espacializado
certas coisas exteriores a nós, de desenvolvermos que é representado simbolicamente pelo número.
o conhecimento científico, de dominarmos uma
porção da matéria inerte através da mecânica, em Em vez de se dirigir para a fixidez das coisas
busca de bem-estar e prazer. Nos agarramos a ideias exteriores que nos aparecem como descontínuas, o
gerais – e aos hábitos que caracterizam a moral filósofo volta-se para si mesmo, onde há continuidade
fechada – para nos conservarmos. Mas, diante de de sensações e sentimentos, mudanças qualitativas
ideias consideradas verdadeiras que sustentam a vida que o enriquecem gradualmente, pois somente a partir
social de uma determinada época, surge, de modo dessa direção voltada para si mesmo que ele pode
inesperado, alguém que ousa romper com o senso fazer com que seja despertada a intuição da duração:
comum: o filósofo. “Diante de ideias correntemente “Nada mais de estados inertes, nada mais de coisas
aceitas, de teses que parecem evidentes, de afirmações mortas”, afirma Bergson; “apenas a mobilidade da
que haviam passado até então por científicas, qual é feita a estabilidade da vida. Uma visão desse
assopra no ouvido do filósofo a palavra: Impossível. gênero, na qual a realidade aparece como contínua
[…] Força singular, essa potência intuitiva da e como indivisível, está no caminho que leva para
negação” (Bergson, O Pensamento e o Movente). a intuição filosófica” (Bergson, O Pensamento e o
As ideias que o filósofo irá expor através da sua Movente). Para acontecer esse despertar da intuição
obra virão, primeiramente, desta rejeição de ideias filosófica, a experiência de uma consciência que
consideradas socialmente como à prova de críticas. se abstém de agir de modo utilitário é plenamente
Em seguida, ele irá avançar no desenvolvimento da estimulada pelo filósofo, que ocorre ao mesmo tempo
sua doutrina servindo-se da filosofia e da ciência em que ele amplia a sua capacidade de sentir o que as
de seu tempo e, sem dúvida, mergulhará nesta excitações materiais produzem no seu corpo e no seu
jornada que, embora o resultado seja incerto, segue espírito. Essa experiência, que é possível a qualquer
adiante e aceita riscos porque sente que tocou em um de nós, é impedida quando nos limitamos ao
algo que o impulsiona à materialização da obra. reconhecimento habitual, cuja atenção passa de um
objeto percebido a outro objeto: de uma notícia de
Para esse despertar filosófico, que é necessariamente jornal passamos rapidamente para outra notícia, de
subversivo, é indispensável uma suspensão dos um canal de televisão a outro canal, de um site na
nossos hábitos que correspondem às exigências internet a outro… O embotamento dos sentidos e o
da vida social. Para Bergson, somos constituídos esmagamento da experiência de que mudamos sem
por uma zona de indeterminação que concerne ao cessar são efeitos de um modo de existir reduzido ao
intervalo entre o estímulo recebido (sonoro, visual, utilitarismo, à comunicação gregária, à necessidade
olfativo…) e a resposta efetuada através dos nossos de nos adaptarmos ao meio para sobrevivermos.
mecanismos motores. Em razão da suspensão das
ações utilitárias, as nossas lembranças passam a Uma relação simpática com o objeto percebido, por
desfilar em nossa consciência com maior riqueza meio do reconhecimento atento, permite, enfim,
de detalhes, isto é, o nosso passado coexiste com sentirmos que não estamos separados da continuidade
o presente ou, para falar de outro modo, quando material que nos afeta a todo instante. A intuição
percebemos um objeto qualquer no mundo exterior, surge dessa experiência que, da perspectiva da
sentimos e nos recordamos de algo. Porém, a vida conservação gregária, é inútil, porém, ela é essencial
social exige de nós ações utilitárias, que implicam para que seja desenvolvida uma atenção suplementar,
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que é a do espírito sobre ele
mesmo: “Ela [a intuição]
representa a atenção que o
espírito presta em si mesmo,
de sobejo, enquanto se fixa
sobre a matéria, seu objeto.
Essa atenção suplementar pode
ser metodicamente cultivada
e desenvolvida” (Bergson, O
Pensamento e o Movente). Ora,
Bergson sublinha que, apesar
da raridade da experiência
dessa atenção suplementar, ela
pode, no entanto, ser cultivada
e desenvolvida por meio de
métodos que podemos nos servir.
Mas em qualquer método que
nos leve à intuição da duração
estará implicada algumas noções
essenciais do bergsonismo:
suspensão do mecanismo
sensório-motor, ampliação
da zona de indeterminação,
atualização crescente do
passado no presente, atenção
sobre o objeto (que pode ser
um livro, uma música, uma
paisagem), estímulo da nossa
capacidade de sentir. Evidentemente, também são ter-se-ia posto outros problemas; ter-se-ia expresso
noções essenciais para que alguém se torne filósofo. por outras fórmulas; nenhum capítulo, talvez, dos
livros que escreveu teria sido como é; e no entanto ele
Por partir de uma intuição original, ou seja, do teria dito a mesma coisa” (Bergson, O Pensamento
conhecimento da vida de dentro como impulso e o Movente). Bergson, que foi um grande leitor
para criar, o filósofo não imita, ou melhor, não pode de Espinosa, considera o livro principal deste
imitar a filosofia de ninguém. Essa ideia de “falta de filósofo, a Ética, como grande exemplo de contraste
originalidade” somente aparece ao leitor por meio entre a forma e o fundo de uma obra filosófica.
de uma leitura apressada e, por isso, superficial, pois, É o fundo que sustenta a forma, é o pensamento
de fato, diante da obra de um grande pensador, “ali vigoroso que está por trás do desfile de proposições,
mesmo, onde parece repetir coisas já ditas, [o filósofo] demonstrações, escólios, corolários. “É, por trás
as pensa à sua maneira” (Bergson, O Pensamento e o da pesada massa dos conceitos aparentados ao
Movente). Certamente ele foi influenciado pelas ideias cartesianismo e ao aristotelismo, a intuição que foi
de outros filósofos e cientistas, porém, como ele as a de Espinosa, intuição que nenhuma fórmula, por
recebeu, como ele as submeteu à intuição e como ele simples que seja, será suficientemente simples para
soube comunicar por meio das palavras a sua visão exprimir. […] Quanto mais remontamos para essa
original da vida, é algo profundamente verdadeiro intuição original, tanto melhor compreendemos
e singular. Ao ser atingido por uma ideia original, o que, caso Espinosa tivesse vivido antes de
filósofo extrai da vida o impulso para comunicar o Descartes, teria sem dúvida escrito algo diferente
seu pensamento – seus conceitos, então, levam a sua do que escreveu, mas que, Espinosa vivendo e
assinatura. Apenas aparentemente, ou seja, pela forma, escrevendo, teríamos certeza de ter apesar de tudo o
sua obra pode ser considerada como uma “evolução espinosismo” (Bergson, O Pensamento e o Movente).
na história da filosofia”, mas, de fato, através de um
exame mais profundo, sua obra nos revelará sua Em uma carta pouco conhecida (de 12 de setembro
novidade e simplicidade, e não uma “evolução”: “O de 1909), escrita em homenagem a Gabriel Tarde,
filósofo poderia ter vindo vários séculos antes; teria Bergson enfatiza a existência de dois gêneros de
lidado com uma outra filosofia e uma outra ciência; pensadores que a história da filosofia nos ensina a
Álvaro de Campos
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